A. JORGE RIBEIRO Camilo Castelo Branco TERRAS DE PASSAGEM 1 - SANTO TIRSO SANTO TIRSO 2008 Índice DATAS IMPORTANTES ................................................................................................ 3 SANTO TIRSO NA OBRA LITERÁRIA DE CAMILO ................................................................. 8 1. A Bruxa de Monte Córdova................................................................................... 8 2. A Brasileira de Prazins ........................................................................................ 14 3. Serões de S. Miguel de Ceide .............................................................................. 28 4. A Morgadinha do Val d’Amores ......................................................................... 34 5. Vinte Horas de Liteira ......................................................................................... 38 6. Maria da Fonte ..................................................................................................... 40 SANTO TIRSO NA EPISTOLOGRAFIA CAMILIANA .............................................................. 45 1. Camilo Castelo Branco ........................................................................................ 45 a) A Ana Plácido .............................................................................................. 45 b) A Freitas Fortuna, do Porto .......................................................................... 46 c) A Feliciano de Castilho ................................................................................ 47 2. Ana Plácido ......................................................................................................... 48 3. Outros .................................................................................................................. 50 a) Carta do Visconde de Calhariz ..................................................................... 50 b) Dr. Rodrigues Ferreira.................................................................................. 50 SANTO TIRSO E OS CONTEMPORÂNEOS DE CAMILO ......................................................... 52 1. Alberto Pimentel .................................................................................................. 52 a) Os Amores de Camilo .................................................................................. 53 b) O Romance do Romancista .......................................................................... 58 c) Santo Thyrso de Riba d’Ave ........................................................................ 59 d) Os Netos de Camilo...................................................................................... 60 e) Memórias do Tempo de Camilo ................................................................... 61 f) Através do Passado .......................................................................................... 63 2. Maximiano Lemos ............................................................................................... 64 3. Ricardo Jorge ....................................................................................................... 71 OUTROS ESCRITOS QUE LIGAM CAMILO A SANTO TIRSO ................................................. 73 1. Sousa Costa ......................................................................................................... 73 2. Gentil Marques .................................................................................................... 75 3. Vitorino Nemésio ................................................................................................ 77 4. Jornal de Santo Thyrso ........................................................................................ 79 5. Semana Tirsense .................................................................................................. 93 6. Concelho de Santo Tirso – Boletim Cultural ...................................................... 94 7. As polémicas ....................................................................................................... 96 8. Muitos escritores… ............................................................................................. 99 EPÍLOGO ..................................................................................................................... 101 2 DATAS IMPORTANTES1 02-08-1807 27-01-1814 24-03-1821 16-03-1825 14-04-1825 06-02-1927 27-09-1831 24-01-1834 22-12-1835 18-08-1841 25-08-1843 12-10-1846 23-10-1846 10-03-1848 25-06-1848 09-12-1858 26-03-1860 04-05-1860 06-06-1860 30-06-1860 01-10-1860 15-10-1861 16-10-1861 28-06-1863 15-07-1863 14-12-1863 15-09-1864 28-12-1865 15-07-1866 16-10-1868 02-03-1872 17-09-1877 11-10-1878 20-01-1881 03-07-1881 31-08-1884 13-09-1884 15-02-1885 18-06-1885 06-05-1886 04-08-1887 09-03-1888 01-06-1890 25-01-1892 26-03-1893 20-09-1895 23-01-1896 20-05-1898 09-09-1900 22-02-1908 Nasce Manuel José Ribeiro2, em Vila das Aves. Nasce, no Porto, Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa3 Nasce Carolina, irmã de Camilo Nasce Camilo Castelo Branco, em Lisboa, na Rua da Rosa 4 Camilo é baptizado na igreja dos Mártires de Lisboa. Morre, em Lisboa, a mãe de Camilo. Nasce, no Porto, Ana Augusta Plácido Nasce, em Penafiel, António Augusto Soares Rodrigues Ferreira5 Morre, em Lisboa, o pai de Camilo Camilo casa com Joaquina Pereira de França. Nasce Rosa Pereira de França Castelo Branco, filha de Camilo Camilo é preso na Relação do Porto pelo rapto de Patrícia Emília Camilo sai da Cadeia da Relação do Porto Morre a filha Rosa Nasce a filha de Camilo e Patrícia Emília, Bernardina Amélia Herculano propõe Camilo sócio correspondente da Academia das Ciências É pronunciada por crime de adultério Ana Plácido, com ordem de captura É pronunciado Camilo Castelo Branco Ana Plácido é detida Inauguração da Cadeia Nova, em Santo Tirso Camilo entrega-se à prisão Julgamento de Camilo e Ana Plácido Sentença de absolvição para Camilo e Ana Plácido Nasce Jorge Camilo Plácido Castelo Branco, em Lisboa. Morre Manuel Pinheiro Alves Carta régia em que Santo Tirso foi vila Nasce Nuno Castelo Branco, em Ceide. Casa Bernardina Amélia com António Francisco de Carvalho Castilho e Tomás Ribeiro visitam Camilo, dando origem ao obelisco Inauguração da iluminação a petróleo em Santo Tirso D. Pedro II, imperador do Brasil, visita Camilo e concede-lhe a Ordem da Rosa Com 19 anos, morre na Póvoa de Varzim, Manuel Plácido, filho de Ana Plácido Descarrila o comboio de Famalicão para o Porto, ficando ferido Camilo Decreto-Lei que fez o Comendador Ribeiro Visconde de São Bento Casa com o Nuno, em Braga, a D. Maria Isabel da Costa Macedo Morre Maria Isabel da Costa Macedo Morre a neta de Camilo Maria Camila, com 17 meses. Morre a filha de Camilo Bernardina Amélia Camilo passa a ser Visconde de Correia Botelho, por concessão de D. Luís I Decreto em que o Visconde de São Bento foi elevado a Conde. Nuno Castelo Branco passa a ser Visconde de S. Miguel de Ceide Camilo casa com Ana Plácido, no Porto, pelas 21 horas Morre Camilo Castelo Branco, em Ceide, S. Miguel Morre, em Santo Tirso, o Dr. Pedrosa Morre o conde de S. Bento, no dia em que o Dr. Ferreira faz 59 anos Morre Ana Plácido Morre o Nuno Castelo Branco Nasce, em Santo Tirso, o pintor Tomás Pelayo Morre o Jorge Castelo Branco (há referências ao dia 10) Morre, em Santo Tirso, o Dr. Rodrigues Ferreira 1 Não são referidas as datas da confecção ou da primeira publicação das obras de Camilo Castelo Branco porque são em grande número e aparecem referenciadas em muitos estudos camilianos. Muitas destas datas foram recolhidas de Camilo, de João Bigote Chorão, Lisboa, 1986. Não foram adoptadas as que divergem das anteriormente fixadas. 2 Viria a ser comendador, visconde e, depois, conde de S. Bento. O título de visconde de S. Bento passou, em 1894, para Vasco Maria Osório Sarmento Coutinho, abastado proprietário de Lamego. 3 Foi médico em Santo Tirso e acudiu inúmeras vezes a Camilo Castelo Branco. 4 Camilo, por engano, diz numa carta a Castilho não datada mas escrita em 1868, que faz 42 anos em Março, quando são 43. 5 Importante médico de Camilo e seu particular amigo, exerceu a sua carreira profissional e política em Santo Tirso durante 40 anos. 3 PRÓLOGO Este humilde ensaio trata de Camilo Botelho Castelo Branco, 1º Visconde de Correia Botelho, e da sua passagem por Santo Tirso. É curioso que o editor do Jornal de Santo Thyrso, em 1903, entende que o título de Visconde posto a Camilo, lhe fica como a inscrição do nome de uma rua por postura municipal sem o consentimento popular que, depois, é arrancado pela mão noctívaga, sendo colocado o anterior topónimo. Diz ele que o notável escritor será sempre Camilo Castelo Branco e, até, simplesmente Camilo! Santo Tirso, de que eu sou natural e onde vivo há mais de meio século – e há trinta anos na mesma casa – que eu nunca conheci como terra de passagem! Muitas pessoas têm chegado a Santo Tirso, oriundas das mais diversas paragens, motivadas principalmente pela transferência, no caso de funcionários públicos e, recentemente, os chamados retornados que regressaram de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, Índia e Macau, e que ajudaram ao desenvolvimento da indústria e do comércio locais, criando milhares de postos de trabalho. Chegam e ficam. Não tenho a pretensão do velho João da Ponte, das Caldas do Gerês, que abominava os que se anichavam, de modo permanente, no desfiladeiro termal, recusando-se a transpor a montanha para o lado espanhol; sobretudo a guarda fiscal e a republicana. Eu gostaria que tivessem alagado o estômago de Camilo com água da Fonte da Maria Velha – ou do chafariz «do meio» – de modo a cativar o escritor, deixando Santo Tirso de ser “terra de passagem” para ser “terra do ilustre sedentário”. Mas quis a fortuna que a propriedade do Pinheiro Alves fosse em S. Miguel de Ceide! Muito temos de agradecer a essa fortuna por nos colocar tão grande génio a uma légua de distância! Camilo estudou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1844 e 1845 e em Coimbra, em 1845 e 1846. Foi amanuense no governo civil de Vila Real em 1847. Entre 1846 e 1847 foi iniciado na maçonaria por Ricardo Jorge, junto de José da Silva Passos. Foi preso, acusado de adultério, entre 1859 e 1861. Participou na Questão Coimbrã em 1865. O visconde de Santo Tirso escreveu6 que “o Camilo, que tinha uma excelente pena , tinha uma péssima língua, e sucedia-lhe às vezes por aquela ao serviço desta”. Mais: “quando sucede a um homem da intelectualidade de Camilo dar-lhe para a maledicência, é porque tem para isso uma razão especial e pessoal”. Mas também escreveu que “Camilo Castelo Branco não é seguramente tolo, e a prova disso é que passou a melhor parte da sua vida a fazer tolices”. Cirilo Machado, visconde de Santo Tirso, escreveu estas citações a propósito do relacionamento de Camilo com o conde de S. Bento. 7 6 Cartas de Algures. No Jornal de Santo Thyrso de 9 de Maio de 1889: «O uso de penas de aço vai ser proibido em documentos importantes, que tenham de ser guardados, na Torre do Tombo, por estar averiguado que passados anos a leitura de tais documentos se torna impossível, por se acharem todos cortados no lugar da escrita. Adeus! patos, que ficais depenados!» 7 4 Este opúsculo tem como única intenção fazer com que as pessoas que amam Santo Tirso – e devem ser muitas porque é uma bela terra! – leiam grandes páginas de literatura camiliana sem terem de ler um montão de livros de fio a pavio. Se aguçar a curiosidade e levar os leitores a devorarem alguma destas obras, tanto melhor. Imaginamos as relutâncias dos grandes e sinceros amigos de Camilo, nomeadamente o Abade Pedrosa (filho do cirurgião Pedrosa) e o médico dr. Rodrigues Ferreira que, por ser dignitário religioso, o primeiro, e servidor municipal, o segundo, tinham de estar sempre nas boas graças do conde de S. Bento e do seu poder aquisitivo e contributivo; mas, pessoas de grande independência intelectual, moral e particularmente financeira, ostentavam a amizade camiliana. O abade, em 1881, pede a Camilo a oitava que ficou cravada na sacristia do Mosteiro. Em 1885, o abade vai ao leito do conde, acompanhado de ilustres figuras, com um abaixo-assinado de mais de 200 assinaturas “donde saem 2 fitas de seda com as cores nacionais” para significar os votos de melhoras da população tirsense. Em 1886, Camilo ridiculariza de modo contundente o conde de S. Bento. Em 1888 Camilo socorre-se da grande amizade e da confidencialidade do abade Pedrosa e, de conluio com o cónego Alves Mendes, quase consegue casar em Santo Tirso. Deve ter sido, com efeito, muito difícil, ser amigo de Camilo e, simultaneamente e durante mais de uma década, bajular o conde. Alguns traços da personalidade de Camilo: Identificação – Reconhecidamente, Camilo Castelo Branco não usava bilhete de identidade. Creio que naquele tempo ninguém trazia no bolso documento de nascimento ou identificação; por isso o escritor muitas vezes, ao ter de declarar a identificação através do local de nascimento e da paternidade, errava.8 Preço da fama – Eram tantos os noveis9 escritores e escritoras a pedir opinião de Camilo sobre poemas, cartas, romances, discursos, que o romancista, não obstante a doença ter aumentado à medida que ampliou a sua notoriedade, terá usado muitas vezes as más disposições e a dificuldade oftálmica para rejeitar a sensaboria de ler as milhares de páginas que, de todo o país e do Brasil, lhe eram submetidas para apreciação e aconselhamento. Destino – Em carta de Benfica, datada de 15 de Julho de 1889, Camilo pede para ser sepultado na Lapa. Mente – O intelecto de Camilo viveu sempre a uma velocidade estonteante, procurando sempre que os factos antecedessem os acontecimentos. Escreveu muitos milhares de cartas a centenas de destinatários. Terminava apressadamente muitas cartas escrevendo: “está o correio a partir”.10 Prosa – Contrariamente ao que os professores e alunos, versados em “Amor de Perdição”, pensam e dizem, Camilo tinha de enfrentar constantemente assuntos prosaicos como a falta de dinheiro, o desconto de letras na agência de Famalicão do Banco do Minho onde recebia as transferências dos livreiros, pedidos de adiantamentos, agradecendo a oferta de hortaliça, solicitando uma lata de manteiga, ou citando o 8 Alberto Pimentel, Amores de Camilo, pág. 203. «Novel» é igual a principiante, novato; inexperiente, imperito, bisonho. Dicionário Kinghost de Língua Portuguesa. 10 Naquele tempo os selos postais em desuso eram recolhidos e substituídos por selos com novas franquias. 9 5 anexim miserabilista “quando a raposa anda aos grilos, mal da mãe e o que será dos filhos?”11 Vinho – «Se houver alguma garrafa do vinho Ribeiro de Mesquita, peço-lhe o favor de ma remeter, porque tenho sentido grandemente a falta desse tónico; e se a não houver, queira intimá-lo da minha parte a que não se esqueça de mim.» - Carta escrita pelo autor em 1888. Incompreensão – Houve quem tentasse descobrir uma mente pecaminosa ou criminosa em Camilo Castelo Branco. Empenhos – Camilo livrou da tropa vários jovens, em que empregava o melhor dos seus empenhos. Foi o caso dum filho, amparo de mãe, a velhinha que lhe criara o Nuno. Doença – Muitas cartas dirigidas a Camilo Castelo Branco perderam-se irremediavelmente, porque ele estava sempre a mudar de residência. Cartas que escrevia, ele e a mulher, terminavam indicando a morada e número da porta para onde se dirigiam seguidamente, como que sugerindo o caminho da resposta. Dinheiro – O médico Ricardo Jorge, depois de ter socorrido Camilo Castelo Branco, na Póvoa, foi com ele, já mais bem disposto, jogar a roleta em Vila do Conde. O Ricardo perdeu o dinheiro todo que tinha nos bolsos “até ao cotão”. Camilo esperavao tilintando na palma da mão 5 libras, arrancadas à sorte da roleta, e trauteava alegre “Poderoso caballero / Es don diñero!” Desespero – Camilo chegou a esboçar uma carta ao conde de Samodães a suplicar um pouco de água de Lurdes como colírio milagroso para os olhos. Instado pelo médico a não o fazer, rasgou a carta a rir-se. Mau conselho, o do clínico! Viagens – Camilo jamais12 transpôs as raias da pátria. (Ricardo Jorge, pág. 105). Pensou apenas uma vez ir a Paris, jovem, com o Evaristo Basto. Já se sabia que não iria, pois exigiu levar consigo uma “calista então em voga”. Obra – Toda a sua obra é “húmus da terra”, águas dos vales, céu azul e sol sem mancha. Empregos – Camilo Castelo Branco tentou variadíssimas vezes arranjar emprego (colocação), não só para o seu filho e para os filhos dos outros, como também para si próprio, com pouco sucesso. Mulheres – Quanto a mulheres… Em carta datada de 25 de Abril de 1884, Josenan Sulut escreve, no Jornal de Santo Thyrso: “Parece que para o nosso romancista Camilo Castelo Branco não há segredos no íntimo das mulheres, porque exprime que elas têm o coração nos olhos e o juízo no coração”. Oportunidade – “Eu persuado-me que a venda será mais segura, se farejarem nela uma coisa justa a que eles hão-de chamar escândalo”. Seriedade – “A seriedade é uma doença, e o mais sério dos animais é o burro”.13 Camilo Castelo Branco casou várias vezes, tentou casar com uma mulher casada, teve um número discutível de filhos e, por conseguinte, de netos. Conheci um neto que envelhecia pelas ruas de Santo Tirso, com o bom ar de quem era estimado por algum familiar ou amigo. Tinha um nariz bastante grande. Era Manuel Correia Botelho Castelo 11 Carta a Freitas Fortuna de 20-8-1889. Da correspondência com Freitas Fortuna, vê-se o valor em que Camilo colocava a verdadeira amizade. Quer Freitas Fortuna, quer o seu irmão médico, dr. Urbino, foram amigos autênticos do grande escritor, que correspondeu à amizade de forma inequívoca. Vid. Dois Anos de Agonia, de Júlio Dias da Costa, Lisboa, 1930. 12 Este advérbio é demasiado radical! Em 1837, os órfãos Camilo e sua irmã Carolina, vítimas de uma tempestade na sua viagem marítima de Lisboa para o Porto, são forçados a desembarcar em Vigo. Camilo tinha, pois, doze anos, seguindo de imediato viagem para Vila Real de Trás-os-Montes, para casa da sua tia D. Rita Brocas. 13 Frase inserida na Revista Ilustrada, Lisboa, número de 30 de Abril de 1890. 6 Branco, nasceu a 23 de Abril de 1893 e faleceu em Santo Tirso em 27 de Julho de 1975. Foi escultor de madeira e casado com D. Maria Clara Roiz, sem geração. E, já agora, o Nuno Castelo Branco, 1º visconde de S. Miguel de Ceide, teve, com Ana Rosa Correia, um filho de nome Simão Botelho Castelo Branco14, que foi casado com Maria Guilhermina Guimarães e que, entre outros, foi pai de Ana Maria Castelo Branco, casada com Manuel Azevedo Mendes de Carvalho. Este casal teve um filho chamado José Francisco Castelo Branco Mendes de Carvalho que casou com uma senhora de Santo Tirso, Cristina Maria Cruz de Sousa Soares. Existe, portanto, uma menina tirsense, trineta paterna de Camilo Castelo Branco, chamada Ana Luís Cruz Soares Castelo Branco de Carvalho, nascida em 2 de Outubro de 2001. Uma tia-avó materna desta menina, Maria José, tem comigo um afilhado de baptismo, como eu chamado António Jorge. Já ouvi e li rumores pondo em dúvida a paternidade de uma filha, rejeitada postmortem pelo Nuno Castelo Branco; sobre a paternidade do Jorge, imputando-a a um amigo de Camilo, e sobre a paternidade do Manuel, suposto filho de Pinheiro Alves… Bem diz o ancestral provérbio chinês – ama os filhos de tua mulher que pode ser que sejam teus, o que, em português de lei, dá os filhos de tuas filhas teus netos são, os de teus filhos serão ou não. Os filhos com quem o escritor viveu mais intimamente foram de Ana Plácido e chamavam-se Nuno e Jorge15. Santo Tirso, para Camilo, era terra de bons ares e de bons médicos… mas de lá tirou personagens gente pouco digna e considerou-a terra muito dada a “espíritos fortes”. Após a morte do marido, não se refere mais Ana Plácido a Santo Tirso. Vira-se para Famalicão, e para o casmurro do juiz que quer, a toda a força, inventário dos bens e retirar a pensão ao Nuno. 14 Este Simão era irmão do Manuel Correia acima referido. 15 O Jorge, o da acácia, desenhava muito e escreveu alguns textos de conteúdo estranhíssimo (glossolalia?) a que alguém chamou “produções desconchavadas”. Um deles intitulava-se “Tratado do exórdio universal em crepitude da existência do Ente Supremo”. Vem citado pela sobrinha Raquel Castelo Branco, no opúsculo “Trinta Anos em Ceide”, publicado em Lisboa em 1925. O primogénito de Camilo e Ana foi internado no Hospital Conde Ferreira em 1886. Este Hospital de Alienados, situado “à Cruz das Regateiras”, tinha sido inaugurado em 24 de Março de 1883. Numa carta a Manuel Negrão, diz o pai: “O Jorge há dois ou três dias que verseja incessantemente ou toca flauta.» As suas produções literárias foram, mais tarde, comparadas às dos dadaistas e dos suprarealistas (surrealistas). No Conde Ferreira, trabalhava, em 1886, o “ilustre médico aereopatha e alienista” Dr. Magalhães Lemos. 7 SANTO TIRSO NA OBRA LITERÁRIA DE CAMILO 1. A Bruxa de Monte Córdova16 1828. Tomás de Aquino, afidalgado de Basto da casa do Picoto, noviciou em Tibães e de lá partiu para perto do pecado – fames peccati, Angélica Florinda – em S. Miguel de Refojos de Basto, já professo e com o nome de frei Tomás de S. Plácido. Em Cabeceiras, arranjou um grande amigo, frei Jacinto de Deus e um motivo para ser retido na cela solitária com guia de marcha para o mosteiro de Santo Tirso, cumprida a pena localmente. Saiu, de uma altercação conventual, “repúblico”, “reformador do mundo”, “pedreiro livre” e “jacobino, inimigo de Deus, do trono e do altar”. Desvairado pelo amor sacrílego a uma mulher! A guia para Santo Tirso traria consigo local de “sossego e alegria”. Mas, esfaqueado o émulo frei Joaquim do Sepulcro, “pérola e lustre do convento de Cabeceiras” na presença de outro inimigo, o frei António do Vale, ficou afinal preso em Refojos de Basto até se evadir conluiado com um sulfuroso demónio. Este romance é excitante para quem gostar de Santo Tirso e, muito mais incentivador, para quem tiver razões para não gostar muito dos tirsenses. Em fuga à prisão canónica, o ex-monge de S. Bento aproveitou as lutas liberais para se alistar como soldado. Passou sacrifícios de “más noites de mar e ardente sol da marcha desde a praia de Mindelo ao Porto” e foi juntar-se à Angélica, fugitiva da família, numa casinha “das abarracadas” da Torre-da-Marca, para os lados do Palácio de cristal. Oficial do destacamento dos lanceiros apeados, ali arranjou um filhinho baptizado Jacinto de Deus e Aquino e, tenente condecorado por temerário, foi um dos setenta mortos de 5 de Setembro de 1833. O miúdo, órfão, foi criado por um sargento tatuador que lhe encheu a pelezinha “de tinta que fica para sempre” com vivas à D. Maria II e respectiva coroa real, depois de o militar ter experimentado, na bucha do braço da mulher, uma Senhora da Rocha de corpo inteiro. Angélica Florinda, a mãe sacrílega, demente mística, alucinada pela ideia do pecado cometido e encerrada secular num convento, recusou-se a acarinhar o filhito que mão amiga abeirou do parlatório do cenóbio. Foi de Viana que, em 1843, partiu o navio que levou o, agora jovem, Jacinto de Deus e Aquino, para o Brasil, com cartas de recomendação de vários brasileiros do Minho. Angélica, com fama de bruxa, passa pela terra dos seus, em Basto, e aparece enregelada e “enconchada” entre uma “fraga e o concavo de uma vala” a tempo de ser descoberta por uns almocreves que a deixaram entregue a lavradores, abegões, de uma aldeia chamada Caparães das abas de Monte-Córdova, “serra que empina e ondeia com suas fragosissimas encostas até à vila de Santo Tirso”. “Aqui principiou a nomeada da santidade da pobre”. 16 Camillo Castello Branco, A Bruxa de Monte-Córdova, Romance, Terceira Edição, Lisboa, 1904. O romance foi publicado pela primeira vez em 1867, por Campos Júnior. Em 5 de Janeiro de 1899 publica o Jornal de Santo Thyrso um excerto deste romance, servindo de modo subliminar o intuito político realista e progressista do semanário. 8 “Logo veremos como aquele gentio das aldeias de Córdova confundirá a santidade com o bruxedo”. Angélica acolheu-se a uma capelinha descaliçada da montanha, onde, como Penitente de Monte-Córdova, encontrou o seu terreal paraíso. Os de Santo Tirso são tidos, pelo génio de Ceide, como pouco crentes: «Alguns espíritos fortes de S. Tirso, informados das irrisórias curas da bruxa do Monte-Córdova, foram demandá-la com o fito de zombar dela. Angélica Florinda, quando os viu á sua porta, saiu a recebê-los, e disse-lhes:» «– Que quereis, senhores?» «– Que tire o demónio do corpo deste nosso companheiro, – respondeu um.» «Angélica fitou muito atenta no rosto do inculcado energúmeno, e disse-lhes:» «– Já é bem ruim espírito o que vos trouxe aqui, senhores. Vindes zombar; escarnecei-me se quereis, enquanto eu peço a Deus que vos livre das más tenções que também são filhas do inferno.» «Os foliões, corridos, desandaram. De longe olharam para a capela e lá viram ainda a bruxa ajoelhada.» Ao longe, sobranceiro a Santo Tirso, “o agro e nu da serra” O brasileiro, filho da Bruxa, estabelece-se em Burgães, no ano em que Santo Tirso se eleva a vila: «Em 1863, anunciaram as gazetas a venda de uma quinta, chamada de Burgães, no concelho de S. Tirso. Concorreu comprador que cobriu o lanço de todos. Poucos dias passados, o Diário do Governo publicou um decreto, alegando os serviços de humanidade prestados aos seus compatriotas infelizes, no Rio de Janeiro, por Jacinto de Deus Aquino, e agraciando o benemérito português com o título de barão de Burgães. Logo disseram os licitantes á quinta que o homem, à míngua de propriedade, corria o risco de ficar sem título.» «O barão de Burgães demorava no Porto com sua esposa e quatro filhos desde 1862.» Este titular recebia em sua nova casa de Burgães, entre amigas da esposa, um cavalheiro de Santo Tirso: «Em uma tarde formosa de Agosto, umas damas portuenses, hóspedas da baronesa, perguntaram a um cavalheiro de S. Tirso onde é que estava por aqueles sítios uma ermitoa que o povo chamava a Bruxa de Monte-Córdova.» «– Oh! minhas senhoras! - respondeu o cavalheiro, - não cuidei que chegava ao Porto a fama da bruxa de Monte–Córdova!» 9 «– Pois não chega? – volveu uma dama. – Olhe que a mamã, quando o papá esteve a morrer, veio aqui onde está a tal mulher de propósito a pedir-lhe que rezasse pela saúde do papá, e…» «– E o caso é que o seu papá melhorou, minha senhora, interrompeu risonho o sujeito, que se prezava de ter dois dedos de filosofia, segundo a quantidade em que ela está distribuída em S. Tirso.» «– Melhorou, sim, senhor. E quer saber mais? A mamã mandou à mulherzinha não sei quantos cruzados novos, e ela pediu ao criado que lhe desse meio tostão para azeite da lâmpada da capelinha e não quis mais nada.» «– Lá pela independência dela fico eu, – tornou o cavalheiro. – Sei que a bruxa não aceita, senão algum bocado de pão e couves para o caldo; e acontece, se tem pão de mais, repartir com os pobres que lá vão consultá-la para doenças, ou pedir-lhe orações; creio isto porque o sei de bons informadores; mas, se vossa excelência me permite, não acreditarei que ela curou seu papá.» A bruxa de Monte Córdova, num desenho de Saavedra Machado Ao crânio do tirsense, Camilo só atribuiu dois dedos de filosofia, coisa rara na Rua! Qual quê? O cavalheiro de Santo Tirso andava era a arrastar a asa a uma das damas do Porto. Visitas e moradores do paço do barão decidiram ir-se monte acima visitar a alma benfazeja da mãe da amiga do Porto. Na presença da visita das famílias pobres à Penitente, escreveu Camilo: «Angélica tomou um por cada vez nos braços, foi ajoelhar no degrau do altar, orou breve espaço, voltou com o último e disse:» «– Estas criancinhas precisavam de melhor alimento, filhas. Vós passais fomes, e elas também. Pedi uma esmola a estes senhores; e, se vo-la derem, ide comer alguma coisa mais substancial, e assim dareis melhor sangue a estes enfezadinhos.» «A baronesa, que era mãe extremosa, deu todo o dinheiro que levava. O barão esmolou dinheiro que as pobres nunca tinham visto. As senhoras portuenses lastimavam-se de levarem tão pouco. O de S. Tirso esmerou-se em agradar, pela liberalidade, a uma das damas. Os pequenos pediam ao pai dinheiro para dar. O soldado de D. Maria, com marcial entono, exclamou:» 10 «– Aí vão dois patacos; um por mim, outro pela minha Maria. Eu já pedi esmola aos liberais que ajudei a pôr no poleiro, e não me deram outro tanto!» «– Bravo, meu Gomes! – exclamou o barão. Esses quatro vinténs hão de ser mais pesados na balança de Deus que as minhas quatro libras.» «– Não, que eles realmente pesam mais, – disse o veterano a rir.» A criada da baronesa, mais boçal, também devia ser tirsense: «– Ó mulheres aquela criatura é santa. Eu disse-lhe que não comia bem; ela disseme que esperasse pela fome; e eu estou aqui a comer como vocês vêem! Parece que me cresceu o bucho.» «– Também a nós, sem irmos á santa, – disse uma criada ladina, sonegando um borracho assado à mão da velha Maria que pairava sobre ele como milhafre.» Sempre que Camilo se refere às zonas circunvizinhas de Santo Tirso, revela-se um apaixonado pelo quadro paisagístico: «O barão pediu ao escudeiro o seu óculo de mar e esteve circum-vendo o dilatado panorama.» «– Isto é magnífico! – disse ele. – Que riqueza de terra! Até as montanhas parecem relvêdos! O rio Ave como que se vai espreguiçando de delicioso por entre os seus arvoredos que se curvam a cortejá-lo.» «– O que aí vai de poesia bucólica, meu barão, exclamou o de S. Tirso.» «– Aqui, meu amigo, neste Minho, não é habilidade nem mérito ser poeta. Todos estes riachos são Hypocrenes e Aganipes.» «– Olhe que essas águas já se não admitem na cozinha dos modernos vates. Agora as fontes inspiradoras dos poetas descabeçados e descabelados são de cognac e absyntho. Guerra declarada ao Olympo dos velhos e ao senso comum de todas as idades.» O autor coloca na voz de um velho soldado e do tirsense, ali mesmo no contraforte da Assunção, um diálogo referindo-se à entrada do exército liberal em Santo Tirso: «– Qual guerra – saiu dentre umas fragas clamando o veterano. – Por aqui não houve guerra que prestasse. Deram-se uns tiritos aí em S. Tirso, no dia 28 de Abril de 34, e mais nada… Fale-me p'rácolá p'rá Ponte Ferreira, isso sim! dizia o velho apontando.» «– Não foi tanto assim, senhor Gomes! - atalhou o cavalheiro. – No dia 28 de Abril, quando o barão de Pico de Celleiros saiu a repelir as avançadas do José Cardoso, ainda correu sangue que farte. Valente francês trazia D. Miguel no exército! O coronel Puisseux, á frente dos lanceiros, deu acolá em baixo uma linda carga! À distância de seis passos arremessou ele a lança ás costas de um sargento, e quando a repuxou já o sargento estava morto. Lá o mataram depois na Asseiceira…» 11 Ainda hoje existe o obelisco comemorativo que o Abade Pedrosa mandou colocar à entrada da rua de acesso ao cemitério tirsense com a descrição do sucesso liberal Ficam aqui estes apontamentos, telas pintadas pelo grande escritor com os olhos com que viu a encosta que jaz sobranceira a Santo Tirso. E algum traço das mentes com que ele brindou os tirsenses, sem os cortejar. A leitora, se quer comover-se até às lágrimas, leia todo o romance e prepare o coração para a comoção que vai sentir na ante-conclusão! Nota – Alberto Pimentel, com 37 anos, nos tempos em que abandonava copiar Camilo, também criara um frade liberalista. Num folhetim intitulado «A Guerra das Carolinas» e publicado em rodapé e primeira edição no Jornal de Santo Thyrso entre meados de 1885 e Dezembro de 1886, inventa um frei António de Jesus Maria, beneditino enclausurado no mosteiro de Santo Tirso, vivendo asfixiado pela atmosfera que o rodeava. Quando D. Miguel, o rei absolutista, fora forçado, em 1832, a retirar para Braga, tinha passado por Santo Tirso onde os frades lhe fizeram uma recepção delirante. Todos menos um. O frei António era um réprobo encarcerado, cada vez mais dissidente das tendências da sociedade monástica, cada vez mais indisciplinado moralmente. “Era um desses supliciados do amor, o beneditino de Santo Tirso.” Afinal havia assuntos de saias e coração feminino na cabeça do frade e neste romancezinho que o autor publicou em livro em Abril de 1887 sob o título de “Flor de Miosótis”. Os outros frades, em 26 de Março de 1834, andavam num reboliço, pois tiveram de viver a coincidência de se estar a decidir o seu futuro ali a dois passos, na vizinhança do mosteiro, onde miguelistas e liberalistas se defrontavam ferozmente. Não sei por efeito de leituras funestas, apareceu, em 1895, uma moçoila de Monte Córdova que começou por ser um extraordinário caso de sobrevivência. Tem 16 anos, a filha de Luís Ferreira Pina, e há mais de quinze dias que não come nem bebe e aborrece quem lhe aproxima água dos lábios, muito aflita. Passa a maior parte do tempo a dormir. Pede aos pais que, morrendo, seja amortalhada com a sua roupa mais ordinária, e que a outra seja dada aos pobres. Filha única, herdaria bastantes bens dos abastados pais. Aos quarenta e seis dias de jejum, os médicos Drs. Abílio Torres, das Caldas de Vizela, e Leão de Meireles, de Paços de Ferreira, visitaram-na, saindo com nenhumas esperanças de a salvar da morte fatal. 12 A insistência do Dr. de Paços fez com que surgisse, no longínquo horizonte da esperança, uma pequena luz. Camilo Castelo Branco teria usado este definhamento como sinal de pecadora paixão, escrevendo uma formidável novela. 13 2. A Brasileira de Prazins17 A brasileira de Prazins, embora assente em Vilalva18, Lamelas, Reguenga, Negrelos, casa de Barrimau, rio Ave, Trepas e Andrades, não nos deixa parar de cismar em Santo Tirso de Prazins, essa freguesia do concelho de Guimarães, encastoada num extenso e fertilíssimo vale, entre as Taipas e Morreira. Tanto mais que em Santo Tirso de Prazins mora a quinta de Tarrio, e Tarrio é lugar da freguesia de Santa Cristina do Couto de Santo Tirso, logo a seguir a Merouços. A geografia voraz de Camilo Castelo Branco compreenderia estas coincidências e nuances? Uma vez que as personagens principais, Feliciano e Marta, foram copiadas da realidade de duas pessoas do Pregal, deixemos a topografia e vejamos o que diz Camilo que viu em Santo Tirso ou que leu sobre Santo Tirso. A ida a Vilalva não pode ser a outra que não à nossa. Tenho de pedir cautela ao melindre dos leitores para um pormenor que saiu no romance: “A Sr.ª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento, ofereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se chamava Velhaca – ajuntou com a satisfação de quem completa um esclarecimento interessante. Agradeci o porvindouro filho da Velhaca, fiz uma carícia no dorso crespo da mãe, que ma recebeu familiarmente, e saí com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que a Sr.ª Joaquina, com um riso céptico indisciplinado, me disse serem do tempo dos Afonsinhos. – Porque o seu sogro, acrescentou, era um asno às direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, juntando à heresia um anexim de limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos pecados que entram pela boca.” Não posso deixar de ser um pouco inconveniente, mesmo nos modernos dias de total liberdade em que insuspeitos intelectos dizem nas portadas de seus livros que “O amor é fodido”, “Memórias das minhas putas tristes” e “Cu de Judas”, ofendendo menos que os cândidos inventores de Evangelhos segundo Cristo ou Je vous salue Marie! Contou-me um antigo amanuense da Fábrica de Santo Tirso – o mais interessante espírito que conheci na terra de Cidenai – que um determinado padre amante da jogatina se entretinha no Clube Tirsense a tentar a sorte em terra que nem o Sortes a teve. Antigamente, não haverá muitas décadas, quem quisesse comungar na Missa, teria de estar em jejum a partir da meia-noite, hábito salutar em país de etílicos tardios/serôdios. «Nós tínhamos aqui, nesta coisa de jogo, tínhamos aqui um padre chamavam-lhe o Padre Palmeiró. E ele vinha jogar.» 17 Camillo Castello Branco, A Brasileira de Prazins, Cenas do Minho, Porto. O romance foi escrito em S. Miguel de Ceide, em 1882. 18 Em Portugal, segundo o Novo Dicionário Corográfico de Amaral Frazão, há duas freguesias do concelho de Guimarães presididas por Prazins: Santa Eufémia e Santo Tirso. Além da cidade e concelho de Santo Tirso, há mais lugares com este nome em Celorico de Basto e Baião. Vilalva, além de ser um lugar da cidade de Santo Tirso, é também um lugar da freguesia de Arraiolos, concelho de Vila Real. Negrelos, vetusta presidência de duas freguesias agora tirsenses, S. Mamede e S. Tomé, é lugar das Aves, estação de caminhos-de-ferro, e lugares de S. Pedro do Sul e de Oliveira do Hospital. As Caldelas mais conhecidas são as termais de Amares, mas também as há em Leiria. Quanto a Reguenga e a Lamelas, há-as por todo o norte do país. 14 «Guardava uma charette com um cavalo, no Barú, que era onde está agora o hotel Caroço, hotel Caroço, não, pensão Caroço: era ali, havia ali um portão e o Barú tinha a alquilaria lá no fundo. Nós tínhamos três alquiladores: um lá em cima, na Praça Camilo Castelo Branco, naquela casa pegada ao Carvoeiro, era o Quintas, o Tratante; havia uma nos Carvalhais, (aquelas casas desapareceram todas); existia outro alquilador que era o Moreira (avô do Moreira que trabalhou na Confeitaria Moura) e outro que era o Barú.» «Ele guardava ali a charette e, por volta das três, quatro horas, lá ia para a Quinta de Palmeiró. Como sabe hoje a gente passado uma hora já pode comungar. Mas antigamente tinha de se estar em jejum até à meia-noite. Depois da meia-noite quem quisesse comungar não podia comer nada, nem beber. De maneira que ele deu umas ordens ao Rosário – que era um tipo Joaquim Cardoso de Miranda, chamado por apelido o Rosário, que em tempos era o que acendia os lampiões; isto ainda é do meu tempo: não havia luz eléctrica, nas esquinas havia candeeiros a petróleo, ele andava com a almotolia, etc. e tal, com as coisas do petróleo na mão, a deitar petróleo, a acender, a fazer limpeza – e de maneira que ele, à noite, ia para o Club de continuo, e lá estava. O padre de Palmeiró disse:» «- Ó Rosário, tu sabes que quando forem 11 horas levas-me o chazinho, com umas torradinhas, que depois da meia-noite não posso comer absolutamente nada.» «Respondia o Rosário:» «– Sim senhora, sim senhora.» «E assim era. Às 11 horas:» «– Ó senhor padre José, olhe que aqui tem o chazinho pronto!» «Numa determinada altura, ele começou a perder a massa. Começou a perder, a perder... e, pelas 2 horas da madrugada, muito exaltado, toca a campainha. Vem o Rosário:» «– O senhor padre José quer alguma coisa?» «– Olha: tens leite?» «– Tenho.» «– Olha: arranja-me um bocadinho.» «– Ó senhor padre José, já são duas horas.» «(Vai-me desculpar alguma coisa, que eu vou dizer as palavras tal e qual como elas são.)» «Ele virou-se para o Rosário:» «– Ó Rosário! Traz-me isso! Pecados que entram pela boca e saem pelo cu, eu cago neles.» «Eu até julguei que dava um ataque de riso, nele e nos outros todos.» «Naquele tempo havia assim destas coisas.» Aí está como o padre Palmeiró foi recuperar um dito antigo que Camilo já tinha ouvido, se não à inventada Sr.ª Joaquina, pelo menos a um dos feitores que segredavam motes para estórias à colectora D. Ana Plácido. 15 Camilo na adega da Sra. Joaquina de Vilalva, em desenho de Sanhudo de 188319 Camilo foi a Vilalva à cata de livros antigos: «Entre as diversas moléstias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos – a mais dispendiosa – leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pílulas e tisanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me ilustro com os arcaísmos, arruíno o estômago, e enferrujo o cérebro numa caturrice académica.» «Constou-me aqui há dias que a Sr.ª Joaquina de Vilalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez de malhais de pão, assentavam sobre missais. O meu informador denomina missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas.» «Mandei perguntar à Sr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver, mas até mos deu todos – que escolhesse, que levasse.» «Examinei-os com alvoroço de bibliómano. Eles, gordurosos, húmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores como ao leitor delicadamente sensual se lhe afigura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverizada de bismuto. …………………… «Disse-me a dadivosa viúva de Vilalva que os livros estavam na adega havia mais de trinta anos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético; que o seu homem – Deus lhe fale na alma – mandara calear o quarto onde o estudante acabara, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto – trastes, roupa e livralhada.» Camilo imagina que Manuel José Ribeiro, depois comendador, visconde e conde de S. Bento, terá sondado, a partir do Brasil, a compra do mosteiro. 19 O Almanaque de “O Sorvete” publicou uma procissão de celebridades desenhadas por Sebastião Sanhudo. Este almanaque ridicularizou o Jornal de Santo Thyrso por, aparentemente após a crítica severa de Camilo Castelo Branco nos “Serões”, estar sempre a louvar os actos de benemerência do conde de S. Bento, numa frequência deveras irritante. O jornal tirsense retorquiu, em 9-6-1887: «O Sorvete – É injusto connosco, se nos tem lido; ou então (o que é pior) é injusto consigo mesmo, se não tendo conhecmento perfeito faz acusações infundadas. Não relatamos somente os actos filanrópicos do snr. Conde de S. Bento: noticiamos o que vai ocorrendo conforme podemos, com mais os menos m m, mas unicamente com os precisos t t para em grande cerimonial os colocarmos na parte mais nobre de algum colega nosso, quando deles necessite.” 16 Alberto Pimentel (e outros, antes dele), na monografia, não anda longe de tal suspeita: «Muitas vezes, ao passar em Santo Thyrso nos dias de feira ou em quaisquer outros, ouvindo o cantochão dos frades e olhando para o mosteiro, tudo poderia imaginar, menos que viesse a adquiri-lo algum dia», referindo-se ao futuro conde. «Seria um arrojadíssimo sonho, que ele nunca teve. Quem lhe havia de dizer então que as ordens religiosas seriam extintas, os conventos postos em hasta pública, e ele um dos arrematantes daquele mosteiro beneditino que desde pequeno conhecia?» «Pois assim veio a acontecer, tão cheia de imprevisto é a existência humana.» Voltemos, pois, à Brasileira de Prazins: «Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, enfim, descansar‚ de vez, que já tinha para os feijões. Recomendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos è venda, os fosse apalavrando até ele chegar.» « – Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos! – exclamou o Simeão, e foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trepa de Santo Tirso e ao ex-capitão-mor de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos beneditinos, o Pinto Soares, um deputado gordo – a retórica viva do silêncio mais facundo que a língua, de uma grande pacificação sonolenta –, perguntou-lhe se queria vender as quintas dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com espírito e um pouco de ateísmo, respondeu-lhe que não vendia para não transmitir ao comprador a excomunhão que arranjara comprando bens das ordens religiosas.» «Mas o Simeão, em matéria e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franclim.» «Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos à venda, ou quintas aí para quarenta mil cruzados.» Noutra passagem o médico Pedrosa, de Santo Tirso, socorre literariamente Camilo: «Na ausência de D. Teresa, a melancolia de Marta cerrava-se de dia para dia. O governo da casa era-lhe de todo indiferente, como se fosse hóspeda. O marido não a compelia a interessar-se nesses arranjos de que, dizia o Simeão, ela nunca quisera saber em Prazins. O barão do Rabaçal mandara-lhe do Porto cozinheira e governanta. Marta saía raras vezes de uma saleta onde tinha um oratório que trouxera de casa. Confessavase mensalmente a Frei Roque, o irmão da sua mestra, e professor do de Vilalva, e demorava-se no confessionário com perguntas desvairadas a respeito da alma de José Dias, porque dizia ela ao padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e alma, e até o ouvia falar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O frade, sem revelar o sigilo da confissão, dizia à irmã que a Marta dava em doida como a mãe.» «O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, num dos paroxismos epilépticos, se pôs a rir para ele com os olhos espasmódicos e a chamar-lhe José, seu Josezinho. Passada a nevrose, quando ela imergia num torpor físico e mental, o marido contou-lhe o caso de lhe chamar Josezinho. Ela parecia esforçar-se muito para recordar-se, e dizia que não se lembrava de nada.» 17 «Vinha o cirurgião a miúdo: – que era histerismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão, esperanças bem fundadas, segundo as confidências do pai; mas, consultado pelo padre Osório, o Pedrosa, um grande clínico, dizia que a brasileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali epilepsia complicada com delírio, alienação mental intermitente, um estado de inconsciência ou consciência anormal, e que verdadeiramente se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez intercorrente.» «– Ela está grávida – observou o vigário de Caldelas. – Parece que este facto denota uma tal ou qual normalidade de consciência, uma concepção racional dos deveres de esposa...» «– Não denota nada – refutou o médico. – Faça de conta que é uma sonâmbula. E, como a sua demência é funcional e não orgânica, não há desorganizações físicas que a estorvem de ser mãe. O meu colega que lhe assistiu à última vertigem disse-me que, alguns minutos antes do ataque, ela, numa grande irritabilidade, lhe dissera que fugia para Vilalva, que queria ver o José Dias... «O marido felizmente fora nessa ocasião prover-se de vinagre à despensa.» «- Eu considero-a perdida, a menos que se lhe não dê uma pronta e completa diversão ao espírito, e nem assim se consegue senão temporariamente deserdar os desgraçados que tiveram mãe e avó como esta Marta. Eu assisti ao primeiro e ao último período de Genoveva. Repetiram-se as vertigens, veio a decadência gradual da razão, delírios, ideias confusas, concepção difícil, nevroses vesânicas e, por fim, suicidou-se já num estado de demência epiléptica, que os especialistas consideram a mais incurável. Este me parece o itinerário da Marta, e casá-la com o tio deixou de ser um acto imoral para ser um estúpido arranjo de fortuna por lado do pai e de luxúria por parte do marido.» «Esta pequena tinha de vir a isto, e há-de ir a demência, mesmo sem drama nem paixão. Tem o cérebro defeituoso assim como podia ter a espinha vertebral raquítica. Como se faz a perda da vista? Pela paralisia dos nervos ópticos; pois a perda da vista normal da alma é também a paralisia de uma porção de massa encefálica. Bem sei que isto embaraça um pouco os senhores teólogos metafísicos, mas lá se avenham: a verdade é esta.» Episódios rocambolescos passados em Santo Tirso: «O Gaspar foi buscar a espada, cingiu a banda sobre a niza de saragoça, pôs a barretina com os amarelos muito oxidados, e, à frente de um grupo de jornaleiros e garotos, caminhou para a cabeça do concelho a fim de oferecer batalha campal às autoridades. Além da espada do caudilho, havia na jolda três espingardas reiunas; o restante eram foices de gancho encavadas em grossas varas. Um porqueiro colossal floreava uma lâmina brunida da faca de matar os cevados. A guerrilha, já engrossada por outros bêbedos encontrados nas tabernas do trânsito, chegou à porta do morgado de Barrimau, e a clamorosos brados elegeram-no general. Já se ouvia tocar a rebate em diversas torres, à discrição dos garotos destacados. O morgado mandou-lhes dar vinho, e que debandassem, que recolhessem a suas casas, porque iam levar grande tareia inutilmente. O egresso veio a uma janela que abria sobre o átrio, e tentou dissuadi-los do desvario que mais parecia um excesso de vinho que de patriotismo – dizia. Não fez nada. Cada vez mais picado, o alferes, faminto de vingança, bradava que estivera quinze meses escondido, que lhe tinham estragado a sua casa, e que ia pedir contas aos Trepas 18 e aos Andrades de Santo Tirso, uns malhados, cujas cabeças havia de deixar espetadas em pinheiros.» «Na vila ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se que era incêndio. Alguns vadios atravessaram a ponte muito açodados em direcção às freguesias de onde soavam as primeiras badaladas. O regedor de Vilalva, o pai do José Dias, descia esbaforido do monte do Barreiro a dar parte à autoridade. Assim que se espalhou a nova em Santo Tirso, já se ouvia alarido de vozes. A garotagem dava vivas, e guinchava uns apupos prolongados que punham ecos nas margens tortuosas do rio Ave. Os liberais de Santo Tirso rodearam o administrador, armados, com os seus criados. Os negociantes, com medo de saque, também saíram de clavinas. As famílias nas janelas faziam clamores, numa grande desolação. Naquela vila lembrava ainda a mortandade do tempo do cerco do Porto, e havia velhos que presenciaram outra semelhante no tempo dos franceses. O regedor de Vilalva dissera que o comandante da guerrilha era o morgado de Barrimau. Esta notícia fez aumentar o pavor, porque, se o morgado, sério, prudente e bravo, aceitara o comando dos populares é porque a coisa era séria. Os homens de negócio depuseram as armas, enfardelaram os valores e fugiram, caminho do Porto. Os proprietários, os empregados públicos, os oficiais de justiça, alguns que haviam militado e emigrado, desceram à ponte armados em número de oitenta. Outros seguiram vereda diferente para passar o rio. A guerrilha, cuja vozeada se aproximava, no trajecto de uma légua, pegou a sua febre a mais de trezentos homens. Era um domingo de festa solene, consagrado à descida do Filho de Deus, para aplacar os bárbaros ódios do género humano: – uma grande alegria que passaria despercebida, se o vinho não preparasse as almas a compreendê-la e senti-la. Depois, muito comunicativa, como se vê. Gaspar das Lamelas emborracha-se ao jantar e faz brindes ao Menino Jesus e ao Sr. D. Miguel I. Pica-lhe na caneca, pungem-no saudades do rei, e sai para o terreiro a darlhe vivas. Outros vinhos em ebulição respondem-lhe num grito de sinceridade compacta. Trava da espada, que se tingira no sangue de três batalhas à volta do Porto; entra com ele a convicção em delírio acrisolada pela alucinação da embriaguez. E o anojo temerário dos grandes guerreiros o que é senão uma embriaguez de glória, quando não é uma embriaguez de genebra? Nas guerras civis portuguesas houve aí um bravo soldado de fortuna que, no vigor dos anos, ganhara as charlateiras de general e uma coroa de conde. Os seus camaradas, mais retardados na carreira por causa da abstinência, diziam que ele nunca saíra vitorioso de campanha onde não entrasse bêbedo. Este general, ao declinar da vida, casado e abstémio, não deu uma página gloriosa à sua história, presidiu sem iniciativa militar nem política à Junta Suprema do Porto, e fechou o ciclo das suas façanhas a parlamentar em Vieira com o padre Casimiro, o General Defensor das cinco chagas.» «Também no cérebro vinolento do alferes das Lamelas rutilavam os relâmpagos da glória quando, a brandir o gládio ferruginoso, descia, na vanguarda da guerrilha, o outeiro sobrejacente à Ponte de Santo Tirso. À entrada da ponte de pau havia taverna, com as prateleiras alinhadas de garrafas da Companhia, com rótulos.» «A multidão parou, avistando gente armada que descia a calçada de além, ao nível da quinta do Mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito caloteado dessa vez, diz ao comandante, ao Gaspar, que não caísse em se meter à ponte.» «– Vocês vão cair aí nessa ponte como tordos, e os que não caírem têm de largar os socos a fugir – avisava, porque sabia que os de lá eram tesos, e vinham todos armados.» «O cabecilha tinha o seu vinho quase digerido; a bravura começava a ceder às reflexões sensatas do taverneiro; mas o seu estado-maior, uns facínoras da quadrilha que três anos antes infestara as encruzilhadas da Terra Negra e Travagem, não transigiam, e 19 forçavam-no a beber copos de aguardente. – Que o primeiro que mostrasse os calcanhares ia malhar da ponte abaixo! – protestavam os velhos salteadores do Minho, batendo com as coronhas no balcão.» «Entretanto, o administrador do concelho com dois empregados inermes atravessava a ponte. A guerrilha, estupefacta da audácia, esperava-o numa atitude pacífica, estúpida, um retraimento de covardia, olhando-se uns para os outros e todos para o alferes. Ele, empurrado pelos valentes, colocou-se à frente, na boca da ponte, com a espada nua. O administrador chegou muito de passo e perguntou se estava ali o Sr. Morgado de Barrimau, que desejava falar-lhe.» «Que não estava. – Eu sou o chefe – disse o Gaspar.» «– Logo me pareceu que um homem sério, como o morgado, não estaria à frente deste bom povo enganado – ponderou a autoridade. – E vossemecê quem é? – perguntou ao chefe.» «Que era o alferes das Lamelas, bem conhecido em toda a parte; que perguntasse aos malhados de Santo Tirso, a esse ladrões que o perseguiram e lhe roubaram os seus bens.» * «Capitaneava-os um escrivão de direito, dos 7.500, cavaleiro da Torre e Espada, o Lobato, que pedira baixa de tenente no fim da campanha.» «Outro bravo, o ex-sargento Lopes, que era guarda-chefe dos tabacos, tinha pedido vinte homens, e atravessara com eles o Ave, na revolta do rio, sem ser visto, na bateira do José Pinto Soares. Ele não podia levar a bem que aqueles pategos se retirassem sem uma sova pela retaguarda e outra pela frente. Contava com a debandada pela ladeira das matas, e prometia, lá do alto, escorraçá-los de modo que eles se espetassem entre dois fogos. Os seus vinte homens eram soldados com baixa, guardas do tabaco, e sócios aposentados das quadrilhas de 1834 – um misto de políticos, de ladrões e mártires das enxovias.» «Os quatro facínoras da horda do alferes, quando viram a marcha firme e solene dos de Santo Tirso – é agora, rapazes! – exclamaram, desfechando as espingardas. Os populares que as tinham, descarregaram as suas, e avançaram, ponte dentro, numa arremetida impetuosamente esbandalhada, de rodilhão. Uma das balas prostrara um arneiro da primeira fila dos liberais; havia mais alguns feridos que se amparavam gementes às guardas da ponte. O bravo do Mindelo viu cair morto o seu homem, e, contendo a fúria das fileiras numa disciplina rigorosa, deu a voz da descarga à primeira, e mandou abrir passagem à imediata, que sustentava o fogo enquanto a outra carregava as armas.» «Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da populaça. Viam-se homens que fugiam a coxearem, atiravam-se às ribanceiras, escabujando em arrancos de morte. Os que não tinham espingardas e ainda os que as tinham sem cartuchame pegavam dos tamancos e galgavam socalcos, buscando o refúgio dos pinhais e carvalheiras.» «O alferes sentiu um choque duro de coisa que lhe contundia as costas e lhe apertava o pescoço. Era o Retrinca de Santiago de Antas, o mais feroz da sua malta, que se amparava nele, quando caía varado por um pelouro. Este espectáculo trivial não aterrava o soldado de Ponte Ferreira, das Antas e da Asseiceira; mas dava-lhe as antigas pernas que o serviram nessas gloriosas batalhas. Tinha cinquenta anos, e fugia ganhando a dianteira aos garotos do seu bando destroçado. Porém, quando ele escalava a ladeira barrenta que se precipita ao sopé do monte, desciam em saltos de bezerros mordidos por vespereiros os seus homens, num turbilhão, acossados pelo tiroteio da 20 companhia do ex-sargento Lopes – uns barbaçudos que pareciam gigantes no topo da colina, e davam uns berros clangorosos imitantes a mugidos de bois. O dia de juízo!» «O Gaspar arrepiou carreira e desfilou por uma várzea alagada que ia esbeiçar com o rio. Como a banda do alferes vermelhava ao longe, e a espada a prumo no punho lhe dava uma caracterização jeitosa e provocante para alvejar as espingardas, as balas sibilavam-lhe por perto, chofrando nos pântanos. Alguns homens perseguiam-no chapinando no lameiral, porque o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «Ó rapazes, vede se matais aquele diabo que é o cabecilha!» Os mais veleiros levavam-no esfalfado, cambaleando, atortemelado, quando o viram desaparecer de súbito entre uma espessa moita de plátanos. Daí a instantes, abeirando-se à ourela do rio, viram a barretina e a niza de saragoça sobre uns comoros ervecidos; e, à distância de dez varas, aquele bêbedo imortal atravessava o rio a nado, numa tarde de Dezembro, com a espada nos dentes, e a banda a tiracolo.» «– Ó alma do Diabo! – dizia o Patarro de Monte Córdova, cevando a arma com zagalotes para lhe atirar. – Vou matar aquele pato bravo!» «E o mais novo dos quatro, um imberbe que tinha pai:» «– Não lhe atire, ó tio Patarro! É um velho, coitado! Não lhe vê os cabelos brancos? Aquele homem não se deve matar. Ele vai morrer afogado antes de chegar à outra banda. Verá. Que raio de amizade ele tem à espada! Aquilo é que é!» «A meio do rio, onde a veia de água resvalava mais impetuosa, deixou-se derivar sem esforço de natação. Mal bracejava. Depois, o Ave espraiava-se em murmúrios de lago dormente, muito barrento, e deixava-se apegar. O alferes, com a água pela cinta, desatascou-se dos lamaçais de além; e, horas depois, repassando o Ave na Ponte da Lagoncinha, e, vencidas duas léguas de chafurdeiros e barrocas, entrava na sua casa das Lamelas, bebia um grande trago de genebra, e, floreando a espada, bradava.» «Depois, sobreveio-lhe um reumatismo articular, e ficou tolhido.» «Sete anos passados, quando todas as aldeias do Minho conclamavam D. Miguel, ele ainda vivia, mas entrevado num carrinho, e chorava, em impotentes arquejos do corpo paralítico, porque não podia amolar a lâmina da espada nos ossos dos malhados.» «Tinha-a diante dos olhos pendurada numa escápula com o boldrié e a banda. Às vezes, depois de beber, punha-se a olhar para ela com os olhos envidraçados de lágrimas, e pedia que a metessem na sua sepultura, que o enterrassem com ela. E enterraram. Espera-se que o esqueleto deste legitimista, com as falanges esburgadas e recurvas no punho azevrado da espada, ressuscite, ao ulular da trombeta, na ressurreição geral das Legitimidades. Ponto é que a Rússia se mova – como dizia o frade de Barrimau. * «Deitou o albardão à égua e partiu para terras de Bouro o Zeferino. Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas encatarroadas; e, dando de espora à andadeira, deixou cair o pau ferrado ao longo da perna. Dizia de si consigo, ladeando a besta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o perdeu de vista, murmurou: – Valha-te o Diabo, banabóia!» «O ex-capitão-mor de Santa Marta respondeu às perguntas do primo de Barrimau; e, como o portador se recomendou na qualidade de afilhado do fidalgo e filho de um alferes que comandara o ataque de 1838 sobre Santo Tirso, o Cristóvão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe notícias desse ataque a Santo Tirso que ele não conhecia. O pedreiro contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo, quando 21 soube que ele estava entrevado, disse pungidamente: Mal empregado! – que um general romano fizera o mesmo e que o levasse às Caldas de Vizela à bomba quente.» «Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe confidências: – que D. Miguel estava perto dali; mas não recebia ninguém porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a aclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da algibeira da véstia uma saquita de missanga, onde tinha três peças e sete pintos. Pôs o dinheiro com estrondo diante do Bezerra – que o mandasse a el-rei para as suas despesas; que eu, acrescentou, há quatro anos que lhe dou uma moeda de ouro por ano; ele há-de saber pelo rol quem é o Zeferino das Lamelas, porque o padre Luís de Sousa Couto, do Porto, disse-me que elrei conhece de nome todos os que lhe mandam dinheiro. O fidalgo recusou: – que não estava autorizado a receber donativos, nem os julgava por enquanto necessários, porque em poder do Dr. Cândido, de Anelhe, estavam cinquenta contos, dados pela Senhora Infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.» «A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explícita. Contava que o Zeferino, que tinha ali a égua e conhecia o caminho, não quis ir pernoitar a Santa Marta de Bouro. Havia luar e saía um rancho de romeiros para o Bom Jesus do Monte. Partiu em direcção a Braga, e ao outro dia de tarde apeava no sonoro pátio da casa de Quadros, por onde entrara com a égua em grande estropeada, com a cara escandecida numa congestão de júbilo.» «O Cerveira estava a dormir a sesta.» «– Apanhou-a hoje daquela casta! Como um cacho! – informou um caseiro.– Mandou aparelhar a poldra castanha do Sr. Egas, com os coldres das pistolas, escanchou-se na sela, com a espada desembainhada e desatou a galope por debaixo das ramadas a dar gritos: Eu estava a ver quando o levava a breca de encontro a um esteio de pedra, que malhava abaixo da burra como um dez!... Depois o Sr. Egas e mais o Sr. Heitor lá o apearam como puderam, e foram-no pôr a dormir. Arre diabo! lá que um homem uma vez por outra apanhe um pilão, vá; mas embebedar-se todos os dias, é muito feio! E depois ninguém se entende com ele. Medra com o suor dos pobres. Um fona. Que vá para o diabo que o carregue. Tanto se me dá como se me deu. Se me mandar embora, boas noites. Não é capaz de perdoar um alqueire de milho a um caseiro! Tem vinte mil cruzados de renda, não gasta nem cinco, andam os filhos a vender o mato e os pinheiros, uma vergonha, porque ele, a dois homens gastadores, que têm amigas, uma a cada canto, dá cada mês vinte pintos para os dois! O homem deve ter muita soma de peças enterradas!» «Qualquer dia cai-lhe aí em casa o José Pequeno da Lixa que lhe põe a faca ao peito até ele pôr ali o dinheiro à vista. Diz que quer comprar mais terras, e aqui há dias ofereceu seis contos pela quinta do Lopes de Requião. Veja você. Tem seis contos ao canto da gaveta, e ainda não deu cinco réis, que são cinco réis, à filha, à D. Teresinha, que casou com o estudante das Quintãs.» «Anda por lá de socas, sem meias, a fazer o serviço da cozinha. E estão aí as outras duas, que parecem umas fadistas, nas romarias, e, quando Deus quer, topa a gente de noite por esses quinchosos esses marotos dos engenheiros e empreiteiros a saltarem paredes para se irem meter com elas na casa do palheiro. Uma vergonha, mestre Zeferino, a vergonha das vergonhas! Eu sou um pobre; mas raios me parta, que se eu tivesse assim umas filhas... Olhe... (batia com o pé em cheio na relva) esmagava-as como quem esborracha uma toupeira. Deus nos livre de bêbedos!» 22 «Deus nos livre de bêbedos! Você bem sabe o que isso é, mestre Zeferino, que pelos modos lá por casa não tem pouco que aturar a seu pai, que também as agarra muito profeitas! Olhe você como ele se tolheu quando foi, dia de Natal, dar fogo aos de Santo Tirso! Aquilo só com meio almude no bucho!» « – Não é tanto assim atalhou o sargento-mor de Lamelas.– Não lhe digo que meu pai não tivesse algum graeiro na asa; mas o que ele fez não era você capaz de o fazer, tio Manuel.» «– Ah! isso não, bem o pode dizer, mestre Zeferino. Nunca me emborrachei, aqui onde me vê com cinquenta anos já feitos; mas, se algum dia me emborrachar, que ninguém está livre disso, prego-me a dormir e não vou atirar-me ao Ave em Dezembro; àgora vou, se Deus quiser.» «Vai-se pôr o alma do Diabo a dar vivas ao D. Miguel! Qual Miguel nem qual carapuça! Se D. Miguel cá vier há-de fazer tanto caso de seu pai como eu daquela bosta que ali está. O que ele devia era tratar de conservar os terrões, e fazer como você, que se pôs a trabalhar e se fez pedreiro quando viu que os malhados lhe tomaram conta das terras. E daí? Você hoje tem o seu par de mel cruzados, ganhados com o suor do seu rosto, e até já me disseram que você dava quinze centos ao de Prazins para lhe casar com a rapariga. É assim ou não é?» «– Isso acabou – respondeu com desdém, irritado. Agora não a queria nem que ele a dotasse com três contos; entenda você o que lhe eu digo, tio Manuel, nem com seis contos! Você não sabe quem eu sou, mas brevemente o saberá. Pouco há-de viver quem o não vir.» «– Não sei quem você é? Ora essa... Já lhe disse que você é homem capazório, honrado...» «– Quero cá dizer outra coisa... Você não entende... – E ouvindo abrir uma janela: – Lá está o fidalgo... Deixe-me lá ir.» «E, afastando-se do caseiro, ia dizendo consigo:» «– Que tal está o labroste! Um homem vem de falar com el-rei, e topa com uma cavalgadura destas! Canalha ordinária!» * «O José não necessitava pedi-la ao pai na incerteza de uma recusa. Disse-lhe que ela havia de ser a sua esposa: a criança contou ao pai as palavras do amado e o Simeão: – Ora venha de lá esse abraço, amigo e sê Zé! – e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a sua filha como se quer.» «Mas os pais do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo, que a moça de Prazins não era forma de seu pé. A mãe, principalmente, protestava que, enquanto ela fosse viva, a tal filha da Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o Diabo, e Deus lhe perdoasse, se pecava. Justificava-se dizendo que a Marta era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao homem, pintava a manta nas romarias, andara muito falada com um frade de Santo Tirso, e um dia pegara a dar gritos na igreja; toda a gente disse que ela tinha o Demónio no corpo, e afinal morrera doida, atirando-se ao rio Ave.» «E constava-lhe que o avô dela também não era escorreito, e quando já tinha sessenta anos mandara fazer uma sobrepeliz, abrira coroa, e onde houvesse um defunto lá ia com um ripanço à igreja e punha-se a cantar como os padres. A tia Maria de Vilalva tinha inconscientemente este horror moderno, científico da hereditariedade mas o que mais a impulsionava na sua resistência aos rogos do filho era ter sido má mulher a mãe de Marta. De má árvore, ruim fruto – era toda a sua filosofia, que se encontra 23 diluída modernamente nas explorações fisiopsicológicas de Janet, de Maudsley e no determinismo.» * «O Zeferino das Lamelas, às primeiras comoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciúmes como o sineiro de Notre Dame, agarrou-se à corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de três freguesias, e pegou a dar morras aos Cabrais com aplauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatístico com canastro: – que os Cabrais e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal à Inglaterra; que esses róis estavam nos cartórios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar as papeletas e matar os cabralistas.» «Em seguida, invadiram a administração de Santo Tirso, quebraram as vidraças dos cartistas fugitivos e queimaram os impressos e quantos papéis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão. Zeferino nomeara-se chefre da gentalha embriagada nas adegas arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se prendessem os regedores que topassem. Dizia que o Joaquim de Vilalva, nas eleições do ano anterior, muito socadas, cascara no povo e mais os cabos, na assembleia de Landim, cacetada brava. A bebedeira dos ouvintes dera à pérfida aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto histórico. O plano de Zeferino era abrir oportunidade a que José Dias fosse assassinado ou, pelo menos, preso e degredado como cabralista.» «Vilalva ficava-lhes a jeito, no caminho de Famalicão. O amante de Marta ouvira grande alarido e vira ao longe a multidão que galgava um outeiro turbulentamente. Viase desfraldado no ar, em oscilações largas, o pano escarlate de uma bandeira: era um pedaço do velho estandarte que servia nas procissões de Santa Maria de Abade. José pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não – que nunca tinha feito mal a ninguém, nem sequer prendera um refractário: que o mais que podiam fazer era tirar-lhe o governo.» «José Dias tinha medo às cobardes ameaças do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurara matá-lo, e já constava que era ele o chefe da guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos na comarca. A mãe empurrava-o pela porta fora – que fugisse para Caldelas; que não fosse o Diabo armar-lhe alguma trempe por causa da Marta, da tal bebedinha que não dera cavaco ao pedreiro. Ele deitou o selote à égua e fugiu a galope; mas o regedor, com a sua consciência ilibada, esperou os revoltosos com o Zeferino à frente, brandindo a espada do pai, que não se desembainhara desde o ataque a Santo Tirso.» «– Está você preso por cabralista! – intimou o pedreiro, deitando-lhe a mão à lapela da véstia; e voltado para a turba: – Rapazes, cercaide a casa; tudo que estiver, preso!» «– Os meus filhos saíram; mas entrem, busquem à vontade – disse o regedor; e, olhando para o pedreiro, ironicamente: – Ah seu Zeferino, seu Zeferino, você não veio aqui para me prender a mim... É outra história que você lá sabe. Isto de mulheres são os nossos pecados, mestre Zeferino...» «– Não me cante! – bradou o das Lamelas com furiosos arremessos. – Está preso, e mexa-se já para a cadeia.» «– Você não pode prender-me, mestre Zeferino – contrariou a autoridade dentro da lei. – Vá buscar primeiro uma ordem do meu administrador ou do governador civil.» 24 «– Já não há governador civil! – explicou o caudilho. – Agora são outros governos, seu asno! Quem reina é o Sr. D. Miguel I. E você não me esteja aí a fanfar, que eu já não o enxergo.» «Ande lá para a cadeia, com dez milhões de diabos!» «O regedor entrou em Vila Nova de Famalicão na onda de alguns milhares de homens e rapazes que davam vivas a D. Miguel, às leis novas, à santa religião e morras aos cabralistas.» «Quando queimavam os papéis, um brasileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao comandante que não convinha por enquanto aclamar D. Miguel; que dessem morras ao governo e vivas à religião. Nesta barafunda, o regedor preso entre meia dúzia de jornaleiros que discutiam as leis velhas e as novas na taverna do Folipo, compreendera um aceno do taverneiro e fugira pelos quintais. Meteu-se ao caminho de Braga, onde estava o general conde das Antas. O José Dias, receando que o perseguissem em Caldelas, refugiara-se também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos comandado pelo cónego Monte Alverne.» * «A repugnância de Marta, face a face do tio Feliciano, seria um afrontoso desengano para o milionário, se não interviesse o implacável e engenhoso ciúme de Zeferino. Este chefe de guerrilha em armistício soube que o brasileiro queria casar com a sobrinha e que o José Dias estava em Braga muito acabado, a dar à casca. O pedreiro chamou os bravos da sua jolda e fez-lhes saber que o brasileiro de Prazins pedira para Famalicão um regimento da divisão do Antas para deitar cerco às casas dos realistas, e sujeitara-se a sustentar o regimento à sua custa.» «Resolveram atacar o Feliciano, prendê-lo como cabralista, e fazê-lo pôr à má cara o dinheiro que havia de dar à tropa. Um dos da malta, vizinho do brasileiro, o Metro, tinha-o convidado para padrinho de um filho. Procurou-o às escondidas e avisou-o que se escondesse. Feliciano fugiu para o Porto a toda a pressa. Queria que a sobrinha também fosse. Escrevia-lhe que, se quisesse ir, compraria casa no Porto. Marta respondia que estava muito doente, que não podia sair da cama. O pai chegava a descompô-la: – Que não tinha moléstia nenhuma, que era por causa do Zé Dias; mas que perdesse daí a ideia porque estivera com o Dr. Pedrosa, de Santo Tirso, que o vira em Braga, e lhe dissera que o Dias estava ethego e mais mês menos mês esticava a canela. Marta respondia com serenidade de alma forte, e escorada numa resolução suicida:» «– Se não casar com ele neste mundo, casarei no outro.» «– Que te leve o Diabo! – resmungava o Simeão, riçando freneticamente as suíças. Depois voltava manso e velhaco à beira do leito: – Olha, menina, teu tio está velho e esmagriçado.» «Aquilo não pode ir longe. Tu ficas para aí podre de rica, e podes casar depois com um fidalgo, se quiseres...» «– Valha-me Nossa Senhora! – murmurava Marta, pondo os olhos na litografia da Mãe de Jesus trespassada das sete espadas. – Quem me dera morrer...» «A tísica do José Dias com as frialdades húmidas de Novembro entrou no segundo período. Recrudesceram as dores de peito e a dispneia, com acessos febris nocturnos.» «Expectoração esverdeada com estrias amarelas, e extrema magreza com repugnância a todo o alimento. Pela auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do fervor cavernoso. Os médicos disseram ao pai que o tirasse de Braga, das incomodidades da estalagem, e o levasse para casa, onde lhe seria mais suave a morte na sua cama, com a assistência da família. Foi para Vilalva transportado numa liteira, e 25 dizia ao pai que se sentia melhor, que respirava mais desafogado; e que, se há mais tempo tivessem saído de Braga, já ele estaria rijo.» «A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão desfigurado, fez um berreiro descomunal, e não teve mão em si que não rogasse pragas à Marta, que lhe matara o seu querido filhinho. As vizinhas concordavam: – que diabos levasse a mulher que o tolhera!» «O doente afligia-se, chorava como criança, e pedia ao pai que o deixasse ir para Caldelas, para casa do seu amigo; que não podia ver a mãe; que lha tirasse de diante dos olhos; e que, se ele tivesse de morrer, que lha não deixassem ir à beira da sua cama. E fazia trejeitos furiosos, com os olhos a estalar das órbitas escavadas, incendiado pela febre.» «Chegou o padre Osório, e o doente aplacou-se sob as consolações calmantes do seu santo amigo. Deitou-se, com promessa de ir no dia seguinte para Caldelas; mas nunca mais se levantou, nem fez inúteis esforços.» «Osório não o desamparou. Ia à sua igreja dizer a missa dominical e voltava para Vilalva com as respostas de Marta aos bilhetes que José lhe escrevia – poucas linhas em que ainda por vezes lampejavam alegres esperanças.» «Toda a influência de Osório não conseguiu que o enfermo recebesse a mãe no seu quarto.» «Não lhe podia perdoar o ódio que ela tinha a Marta; e bradava que a fazia responsável perante Deus da desonra da desgraçada menina. A velha escutava estes tremendos emprazamentos para a eternidade, e dizia de si consigo, a beata: – bem me fio eu nisso.» * «Os dois lavradores das éguas travadas deram de calcanhares e pareciam dois duendes de comédia mágica vistos à luz crepuscular. O caseiro abandonou as sogas dos bois, galgou paredes e searas em desapoderada fuga até Famalicão, e à entrada da vila gritou – aqui d'el-rei ladrões! Contou o sucesso ao povo alvorotado, acudiu a autoridade, encheu-se a estrada de gente em cata de Simeão e da malta dos ladrões. Acharam-no prostrado, de costas, arquejando, com a cara empastada de sangue que borbotava empoçando-se dos dois lados da cabeça. A égua rilhava entre os dentes e o freio umas vergônteas tenras de tojo, e de vez em quando tossia a sua pulmoeira com os ilhais enfolipados. O Futrica, um ferrador da Terra Negra, examinou a cabeça do ferido, e disse que tinha o miolo à vista; não podia durar muito, que lhe dessem a santa unção.» «Pediu-se uma padiola ao lavrador mais próximo e levaram-no para Prazins prometendo duas de doze a dois jornaleiros. O caseiro montou a égua para ir a Santo Tirso chamar o Baptista, o cirurgião da casa; mas a burra, estranhando as esporas dos tamancos, levantou-se com o cavaleiro, deixou-se cair sobre os jarretes traseiros, voltouse de lado como quem se ajeita para dormir: foi necessário levantá-la. O povo dava risadas estridentes quando o caseiro puxava debaixo do ventre da égua a perna entalada, muito cabeluda; e ali perto estava a padiola com um velho gemente, agonizante, a pedir a confissão.» «Assim que a padiola entrou em Prazins, foi aviso à Marta que o pai estava a morrer com pancadas que lhe deram os ladrões de estrada. D. Teresa e o prior acompanharam-na. Quando chegaram, saía o pároco de o confessar e tocava o sino ao viático. Havia uma agitação de angustiosa curiosidade no povo que confluía à igreja chamado pelo sinal. Dizia-se que eram ladrões que saíram ao lavrador em Santiago de Antas; havia opiniões mais individualistas: segredava-se o nome do pedreiro; um pastor 26 de cabras dizia que vira passar de madrugada para as Lamelas o Patarro de Monte Córdova e mais outro mal-encarado; mas todos à uma diziam que não tinham visto nada, nem queriam saber de desgraças, com medo à malta do Zeferino.» «O Simeão estava ainda com a face arregoada de sangue, vestido sobre a cama.» 27 3. Serões de S. Miguel de Ceide20 «Carta aos «Serões de São Miguel de Ceide», (Coimbra, 7-1-86) «Eu, abaixo assinado, vinha de passar as férias do Natal em Guimarães e mais o Lopo Barruncho. Chegando a Santo Tirso, no dia 3 do corrente, era enorme, inenarrável o estralido dos foguetes, a ribombância fragorosa dos morteiros, a estridulência metálica das filarmónicas, a bimbalhada dos sinos e a guizalhada das sinetas. Perguntei o que era aquilo ao revisor do comboio. Respondeu que eram festejos ao visconde de S. Bento que doara à câmara uma casa mobilada para escola de ambos os sexos e que a escola se inaugurava naquele dia21. O Barruncho, muito impressionista, pediu-me que ficássemos, que assistíssemos – uma pândega emocional, dizia, o ideal do estardalhaço, do estapafurdismo.» Criando os personagens Lopo Barruncho e Heitor Barradas, Camilo Castelo Branco demonstra o peso da fama, influência e dinheiro que reconhecia ao visconde de S. Bento. Apesar de, nas voltas do enredo do pequeno relato parecer revoltado contra os virtuais forasteiros, Camilo não foge à sanha que a sua criatividade sempre dedicou aos brasileiros, representantes, à outrance, do marido de Ana Plácido, Manuel Pinheiro Alves. «Ficámos. Condescendi; porque, apesar de rapaz, já tenho assistido à embriogenia de várias tolices do meu país. Vi nascer algumas gordas e robustas como os meninos dos noticiários, se as mães tinham concebido dos assinantes da folha. Vi outras, enfezadas no nascedoiro, amamentarem-se nos úberes da estupidez pública, e fortalecerem-se, espigarem e atingirem a maioridade com um organismo rico de osmazoma e feijoada de cabeça de porco. Cheguei a ver partos de asneiras gémeas, duas de cada ventre e ambas viáveis, salubérrimas, triunfando a vida, muito acariciadas pela mãe que as mostrava envaidecida como Comélia mostrava os filhos: «As minhas jóias, são as minhas asneiras». Por consequência, eu desejava conhecer corporeamente o visconde. Encontrei um teólogo daqueles sítios meu contemporâneo e pedi-lhe que me mostrasse o Cadmus que inventara o alfabeto em Santo Tirso.» «– Não o vejo por aqui - disse ele; - mas, se você quer conhecer-lhe desde já um irmão, é esse velho que aí está à sua direita, derreado e doente, a quem o visconde, que tem 2$ contos, dá um tostão por dia para comer e vestir-se. Ora agora, se quer conhecer as odaliscas do paxá...» «– Que paxá ? - perguntei, imaginando-me entre turcos em Santo Tirso.» «O teólogo elucidou:» «– O visconde é um paxá in partibus dos fiéis.» «Ele faz em casa serralhos interinos com odaliscas interinas e rascoas efectivas. Acolá estão três trigueiras quentes que o visitam; e, recolhidas ao harém, vestem-se como Eva antes do pecado. São as três Graças do mito, quanto à toilette, como muito bem explica o Manual Enciclopédico22: «estão nuas para mostrar que as Graças não 20 Camillo Castello Branco, Serões de São Miguel de Ceide, Crónica Mensal de Literatura Amena, Novelas, Polémica Mansa, Crítica Suave dos Maus Livros e dos Maus Costumes, Porto, 1980. 21 A escola primária foi inaugurada, com efeito, em 3 de Janeiro de 1886, um Domingo. 22 O Manual Encyclopedico para Uso das Escolas de Instrução Primária, por Emílio Acilles Monteverde, Sétima edição muito melhorada, Lisboa, Imprensa Nacional, 1861. Definia electricidade: «é o genérico que se dá à reunião 28 pedem emprestado à arte, e não têm outros atractivos mais que a natureza». Diz o texto. Aqui em Santo Tirso há relíquias do cenário imaculadamente naturalista de Gil Vicente. O Escudeiro da Farsa dos Almocreves diz lá a uma rapariga: «Quem te tivesse desnudada em camisa...» Ao fim de três séculos de progresso, eliminou-se a camisa. Chegou-se a esta perfeição do nu, aqui.» «E o teólogo erudito continuou na apojadura da maledicência:» «– O visconde, mais feliz que o Escudeiro de Gil Vicente, amacia-lhes então as curvas crurais como quem almofaça ancas de nédias éguas, e regouga lascivamente: «Fruta do meu tempo! fruta do meu tempo!» Às vezes, larga-lhes uma laranja a rebolar pelo sobrado, e elas disputam em corrimaças a posse da laranja. Parece que ele, neste episódio, se dá uns jeitos de Páris, nas bodas de Tétis e Peleu, em que a Discórdia arremessa o pomo às três deusas; ele, porém, vendo que todas elas lhe oferecem a mesma coisa, não dá a laranja a nenhuma com preferência, e lá as deixa a cabriolar cambalhotas funambulescas a ver qual fisga o pomo. Faz também um pouco do grego Hipómenes que atirou três pomos de oiro a Atalanta, para ela, entretida a pilhar os pomos, o não pilhar na carreira; mas, como o pomo é um e as Atalantas são três, não chega a haver agarração. Hipómenes está quieto na cadeira, com uma das mãos no fígado, e outra no baço, a rir nuns júbilos de inefável bestialidade. Acolá está outra que é a favorita, vê? É a esposa infiel de um mestre-de-obras. Está rica como uma hetaira grega, uma Leonce escanelada, e domina-o. Toda a caridade do argentário escorre-lhe da algibeira espremida por ela. Liberaliza dinheiros copiosos para torres de igrejas, para pompas de romarias, onde ele se refestela em coreto, como ídolo portátil de pagode, sempre com a sua filarmónica no couce do préstito. Os seus parentes, todos pobres e alguns jornaleiros, com crianças, não sabem ler nem ele os manda ensinar; mas fez aquele palácio para escola bi-sexual, e dá cem réis por dia ao irmão.» «– E ele possui algumas luzes? – perguntei eu ao noticioso teólogo.» «– Quanto a luzes, é uma quarta-feira de trevas.» «Nisto, assomou no alto da rua a filarmónica. As serpentes de cobre faiscavam coriscos mordidas pelo sol. Os músicos marchavam com pompa, acertando o passo, olhando-se de esconso, raspando o lajedo com os calcanhares, enquanto os cerra-filas não alinhavam circunspectamente. À filarmónica seguia-se um grupo...» «– Ei-lo que chega no meio dos edis! - anunciou o teólogo. - É aquele mastodonte feito homem pela lei do transformismo. Um pedaço dos Alpes com uma povoação de cretinos dentro da sua personalidade.» «Nisto, o Barruncho, muito emocionado, exclamou:» «– Pois o visconde é assim sugestivo? Então esperem aí!» «E, abrindo a carteira, num ímpeto de inspiração, escreveu a lápis um soneto enquanto as serpentes da filarmónica trompejavam o hino do visconde – uma arrebatadora Marselhesa da revolução incruenta do abc.» «Eis o soneto do Barruncho:» «Não posso ser agora mais extenso», «Cantando-te, visconde, em larga loa,» «Enquanto Santo Tirso nos atroa» «Coa soez balbúrdia de um burlesco intenso.» dos fenómenos que apresentam certos corpos nos quais se desenvolve, pelo contacto, compressão, calor ou fricção, a faculdade de atrair, ou repelir, os corpos leves. Existe pois em toda a natureza um princípio invisível, espécie de corpo tão subtil, que escapa à vista, e que não é conhecido senão pelos seus efeitos. Este princípio foi chamado fluido eléctrico, ou electricidade, porque se descobriu num mineral a que em latim se dá o nome de electrum, que significa âmbar.» 29 «Sei que abriste uma escola aos teus cretinos.» «Fizeste mal tirá-los da sachola» «Impondo à natureza outros destinos.» «Que te resta fazer, paxá-pachola?» «Aprende agora a ler na tua escola,» «Vai sentar-te a estudar entre os meninos.» «Colossal paparreta! eu quando penso» «Na tua estupidíssima pessoa,» «Calculo os carros de indigesta broa» «Que esmóis e atulhas nesse bucho imenso!» «Depois, o Barruncho empiteirou-se um pouco no hotel da terra, na tasca do Caroço; e eu, receando que ele fosse recitar o soneto ao visconde, não o larguei até o meter no comboio da tarde para Coimbra. Ainda me entranhei um pouco no seio das massas; mas as entranhas das massas cheiravam mal; era um meio colerogénico como o delta do Ganges; havia micróbios alados numas ventilações que não eram decerto os quatre vents de l'Esprit de Vitor Hugo. Eu e Barruncho viemos, todo caminho, cantarolando ou assobiando o hino do visconde de S. Bento, cujo segundo jacto lírico reza assim, dirigindo-se a Santo Tirso:» «De S. Bento o prestante Visconde» «É teu lustre, e orgulho, e brasão.» «Nele tens acções belas avonde.» «Caridade! eis seu lema e tenção.» «Acções belas avonde!» que diabo de avonde! Vou fazer presente desta cantiga, tant soit peu calaica, ao eminente folclorista Leite de Vasconcelos.» «É o que se me oferece contar a respeito das festas de Santo Tirso.» «Admirador indelével, Heitor Barradas.» «P. S. Se o espírito de classe, isto é, a confraternidade altruísta dos dois viscondes vizinhos, impedir a publicação desta carta, rasgue-se embora esse documento de protesto contra a parlapatice desta época cíclica de parvoeirões festejados pela intrujice de uns sujeitos que, no arcano das suas consciências abjectas, os escarnecem. Tenho dito. H. Barradas.» «RESPOSTA» «Está enganado o Sr. Heitor Barradas. A sua carta ou cartaz de Pasquino aí fica estampado e afidalgado num tipo especial que se deve aos tipos. Aqui não há espírito de classe. Viscondes-viscondes, parlapatices à parte. Aqui a predominância é o respeito à Justiça. Quanto à piteira do seu amigo Lopo Barruncho, desconfio que há um erro cronológico na sua carta. Parece-me que o soneto foi feito depois e não antes do ágape na tasca do Caroço. Pelo que toca a informações do teólogo, suspeito que o informador também saiu da mesma tasca, ou pior, quando encontrou o Sr. Barradas. O mais provável é que os senhores todos três colaboraram na sua obra, na bodega do referido Caroço. Sabem V. Ex.as que mais? O que os senhores têm é inveja ao Páris e ao Hipómenes. Façam como ele. Vão para o Pará mercadejar em borracha, voltem com 2$ contos, viscondizem-se, que depois, Graças e Atalantas não lhes hão-de faltar; e, ao mesmo tempo que fizerem escolas andróginas, façam bordéis, que o louvor das primeiras instituições há-de disfarçar o escândalo das segundas. Fim de razões. O 30 visconde de S. Bento é o triunfador romano, quanto romanamente se pode triunfar em Santo Tirso; e o soneto do Sr. Barruncho é o pregão trocista do escravo. Está direito.» «Com o mais derreado acatamento à má-língua do Sr. Barradas.» «P. S. Como contraste e antípoda do soneto do Sr. Barruncho, os «Serões» têm a satisfação de transcrever, com a devida vénia, do Jornal de Santo Tirso – número consagrado ao festival da escola – um soneto inspirado, muito criterioso e duma envergadura diamantinamente parnasiana - autora a Sr.a D. Maria das Dores de Sousa Vasconcelos23 - dedicado ao Sr. Visconde de S. Bento:» «Alma nobre que abrindo teus tesouros» «Dás à pátria ciência e harmonia!» «Será teu grande nome ainda um dia» «Celebrado nos séculos vindouros.» «De Capelo e Ivens murchem os louros» «Colhidos em famosa travessia» «Com esforço tenaz mas sem valia,» «Pois à Pátria não poupam mil desdouros.» «Saúdo-vos, tirsenses venturosos,» «Pois tendes firme amparo em tal patrono» «Que torna vossos dias tão ditosos.» «Prestando seu auxílio em vosso abono» «Gratos hoje em momentos jubilosos» «Ao nobre titular erguei um trono!» «Este poema, lido à distância, talvez tenha escurezas, dificuldades de hermenêutica para espíritos insuficientemente informados. O segundo verso, por exemplo:» «Dás à pátria ciência e harmonia.» «Ciência, toda a gente percebe. É a escola, de onde os rapazes hão-de sair cientes, impregnados de biologia, de antropologia, de linguística, de estética, de sociologia, etc., científicos, enfim. Mas, harmonia? Como é que o visconde de S. Bento dá harmonia à pátria, como quem afina as caravelhas de uma rebeca? Explico: harmonia quer dizer que o visconde tem uma filarmónica sua, privativa, que estipendia,» «… abrindo os seus tesouros» «como epicamente esclarece o soneto.» «A segunda quadra aventa uma ideia discrepante da pasmaceira indígena, uma nota desafinada da universal cantiga, solfejada em toda a Europa, em louvor dos Srs. Capelo e Ivens.» «Apoiada, Ex.ma Senhora! Eu já tive ímpetos de avançar a mesmíssima ideia em prosa viloa a respeito dos louros dos dois exploradores que S. Ex.a faz votos por que murchem, enquanto os do Sr. Visconde cumpre que reverdeçam. Sim! Que valia têm as travessias, se» «à pátria não poupam mil desdouros?» «Se as travessias tivessem alguma valia, a pátria seria poupada aos mil desdouros a que não a poupam as mesmas travessias, como diria Jaime José, opusculando originalmente sobre as travessias que não poupam a pátria aos mil desdouros. Portanto, 23 Esta senhora passou a cometer mais actos temerários estampando outras poesias no jornal. Escreveu um soneto simples mas algo gracioso no Jornal de 1-9-1887, celebrando o aniversário natalício do conde. 31 quem nos dá ciência e harmonia, por isso mesmo que nos dá coisas e tal que poupam à pátria» «mil desdouros,» «tem direito a que» «De Capelo e Ivens murchem os louros.» «Vejam-se no espelho deste soneto o Sr. Lopo Barruncho, mais o Sr. Heitor Barradas, e notem o arrojo viril de uma dama que, descarrilando do entusiasmo convencional e postiço das ovações feitas a Capelo e Ivens, tem a coragem de esculpir em bronze um protesto dissidente, num verso, embora coxo, aleijadito, a pedir algebrista; mas, pelo que respeita à estética, é transcendental, são e escorreito.» «Agora, cinco minutos de seriedade, só cinco que eu não tenho tempo nem espaço para seis.» «Estou a prever as torrentes de felicidade que vão derivar do manancial da escola de Santo Tirso. Aqueles centenares de meninos encerebrados de instrução primária elementar, aí, à volta dos 14 anos, emigram para o Brasil por não terem no seu pais onde exerçam a sua actividade mental.» «De cada cento de emigrados voltará um abastado; dos noventa e nove restantes, uns arrastarão por lá vida de miséria, à míngua de recursos com que regressem às suas aldeias; outros, os mais felizes, desfibrados pelas febres, resvalarão dos hospitais aos podredoiros dos cemitérios. Entretanto, a comarca agrícola de Santo Tirso sentirá falta de braços, a terra será desvalorizada pela alta do estipêndio ao jornaleiro, pelo aumento inevitável do imposto, e não terá artífices que lhe ergam um socalco ou armem o vigamento de uma casa, senão por elevado salário; e o artífice que não foi para o Brasil, no enxurro dos aventureiros, para exercitar a sua instrução em algum ramo dos conhecimentos humanos, nas horas feriadas do trabalho, lerá o Reportório do Preto, se não preferir folhear o livrinho das 40 folhas na taberna.» «É deplorável a timidez dos sociologistas que sentem estas duras verdades na consciência e lá as remoem silenciosamente para não destoarem da universal cantilena dos hinologistas da instrução primária das aldeias! A cada canto de jornal se insinua que o saber soletrar uma página de letra de imprensa e escrever sem ideias nem ortografia uma carta, melhora a condição do sujeito, civiliza e corrige o instinto do vício e do crime. Seria bom argumentar com os factos. Vila Nova de Famalicão é a mais estúpida comarca da província do Minho, depois de Soajo. Na aldeia em que vivo há vinte anos, não há um aluno de escola. Nas outras do concelho, de longe a longe, aparece um mestre de primeiras letras, sem discípulos. Pois em todo o Minho24, exceptuado Soajo, não há comarca em que a estatística da criminalidade seja menor, e mais significativa de uma avançada civilização. O mais notável crime aqui perpetrado, nos últimos dez anos, foi um fratricídio, não praticado por um analfabeto, mas por um regressado do Brasil com bastante leitura de almanaques e uma caligrafia muito regular.» «Notável incongruência! Ao mesmo tempo que a instrução primária vai alastrando impulsionada pelos particulares e pela iniciativa forçada dos governos, criam-se leis administrativas e criminais que dificultam a emigração.» «A imprensa, ao mesmo passo que reclama escolas, muitas escolas, pede aos governos que estorvem a emigração que rouba à pátria os seus mais válidos braços. Pois que serventia pode ter a instrução do filho do proletário, se lhe dificultam e empecem a evasão do país onde nada lhe aproveita saber ler nem escrever? Em Portugal há só três indústrias: agricultura, burocracia e brasileirismo. Que querem fazer dos futuros homens que se estão ilustrando em Santo Tirso? Empregados públicos? tabeliães? verificadores 24 Nestes tempos os quatro distritos mais populosos do reino eram: 1º Lisboa, 2º Porto, 3º Viseu e 4º Braga. 32 da alfândega? conservadores, jornalistas, ou poetas ribeirinhos das margens suspirosas do Ave?» «Não seria melhor que os 17 contos do edifício escolar os convertesse o Sr. Visconde de S. Bento em jeiras arroteadas e instrumentos agrícolas, e umas casinhas de pedra com lareira, e uns catres de tábuas com enxerga nova, tudo esmolado aos esquálidos proletários que arrepiam de frio ou ardem de calma, sobre farrapos infectos, nuns casebres de ripas abetumadas de barro, e colmados de palha esfumaçada e apodrecida pela chuva? Ensinem esses homens a ler, e perguntem-lhes depois se são mais felizes na sua indigência.»25 «Mas isto não tem resposta, justos céus!» «Eu estive cavando a sepultura dos meus créditos, e ajudando a alçapremar a estátua luminosa do Sr. Visconde, como um contraste ao meu obscurantismo.» «Se assim é, como não pode deixar de ser, muito me ufano de ser prestável à glória de S. Ex.a.»26 25 O Jornal de Santo Thyrso cita uma crítica a estas posições sociológicas publicada no Diário de Notícias e aqui transcrita a páginas 72 e 73. 26 Camilo pensador é diferente de Camilo profissional das letras: «Valiosa cooperação têm também vindo prestar a esta santa cruzada do ensino, já elucidando a opinião, já auxiliando os professores e os pais na sua espinhosa missão, o grande número de livros que sobre tão momentoso assunto se têm publicado, e entre os quais certamente ocupa um lugar distinto o Dicionário de educação de ensino, magnificamente trasladado a português e ampliado pelo distinto e considerado escritor Camilo Castelo Branco.» Prospecto publicitário do Dicionário Universal de Educação e Ensino. 33 4. A Morgadinha do Val d’Amores27 Esta comédia possuiria a sua força na parte musical que, não a contendo por falha do pretenso compositor, não terá sido representada para o público de Lisboa a quem fora destinada. Estava encarregado de compor a música para esta peça de teatro cómico o maestro Francisco de Sá Noronha. Como refere Luís Francisco Rebelo em O Teatro de Camilo, editado na Maia em 1991, «é, por outro lado, extremamente curiosa pelo aproveitamento, que nela o autor faz, de usos e costumes populares do norte do país, como voltará a suceder na sua derradeira comédia original, A Morgadinha de Val-d’Amores: assim a espadelada e a “estúrdia” do 1.º acto, o casamento do 2.º, o arraial do 3.º, a descrição minuciosa do cenário deste último, de passos de dança, do vestuário das personagens, a letra das cantigas.» A peça de teatro, composta de 34 cenas distribuídas pelos seus 3 actos, passa-se em Santo Tirso, e tem as seguintes figuras: D. JOANA COGOMINHO DE ENCERRABODES, morgada de Val-d'Amores, filha de… PANTALEÃO COGOMINHO DE ENCERRABODES FREDERICO ARTUR DA COSTA, Escrivão da Fazenda de Santo Tirso COSME JORDÃO, Deputado por Guimarães MACÁRIO MENDES, Boticário de Santo Thyrso. JOÃO LOPES, Lacaio e confidente da Morgada FIGURAS do Auto dos TRÊS REIS MAGOS: Criados, cantadeiras, camponeses, músicos e outros personagens Cenas da actualidade O teatro é destinado ao público lisboeta, pretendendo dar simultaneamente uma ideia deslustrada do povo local, imbuído todavia de ruralismo nostálgico, confrontando o picaresco do folclore e a preservação das tradições com o intelectualismo romântico dos titulares bem falantes e avessos a pronúncias fanhosas. Era moda, isso sim, escrever deste modo para Lisboa. Camilo, que tanto se indignou contra a Senhora Rattazzi28, dá aqui uma amostra do que seria um “Santo Thyrso à vol d’oiseau”. Vejamos algumas pérolas: “A razão diz-me que estou em perigo de ser moído por estes selvagens do Minho”. “Bem sei quem é o escribon das fazendas de Santo Tirso… Olhe, fedalgo, eu jurar non juro que era ele…” “Biba! Biba! Son Joon adromeceu Nas escadas do colejo deron nas freras co’ele, Son Joon tem porbolejo.” Camilo veste a Morgada “com luxo, mas fora de moda. Vestido de ancas exageradas, cabelo à Stuart, e um grosso grilhão no peito.” 27 Camilo Castelo Branco, A Morgadinha de Val-D’Amores, Comédia em 3 actos, Porto, 1882. Esta princesa, Maria Rattazzi, chegou a Portugal e escreveu um livro muito polémico sobre Portugal e os portugueses. Chamou-lhe Portugal à Vol d’Oiseau, traduzido como «Portugal de Relance», tendo Camilo metido aí uma pássara maliciosa, com ovação de Ramalho, Eça e outros. 28 34 Dá e impressão de que, nestas paragens, sempre se andava de “pichorra e caneca na mão”. “Benza-a Deus, que palminho de cara assim não se topa outro no mundo! Faz agora um ano que os casacas do Porto andabon todos embeiçados atrás da snr.ª morgadinha no arraial; e enton aquele goberno que está em S. Tirso esse é que andava mesmo azoratado.” “Ao rei! Bem me fio eu nisso… Enton a fidalga pensa que o rei aveza uma de X do dinheiro que nós demos!! Pois non avezastes! Os governos de S. Tirso repartem uns c’os outros no fim do ano o dinheiro que don os lavradores.” “Morgadinha - Tem-se visto rainhas casarem com pastores, e reis casarem com pastoras. João Lopes – Cá no concelho de Santo Tirso não me consta, há-de perdoar.” O morgado rico não manda dizer por ninguém: “O snr. anda mal encaminhado. Minha filha é a morgada de Val-d’Amores; o snr. é o escrivão da fazenda de Santo Tirso. Estão um do outro tão longe como aquela pedra de armas do rebôlo dum sapateiro, entendeu?” “O que eu lhe digo é que cá nas montanhas é outra cousa. Os morgados são morgados; os escrivães são escrivães; e os sapateiros são sapateiros. Ora, quando acontece alguém querer sair da sua classe, primeiro avisa-se; depois quebram-se-lhe as costelas.” “Isto é uma família de hotentotes! Cheiram ao sertão, estes selvagens! Do que eu me escapei! Se caio nas mãos destes dois bárbaros da idade média! Parece-me uma relíquia de ostrogodos esta gente!” “Pantaleão – Como eu lhe vinha contando, amigo e snr. Macário Mendes, minha filha, desde que começou a vestir-se à moda, e a tocar piano, está muito distraída do troca-tintas do escrivão. Não anda por janelas, não sai de casa, e gasta alegremente o seu tempo a tocar, a cantar e a vestir-se. Isto custa-me um dinheiro calado; mas dou-o por bem empregado. Macário – E quem é que ensina a snra. Morgadinha a tocar? Pantaleão – É a mulher dum sujeito que se estabeleceu há pouco em Santo Tirso com loja de fazendas brancas…” “Pantaleão – Conte lá isso então. Em que termos está a bernarda? Rebenta hoje ou amanhã? Macário - Hoje. Está tudo alevantado quando for nove horas. Os sinos hão-de tocar a rebate nas quatro freguesias mais chegadas, e o povo cai todo sobre Santo Thyrso, e faz cerco para que o escrivão não possa escapulir-se; que ele é leve como uma pena, e quando a gente mal se precatar, vê-o fazer vispre, zêpe-zêpe (expressão sibilante para imitar a rapidez da corrida.) Pantaleão - Se ele fugir, amigo Macário, deixa-lo ir. Nada de o agarrar, que não vão os meus criados escadeirá-lo e eu ter de o pagar por bom. O que eu desejo é que ele não apareça mais em Santo Tirso. Lá a respeito da papelada isso é queimá-la toda; que depois o governo como não tem cadernos para a cobrança dos impostos, não o manda para cá a ele nem a outro.” “Pantaleão – Como se chama isso? Macário – Burocracia, que pelos modos é palavra de idioma francês, que vem a dizer empregado público. Pantaleão - Snr. Macário, vá indo cá com as minhas ideias moderadas. O melhor sistema de se acabar com os escrivães de fazenda é queimar os cartórios. Eu lhe ponho uma comparação. Se eu queimar a palha que tenho, e não comprar outra, que me acontece à minha parelha de 35 machos? Morrem de fome, não é verdade? Macário – Isso é. Pantaleão – Pois aí tem: os escrivães, em se lhe queimando os papéis, não têm que roer. Macário (duvidoso) – Nada; a comparação dos machos não me convence, queira V. Ex.ª perdoar. (Com energia) Matá-los, matá-los, é o grande desideratum. Pantaleão – E os papéis? Macário – os papéis queimam-se, queimam-se as casas, queimam-se os escrivães! Nada de cataplasmas emolientes; o país o que precisa é cáusticos e ventosas. Pantaleão – Ora vocemecê, snr. Macário Mendes, sabe que no cartório do tal pulha está o processo da execução que a fazenda nacional me move... Macário – Por seis contos duma fiança dos bens dos frades, sei muito bem… Esteja descansado, que não há-de lá ficar papel em que se amortalhe um cigarro.” “Pantaleão – Snr. Macário... esse homem... vai ser... vai ser... Eu desmaio! João Lopes – Vai ser o marido da menina... (a Pantaleão) Faça favor de não desmaiar, por quem é! Frederico (com veemência e fogo) – E o marido da morgadinha de Val-d'Amores vai conduzir-vos á vitória, briosos populares! Eu vos ensinarei a calcar tiranos! Auxiliado por vós, intrépidos filhos do norte, levantaremos o país das palhas podres em que o prostraram os comilões. Eu falo assim, porque cada nação, nas horas críticas, tem o seu Victor Hugo, o seu salvador por meio da retórica. Vamos a eles, filhos da vitória! As nossas bandeiras desenroladas aos ventos das batalhas, dirão: Riqueza e Moralidade! Em menos de quatro anos de regime moral, e dieta dos lambões, o país não deverá nada, e vós não pagareis um pataco de décima. Vozes – Apoiado! Frederico – Cidadãos! Eu tenho estudado profundamente as doenças de Portugal e pude descobrir onde está o cancro que nos rói. Aí vai o meu programa: O meu sistema é dividir o país em repúblicas confederadas, cada república tem seu presidente de eleição popular, quero dizer, cada concelho governa-se a si, e não quer saber do concelho vizinho. Não sei se me percebem... Macário – Muito bem, entendemos muito bem. Frederico – Por exemplo: Santo Tirso fica sendo uma república que não tem nada com a república de Famalicão, nem com a república de Fafe. Nós cá vivemos com o que é nosso, fazemos as nossas despesas, e não damos nem vintém aos de fora. Vozes – Apoiado! apoiado! Frederico – Aqui está o meu sistema que ainda não lembrou a ninguém, e que é o resultado de quinze anos de estudo. Conseguido isto, não temos a sustentar tropas, (Apoiados) nem as estradas por onde andam os outros, (Apoiados) nem teatros onde os outros se divertem, (Apoiados) nem escrivães de fazenda. (Apoiados) E declaro que me dou já por demitido do meu lugar, e levanto minha voz autorizada bradando: Guerra e morte a todos os escrivães de fazenda! (Os populares desembainham as espadas, e bradam: «guerra de morte»!) E, portanto, senhores, beijo esta espada, e leio na sua lâmina os novos destinos que vão alvorecer para Portugal! Recebi-a da mão do anjo protector das nossas tremendas batalhas! E concedei, cidadãos, que essa bandeira seja arvorada nas mãos da Judith lusitana! Não mais cairá aos pés de vencedor algum o estandarte que foi consagrado pela filha deste honrado fidalgo! (Frederico, tem passado a bandeira à Morgadinha, a qual se coloca de maneira que o pai fica entre ela e Frederico) Bravos sicambros de Santo Tirso! agora, à vitória, à vitória que a pátria nos chama! Está inaugurada a república confederada de Santo Tirso! Toque o hino! (Os músicos executam. Frederico florea a espada com arrebatada bravura. A Morgadinha agita a bandeira. Os comandantes fazem também seus ademanes de valentões. João Lopes sentado com os queixos entre as mãos contempla tudo aquilo. Corre o pano.)” Camilo, no extenso monólogo com que abre o primeiro acto, penitencia-se, como sempre, pela voz do Frederico: 36 “Ora eu então fiz-me crítico, animado pela grande cópia de sandices que se escreveram contra a minha tradução. Neste modo de vida achei vantagens, extraordinárias, sendo a primeira a dispensa de saber alguma coisa. Um crítico, no jardim das letras, representa uma toupeira em jardim de flores; é temível porque remexe e estraga tudo; levanta impolas (sic) de terra, e suja quando não desvasta (sic) a mimosa vegetação. Eu fiz destroços grandes e escalavrei muitas reputações literárias, já por amor da arte, já por amor do estômago, esta coisa onde um homem de génio não pode criar, porque isto aqui (indicando o estômago) é um abismo que só recebe a luz pela boca.” Camilo encontrou para esta peça uma profunda razão para que os cantares populares tenham um grande sentido! Noutra altura, bandeando-se com os das verrinas e depois de vociferar contra as ágapes consoadas, referia os cantores refractários ao gelo do 24 de Dezembro, como “selvajaria de cafres cristãos”. «Quebram-se mutuamente as caras por causa da partilha dos cobres, e intercalam injúrias nas trovas, ou insultam as famílias que os não gratificam:» «Esta casa cheira a breu» «Aqui morreu algum judeu.» «Conservam a instrumentação com que os pastores da Galileia festejaram o menino recém-nascido no presépio de Belém. São os ferrinhos, as sacabuxas, a viola chuleira, e as gargantas deles, que dilaceram pela rouquidão e pelos pigarros dos depósitos dos maus vinhos.» E o par de patacos que arrancam a algumas famílias saem porque essas famílias “transigem oprimidas” e, assim, “compram o silêncio daqueles bandidos”. Será apenas biliosa ou, antes, real esta descrição dos cantares de Natal? Neste teatro, além de insonoro e, portanto, celestial para os ouvidos, troca aquele demoníaco instrumental por “rebeca, viola, clarinete, ferrinhos e requinta” e coloca os cantadores a tecer loas à Morgada: “Agora que eu vou passando, Faço aqui minha parada; Para saber da saúde Da incelentíssima morgada.” E, no remate: “Quero dar a despedida À senhora Morgadinha; Que não há por estas terras Mais bonita fidalguinha.” Nesta obra está incluído um Auto, supostamente do nascimento de Cristo, em que a linguagem provinciana e bacoca dos intérpretes, os à partes dos incrédulos e a própria textura do auto, são dum ridículo tão grande que chega a ser iconoclasta. Os personagens do Auto são: Adónis, Manassés, Simeão, Ruiva, Rei turco, Rei cristão e um Anjo. Onde terá Camilo visto isto, em Santo Tirso? 37 5. Vinte Horas de Liteira29 A edição que serve este ensaio abre com uma nota do editor30 que merece a citação: «Este livro foi recebido benignamente, e apontado como um sofrível exemplo de estilo narrativo. Nesta 2.ª edição foram melhorados os romancinhos que formam a colecção. Este género de contos, ainda não seguido frequentemente, é o que mais se presta ao gosto de quem tanto mais se compraz em ler quanto mais ligeiro é o livro. Este, que novamente editamos, é bom de ler, porque é simples e pouco volumoso.» O Editor. Camilo vinha de Vila Real, onde tentara não ser preso, e teve de largar a cavalgadura, que ele matou de pumoeira31 apanhada nas alturas do Marão. Trata-se, pois, de dezasseis pequenos capítulos, contados ao ritmo do andar das bestas da liteira. De uma liteira de “dois machos pujantes e de cinquenta campainhas estrídulas”, espécie condenada ao holocausto pelo mecadam (sic), diligência, mala-posta e pelo carril. Apanhou o transporte numa povoação “maronesa” chamada Ovelhinha, logo à saída de Amarante. No Padornelo passa o rio Ovelhinha e lá se coze aquele pão de quatro cantos que acompanha o cabrito assado no forno de lenha do Coimbra. Não conluiando Santo Tirso com Trepas, Andrades e Pedrosas, aparece um Trofa que, sendo dos Arcos, surripiou a herança duma vizinha Antónia Pires que andava a britar cascalho na estrada do Porto para Braga, portanto terá passado à Trofa, pelo menos à Velha. E surripiou-lhe a gorda herança de um filho que morrera no Brasil, casando com ela entes que os avisos da fortuna lhe chegassem ao conhecimento. Santo Tirso vem pela mão de Miguel de Barros, de Resende, numa estalagem de Penafiel, onde as galinhas não seriam tão zombeteiras dos mecanismos de trituração como as de Ovelhinha, mas também tinham que chegasse de “rijeza e elastério” nas fibras cárnicas. O Miguel era dono de uma quinta em Santo Tirso e “vagamundeava” entre o Marco de Canavezes, Santo Tirso e Braga. Passando ao de leve por esta situação tirsense, merece a pena rever uma das paragens, que tem a ver com a estância da liteira em Baltar. Como é de ver, a viagem está a chegar ao fim, mas apreciemos os percevejos da estalagem. «Entrei com uma candeia na alcova, e deitei-me fatigado de alma e espírito, apagando a luz.» «Vinte minutos depois, sentei-me de salto no leito, sacudindo dos ombros os grifos encravados de uma legião de demónios.» «– Há horrores ignotos neste quarto! – exclamei eu, e acendi a luz.» «Olhei sobre mim, e em roda de mim: eram grosas de esquadrões de percevejos, que irrompiam em caravanas das cavernas do catre, e das luras do tabique. Saltei ao soalho com os cabelos hirtos e os nervos em vibrações catalépticas. Peguei das botas à Frederico, e dei morte a milhares daquelas alimárias, que renasciam umas de outras, como tantas hidras de Lerna. Fez-se um fétido homicida na alcova. Abri as janelas, e 29 Camillo Castello Branco, Vinte Horas de Liteira, Segunda edição revista pelo autor, Lisboa. Companhia Editora de Publicações Ilustradas, Lisboa 31 Lesão interna que deprecia consideravelmente o cavalo, e cujo começo é apenas anunciado por uma lijeira modificação no movimento do flanco, mais sensível quando o animal está agitado ou distraído. Jaime Frederico Codeiro, Dicionário de Equitação, Lisboa, 1885. 30 38 bebi o ar balsâmico dos pinhais. Voltei à carnificina, sacudi os lençóis à viração da madrugada, e tornei a reclinar o corpo lasso no catre ensanguentado, conservando a candeia acesa.» «Daí a instantes, as hordas ressaltando das tocas, acardumavam-se nas paredes, e formavam concílios em temerosa quietação; depois abriam fileiras, e subiam ao tecto. E eu, sentado no cavalete de torturas, examinava, com a luneta, estas infandas evoluções, e via-os despenharem-se do tecto sobre mim a prumo, ás centúrias, ferozes de fome e sede de vingança. E eu voltava de novo a carregá-los com as botas, e eles fugiam com uma velocidade insultadora. Pela primeira vez em minha vida eu vi percevejos com asas, a esvoaçarem naquele ambiente empestado do sangue deles. Referi a vários naturalistas este facto, e ninguém acreditou na existência dos percevejos alados de Baltar. Ontem abri um livro do zoólogo dr. Charbonnier, e tive ocasião de ver que este hemíptero tem asas rudimentares, e não duvida o sábio absolutamente que o percevejo as tenha completas. Deus traga este naturalista a Baltar para honra e glória da ciência!» «Eu senti então um incêndio febril, e tonturas de cabeça, vertigens mortais a cada nova ferroada. Já me faleciam forças para brandir as botas contra a parede. Sentei-me no tabuado, e chorei á laia de Mário nas lagoas de Minturaes. Aqui tenho um livro de ciência a explicar-me aquelas angústias. É o doutor Charbonnier que sai em defesa da sinceridade desta narrativa: «Há indivíduos muito irritáveis em quem a mordedura dos percevejos produz tão viva excitação que os torna febricitantes.» «Eu pensei que podia morrer de tão ignóbil desastre. A candeia apagara-se á míngua de óleo. As alimárias, protegidas pelas trevas, atacavam-me no meu refúgio. Ergui-me de golpe, e não sei que gementes rugidos de delírio e desesperação atirei á face da providência, que criara o percevejo. Quis fugir pela porta, mas perdera o tino. Raspava com as unhas nas paredes, e extirpava chusmas de infames.» «Refugia, estrincando os dentes; e quebrava a minha fúria com gemidos.» 39 6. Maria da Fonte32 Para melhor integração do leitor no ambiente da revolução vivido em Santo Tirso, começarei por transcrever um trecho de Carlos Santarém.33: «O descontentamento geral provocado pela política de Costa Cabral, principalmente devido ao lançamento da contribuição directa pelo sistema de repartição e aos regulamentos de saúde que proibiam os enterramentos em igrejas, deu origem ao levantamento popular que, começado em Abril de 1846, ficou conhecido pela «Maria da Fonte». Iniciado no Minho, logo alastrou por Trás-os-Montes, Beira e Estremadura.» «Em Vila Real e Penafiel formaram-se Juntas Governativas que dirigiam, os amotinados e, em Coimbra instalou-se uma Junta Revolucionária.» «A 20 de Maio a Rainha forma novo Governo sob a chefia do Duque de Palmela. Costa Cabral refugia-se em Espanha. Tinha triunfado a Revolução da Maria da Fonte e as leis que a originaram foram abolidas.» «Santo Tirso onde, desde a extinção do Mosteiro, proliferavam e prosperavam os políticos e a política agitada na conquista de lugares e posições de chefia, não podia deixar de se amotinar também, de ter a sua “Maria da Fonte”.» «E assim, na manhã do dia 2 de Junho de 1846 o nosso já conhecido António José de Sousa Lobo, residente na Casa das Rãs, juiz substituto de Direito, agora na sua qualidade de Coronel Comandante das Forças Populares de Santo Tirso deu entrada solene nos Paços do Concelho para tomar conta deles em nome da Junta Governativa de Penafiel enquanto o povo que a aclamava com entusiasmo cantava: «Lá vem a Maria da Fonte a cavalo e sem temer... «Pela santa liberdade triunfar ou perecer» como ainda hoje oficialmente se canta ou toca quando chega um Membro do Governo.» «Acompanhavam Sousa Lobo nesta missão o Dr. Manuel Fernandes dos Santos, administrador interino nomeado pela mesma junta de Penafiel e os Srs. António José Correia, escrivão da Administração, Dr. Francisco Manuel da Fonseca e Castro, Dr. José Maria de Sousa Rodrigues, José Luís de Sousa Monteiro, Manuel José Moreira, António Joaquim da Silva Guimarães e João Maria de Sousa Machado.» «Na Casa da Câmara, o administrador interino ordenou então a leitura e cópia de um oficio da Junta Governativa de Penafiel nomeando os membros da Comissão Municipal Interina, o secretário da comissão e ordenando que se comunicasse aos camaristas e secretário da Câmara que até ai tinham servido que a mesma ficava dissolvida e o secretário, João Justiniano de Sousa Trêpa, demitido.» «Assinava o ofício, datado de Valongo em 30-5-1846, o secretário da Junta Governativa de Penafiel, Francisco José da Silva Peixoto.» «Lido e copiado este ofício foram entregues aos presentes os diplomas pelos quais eram nomeados pela Junta, em nome da Rainha, para organizarem a Comissão Municipal do Concelho.» «Constituíam a Junta Governativa de Penafiel os cidadãos, José de Balsemão, presidente; Francisco Guedes de Carvalho e Menezes, vogal, e Francisco José da Silva Peixoto, vogal secretário.» «Podemos calcular a decepção e espanto de João Justiniano de Sousa Trêpa ao ver-se demitido pelo Sousa Lobo seu antigo parceiro político, agora de mãos dadas com 32 Camilo Castelo Branco, Maria da Fonte, Porto, 4.ª edição segundo umas emendas deixadas pelo autor. Esta obra foi escrita em Novembro de 1884. 33 Apontamentos de História Local, Carlos Manuel Faya Santarém, Jornal de Santo Thyrso. 40 Silva Guimarães, seu rival quando dos tumultos havidos em Santo Tirso e que já relatámos entre "Mijados e "Cachamôrros" em 1837.» «A política e os políticos eram e são assim quando o grito é “Viva a Liberdade!”» «No final o Sousa Trêpa foi intimado a fazer a entrega imediata dos livros e mais objectos da Câmara à Comissão Municipal. No entanto limitou-se a entregar o livro que tinha fornecido, em branco, onde foi copiado o ofício acima referido, 11 cadeiras, 1 tinteiro, 2 bancos, 1 mesa, 5 cortinas encarnadas e 5 brancas que “se acham adornando a Casa da Câmara”. Quanto ao restante disse que “por ora não entregava mais coisa alguma por ter parte dos livros no Governo Civil.”» «Comissão Municipal interina – No dia 9-6 teve lugar o acto solene de Instalação e Juramento da Comissão Municipal que ficou assim constituída: Presidente: Dr. Francisco Manuel da Fonseca e Castro; Fiscal António Joaquim da Silva Guimarães; Membros – Dr. José Maria de Sousa Rodrigues, José Luís de Sousa Monteiro e Manuel José Moreira. Para secretário da Câmara foi nomeado João Maria de Sousa. Machado.» «Assistiram a este acto três vereadores da Câmara dissolvida (António João de Araújo, Presidente, Manuel Gonçalves da Silva e Manuel Francisco Serrado). Os restantes, talvez por não se conformarem com o sucedido, não compareceram embora tivessem sido convidados.» «Prestado o juramento, o Administrador interino, ordenou aos vereadores presentes da Câmara dissolvida que abandonassem seus assentos e aos membros da Comissão Municipal que “tomassem assento nas cadeiras vagas”.» «Por último o ex-secretário Sousa Trêpa foi intimado a apresentar os livros até ao dia 12 de Junho, o que prometeu fazer.» «Conselho Municipal – A situação parecia ir-se normalizando e assim em 4-81846 foi feita a escolha do Conselho Municipal entre os cidadãos mais colectados tendo ficado assim constituído: Efectivos – António Luís dos Santos (Vila); Ricardo António de Sousa (Vila); António José de Campos Araújo e Costa (Palmeira); João Bernardo da Silva Carneiro (Areias). Substitutos – António de Sousa Ascensão (S. M. Coronado); José Moreira dos Reis (Guimarei); José António Pinto Guimarães (Vila): José da Silva Maia (S. M. do Coronado) e José de Sá Couto (S. M. Bougado).» «Vereação Municipal – A 9-9-1846, em sessão extraordinária tomou posse a nova. Vereação Municipal eleita para substituir a Comissão Municipal Interina.» «Apresenta a seguinte constituição: Presidente – Manuel José da Silva; Vereador Fiscal – Dr. José Maria de Sousa Rodrigues; Vereadores António José de Campos Araújo e Costa, José da Costa Gorgulho Telhado e Luís Pinto de Meireles.» «O Administrador do Concelho passou a ser Joaquim José da Costa Novais.» «Esta vereação esteve em exercício até 10-7-1847 data em que foi dissolvida por outro movimento revolucionário.» «Com a revolução da Maria da Fonte, o povo amotinado, que a si próprio se intitulava de “Patuleia”34 expressão que veio a dar o nome ao partido popular ou da esquerda, dava ordens ao Governo e originava a confusão e a desordem sucedendo-se as revoluções.» «Em 6-10-1846, o Duque de Palmela foi substituído na chefia do Governo, pelo Marquês e depois Duque de Saldanha o que não agradou aos setembristas que voltaram às armas. No dia 10-10 organizou-se no Porto uma Junta Provisória do Supremo Governo do Reino presidida pelo Conde das Antas, José Passos, enquanto no Minho e Alentejo continuava a luta sempre crescente. Ao mesmo tempo surgem vários motins Miguelistas.» 34 Deriva, segundo li em Camilo Castelo Branco, de «pata-ao-léu». 41 «No Norte, aquém Tâmega, tudo obedecia ao Porto, mas em Trás-os-Montes, Casal, declarando-se pelo Governo de Lisboa, resolve vir com as suas tropas tomar o Porto. Contava para o sucesso da empresa com combinações com cartistas dentro da cidade e com a conivência dos Regimentos 3 e 15 que iriam soltar o Duque da Terceira que estava preso na Foz e Casal tomava a cidade.» «Porém estes dois regimentos recearam ser esmagados pela “Patuleia” logo que se denunciassem e em vão desceu Casal até Valongo donde teve de retirar para Chaves vindo pela Agrela.» «Despeitado e furioso por ser forçado a retirar-se vingou-se trucidando barbaramente as aldeias por onde passava.» «Na peugada da Divisão do Casal tinha vindo uma calamitosa guerrilha que se apelidava de Batalhão Nacional de Amarante e era comandada por Duarte Ferreira Pinheiro. Ora este Batalhão de Amarante esperou na Ponte de Arcozelo, na freguesia de Agrela, a passagem da Divisão de Casal na sua retirada para Chaves. Operando rapidamente e de surpresa matou um soldado de Casal e pôs-se em fuga sem que este lhe pudesse deitar a mão.» «Desesperado, Casal, resolve vingar-se na população do lugar da Igreja de Agrela. Quando o povo daquele lugar, movido pela curiosidade de ver as tropas, e, ignorando o que se havia passado, estava à porta das casas e às janelas para as ver passar, a soldadesca, com instinto repugnante de vingança, abriu fogo sobre os curiosos tendo morto os seguintes: Manuel Pereira Filipe, de 42 anos; Frei André de Santa Clara, egresso beneditino, de 33 anos; André, filho de André Gonçalves Carneiro, de 25 anos; José, filho de Manuel Carneiro Rita, de 22 anos; Luzia, filha de José Carneiro, de 22 anos; Bernardino, filho do Dr. Domingos Carneiro de Oliveira, da casa e lugar da Tulha. Este Bernardino, da família Carneiro Pacheco, foi alvejado quando recolhia a casa. A mãe acorreu para o socorrer mas a soldadesca acabou por o matar à coronhada no regaço da mãe. Outros crimes, roubos e violências foram exercidos sobre aquela pobre população que pagou cara a sua curiosidade!» «Além da chacina de Agrela a divisão de Casal fez outras fora do concelho de Santo Tirso, como em Vilarandelo e Constantim.» «Por isso bem razão tinha o povo em cantar: Já lá vai para Espanha, A divisão do Casal, Deus o leve em boa hora, Que não volte a Portugal.» «A 24 de Novembro, um mês mais ou menos depois do episódio de Agrela, a Câmara de Santo Tirso foi obrigada pela Junta Provisória do Supremo Governo do Reino a comprar imediatamente um cavalo para dar à remonta da cavalaria do exército ficando o Presidente encarregado de verificar a compra e a remessa.» «Durante este período agitado já estava a residir em Santo Tirso, José Pinto Soares, proprietário da quinta do Mosteiro e chefe dos Setembristas que não via com bons olhos o João Justiniano de Sousa Trêpa porque este era cartista e estava a ganhar grande prestígio como chefe político. Como o José Pinto Soares era cunhado do chefe da Junta Provisória do Supremo Governo do Reino do Porto, conseguiu que viessem a Santo Tirso duas diligências militares para prender o Trêpa o que não conseguiram. Com a segunda diligência deu-se o episódio curioso que conta Alberto Pimentel em «Santo Thyrso de Riba. d'Ave». Esta diligência veio hospedar-se em casa de Bernardino Luís de Andrade de quem o Trêpa era genro. Os oficiais não conheciam o Trêpa e mal pensavam que quem lhes estava a fazer as honras da casa era o próprio João Justiniano a quem procuravam.» «Entabulada a conversa amiga que a boa recepção proporcionava o Trêpa veio a saber, pelos oficiais ao que vinham. Não se deu por achado e continuou a falar com os 42 oficiais dizendo-lhes que o tal Trêpa já tinha escapado à primeira diligência e era capaz de escapar também a esta.» «Os oficiais garantiram-lhe que desta vez não escapava por estarem já ocupadas todos os pontos estratégicos e terem indicações muito exactas. Despediram-se os oficiais e foram iniciar a perseguição ao Trêpa que saindo pelas traseiras se foi esconder numa mina ao fundo do quintal.» «Como a luta prosseguisse e a desordem no país não tivesse fim, a Rainha pediu a intervenção da Inglaterra que em 19-4-1847 resolveu intervir. O Conde de Bonfim, chefe dos revoltosos, é entretanto obrigado a capitular por Saldanha. Em fim de Maio entra em Portugal um exército espanhol comandado pelo general Concha que entra no Porto em 3-6-1847 depois da esquadra inglesa ter aprisionado em 31-5 o Conde das Antas que se dirigia para Sul para provocar um levantamento.» «Os partidários em luta aceitam a convenção de Gramido (29-6-1847) assinada pelos países aliados e representantes do Porto.» «Assinada a convenção de Gramido, o Trêpa, logo no dia seguinte a este, em 306-1847, apresentou à Câmara uma carta de confirmação e mercê de 13-11-1844 pela qual a Rainha lhe confirmava a serventia vitalícia do cargo de Secretário da Câmara e pediu certidão desta apresentação. Tentava com a evolução dos acontecimentos a sua recondução no lugar. No entanto a Câmara deferiu apenas o pedido da certidão pois quanto à readmissão disse que ele tinha sido demitido por Decreto da mesma Rainha de 11-9-1846 e que para o lugar tinha sido nomeado pelo mesmo Decreto o actual secretário João Maria de Sousa Machado.» «Mas os tempos estavam a correr favoráveis ao Trêpa. O Duque de Saldanha após a convenção de Gramido foi nomeado Lugar Tenente da Rainha para as Províncias do Norte e autorizou o Governador Civil interino do Porto, José Lourenço Pinto, a dissolver as Câmaras Municipais do Distrito e a nomear Comissões Municipais interinas por Portaria de 9-7-1847.» «Assim aconteceu que, em Sessão Extraordinária de 11-7-1847 a que compareceu o novo Administrador do Concelho José António Pinto Guimarães, foi dissolvida a Câmara que havia sido eleita em 9-9-1846 e demitido o secretário João Maria de Sousa Machado e nomeado para o seu lugar o antigo João Justiniano de Sousa Trêpa.» «Falámos já dos acontecimentos ocorridos no Concelho de Santo Tirso durante a Revolução da Maria da Fonte de que resultou a demissão da Câmara anterior e a constituição de uma Comissão Municipal Interina. Demos conhecimento do que se passou na Agrela com a divisão do Conde do Casal durante o Governo da Junta do Porto. Resta assim falarmos das deliberações.» «A Comissão Municipal Interina e a vereação que lhe sucedeu, dominadas pelo vírus partidário, sem saber, principalmente a partir da organização, no Porto da Junta Provisória do Supremo Governo do Reino em 10-10-1846, para que lado se haviam de virar pouco ou nada puderam fazer de útil para o concelho. » «Assim, desde 2-6-1846 até 10-7-1847 as principais deliberações, reflectem bem a falta de dinheiro com que lutava a Câmara e a anarquia governativa.» * No «Discurso Proemial» que antecede a “Maria da Fonte”, Camilo refere: «Esta tafularia de retórica só pode apreciá-la um velho que haja sido moço, quando a História passava por esta nesga da Europa evolucionando os casos que padre Casimiro José Viera condensou no seu livro. E é preciso, demais a mais, que esse velho seja infeliz e sinta a saudade atroz, sem desafogo e sem remédio, da sua mocidade. 43 Porquanto, se a revolução do Minho lhe for a recordação horrente de uma época sinistra em que as notas de dez pintos se descontavam ominosamente com 15 tostões e ½ de perda; as inscrições a 32; a Espanha a emprestar-nos três milhões a 43 com comissões de 2 ½ - se ele recorda com movimentos peristálticos dos seus intestinos baixos os toques a rebate nas torres e nos quartéis, o leva-arriba canibalesco das casernas e das montanhas, os clarins estrídulos dos esquadrões com as espadas nuas, as invasões do José Passos aos Bancos, os 30.000 proletários do Padre Casimiro “defensor das cinco chagas e general das duas províncias d Norte” em redor de Braga a ulularem por D. Miguel I, a pândega cívica dos artistas e colarejas pelas ruas das cidades guinchando a Luisinha, os pianos com uma desinteria democrática patuleando em família o hino do Antas e da Maria da Fonte, os matadouros de Valpaços, Agrela, de Braga, de Torres Vedras, do Alto do Viso – se estas reminiscências assustam a sua memória de capitalista pacato, pondo-lhe no seu interior cólicas de futuras crises semelhantes, não leia. Ah! não leia este livro o velho que, há quarenta anos sofreu desfalques nas suas notas de moeda, ladroeiras patrióticas nas suas acções bancárias, nas emissões diabéticas de bondes, aboletamento das legiões da Junta Suprema, ameaças à natureza do seu físico, e talvez à posse legítima canónica da sua esposa um pouco desviada da “linha de boa conduta” por sugestões do batalhão académico ou dos oficiais do Concha, todos descendentes de D. Juan de Maraña. Ah! não leia.» Na “Patuleia”, trabalho depositário de documentos do Porto editado pela respectiva Câmara Municipal em 1919, existe um registo sobre o “matadouro de Agrela”: «Concelho de Santo Thyrso» «56 - Oficio de 1 de Novembro de 1846, do administrador, Manoel Fernandes dos Santos, ao governador civil do Porto, contando que no dia 30 de Outubro entraram as forças nacionais de Amarante na freguesia da Agrela e colocaram um piquete na freguesia contigua de S. Julião de Agua Longa, a qual fez fogo á avançada dos rebeldes. O piquete retirou-se sem perdas, deixando mortos aos inimigos dois soldados e um gravemente ferido. As forças nacionais seguiram a estrada de Freamunde, onde constava que pernoitavam; os rebeldes, depois de terem matado na freguesia da Agrela dez pessoas e ferido várias, roubaram tudo, inclusive a lâmpada da igreja; despedaçaram papéis; saíram da Agrela e seguiram a estrada de Penafiel, praticando roubos em toda a sua marcha. Apenas se soube em Santo Thyrso a noticia do movimento, mandou-se tocar os sinos a rebate e armaram-se homens de machados para cortar a ponte e fazer oposição, na esperança de que os rebeldes seriam batidos na retaguarda pelas forças populares e as do Porto. Oficiou-se logo para o julgado de Negrelos, afim de se lhes tomarem as passagens das pontes, estabelecendo-se comunicações com o administrador de Vila Nova de Famalicão. Fez-se a reunião da gente armada da parte dalém da ponte e dali se expediram vários piquetes para os pontos por onde se podia recear a marcha dos revoltosos e nessa posição se conservaram até perto da meia noite, em que se mandou recolher a força armada para aquém da ponte, em consequência da noticia de se terem retirado os revoltosos sobre a estrada de Paços de Ferreira. Conservaram-se os piquetes e a força armada naquelas posições até ao meio-dia de 31, quando se soube a chegada dos rebeldes a Penafiel. Durante esse tempo estiveram as forças de Santo Thyrso em comunicação com as forças de Vila Nova de Famalicão, que, pelas 9 horas da noite de 30, chegaram as proximidades de Santo Thyrso, com o respectivo administrador, que veio pessoalmente ver a situação das forças e participar as medidas que tinha tomado para impedir a passagem dos revoltosos. De Guimarães aproximaram-se forças até a Ponte de Santa Ana. Desde esta até a Barca da Trofa achavam-se guarnecidas com gente armada todas as pontes, para obstar a marcha dos revoltosos.» 44 SANTO TIRSO NA EPISTOLOGRAFIA CAMILIANA 1. Camilo Castelo Branco35 a) A Ana Plácido “Minha querida Aninha” “Recebo as cartas inclusas na tua que eu esperava com receio de má notícia de ti e do Jorge.” “Felizmente não sempre se realizam os meus agouros, maus em conformidade com a minha deplorável nevrose. São 10 da noite. Hoje não passei tão mal – graças à boa companhia do Ricardo36; mas desde que ele me deixa entregue ao abutre da minha tristeza, entra-me no corpo e na alma o veneno que tu conheces. Como bem pouco, visto que os intestinos são rebeldes à expulsão; vou-me abstendo de café, de chá, de vinho; a isso devo talvez a diminuição de ardor; mas que longe estou de gozar uma meia saúde!” “O baptizado é amanhã entre o meio-dia e uma hora. Eu tencionava retirar-me no comboio da tarde; mas o Carvalho insta por que eu jante lá, e sente que a precipitação não permita cá vires. Não vai mesmo alguém. De modo que só vou no dia seguinte no comboio do correio ou no expresso, se estiver o frio que hoje faz. Tenho andado com o casaco de Inverno e sem calor.” “O Ricardo queria que eu me demorasse mais alguns dias. Ele não imagina que a saudade me é tão dolorosa como a doença. O que eu muito quero é ir tomando regularmente o Arsénico em que me resta alguma confiança.” “Se aí o demónio da doença me não deixar parar irei para S. Tirso. Os ares do Porto estão péssimos, e a rápida mudança de temperatura faz-me um mal infalível na obtusão do nariz e espasmo na garganta.” “A carta do Miranda é imbecil. Para te entreteres mando-te uma carta do Philemon que está aqui. Tenho visto os jornais.” “Por aqui certos tipos, para me honrarem, dizem que nunca me hão-de chamar senão C. C. B. Figura entre estes Gracos o teu dentista. Há muita inveja – é o que eu te posso asseverar.” “Adeus querida filha. Até amanhã.” É curioso notar como a vila de Santo Tirso é um lugar de ameno refrigério para o forçado de Ceide! Também ressalta desta terna missiva como Camilo é vaidoso pelo título, granjeado a forceps, deplorando os que lhe prometem não subir acima de C.C.B. Uma carta íntima, também com ligação a Santo Tirso ( deve ser de Abril de 1881): «Minha filha: «Falei com o Vasques de Mesquita, que está de cama, e não tinha presente a lei, mas disse-me que o Nuno37, seja qual for o perigo do acto, não deve ir para Ceide, e 35 Vão publicadas duas cartas de Camilo ao médico Pedrosa de Santo Tirso, e uma de Camilo ao médico Rodrigues Ferreira, igualmente de Santo Tirso, no capítulo que contém o texto de Maximiano Lemos, Camilo e os Médicos. 36 Ricardo Jorge, eminente médico e grande amigo do escritor. 37 O Jornal de Santo Thyrso noticia uma enfermidade do Nuno quando tinha apenas 20 anos: “Tem estado gravemente doente com uma irites reumática o nosso estimável amigo Nuno Castelo Branco, filho do nosso primeiro 45 deve esconder-se com ela, enquanto se movem os primeiros passos judiciários. Acrescenta que, indo ela para Ceide, eu hei-de ser envolvido na cumplicidade do rapto, como receptador de menor raptada. Olha que espiga! Amanhã, ao meio dia, vou combinar com ele o meio menos arriscado em face da Lei. «Em vista do que tenho dito, parece-me intempestiva a compra de móveis. Já comprei as camisas, & as encomendas que fizeste. Portanto, vamos amanhã (3ª feira) no comboio da tarde. «Manda recado ao Florindo, e as burras à Portela. Vai pensando onde poderemos arranjar uma casa em que eles se alapardem. Tenciono escrever ao…, a ver se ele em Trás-os-Montes arranja um padre que os receba. Vale a pena oferecer um ou dois contos de reis. O que não podemos é desistir, porque estes lances não se repetem na vida. Não sei como te escrevo. Adeus adoradinha. Teu Camilo. «O Jorge está no Cristal e já foi a S. Lázaro.» b) A Freitas Fortuna, do Porto38 Transcrição da carta, no que interessa: «Meu prezado amigo Veio hoje aqui o Espinho39 de passagem para o Gerez e me disse que seu mano também hoje passava em Famalicão dirigindo-se a umas caldas do Alto Minho. Vejo que houve alteração de itinerário, que provavelmente seria alterado por pessoa competente. Queira Deus que os resultados correspondam aos nossos desejos. Os meus dias têm sido desesperados como em toda a parte; mas tenho tido noites sofríveis e algumas podem chamar-se boas. Apesar disso, o estado geral não é melhor, e o da vista cada vez pior. O médico Ferreira, depois de me ter convidado a ir para S. to Tirso, optou pelo regresso para o mar, e uso dos banhos do mar, depois de 15 dias de ensaios de banhos de esponja. Voltamos pois para a Póvoa na segunda-feira, e vamos residir no hotel Luso-Brasileiro, porque não posso estar muito distanciado do mar tomando banhos. Se houver alguma garrafa do vinho Ribeiro de Mesquita, peço-lhe o favor de ma remeter, porque tenho sentido grandemente a falta desse tónico; e se a não houver, queira intimá-lo da minha parte a que não se esqueça de mim. Ceide, 4-8-1888. Do seu dedicado amigo Camilo Castelo Branco.»40 escritor Camilo Castelo Branco, mas encontra-se muito melhor actualmente. Desejamos-lhe as melhoras e fazemos votos para que brevemente se restabeleça.” 38 Citado por Raquel Castelo Branco e por Júlio Dias da Costa, nas obras já referidas. 39 Manoel da Assempção Espinho, muito amigo de Camilo e do filho Nuno, foi escriturário em Famalicão e, depois, escrivão da Fazenda de Murça, onde casou com Maria Rosa da Silva Pereira. 40 Carta transcrita pelo autor Júlio Costa do Primeiro de Janeiro, publicada a 29 de Janeiro de 1925, citando também a transcrição da Raquel citada. 46 Hotel Vilanovense, em Famalicão, onde o Nuno mandou servir um jantar pela nomeação do amigo Espinho Outra carta citada pela Raquel41: «Meu querido amigo Venho de passar uma crudelíssima noite depois de um dos dias mais atrozes que tenho memória. Minha pobre mulher foi subindo comigo este horroroso calvário em que afinal descemos ambos crucificados à mesma hora. Não posso por enquanto definir-lhe o meu destino. Não sei se irei a Lisboa se ficarei por aqui a contemplar o adro da igreja que me espera. Folguei de ver que se vai dispondo bem a futura residência de seu mano. Oxalá que dependesse disso a restauração da sua saúde; mas eu por experiência própria nada confio nas mudanças de casas quando as condições patológicas não são transformadas pelas potências de uma forte fisiologia reagente. Ana Plácido não está melhor. É invencível o fastio e as condições morais resultantes da minha doença não auxiliam nada o seu restabelecimento. O médico Ferreira viu-a ontem, examinou-a vagarosamente e discordou do diagnóstico do Meneses. Felizmente...» c) A Feliciano de Castilho42 Numa carta dirigida a Castilho, datada de 6 de Setembro de 1864 e de Ceide, diz Camilo ao seu grande amigo: “Estou morando às abas da serra de Córdova, entre um souto e uma carvalheira. Sei todos os dias o preço do milho e do feijão fradinho. Tenho horas muito tristes, e outras muito resignadas. A felicidade é que eu não achei aqui, nem em parte alguma.” 41 Raquel Castelo Branco – Trinta anos em Ceide. Lisboa, 1925. João Costa, Castilho e Camilo, Coimbra, 1924. Em 1866 Camilo Castelo Branco promete a Castilho: “V. Ex.ª fazme sonhar belos dias na minha suspirada casinha das carvalheiras do Minho! Se V. Ex.ª lá for, deixa-me depois um alegre trabalho de alguns dias. Farei erguer uma pedra no meu quintal e mandarei antepor a uma data o nome de V. Ex.ª” Com efeito lá está testemunhando um pequeno obelisco, dizem que mandado erigir por Ana Plácido. 42 47 2. Ana Plácido «Em 12 de Agosto de 1888, da Póvoa, escrevia D. Ana Plácido a Freitas Fortuna. “Peço-lhe dê notícias de seu mano, o Sr. Dr. Urbino e família. É uma das pessoas de quem me lembro com profunda gratidão.” «Pouco tempo depois, a mesma senhora demonstrava o interesse que tinha pela saúde do irmão de Freitas Fortuna nas palavras seguintes:» “Permita Deus que o meu amigo tenha passado bem de saúde, e que as inquitações que lhe causa o estado do Sr. Dr. Urbino estejam serenadas com as suas melhoras. Lembrou-me agora de repente. Se o Sr. Dr. Urbino quisesse vir estar alguns dias a Santo Tirso connosco! Dizem-me que há um sofrível hotel para onde vamos, e os ares sabe S. Ex.ª que são excelentes. Nós muito lucrávamos e muito estimávamos a sua companhia, e dali faríamos as nossas digressões até Vizela. P. S. Devemos estar em Santo Tirso terça-feira 31”43 Cartas a Freitas Fortuna: «Ex.mo Snr. e meu prezado amigo Sentimos imenso que os seus incómodos se não debelem como eram os nossos desejos. Camilo passou mal a noite, ou, por outra, não dormiu. Ontem juntou-se aqui à noite o Dr. Ferreira e Ferraz de Meneses. São ambos da mesma opinião. Banhos de esponja até que as forças o deixem ir ao mar. Hoje já cá veio o Ricardo, mas, como viu o Ferreira, pouco se demorou e eximiuse a dar a sua opinião respeito a tratamento.»44 Outro extracto da carta a Freitas Fortuna, falando no Dr. Ferreira: «Ex.mo Snr. e meu prezado amigo Há muito que não lhe escrevo. Creio, porém, que me fará a justiça de acreditar que não é por ingratidão nem falta de afecto. É que eu caí num desânimo, numa prostração física e moral, que me quebranta todas as faculdades e chego às vezes a imaginar que o sofrimento afinal bestifica os espíritos mais bem conformados. As noites quase sempre mal dormidas; os dias numa constante tortura, e a âncora, a única esperança do náufrago, a fugir, a afastar-se e a sumir-se!... E é tudo o que tenho a dizer-lhe, meu bom amigo. Se fossem boas notícias eu apressar-me-ia a comunicar-lhas porque sei quanto a sua boa alma folgaria com as nossas alegrias. Mas assim!... 43 MAXIMIANO LEMOS. Camilo e os Médicos, 1974, Porto. Nota de Júlio Dias da Costa na obra citada: “De dois médicos fala esta carta, os Drs. Ferreira e Ferraz de Meneses. Ao primeiro há outras referências nas cartas XXVI e XXVII. Desse clínico de Santo Tirso, Dr. António Augusto Soares Rodrigues Ferreira, falou Maximiano Lemos no Camilo e os Médicos, 578 e seg. Em carta a Tomás Ribeiro (Cartas de C.C.B. a T.R., 75) diz Camilo: «Amanhã vamos para S. Tirso, onde mora o médico que me trata e promete salvar-me». Era o Dr. Ferreira.» 44 48 Hoje era o dia destinado ao primeiro banho. A noite, que foi péssima, não consentiu a experiência. Ficou para 6ª feira, que é quando o Dr. Ferreira pode vir assistir à imersão. Cá está a criada. Tem cozinhado, quanto a mim detestavelmente.» Póvoa, 12-8-1888. De V. Ex.ª amiga muito reconhecida Ana Plácido.» 49 3. Outros Carta a Camilo explicando porque não “cola” uma cunha para Santo Tirso a) Carta do Visconde de Calhariz Carta, sem data (ano), em que o signatário se refere a uma mudança de escrivão de Fazenda para Santo Tirso, mudança essa que para já não é viável; mas vai averiguar se há outro concelho onde possa colocar o protegido do grande escritor.45 «Ex.mo amigo e Snr.» «Disse-me o meu Ministro, para o comunicar a V. Ex.ª que para Santo Tirso não podia mudar o escrivão de Fazenda, porque o que ali está é muito bom Empregado e desempenha-se louvavelmente; mas que lhe parecia que tinha indicação de outro Concelho para onde se poderia fazer a transferência…» b) Dr. Rodrigues Ferreira Nesta carta, expedida de Santo Tirso em 4 de Março de 1885, o médico de Camilo remete um memorial, reforça com empenho a petição dum juiz – que quer ver se com um tiro mata dois pardais – e envia remédio admirável para a flatulência com a respectiva posologia. Talvez se trate de placebo, pois o clínico refere: “tendo a certeza de que não há perigo algum mesmo quando excedida bastante esta porção”. 45 Camilo Homenageado – O Escritor da Graça e da Beleza, 1920 ou 1921, Famalicão 50 Carta a Camilo do médico tirsense Dr. Rodrigues Ferreira 51 SANTO TIRSO E OS CONTEMPORÂNEOS DE CAMILO 1. Alberto Pimentel Alberto Pimentel nasceu em Cedofeita, Porto, em 1849 e morreu em Queluz em 1925. Em polémica, em que se envolveu Camilo Castelo Branco com Alexandre Conceição46, foi chamado à liça por ser romântico. Alberto Pimentel Este autor instalou-se em Santo Tirso em Agosto de 1885 em casa do escrivão de direito Guilherme da Costa Leite, motivado pela fama do conde, pela proximidade de Camilo e das Caldas de Vizela, e pela actividade literária florescentíssima do Jornal de Santo Thyrso.47 Começou a escrever imitando Camilo e acabou com estilo próprio, muito prolixo mas sem grande valor literário. Melhor fora continuar a imitar o grande novelista de Ceide até à sua última página. Mesmo assim, todos os tirsenses lhe devem estar gratos, pois, entre a sua vasta produção literária, está, no meu ver, a maior das suas obras que é Santo Thyrso de Riba d’Ave. A maior das suas obras pois aqueles que têm escrito sobre Santo Tirso, tirante a trasladação de documentos muito antigos, todos têm ido beber às fontes do Santo Thyrso de Riba d’Ave, às suas tradições, usos e costumes, e à bibliografia que Alberto Pimentel honestamente apontou. 46 Alexandre da Conceição, engenheiro e poeta, concluiu a polémica com Camilo Castelo Branco com um belo ensaio sobre o realismo. Este ensaio, feito em 1881, perde-se com uma exagerada defesa dos brasileiros emigrantes, em que deixa de ser científico por dar demasiado relevo a este tema, no contexto em que foram dirimidos os argumentos do romantismo (naturalismo) / realismo. 47 O Jornal de Santo Thyrso de 20-6-1889 anuncia a celebração de uma missa na matriz pela alma do falecido comendador Fortunato Augusto Pimentel, pai de Alberto Pimentel. 52 Alberto Pimentel, ausente de Santo Tirso após o suicídio de Camilo, volta à vila com a família em Agosto de 1901, nas imediações da publicação de Santo Thyrso de Riba d’Ave, aproveitando para trazer consigo o livro de sua autoria História do Culto de Nossa Senhora em Portugal, e a sua tradução da 40.ª edição francesa do livro de Henrique Lassesse Nossa Senhora de Lourdes, no momento em que o concelho inaugurava o santuário a Nossa Senhora da Assunção, no monte sobranceiro, numa modesta capelinha ainda existente, chamada actualmente “capela velha” por contraposição ao “mosteiro” que a vigia do alto do patamar orográfico seguinte. “Dos mais distintos discípulos de Camilo e porventura o mais dilecto do mestre, o snr. Alberto Pimentel deve estar excluído do número daqueles «cento e nove impávidos marotos» do último soneto do grande romancista”. Partiu com a esposa e filha para Lisboa em 10 de Setembro do mesmo ano. Em 1902, no lançamento da monografia tirsense, volta a ser notícia, dizendo dele o Jornal de Santo Thyrso que “Camilo Castelo Branco tinha-o na maior intimidade e consideração e por isso lhe chamava «o seu discípulo amado». Descreve um Camilo jovem, com o seu cão, pinguelim, revólver e, sobretudo, espírito indómito e pena contundente, como o terror das famílias burguesas do Porto. Mas é necessário que alguém se coloque na pele do jovem franzino, teso, sem qualquer linhagem ou dote, revel a trabalhar por conta de outrem mas precisado da mola real para vestir, comer e viajar, e constantemente afrontado pelo dinheiro dos comerciantes ricos da cidade invicta e dos brasileiros broncos e fartos, sempre a colocar as peças e libras de ouro entre os amantes românticos e poetas e as meninas, com dote ou sem dote, filhasfamília do melhor da cidade. O Nuno Castelo Branco, filho de Camilo, fez meia dúzia de exemplares de um opúsculo protestando violentamente contra Alberto Pimentel, por este defender a paternidade de uma filha, não reconhecida, de Camilo. Com a devida vénia, publico a foto de Alberto Pimentel, estampada no Jornal de Santo Thyrso de 14 de Agosto de 1902, que tem uma curiosidade: é a segunda foto publicada pelo jornal, proprietário já da nova máquina impressora que começara a trabalhar em 8 de Maio. a) Os Amores de Camilo48 Em “Os Amores de Camilo”, Alberto Pimentel alude ao processo de adultério que o forçado de Ceide e a sua amante sofreram da autoria de Pinheiro Alves, vítima da infidelidade da mulher Ana Plácido. «O juiz, cumprindo este acórdão, pronunciou o réu por despacho de 5 de Maio.» «D. Ana Plácido, chegando ao Porto a bordo do Lusitânia procurou refúgio em Vila Nova de Famalicão, donde a breve trecho saiu para Santo Tirso. Aí se lhe foi juntar Camilo Castelo Branco, que tinha ficado em Lisboa. Ambos partiram de Santo Tirso para o Porto na diligência da carreira.» «D. Ana Plácido foi presa no Porto em o dia 6 de Junho de 1860, e conduzida às Cadeias da Relação pelos oficiais de diligência Manuel Ribeiro Fraga e Manuel Rodrigues Lopes.» «Levou consigo o filho de Pinheiro Alves.» 48 Alberto Pimentel, Os Amores de Camilo, 2ª Edição, Lisboa, 1923. 53 «O carcereiro, que não fora ainda nobilitado burocraticamente pela designação de director da cadeia, era um Alexandre Pereira do Nascimento, alferes de veteranos, homem ignorante e bom, que, através de um «corredor imenso, escuro, com a água a rever nas pedras do muramento49 conduziu D. Ana Plácido ao seu quarto no segundo andar do edifício, fachada da Cordoaria, dispensando por então as inquirições biográficas a que é costume sujeitar os presos no momento da entrada.» «Dias depois mobilou-se o quarto destinado à bela reclusa: um piano, que estava quase sempre aberto; uma mesa de pinho com muitos livros, entre os quais uma Bíblia, papel e tinteiro; algumas cadeiras, apenas.» «Pela primeira vez, creio eu, foi ouvida sob as abobadas tenebrosas da Cadeia da Relação a voz melodiosa e consoladora de um piano. D. Ana Plácido tocava e cantava. Algumas vezes aparecia à janela fumando charuto, o que fez trasbordar, no conceito público, a medida do escândalo.» «Lembro-me de ouvir comentar este facto com maior indignação do que o adultério.» «Em juízo, D. Ana Plácido negou o adultério; mas, quanto ao hábito de fumar, não era possível a negativa.» «Cinco dias depois de entrar no cárcere, a presa agravou do despacho de pronúncia para a Relação, e logo no dia seguinte, 12 de Julho, se extraiu a culpa para a ré ser julgada em processo separado.» «Este processo, que devia existir apenso ao processo contra Camilo, não existe.» «Em Maio, Camilo, depois de pronunciado, saiu do Porto. Acompanhou-o até ao Bonfim o seu amigo, e distinto advogado portuense, Custódio José Vieira, um tribuno que, nos raptos oratórios, se agigantava dentro da sua estatura minúscula.» «Além de pequeno, era feio, extremamente moreno; mas os olhos, muito brilhantes, dardejavam através das lunetas com aro de ouro.50» A outra alusão, neste trabalho de Alberto Pimentel, refere-se ao plano de Camilo para raptar a sua futura nora. «Camilo não via para este filho (o Nuno) outro caminho a seguir senão o de um casamento rico. Ele havia nascido para morgado, sem o ser. E Camilo bem sabia que na vida dos antigos morgados o casamento vantajoso, sem prévia consulta do coração, era o salvatério de todas as dissipações e estroinices - era o único emprego possível.» «Portanto, o romancista pediu à sua imaginação mais um capitulo de romance essencialmente nacional; encarregou-se de descobrir um bom casamento para o Nuno.» «Não lhe foi preciso dar muitos tratos à imaginação, porque havia ali perto, em Vila Nova, uma menina rica, que o próprio Camilo alcunhou de tricentenária51, pois se lhe calculava a riqueza em 300 contos de réis.» «Esta menina chamava-se D. Maria Isabel da Costa Macedo. Era filha de António Joaquim da Costa Macedo, natural de Famalicão, que em tempo tinha ido para o Brasil, onde casara com uma, brasileira, D. Teresa Martins Marques, que trouxera um grande dote.» «Tendo-lhe morrido os pais em Famalicão, D. Maria Isabel vivia naquela vila em casa de um vogal do seu conselho de família, o sr. António Joaquim Ferreira Tinoco.» 49 Vieira de Castro, Biografia. – Nota de Alberto Pimentel. Custódio José Vieira chegou a ser deputado da nação e director geral das contribuições directas. Faleceu no Porto em 5 de Maio de 1879. 51 Era uma espécie de million dólar baby. 50 54 «Era muito pretendida em casamento. Os pintalegretes de sete léguas ao redor disputavam-lhe os trezentos contos, e a dificuldade da conquista estava em evidenciar qualidades que suplantassem a rivalidade dos concorrentes.» «Essas qualidades faltavam ao Nuno, que não era gentil nem doce de maneiras; que não era loquaz nem insinuante; e que, apesar de marialva, tinha, em cerimónia uma timidez, que o embaraçava.» «Camilo traçou na sua fantasia um plano audacioso, uma novela, que não era para ler-se, mas para representar-se. Velho romântico de acção, e conhecendo por experiência quanto no amor a fortuna ajuda os audazes, reconheceu ser indispensável que o ultimo capitulo terminasse por um rapto, como nos bons tempos das formosas paixões novelescas.» «Para chegar mais facilmente ao epilogo lembrou-se de ser ele próprio quem escrevesse pelo filho as cartas de namoro, e, molhando a pena no tinteiro, prontamente encontrou o opulento filão daquelas missivas, exuberantes de apaixonado lirismo, que ficaram na memoria de quantos leram o Amor de perdição.» «Abalado o espírito de Maria Isabel por a mais veemente correspondência, que em tempo algum tinha estonteado a cabeça de uma menina minhota, isto é, depois de Camilo ter estado em cena por detrás do filho, e preparado convenientemente o terreno, chegara o momento oportuno de pôr em acção o rapto.» «O assunto de uma das cartas era o convite e o plano da fuga, que ambos foram aceitos.» «Na véspera do dia que Maria Isabel julgasse ser o mais próprio para a evasão, devia dar sinal pondo uma flor no peitoril da janela, que deitava para a rua de Santo António.» «Uma flor! Aqui se conheceu mais uma vez o dedo romântico de Camilo. Qualquer prosaico amante de Lisboa lembrar-se ia de recomendar um trapo; Camilo propôs uma flor.» «E a flor apareceu no dia 3 Maio de 1881.» «Logo os emissários de Camilo, que andavam à espreita, correram a Seíde a anunciar a aparição do sinal combinado.» «O romancista deu a ultima demão ao plano do rapto. Preveniu a hipótese de quaisquer contrariedades supervenientes.» «Uma dessas contrariedades seria a do raptor e os seus auxiliares encontrarem uma mulher de má vida, de nome Maria da Conceição, a Marcada que andava de noite a embebedar-se pelas tabernas de Famalicão, e era capaz das últimas torpezas.» «Esta rameira chegou a merecer a confiança de alguns administradores do concelho, pois que ela valia por si mesma todo um corpo de polícia civil em serviço nocturno. Era, sobretudo, um espião vigilante.» «Camilo acudiu logo com um alvitre:» «– Se aparecer a Marcada, levem-na para os lados de S. Tiago de Antas, a pretexto de beber uma pinga; e dêem-lhe ali uma sova, de modo que ela grite bem alto «Aqui d'el-rei, a fim da atenção dos habitantes da vila se voltar para esse lado e vocês poderem fugir a salvo pelo lado oposto.» «Retocado o plano do rapto, Camilo fez-se saído para uma estação da linha do Douro.» «Na noite de 4 de Maio, os auxiliares de Nuno estiveram comendo à tripa fôrra e bebendo a rego cheio, numa taberna da vila.» «A hora aprazada para o rapto era a meia-noite, consoante o estilo do romantismo.» 55 «Ouvidas as doze badaladas, saíram os homens da taberna e, de bacamartes aperrados, foram cosidos com as paredes, postar-se nas embocaduras das ruas que davam para a casa da brasileira.» «Nessa mesma ocasião avançava lentamente um carro, vindo do Porto, tirado por uma valente parelha, com as patas entrapadas, para evitar fazer tropel. O trem parou à barreira da vila na estrada de Guimarães, e aí esperou ordens.» «Nuno Castelo Branco, em traje disfarçado, foi colocar-se atrás da praça do peixe, e adormeceu. Esta informação é exactíssima; pode ser confirmada por todas as pessoas de Famalicão.» «Adormeceu! Se Camilo teria adormecido em lance idêntico! Era que entre o filho e o pai estava o túmulo do romantismo.» «Aqueles dos auxiliares do rapto que deviam receber nos braços a fugitiva, quando se deixasse escorregar da janela, ficaram contrariados ao ver ainda luz na Assembleia fronteira à casa do Tinoco.» «Era que nessa noite o voltarete se tinha enremissado muito, e os parceiros da bisca sueca foram remanchando a partida até que os do voltarête acabassem.» «– Diabo! praguejavam os emissários de Camilo.» «Finalmente, às duas horas da noite, apagou-se a luz na Assembleia; os últimos parceiros tinham saído, a ocasião era propícia.» «– É agora, D. Isabelinha, deixe-se escorregar pela janela, que nós a receberemos nos braços, disseram de baixo os auxiliares do rapto.» «A brasileirinha assim fez. Escorregou descalça como se havia aproximado da janela.» «Colhida nos braços dos raptores, foi ao colo de um transportada ao trem. Outro dos auxiliares teve algum trabalho para despertar o Nuno, que dormia a sono solto. Ah! pobre Isabelinha dos trezentos contos! se ela soubesse que fora preciso acordar o seu raptor, teria, apesar de ingénua, voltado para casa num ímpeto de indignação, numa fúria de raiva.» «O carro largou à desfilada até â Portela de Requião, sem que ninguém desse pelo acontecimento.» «A Marcada não apareceu, felizmente para ela.52» «Quando o raptor e a raptada chegaram a Ceide, Camilo, que nessa mesma tarde se dera como regressado, sentiu-se decerto contente do «sucesso» deste romance em acção, que tão habilmente havia planeado e que era seguramente a mais produtiva das suas novelas.» «Imagine-se a sensação causada no outro dia, em Vila Nova, por este estupendo acontecimento, tão perturbador dos patriarcais hábitos da província do Minho.» «Nas casas, nas lojas, na praça não se falava de outra coisa. E toda a gente atribuía a Camilo o plano e o êxito da empresa. Os pretendentes falidos ainda por cima recebiam os chascos e os epigramas dos comentadores alegres. Não lhes bastava o julgarem-se roubados em 300 contos cada um!» «Às seis horas da manhã desse mesmo dia aparecia Camilo em Santo Tirso53 a procurar o filho, que dizia lhe tinha fugido.» 52 Esta mulher faleceu em Famalicão, no hospital de S. João de Deus, no mês de Outubro de 1893. Uma noite, tendo-se deitado embriagada como sempre, pegou-se-lhe fogo à cama. Veio a morrer das queimaduras, no hospital. (Nota do autor). 53 Camilo era muito conhecido e estimado em Santo Tirso. Ali aparecia algumas vezes, e até ali passou uma temporada de verão no melhor hotel da vila. Lá me contaram pouco depois que o Jorge passeava todas as tardes em volta da praça, durante longas horas, sempre no mesmo passo e sobre o mesmo terreno – com as mãos metidas nas algibeiras do prussiano e o chapéu mole derrubado sobre os olhos. 56 «Em Santo Tirso falou-se da morte desta Isabelinha que foi muito próxima da da filha (neta de Camilo).» «Em Famalicão e Santo Tirso, ainda hoje se supõe que a morte da filha precedera a da mãe; mas que fora encoberta com o fim da herança reverter ao pai.» «Não deve ser exacto. Camilo adorava a neta, cuja morte o deixou muito prostrado de espírito.» «Não era sobre a morte duma criança, por ele, tão estremecida, que teria a serenidade precisa para ocultar a verdade a Ouguela, seu amigo íntimo, com quem desabafava e em quem depositava absoluta confiança.» «A nora de Camilo enterrou-se no dia 1 de Setembro, em Famalicão, no jazigo que seu pai tinha mandado fazer no cemitério da vila.» «Treze dias depois, a 14, foi também sepultada a criança, que se chamava Maria Camila.» «Por ocasião do nascimento da neta, tinha Camilo escrito a Ouguela: Nasceu há poucas horas uma filha do Nuno – Apareceu a criança, quando eu me retiro, para me ficar com o nome. Já tinha no Porto outra Camila. Estimo que sejam raparigas. Hoje em dia, enquanto se corrompem duzentos homens, claudica uma senhora.» «Da carta de Camilo poderia depreender-se que a menina recebera na pia baptismal o nome do avô; mas, pela certidão de óbito, que vai em nota, ver-se-á que o nome de baptismo era Maria. Naturalmente, seria Maria Camila: Maria, em memoria da irmã dilecta de D. Ana Plácido; Camila, em homenagem ao avô.» «A morte dessa criança, que apenas tinha dezassete meses incompletos, causou uma grande dor a Camilo, veio encher de novos pavores a sua exaltada imaginação.» «Numa família de doenças constantes, é normal que os médicos sejam citados.» «O pai dizia-lhe ás vezes:» «– Ó Nuno, tu deves trazer um revólver na algibeira para quando deres cabo da última libra.» «A fim de conhecer as propriedades que D. Maria Isabel tinha no Rio e para resolver certas questões com o procurador fluminense, Nuno Castelo Branco foi ao Brasil, onde se demorou o tempo preciso para recolher a maior soma possível dos rendimentos atrasados ou mal parados.» Por ocasião das pomposas Festas de S Bento, realizadas naquela vila em 1881, escreveu Camilo, a pedido do reverendo abade Pedrosa, amigo dele e meu, a seguinte oitava, que o ilustrado pároco mandou gravar na sacristia da igreja: Dos filhos de Sam Bento apenas dura Do templo augusto a frente denegrida, Mas vive a devoção á crença pura No heróico fundador d'austera vida; Fechou-se ao monge a paz da clausura, Mas rebrilha no povo estremecida A fé que vai subindo, em doce pranto. Nas asas da oração aos pés do Santo. C. CASTELO BRANCO - 1881. Anos depois, em 1885, Camilo publicou nos Serões de S Miguel de Ceide (IV) uma charge ao então visconde de S. Bento, que era o festeiro-mor daquela vila, e que eu conheci muito bem. A vila não gostou, mas, pelo muito que admirava Camilo perdoou a chalaça, que o visconde de S. Bento decerto não leu. Façamos-lhe essa justiça. (Nota do autor). Joaquim Correia Pinheiro Guimarães, fundador do efémero jornal Aurora Tirsense, também cita esta oitava no número dois de um folhetim publicado no Jornal de Santo Thyrso de 15-6-1893 intitulado «Santo Thyrso». 57 «Já falecida a esposa, como ele se tivesse dado bem com a primeira viagem e começasse a sentir exaurido o organismo, fez nova viagem ao Rio por conselho do cirurgião Pedrosa, de Santo Tirso.» «Viagem recreativa e higiénica, apenas, porque todos os haveres da brasileira estavam já a esse tempo liquidados. Liquidação total.» «Camilo recolhia dos informadores da mulher os motes para as suas novelas.» «Era conversando com os camponeses de Ceide que D. Ana Plácido colhia os enredos da vida de província, que ia oferecer ao espírito de Camilo como núcleo de futuros romances.» «O cenário tinha-o ele diante dos olhos, e sabia-o reproduzir com a riqueza de tintas de um pintor experimentado, de um mestre de Arte. O cenário eram as serras dalém Pedome e Riba d'Ave, o monte Córdova, os montados de Vermoim, a aldeia de Landim com o seu mosteiro no topo da calçada das Mesuras.» «Dentro deste cenário, fazia Camilo mover as pessoas que D. Ana Plácido lhe indicara como sendo protagonistas de algum drama, que valia a pena aproveitar.» «Foi assim, decerto, que nasceu a Bruxa de Monte Córdova, O Cego de Landim, e que Camilo pôde copiar da realidade o Feliciano e a Marta da Brasileira de Prazins.» «Feliciano era um brasileiro do Pregal, de apelido Araújo, que veio a casar com a sobrinha, e que faleceu no Inverno de 1885; Marta era D. Leonor Machado de Araújo, sobrinha e esposa do brasileiro do Pregal, falecida recentemente em Abril de 1898.» b) O Romance do Romancista «Do Correio da Manhã, de 4 de Junho de 1890: «Porto, 2. - O grande escritor disparou o tiro na cabeça às três horas e um quarto da tarde. Caiu logo em estado comatoso, e às cinco horas sucumbiu. O médico Ferreira, de Santo Tirso, afirma que a bala fora quase até à extremidade do lado oposto. Camilo pedira em tempo a Freitas Fortuna para ser enterrado no jazigo dele, chegando até a entregar-lhe um documento redigido neste sentido. Camilo Castelo Branco tinha há muito concebido o projecto sinistro que tão tristemente pôs em prática em S. Miguel de Ceide. Da última vez que esteve em Lisboa desejou possuir um revólver. A esposa quis dissuadir Camilo de semelhante pretensão. Nem ela nem alguns amigos do grande escritor, a quem pediu auxílio, conseguiram demovê-lo. Foram forçados a dar-lhe o revólver, mas obtiveram umas cápsulas fingidas, completamente inofensivas, com que carregaram a arma.» O Dr. Rodrigues Ferreira, que tanto fez para mitigar o sofrimento do genial escritor, tantas horas passou à sua cabeceira e consolou até ao limite das suas forças os seus familiares, foi também, por imperativo profissional, quem constatou o passamento. Como li há muitos anos num jornal diário dos que se publicavam na cidade do Porto, os médicos lutam sem cessar contra a razão da sua própria existência. Melhor sorte teve o Espinho, escrivão da fazenda da Póvoa, que ficou com o que Camilo trazia no bolso: um pequeno pente para bigode, de que o falecido fazia muito uso, tirando-lho ainda hoje do bolso do pardessus, que Camilo ainda tinha vestido, bem como uma boquilha, uma navalha de algumas folhas, um limpa-unhas, um apertador de botões de luvas, que eram objectos inseparáveis de Camilo. Nem um tostão! 58 c) Santo Thyrso de Riba d’Ave54 Esta monografia foi editada pelo Club Thyrsense na sequência da ideia do presidente da agremiação de conjugar diversos autores para uma obra sobre Santo Tirso. Tendo conhecimento do trabalho de Alberto Pimentel, prestes a entrar no prelo, a assembleia geral do Club aprovou a sua edição e a proposta a fazer ao autor. Este retirou-se de Lisboa para Santo Tirso, instalou a banca durante três meses no salão nobre do Club, e lá redigiu, se não a obra completa, o maior das suas páginas. «Camilo Castelo Branco passou um estio em Santo Thyrso, na Hospedaria Caroço, que então se achava estabelecida na casa cujo portão abre, a meio de um extenso muro, sobre o Campo 29 de Março. Em Santo Thyrso tinha Camilo planeado que se efectuasse o seu casamento com D. Ana Plácido, facto a cuja realização nesta vila obstou uma contrariedade imprevista.55» Mas não fica por aqui a ligação da monografia tirsense ao escritor de Ceide. O médico de Peso da Régua e camilianista João de Araújo Correia e Alberto Pimentel conjugaram esforços, numa colaboração absolutamente involuntária porque intemporal. Escreveu Pimentel no exacto parágrafo seguinte ao que acima se transcreve: «Ao nascente da vila, no lugar de Santocinhos, freguesia de Rebordões, concelho de Santo Tirso, residiu durante muitos anos o pintor Francisco José Rezende, professor da Academia Portuense de Belas Artes, com sua filha mademoiselle Claire Wilson de Rezende.» «Aquele mestre pintor nasceu na cidade do Porto56 a 9 de Dezembro de 1825, freguesia de Santo Ildefonso, em cuja igreja paroquial foi baptizado no dia 18 do mesmo mês e ano, com grande pompa.» «Seus pais chamavam-se Alexandre José Rezende e Dona Maria do Carmo Meireles Rezende.» Resende era da idade de Camilo. Por sua vez, João de Araújo Correia escreveu o seguinte57: «Ainda estudante, mas, já de Medicina, deu-me na cabeça um dia para ir a São Miguel de Ceide – visitar o museu de Camilo. Tinham-me inculcado como bom informador o velho clínico Dr. Delfim. Procurei-o apenas saí do comboio. Tratou-me como amigo – sem nunca me ter visto. Fez mais... Tratou-me por colega – sendo eu ainda estudante. Pediu-me desculpa de não ir comigo a Ceide, que lho impediam aqueles doentes, que eu via à espera de consulta, mas, prometeu ir à estação, no meu regresso, para se despedir de mim. Chamou um cocheiro e recomendou-lhe a minha... personalidade.» «O cocheiro, entre Famalicão e Ceide, como entre Ceide e Famalicão, matou-me o bicho do ouvido, narrando-me episódios camilianos. Como condizem com os que andam escritos, não os reproduzo. Só um merece registo, que se me afigurou inédito. Disse-me o cocheiro:» 54 Alberto Pimentel, Santo Thyrso de Riba d’Ave, Editado pelo «Cub Thyrsense», Santo Tirso, 1902. Os netos de Camilo, pág,ª 74. Nota do autor. 56 Em o prédio do Largo de Santo António do Bonjardim, que então tinha o n.º 283, e pertencia, com outros prédios próximos, aos pais e a uma tia materna de Rezende. Nota do autor. 55 57 João de Araújo Correia, Uma Sombra Picada das Bexigas, Porto, 1973. 59 «– Uma vez, levou a senhora a passeio, para aquele monte, e deu-lhe lá uma coça, por causa dum retratista.» «O ciúme de Camilo confessa-o ele em muitas cartas. Que os zelos, em homem violento como era, tivessem, de festa em festa, dado de si uma tareia – é aceitável. Mas, quem terá sido o retratista? O pintor Resende?» E, voltemos de novo à monografia de Pimentel, para vermos que Resende não se limitava a residir em Rebordões, mas interferia na vida das redondezas: «A 3 de Janeiro de 1886 foi inaugurado na vila o edifício para uma ampla escola de ambos os sexos mandado construir, e mobilar, pelo visconde de S. Bento.» «As obras correram sob a inspecção do rev.mo abade Pedrosa, a quem o doador confiara essa missão.» «Todo o trabalho técnico encontrou hábil execução por parte de Francisco Correia da Silva Carneiro Vida, a quem o ilustre pintor Rezende apreciou, e á sua obra, nos seguintes termos:» «A vossa escola normal, simples, grandiosa, sem luxo de ornamentação arquitectónica, na sua fachada principal, óptima, quer no conjunto, quer nos pormenores, tem ar e luz esplêndida; elegante nas suas proporções exteriores e interiores, mereceu ela séria atenção do snr. Macedo Júnior, digno tenente coronel de engenheiros, que nos disse a nós outro dia, sentindo o prematuro falecimento de Vida – que a vossa escola normal era bem digna do Porto.» «Vós, meus caros amigos, perdestes aí aquele que nascera arquitecto; nós, os portuenses, perdemos cá o nosso Soller, que era uma glória nacional.» «Ainda bem que o plano de Vida será seguido, concluindo-se esse monumento de instrução publica que dará um lugar de honra, entre as vilas de Portugal, á vila de Santo Tirso a quem somos afeiçoados como se fora nosso berço58.» d) Os Netos de Camilo59 Este opúsculo é interessante porque relata de forma pitoresca a caminhada de Santo Tirso a Ceide, empreendida por Alberto Pimentel na companhia do seu inseparável amigo e companheiro de muitas jornadas, Adriano Trepa. Literariamente, uma espécie de Dr. Watson como o de Sherlock Holmes. «Fui ontem, 20 de Agosto, a S. Miguel de Ceide fazer uma romagem de saudade.» «Quando Camilo era vivo, sempre que eu vim a Santo Tirso não deixei nunca de visitar o grande romancista na sua melancólica Tebaida.» «Saí de Santo Thyrso ao amanhecer e almocei em Landim.» «Devo ao sr. Adriano Trêpa, meu prezado amigo, a honra de acompanhar-me.» «Vi de passagem a cerca do antigo mosteiro de Landim, hoje propriedade da família Leal e Sousa.» A Pimentel e ao seu amigo Trepa foram apresentados, pela mão da mãe Ana Rosa Correia, os netos de Camilo que viviam em Ceide: Camilo, Manuel, Flora, Raquel, Nuno e Simão. Nesta visita aparece um outro personagem: o vizinho e amigo do escritor, Francisco Correia de Carvalho. O José Fístula do Eusébio Macário! Alberto Pimentel alude a uma presença das feiras de Santo Tirso: 58 Francisco Vida faleceu em Fevereiro de 1885. 59 Alberto Pimentel, Os netos de Camilo, Lisboa, l901. 60 Em Santo Tirso, nos dias de feira, um pedinte septuagenário, conhecido por João de Ceide, recitava uma curiosa lenga-lenga: – Júpiter era um deus omnipotente no Olimpo. Vénus era sua filha e mãe de Cupido, deus do amor. Um dia Júpiter escamou-se com Vulcano, deu-lhe um pontapé no traseiro, e deixou-lho ao lado! Depois, o antigo jornaleiro de Famalicão, jorrava o presente do indicativo do verbo ser, em francês, e os cumprimentos de bons dias, em inglês. Dizia-se que, nestas perlengas mitológicas e poliglotas, com as quais justificava os vinténs da subsistência, fora leccionado por Camilo Castelo Branco. Nas Notas finais, Pimentel acrescenta: «Pág. 26 – “Foi ali que essa linda mulher, de formas esculturais…” «A propósito de D. Ana Plácido, referirei um pormenor que me foi contado recentemente.» «O seu casamento com o grande escritor esteve para realizar-se em Santo Tirso, aonde ambos chegaram a ir para esse fim. Ali se demoraram dois dias, à espera que o cónego Alves Mendes viesse do Porto com os documentos que eram necessários. Só o abade de Santo Tirso, reverendo Joaquim Augusto da Fonseca Pedrosa, estava na posse desse segredo; ninguém mais, naquela vila, o sabia. Mas houve demora na câmara eclesiástica do Porto, e o cónego Alves Mendes não pôde obter os papeis tão depressa como desejava. Por este motivo, Camilo e D. Ana Plácido retiraram de Santo Tirso. O casamento veio a realizar-se no Porto, como já tem sido dito.» e) Memórias do Tempo de Camilo60 Ana Plácido, mal Camilo falece, começa a mostrar uma certa incomodidade nos seus relacionamentos com Alberto Pimentel. Tais sobressaltos de espírito estão bem patentes em cartas que escreveu e vão citadas. Pimentel, considerando-se amigo íntimo de Camilo, tinha insistido em participar nos momentos familiares dos quais possui ou julgava possuir um conhecimento minucioso de pormenores da vida atribulada do casal, impondo mesmo o casamento redentor dos bons costumes. Sempre quis ser uma espécie de tutor psíquico-artistico de Camilo, apesar de ser 24 anos mais novo. Escreveu: «Em 1885 é concedido a Camilo o título de visconde de Correia Botelho. Uma distinção honorífica, ainda que D. Ana Plácido pudesse comparti-la, não a poderia lisonjear; o único título por ela desejado, no íntimo do coração, não era o de viscondessa, mas o de esposa…» «Camilo, que em 1878 se mostrara arrependido de a não ter honrado aos olhos dos filhos e do mundo, chegou a ir com D. Ana Plácido a Santo Tirso para ali a desposar à capucha. Só o respectivo abade estava na posse do segredo e a ninguém o revelou naquela vila.» «Mas ainda desta vez a má estrela da Ana Plácido a perseguiu.» «Os documentos necessários, que o cónego Alves Mendes 61 tratou de obter na câmara eclesiástica do Porto e que devia pessoalmente levar a Santo Tirso, não 60 Alberto Pimentel. Memórias do Tempo de Camilo, 1913, Porto No Jornal de Santo Thyrso de 29 de Março de 1883 publicita-se uma obra deste cónego Alves Mendes, denominada “Plágios” do seguinte modo: «É incontestável o grande mérito literário deste opúsculo que nos remeteu o 61 61 chegaram a tempo, porque foi preciso verificar se Camilo haveria tomado algum dos graus do clericato impeditivos de matrimónio.» Camilo acabou por casar com Ana no dia 9 de Março de 1888, às 10 horas da noite no n.º 458 da rua de Santa Catarina, oficiado pelo abade de Santo Ildefonso autorizado pelo Bispo. Casa de Ceide – outra vista do interior Diz Pimentel, sobre o rapto da noiva do Nuno: «Como acaba de ver-se, Camilo planeava o rapto da “menina dos trezentos contos” por Nuno Castelo Branco.» «Ora este rapto realizou-se em Famalicão a 4 de Maio de 1881, e o casamento em Braga a 2 de Julho do mesmo ano.» «Na segunda entrevista entre Camilo e o advogado portuense Vasques de Mesquita o que ficou assente… foi que, logo que o rapto se tivesse efectuado, Camilo saísse furtivamente de Ceide para Santo Tirso, simulando procurar o filho Nuno que lhe tinha fugido, diria» Porquê Santo Tirso? Por uma, ou mais que uma, de quatro razões: - Ou a proverbial má-língua em Santo Tirso lhe arranjaria, de imediato, um álibi - Ou Santo Tirso era o meio difusor do boato geograficamente mais próximo de Ceide - Ou as instâncias judiciais tirsenses eram mais notáveis que as de Famalicão - Ou Camilo teria, em Santo Tirso, amigos influentes que atestariam o seu comportamento de pai desnorteado à procura do filho Nuno seu autor o eloquentíssimo cónego Alves Mendes, escritor distinto e um dos primeiros ornamentos da tribuna sagrada, do qual já se fez segunda edição, e consta que se vai fazer terceira, o que prova evidentemente a boa aceitação que ele tem tido. Agradecemos ao ex.mo cónego Alves Mendes o obséquio que nos fez, brindando-nos com um exemplar.» O episódio da tentativa tirsense do casamento de Camilo ocorreu cinco anos depois deste anúncio. Alves Mendes foi um grande orador, pregando em muitas solenidades; colaborou na “Voz do Cristão” e escreveu duas editoriais no Jornal de Santo Thyrso, em 1884, sob o título “A Bíblia”. 62 f) Através do Passado62 Há, nesta obra um capítulo, denominado “O Filho Mais Velho de Camilo”, escrito em Agosto de 188663, em que o autor repete, com algumas variantes, as notas de rodapé do seu “Os Amores de Camilo”. Porque nos dá, uma vez mais, o estado de alma do romancista de Ceide, vamos transcrevê-la. «Não o havia tornado a ver (ao Jorge) desde menino, quando ele, ao colo da ama, enfiava o braço pequenino pelas grades da Cadeia da Relação do Porto e acenava para os que em baixo iam passando na turba-multa dos indiferentes.» «– Meu pobre filho! Exclamou Camilo.» O Jorge acabara de escrever uma carta ao Sr. Fontes, presidente do conselho de ministros, pedindo emprego. «E de novo os olhos se arrasaram de lágrimas.» «Jorge havia recolhido, com seu pai, de Santo Tirso, pouco antes. Em Santo Tirso disseram-me que o Jorge passeava todas a tardes em volta da Praça, durante longas horas, sempre no mesmo passo e sobre o mesmo terreno, – com as mãos metidas nas algibeiras do prussiano e o chapéu baixo derrubado sobre os olhos.» 62 Alberto Pimentel, Através do Passado, Lisboa, 1888. O Jorge Castelo Branco tinha estado internado no Hospital de Conde Ferreira entre os dias 2 de Agosto e 27 de Outubro de 1886. 63 63 2. Maximiano Lemos64 Maximiano Lemos «XXXIX CAMILO EM SANTO TIRSO - OS MÉDICOS PEDROSA E FERREIRA65 Por mais de uma vez buscou o grande romancista alívio em Santo Tirso. Houve ali dois médicos distintos que lhe prestaram cuidados.66 Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa e António Augusto Soares Rodrigues Ferreira. Não encontrámos, a respeito do segundo, qualquer referência nas obras de Camilo. Ao primeiro, há na Brasileira de Prazins o seguinte: «Vinha o cirurgião a miúdo: – que era histerismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão, esperanças bem fundadas, segundo as confidências do pai; mas, consultado pelo padre Osório, o Pedrosa, um grande clínico, dizia que a brasileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali epilepsia complicada com delírio, alienação mental intermitente, um estado de inconsciência ou consciência anormal, e que verdadeiramente se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez intercorrente.» Pedrosa merecia este juízo de Camilo. Nasceu no Porto, na freguesia de Santo Ildefonso, a 27 de Janeiro de 1814 e faleceu em Santo Tirso, em 25 de Janeiro de 1892. Frequentou a Escola Medico-Cirúrgica do Porto e concluiu o curso em 1839, defendendo tese a 19 de Outubro. Pouco depois de formado, foi despachado médico para a Foz do Douro mas não chegou a tomar posse, por causa das convulsões políticas do tempo. 64 Maximiano Lemos. Obra citada. No tempo de Camilo estes médicos trabalhavam em conjunto na Casa de Saúde existente em Santo Tirso, onde tratavam, muitas vezes os dois simultaneamente, dos sinistros mais graves que não podiam ser socorridos nas farmácias. O Dr. Ferreira era 20 anos mais novo que o Dr. Pedrosa. Nesta altura de mais cuidados prestados a Camilo, um tinha cerca de 50 anos e o outro 70. Pedrosa era mais velho dez anos que Camilo e o Ferreira mais novo dez anos. O Dr. Ferreira também ia à Farmácia de João Rodrigues Lobo ajudá-lo a socorrer os feridos graves. Quando se tratava de feridos muito graves, além de passarem depois para a Casa de Saúde onde recebiam o sagrado Viático, eram transferidos para o cemitério ou para um hospital do Porto. Existe a notícia (Jornal de Santo Thyrso de 29-041886) de que os dois médicos fizeram uma cesariana à esposa de António José Moreira Vasconcelos. 66 Foram inúmeros os médicos a quem Camilo Castelo Branco se valeu durante a sua vida e com as mais diferenciadas finalidades. Em solteiro, nas suas constantes peregrinações pelo norte do país, após constituir família e assentar arraiais em Ceide, sempre teve motivos para recorrer aos mais afamados clínicos conhecidos, tendo feito amizade com muitos. Ainda hoje aparecem, dos bisturis minuciosos dos camilianistas, mais médicos anteriormente ignorados como tendo acudido ao mestre das letras. 65 64 Não sabemos quando se estabeleceu em SantoTirso, mas foi anteriormente a 1842.67 Num artigo publicado pelo nosso estudioso colega José Coelho de Andrade, lêse que na Roda de SantoTirso, em 1842, havia um pessoal cuidadoso de que fazia parte o médico Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa que pelos ses honorários percebia 48$000 réis anuais.68 Dr. Pedrosa Por decreto de 15 de Dezembro de 184569, foi nomeado vice-provedor de Saúde nos concelhos de Paços de Ferreira e Santo Tirso, lugar que exerceu apenas um ano ou pouco mais, o que também foi devido a agitações políticas. Por 1856, foi nomeado médico do partido municipal de Santo Tirso e desempenhou funções até 1888, data em que se aposentou.70 67 «Facultativo da Roda (Concurso) – Por ordem do Administrador Geral do Distrito foi anulada a nomeação do facultativo feita pela Câmara em 18-12-1841 por este lugar ter que ser preenchido por concurso. Concorreram ao lugar os facultativos Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa e António José Ferreira. A Câmara, dada a igualdade de condições, dava preferência àquele que viesse residir na vila. Na reunião de 11-1-1842, perante a hesitação de Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa em vir para aqui residir e da resposta afirmativa de António José Ferreira, resolveu nomear este que era o mesmo que já havia nomeado. (Liv.º Deliberações fls. 57 e 57 v.). Não é, assim, exacta a informação dada pelo Dr. José Coelho de Andrade, em «O Ave» 1.ª Série, n.º 2, de Julho de 1912, de que Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa era o facultativo da Roda em 1842. Este só em 1846 é que, tendo sido nomeado médico do partido, veio para a Roda dos Expostos, e para Santo Tirso como a seu tempo veremos.» - Carlos Manuel Faya Santarém, Apontamentos de História Local. 68 A Roda em Santo Tirso, no periódico O Ave. Nota do autor. 69 «Médico do Partido: Em Março de 1845 foi posto anúncios nos periódicos para o lugar de «Médico do Partido». Custou o anúncio 1$530Rs. Em 17-9-1845 a Câmara resolveu por unanimidade e de acordo com a deliberação do Conselho de Distrito anexar ao Partido Médico do Concelho de Santo Tirso o concelho de Negrelos e Paços de Ferreira em virtude de «serem diminutos» os réditos do Município para poderem por si só estabelecerem um Partido. Em 27-5-1845 estava já nomeado o cirurgião Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa que, no entanto só em 21-1-1846 fez registar na Câmara a sua nomeação. O cirurgião Pedrosa tinha já concorrido em 1842 a médico da Roda dos Expostos, como já referimos, tendo sido preterido. Do registo de nomeação do cirurgião Pedrosa consta ser natural de S. Martinho de Bougado o que está em contradição com o que informa Alberto Pimentel, em «Santo Thyrso de Riba d'Ave» que o dá como natural do Porto. Em 4-8-1846 o cirurgião Pedrosa é já mencionado como cirurgião da Roda dos Expostos em substituição de António José Ferreira que devia ter morrido ou saído do concelho pois no Registo da nomeação do cirurgião Pedrosa para Médico do Partido e vice-Provedor da Saúde se declara que nos concelhos de Santo Tirso e Paços de Ferreira não havia médico algum. A carta de nomeação está datada de 19-12-1845.» Carlos M. F. Santarém, obra citada. 70 «Dr. Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa - Em 20-12-66 foi presente à sessão da Câmara uma representação assinada por quase todos os moradores da vila pedindo à Câmara que negasse deferimento ao pedido de exoneração de médico do partido do cirurgião Joaquim Anacleto da Silva Pedrosa. A Câmara atendeu a representação pelo que indeferiu o pedido de exoneração e aumentou o seu ordenado para 250$000 Rs. anuais. Esta deliberação e cópia da representação foi transmitida ao cirurgião Pedrosa que em 7-2-1867 comunicou à Câmara que continuava no Partido 65 Um médico de província, adstrito exclusivamente à clínica, não tem ordinariamente biografia. É o que sucede ao médico Pedrosa. Mas este deixou de si memória ainda não extinta pela dedicação com que exercia a sua profissão. O Sr. Alberto Pimentel escreveu com justiça estas palavras a seu respeito: «Gozou de grande fama não só em todo o concelho de Santo Tirso, mas também nos concelhos limítrofes, e até no Porto onde os mais abalizados facultativos lhe faziam elogiosas referências. Homem forte, nutrido e sanguíneo, tinha o sorriso alegre e a mansidão de todos os bons. Era carinhoso e paciente com os enfermos e foi consultado repetidas vezes pelo grande romancista Camilo Castelo Branco, que o estimava muito pela bondade do carácter e pelo conhecimento que o Dr. Pedrosa mostrava ter dos últimos progressos da ciência que exercia.»71 Das relações com o médico Pedrosa existem ainda alguns documentos. Numa carta datada de 8 de Maio de 1883, lê-se: «Com respeito à Maria Isabel, 72 está, por enquanto, amamentando o filho: mas um facultativo (o Pedrosa) que aqui veio, disse que ela não devia criar o pequerrucho.»73 Do casamento do Nuno Castelo Branco com Maria Isabel resultou uma filhinha que morreu em tenra idade. À sua doença se refere uma carta que supomos dirigida a Vitorino da Mota, em que há referências ao médico Pedrosa: 16/5/83 «Meu amigo: Ana Plácido melhorou. O Nuno queixa-se de dores nas ilhargas. A criança não está boa. A mãe não deixou pôr-lhe o colírio, e a avó teve de retirar. Veio ontem o Pedrosa de Santo Tirso. Ralhou muito porque não lhe aplicaram o seu remédio, ministrou-lho e voltou hoje suspeitando que um olho estava perdido. Parece que ainda não está. Mas eu não creio que a pequena se restabeleça, porque a Maria Isabel, se não está doida, é ultra infame. Eu estou bem doente e muito farto da vida. Envio hoje ao Chardron a resposta (confidencial). Excederá 40 páginas o folheto. Verbero a porca da Palavra onde conheço a covarde ingerência de um tal Gaudêncio de Valadares, que não conheço pessoalmente. Até domingo. Respeitos a S. Ex.ªs. Do seu amigo Camilo Castelo Branco.»74 A neta de Camilo faleceu a 14 de Setembro. Diz o Sr. Alberto Pimentel dos Amores de Camilo que «em Famalicão e em Santo Tirso ainda hoje se supõe que a morte da filha precedera a da mãe, mas que fora encoberta com o fim da herança reverter ao pai.» O Sr. Pimentel supõe que não deve ser exacto. Escrevia isto em 1899; mas ainda hoje há quem ali aceite o facto como verdadeiro. e pedia a anulação do requerimento. Esta demora do cirurgião em responder deve-se ao ter esperado pela aprovação do Governo Civil do aumento do ordenado.» Carlos Santarém , obra citada. 71 Alberto Pimentel – Santo Tirso de Riba d’Ave, Santo Tirso, 1902, pág. 175. Nota do autor. 72 D. Maria Isabel da Costa Macedo, nora de Camilo, casada em Braga a 3 de Julho de 1881 e falecida em 31 de Agosto de 1884. Nota do autor. 73 Ilustração Moderna, 1901, pág. 10. Nota do autor. 74 Pontas de Fogo. Nota do autor. 66 Foi por conselho do cirurgião Pedrosa que o visconde de S. Miguel de Ceide fez uma viagem ao Rio de Janeiro já depois do falecimento da esposa.75 Apresentamos agora ao leitor um documento inteiramente inédito, e interessantíssimo para a história das relações entre o cirurgião Pedrosa e Camilo. É uma carta de 20 e de Novembro de 1886.76 «Meu prezado amigo: Escrevo-lhe em extrema aflição. Há coisa de dois meses que, sobre todos os meus achaques, apareceram as poluções sem erecção e mesmo estando acordado. Manifesta-se a ejaculação seminal por uma sensação de um corpo estranho na uretra. Seguem-se cãibras nas pernas, nas coxas principalmente; depois vem a espermatorreia. Na noite passada tive três destas ejaculações que me deixaram em extrema prostração. Este estado coincide com constipação do ventre e hemorróidas secas. Tenho dificuldade em introduzir a seringa, e não consigo que a água penetre além do recto. Lavagens com água fria extremamente não dão resultado algum favorável. A reacção subsequente promove a polução. Fora da cama estou um pouco melhor, mas assim mesmo o pruído na uretra é muito sensível, e parece-me que há algum corrimento que poderá ser da próstata (sic). A perda de vista vou-a sentido aumentar ao passo que enfraqueço. Dificilmente já me posso equilibrar sem auxílio dum amparo. Isto pode não ter remédio algum, ainda assim desejo ouvir os conselhos de V. Ex.ª. Não sei se me convém reduzir a alimentação, ou usar alimentos tónicos. Parece-me que a carne concorre para a constipação do ventre. Abusei talvez um pouco do bacalhau, não sei se lhe atribua este acréscimo de sofrimentos, nem sei se eles são consecutivos à profunda anemia que me esfacela.» «Vi anunciado com grandes gabos um depurante brasileiro chamado Cojurubebo. Como estou muito atacado de herpes nas costas e alguma coisa nos testículos, lembreime se todos os meus padecimentos procedem de um diátese mucoso de que padeço há 35 anos. Tenha V. Ex.a bondade, sem ter o grande incómodo de vir a esta sua casa, indicar-me o que lhe pareça mais óbvio para atalhar as poluções.» «De V. Ex.o Amigo muito grato – Camilo Castelo Branco.» S. C. 20/11/86. «O Dr. Pedrosa não foi apenas médico de Camilo: foi amigo dedicado. Todas as vezes que o visitava perguntava-lhe o Sr. Abade notícias do doente. A resposta era invariável. Cheio de mágoa e tristeza dizia: É um desgraçado.77» O Dr. Pedrosa, por ter falecido em 25 de Janeiro de 1892, não assistiu à inauguração da estátua do conde de S. Bento, em que, no entanto, o próprio homenageado participou. Conforme relembraram mais tarde os jornais locais:78 «Naquela tarde ardente de 28 de Julho de 1892, a nossa ridente vila estava em festa. Três bandas de música, as dos regimentos 18 e 20, e a de amadores desta vila, percorriam as ruas, tocando entusiásticas marchas. Organizara-se um grande e brilhante cortejo, com todas as forças vivas da vila, que foi saudar um homem bondoso e caritativo e homenagear um carácter respeitabilíssimo. O majestoso cortejo parou em 75 Alberto Pimentel, Amores de Camilo, pág. 398. (Nota do autor) Por intermédio do nosso estimado colega José Coelho de Andrade, devemo-la ao extremado favor do Sr. P.e Joaquim Augusto da Fonseca Pedrosa, filho do médico Pedrosa e actualmente abade de Santo Tirso. Nota do autor. 77 Devemos esta Informação ao Sr. Dr. José Coelho de Andrade. Nota do autor. 76 78 Quinzenário humorístico «O Pêto», 8 de Março de 1914. 67 frente da casa do nobre e ilustre titular conde de S. Bento. Este, sorridente, apareceu á sacada. As suas cãs, brancas de neve, divisavam nele uma alma pura e misericordiosa e, agradecendo á grande massa de povo, que se comprimia na rua em aclamações entusiásticas e frenéticas, incorporou-se no cortejo, fazendo-o assim, com a sua presença, mais brilhante e majestoso. Tinha sempre estes actos belos, o nobre conde, ancião duma respeitabilidade extrema, orgulho dum povo, glória duma raça.» «Inaugurava-se a sua estátua! O acto inaugural foi imponente.» Dele escrevem os Jornais da época: «Comoção eléctrica, profunda apodera-se da numerosa assembleia perante a estátua, esplendidamente modelada, do preclaro conde de S. Bento. Muitas girândolas estrondeiam no espaço, aclarado pelos raios dum formosíssimo sol, e ao mesmo tempo três músicas, formando uma só música, executam magistralmente uma esplêndida marcha inaugural, feita expressamente pelo maestro Castilho.» O outro médico de Santo Tirso, o Dr. António Augusto Soares Rodrigues Ferreira, foi objecto de um estudo biográfico da parte do nosso estimado colega Coelho de Andrade. A ele iremos buscar as notas que aproveitámos, remetendo para aquela excelente notícia os que desejarem mais informações. O Dr. Ferreira nasceu a 24 de Janeiro de 1834 em Valpedre, concelho de Penafiel. Pertencia à família do grande tribuno Manuel da Silva Passos, e era filho de Maria Carolina Lopes e do Dr. Joaquim Rodrigues Ferreira. Frequentou a Universidade de Coimbra e formou-se com distinção em Filosofia e Medicina, completando os seus estudos em 1857. Pouco depois da conclusão do curso, visitou uns tios que tinha em Santo Tirso, na Quinta do Mosteiro, e como lhe agradasse a localidade fixou residência naquela vila, abriu consultório e «conseguiu assim uma clínica extraordinária, produto das suas belas faculdades de espírito e da sua competência.» A política, porém, atraía-o. Antes de ir para Santo Tirso, e mal se formara, foi administrador do concelho de Penafiel. Agora, na formosíssima vila banhada pelo Ave foi devotado ao Partido Progressista, desempenhou frequentes vezes o lugar de administrador do concelho, de presidente da Câmara e deputado por aquele círculo, em 1880. Quando morreu, em 22 de Fevereiro de 1908, fora eleito presidente da Câmara, de que o afastou a doença. Camilo relacionou-se com o Dr. Ferreira durante uma longa temporada que passou em Santo Tirso, instalado na antiga hospedaria Caroço, a que se refere nos seus romances. Teve, então, ensejo de apreciar o médico, por quem manifestava muita consideração.79 Depois frequentemente o consultava, mas o Dr. Ferreira recusava terminantemente a sua visita, quando o doente não pudesse tirar proveito das suas prescrições. Isto desesperava os clientes e, algumas vezes, o próprio Camilo socorreu-se de José Luciano para o forçar a atendê-lo. Da casa de Camilo recebeu o Dr. Ferreira alguns valiosos presentes, entre eles um rico tinteiro de prata que a família ainda conservava, em 1912, e um cavalo que lhe foi oferecido pelo Nuno, filho de Camilo. Arquivámos aqui uma carta já publicada pelo Sr. Dr. José Coelho de Andrade e que é um documento das relações de Camilo com o Dr. Ferreira, de Santo Tirso: 79 O médico tirsense Dr. Rodrigues Ferreira, chegou, como se vê pela cartas transcritas, a ir à Póvoa assistir Camilo nos banhos de imersão preparatórios dos banhos de mar! 68 Dr. Rodrigues Ferreira «Meu Ex.mo Amigo. D. Ana Plácido sofre há dias de uma epistaxe, acompanhada de alguns escarros de sangue, que a meu ver são da garganta. A hemorragia repete-se 3 e 4 vezes por dia. Sente grande abatimento geral e particularmente na cabeça. Os escarros são muito escuros e são precedidos de tosse. Tenho-lhe dado a aspirar vinagre (indicação de Chernoviz) inutilmente. Não lhe quero dar o incómodo de aqui vir; mas se V. Ex. indicar alguma coisa, o criado irá à farmácia. Eu cá vou vivendo com as minhas enormes dores de alma e corpo. O Nuno foi ou vai amanhã para o Rio de Janeiro. De V. Ex. am.º af.o Camilo Castelo Branco.» Figura original a do Dr. Ferreira. Tinha grande amor aos cavalos e cães e possuía um cavalo de extraordinária finura, que se mostrava mais conhecedor das casas dos clientes do que o próprio médico. Quando este tinha dúvidas sobre um caminho ou se esquecia da porta da casa dum doente que já visitara, abandonava as rédeas ao cavalo e este lá ia ter, ainda que houvesse decorrido muito tempo da visita anterior. Um dia, o Dr. Ferreira esqueceu-se da hora do jantar, entretido por uma conversa interessante com um seu amigo. O cavalo, receando que a palestra o fizera esquecer a refeição, agarrou com os dentes no casaco do dono e, chegando-se a ele, empurrava-o continuadamente, até que o Dr. Ferreira lhe percebeu a insistência e partiu para casa. Um cão, ao qual chamava o seu Leão, tinha a especialidade de denunciar os assaltantes e de os obrigar à fuga. Acompanhava o dono na sua clínica e se algum passava na direcção do amo, parava subitamente até que este se distanciasse ou desaparecesse o viandante suspeito. Depois de ter adquirido uma grande reputação como clínico, nos últimos tempos da sua vida, invadiu-o uma descrença profunda. Desdenhava dos medicamentos novos, não acreditava na sua eficácia, e aborrecia-lhe a designação complicada, pelos esforços de memórias a que ela o obrigava. A sua terapêutica limitava-se aos vesicatórios, que empregava largamente, ao óleo de rícino, à dieta láctea. Vinho a ninguém o consentia, e a doente que lho pedia mandava beber… outra coisa. Ligava pouca importância à anti-sepsia e aquele que fora um cirurgião distinto era capaz agora de empregar ferros enferrujados em caso de distocia. A isto chegara um homem que durante anos se entregara à clínica com devoção, e a exercer com competência real. De um vigor físico correspondente ao seu vigor 69 intelectual passava um dia sem alimentos se assim o exigia a labuta quotidiana ou contentava-se com a parca refeição que lhe oferecia qualquer lavrador. Em Maio de 1886 começou a exercer medicina em Santo Tirso o Dr. António José Alves Ferreira de Lemos, nascido na Casa da Tulha, em Monte Córdova. O médico militar doutor Maximiano Lemos esteve em Santo Tirso onde chegou em 21 de Setembro de 1888, sendo na altura considerado um verdadeiro ornamento da classe médica, distinto clínico e primoroso escritor. Deslocara-se à vila propositadamente de Vizela para assistir à festa natalícia do dr. Ramos, delegado da comarca. Como nota referencie-se que o Dr. Domingos Rodrigues Ramos, delegado do procurador régio em Santo Tirso, em 1890, era amigo do Dr, Maximiano Lemos. 70 3. Ricardo Jorge80 O livro deste eminente professor tem o seguinte conteúdo: RECORDAÇOES E IMPRESSOES I – Camilo Castelo Branco - No seu aniversário em 1888; II – Visita a Ceide – 10 de Dezembro de 1887; III – Derradeiro inédito; IV – A Última obra projectada por Camilo; V – Camilo e Inês de Castro; VI – Memorial de Camilo; VII – D. Carolina Michaelis; VIII – Camilo e Gomes Leal; IX – De como me casei – Le Mariage de Sylvestre; X – Camilo Carteador - No 106.º aniversário; XI – De como se casou Camilo; XII – Os Ensinamentos da Vida e Obra de Camilo CAMILO E ANTÓNIO AIRES Dedicatória; [Prefácio]; I – Na Porta de Carros; II – A Clio Patuleia; III – A Castália Tripeira; IV – Guerra contra a Aristocracia Mercantil; V – «As Commendas»; VI – A Rixa; VII – Da Porta férrea a S. Bento; VIII – O Púlpito e a Mitra; IX – Último Arranco de Labuta Mental; Nota bibliográfica. Camilo e o Dr. Ricardo Jorge «Magros, esburgados, nosomaníacos, Voltaire e Camilo, nas jeremíades de enfermo, parecem-se como duas gotas de água. Ambos passaram a vida de pena em punho a prantear as mazelas; ambos viveram na antevisão imediata da morte, como dois anacoretas de caveira poisada na mesa do trabalho. Ambos atormentaram a medicina do tempo. Medicinavam-se a flux; Voltaire tomava por mês oito purgas, afora os clisteres de sabão; Camilo, um dia, compra uma caixa de medicamentos homoepáticos e não descança enquanto a eito a não mete no buxo; o Chernoviz era o seu livro de cabeceira. Voltaire supliciou o famoso Tronchin e o português Silva, o médico da moda, médico das vaporeuses. Camilo trouxe os clínicos numa roda viva, desde o Andrade de Santo Tirso até Sousa Martins. Às vezes, as cartas do Camilo e de Voltaire, parecem vindas da mesma mão. Levei-lhe um dia, já não sei que livro sobre o Voltaire malade, como sugestão animadora; queria consolá-lo, mostrando-lhe que o patriarca de Ferney, lamuriento como ele, nem por isso deixou de chegar à extrema velhice. Não se viu no espelho e caiu desapiedado às gebadas sobre o seu avito de há um século: 80 Obra Literária e Médico-Literária de Ricardo Jorge, Camilo Castelo Branco, Recordações e Impressões Camilo e António Aires, Lisboa. Ricardo d’Almeida Jorge foi lente e secretário da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. 71 «Já li o Voltaire malade. A meu ver, o homem tinha muita syphilis inglesa. A hypocondria eram buboens recolhidos. A correspondencia com a marqueza Du Deffand fezme nojo. Torpes egoistas os dois! Em tudo aquillo apenas vejo o meu Voltaire, um pouco refundido na forja da minha fantasia de ha 40 annos, em uma phrase. E' quando elle faz depender o seu bem-estar da frequencia do rei da Prussia e da seringa. Isto é bom, principalmente por ser dito em carta ao rei. O que diria Voltaire se conhecesse a seringa aperfeiçoada de Ezeguier [Eguisier]» (Carta a R. J.)81 É evidente que o dr. Ricardo Jorge conhecia bem o dr. Rodrigues Ferreira, escondendo-se quando chegava a casa de Camilo e ele já lá estava a trabalhar. Porquanto, quando escreve o Andrade de Santo Tirso, não estará seguramente a referirse ao Dr. José Coelho de Andrade, que não é falado como médico de Camilo. 81 Este trecho foi retirado do capítulo “Memorial de Camilo”, escrito em Santa Apolónia em 1 de Junho de 1911. 72 OUTROS ESCRITOS QUE LIGAM CAMILO A SANTO TIRSO 1. Sousa Costa82 IX – Camilo e Dona Ana Plácido As preocupações de Camilo, durante a perseguição e julgamento que o levam à prisão, estão entre salvar a pele do degredo em África e assegurar a defensa da amante Ana Plácido. O crime de adultério era punido de modo diferente ao homem e à mulher e mesmo a prova era diferente. Para ajudar à condenação de Ana Plácido, apareceram várias testemunhas do concubinato. Para Camilo “somente são admissíveis contra o co-Réu adúltero as provas do flagrante delito, ou as provas resultantes de cartas ou outros documentos escritos por ele.” O marido enganado, capitalista Pinheiro Alves, atribui ao ano de 1859 o início das relações adulterinas com vidas conjuntas, tanto no Porto e S. João da Foz, como em Lisboa. Ana “teúda e e manteúda, na mesma casa, com o maior escândalo, descaramento e publicidade”, acusa o atraiçoado brasileiro. Curiosamente Sousa Costa adoptou a grafia Santo-Tirso, com um hífen pouco usual, mas nem por isso muito despropositado. «Ao cabo de um mês de incertezas e alarmes, à notícia de que os esbirros lhe farejam o rasto, convencido de que Dona Ana está a coberto de perigo, diz: -“vi a profundeza da voragem que ameaçava engolir-me e deliberei fugir”.» «Foge para Vila-Real, casa dos seus maiores. A irmã de seu pai diz-lhe que é “necessário ser desgraçado, para não contrariar os fados da família”.» «Decorridos três dias de cruciante inquietação volta ao Porto. Os anjos da guarda alarmam-se. É preciso fugir outra vez. Ela continua escondida, agora para os lados de Santo-Tirso. Bate para Guimarães, onde encontra um amigo, como usam raramente ser os irmãos, em Francisco Martins Sarmento. De Guimarães passa às Caldas das Taipas, donde, dentro em pouco, se furta aos “aguazis, concitados por grandes prémios” a prenderem “o criminoso, fácil de conhecer, porque tem buracos na cara” – “picado do génio e das bexigas”.» «A cavalo, o arreeiro à ilharga, à frente certa mulher de baú à cabeça, mete a Fafe a mulher “de linhas puras e correctas, fidalguia no olhar e no falar, descalça, a tressuar debaixo da carga, de Lisboa arrastada para ali por triste fado”. «Aboleta-se na Quinta do Ermo, na quinta do seu camarada do Ateneu, do seu amigo Vieira de Castro - quinta servida “por caminhos de cabras”. Os dois dão longos passeios em comum, na companhia de ambos o Neptuno, oferecido por ele ao anfitrião. Recebe, transido, a notícia da prisão de Dona Ana. Entrara nas cadeias da Relação no dia 6 de Junho. Ele quer correr ao Porto. Vieira de Castro opõe-se. Na Ponte do Barroco, a 15, o coração em ânsias, escreve na carteira das suas efemérides novos passos da sua Via Dolorosa.» «Ainda torna às Taipas. Ainda volta ao Ermo.» 82 Sousa Costa, Grandes Dramas Judiciários, Porto, 1944-1945. 73 «Trinta dias contados, sopram-lhe ao ouvido aviso de que os aguazis, “expedidos do Porto, se acantonaram em Fafe, esperando ocasião segura de o capturarem”. «Vieira de Castro protesta “enforcá-los em galhos de sobreiras”. É preciso. Arrepia caminho para Trás-os-Montes. Transpõe o Marão sob a apavorante tempestade de 2 de Julho. Alcandora-se nos cerros da Samardã.» Durante o penoso julgamento83, de que saem absolvidos, a passagem por Santo Tirso volta a ser motivo de escândalo. «Em réplica, o Advogado do queixoso procura rebater a lógica aduzida contra a prova do flagrante delito. Insiste na “subsistência” da prova resultante da carta e nas abastanças pelo marido ultrajado prodigalizadas à Ré. Repisa as acusações do libelo: - a ida da Ré para “uma casa da rua de Cedofeita, onde o Réu a visitava”, sem respeito pela “justa dor e ressentimento do Autor”; a vida dos dois, na cidade de Lisboa, “em mancebia escandalosa”; a provocação aos melindres honestos da cidade do Porto, “vindo hospedar-se, ambos, na hospedaria do Cisne, hoje Lusitana, na Praça de Dom Pedro”; “a gala que publicamente faziam da sua própria imoralidade e torpeza”; a necessidade do Autor “lançar mão dos meios legais para fazer cessar o escândalo”. E afinal, o que sucedeu? O escândalo continuou! “Já depois da pronúncia, os dois marcharam novamente para Lisboa, primeiro o Réu, em seguida a mulher do Autor, e posteriormente apareceu esta em Famalicão, donde seguiu para Santo-Tirso, e fazendo aí junção com o Réu, vieram na diligência em direcção ao Porto”. “Libelo do Autor”.» «Continuou mesmo dentro da cadeia, senhores Jurados, donde o Réu saía a passeio, como se estivesse numa hospedaria e onde entraram a praticar-se cenas indecorosas, consentidas pelas autoridades encarregadas da sua polícia! A provocação continuou! O Réu, num dos seus passeios recreativos, fora da prisão, desceu a rua de S.to António, em pleno dia, em provocação “aos homens da chatinagem”, como ele classifica os honrados comerciantes da nossa praça, roçando-lhes na cara umas botinas para a Ré, desembrulhadas, compradas numa sapataria da mesma rua! Protesta contra tais escândalos, contra tais provocações! Protesta contra as liberdades e privilégios concedidos a Réu preso! Exorta os senhores jurados à condenação em degredo. Exige-o “a Justiça ofendida”. Exige-o a Moral ultrajada. Exige-o a cidade do Porto, afrontada nas suas tradições de honra; traída no seu culto pela igualdade de direitos; vergastada no seu amor à dignidade da família!» 83 Em Outubro de 1860 Camilo Castelo Branco estava preso na Cadeia da Relação do Porto, de onde sairia em Outubro de 1861. 74 2. Gentil Marques84 Este trabalho tem um fio condutor que o perpassa e, tenuemente, acaba por condicionar o próprio estilo do autor. «E, de repente, os seus olhos como que alucinados, poisam nessa, bizarra visão. Sobre as penhas escalvadas da serra, um vulto de homem deixa-se fustigar pelas rajadas do vento. Quando o seu olhar se aclimata melhor à singular figura, reconhece-a logo. É o fidalgo-mendigo. O homem de quem se conta uma história que mais parece uma lenda. Chama-se José Pacheco de Andrade. Descende duma das mais distintas famílias de Cabeceiras de Basto e seu pai chegara mesmo a Capitão-mor. José Pacheco de Andrade é, por herança, o senhor do vasto morgadio de Friume, em Ribeira da Pena. Mas desse morgadio, tão rico, tão poderoso, nada, resta já no arruinamento das hipotecas e das dívidas. Para mais, ele fugira de casa. Fugira depois de assassinar a mulher, roído de ciúmes e pensando que ela o atraiçoara com seu próprio irmão. Este demonstrara-lhe como ele matara uma inocente. Então, temeroso da denúncia à justiça, José Pacheco de Andrade, na mesma sanha de loucura e de desvario, assassinara também seu irmão, e incendiara-lhe o palácio, a fim de o calar para sempre.» «Desde então, meio ensandecido, ora fidalgo de mais com vestes de mendigo, ora mendigo de mais com alma de fidalgo – ele corre de povoado em povoado, com uma suja manta sobre os ombros ainda fortes e uma tigela vermelha, debaixo do braço, a esmolar descanso e comida...» «Essa é a história de José Pacheco de Andrade. Camilo ouviu-a contar tantas vezes e de tantas maneiras que já a sabe de cor. Por isso, ele não se amedronta mais com o vulto batido pelo vento, no alto das penhas. Pelo contrário, caminha para lá… » «O mendigo também o descobre. Dá uma risada gutural que o vento dissolve depressa. E fica-se à espera, do rapaz, de braços cruzados, gozando as chapadas de ar no seu rosto ossudo. Súbito, porém, os seus braços descruzam-se num movimento rápido e ele levanta a mão direita, intimando Camilo a parar. E, como sempre, fala-lhe em verso, porque o fidalgo-mendigo não sabe falar a ninguém de outra maneira, desde que o juízo se ensandeceu:» «- Escuta: Eis que um Mendigo» «o teu futuro prediz!» «Vai! Que a dor irá contigo!» «Olha… A sombra da desgraça» «Caminha a par do infeliz!» «Adivinhado nos seus pensamentos mais íntimos – Camilo estaca, espantado e medroso. As palavras do mendigo lembram-lhe os seus antigos presságios de fatalidade. E, então, num impulso, abala correndo, como louco, a caminho de casa...» «Joaquina dorme o sono dos justos. Ele nem a desperta, nem a beija sequer. Aliás, fica acordado todo o resto da noite. E, de tempo a tempo, vem-lhe aos ouvidos, como rajadas de vento, a estranha e brutal profecia do fidalgo-mendigo:» «Ergue-se, antes de Joaquina acordar. Deixa-lhe sobre a cama um bilhetinho explicando que parte e pedindo para ela falar com o pai, para saber tudo melhor. Depois, 84 Gentil Marques, Camilo – O Romance da sua Vida e da Sua Obra, Lisboa, 1951. 75 sai dali o mais rapidamente que pode e dirige-se logo à loja de compadre Sebastião, declarando-se pronto para a viagem.» «E, nessa mesma manhã, ainda aturdido, ainda confuso, ainda inquieto, Camilo Castelo Branco parte a caminho de uma nova etapa na sua vida já tão aventurosa. Parte, com saudades e com receios. Saudades da mulher de que nem sequer se despedira. Receios da profecia que escutara...» É este presságio – «VAI! QUE A DOR IRÁ CONTIGO!» – que “justifica” toda a argumentação de Gentil Marques. «Nada mais há a fazer. E, assim, Ana Plácido é pronunciada, sem fiança, pelo crime de adultério, em 26 de Março de 1860...» «Vêm de Lisboa, em nova jornada de vagabundagem. Alguns amigos fiéis acompanham-nos, lado a lado. A viagem é feita a bordo do «Lusitânia». Ana Plácido faz o possível por se mostrar conformada, para não desanimar Camilo. Mas este não esconde o pavor que lhe vai na alma. E confessa a alguém:» «– Sabes o que me adivinha o coração? Que não a vejo mais.» «Refugiam-se em Vila Nova de Famalicão, depois de fugirem pelas ruas do Porto como fantasmas. De Famalicão passam a Santo Tirso. No dia 5 de Maio, fracassada uma derradeira tentativa do doutor Teixeira de Queiroz para não inculpar Camilo Castelo Branco, é este também pronunciado por crime de adultério...» É possível que esta referência Santo Tirso se deva à leitura que Gentil Marques tenha feito dos folhetins jornalísticos de Sousa Costa, acima recordados. 76 3. Vitorino Nemésio85 Nemésio, como ilhéu, atende aos pormenores e não deixa de contextualizar geograficamente o âmago do romanceiro camiliano. A própria obra de Camilo Castelo Branco desmentiria o autor de «Mau Tempo no Canal» se ele pretendesse, ao limitar a circunscrição novelística, aprovincionalizar Camilo. «Com uma pala na testa e um tinteiro de ferro ao lado, Camilo passa horas e horas na sua cadeira de baloiço. São-Miguel-de-Ceide é Minho: são ares lavados, com boa verdura. Água não falta; nem aquela alegria que enche céu e terra, de Famalicão a Santo-Tirso. Mas onde Camilo chega há logo um dedo de desgraça que todas as coisas. No meio do milho e da luz da quinta, a casa do escritor já em 1880 tem um aspecto sombrio, com aquele obelisco postiço sagrando a visita de Castilho, as janelas da casa de jantar afogadas de trepadeiras, e a árvore de que Raul Brandão fez o espectro e o espelho da vida daquelas pessoas trágicas - Camilo e Ana Plácido - acordadas do sonho e do desespero pelos ramos que batiam nos vidros. Uma florinha ou uma esgalha seca da «acácia do Jorge» davam-lhes com indiferença os sinais de Abril e do Inverno.» «Camilo diz em 1864, nas “Vinte Horas de Liteira”: «o meu gabinete de trabalho, durante os meses esplêndidos do ano, é um contínuo começo de noute». Para ler ou escrever precisa das portas fechadas, além da odiosa pala verde. De maneira que a sala, enorme, afunilada ao alto por profundos tectos de maceira, com aquele lúgubre candeeiro de suspensão ao meio, tem uma densidade aflitiva. Aquele canapé Império fala-nos das visitas misteriosas de personagens expedidos há muito para os editores do Porto, e que agora voltam a Camilo com uma identidade civil -, ou aqueles que, como o cego de Landim, partem do cartão de visita para os domínios da ficção. Vêm vê-lo empalar as suas sombras, vêm provocar-lhe aquelas palavras supremas que ele precisa dizer aos sofás antes de as provar nos livros, aqueles azedumes comovidos e de repente cortados por uma diabólica gargalhada.» «[…] Lá fora bem podem cantar os passarinhos, chiar o carro minhoto ou cair um rápido orvalho em cima das cerejas bicais. Ali não há alegria. Ali, é aquele canapé com aquela visita, a meia dúzia de cadeiras austríacas, o piano fechado, e, quando nem Camilo nem o estranho têm já que dizer um ao outro, a sombra de Ana Plácido que entra. A voz da visita parece uma troça quando chama «Senhora Viscondessa» àquela mulher gorda e triste, que vai por trás da poltrona de Camilo direita ao candeeiro americano preparar a torcida ao lusco-fusco.» «Outras vezes não é Saint-Preux nenhum, mas algum amigo desinteressado e recente, como Freitas Fortuna, que foi padrinho daquele casamento serôdio celebrado de noite pelo Abade de Santo-Ildefonso, e que, desde os consolos da hora aziaga até ao jazigo emprestado, tudo facilitou. Outras vezes, ainda, é algum cónego letrado, como Alves Mendes ou Sena Freitas, que vem desabafar sobre Lisboa e a sua falta de vergonha e de vernáculo; ou um Tomás Ribeiro, inquieto para passar ao quintal e encher de inscrições imorredoiras a casca dos carvalhos cerquinhos que Camilo prefere para varapaus e boa sombra.» «Uns e outros enchem o crepúsculo daquele homem com a rara consolação das palavras gratuitas. Agora que não há Sebenta-Bolas-e-Bulas, nem Alexandre da Conceição para dar exercício àquela violência febril, fazer o gosto ao dedo no fel do tinteiro de ferro; agora que também não há lágrimas para desatar de olhos de meninas, 85 Vitorino Nemésio, de “Camilo”, in Ondas Médias. Citado na revista da Funação Gulbenkian. 77 nem ramos de plantas secas para lhes insinuar nos livros -, que venham ao menos aqueles conhecidos e amigos puxar pela língua ao velho quase cego, tomar a temperatura ao desespero daquela casa, acabar com os bilhetinhos de afronta que ele escreve à mulher ali ao lado, num requinte de maldade e de dor.» «[...] Em 1885 Camilo não pode mais. O pouco que ganha, gasta-o em andadas desesperadas, de Ceide ao Bom-Jesus, de Ceide ao Porto, do Porto à Póvoa, a ver se se livra daquele demónio que o possui, misto de frenesim e de remorso, cólera sem nome que ele aplaca palpando o estoque da bengala ou a coronha do revólver bull-dog debaixo do travesseiro. Lívida, Ana Plácido carrega o revólver de cápsulas inofensivas. Mas o estratagema falhou. Camilo é mestre em fecharias de clavinas e balas de todos os calibres. Faz pontaria ao tecto. Nem um chamusco... Percebe tudo. Saberá procurar a carga na hora própria.» «Entretanto, têm pena dele. Os ódios mais grados passaram; a pedra de escândalo do rapto estava sossegada, numa espécie de lodo quente. Já se podia fazer da ex-mulher do brasileiro uma viscondessa constitucional. Quando Barjona levou o decreto à assinatura do Rei, talvez D. Luís se lembrasse que seu irmão visitara um dia um preso, que o arquivo das cadeias da Relação do Porto registava «de estatura regular, rosto comprido, trigueiro, bexigoso». «Agora, em 1885, vinte e cinco anos depois, em «testemunho da minha real consideração e do apreço em que tenho o seu distinto merecimento literário», lá o fazia visconde... As Cortes perdoaram-lhe os direitos de mercê. Essas, faziam-no em «testemunho de preito nacional pelo formosíssimo talento do brilhante escritor». Só uma voz se ergueu contra. O Sr. Simões Ferreira entendia que a Câmara dos Deputados não fora feita para «dar distinções aos homens» que «não tenham concorrido para melhorar o estado moral e intelectual da sociedade», - e, a seu ver, Camilo estava abaixo da craveira.» «[...] Depois, é o que se sabe: cegueira irrevogável e aquele desespero horrível, enquanto a pobre senhora acompanhava à escada o último especialista que o viera desenganar.» «[...] Uma coroa de túlipas «em fundo de violetas de bosque e folhagem», com fitas roxas estreitas, e pretas de moiré largas (se O Comércio do Porto não mente), dizia só isto: PROFUNDA SAUDADE A SEU ESTREMECIDO AVÔ. - CAMILO E CAMILA.» «Que mais era preciso para Deus lhe perdoar?» 78 4. Jornal de Santo Thyrso86 Quando o Jornal de Santo Thyrso foi fundado, em Maio de 1882, Camilo Castelo Branco tinha 57 anos e estava definitivamente sedentário em S. Miguel de Ceide. Ao ler o semanário de 1999, verifiquei que teria de percorrer as páginas já perscrutadas pelo malogrado Manuel Abreu, sem convicção de que seria mais bafejado pela sorte do que aquele meu grande amigo da Trofa. Eu e o Manuel Abreu, em 1992, na tipografia do Jornal Agostinho Monteiro, Jorge Fontão, Serafim Moreira É lógico e evidente que não concordo com Manuel Abreu ao pretender transformar – “Estou a vê-lo, durante as suas constantes visitas e estadias em Santo Tirso, na roda de amigos – ao pretender transformar Santo Tirso de «terra de passagem» em «terra de tertúlia no Café Novo Suísso ou no Tirsense». Manuel Abreu perdeu-se por Alexandre Cabral e Joaquim Ferreira, em vez de ler Camilo, Alberto Pimentel, Ricardo Jorge. Afinal os Serões e a “zargunchada”87 só lhe apareceram na Póvoa e no 14.º e penúltimo lanço do folhetim! Romualdo Pinto dos Santos, num escrito de 6 de Janeiro de 1883 publicado no jornal, utiliza Camilo para acusar de plágio um candidato a letrado de nome Manuel Flores88. Este ataque devia ter motivações muito pessoais, pois o Flores acabou por mostrar alguma arte nas suas colaborações locais. “… e não indo mais longe leiam o artigo dele em que me intima a apontá-lo como plagiário e logo num dos primeiros parágrafos, confrontem-no com as «Noites de 86 Trata-se de um jornal nascido afecto ao Partido Progressista, portanto monárquico e conservador. Na folha de 18 de Maio de 1882 lê-se: “Pelas 11 horas da manhã já todo o vasto edifício se achava repleto de curiosos, sem distinção de partidos, cancro roedor das sociedades modernas” noticiando a tomada de posse do Mosteiro beneditino por parte do novo dono, o conde de S. Bento. 87 O dicionário diz que zargunchada é o mesmo que zagunchada, substantivo derivado de zaguncho, que significa «ferimento produzido com zaguncho; remoque, picuinha; censura.» É palavra de lei e tem até uma onomatopeia digna da intenção de Manuel Abreu! João de Araújo Correia prefere outra escrita: “Camilo, com a veia sarcástica sempre entumecida, lancetou-a, dizendo mal de si próprio. Mas é crível que tivesse em mira zaragunchar folhetinistas baratos.” 88 Manuel Flores, director literário do Álbum do Minho, assinou vários folhetins no Jornal de Santo Thyrso, recorrendo ao Cancioneiro Alegre para citar Camilo: «E Camilo, o imortal escritor, vem confirmar o que deixamos transcrito dizendo que a poesia sentimental acabou». 79 Insónia» de Camilo em que manda para o David da rua de Santo António que lhe aperte a retranca, etc. e aí tem o homem plagiário.” E 10 de Abril de 1883, é assim que o correspondente do Porto do Jornal de Santo Thyrso, Pio Paulo89, dá nota da publicação da polémica da sebenta: «– Editado pelo snr. Ernesto Chardron, apareceu à venda um folheto do snr. Camilo Castelo Branco, sob o título de – Notas à sebenta do dr. Avelino César Calisto. O snr. Calisto, em uma das suas prelecções na aula de Direito eclesiástico, esquecendo-se do lugar que ocupava, insultou altamente o eminente escritor, que como era seu dever, repeliu o insulto, demonstrando que o snr. dr. Calisto não ia muito longe em ciência, porque lhe criticara uma obra sem a entender. O que Camilo disse do marquez de Pombal no seu livro ultimamente publicado, deixou-o claramente demonstrado com documentos que transladou. Portanto, o snr. dr. Calisto, ou tem de negar a autenticidade de tais documentos, ou confessar que as principais obras imputadas ao Marquez de Pombal foram obra de outros homens, e que ele apenas copiara. O eminente publicista fecha o citado folheto com os seguintes períodos: “Afinal este doutor é mais um dos ignorantes da quadrilha formidável que me saiu quando eu já ia no fim da estrada, estropiado, amparado no bordão do caminheiro que vem de uma assaz trabalhosa peregrinação. Os celerados timbram em me não deixar morrer correctamente com o meu amolecimento de cérebro! “Se este assalto se desse no tempo em que eu, em vez de bordão de encosto, usava badine de goma elástica, não viria a público com esta cataplasma, um pouco emoliente, dos meus queixumes. Mas que o difamador não vá pensar, comodamente para a sua arrogância, que esta exposição antipholgistica (sic) é uma espécie de certidão de doença que lhe envio como debilitante à pujança do seu músculo. Estou às ordens do infame snr. dr. Calisto, a quem ofereço gratuitamente mais este documento entre muitos com que tenho desonrado a literatura e o país”. Todo o folheto é uma lição de mestre, e custa apenas 60 reis.» No Jornal de 10 de Maio de 1883 é anunciada a recepção de “A Cavalleria da Sebenta” – é um brilhante opúsculo devido à pena do nosso primeiro romancista o snr. Camilo Castelo Branco. A publicidade aos “Ratos” é antecedida com uma local sobre “Novas publicações – O incansável editor o snr. Ernesto Chardron90, do Porto, tem no prelo duas obras notáveis que devem merecer a atenção dos nossos literários, sendo uma Os Ratos da Inquisição, o poema inédito do judeu português António Serrão de Castro91, prefaciado por Camilo Castelo Branco e a outra a Musa Velha, colecção de poesias do snr. Francisco Palha.” 89 Joaquim Augusto Lima. Conhecido e laborioso editor portuense, nascido em França, em 1840, faleceu em Ermesinde em 29 de Junho de 1885. Henrique Marques, em “Os Editores de Camilo”, refere: «Um dia, porém, Camilo cansou-se de ver que o Chardron só aceitava a carne dos romances, deixando o osso dos estudos históricos para os outros editores, e rompeu com ele, o que se vê pelo trecho de uma carta particular por ele dirigida em 5 de Setembro de 1883 a Luís Augusto Palmeirim: “Rompi com ele (Chardron) as minhas relações comerciais. O homem tem feito importunas diligências para reatá-las; mas eu ofendi-me com a recusa de um livrinho histórico, tendo ele explorado há anos a minha incapacidade para negociar. Indignou-me que ele se quisesse dar o direito da escolha, impondo-me novelas realistas bem apimentadas.” O Chardron também lhe fazia algumas picardias financeiras: comprava a Camilo a “tanto por página” e depois apertava e cerrava o tipo para lhe pagar menos de metade dos cálculos dele. 90 91 Perseguido, preso e libertado com vida, cegou completamente em 1685, vindo a morrer indigente em data desconhecida, conforme revelou Alberto Pimentel Filho. 80 Anúncio de uma obra com prefácio de Camilo No Jornal de S. T. de 21 de Junho de 1883, anuncia-se – «Carga terceira – É o título dum novo folheto devido à pena do distinto escritor Camilo Castelo Branco, sobre a questão da Sebenta, editado pelo incansável editor o snr. Ernesto Chardron.» E surge a publicidade:92 QUESTÃO DA SEBENTA I CAMILO CASTELO BRANCO «Notas à Sebenta» – do dr. Avelino César Calisto, 1 folheto 60 reis. II e III «O snr. Camilo C. Branco e as suas notas à sebenta» – por Avelino César A. Calisto. «Duas palavras ao snr. Camilo C. Branco» – José Maria Rodrigues, 1 folheto 60 reis. IV CAMILO CASTELO BRANCO «Notas ao folheto do dr. Avelino C. Calisto», 1 folheto 100 reis. V CAMILO CASTELO BRANCO «A cavalaria da sebenta» – Resposta ao teólogo, 1 folheto 100 reis. VI «As evasivas do snr. Camilo C. Branco» – por José Maria Rodrigues, 1 folheto 100 reis. VII CAMILO CASTELO BRANCO «Segunda carga de cavalaria» – Réplica ao padre, 1 folheto grande 150 reis. VIII CAMILO CASTELO BRANCO «Carga terceira» – 1 folheto grande 150 reis. Toda a colecção… 680 reis. Na livraria de Ernesto Chardron – Porto “Espera-se ansiosamente a publicação do «Panorama Contemporâneo» de Trindade Coelho. Vem Trindade Coelho, com o seu Panorama Contemporâneo, tirar a academia da apatia em que estava imersa depois do desaparecimento da Porta Férrea e Evolução. O panorama deve ser um jornal digno de ombrear com os primeiros do país no seu género; 92 Este anúncio começou com os 5 primeiros capítulos, depois sete e finalmente o oitavo. 81 tem para o nobilitar e abrilhantar os primeiros literatos do país: Camilo Castelo Branco, Alexandre da Conceição, Guerra Junqueiro, Gervásio Lobato e muitos outros que honram a literatura portuguesa vêm sucessivamente abrilhantar as páginas do jornal académico e elevá-lo suficientemente para atrair e merecer a atenção do ilustrado público. Para sustentar e recomendar a academia conimbricense escudada, repito, com os nomes dos nossos melhores escritores, bastará. A Trindade Coelho os nossos sinceros parabéns.” À recepção da publicação: “O Panorama Contemporâneo – Recebemos o primeiro número desta esplêndida publicação quinzenal. De que é director o snr. Trindade Coelho, um dos nossos mais primorosos escritores. Na parte literária traz: - Ouverture, pelo snr. Trindade Coelho – Coimbra, pelo snr. Alexandre da Conceição – Madrigal, pelo snr. Guerra Junqueiro – Novas Colunas de Hércules, pelo snr. Luís Osório – Camilo Castelo Branco, carta deste ilustrado escritor – Hoene Wronshi, trecho inédito deste distinto matemático e Onomatologia portuguesa, pelo snr. J. Leite de Vasconcelos. Traz na parte artística uma magnífica vista de Coimbra. Publicar-se-á o 2.º número em 15 de Dezembro próximo (1883). Cada número será acompanhado de uma phototypia (sic) envernizada, sobre cartão, coberta a papel-seda, inalterável com o tempo… A fototipia é executada em França.” Camilo deixa de aparecer pelo editor Chardron, e surge de Lugan & Genelioux93 - A defesa dos livreiros sucessores de Ernesto Chardron : resposta á difamação do sr. Visconde de Correia Botelho. Porto, 1886.94 «O General Carlos Ribeiro» É este o título de uma excelente obra que acaba de editar o snr. Eduardo da Costa Santos, produção do fecundíssimo escritor e nosso primeiro romancista o snr. Camilo Castelo Branco.» «O novo livro do eminente romancista não é uma biografia árida do sábio geólogo; é uma narrativa, como diz o snr. visconde de Benalcanfor, polvilhada de sal, acidulada de verve, por onde perpassam recordações vivas…» Anúncio do “General” 93 Que lhe sucederam. Camilo Castelo Branco escreveu artigos laudatórios, uns assinados e outros anónimos aqui e no Brasil, do Dicionário de Fr. Domingos Vieira que fora rejeitado pelos leitores, para salvar da ruína o Chardron que estava em princípio de carreira e pensara dar um tiro num ouvido. Camilo considerou este trabalho “violento” e “repugnante”. 94 82 As destacadas notícias da morte do escritor prestadas pelo Jornal de Santo Thyrso, único existente no concelho à data, acompanham o encerramento deste opúsculo. Camilo, na hora da morte, deixou de ter em Santo Tirso uma terra de passagem. A sua imponente figura literária percorreu as grandiosas festas de Julho, perpassou o coração dos seus amigos e conhecidos da vila, ficando a pairar sobre o velho casario que, perpetuado pela saudável inércia, será sempre uma homenagem ao forçado das letras, picado das bexigas e do génio, prisioneiro da clausura de Ceide com as algemas da dor. O Jornal de 4 de Setembro de 1884 noticia o «Falecimento – Depois de acres e dolorosos sofrimentos faleceu sábado pelas 6 horas da manhã, na quinta das Quintãs, freguesia de Requião, D. Maria Isabel da Costa Macedo Castelo Branco, esposa do nosso amigo Nuno Castelo Branco, filho do festejado e erudito romancista Camilo Castelo Branco. Ao nosso amigo os sentimentos sinceros da nossa condolência.» Em 11 de Dezembro de 1884 Camilo é publicitado como sendo o autor duma carta-prefácio: «O Padre Henrique – é um drama original em três actos do talentoso académico Carlos Braga acompanhado duma carta-prefácio do notabilíssimo escritor Camilo Castelo Branco.» No início de 1885 publica-se o resultado dum «Plebiscito Literário – Realizou-se no dia 17 de Dezembro último, em Coimbra, na sala da redacção do Imparcial o escrutínio dos votos sobre a pergunta: - Quais são os três escritores portugueses actualmente mais notáveis?» «Os que obtiveram maior número de votos foram os snrs. Camilo Castelo Branco, Manuel Pinheiro Chagas e José Maria Latino Coelho, sendo por isso proclamados os três escritores portugueses actualmente mais notáveis.» «A mesa resolveu fazer também menção honrosa dos três escritores imediatamente votados, os snrs. José Maria Eça de Queirós, José Duarte Ramalho Ortigão e Joaquim Teófilo Braga.» «O nosso ilustrado colega o Imparcial de Coimbra publicou no dia de Natal um número comemorativo daquele plebiscito.» Hotel tirsense do sr. Correia onde pernoitou Camilo 83 Em 5 de Fevereiro de 1885 o jornal anuncia a reedição de uma grande obra traduzida por Camilo Castelo Branco: «Dicionário Universal de Educação e Ensino – O incansável e arrojado editor portuense snr. Ernesto Chradron vai publicar a segunda edição desta importantíssima obra de incontestável merecimento, sendo esta nova edição consideravelmente aumentada com um grande número de artigos sobre pedagogia, coordenados pelo distinto professor do liceu do Porto o snr. José Nicolau Raposo Botelho.» E, do prospecto, transcreve: «Valiosa cooperação têm também vindo prestar a esta santa cruzada do ensino, já elucidando a opinião, já auxiliando os professores e os pais na sua espinhosa missão, o grande número de livros que sobre tão momentoso assunto se têm publicado, e entre os quais certamente ocupa um lugar distinto o Dicionário de educação de ensino, magnificamente trasladado a português e ampliado pelo distinto e considerado escritor Camilo Castelo Branco.» Em Junho de 1885, o Jornal de Santo Thyrso publica uma promoção que Camilo faz ao Dicionário de Francês: «Nas quarenta e oito páginas que vi do Grande Dicionário francês-português, organizado pelo esclarecido professor, o snr. Domingos de Azevedo, e revisto pelo snr. Luís Filipe Leite – reputação desde muito vantajosamente constituída no magistério e na imprensa – encontrei reunidos os predicados filológicos que aproximam da máxima perfeição as obras desta qualidade. Urgia tanto esta reforma no vocabulário deste idioma tão nosso familiar, que mal se explica o desleixo que até agora manteve, no uso dos alunos de francês, dicionários imperfeitíssimos, servilmente copiados uns dos outros, acusando todos a mesma deficiência de significados e os mesmos defeitos orgânicos das primitivas redacções. Progrediram as ciências e as artes e a riqueza linguística em todos os ramos da literatura: pois os dicionários entre nós pararam na linha que, interpostos trinta anos, separava o passado do presente. Quem necessitava traduzir livros modernos, inçados de novos termos facultativos e neologismos ainda desconhecidos há trinta anos, recorria a vocabulários que, quando muito, valiam bastantemente para interpretar o Telémaco e as antigas selectas formadas de fáceis trechos de prosa e verso. Era deplorável a pobreza terminológica dessas obras elementares e iniciais para quem transpunha os rudimentos da versão literal. Os examinandos passavam aos cursos superiores; e, para perceberem compêndios franceses, mormente em ciências naturais, careciam de recorrer à explicação verbal dos professores, que nem sempre com a sua duvidosa autoridade podiam suprir a falta de um dicionário elaborado inteligentemente com a variadíssima instrução que reclamam obras desta natureza. Os mais estudiosos precisavam de consultar vocabulários franceses como o de Bénard, para inferirem da sinonímia o significado mais convizinho da palavra que encontravam na obra didáctica e até na brochura meramente recreativa. O largo período em que se dilatou semelhante inconveniente pode contar-se desde os indigentes dicionários de Roquete e Fonseca até à publicação do Grande Dicionário Contemporâneo, do snr. Domingos de Azevedo, cuja edição está correndo por conta do snr. António Maria Pereira95 – um editor que prima na selecção dos livros a que tem aplicado a sua inteligente actividade. Da competência e aptidão do snr. Domingos de 95 António Maria Pereira, pai, morreu em 1880, com 56 anos, deixando um filho homónimo à frente da casa editora contando apenas 23 anos. Este filho do editor faleceu também prematuramente aos 41 anos, em 1898. Camilo Castelo Branco, numa carta ao Visconde de Ouguella, vangloriou-se de que tinha em Lisboa um editor que lhe pagava o volume a 144$000 reis. Por exclusão de partes, deveria ser António Maria Pereira, que começou a publicar Camilo em 1861 com o livro “Abençoadas Lágrimas”. Estas notas foram colhidas de Os Editores de Camilo, por Henrique Marques, Lisboa, 1925. 84 Azevedo já as aulas possuem, em 2.ª edição, O Ollendorff aperfeiçoado, a Gramática nacional e as Lições práticas de conversação francesa, obras encarecidas por professores de incontestável proficiência na apreciação. Os créditos adquiridos no Método e na Gramática, robustece-os agora a particularização com que o compilador do Dicionário atende a não considerar estranhos ao seu trabalho de reconstrução os vocábulos menos triviais da tecnologia, a onomástica descurada pelos antigos lexicógrafos, em uns por impaciência nas fadigas desta espécie árdua, em outros por supina ignorância. Ora, em livro elementar algum é tão nociva a inaptidão como nos dicionários.» «Nas folhas que examinei depararam-se-me artigos com tanto desenvolvimento gramatical comparativo entre as duas línguas, que o aluno medianamente perspicaz, ficará desde logo habilitado para remover estorvos da tradução, e de pronto adaptar aos temas os idiotismos numerosos da língua francesa. Na especialidade prosódica, nas desinências, nos valores silábicos e na acentuação, mal pode exigir-se maior esmero; nem com a simples analogia gráfica dos sons pode ser-se mais claro e perceptível.» «Portanto, o louvor dispensado a esta dispendiosa empresa do ilustrado editor é ao mesmo tempo uma boa nova com que devem congratular-se os que até aqui reputavam inúteis nas suas estantes os dicionários por onde passavam superficialmente quando estudaram a língua francesa. O snr. Domingos de Azevedo, empenhado em uma tarefa cujas dificuldades sabem avaliar todos os que estudam, é um benemérito das letras, e dessa benemerência não é pequena a parte que compete ao snr. António Maria Pereira.» «Camilo Castelo Branco» «Camilo Castelo Branco - Numa carta enviada ao snr. Tomás Ribeiro e publicadas (sic) nas Repúblicas96, diz o eminente escritor:» «Se eu viver em Novembro hei-de ver se posso ser apresentado por ti à ciência ou à caridade de alguns médicos de Lisboa. O que eu queria, meu querido amigo, era que me dessem a vista que eu tinha há 4 meses, para poder trabalhar até morrer. Não me podia ser infligida maior tortura que isto de não poder escrever sem grande mortificação.» Camilo teve uma longa troca de correspondência com o poeta e político Tomás Ribeiro. Cento e doze cartas. Por ironia do destino, enquanto Camilo vilipendiava a instrução e mais as escolas do conde de S. Bento, uma menina tirsense chamada Zulmira Monteiro Teles da Cunha, brindava o conde, na inauguração da escola, com um poema que, a certo ponto, dizia: «As flores d’alma que Tomás Ribeiro Nos diz em frases d’imortal magia, Serem mais belas do que as próprias rosas, Terem mais graça, terem mais poesia.» No Jornal de Santo Thyrso de 23 de Julho de 85: «Visconde de Correia Botelho - Este titular e eminente escritor resolveu fixar nesta vila, por algum tempo, a sua residência, a fim de ver se encontra aqui alívio para os seus padecimentos.» 96 Revista semanal de que Camilo Castelo Branco foi director literário. 85 «O nosso primeiro romancista está no hotel do snr. José Correia da Silva, acompanhado de seu filho o nosso estimável amigo e colaborador snr. Nuno Plácido Castelo Branco.» «Desejamos a s. ex.ª completo restabelecimento.» No Jornal de 23 de Janeiro de 1886 é anunciado o Resumo do Catecismo de Perseverança pelo Abade J. Gaume, traduzido por J. S. da Silva Ferraz e aprovado em 1868 por S.ª Ex.ª Rev.ma Bispo da Diocese, com uma análise por Camilo Castelo Branco, ornado de quatro gravuras em aço, Terceira Edição Correcta, Porto, Livraria Cruz Coutinho Editora. Da mesma editora sai o jornal em publicitação de “O Génio do Cristianismo”, tradução de Camilo Castelo Branco e revisão de Augusto Soromenho, na sua quarta edição, em 28 de Dezembro de 1888. Anúncio do “Génio do Cristianismo” Em 11-02-1886 o semanário ainda arrisca um anúncio destacado dos Serões de S. Miguel de Ceide, promovendo outra vez a publicação de um volume no dia 4 de cada mês, anunciando no dia 25 do mesmo mês a saída do 3.º volume e republicando a publicidade. Como é natural, José Bento Correia desconhecia o teor do 4.º volume e o que o esperava. Verifica-se que, apesar da contenda com os sucessores do Chardron e do efeito incómodo da zargunchada, o anúncio ao Dicionário Universal da Educação e Ensino mantém-se durante 1886 e 1887. 86 Anúncio dos “Serões” Em 1 de Abril de 1886 o director do jornal, tendo conhecimento da contundente reverberação às escolas e ao conde, publica duas notícias na primeira página e repete-as, no dia 15 do mesmo mês, em parangonas. Noticiário Geral – A Mais Estúpida Comarca do Minho - «Vila Nova de Famalicão é a mais estúpida comarca da província do Minho, depois do Suajo.» Tal classificação pertence ao notável escritor Camilo Castelo Branco (Serões de S. Miguel de Ceide, número 4.º, página 30.) E, no mesmo local, tipo e destaque, a mordacidade tirsense e jornalística: Rua de Camilo Castelo Branco – A câmara municipal de Vila Nova de Famalicão deliberou, numa das suas últimas sessões, que à nova rua marginal dos paços do concelho se desse o nome de Camilo Castelo Branco. No mesmo dia o Jornal publicita97: Camilo Castelo Branco – Esboço de Crítica – Othello O Mouro de Veneza de William Shakespear, Tragédia em cinco actos traduzida para português por D. Luís de Bragança. A 13 de Maio de 1886 as “notícias” da «Bibliografia» já não mencionam o nome de Camilo Castelo Branco em qualquer das obras publicitadas. Talvez algum respeito humano por parte da redacção. No número 2 do Folhetim “A Suicida", da autoria de Jusenan Sulup, Camilo é metido ao barulho: «Constantino d’Andrade era… um complexo de podridões com capa de verniz.» «Tinha erudição de certidões falsas e publicações de trechos desconexos extraídos das obras de Karr, Sand, Camilo, Ariosto, Favre, Arnoud, etc.» E, no nº 8, continua: «O que conseguiu elevar-se alguma coisa foi em 1660 o meu colega boticário Serrão de Castro, mais de meio cristão-novo, segundo explica o snr. Camilo Castelo Branco, brasonado com nove arruelas, presidente da Academia dos Singulares e autor dos Ratos da Inquisição». Só em Novembro de 1886, o Jornal de Santo Thyrso volta a publicitar Camilo: «Camilo Castelo Branco, A Difamação dos Livreiros sucessores de Ernesto Chardron (opúsculo a propósito do arresto feito pela firma Lugan & Genelioux, sucessores de Ernesto Chardron, à edição do livro Boémia do Espírito editado por Eduardo da Costa Santos). 97 A propriedade da crítica literária de Otelo foi vendida por 200$000 rs. 87 Nota: este opúsculo sai do prelo pela Civilização. Propositadamente ou não, o Jornal publica, geminado com o anúncio acima, o reclamo à parte contrária com uma gralha na palavra “Defesa”: «Lugan & Genelioux, A Deveza dos Livreiros, sucessores de Ernesto Chardron. Resposta à “Difamação” do Snr. Visconde de Correia Botelho». O anúncio declara que o produto líquido do opúsculo é aplicado a auxiliar as despesas da Creche de S, Vicente de Paulo. Esta coligação de “linguados” é precedida de um editorial não assinado e publicado em 10 de Dezembro de 1886, contra o quarto volume dos Serões: «O aumento e propagação do ensino será uma causa de mau estar social? «No excelente artigo que em seguida transcrevemos do nosso estimável colega Diário de Notícias, responde-se a esta pergunta, e compara-se com o excêntrico romancista russo o snr. Camilo Castelo Branco, pelo facto deste notável escritor verberar injustamente o procedimento do benemérito Conde de S. Bento por dotar esta vila com esplêndidas casas escolares.» «Um romancista russo de nomeada europeia empreendeu em algumas das suas obras uma cruzada contra o estudo, e o que é triste é que a sua paradoxal propaganda tem feito prosélitos na Rússia, e muitos chefes de família deixam de mandar seus filhos à escola ou, se lhes dão uma educação rudimentaríssima, dedicam-nos desde muito cedo a profissões laboriosas. Será única esta opinião ou terá mais defensores tão singular ideia?» «O paradoxo namora e tenta as mais brilhantes inteligências, e por isso não admira que outro romancista, de menos nomeada, é certo, mas não de inferior talento, haja advogado os mesmos princípios. Em dois pontos extremos da Europa aparecem os dois defensores da mesma doutrina. No extremo norte e oriental é o romancista russo; no extremo ocidental é Camilo Castelo Branco, que ainda há pouco, nos Serões de S. Miguel de Ceide, como que blasfemava da obra do conde de S. Bento, que tão generosamente dotara a sua terra natal, Santo Tirso, com magníficas casas para escolas.» «E não é só nos tempos de agora que esta tese, que parece tão fora do comum e destituída de senso, tem sido apresentada e debatida. No tempo dos Filipes, houve o pensamento de reduzir algumas das escolas superiores que então funcionavam em Portugal, e foi um jesuíta – quem o havia de dizer? – que combateu o projecto e destruiu os argumentos que em favor dele se invocavam. Mais tarde, o marquês do Pombal, o audacioso reformador, também julgava que não se deviam admitir à matrícula da universidade mais de 1.200 estudantes, porque os 4.000 que até então se matriculavam seriam prejudiciais ao reino, faltando nele homens para as outras profissões, não podendo haver lugar para todos, ficando com a sua ociosidade fazendo perturbações sobre os seus compatriotas.» «Parecerá à primeira vista absurdo e atentatório da liberdade o pensamento do marquês do Pombal, mas compreende-se quais eram os inconvenientes que ele procurava evitar, inconvenientes que surgem hoje nos países mais adiantados, e que têm originado uma espécie de proletariado do saber. Todos procuram, com avidez natural, alcançar uma carta de curso superior, mas daí vem uma concorrência fatal, que obriga a chusma dos letrados a procurarem uma carreira muitas vezes afrontosa e degradante para os seus títulos científicos.» «Mas porque o ensino superior, demasiado difundido, pode acarretar alguns inconvenientes, havemos de considerar a ciência, como a maçã da Bíblia, um fruto 88 proibido?... havemos de fazer sinceramente, como o romancista russo, a apologia da ignorância e a propaganda contra o ensino?» «Certamente que não. As nações mais civilizadas não se arrependeram ainda dos esforços que têm empregado para o seu desenvolvimento literário e científico e compreendem perfeitamente que na luta da existência não podem afrouxar nos seus esforços para sustentarem o nível do progresso. A Rússia está muito mais atrasada que a Inglaterra e ninguém a considerará mais feliz que a sua rival. A Suiça, apesar da pequenez do seu território, tem uma grande superioridade moral sobre o império moscovita e a Suiça pode apontar a dedo os seus súbditos que sejam analfabetos.» «É todavia incontestável que o ensino precisa de ser regulado e adequado às necessidades de um povo. Não bastará ensinar; é preciso também educar; é necessário sobretudo colocar nas mãos da criança que sai da escola o fio que a encaminhe nos labirintos da vida. É indispensável que a educação não seja puramente especulativa, mas que tenha um lado prático, útil, experimental. Actualmente todos os povos o compreendem assim e é por isso que a escola profissional está sendo o tipo escolhido de preferência por todos os educadores modernos.» «A ignorância, em todo o caso, não pode ser um princípio de felicidade, porque a ignorância não só não tira o conhecimento e a prática do mal, mas pode tirar, o que é muito pior, o conhecimento e a prática do bem.»98 Em 16 de Dezembro do mesmo ano, o editor do Jornal de Santo Thyrso acaba por tomar partido no caso “Boémia do Espírito”, seja por causa da sua vida económica, ou por causa da ofensa à instrução e ao conde. «A Defesa dos Livreiros – Recebemos dos snrs. Lugan & Genelioux, sucessores do falecido Ernesto Chardron, um opúsculo de 74 páginas, que contém a resposta à “difamação” do snr. Visconde Correia Botelho. Traz primeiramente as cartas deste notável escritor com relação à questão intentada por causa da obra Boémia do Espírito, e depois algumas peças do processo. Quem ler despreocupada e desapaixonadamente este folheto, reconhece que a razão está da parte daqueles livreiros, cujos direitos foram prejudicados. O produto deste folheto será aplicado a auxiliar as despesas da Creche de S. Vicente de Paulo99.» Em 17 de Março de 1887 é saldada toda a obra de Camilo Castelo Branco publicada pelo Chradron, desaforo, retaliação e recurso a que se alia o semanário tirsense. Aos preços de capa é feito um desconto que chega a ultrapassar 50% e, quem levar tudo por 600 reis, tem um desconto cumulativo de 35%. «Livraria Chardron – A reprodução desleal, feita no livro Boémia de Espírito editado pelo snr. Costa Santos, das obras abaixo mencionadas, prejudicando a sua venda obriga esta casa editora e proprietária a fazer uma grande redução nos preços das mesmas. Grand Rabais – Camilo Castelo Branco – Carta de Guia de Casados, por D. Francisco M. de Melo, (Prefácio); A Espada d’Alexandre; Luís de Camões, Notas 98 Curiosamente o Jirnal de Santo Thyrso, em 11-08-1904, utiliza os mesmos argumentos de Camilo para reverberar um movimento, com contornos políticos, destinado a dotar Santo Tirso de um Liceu. O que eles (regeneradores) querem “é porem-se em foco, e arranjarem esconderijos onde possam anichar comodamente a afilhadagem”. O liceu em Santo Tirso, segundo o semanário progressiata, será uma calamidade e, mais que isso, uma extorção! 99 Camilo responde a esta benemerência com “o produto líquido deste opúsculo é aplicado a auxiliar as despesas do ano lectivo de um estudante pobre que frequenta a Universidade de Coimbra.” 89 Biográficas; Senhora Rattazzi; Questão da Sebenta (aliás Bolas e Bulas); Notas à Sebenta; Notas ao Folheto; A Cavalaria da Sebenta; Segunda Carga de Cavalria; Carga Terceira. Todas estas obras firam vendidas em diversas épocas pelo autor ao falecido Ernesto Chradron.» Em 14 de Abril de 1886, o Jornal de Santo Thyrso anuncia a conclusão da publicação do Dicionário Universal de Educação e Ensino, no seu terceiro volume, não dispensando, desta vez de mencionar que o ampliou Camilo. Com a publicação da quarta parte dos Serões, o Jornal de Santo Thyrso passou a evitar referências a Camilo Castelo Branco, denotando o próprio afastamento do escritor em relação à sua bem referenciada vila, onde, em 3 de Julho de 1887, era inaugurado um novo Hotel do Ave, propriedade de Francisco Bento Correia e localizado na praça Conde de S. Bento (actual parque D. Maria II). O Jornal, após o saldo de obras dos sucessores do Chardron, não voltou a referir o notável escritor; em contrapartida, passou a não haver semana que não fossem noticiadas benemerências do conde, algumas de pouco interesse jornalístico e social, como foi o caso de um texugo que o conde ofereceu ao Palácio de Cristal. Em 28 de Junho de 1888, continuando José Bento Correia um amuo compreensível para com aquele a quem tantas vezes chamou «notável escritor», o Jornal de Santo Thyrso publicou um Folhetim em sete etapas denominado Santo Thyrso Visto de Relance da autoria de Theotonio Gonçalves. Justificando o título, o autor invoca Camilo: «Não é parodiar os escritos da célebre Rattazi, nem tão pouco avolumar factos assim a modos de historiador.»100 Começa logo o primeiro parágrafo com falha de sintaxe que atribuiremos a gralha tipográfica. «Para aquilo, temos nós Camilo Castelo Branco, que se encarregará se quiser de lhe chegar a roupa ao pelo.» Este silêncio quase sepulcral do Jornal acerca do escritor, que duraria do número dos “Serões” até à sua morte (e muito depois), foi entrecortado por pequenas notícias bibliográficas como a do dia 23-2-1888: Bibliografia – Recebemos e muito agradecemos as seguintes publicações: «Perfil de Camilo Castelo Branco», pelo snr. padre Sena Freitas. No jornal de 9 de Agosto de 1888 ficamos a saber que se estava publicando em fascículos uma tradução feita por Camilo Castelo Branco da obra de Octávio Fenillet «Romance de um Rapaz Pobre». Nestes tempos também abrandaram as benemerências do conde – embora continuasse muito juiz – e a sua banda deixou de tocar. O titular encontrava-se muito idoso e frequentemente doente, às portas da morte mesmo, como aconteceu em Setembro de 1889. 100 A polémica de Camilo Castelo Branco com a madame Rattazzi ocorrera já há vários anos, em 1880. 90 E, até ao suicídio, o Jornal de Sento Thyrso, não mais se referiu ao notável escritor. Nada. José Bento Correia, ocupado com a morte do rei D. Luís, com a fuga do Brasil do imperador e posterior proclamação da república, e com o ultimato inglês do mapa-corde-rosa101, estava a lançar-se na actividade livreira, publicando uma obra da sua autoria, “portátil e popular” intitulada «Manual do Cidadão Português». 102 Estava também empenhadíssimo numa obra em instalação, cujos estatutos elaborara, chamada Monte Pio Tirsense, de cuja direcção foi vogal fundador e cuja tesouraria funcionou na tipografia do jornal. Há, no entanto, curiosas coincidências. Em Junho de 1886 o Jornal publica um folhetim intitulado “A Suicida”, da autoria de Jusenan Sulup. Em Julho de 1889, publica-se um folhetim, da autoria de E. Soares, intitulado “Como Ela o Amava”. Em Maio de 1894 publica, em três partes, um conto em Bragadas intitulado “História de Uma Porta”. Ora, na obra de Camilo “Noites de Lamego”103, o capítulo intitulado “A Formosa das Violetas” chamara-se antes “Suicida”, e existe nessa obra um capítulo intitulado “Como Ela o Amava” e outro “História de Uma Porta104”. Será pura coincidência? O Jornal de Santo Thyrso não refreou exageros, nem aos seus colaboradores, na promoção espiritual do brasileiro Manuel Ribeiro. Um A. J. F. C. foi ao exagero de o querer encampar em vida nos hagiógrafos: «E Deus, sendo justo, não o poderá subtrair ao gozo perene da sua eterna beatitude.» O Jornal de Santo Thyrso deve ter recebido tantas ofertas de livros em pagamento das publicidades inseridas, que acabou por criar uma livraria. O Conde de S. Bento haveria de acabar por morrer. Em 26 de Março de 1893. Nessa data, de imponentes cerimónias fúnebres, ainda houve um jornal – o Correio da Manhã – que foi desencantar Camilo para o reverberar: «O Grande Camilo, que em tantos assuntos e com tantos homens fora injusto, não por falta de alcance ou dureza de coração, mas por um mau humor crónico que tantas razões explicavam, Camilo escreveu sobre o Conde de S. Bento uma página que teria rasgado se a tivesse lido noutra hora.» O Jornal de Santo Thyrso foi retomando a saudosa referência a Camilo, com o decurso paulatino dos anos. Em Janeiro de 1895 anuncia a publicação de peças genuínas no jornal de Viana do Castelo «Aurora do Lima», informando que “Camilo foi um dos redactores da «Aurora do Lima», e viveu em Viana do Castelo durante muito tempo.” O director do Jornal de Santo Thyrso, com veia jornalística, nunca foi um literato. Em Maio de 1895 publicou «Romarias do Minho», Em Junho, o poema “Perdida” e “Vem” do «Ao Anoitecer da Vida», e noticia a homenagem prestada a Camilo Castelo Branco pela «Nova Alvorada», F.J. Patrício recorda saudoso cenas da Póvoa; noticia, em Agosto de 95, a publicação de um novo semanário chamado “O Leme”, dirigido por Nuno Castelo Branco. 101 E com a gravidez da esposa, dum filho nosso amigo, Joaquim Bento Correia, que nasceu em 26 de Setembro de 1890. José bento Correia casara com D. Emília Júlia Carneiro em 8 de Novembro de 1888. 102 Mais tarde publicou, “própria para dar como prémio ou brinde às crianças”, um «Escrínio de Jóias Literárias Coligidas da Literatura Portuguesa”. 103 Escrito em 1863. 104 Esta “História de Uma Porta” é publicada no Jornal de Santo Thyrso com os dois erros (de imprensa?) apontados pelo Dr. Araújo Correia: “gabada” em vez de “gabelada” e “sacola” em vez de “sachola”. 91 Em Setembro de 1895, o Jornal publica a notícia da morte da viscondessa de Correia Botelho, Ana Plácido. Teotónio Gonçalves, escrevendo de Landim, fornece os mais distintos traços do carácter da companheira do génio. Em 1896 publica recortes de trechos camilianos em «Camilo Castelo Branco – Pensamentos Vários». Publica um artigo de Camilo Castelo Branco, na secção «Religião e Ciência», intitulado “Assunção de Nossa Senhora”. O vereador da Câmara de Famalicão, Marques de Abreu, sugere ao município a compra da casa de Ceide sendo notícia em 20 de Agosto de 1896, com elevados aplausos. Publicou, a título de homenagem ao grande escritor, célebres folhetins: “O Mosteiro de Leça” em quatro capítulos, e “A Cruz do Outeiro”, e “Outro Casamento” em 1898. Datado de Ceide em 29 de Junho de 1902 e dedicado “À memória da minha querida avó Ana Plácido”, o Jornal de Santo Thyrso de 3 de Julho do mesmo ano publica um poema de Flora Castelo Branco, Saudade, iniciando assim uma colaboração que durou alguns meses. Flora C. Branco dedica um poema a Maria Henriqueta Pimentel e desabafa, mais tarde, num soneto, o sofrimento em que vive: O viver para mim já me enfastia, Passarei os meus dias só chorando, Até vir o repouso! a campa fria!... Nesta ocasião, chega inopinadamente a Santo Tirso o escritor e camilianista Alberto Pimentel e família, acomodando-se no Hotel Caroço. Flora, acompanhada da sua mãe, vem a Santo Tirso visitar Pimentel em 2 de Julho de 1902. Em Agosto de 1902 o Jornal de Santo Thyrso anuncia que a Parceria António Maria Pereira publicava uma Edição Popular das obras de Camilo Castelo Branco, vendidas também na Livraria e Papelaria Thyrsense de José Bento Correia & C.ª, “Um Volume por Mês”. Em 6 de Julho de 1905, o jornal tirsense, a completar 23 anos, publica O Alma Negra, na sua secção de Literatura da primeira página. Para se fazer uma ideia da consideração que o Jornal de Santo Thyrso tinha por Alberto Pimentel, basta referir que o semanário publicou a imagem do autor na segunda foto desde sempre publicada, em 14-08-1902, apenas tendo sido antecedido pela foto da imagem de N. S. da Assunção de Afonseca Lapa, que o jornal publicara em 15-08-1901. 92 5. Semana Tirsense «Uma anedota de Camilo Castelo Branco Camilo, a quem saudades do passado e mórbidas necessidades de isolamento levavam por vezes a visitas contemplativas ao Bom Jesus do Monte, uma vez que aí se encontrava, condescendeu em descer uma noite com uns amigos à cidade e com eles abancar à mesa dum dos famosos botequins da Arcada, que, nesse tempo, era frequentada pela melhor sociedade de Braga. O grande romancista, cavaqueador inexcedível nas suas horas de bom humor, a todos prendia pela sua fulgurante verve, e atingia as culminâncias do espírito, quando notou que, entre os assistentes, um caíra “em profunda meditação”, debruçado sobre um cálice de cana que jazia na sua frente como que esquecido. De olhos baixos, fronte pendida, as mãos cruzadas beatificamente sobre o peito, despertou-o Camilo do seu sonho, chamando-o à realidade das coisas, e querendo saber por onde andava o seu espírito errante. - Pensava agora – esclarece o pensativo e devoto bracarense com um suspiro e uma grande unção na voz – pensava na sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo! Camilo reprimiu o riso e respondeu de seguida: - Efectivamente tem o meu amigo razão para essas místicas lucubrações, porque tem diante dos olhos os emblemas da Paixão: o cálice da amargura, a cana, a esponja, que é você, e a cruz que nós levamos a aturá-lo.»105 105 Dedicou-se há muitos anos (em 1883) um jornalista a saber do paradeiro dos símbolos da Paixão: a cruz está em Roma, na Basílica de Santa Cruz de Jerusalém; a coroa de espinhos está em Paris, mas sem espinhos que estão espalhados pelas igrejas; são muitas as igrejas que se dizem possuidoras de verdadeiros cravos; a esponja está em Roma na igreja de S. João de Latrão; a lança, na basílica do Vaticano; o sudário, na catedral de Turim; a santa túnica, na catedral de Treves; a toalha na capela de Aix-la-Chapelle, onde se encontram também o cinto de couro, a vara e a coluna. 93 6. Concelho de Santo Tirso – Boletim Cultural Excerto de um texto de Mário Faria Carneiro Pacheco: «Conservam-se na memória dolorida da família – hoje representada pelo proprietário da Casa de Agrela, Senhor Augusto Carneiro Pacheco – pormenores marcados da tragédia e dos desacatos cometidos. Nada consola a maneira bárbara como o esperançoso e mal-aventurado moço foi encontrar afrontosa morte dentro da própria residência, nos braços amoráveis da mãe, que a soldadesca não atendeu aos seus aflitivos rogos. O assassinado era estudante de Coimbra, em cuja Universidade frequentou os três anos de Filosofia em 1838, 1839 e 40. Matemática em 1839-40; fez acto de Medicina em 23-05-42. Um alarmante padecimento pulmonar forçou-o a suspender os brilhantes estudos para no carinho e na abundância da Casa Paterna retemperar a saúde e prosseguir na auspiciosa carreira escolar. Mas não foi possível realizar o sonho, tão brutalmente roído. Em 3 de Junho de 1847 entraram tardiamente no Porto os espanhóis do general Concha, a 24 do mesmo mês assinava-se a Convenção do Gramido, dissolveu-se a Junta e voltou por algum tempo a paz. Não encontramos nas actas da Câmara da época qualquer referência aos factos, mas a páginas 268 de “A Patuleia”, publicação da Câmara do Porto de 1919, pode verse o ofício de 1 de Novembro de 1846 do Administrador de Santo Tirso ao Governador Civil do Porto, dando-lhe parte do acontecimento. Há exagero quanto ao número de soldados mortos das tropas de Cazal, que foi só um, como se vê do registo de óbito, mas é exacto o número de pessoas mortas em Agrela pelos chamados “Rebeldes”, que foram sete. Narra o dito ofício que apenas se conheceu em Santo Tirso a notícia se mandou tocar os sinos a rebate e armar homens de machados para cortar a ponte. Protocolarmente oficiou-se para o julgado de Negrelos a recomendar a defesa das passagens das pontes. Outras medidas foram postas em prática para obstar a marcha das tropas de Cazal, como a defesa da ponde de Santana até à Barca da Trofa, competentemente guarnecidas com gente armada. Camilo alude também aos matadores da Agrela, Braga, etc., em “Maria da Fonte” e o jornal de Passos (sic) de Ferreira, n.º 11 do ano V publica o revoltante acontecimento.»106 Na secção “Lutuosa” do Boletim Cultural da Câmara Municipal de Santo Tirso, Camilo Castelo Branco é referido: Jayme Pereira de Castro de Abreu de Sampayo – Na sua casa de Barrimau, na freguesia de S. Miguel da Lama, concelho de Santo Tirso, faleceu em 16 de Dezembro de 1958, com a idade de 57 anos, o Sr. Jayme Pereira de Castro de Abreu de Sampayo, representante de uma das mais distintas e antigas famílias do concelho, tantas vezes mencionada nos romances de Camilo Castelo Branco. Monárquico, sempre fiel às suas convicções foi um homem de carácter. Poeta de mérito foi distinguido com um prémio nos Jogos Florais Luso-Espanhóis, realizados em Lisboa, em 1937. Foi também um 106 Ver o capítulo referente à obra de Camilo Castelo Branco “Maria da Fonte”. 94 distinto colaborador de vários jornais e do «O Concelho de Santo Tirso - Boletim Cultural». A respeito das menções de Camilo aos titulares da Casa de Barrimau, essas já estão plasmadas em anteriores citações. 95 7. As polémicas A vila de Santo Tirso não é envolvida nas inúmeras controvérsias do notável escritor de S. Miguel de Ceide. Vem à liça o mosteiro de Santo Tirso, na questão da sebenta com o dr. Calisto, mas em documento do tempo do rei D. Manuel I!107 «Este incidente, por parte de D. Manuel, não foi uma impugnação briosa e digna de outros actos posteriores: foi meramente um despeito de família ferida nos seus interesses. Pedia, pelo menos, o grande rei que D. Jorge da Costa nomeasse coadjutor à vontade dele, para assim arrancar a mitra das garras do santo padre; mas o arcebispo respondia que não, que se sentia com força e saúde para administrar doze arcebispados. Afinal, o sucessor de S. Pedro prometeu a D. Manuel que, por morte do decrépito cardeal, proveria no arcebispado quem ele quisesse; - mera condescendência que virtualmente denegava reconhecimento do direito de padroado. O cardeal, porém, teimou em viver até aos 102 anos, e renunciou, quando quis, em um sobrinho, reservando 4.000 cruzados anuais. Até aqui D. Manuel procedeu humilde e miseravelmente. Os actos decorosos do seu governo, as nobres resistências hostis ao Vaticano, à mistura com muita hipocrisia, desconhece-as o Sr. Doutor Calisto, quando o reputa extremado na submissão a Roma. Logo conversaremos a este respeito. Vejamos agora umas miudezas que o pretor [deve ler-se prelector - A. C.] descurou levianamente. O catedrático Sr. Doutor Calisto denomina bispo portuense o sobrinho de Alexandre VI. Ora, o cardeal D. Jorge da Costa foi investido no bispado portuense e de Santa Rufina no pontificado de Júlio II, e não o era portanto ainda quando Alexandre VI o nomeou arcebispo de Braga. Quanto a sobrinho, D. Jorge da Costa, nem era parente de Rodrigo Bórgia, nem, a título de valido do papa, era sobrinho (nepote) de Alexandre VI, nem de algum dos cinco pontífices que o cumularam de benefícios. Pelo que respeita à submissão de D. Manuel às infalíveis vontades de Roma, o Sr. Doutor parece-me moderadamente saturado da legislação de D. Manuel, a muitos respeitos, admirável príncipe, que se houve com os papas altivamente quando a justiça e a hombridade lho impunham. O Sr. Doutor Calisto sabe decerto que os pontífices, antes do reinado de D. Manuel, faziam a colação dos benefícios a seu talante, enviando aos bispos cartas precativas e monitórias, obrigando-os à execução dos seus despachos; e, se os prelados reagiam, sobrevinham de Roma as cartas executórias. Pois D. Manuel, em 10 de Dezembro de 1515, fez lei proibindo que ninguém pudesse impetrar do santo padre benefício de homem vivo, nem, contraditada a posse, citar alguém a responder no tribunal de Roma. Note-se o intemerato ânimo com que D. Manuel dirime e exautora a jurisprudência apostólica dos processos do direito pátrio. Chama a isto submissão o Sr. Doutor Calisto. Mais. De Roma, nos anteriores reinados, vinham eleitos beneficiados estrangeiros. D. Manuel, em 3 de Novembro de 1512, por uma lei extravagante108 proíbe que os estrangeiros exerçam benefícios em Portugal. 107 108 Obras de Alexandre Cabral, Polémicas de Camilo, Volume VIII, Lisboa, 1982. Cabedo, de Patron, Reg., cap. 22. - Nota de Camilo. 96 Mais. Quando um cardeal veneziano impetrou do papa os mosteiros vagos em Portugal por morte de D. João de Castro, D. Manuel mandou dizer positivamente ao cardeal que a coroa portuguesa não consentiria jamais que se executasse a provisão que obtivera: e não se executou. Outro exemplo de submissão: Leão X dera a D. Miguel da Silva o Mosteiro de Santo Tirso. D. Manuel envia zombeteiramente os parabéns ao agraciado; mas faz-lhe saber que sente muito não lhe poder dar posse, porque já tinha dado o mosteiro a outro. Ao mesmo tempo,109 porém, que ensinava o papa a respeitar os seus direitos de padroado, instava com Leão X que nomeasse o seu filho Afonso - bispo da Guarda aos oito anos de idade - arcebispo de Toledo,110 contra a vontade e os direitos de Carlos V. (Quadro Elementar, tomo X). Por último. Quando os prelados de Braga e Porto entenderam que deviam exercer nas suas dioceses jurisdição absoluta temporal como o bispo de Roma, e se acostaram às excomunhões com a delegacia do papa, que fez D. Manuel? O que nenhum dos seus antecessores havia feito. Por lei de 16 de Dezembro de 1516 mandou que os bispos e seus vigários-gerais e ministros não pudessem publicar inibitórias contra os ministros reais, sem lho fazerem saber a ele primeiramente. ……… S. Miguel de Ceide, Abril, 2, 1883 Camilo Castelo Branco» E a resposta de José Maria Rodrigues: «Deixa ele entrever que deturpei o sentido da carta de D. Manuel para o seu embaixador em Roma, D. Miguel da Silva, em que lhe dá os parabéns por ter sido provido na comenda do Mosteiro de Santo Tirso - e, ao mesmo tempo, sente não lhe dar posse da comenda porque já a deu a outro. A isto chamei eu zombaria tanto para o papa como para o nomeado; porém, o teólogo quer que seja submissão, ou que não seja. A falar verdade, não se percebe nitidamente o que ele quer.» Eu digo outra vez ao Sr. Camilo Castelo Branco o que quero. S. Ex.!! apresenta, baseando-se no Quadro Elementar, tomo X, o seguinte exemplo de submissão de D. Manuel às vontades do papa: «Leão X dera a D. Miguel da Silva o Mosteiro de Santo Tirso. D. Manuel envia zombeteiramente os parabéns ao agraciado; mas faz-lhe saber que sente muito não lhe poder dar posse, porque já tinha dado o mosteiro a outro; ao mesmo tempo, porém, que ensinava o papa a respeitar os seus direitos de padroado, instava, etc.» Ora no Quadro Elementar diz-se o seguinte: «Ano de 1517, Agosto 3. Cartas de el-rei para D. Miguel da Silva. Na primeira diz que lhe constara com grande prazer o provimento feito pelo papa do Mosteiro de Santo Tirso na pessoa dele, mas que não lhe podia conferir a posse por já a haver dado a D. Manuel de Noronha, ao qual o papa nomeara para o primeiro mosteiro consistorial, que vagasse em Portugal, pelo que lhe pedia que, vagando algum, logo o metesse de posse, o que el-rei cumprira. Que nestes termos, e à vista da sua provisão, era obrigado a sujeitar o negócio aos juízes eclesiásticos.» (tomo X, p. 240). Agora queria eu saber: 1.º - Como é que D. Manuel ensinou neste caso o papa a respeitar-lhe os seus direitos de padroado, se ele não tinha feito mais do que dar a posse do Mosteiro de Santo Tirso a D. Manuel de Noronha, ao qual o papa nomeara para o primeiro mosteiro consistorial que vagasse em Portugal?» 2.º - Quem autorizou o Sr. Camilo Castelo Branco a dizer que D. Manuel enviou zombeteiramente os parabéns a 109 Na ed. de 1883: «o mosteiro a outro; ao mesmo tempo», etc. Nota de Alexandre Cabral. A redacção da 1.ª ed. da Boémia: «que nomeasse o seu filho Afonso bispo da Guarda, aos oito anos de idade, arcebispo de Toledo». Seguimos o texto de 1883. - Nota de Alexandre Cabral. 110 97 D. Miguel da Silva? Seriam as explicações em que entra D. Manuel, para mostrar a D. Miguel da Silva que não lhe podia dar a posse do mosteiro? Seria o declarar D. Manuel que se via obrigado a sujeitar o negócio aos juízes eclesiásticos, visto já ter dado a posse do mosteiro a D. Manuel de Noronha e vista a provisão de D. Miguel da Silva? O Sr. Camilo Castelo Branco aproveitou do extracto do Quadro Elementar só o que lhe fez conta, acrescentou-lhe um - zombeteiramente - e arranjou assim um exemplo de... submissão. Agora parece que já se deve perceber nitidamente o que eu quero.» Desta «Polémica», em torno do espírito cómico e insubmisso de D. Manuel o primeiro, pode ver-se que, cinco séculos após a fundação do Mosteiro, no ano de 978, e quatro séculos após Soeiro Mendes ter doado o Couto ao abade D. Guademiro, ainda a nomeação de titulares era controversa e se repercutia nas “Bulas e Bolas”. 98 8. Muitos escritores… Muitos escritores dedicaram páginas à análise da vida e obra de Camilo. Teófilo Braga, Padre Sena Freitas, Alberto Pimentel, Paulo Osório, Visconde de Vila-Moura, António Cabral, Maximiano Lemos, Bigote Chorão, Vitorino Nemésio, Augustina Bessa-Luís, Joaquim Matos, Mário Cláudio, Alexandre Cabral, Manuela Morais, João de Araújo Correia. Com raras excepções, como o caso de Oliveira Mouta, “Camilo e os Frades”, só os que aqui transcrevi acharam razões para falar da “passagem” de Camilo por Santo Tirso. Ressalvo, contudo, alguma traição dos meus fracos olhos, míopes há muitas décadas. Camilo, já com a acuidade visual muito afectada, pouco publicou após a zargunchada de 1886 dada nos Serões de S. Miguel de Ceide: A Lira Meridional (Crítica) – 1886 Boémia do Espírito (Diversos) – 1886 A Difamação dos Livreiros Sucessores de Ernesto Chardron (Polémica) – 1886 Esboço de Crítifca/Otelo/O Mouro de Veneza (Crítica) – 1886 Vulcões de Lama (Ficção) – 1886 Nostalgias (Poesia) – 1888 Delitos da Mocidade (Diversos) – 1889 Nas Trevas (Poesia) - 1890 Refutando uma notícia dum jornal de Famalicão sobre a eminência da publicação de inéditos em carta dirigida a Oliveira Ramos e publicada em 30 de Maio de 1890 em «O Primeiro de Janeiro”, Camilo Castelo Branco diz: «Em cousas de literatura deve falar-se de mim como se fala de um escritor morto. Logo que eu aceitei do Estado uma pensão, é que eu não podia trabalhar e manter a minha laboriosa independência de 40 anos. Ceguei na luta e fiquei vencido. Sirva isto de exemplo a futuros escritores.» Em Fevereiro de 1889, ano que antecede o do suicídio, deu-se uma coincidência espectacular, porque desde 1767 não acontecia, isto é, há 122 anos. Este mês de Fevereiro não teve lua nova. Como é sabido a lua passa pelas suas diferentes fases em 29 dias. Ora, tendo sido lua nova a 31 de Janeiro, segue-se que no mês de Fevereiro, que foi de 28 dias, não houve lua nova, havendo-a no dia 2 de Março. No Brasil, através de “canalizações”, Camilo Castelo Branco escreveu alguns livros que, garantem, foram escritos após a sua morte. A brasileira Yvone Pereira descobriu um médium de nome Fernando Augusto de Lacerda e Mello111 que relatou a vida de Camilo Castelo Branco após o suicídio e psicografou a sua obra por póstuma. Esta espírita revela que Camilo teve muita dificuldade em comunicar com Fernando Lacerda.112 Resumo das obras publicadas: 111 Nasceu em 6 de Agosto de 1865 e faleceu em 7 de Agosto de 1918. Eu não professo qualquer adesão a estas ideias espíritas, mediúnicas, “canalisantes”. Deixo aqui este registo para que os leitores não pensem que a obra de Camilo está toda escrita e terminou com o poema citado neste opúsculo. Embora no Brasil – e recentemente em Portugal – estas ideias polulem adubadas pelas dificuldades económicas decorrentes dessa parvoiçada chamada globalização, este apontamento é apenas redigido a título de curiosidade. 112 99 Fernando de Lacerda, Do País da Luz. Yvone Pereira, Memórias de um Suicida. Obra mediúnica, atribuída por Yvone Pereira a Camilo Cândido Botelho, talvez ainda pensando nas implicações jurídicas que o caso Humberto de Campos/Irmão X causou à época com o médium Francisco Cândido Xavier. E, da mesma autora, Nas Telas do Infinito. Também mediúnica, a obra enfeixa dois contos: o primeiro de Adolfo Bezerra de Menezes, e o segundo de Camilo. O Martírio dos Suicidas de Almerindo Martins de Castro. A via-sacra post mortem de Camilo Castelo Branco é delineada, em termos gerais, com as seguintes estações: Janeiro de 1891 – Após meses vagueando sem destino em torno dos próprios restos mortais, Camilo é detido no Vale dos Suicidas. Novembro de 1903 – Camilo encontra-se há pouco tempo no Hospital Maria de Nazaré, da Legião dos Servos de Maria. 1904 – data provável da 1ª caravana com Camilo à crosta terrestre. 1906 – o médium português Fernando de Lacerda já havia entrado em contacto com Camilo. O escritor e os seus companheiros de enfermaria voltam à crosta terrestre numa segunda caravana com o fim de obter alta do Hospital Maria de Nazaré. Sem sucesso, Camilo e seus companheiros transferem-se para o Brasil. 1910 – após dez anos de internamento, Camilo teve alta da instituição hospitalar, ingressando na Universidade da mesma instituição. Nos primeiros tempos da Universidade, reencontra a sua mãe, o seu pai, e a sua esposa falecida. 1930 – graduado na Universidade da Instituição dos Servos de Maria, Camilo passa a servir na enfermaria do Hospital, em lugar de Joel, seu antigo enfermeiro. 1936 – Camilo está a escrever, após cerca de 30 anos, referindo-se a acontecimentos ocorridos cerca de três anos após seu ingresso na instituição-hospital. 1942 – após cinquenta e dois anos de habitação do mundo astral, Camilo inicia o final de suas memórias... 1945 – data provável da reencarnação de Camilo. Segundo a directriz-base traçada para essa nova existência, trabalharia como médium curador, devendo cegar aos 40 anos de idade e desencarnar aos 60 anos. 1985 – aos 40 anos Camilo reencarnado, conforme a directriz-base, deveria novamente arcar com a provação da cegueira. 2006/2007 – aos 60 anos, Camilo reencarnado, por aquela directriz, deverá desencarnar. Que saga! 100 EPÍLOGO Em Junho de 1890, a vila de Santo Tirso estava a preparar umas grandiosíssimas festas a S. Bento que viriam a ser nos dias 10, 11, 12 e 13 de Julho. O conde destinara 4 a 5 contos de reis para gastar na romaria. E como ainda todos tinham em mente o extraordinário êxito da exposição mundial de Paris 113 de 1899 – onde estiveram mais de um milhão e meio de estrangeiros e, só os americanos, gastaram mais de sessenta e três mil contos em ouro – foi decidido adjudicar ao mestre de obras Manuel Ferreira da Silva a construção de uma torre, tipo torre Eiffel 114, com mais de trinta metros, que aguentasse com os visitantes nas suas plataformas, donde podiam ver um admirável panorama por um módico preço. Santo Tirso - a imponente imitação da torre Eiffel das festas de 1890 Esta torre, denominada Torre do Ave, manteve-se para outras festas de S. Bento, enquanto durou o conde. Foi durante a azáfama da comissão festiva e das comissões de ruas, preparatória da grande feira franca, arraiais e procissões, que, em S. Miguel de Ceide, estava a desenrolar-se o profundo drama. Camilo nasceu quando o conde de S. Bento, com 18 anos, calafetava, no Brasil, os fundos das arcas encoiradas que deveriam acumular uma fortuna imensa. Camilo nasceu e viveu para o sofrimento e para o amor, para o conservadorismo e para a literatura, para as suas famílias e para a solidão. O conde nasceu e viveu para o estômago e para o 113 Esta exposição, em que se inaugurou a Torre Eiffel, foi para comemorar a revolução francesa o que afastou a Inglaterra de concorrer ao certame. Embora os súbditos ingleses pudessem estar presentes a título individual. 114 A imprensa tirsense da época (Jornal de Santo Thyrso) passava a vida a noticiar réplicas da famosa torre parisiense, como a torre de Colombo em Chicago destinada à exposição universal de 1893 e a torre da Dinamarca. Em 1922 Santo Tirso voltou a construir uma réplica da famosa torre Eiffel, em frente à clínica dos tirsenses, antigo quartel dos bombeiros dissidentes. Foi também anunciada a construção de uma cópia da torre Eiffel em Nova Iorque e, até, a compra para trasladação, da autêntica de Paris por um grupo de magnatas americanos. Em Santo Tirso, esta réplica da famosa torre parisience – a que se chamou torre do Ave – teve também um sentido de vingança contra o ultimato inglês. Aos larápios das romarias dizia-se que andavam a inglezar o conteúdo das algibeiras! 101 trabalho, para as libras de ouro e para os escravos, para as honrarias e para as benemerências. E, na hora trágica da morte de Camilo, o conde andava em bolandas a gastar cinco contos de reis em 6-Bandas de Música-6!115 Estranha sorte a menos de uma légua de distância! Uns preocupados a proporcionar aos forasteiros “umas brilhantíssimas iluminações”, com luz eléctrica até Cabeçudos!116 O “primeiro romancista” põe fim aos seus dias por não ter a luz dos seus próprios olhos! Camilo, que começou a sofrer dos olhos117 em 1857, penou durante trinta e três anos as dificuldades oftálmicas que o levaram à irremediável cegueira e ao inevitável suicídio. Santo Tirso em festa – 6 Bandas de Música 6 – coreto em frente à casa do conde, privativo da sua banda Estariam, certamente, alguns amigos de Camilo entre os festeiros! Da rua de S. Bento, foram festeiros José Bento Correia118 e Félix José Moreira Vasconcelos; da rua 26 de Março, António Maria de Sousa Guimarães e António Ribeiro de Miranda; da antiga rua de Sidenay (sic), José Vida e Avelino Ribeiro Guimarães; do Campo 29 de Março, Francisco José Neto de Carvalho e José Neto de Carvalho; do Picoto, Francisco Alves da Costa e Narciso Eduardo de Sousa; dos Carvalhais, António José de Matos, Francisco José do Vale e António da Rocha Júnior, e da praça Conde de S. Bento, Manuel Ferreira da Silva. 115 No ano seguinte passaram a ser sete! 116 O Jornal de Santo Thyrso de 7 de Agosto de 1890, das tais festas, conta uma deliciosa história de um casal de lavradores de Cabeçudos que adormeceu no campo à espera que a luz eléctrica da Torre do Ave, com alcance de duas léguas, lhes iluminasse o trabalho de arrancar uma batatas deixado para a noite por sugestão do calorento marido. 117 Alberto Pimentel, Os Amores de Camilo, pág. 401. 118 Manuel Abreu, no seu folhetim “Camilo, Santo Tirso e o Conde de S. Bento” escreveu, inventando uma cena que poderia ter acontecido em 1880: «Na redacção esperava-os (a Camilo e ao Nuno) o benquisto e grande bairrista tirsense José Bento Correia, director e proprietário do Jornal de Santo Thyrso, radiante de satisfação por ter a visita do “sublime romancista português”.» Se esta figuração foi aproximada da realidade, como terá o José Bento festeiro recebido a notícia do trágico suicídio? 102 Santo Tirso – coretos por toda a vila (parque) Da República119, de 4 de Junho de 1890: «O revólver com que Camilo Castelo Branco se matou é um Bull-Dog, de coronha de madeira, já gasta, roída, por ele o usar há muito tempo. Quando mo mostraram, tinha cinco cargas. A outra, empregara-a o escritor.» «Como disse, a bala penetrou pelo temporal direito, indo bater de encontro ao temporal esquerdo. O Dr. Ferreira, de Santo Tirso, sondou a ferida. A trajectória da bala está perfeitamente descrita de um lado ao outro.» «Depois de ter disparado o tiro, Camilo caiu em estado comatoso, não pronunciando uma única palavra. Às cinco, isto é, uma e três quartos depois, falecia. Durante a agonia, gemeu constantemente.» «Um pormenor: Camilo Castelo Branco detestava os domingos. Quando falava no suicídio – a que ele chamava “a sua porta aberta para a Eternidade” dizia sempre:» «- Hei-de suicidar-me num domingo. E foi num domingo que se matou.»120 Ana Plácido publicou n’O Leme121 os últimos versos escritos/ditados por Camilo, eivados duma insondável amargura: A MEUS FILHOS Chega a morte! vejo-a, sinto-a. A luz dos olhos se apaga… Vem, meu filho, abraça e beija De teu pai a face fria. Limpa-lhe o rosto orvalhado, Não de pranto, que eu não choro. Mas do suor da agonia, Não me fujas, filho, imprime Na tua alma esta imagem. Daqui a pouco, à voragem Resvalou teu pobre pai 119 Já atrás vai citada a notícia do mesmo dia do Correio da Manhã. Notícia citada no Romance do Romancista, de Alberto Pimentel, 1974, Lisboa, sobre a morte de Camilo, em 1 de Junho de 1890. 120 121 O primeiro número de O Leme, semanário chefiado pelo Nuno, surgiu em Agosto de 1895, falecendo Ana Plácido, um mês depois. 103 Vem também, santa das dores, Receber o extremo ai! Não me vás levar flores À sepultura, não vás. Leva-me os filhos felizes, Leva-os contigo e verás Que me aquece a luz da vida Na sepultura, esquecida, Onde enfim hei-de ter paz!122 O Jornal de Santo Thyrso dá uma notícia da morte de Camilo que é o mais acabado exemplo do que é a actividade jornalística e do que foi a vocação e a capacidade do seu director, José Bento Correia, que terá sido, sem dúvida, o autor da notícia. Do Jornal de Santo Thyrso de 5 de Junho de 1890: «Camilo Castelo Branco» «Este grande escritor num momento em que perdeu de todo a luz da razão, completamente alucinado, pôs termo à sua existência, suicidando-se, nem doutra forma se pode explicar o suicídio a não ser pela falta absoluta de crenças religiosas.»123 «A lamentável e triste notícia da sua morte chegou rapidamente a esta vila, porque ainda veio alguém aqui chamar o snr. dr. Ferreira para ir livrar da morte o notável escritor. Foi à pressa efectivamente, porém quando lá chegou, encontrou já um cadáver.»124 «Foi um romancista fecundíssimo, eminente e muito laborioso, as obras que ele escreveu são 179!» «Descanse em paz a alma de tão notável escritor.» O mesmo jornal completa a fatídica nova com uma nota do seu correspondente em Famalicão: «Pelas duas horas da tarde de ontem na solitária freguesia de S. Miguel de Ceide, sucumbiu o glorioso escritor Camilo Castelo Branco, tendo desfechado na cabeça um tiro!» «O génio fulgurante que enriqueceu a nossa língua, esse cérebro privilegiado e harmonioso, não teve coragem para suportar a cegueira que o envolvia.» «A triste nova espalhou-se ontem como a rapidez do relâmpago.» «Darei pormenores do seu funeral e do mais que julgar digno de menção.» C. Com data de 3 de Junho, o mesmo correspondente relata: 122 Com quinze enamorados anos, numa «Ode» referenciada como a primeira produção poética de Camilo Castelo Branco, o escritor vaticina já que só teria olhos para mulheres amadas: «Um fúnebre porvir me aterra e assombra!» «Meus olhos te procuram, vagam, correm;» «Mas lágrimas lhe afogam os raios d’alma.» 123 Técnica jornalística: suicidou-se porque perdeu a razão, embora a razão seja a falta de fé. É curioso que o Jornal de Santo Thyrso, andando a publicar notícias sobre suicidas antes da morte de Camilo, continuou a fazê-lo depois. Publicou mesmo o teor de um acordo feito pelos periódicos de Lisboa, com o compromisso de não dar notícias sobre os suicídios “visto a experiência ter mostrado que não poucas pessoas se suicidam por imitação”. 124 Já em estado comatoso, Camilo Castelo Branco foi transportado para o canapé largo, com assentos e encostos de palhinha, móvel salvo do incêndio de 1915 e existente ainda na Casa de Camilo. (Catálogo do Museu Camiliano de San-Miguel-de-Ceide, Famalicão, 1924). 104 «Os restos do egrégio escritor seguem hoje, no comboio correio, para a Lapa, devendo amanhã ter ali os responsos de sepultura, sendo depois encerrados no jazigo do snr. Freitas Fortuna, por expressa determinação do finado.» «Não há pompa, nem convites para o cortejo fúnebre, que virá de Ceide pela 1 hora a fim de chegar aqui perto das 4, seguindo o cadáver no caixão de chumbo dentro do vagão que será atrelado ao comboio-correio.» O clube, que aqui tem o seu nome, depôs uma rica coroa no seu ataúde. Também depôs uma coroa o snr. José d’Araújo e Sousa e o snr. M. A. Espinho outra.» «O cortejo fúnebre chegou à estação às 3 horas e 36. Vai para o Porto.» «Acompanharam de Ceide até aqui diversos cavalheiros de distinção.» Até o agente das máquinas de costura Singer deu um contributo para as festas grandiosas a S. Bento! Com excepção do correspondente de Braga, nenhum outro (não particular) se referiu à triste morte do escritor. Mesmo aqueles que espaventaram as polémicas! Em 12 de Junho o de Braga resume: “Foi aqui geralmente sentido o suicídio do eminente escritor Camilo Castelo Branco”. O director e proprietário do Jornal de Santo Thyrso dá o golpe final de misericórdia, publicando um soneto e fechando a porta ao notável escritor a partir de 19 de Junho de 1890. 105 Que tarde! O semanário humorístico “O Sorvete”, já anteriormente referido, publicou o seu n.º de 8 de Junho de 1890 dedicado à morte de Camilo Castelo Branco e o de 31 de Agosto do mesmo ano dedicado ao aniversário do conde de S. Bento. No jornal de Junho, ao realce dos desenhos de Sanhudo alusivos ao autor destacados na primeira página, sucede um poema em cinco quadras denominado “Queres a Flor?” em que Camilo metaforiza as flores denominadas saudade, martírio, goivo e rosa. Sobre o notável escritor naturalista a revista refere: “É que um vendaval de cosmopolitismo incolor apagou da nossa sociedade a chama da velha alma portuguesa. O Sorvete abrindo um parênteses fúnebre nas suas páginas facetas e galhofeiras, presta uma homenagem humilde ao grande vulto literário, ao mais genuíno cultor da velha graça portuguesa e ao humorista generoso que se dignou algumas vezes descer do seu pedestal alympico (sic) para honrar com a sua prosa fulgurante as colunas deste despretencioso semanário.” Na exaltação aniversariante do brasileiro, Sebastião Sanhudo oferece a menção como “preito de homenagem da redacção do Sorvete oferecido à pitoresca vila de Santo Tirso.” Para não ser acusado do mesmo labéu de bajulador com que tinha brindado o Jornal de Santo Tirso. Publica a gravura – na altura a técnica da zincogravura não permitia imprimir fotos – do conde com a altura de duas páginas atravessadas e, ao lado, o desenho das escolas primárias de Santo Tirso e S. Miguel das Aves, casa para hospital e a casa do conde, com o título 28 de Agosto de 1890, aniversário natalício do grande benemérito. O Sorvete, antes do aniversário do ricaço tirsense e após o suicídio de Camilo (38-1890), refere: “Atendendo ao progressivo aumento dos suicídios nestes últimos tempos vai ser proposto ao governo o estabelecimento de suicidários para os dois sexos em todas as terras do reino, fornecendo-se caixas de fósforos, cordas, revolveres, etc. por preços convidativos, a quem desejar passar desta para melhor vida.” É curiosa a reacção póstuma dos media. Enquanto o Jornal de Santo Thyrso, que tanto dinheiro ganhou com Camilo, a sua obra, os seus biógrafos e detractores, emudeceu, a Revista Ilustrada, publicação mensal lisboeta propriedade de Mariano Level e gerência de António Maria Pereira, com início de publicação em 15 de Abril de 1890, referiu longamente o infausto acontecimento do suicídio, juntou inúmeros colaboradores sobre o tema e foi mantendo registos de belas páginas literárias do novelista minhoto. Além de publicar o trabalho de Camilo “O Melhor Amigo de Luís de 106 Camões, nela escreveram, sobre a morte do escritor, Henrique Lopes de Mendonça (Crónica), Fialho de Almeida (Camilo Castelo Branco), Henrique Marques (A Morte de Camilo e Um Soneto de Camilo), Melo Freitas (Para a História dos Seus Últimos Dias) e Silva Pinto125 (Os Suicidas). E não se fica pelas directas, a Ilustrada: insere uma «chromotypogravura» com uma professora jovem a estorcegar uma orelha a um gaiato e a metê-lo à força na sala de aula. A legenda tem tudo a ver com a polémica da época sobre a educação “Instrução Obrigatória”. Dentro da sala espreitam os colegas ansiosos. Cá fora, dois miúdos com uma condessinha olham admirados para o supliciado! Uma outra coincidência cronológica tinha antecedido a que sobrepôs o suicídio do grande escritor às tremendas festas de S. Bento da repescada imitação da torre Eiffel. Foi o caso do aparecimento dos Serões de S. Miguel de Ceide e a inauguração da escola primária de Santo Tirso. O Jornal de Santo Thyrso tinha dado uma humilíssima nota, proveniente do seu correspondente em Lisboa, da atribuição do título de visconde de Correia Botelho a Camilo. Em 9 de Julho de 85 o mesmo jornal, referindo várias aprovações da câmara dos pares, noticia “a isenção de direitos de mercê ao eminente escritor Camilo Castelo Branco, visconde de Correia Botelho.” «Foi agraciado por decreto de 18 do corrente, com o título de visconde de Correia Botelho, em sua vida, o eminente escritor Camilo Castelo Branco.» Nada mais, no Jornal de Santo Thyrso de 26 de Junho de 1885, que, em 10 de Dezembro de 1885, noticia a publicação dos Serões antecedendo uma inauguração espasmódica em 3 de Janeiro de 1886. Jornal azul, utilizado para a criação de um prémio escolar126 125 No Jornal de Santo Thyrso de 2 de Agosto de 1888, uma referência tipicamente de “A nossa carteira”, alia a sífilis e médicos relçacionados com Camilo: «Defesa de tese – Na escola médica do Porto defendeu tesena quuinta-feira o snr. dr. Arnaldo Baptista Coelho, ficando plenamente aprovado. O trabalho inaugural do snr. dr. Coelho foi um “Breve estudo sobre a etiologia e profilaxia da sífilis congénita”, e presidiu à tese o snr. dr. Silva Pinto, sendo arguentes os snrs. drs. João Pereira Dias Lebre, Azevedo Maia e Plácido. Ao novo médico, que já está em casa de seu pai o snr. João Baptista Coelho, desejamos uma grande clientela.» O Dr. Silva Pinto, numa local literária publicada no Jornal de Santo Thyrso de 12 de Março de 1986, confessa ter estado em Santo Tirso. 126 O Jornal da Manhã, do Porto, tem uma visão curiosa do aspecto gráfico do jornal: “o número especial do Jornal de Santo Thyrso é nitidamente impresso com título dourado e tarjas a ouro e azul”. É o único jornal que se refere à cor ouro que, francamente, se não divisa nos arquivos. 107 Escrevia o tino editorial de Bento Correia: «Serões de S. Miguel de Ceide – É este o título de uma crónica mensal de literatura amena, novelas, polémica mansa, crítica suave dos maus livros e dos maus costumes pelo escritor snr. visconde de Correia Botelho.127» No espírito dos amantes de boas letras, lavrava há muito a desconsoladora ideia de que o primeiro vulto da nossa literatura depusera a pena, que por quase meio século lhe fora ceptro de glória, e dissera o último adeus à literatura portuguesa que, como nenhum outro tão gloriosamente servira. Felizmente que assim não sucede. Se as dores morais por muito tempo o desalentaram, se as dores físicas lhe alquebraram o corpo a ponto de, por vezes, lhe perpassar pela mente a impossibilidade de cura, o seu formosíssimo espírito, cada vez mais luminoso, refulge de novo uma constelação de diamante. É curioso que, em Santo Tirso, regozijava-se pelo grande passo na instrução das crianças, em paroxismos de prosódia pedagógica. Em Ceide e ao mesmo tempo, Camilo tecia as maiores diatribes contra a escolaridade do conde, escrevendo coisas como128: «Aprende agora a ler na tua escola,» «Vai sentar-te a estudar entre os meninos.» «Colossal paparreta! eu quando penso» «Na tua estupidíssima pessoa,» «Calculo os carros de indigesta broa» «Que esmóis e atulhas nesse bucho imenso!» Algumas linhas acima, tinha desfeito em cacos um soneto emblemático publicado no Jornal de Santo Thyrso. A autora, porém, não desvaneceu, repetindo reiteradamente a proeza de escrever versos numa folha que Camilo lia. E sobre a inauguração de escolas escreveu mais: «Não seria melhor que os 17 contos do edifício escolar os convertesse o Sr. Visconde de S. Bento em jeiras arroteadas e instrumentos agrícolas, e umas casinhas de pedra com lareira, e uns catres de tábuas com enxerga nova, tudo esmolado aos esquálidos proletários que arrepiam de frio ou ardem de calma, sobre farrapos infectos, nuns casebres de ripas abetumadas de barro, e colmados de palha esfumaçada e apodrecida pela chuva? Ensinem esses homens a ler, e perguntem-lhes depois se são mais felizes na sua indigência.» E mais: «Estou a prever as torrentes de felicidade que vão derivar do manancial da escola de Santo Tirso. Aqueles centenares de meninos encerebrados de instrução primária elementar, aí, à volta dos 14 anos, emigram para o Brasil por não terem no seu pais onde exerçam a sua actividade mental.» E mais: «É deplorável a timidez dos sociologistas que sentem estas duras verdades na consciência e lá as remoem silenciosamente para não destoarem da universal cantilena dos hinologistas da instrução primária das aldeias! A cada canto de jornal se insinua que o saber soletrar uma página de letra de imprensa e escrever sem ideias nem ortografia uma carta, melhora a condição do sujeito, civiliza e corrige o instinto do vício e do crime. Seria bom argumentar com os factos.» E, no entanto, Camilo “amplia” o Dicionário da Educação e Ensino! 127 O semanário tirsense não se habituou definitivamente ao título e, passados poucos números (semanas), passou a nomear o escritor como Camilo Castelo Branco. Ana Plácido também não quis aceitar e usar o título de viscondessa. 128 Texto integral na página 26. 108 Publicidade ao traslado de Camilo Mal o director e proprietário do Jornal de Santo Thyrso imaginava o que se estava a preparar pelo punho de Camilo Castelo Branco! É assaz provável que Camilo Castelo Branco tenha andado permanentemente em polémicas escandalosas pelas razões que lhe apontaram, isto é, por ser conservador e por interesses materiais. Atendendo ao seu carácter indomável, é bem capaz de ter alimentado outros motivos para, ao longo da vida, ter sido tão vilipendiado. O mais violento e duradouro de todos os polemistas talvez tenha sido Alexandre Conceição129 que chamou ao escritor de Ceide caquéctico azedo, intratável, cerdo faminto, verdadeiro espantalho, chucharrabio, pimpãozinho, javardo espumante, bordalengo, alho, Jeová das Variedades, toleirão, desgraçado, bonifrate desengonçado, medonho, serpente venenosa, besta apocalíptica, galeriano, miserável inofensivo, insensato, ébrio, garoto, colareja de cartola, azémola das Ribaltas, mísero cavalo lazarento, indelicado, inexacto, aleivoso, leviano, velho, mentiroso, ignorante, caluniador, malévolo, tolo, parvo, pudendo, virginal, donzel, intolerante, grosseiro, agressivo, injusto, fanfarronadas, valentão, tirano, leão e deplorável repugnante. Criticou o seu trabalho – a respeito de «A Corja» – com comentários do tipo “estilo fradesco e obsoleto», «velho católico, velho literato autoritário e quinhentista»130, «bílis palavrosa», «intenção comercial de explorar o escândalo», «Balzac minhoto», «sábio das velhas frioleias monásticas», «intencionalmente 129 Alexandre Cabral, Polémicas de Camilo, 1982, Lisboa. 130 Não chega a apodá-lo monárquico, pois o regime republicano estava ainda distante. Camilo Castelo Branco não seria o melhor exemplar adepto da monarquia, atendendo à polémica de Coimbra, em que rejeita ser sócio de academia por se recusar a escrever “rei” com inicial maiúscula, conforme lho exigia o dono do académico arcano. 109 mercantil», «velho urso hidrófobo açamado ao riso», «autor de sujidades memoráveis», «porcaria lastimosa e ridícula», «doutor em cânones com papeira académica», «pigarro eclesiástico de cónego regrante», «asqueroso marabuto do romantismo indígena», «velho gramaticão ridículo», «antigo retórico pretensioso», «espécime de paleontologia literária», «frade empalhado», «talento de conserva inglesa carregado de malagueta e de especiarias acirrantes», «hierofante de classicismo», «detractor sistemático», «implacável ridicularizador», «cheio de palavras e oco de ideias», só sabe «vomitar pragas e escarrar obscenidades». No ataque às características pessoais o Conceição ultrapassa todos os limites: «váse lavar, homem, mude de roupa e depois discutiremos»; «velho precito portuense de calças de boca de sino e luvas cor de canário»; «de olhar avinhado, passo incerto, rosto apopléctico e braços arremangados»; «fantasma de encruzilhada»; «– aí tem mais palha, seu asno»; «velho papão de entremez»; «faia tunante e farsola»; «bailio de S. Miguel de Ceide, barão de Casacão, visconde de Valada»; «fugido bacorinho das estrumeiras portuenses», «Camilo faria corar de vergonha a própria vilania»; «Camilo beijoca Silva Pinto»; e fecha o chorrilho de impropérios com uma ameaça: «– alugo aí no Porto um galego e mando-o a S. Miguel de Ceide arrebentá-lo com dois pontapés.» A última carta do Conceição, não usando já insultos, é um excelente ensaio sobre o sobrepujar das novas ideias realistas, republicanas e laicas às velhas práticas do romantismo, adeptas do trono, do altar e dos clássicos gongóricos. Tem, este trabalho, uma aparente obsessão na defesa panegírica dos brasileiros repatriados, esquecendo que Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Aquilino Ribeiro e o próprio Eça de Queirós, indefectíveis do realismo, não deixaram de criticar os brasileiros131 de torna-viagem. Escreveu que Camilo Castelo Branco “lançou no espírito da sociedade portuguesa o mais injusto, o mais bestial e o mais ingrato dos ridículos contra o brasileiro, contra o português repatriado”. E é bastante exagerado ao dizer que o público leitor de Camilo Castelo Branco estava cansado de “ver perpetuamente nos seus romances as mesmas tolices dos mesmos brasileiros nos mesmos casos do mesmo comendador nos mesmos amores da mulher adúltera nas mesmas paisagens dos mesmos cartões.” Depois de tudo o que ficou aqui escrito, bem merecíamos que Santo Tirso pertencesse à recentemente criada por 11 municípios portugueses «Associação das Terras Camilianas». No acto da outorga da escritura pública, na Câmara de Famalicão, o presidente da referida Câmara disse que a Associação tem como objectivo “contribuir para um melhor aproveitamento e tratamento do património literário e arquitectónico ligado a Camilo Castelo Branco”. Esta Associação envolveu, numa fase inicial, os municípios de Coimbra, Fafe, Póvoa de Lanhoso, Póvoa de Varzim, Ribeira de Pena, Viana do Castelo, Vila do Conde, Vila Nova de Gaia, Vila Real, Viseu e Vila Nova de Famalicão, sendo este o promotor da iniciativa. Santo Tirso e Porto foram convidados e não entraram. Viseu e Gaia não foram convidados e entraram. As que aderirem depois, como Guimarães e, possivelmente, Santo Tirso e Porto, já não terão a honra de serem fundadores. 131 No Rio de Janeiro estava estabelecida uma colónia brasileira de tirsenses, com nomes sonantes: Cândido Pereira da Rocha, Manuel Baptista Coelho, Joaquim José Fernandes, Bento Martins de Freitas Pedrosa, Lúcio de Sousa Freitas Lima, Joaquim Coutinho, António Moreira Pacheco, José Joaquim Machado, João Torcato Martins Ribeiro, António Pereira Pacheco, António Torcato Martins Ribeiro, Bernardino Carneiro Barbosa, José de Sousa Correia, Adriano Joaquim Ferreira Enes, António Joaquim Ferreira Enes, Rodrigo A. Moreira da Silva, Joaquim António Rodrigues, António Carneiro Soares, José Borges Fânzeres e Joaquim Afonso Guimarães, todos mais chegados ao conde do que ao visconde. 110 Tinha sido marcado o dia 1 de Junho de 2003 para a assinatura de constituição da Associação. Em tempos que já lá vão, para as comemorações do centenário do nascimento de Camilo ocorrido em 1925, a Câmara de Santo Tirso contribuíra com a quantia de 30$00, tendo de compor o ramalhete Albino Sousa Cruz que ofereceu 50$00. Atendendo, mais de que a profundas ligações, às inúmeras passagens de Camilo por Santo Tirso nada mal ficava se a Câmara de Santo Tirso tivesse ombreado com Braga, Famalicão e Porto, oferecendo 100$00; 200$00 ofereceu Lisboa, mas isso são outros orçamentos. A Câmara da Guarda também ofereceu 30$00, por subscrição entre os vereadores. O meu trabalho de pesquisa incidiu maioritariamente sobre citações que outros investigadores produziram. Muitos documentos originais foram compulsados, mas a obra e correspondência camilianas são tão profusas que é muito possível o aparecimento de outros achados sobre este tema. Desta vez não posso, com o padre António Vieira, pedir desculpa por ser longo ao não ter tido tempo para ser mais sucinto. Mas peço perdão com Ricardo Jorge que escreveu “Desconheço inteiramente nas letras francesas este nome (Olivier du Chastel) – que tem seus ares de pseudónimo; e faltou-me tempo para indagações sobre a sua identidade.” A. Jorge Ribeiro Santo Tirso, 2008 111