De utopias e biografias:
a reinvenção
Dossiê Revisitando
Josébiográfica...
Saramago
De utopias e biografias: a reinvenção biográfica em o ano da morte de Ricardo Reis
Rafael Santana Gomes*
RESUMO
De utopias e biografias: a reinvenção biográfica em O Ano da Morte de Ricardo Reis. A
contemporaneidade manifesta-se como um tempo consciente das limitações da linguagem e
de sua falência em representar o real. Frente à desconfiança do artista contemporâneo em
relação à mimèsis, a biografia, relato do passado que nos chega tão somente em linguagem, será
filtrada pela subjetividade do escritor, que, ciente da impossibilidade da fidelidade biográfica,
apostará mais numa espécie de ficção biográfica. Este artigo pretende discorrer sobre o conceito
de reinvenção biográfica, em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Palavras-chave: mimèsis; biografia; José Saramago.
ABSTRACT
Of utopias and biographies: a biographical reinvention in The year of the death of Ricardo Reis.
Contemporaneity manifests itself in the awareness of the limitations of language and its
failure in representing the real. As the contemporary artist distrusts the concept of mimesis,
the biography – a narration of the past which reaches us only through language – will be
filtered by the subjectivity of the writer, who, aware of the impossibility of biographical
fidelity, prefers to create a sort of biographical fiction, instead. This paper aims to discuss the
concept of biographical reinvention in The year of the death of Ricardo Reis.
K e y
words: mimesis; biography; José Saramago.
1. Introdução
É bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito
– quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão:
o livro faz sentido, o sentido faz a vida. (BARTHES, 2006, p.45)
Para falar sobre reinvenção biográfica em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) e, de um modo
geral, sobre a proposta literária de José Saramago, lícito nos parece começar este texto por uma
breve conceituação e por um breve levantamento de alguns traços definidores da produção
*graduação em Letras (Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (2007) e mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010). É
doutorando em Literatura Portuguesa na UFRJ. Trabalhou como professor substituto de Literatura Portuguesa
na Faculdade de Formação de Professores da UERJ-São Gonçalo (2009-2011). Atua, principalmente, nos seguintes
temas: Decadentismo, Modernismo, semiologia e semiótica, ética e estética, erotismo, homoerotismo e poesia e
narrativa portuguesa modernas.
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romanesca contemporânea, conferindo, evidentemente, um especial destaque à narrativa
portuguesa pós-anos setenta. Ao filiarmos nossa proposta de leitura de O Ano da Morte de
Ricardo Reis1 a uma retomada contextual do tempo da enunciação do romance, não queremos
priorizar, de forma alguma, os aspectos externos ao texto – numa espécie de retorno aos já
ultrapassados moldes da crítica sociológica –, mas sim os seus aspectos internos, sem, contudo,
tomarmos como ponto de partida posturas extremistas para nossas reflexões. Para falarmos
de José Saramago e, portanto, de sua obra, elegemos voluntariamente aquela proposta de
leitura que, desde meados dos anos sessenta – época do advento do estruturalismo na teoria e
na crítica literárias –, é defendida por Antonio Candido, proposta não excludente, mas
conciliadora de pontos de vista aparentemente antagônicos, seja porque não enxerga a
possibilidade de entendimento de um texto (estrutura) senão a partir de sua relação com o
respectivo contexto, seja porque não vê separação possível entre ambos os conceitos. Em
outras palavras, tudo isso significa dizer que, para Antonio Candido (2006), os fatores externos
(sociais) exercem tamanha influência na psicologia do escritor, formando, aguçando e
modificando a sua visão de mundo que passam a tornar-se também eles internos, capazes que
são de interferir na própria estrutura da obra. Como produto da criação, isto é, da competência
artística do homem, ser social por excelência, o texto literário pode – e, algumas vezes, deve –
ser compreendido à luz das exigências de sua época, já que, como assinala Antoine Compagnon
(2006), o conceito de literatura é algo indefinível e instável, que só pode ser compreendido a
partir da relação que estabelece com as tendências de seu tempo, quer seja esse tempo passado
ou presente. Se homens distintos em épocas distintas sempre conceberão a literatura de formas
completamente diferenciadas, isso não quitará – nem invalidará – a possibilidade de empreenderse uma leitura coerente a partir da retomada do contexto sociocultural em que determinado
texto foi produzido, pois uma leitura tornar-se-á mais rica à medida que se considerarem,
conjuntamente, a ética e a estética, dois conceitos inseparáveis do fenômeno literário. Começar
este ensaio nas sendas da ética e da estética parece-nos, pois, um percurso válido e sedutor
para uma leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, esse inusitado romance de José Saramago,
escritor cuja obra apresenta uma proposta ideológica e um trabalho de construção formal que
manifestam vínculos expressivos com a problemática e com as tendências estéticas de seu
tempo, ainda que, não raras vezes, o tempo da enunciação dos escritos do autor não coincida
com o tempo do enunciado de suas obras, dada a sua predileção por aquilo que se convencionou
chamar de metaficção historiográfica2.
Ao falar de reinvenção biográfica em O Ano da Morte de Ricardo Reis, queremos compreender
esse recurso, utilizado tantas vezes por José Saramago e por outros autores da literatura
portuguesa contemporânea, como a estratégia de escrita de um tempo consciente das limitações
da linguagem e, portanto, da sua falência em representar o real. Frente a essa desconfiança do
artista contemporâneo em relação à mimèsis, a biografia, relato do passado que nos chega tão
somente em linguagem, será filtrada pela subjetividade do escritor, que, ciente da impossibilidade
da fidelidade biográfica, apostará mais numa representação (ficção) biográfica, a partir de uma
pessoalíssima seleção textual, que estará de acordo com o seu projeto literário e com as suas
preferências estético-ideológicas, é claro, mas que também estará em profunda consonância
com a ética do tempo, com um certo Zeitgeist, pois, como bem afirma Roland Barthes, “não há
literatura sem uma moral da linguagem” (2001, p.12). Discorremos mais especificamente sobre
isso no terceiro item deste trabalho.
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2. O Ano da Morte de Ricardo Reis e a escrita da terra
Tenho uma espécie de preocupação pedagógica, até excessiva. Creio que
isso é consequência da minha relação com o narrador. (SARAMAGO,
2003, p.96)
O panorama da narrativa portuguesa posterior à década de setenta é muito complexo e variado.
O número de escritores cuja obra conseguiu boa repercussão junto ao público e à crítica,
inclusive fora do mundo da lusofonia, é enorme. Não obstante a variedade de projetos narrativos
dos escritores contemporâneos, é possível destacar a presença de alguns elementos em comum
na sua ficção. Maria Alzira Seixo, em texto célebre, intitulado Dez anos de ficção em Portugal (1974
-1984), chama a atenção para o fato de inúmeras narrativas contemporâneas manifestarem
uma espécie de pacto expressivo com o gênero fantástico. A questão central em torno da qual
giram as reflexões da autora está voltada para a seguinte pergunta: “que significa a ficção
portuguesa nos últimos dez anos?” (1984, p. 48). Segundo ela, para além da desconstrução do
modelo da narrativa tradicional, e para além da manifestação de pontos de convergência e de
divergência com as narrativas da presença e do neorrealismo, a ficção portuguesa contemporânea
apresentaria uma sedução pelo insólito em suas relações com o fantástico, sedução que se
evidenciaria, até mesmo, nos escritos daqueles autores cuja ideologia está assentada numa
proposta mais realista de literatura, como é o caso do próprio José Saramago, ficcionista que,
desde os seus primeiros romances, faz questão de deixar patente o seu posicionamento estéticoideológico de engajamento em relação à escrita. A esse respeito, diz Maria Alzira Seixo:
[...] o pendor para a dimensão fantástica [...] é abandonado em livros como Levantado do Chão
(1980) e Memorial do Convento (1982), mas não completamente, dado que no primeiro se mantém,
a par da tentativa épica e genésica de dar conta da relação indivíduo-família-grupo-terra, uma
inspiração vizinha da lenda popular pela votação do(s) herói(s) ao sacrifício e a uma espécie de
redenção final operada pela acção dos tempos na terra, isto é, pela acção do trabalho presente
sobre o futuro, efectivada por esse que é o grão que não morre; e no segundo, texto de uma
densidade nova na nossa ficção pela aliança notável que no seu discurso se pratica entre história
e linguagem, encontramos no mesmo nível da importância efabulativa o tema da construção
(do convento, da passarola; de uma ordem e do possível sonho que lhe foge) e o nimbo de
sobrenaturalidade que a envolve pela polarização da matéria fictiva em torno de personagens
com atributos de supra-humanidade, mantendo-se a narração equidistante dos pólos
romanescos essenciais – como que flutuando numa zona de hesitação ficcional entre a aventura
da sociedade e a sua (interdita) integração no sonho. (SEIXO, 1984, p. 56-57)
Maria Alzira Seixo escreve as reflexões que aqui citamos no ano de 1984, ano em que,
coincidentemente, Saramago publicará seu terceiro romance3, O Ano da morte de Ricardo Reis. E
se, como aponta a autora, esse novo estilo de escrita, apresentado por Saramago nos seus dois
romances pós-anos oitenta, não abandona por completo um certo gosto pelo gênero fantástico
expresso em narrativas anteriores, o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis também não
estaria completamente isento de interações com tal gênero. Se em Levantado do Chão a dimensão
fantástica se dá, como quer Maria Alzira Seixo, a partir da redenção final pelo sacrifício dos
heróis (recuperação da lenda popular), se em Memorial do Convento ela se dá a partir da flutuação
do romance numa zona de hesitação ficcional entre a aventura da sociedade e a sua (interdita) integração no
sonho, em O Ano da Morte de Ricardo Reis essa dimensão fantástica parece fazer-se ainda um tanto
mais evidente, visto que, nele, Saramago empreende aquilo que poderíamos chamar de um
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duplo salto ficcional, ao escrever a ficção da ficção. Desviado do universo heteronímico
forjado, em poemas, por Fernando Pessoa, Ricardo Reis, ente de papel, figura criada pela
linguagem, a ela circunscrita e existente apenas no espaço textual por ela produzido, sairá das
páginas de seu criador para vir habitar as páginas de um outro escritor que lhe conferirá,
também ficcionalmente, um corpo, uma nova estória e a opção – através da linguagem, é claro,
– de despegar-se definitivamente da máscara pessoana, ao conceder-lhe a oportunidade de
urdir para si uma espécie de existência própria. Morto Fernando Pessoa em novembro de
1935, a Ricardo Reis lhe será concedido um período de oito meses de existência autônoma,
período em que ainda se manterá viva a memória de seu criador4.
Contas certas, no geral e em média são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga
das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos
podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos
e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto
basta para o total olvido, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal. (RR, p.49)
Seguindo as tendências da literatura contemporânea, Saramago reinventará, ou melhor, relerá
a biografia de Ricardo Reis, deixada por Fernando Pessoa, a partir de um processo de apropriação
da tradição, isto é, de um roubo benéfico da tradição. Produzindo “rachaduras na página”,
dilacerando “as fibras do papel” (COMPAGNON, 2007, p.17) da famosíssima carta do poeta
de Mensagem a Adolfo Casais Monteiro, na qual se discorre acerca da gênese dos heterônimos,
Saramago partirá da biografia e da poética que o próprio Fernando Pessoa legara a seu
heterônimo horaciano, para relê-la, rasurá-la, reinventá-la, enfim, autor consciente que é de
que todo processo de colagem “não recupera jamais a autenticidade” (Idem, p.10) do objeto
retomado. Livre, pois, para recriar através da ficção, universo onde tudo parece possível,
Saramago dirá o seguinte a respeito do conhecido poeta estoico-epicurista dos tempos modernos,
na contracapa de O Ano da Morte de Ricardo Reis:
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no
Porto, é médico e está presentemente no Brasil. (Fernando Pessoa. Carta de 13 de Janeiro de
1935)
Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa. (José Saramago)
De volta a Portugal, após dezesseis anos de exílio voluntário no Brasil, Ricardo Reis depararse-á com uma pátria que, já antes, não reconhecia como sua – “Prefiro Rosas, meu amor, à
pátria” (OP, p.269) 5 –, e que passará a reconhecer ainda menos. Vindo do Brasil já “se lhe
notando um leve sotaque brasileiro” (RR, p.6), desenraizado de uma pátria e de um contexto
sócio-político-cultural que nunca lhe agradou, e que, por isso mesmo, o fizera, em certo sentido,
morrer voluntaria e metaforicamente para a nação e expatriar-se, mediante a retomada dos
padrões éticos da civilização clássica, na cultura greco-latina, Ricardo Reis terá, ao longo de
oito meses, a oportunidade de renascer para uma nova vida, por meio de um inusitado processo
de aprendizagem a que será submetido ao deambular pela Lisboa de agora, cidade que sua
memória, fragmentária e lacunar, não reconhecerá como sendo a Lisboa dos tempos outrora.
Tomada como metonímia de Portugal, essa Lisboa outra à qual chegará Ricardo Reis exporlhe-á o conturbadíssimo e complexo panorama em que se encontra não apenas a pátria, mas,
de certa forma, toda a Europa dos anos trinta, uma Europa imersa em uma das piores crises
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da história, e que oferecerá, portanto, um cenário nada favorável a Ricardo Reis, estoico, para
quem a vida consiste na ausência de perturbação, para quem o verdadeiro “Sábio é o que se
contenta com o espetáculo do mundo” (OP, p.259). É, pois, em meio a esse cenário caótico
que Ricardo Reis terá de aprender a ler a sua terra, para nela – e parece ser esta a grande
proposta do romance – poder escrever a sua própria história, como sujeito ativo, participante
e pertencente a essa mesma terra.
Maria Alzira Seixo, no segundo capítulo do texto citado anteriormente, chama a atenção para
o fato de que, a partir dos anos setenta – especialmente após o célebre episódio do 25 de abril
de 1974 –, para além da manifestação de vínculos expressivos com o fantástico, a literatura
contemporânea portuguesa passaria, cada vez mais, a refletir e a ter como tema principal a
escrita da própria terra, “como se tivesse passado a ter sentido escrever a terra em vez de escrever
sobre a terra” (1984, p.73, grifos da autora), uma vez que a terra torna-se responsável por
conferir sentido à personagem, por meio de sua integração na história. Ora, não é outra a
estratégia utilizada por Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis. O romance não se trata
apenas de mero trabalho de reinvenção biográfica. Muito pelo contrário! Ao deslocar a figura
de Ricardo Reis do plural universo pessoano, Saramago apropria-se de sua estória e reinventalhe a estória, promovendo a ficção da ficção a partir de seu próprio posicionamento ideológico.
O ano estrategicamente escolhido para a volta do personagem à sua pátria é o de 1936, tempo da
ditadura salazarista em Portugal, mas não só: tempo também da Guerra Civil Espanhola, do
fascismo de Mussolini e do nazismo de Hitler, como bem aponta Teresa Cristina Cerdeira da
Silva, em seu paradigmático livro José Saramago entre a História e a Ficção: uma Saga de Portugueses
(1989). Será, pois, a esse novo contexto europeu que Ricardo Reis terá de tentar adequar-se, e
a narrativa conceder-lhe-á a oportunidade de posicionar-se como sujeito da ação diante de tal
panorama. A esse respeito, escreve Teresa Cerdeira:
[...] É o Reis espectador da vida que o romance quer confrontar com o espectáculo de 1936,
para testar até que ponto se consegue ser «sábio» diante de uma Europa conturbada e agonizante,
de valores degradados, onde a liberdade começava a ser um sonho cada vez mais inatingível.
É esse o argumento do romance, cuja trama deambulatória nos revelará um novo e amargo
sentimento dum ocidental. Ricardo Reis voltará pelo mar para revisitar uma Lisboa que ele
também não reconhecerá sua e com a qual terá que aprender a conviver. Esforço quase sobrehumano para o poeta das musas, do campo e dos deuses. (SILVA, 1989, p.104)
Mais do que um trabalho de reinvenção biográfica, O Ano da Morte de Ricardo Reis é um
romance no qual Saramago relê e reinventa o heterônimo pessoano ficcionalmente, na linha
do seu projeto literário de revisão histórica e social. Desviado da ética finissecular de Fernando
Pessoa, que pregava a ideia da inutilidade da ação diante das adversidades do mundo, Ricardo
Reis será colocado em um intrincado e complexo contexto social, para atender à proposta de
engajamento deste escritor ulterior, José Saramago, cujo projeto literário, desde sempre, consiste
em retomar o passado para compreender o presente. Na esteira das reflexões marxistas de
Georg Lukács (2007) acerca do gênero romance, diríamos que Saramago, escritor voltado
principalmente para a produção de textos romanescos, converte sua ética libertária numa espécie
de problema estético de suas obras, ao esgarçar o modelo da narrativa tradicional e ao criar um
estilo de escrita mais que pessoal, que abole do discurso os chamados verbos discendi, e que,
para além disso, desconstrói o modelo de pontuação tradicional. Ora, ao elidir essas marcas
discursivas de sua escrita, é como se Saramago quisesse conferir um lugar de mais liberdade
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ao seu leitor, compreendido agora como um sujeito agente no processo de leitura. Ou seja,
não se trata, para o leitor, de assistir comodamente ao desenrolar da estória diante de seus
olhos, mas sim de participar, de maneira ativa, da própria recepção do texto, muito embora
o narrador de Saramago, em termos ideológicos, exerça uma forte influência persuasiva em
seu narratário, no intuito de fazê-lo aceitar a mensagem que se quer passar. Através da onisciência,
o narrador saramaguiano, como diz Madalena Vaz Pinto (Consulta em 10/04/2011), enreda
seu leitor numa especialíssima trama discursiva, isto é, numa intensa urdidura de emoções,
levando-o, gradativamente, a aceitar seu posicionamento ideológico, por meio do princípio da
comoção. Ressalte-se que a onisciência do narrador saramaguiano muito se diferencia da dos
narradores realistas e naturalistas do século XIX e da dos narradores neorrealistas do século
XX, porque, para além do desejo de comprovar um método, e, para além da pretensão de ser
um discurso da verdade, os romances de José Saramago se querem impor como matéria ficcional,
como tessitura, manifestando, dessa forma, a consciência de que o texto é, acima de tudo, um
trabalho de linguagem. No item seguinte, continuaremos a falar do romance O Ano da Morte de
Ricardo Reis em termos de reinvenção biográfica, entendendo por esse processo um estilo de
escrita inerente à ética e à estética de um tempo que concebe o texto como objeto de linguagem,
como urdidura de palavras.
3. A reinvenção como aposta no futuro
Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir
os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista,
mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o
que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que
foi pelo que poderia ter sido. (SARAMAGO, JL, Ano X, n. 400,
p.19)
Para falar de reinvenção biográfica em O Ano da Morte de Ricardo Reis, queremos, antes, retomar
este paradigmático verso de Cecília Meireles: “A vida só é possível / Reinventada” (1994,
p.239). O verso recuperado é aquele que abre o célebre poema Reinvenção, texto que promove
toda uma reflexão sobre a linguagem e sobre o literário. Diante da dura realidade da existência,
sempre mentirosa, sempre falaciosa, seja dia de sol ou noite escura, nossas experiências – que
devem ser entendidas como a vivenciação de um tempo e de um espaço específicos – não
passariam “de fundas piscinas de ilusionismo” (Ibidem). Frente a essa crise do real, caberia à
linguagem a reinvenção da existência humana, conferindo-lhe o sentido e a coerência que,
muitas vezes, não se encontrariam na própria vida. Ressalte-se que não se trata aqui de uma
aplicação direta da leitura do poema à obra de José Saramago, visto que o autor de O Ano da
Morte de Ricardo Reis jamais assentou sua proposta de escrita numa ideia de negação da experiência
e da ação em prol da criação de uma espécie de existência à parte no âmbito do literário. A
recuperação do poema de Cecília Meireles trata-se, sobretudo, de uma reflexão sobre a linguagem,
sem a qual – seres de linguagem que somos – não se poderia discorrer sobre a vida e, portanto,
sobre a biografia (etimologicamente entendida como a escrita da vida), tema central deste
item.
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Em sua célebre aula inaugural no Collège de France, Roland Barthes, ao considerar as relações
entre liberdade e opressão, afirma o seguinte a respeito da linguagem: “não se pode [...] haver
liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um
lugar fechado” (2007, p.15). Como estrutura fechada em si, como classificação, a linguagem
seria, segundo Barthes, opressiva e, até mesmo, fascista, já que, em vez de ser aquela que impede
de dizer, é aquela que, na verdade, obriga a dizer, isto é, a enunciar sentenças de acordo com um
conjunto de normas impostas pela sociedade, espaço onde se constrói a língua e onde se
determina o seu uso. Todavia, se, por um lado, a língua é aquela que dita a norma e, portanto,
circunscreve o espaço de liberdade de expressão; por outro, caberia à literatura – força subversiva
que é – romper com a norma imposta pela linguagem, ao “trapacear com a língua”, ou melhor,
ao “trapacear a língua” (Idem, 2007, 16). Ludibriando a língua, a literatura conseguiria conquistar
a liberdade que, como diz Barthes, existe apenas no exterior da linguagem, ao desviar a língua,
isto é, ao combatê-la no seu próprio interior. Para Barthes, a literatura seria, não um conjunto de
obras, mas uma prática de escrita, um tecido no qual ficariam impressas as pegadas dessa
prática. Mais que isso, a literatura seria um teatro de palavras, uma encenação da linguagem,
cujo objetivo seria precisamente a realização do desejo do impossível: a representação do real.
Mas o “real não é representável” (Idem, p.21), dirá Barthes, uma vez que não há paralelismo
possível entre a ordem pluridimensional do mundo e a ordem unidimensional da escrita. Ora,
essa consciência da impossibilidade de representação do real é justamente aquela que, em
relação às artes, norteia todo o pensamento moderno e contemporâneo, e, no caso específico
de José Saramago, poderíamos conceber o seu próprio projeto de revisão histórica através da
ficção – em que o olhar do presente será o reavaliador do passado – como uma espécie de
manifestação dessa mesma consciência, uma vez que, perdida a crença na prerrogativa da
verdade que o positivismo, durante largo tempo, apresentara como inerente ao próprio discurso
histórico, a história passaria, então, a ser compreendida como arte, como “uma arte
essencialmente literária” (DUBY, 1980, p.50). A par disso, Saramago retomará a história, não
no intuito de reescrevê-la exatamente, mas no sentido mesmo de reinventá-la, de torná-la
ficção. Consciente da falência da linguagem em relação ao resgate do real, o trabalho biográfico
realizado por Saramago em seus romances históricos deverá ser entendido muito mais como
um trabalho de reinvenção biográfica do que propriamente como um trabalho de recuperação biográfica.
A respeito da reinvenção biográfica, escreve Sofia Rosado:
Em termos estéticos, a biografia deve assumir uma responsabilidade para com a verdade que
não anule a imaginação. O biógrafo transforma simples informação em engenho: ao inventar
ou suprimir material para criar um determinado efeito, falha na verdade; se se contenta com o
relato dos factos, falha na arte. Esta tensão valoriza a tarefa biográfica (enquanto tarefa artística),
sugerindo a cronologia ao mesmo tempo que evidencia os padrões de comportamento que
conferem forma e significado à vida do biografado. (Consulta em: 10/04/2011)
Manifestando a consciência de que a função da literatura não é necessariamente a mimèsis e de
que o discurso histórico não é exatamente um discurso da verdade, mas sim um discurso sobre
a verdade, Saramago relerá o passado e a biografia de algumas figuras referentes ao período
histórico que se quer retomar pela palavra, a partir da ética e do olhar crítico de seu tempo, que
desconfia do discurso produzido pelas elites, entendendo-o como um discurso urdido no
intuito de ressaltar a ideologia dos vencedores. Ao reinventar a história, a biografia, a vida,
enfim, através da ficção, Saramago estaria destacando a ética de um tempo que entende a
linguagem e o texto como processos de recriação, de reinvenção, pois “tudo quanto não for
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vida é literatura”, como didaticamente nos ensina o personagem Raimundo Silva, em História
do Cerco de Lisboa (1989, p.15). Aliás, essa consciência da crise da mimèsis, ou melhor, da
impossibilidade de a linguagem dizer o real, é expressa desde o primeiro grande romance do
autor, Levantado do Chão (1980), em que o mesmo, na contracapa do livro, confessa haver
despertado de seu sonho, e não mais poder afirmar, categoricamente, ‘Isto é o Alentejo’, mas,
apenas, num discurso muito menos assertivo, ‘Isto é um livro sobre o Alentejo’. Em O Ano da
Morte de Ricardo Reis, é o próprio personagem quem tece reflexões sobre as limitações da
linguagem, quando Marcenda lhe pede a opinião acerca da peça que assistiram no Teatro
Nacional: “[...] Na minha opinião, a representação nunca deve ser natural, o que se passa num
palco é teatro, não é vida, não é vida, a vida não é representável, até o que parece ser o mais fiel
reflexo, o espelho, torna o direito esquerdo e o esquerdo direito [...]. “ (RR, p.77)
Ao dizer que a vida não é representável, Ricardo Reis estaria explicitando a própria consciência
da crise da mimèsis, expressa não apenas pelo seu criador – que um dia escreveu o paradigmático
verso “o poeta é um fingidor” (OP, p.164) –, mas também por um outro escritor do mesmo
século, José Saramago, que soube recriar brilhantemente o heterônimo pessoano. E porque
consciente de que toda a verdade é discurso, de que todo o passado é texto e de que toda a
história é interpretação, Saramago deslocará o poeta horaciano das páginas dos livros conferidos
à constelação Pessoa – nesse caso a ficção da ficção –, para relê-lo de acordo com o olhar
crítico de seu tempo, e de acordo com suas próprias concepções artísticas, assentadas, claramente,
numa proposta discursiva de intervenção social. Basta abrir o romance e ler as epígrafes que
antecedem o primeiro capítulo. Nessas epígrafes, retiradas tanto da obra de Ricardo Reis,
quanto da de Bernardo Soares, quanto da de Fernando Pessoa ortônimo, destaca-se sempre
um mesmo campo semântico: a ideia da inutilidade da ação, ideia que, aliás, perpassa não a
apenas os textos de Fernando pessoa ele-mesmo e de seus heterônimos, mas, de certa forma,
toda a literatura produzida pela geração de Orpheu. Das expressões ligadas, nas epígrafes, ao
campo semântico da passividade, tais como “se contenta”, “modos de não agir” e “quem
nunca existiu”, o texto saramaguiano logo passará, ironicamente, à retratação de um cenário
nada favorável ao contentamento e à indiferença. Trazendo, já no primeiro capítulo do romance,
patentes e latentes os conflitos com os quais irá deparar-se o personagem ao longo da trama –
como convém ao gênero romanesco –, o narrador fará com que Ricardo Reis adentre uma
Lisboa já por ele desconhecida, e assolada por um “mau tempo constante” (RR, p.3), mau
tempo que, por sua vez, representaria metaforicamente esse conturbadíssimo período histórico
europeu em que o poeta decidira retornar a Portugal: o fatídico ano de 1936.
Tomada como metonímia da nação, Lisboa é apresentada, desde as primeiras linhas do romance,
como uma cidade marcada por uma atmosfera obscura e de negatividade. Descrita a partir de
sintagmas nominais como “a cidade cinzenta” (Ibidem), “a cidade sombria” (RR, p.4), Lisboa
não parece exercer nenhuma forma de atração aos olhos do outro, porque, como diz o próprio
narrador, “Por gosto e por vontade, ninguém haveria de querer ficar neste porto” (Ibidem). E é
Ricardo Reis quem, sem saber por que, nem exatamente o que busca, desembarcará nessa
cidade de clima inóspito, assolada por um rigoroso inverno – que nem sequer é tão típico do
país – e por um céu que há dois meses “anda a desfazer-se em água” (RR, p.25), para, de certa
forma, ter suas concepções questionadas, porque ao narrador parece interessar-lhe a
problematização do conceito de vida daqueles que se posicionam como meros espectadores
da existência, daqueles que, como Ricardo Reis, almejam lograr “nem o remorso de ter vivido”.
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Ao chegar a Lisboa, Ricardo Reis que, diferentemente do grande poeta Camões, não soubera
fazer de seu largo período de exílio uma viagem iniciática6, isto é, um percurso de aprendizagem
em que o conhecimento seria adquirido essencialmente a partir da experiência vivida – já que
seu conceito existencial define-se justamente pela negação da vida –, Ricardo Reis, repetimos,
não parece ter, quando de seu retorno a Portugal, absolutamente nada a acrescentar à pátria,
porque quase nada aprendera 7 fora dela, porque nunca fora, enfim, “um destemido
experimentador de aventuras” (RR, p.47). Chegando a Lisboa tal como no momento de sua
partida, isto é, clássico, horaciano e estoico-epicurista, Ricardo Reis, num regresso insípido e
triste, nada monumental e completamente antiépico, adentrará uma ulisséia outra, que em
nada se assemelharia com aquela dos grandes tempos de glória. Revertendo até à radicalidade
o modelo camoniano, o texto de Saramago abre-se com estes vocábulos que já se tornaram
célebres, “Aqui o mar acaba e a terra principia” (RR, p.3), frase que, na esteira das célebres
Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett, apontaria, por um lado, para a ideia da falência do
modelo imperialista e, por outro lado, para a necessidade de lançar um olhar para a terra, ou,
como diria Maria Alzira Seixo, para a necessidade de escrever a terra.
Chegando a Portugal a bordo do Highland Brigade, Ricardo Reis encontrará um porto tomado
pela marinha inglesa e por barcos de guerra, panorama oposto ao do tempo em que no Porto
de Lisboa singravam as “soberbas naus” (VERDE, 1987, p.25), retomando aqui o célebre
verso de Cesário Verde. É, pois, nessa Lisboa torpe e de valores degradados, assolada não
apenas pelas chuvas, mas também pela miséria, pela violência e pela corrupção, que desembarcará
Ricardo Reis, para ser submetido a um percurso de aprendizagem que lhe exigirá uma reflexão
sobre a pátria e a demarcação de um posicionamento político-ideológico que, afinal, ele nunca
manifestara ao longo da vida. Difícil tarefa para um “pagão inocente da decadência”, que nada
quer ter nas mãos, nem sequer “uma memória na alma” (OP, p.258)! Caberá, portanto, ao
narrador o questionamento dessa postura de passividade e indiferença manifestada por seu
personagem em relação à existência, porque ele – o narrador, que, através do discurso indireto
livre e do fluxo de consciência, deixa claríssimo o seu engajamento, – não concorda com a
postura estoico-epicurista de Ricardo Reis, não vê aplicação prática dessa postura na vida
nacional, não crê, enfim, na máxima do poeta, que se orgulha em afirmar que “Sábio é o que
se contenta com o espetáculo do mundo” (OP, p.259).
Ora, Ricardo Reis é um espectador do espectáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria,
alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou,
afinal é tão fácil compreender os antigos gregos e romanos quando acreditavam que se moviam
entre os deuses, que eles os assistiam em todos os momentos e lugares, à sombra duma árvore,
ao pé duma fonte, no interior denso e rumoroso duma floresta, na beira do mar ou sobre as
vagas, na cama com quem se queria, mulher humana, ou deusa, se o queria ela. Falta a Ricardo
Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo e esta Lisboa são
uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho
aberto é para abaixo, se um homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem
cabeça. (RR, p.54)
Muito ironicamente, o narrador de Saramago parece desconfiar e, ao mesmo tempo, rir do
alheamento e do posicionamento estoico-epicurista de seu personagem, enxergando nessa
postura uma atitude, no mínimo, anacrônica. Repare-se que o trecho citado aponta justamente
para a descontinuidade e para a inviabilidade da postura do poeta em relação aos tempos
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modernos, porque Ricardo Reis não pertence – nem nunca pertencera – a um mundo em que
os seres humanos manifestam a crença de mover-se entre os deuses e, tampouco, a de que eles
(os deuses) nos assistem em “todos os momentos e lugares”. Separado por uma distância
multissecular daquele tempo e daquele espaço nos quais o homem experimentara a sensação
da totalidade da vida – se é que isso realmente é possível –, tempo e espaço onde haveria uma
espécie de harmonia pré-estabelecida, um a priori assentado na certeza da integração dos planos
humano e divino, já que, como diz Lukács, “o grego conta com as respostas antes de formular
as perguntas” (2007, p.26), separado, repetimos, por essa distância, a Ricardo Reis lhe não é
conferida a oportunidade de experimentar a sensação da totalidade, fator que o torna apenas
um pagão triste de um tempo de decadência. Em um mundo completamente desinstalado pela
morte de Deus, caberia ao homem assumir o papel de agente de sua própria existência, o que
Ricardo Reis não faz. Ora, encontramos aí a consciência moderna e contemporânea acerca do
tempo, consciência que exacerbará a ideia da impossibilidade de restaurar o passado de forma
plena, seja na literatura ou nas artes em geral.
De volta a Lisboa, Ricardo Reis seguirá uma lenta e gradativa trajetória de aprendizagem, em
que Lídia, deslocada do contexto pastoril das odes horacianas, assumirá um papel decisivamente
importante. Será com ela, uma simples criada de hotel, que o poeta, para além da experimentação
do amor, aprenderá a reler, ou melhor, a reinterpretar o discurso opressivo e alienante que,
diariamente, lhe chega através dos diversos meios de comunicação, e do qual nem mesmo a
elite é capaz de escapar. Um grande exemplo disso seria o discurso, sempre ufanista, do
renomado doutor Sampaio, que se orgulhava em reiterar o seguinte aos refugiados de Espanha:
“em Portugal poderiam viver o tempo que quisessem, Portugal é um oásis, aqui a Política não
é coisa do vulgo, por isso há tanta harmonia entre nós, o sossego que veem nas ruas é o que
está nos espíritos” (RR, p.111).
Ao final do livro, passado o tempo de oito meses em que ainda permanecera viva a memória
de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, voluntariamente, não completaria seu percurso de
aprendizagem, ao juntar-se para todo o sempre ao fantasma de seu criador, acompanhandolhe ao famoso Cemitério dos Prazeres. Finda a estória, Ricardo Reis não consegue posicionarse no mundo como sujeito da ação, e reafirma sua postura de alheamento e de negação diante
da vida, morrendo para ela, como bem aponta o título da obra, a qual, desde o princípio,
anuncia o seu próprio fim. Contudo, ressalte-se que a desistência de Ricardo Reis em nada
significa uma falha no projeto ideológico da narrativa. A esse respeito, diz Teresa Cristina
Cerdeira, com grande acuidade:
[...] O romance finda, assim, de um lado, com uma revolta abortada dos marinheiros para
derrubar o regime salazarista, que não conseguem sair da barra do Tejo; de outro, com a
decisão de Ricardo Reis de acompanhar Pessoa ao Cemitério dos Prazeres. Nessa volta do
epicurista aos «prazeres», entretanto, é só aparentemente falhada a proposta ideológica da
narrativa, pois Ricardo Reis inscreve com o novo texto um percurso novo, desconhecido pelo
heterónimo pessoano: assume a dor, chora de desespero, e deixa um filho – menino de sua
mãe, é verdade –, mas que, para além do naufrágio da rebelião dos barcos, acena para uma
possibilidade futura da terra que, como Lídia, ficava grávida de frutos, um dia não abortados
nem traídos. (CERDEIRA, 2000, p.276-277).
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Se Ricardo Reis não logra completar sua trajetória de aprendizagem, o romance, por sua vez,
não aponta para a ideia de falência. Cumpre atentar aqui para o sintagma final da narrativa,
que, invertendo novamente o verso camoniano, diz: “Aqui, onde o mar se acabou e a terra
espera” (RR, p.269), o que apontaria não para a ideia de uma espera passiva – numa espécie de
corroboração do mito sebastianista –, mas muito mais para a ideia de uma esperança futura,
fincada nas sementes de uma revolução por vir, e por meio da qual o país, enfim, se poderia
começar a levantar do chão. Eis aí a mensagem social e utópica que, por meio da reinvenção
biográfica de um poeta da inanição, o romance quer deixar à sua terra, escrevendo a história
daquilo que a pátria não tinha sido, mas que, certamente, um dia poderia vir a ser.
4. Conclusão
A literatura do século XX, consciente de que a linguagem não diz o real, mas que apenas o
forja num espaço outro que não o do mundo, investe numa proposta de escrita de reinvenção
e de recriação, apresentando ao leitor a história, não do que foi – já que a história, relato
textual, não é necessariamente um documento factual –, mas daquilo que poderia ter sido. Ao
recriar a partir daquilo que não corresponde exatamente à verdade, mas que, evidentemente,
teria um fundo de verdade, José Saramago faria de sua ficção um espaço pedagógico de utopias.
Caminhando junto com o seu leitor, levando-lhe mesmo pela mão, o narrador de Saramago
urde uma trama discursiva envolvente e sedutora, impelindo o narratário a assumir um pacto
com a proposta ideológica libertária que a escrita lhe quer passar. A reinvenção biográfica
funcionaria, nesse contexto, como um processo de escrita em que a história deixaria de ser
relatada a partir da ótica dos dominadores, para contar agora a estória dos dominados, daqueles
que não tiveram a sua marca deixada para a posteridade, obliterados que formam pelo discurso
das elites ao longo de muitos séculos.
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Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
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(Footnotes)
1
Ao longo deste trabalho, utilizaremos a abreviação RR para nos referirmos ao romance.
2
Compreendemos por metaficção historiográfica aquele gênero textual que, segundo Linda Hutcheon, “[...] incorpora
sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográ
fica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado [...] atua
dentro das convenções para subvertê-las. Ela não é apenas metaficcional; nem é apenas mais uma versão do
romance histórico ou do romance não-ficcional. [...] Desafiar, mas nã
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o negar. Mas ele realmente busca afirmar a diferença, e não a identidade homogênea. [...] no plural, as diferenças
são sempre múltiplas e provisórias”. (1991, p.22)
3
Referimo-nos à produção saramaguiana pós-anos oitenta, ano a partir do qual, com a publicação do romance
Levantado do Chão, o autor começaria a adquirir prestígio na comunidade literária e acadêmica. Sua carreira de
escritor, contudo, tem início em 1947, quando publica seu primeiro romance de juventude, intitulado Terra do
Pecado.
4
Na verdade, o período em que Fernando Pessoa ainda será rememorado é de nove meses, mas Ricardo Reis chega
a Lisboa passado um mês da morte de seu criador. Neste trabalho, referir-nos-emos a esse período como sendo de
oito meses, pois será precisamente ao longo desse tempo que se desenrolará a nova estória de Ricardo Reis.
5
Utilizaremos a abreviação OP para nos referirmos à Obra Poética de Fernando Pessoa.
6
Recuperamos aqui o conceito utilizado por Helder Macedo, em seu brilhante ensaio Camõ
es e a Viagem Iniciática.
7
A estória de Ricardo Reis reinventada por José Saramago mostra que o personagem não aprendera praticamente
nada em sua longa estada no Brasil. A narrativa diz apenas, num momento em que Ricardo Reis conversa com
Marcenda, que ele manifestara interesse em aprender um pouco sobre algumas doenças tropicais.
Submissáo e aprovação: 2011
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