1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso
27, 28 e 29 de março de 2008
RELAÇÕES ENUNCIATIVAS ENTRE DISCURSO DEMOCRÁTICO E
DISCURSO NEOLIBERAL CAPITALISTA
Maria Fernanda CURCI VICENTE (PG/UEM)1
Pedro NAVARRO (orientador/UEM)2
Introducao
“O trabalho do analista do discurso consiste em compreender outros
sentidos que estão à margem do texto, isto é “escutar” e fazer “falar” a
relação entre o dito e o não dito.” (NAVARRO, 2006, p.71).
A voz da maioria impera no discurso democrático, mas como agir sabendo que
essa maioria está condicionada histórica-socialmente a dizer tais coisas e não outras; e
se o discurso do capital cria meios para dizer que determinadas práticas são
democráticas, porque essa é a voz da maioria, mesmo que exclua muito, mas
democracia é nunca excluir? Ou ainda, o que não foi dito sobre as democracias liberais
que se faz no dito? Seria ela uma impossibilidade que se faz de possível por causa dos
diversos mecanismos discursivos?
O tema que tem como corpus estatutos-manifestos dos partidos Liberais
Democratas Brasileiros (PFL-Democratas, PSL, PPB, PL-Partido Republicano, PSDB e
PMDB) analisa dentro dos dispositivos teórico-epistemológicos da AD o discurso
democrático e sua construção no imbricamento discursivo com o discurso capitalista
liberal no funcionamento enunciativo da linguagem. A palavra imbricação é menos uma
seleção léxica de sinônimos que uma escolha interpretativa sobre sentidos entre o
discurso democrático e liberal no espaço de seus acontecimentos. Imbricação gera
sentidos. Quais? Como são acionados, emergidos e construídos? Como discursos com
características discursivas e materialidades escritas e orais diversas convivem nessas
siglas partidárias? Haveria uma crise de sentidos, falhas entre discursos ditos
democráticos com raízes neoliberais? Como, então, é operada a significação em um no
outro e que sentidos morrem e renascem? Quem nega quem ou justifica e legítima
quem?
Sentidos sobre democracia enfrentam crises nas relações sociais entre os povos,
assim este artigo visa enfrentar alguns questionamentos, tais como os expostos acima,
na busca de compreender a forma como esses discursos significam e circulam em
nossas vidas, as palavras que utilizam, sobretudo, a incompatibilidade discursiva entre
discurso democrático e o discurso capitalista que se realiza imbricativamente.
De início, é possível postular uma incongruência de sentidos entre ser democrata
e ser um partido liberal democrata preso por interdiscursividades capitalistas vistas,
aqui, como um espaço discursivo e ideológico onde se desenvolvem as formações
discursivas em função das relações de dominação, subordinação e de contradição. Nessa
rede de discursos e de poderes, como está o discurso democrático nesse
1
Maria Fernanda Curci Vicente é aluna do Mestrado na Universidade Estadual de Maringá tendo como
linha de pesquisa estudos do texto e do discurso.
2
Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa - UNESP/Araraquara; Professor do Programa de Pós
Graduação em Letras na Universidade Estadual de Maringá.
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entrecruzamento conflitante com o discurso do capital ou discurso liberal pensando na
origem de seus significados, materialidades simbólicas e poderes envolvidos. Bakthin
(1997) leva-nos a interpretar a língua como construtora de “mundo”, afinal, que mundo
estamos construindo sobre democracia liberal, quais poderes estão envolvidos e quais
são os catalisadores ideológicos na sua relação expressa com os partidos políticos em
questão, o que está se apagando nesse choque discursivo entre capitalismo liberal e
democracia, como ocorreria suas materialidades intradiscursivas ou simbólicalinguísticas e que palavras são essas advindas numa alteridade histórica discursiva (DE
CERTEAU, 1982), ou seja, vão se “retransformando” a todo momento mantedoras de
uma essência “fundante” que por muitos espaços e tempos habitam nossas vidas.
Essas discussões nos levam a pensar na origem do discurso democrático na sua
relação discursiva com os discursos liberais capitalistas, já que sentidos como a
sociedade “dita capitalista e democrática estão sendo possíveis”. Como analistas
interpretar o funcionamento discursivo, no caso, o corpus em questão é caminho
obrigatório para “lidar e operar com a paráfrase” (PÊCHEUX, 1995, p. 310), que
envolvem as formações discursivas e ideológicas.
Chegamos assim aos procedimentos para a análise. Foram feitos recortes
precisos no corpus, elencando textos dos manifestos e dos estatutos que revelassem esse
confronto, afirmações relacionadas a questões políticas e econômicas especificamente.
Tal material encontra-se nos respectivos sites dos partidos, em links, manifestos e
estatutos. Ressaltamos que, mesmo em contexto brasileiro, é necessário que se remonte
a história que extrapola os contextos de nosso país, para entender poderes envolvidos
nas suas origens e de suas atualidades.
1 O Metódo Que Se Constrõe na Análise
Focault (1986) revela que não existem enunciados neutros e independentes, mas
enunciados que fazem parte de uma série ou de um conjunto e assim vão se
relacionando uns com os outros, ora apoiando ora distinguindo-os. Está claro que essas
afirmações que caracterizam os partidos correspondem a ideologias e crenças históricas,
como a defesa da econômica capitalista liberal chegando ao ponto de cristalizar e
estabelecer sentidos em nossa cultura, que apagam e criam meios para impossibilitar
outros sentidos. É presente em nossos dias políticas de desuniversalização dos direitos
em nome do livre mercado, da flexibilização e da liberdade, palavras que indicam
modernidade, mas que abrem mão de qualquer mudança de um mundo para todos.
Assim vivemos uma crise profunda entre democracia, Estado e capitalismo. Discursos
neoliberais acreditam que a liberdade plena ou chamada de atitude globalizante
representa uma ampliação da democracia, mas devemos considerar que as relações
sociais e as supostas formações discursivas envolvidas moldam o discurso democrático,
que pode assim sofrer várias denominações, dentre as quais democracia liberal e
democracia participativa são as que mais correspondem às afirmações recortadas dos
manifestos e estatutos, já que encaramos o discurso:
Definido como efeito de sentido entre locutores. O texto é texto
porque significa. Então, para a análise do discurso, o que interessa não
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é a organização lingüística do texto, mas como o texto organiza a
relação da língua com a história no trabalho significante do sujeito em
sua relação com o mundo. (Orlandi, 1999, p. 69).
Nesse sentido, o enunciado liberal é o único possível nesse momento textual, a
crise então advém de sua relação com a democracia que todos os partidos conclamam
como bandeira indispensável para essa estrutura. Segundo Robin (1977) o discurso
político tem ligação com aquilo que é aceito na sociedade, ou seja, o discurso político é
modelado pelas práticas sociais e suas discursividades.
Courtine (2003) afirma que as democracias estão sendo, a cada dia, apagadas e
adoentadas por outras formas do discurso, as quais são cegamente seguidas, sem que se
perceba o quanto esmagam os sentidos reais de democracia. Segundo esse autor, os
discursos servem aos sistemas mercantilistas que nos cercam, ou seja, ao capitalismo, e
isso ocorre de uma forma que ninguém discutiria a ausência de democracia ou posturas
democráticas nesses discursos. Essa é uma das realizações do sentido que nos é apagada
e que se faz de transparente. Courtine segue discutindo que os discursos políticos se
realizam num embate sem memória, desacreditado, mas que incessantemente rodeia
nossas vidas, controladas a cada dia por uma política sem ruídos, silenciosa, mas que
esta lá a todo vapor, fervilhando sentidos. O que ocorre é uma mudança enunciativa a
favor de uma nova política democrática que se descaracteriza, o que torna a democracia
uma simples aparência, um espetáculo, o fim do político e o discurso capitalista
prevalece, indicando que as formas de comunicação política correspondem ao capital.
Para esse autor, “Estado espetáculo, uma perversão e deformação da democracia, uma
perigosa confusão de gêneros em que a política se deteriora em uma totalidade
mercantil.” (COURTINE, 2003, p.26).
Desde os tempos de Atenas o medo de que as classes populares conseguissem
participar plenamente das decisões tornava a democracia sempre limitada e só aceitável
se fosse voltada aos interesses da classe dominante como ainda acontece. Para a análise
dessa relação entre discurso, política e sociedade, podemos articular as propostas de
Foucault e Pêcheux, guardadas as devidas diferenças epistemológicas e metodológicas.
Entender o discurso como acontecimento implica considerar, na esteira de
Foucault (2000), que ele é o ponto de encontro de uma atualidade e uma memória,
concepção essa que nos permite observar as regularidades e dispersões discursivas que
atestam o fato de que os discursos são retomados e ganham novas configurações de
acordo com os momentos históricos de cada época. Para Pêcheux (1995), essas
retomadas e/ou ressignificações evidenciam uma relação de regras anônimas e históricas
que determinam o que pode e deve ser dito de acordo com as conjunturas sociais.
Deleuze (1998), em seus estudos sobre Foucault, nos leva a compreender que essa
análise deslineariza as práticas embasadas pelo discurso liberal, as quais destorcem os
sentidos sobre democracia sempre a favor das classes dominantes e ainda controlam a
participação das classes oprimidas, revelando que, antes desse saber esclarecedor, há um
poder que cria meios para apagar e construir sentidos a favor de determinadas
formações discursivas, como está demonstrado nas escolhas lexicais utilizadas nesses
manifestos e estatutos. Palavras como poder, liberdade, propriedade, empresa, economia
mista, livre mercado, privatizações, desenvolvimento econômico e outras tantas
correspondem aos fundamentos liberais. A esse respeito, Focault (1996) analisa que a
palavra e as instituições a que pertence possuem uma relação imanente no
estabelecimento de sentidos. Essa repetição de sentidos expressa nas palavras contribui
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para reforçar a economia liberal e sua suposta definição de política. Os enunciados
retirados de tais estatutos e manifestos e suas escolhas lexicais criam a impressão de que
é possível democracia e liberalismo.
2 Interpretações: O Histórico, as Origens e Os Sujeitos das Democracias Liberais
Schumpeter (1984) define democracia liberal como aquela que busca possibilitar
o equilíbrio entre a procura e a oferta de bens políticos, ou seja, os indivíduos
consumidores dos bens políticos se associam a distintos grupos em busca da
maximização de seus interesses. Ressaltamos que o termo maximização nos traz uma
ordem simbólica que evidencia a competição, o jogo de interesse, uma palavra que não
seria usada, por exemplo, nas democracias participativas. O exemplo é claro em alguns
afirmações dos partidos, PSL3: “No cooperativismo o grupo é o capital, é uma forma
de transferir o ônus do Estado de atender os setores econômicos para a própria
iniciativa privada;” “Quem quer administrar a economia não governa;” “O Estado
deve se afastar por completo da competição empresarial;” “O liberal é aquele para o
qual liberdade tem força, poder e eficácia organizatória, ela é fundamental na
organização social e política;” “O liberalismo acredita na justiça social com liberdade
individual.” [minha ênfase].
Considerando os quatro princípios de Focault (1986) para a análise do enunciado
são reveladores os contextos históricos de regularidades e dispersões que sofrem essas
afirmações. Os sujeitos são partidários e reiteram suas formações discursivas, pois há
uma série exaustiva que demonstra as mesmas crenças sobre economia, política e
democracia, que se resumem em competição, liberdade individual, privatização, Estado
mínimo, “direito” à propriedade, entre tantas outras palavras inseridas em um mesmo
interdiscurso. Esses discursos aparecem em várias materialidades da imprensa falada e
escrita, afinal quem nunca ouviu falar em competição, privatização e Estado mínimo,
quando o assunto é mercado de trabalho, economia e política?
Já o campo associativo se refere às inúmeras aparições dos discursos no espaço e
tempo histórico. No que diz respeito à democracia e ao capitalismo, nossa história foi e
é permeada por eles. Consideremos, por exemplo, que o Estado já foi mais autoritário e
hierárquico. Hoje, o Estado transformou suas palavras em uma nova ordem econômica
liberal, onde o papel do indivíduo na sociedade é sobreposto ao do Estado. Esses
conceitos para a chamada ordem social estão tão arraigados em nossas memórias, por
causa dos diversos mecanismos interdiscursivos, que questões ligadas aos sentidos
sobre democracia e capitalismo liberal revelam que esse saber regulamentado
institucionalmente por decisões políticas reforça um sistema de arquivo ou a história
desses conceitos originária da luta entre as diversas classes sociais,
Entre a língua que define o sistema de construção de frases possíveis e
o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas o arquivo
define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma
multiplicidade de enunciados como tantas coisas oferecidas ao
tratamento e a manipulação [...] [e ainda] Entre a tradição e o
3
Encontradas no respectivo site www.Pslnacional.org.br/estatutos/.
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esquecimento, ele faz aparecerem às regras de uma prática que
permite ao enunciado subsistir e, ao mesmo tempo, se modificarem
regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos
enunciados. (FOCAULT apud SARGENTINI, 2006, p. 41).
O equilíbrio da democracia liberal se definiria, então, pelo mecanismo de
mercado em que consumidores são os votantes e os políticos, os empresários, tornando
a participação restrita a grupos auto-escolhidos com a função de dirigir o processo
político, o que gera uma excessiva concentração de poder em uma elite fixa. Esse tipo
de participação, em que o grupo mais forte é escolhido, faz nascer uma crise em si
mesmo, um grau de apatia para manter a estabilidade do regime, uma vez que o
aumento da participação poderia gerar conflitos sociais, o mercado político não seria
competitivo, mas oligopolizado por poucas empresas partidárias em condições de
participar do processo eleitoral (MACPHERSON, 1978; DAHL, 1996).
Outro importante dispositivo metodológico criado na AD refere-se ao “discurso
do outro” (PÊCHEUX, 1995, p. 316), que está em todos os discursos na sua relação
intra e interdiscursiva. Tal relação marca um dizer com palavras que fabricam noções
ligadas ao respectivo momento sócio-histórico contemporâneo e à história que já se
passou, mas que se estende em nossos inconscientes, propondo que a verdade sobre
democracia é histórica e está ligada a nova ordem econômica, fato esse que pode gerar
uma crise profunda de sentidos sobre democracia, já que essa ordem econômica é
excludente por natureza.
Essa ordem produz um sentido de democracia como sendo algo para todos e que
se efetiva com a participação de todos. No entanto, não se é levado em conta que,
historicamente, as desigualdades econômicas e sociais não deixam esse todo participar,
criando a ilusão de que se as pessoas não participam é porque não tiveram competência
para fazer parte dos processos produtivos da sociedade capitalista. Vemos, assim, surgir
uma idéia de democracia sem democracia, porque não traz todos os cidadãos para o
mesmo plano de igualdade e participação, um equívoco de sentidos expresso na ordem
do simbólico.
Para ilustrar o exposto, vejamos as palavras utilizadas nas formações discursivas
correspondentes: PSL: “O liberalismo acredita na justiça social com liberdade
individual;” “Desenvolvimento econômico é o instrumento de desenvolvimento
social.” PL4 “O direito a propriedade é natural, inalienável e anterior á lei positiva;” A
propriedade justifica-se, sobretudo como instrumento para que se assegure a
liberdade;” “O acúmulo de riqueza deve ser um bem para o fortalecimento econômico
do cidadão.” PMDB5 “Salário justo se efetiva pelo esforço em produzir melhores
índices de produtividade responsável pelo trabalhador e pela capacidade de
organização das empresas;” “Capital produtivo caminho para a libertação
econômica;” “No mundo contemporâneo não existe globalização sem competição e
igualdades de oportunidades.” [minha ênfase].
Padrós (2004) alerta para o fato de que
Discursos capitalistas e neoliberais são marcados e revestidos de
democracia, mas o que ocorre é que o discurso democrático vai sendo
4
5
(www.prb.org.br/estatutosemanifestos/)
(www.pmdb.org.br/estatutos/)
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reduzido, uma democracia prostituída por uma mera participação
eleitoral em nome da “liberdade” importando tão somente os
mercados, com a palavra cidadania apenas representando a simples
pratica de consumidores, seres humanos são transformados em dados
quantitativos e as condições sociais de existência são traduzidas em
percentuais, índices técnicos que medem tudo e escondem o que é
fundamental perda da vida, uma democracia que esquece a efetiva
participação das pessoas, mas que as mede, as conta, as usa na hora
dos impostos e os votos. (PADRÓS, 2004, p.62, grifos nossos).
Com relação ao PMDB, PSDB6, PP7 e Democratas ou PFL8, materializa-se um
discurso diferenciado, mas que evidencia, sem dúvida, a ideologia do mundo liberal.
Esses partidos discutem o conflito das classes, por causa das desigualdades sociais e de
suas contradições provocadas pele ordem econômica. O que surpreende é que, mesmo
com essas constatações em seus textos, as soluções para essa problemática transformam
os partidos em um mesmo caldo discursivo. Nos seus discursos, para resolver tais
conflitos é preciso democracia e desenvolvimento econômico. No entanto, esses
enunciados e seus sujeitos não perdem o vínculo (e a subordinação) com a formação
ideológica dominante - o neoliberalismo globalizante, as afirmações como PP:“A
democracia deve caminhar entre o poder político e o poder econômico.” “A propriedade
deve ter uma função social.”Controlar o abuso do poder econômico por parte dos cartéis
e oligopólios.” PSDB: “justiça social se faz com crescimento econômico.” DEM/PFL:
“Economia liberal, a liberdade é a essência da democracia.” Torna-se evidente então,
que não há uma discussão se essa relação entre democracia e liberalismo na vida social
está sendo justa para as pessoas, o que vem dando certo e que tipo de “certo” discursivo
e ideológico é esse e por que essa forma de discurso e não outro. Não se discute,
efetivamente, se essa relação entre democracia e liberalismo na vida social está sendo
justa para as pessoas, o que vem dando certo e que tipo de “certo” discursivo e
ideológico é esse e por que essa forma de discurso e não outra.
Consideremos, agora, as relações de dominação, subordinação e de contradição
que o discurso democrático sofre nessa imbricação. Do ponto de vista da Análise do
Discurso, podemos considerar que a democracia que todos defendem, na sua imbricação
enunciativa com o capitalismo liberal, não se efetiva, tornando-se falaciosa.
Por exemplo: nos manifestos e nos estatutos não há um único sujeito falando,
mas vários, o que contribui para um olhar menos oblíquo dos possíveis leitores. Trata-se
de um efeito discursivo que revela um corpo de vários sujeitos, mas um corpo
determinado por uma mesma formação ideológica, a saber: a ordem econômica liberal,
que emerge como estrutura defendida nesses manifestos e, por corolário, produz
palavras específicas em consonância com determinada formação discursiva que não
pode incluir todos nos processos produtivos. Esse processo discursivo tem origem em
um interdiscurso onde a crença é que o econômico prevalece sobre o democrático,
criando uma ilusão de que é possível ser liberal democrata. Na nossa análise,
verificamos, no entanto, que esses manifestos e estatutos possuem conceitos de
democracia e práticas que mostram uma democracia se significando “ao bel prazer” de
6
(www.psdb.org.br/estatutosemanifestos/)
(www.pp.org.br/estatutosemanifestos/)
8
(www.democratas.org.br/estatutosemanifestos/)
7
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formações discursivas que Focault (1998, p.8) chamou de “efeitos de poder que criam
formas para se legitimar e instalar seu saber.” que de acordo com Courtine:
A noção de memória discursiva concerne a existência histórica do
enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos
ideológicos, ela visa o que Focault destaca a propósito dos textos
religiosos, jurídicos, literários científicos discursos que estão na
origem de um certo número de atos novos e falas que as retomam as
transformam, são ditas, permanecem ditas e restam ainda dizer.
(COURTINE apud MILANEZ, 2006, P.161, minha ênfase).
Os modelos de democracia nos Estados Unidos e na Inglaterra podem ser
exemplos para melhor compreendermos essas definições, eles que receberam várias
críticas das correntes marxistas já que o mercado político não ofereceria igualdade de
condições para a competição, porque os partidos têm recursos diferenciados para as
campanhas ampliando então a desigualdade com relação à competição eleitoral.
(MACPHERSON, 1978; DAHL, 1996). Em outras palavras, em uma situação de
exclusão sócio econômica significa que o indivíduo demonstrou uma incapacidade para
as responsabilidades da vida social e política, contribuindo para que as questões
importantes não sejam colocadas em discurso ou são disfarçadas, com isso os governos
facilmente encontram meios para se esquivar da responsabilidade diante do eleitorado,
uma participação demarcada pelo potencial competitivo do indivíduo que na atualidade
convenho a se chamar “mercado” econômico e político, consequentemente pela sua
capacidade de gerar riquezas. Nessas afirmações retiradas dos estatutos evidenciamos
essas posturas com os textos: “Salário justo se efetiva pelo esforço em produzir
melhores índices de produtividade responsável pelo trabalhador e pela capacidade de
organização das empresas.” “A privatização deve ser praticada de forma racional e
responsável, como ressalta o presidente do partido PSL Luciano Bivar “Deixemos a
produção com a iniciativa Privada.”
Quando ao modelo de democracia participativa que começou na Europa durante
os anos de 1960 se fez em intensas mobilizações políticas dos movimentos popular e
sindical e da insatisfação com os resultados dos regimes do leste europeu, surgindo
então a nova esquerda, no entanto ainda não é um modelo sólido ou amplamente
defendido como a democracia liberal, é também chamada de democracia direta, ela
centra-se na responsabilidade do estado perante os eleitores, mas para que fosse
efetivada era necessário resolver as desigualdades econômicas, posto que a existência de
tal situação impede os indivíduos de participarem em iguais condições da vida social
política do país. Dahl (1996) diz que esse tipo de democracia centra-se na
responsabilidade do estado perante os eleitores, mas para que aconteça é necessário
resolver dois problemas as desigualdades econômicas, pois elas impedem os indivíduos
de participarem em iguais condições da vida social e política do país; e a noção dos
indivíduos como consumidores substituindo-a pela percepção de executores e de
agentes do desenvolvimento de suas capacidades. Dahl ainda alerta que a democracia
direta não é exercida por questões políticas e não meramente por questões práticas ou
técnicas, embora aumente a participação a democracia participativa pertence à tradição
liberal, uma vez que permanece o principio ético dos direitos iguais a todo homem e
toda mulher no pleno desenvolvimento e ao emprego de suas capacidades e mais uma
vez é retomada as definições dos manifestos e dos estatutos que a todo momento
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apregoam essa noção de capacidades, levando a pressupor que as pessoas que sofrem
com as desigualdades não a usam ou são incapazes, contribuindo então, para um sentido
apaziguador entre democracia e fator econômico.
Poulantzas (1983) ressalta que um dos maiores impedimentos para a democracia
participativa é o papel desempenhado pelo Estado na manutenção das desigualdades
sociais, já que o entrelaçamento entre o público e o privado inviabilizam o tratamento
dos indivíduos como livres e iguais, uma crise marcante de sentidos sobre o discurso
que marca o direito a propriedade nos estatutos e em diversos outros espaços e
materialidades discursivas em acontecimento. Held (1987) também observa que, ainda
na democracia participativa há um conteúdo liberal nas relações entre os povos, visto
que não ocorrem mudanças significativas na concepção de indivíduo como consumidor
de bens públicos e na naturalização da desigualdade social. Portanto permanecem os
princípios de defesa da propriedade privada, da naturalização da exploração do homem
pelo homem e dos interesses de mercado, ao analisarmos os estatutos e manifestos.
Outro importante teórico que continua respondendo nossos anseios é Callinicos (1992)
com uma crítica mais veemente ao capitalismo que quer superá-lo ao invés de melhorálo como querem os partidos, propõe que a democracia deve se pautar nas tentativas para
superar a distinção que existe sob o capitalismo entre economia e política, mas
Poulantzas (1977) reitera que para a compreensão das formas de participação das
classes sociais nos Aparelhos do Estado é necessário que se desvenda as características
do estado capitalista e as respectivas estruturas que garantem a manutenção do poder da
burguesia e da reprodução do modo de produção, assim intercalam-se as relações de
poder entre as classes e o Estado.
O Estado em sua função de coesão se apresenta dessa forma, como representante
da unidade política povo-nação incorporando outras classes além da dominante, essa
incorporação é a única garantia de que os interesses das classes dominantes sejam
apresentados como interesse geral do povo nação, esse discurso exclui ainda mais os
interesses de todos em nome de um interesse geral e extremamente subjetivo em nome
do povo-nação.
“O estado concentra, em seu seio de modo específico não apenas a relação de
forças entre as frações do bloco no poder, mas igualmente a relação de forcas entre este
e as classes dominantes.” (POULANTZAS, 1977, p. 26). As relações de forças entre as
classes nesse tipo de democracia se expressam na esfera política e perpassam os
Aparelhos do Estado, configurando o papel de cada um nas relações de dominação e de
reprodução do sistema capitalista. Nessa relação de dominação, subordinação e
reprodução pelos mecanismos internos dos Aparelhos de Estado as classes populares
participam do estado de modo especifico, “sob a forma de focos de oposição ao poder
das classes dominantes.” (POULANTZAS, 1983, p.164). Essa participação não
implicaria mudança no caráter do Estado. Nos textos dos estatutos e manifestos os
partidos liberais democratas encaram democracia desvirtuada dos condicionantes sociais
e econômicos, privilegiando, no entanto, as temáticas da governabilidade e eficácia
administrativa e renegam totalmente a valor do bem público como, por exemplo, os
discursos que são apagados em relação aos investimentos públicos que foram
fundamentais para o crescimento econômico realizados pelo Estado, temos então, uma
democracia representativa na ordem capitalista que difunde a ideologia do Estado
neutro, acima dos conflitos entre as classes e representante da totalidade da população.
Boron (1994) nos esclarece que a crise das “ditas” democracias liberais
responsabilizam a democracia pelos problemas de ordem econômica e assim justificam
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a desregulamentação das relações trabalhistas e os cortes e rearranjos nas políticas para
o bem estar social que atinge especificamente os direitos sociais, e essa condição efetiva
e contribui para a continuidade do processo de acumulação do capital, por isso:
Mesmo o desenvolver da força produtiva social e da criação do
mercado mundial apropriado é ao mesmo tempo a contradição
permanente entre essa tarefa histórica e as relações sociais de
produção que lhe correspondem, uma negativa imanente do capital ou
ainda uma contradição constitutiva. (MARX, 1991, p. 288).
Gramsci (1991) mostra que esse sistema exclui da maioria da população as
relações históricas que o Estado capitalista mantém com a esfera econômica e criam a
ilusão de que o capitalismo desde que liberado de pressões “ilegítimas,” pressões essas
como os movimentos sociais, então sem essas pressões a democracia liberal e
“participativa” liberal pode ser harmoniosa e auto regulável, mas socialmente o fato é
que as crises econômicas e as contradições acirram-se muito, porque a maioria é
excluída das relações de troca tornando cada vez mais difícil para o Estado equilibrar
os níveis econômicos, políticos e ideológicos surgindo assim focos potenciais de
conflitos e lutas sociais. Ressaltamos também as questões simbólicas na medida em que
o sistema democrático liberal redefiniu e exacerbou o desenvolvimento de palavras e
sentidos como auto-controle, auto-disciplina, capacitação, competitividade, a fim de
manter sob controle os interesses, as exigências e as orientações políticas sociais
remetendo a sua satisfação para o mercado, palavras essas que se revelam nos estatutos
e manifestos de uma forma que tornam legítimas e incontestáveis para qualquer
construção de significados que não leve em conta o papel da discursividades
enunciativas e seus efeitos de sentidos a existência de uma democracia liberal e
participativa.
Considerações Finais
É indiscutível pensar na política exercida hoje diante desse quadro. Refletir
sobre o modo como poderemos caminhar e agir na resolução desses conflitos, como a
política está sendo significada em nossos dias, quais sentidos podem nos ajudar a
inverter esse quadro dramático das relações políticas, econômicas e sociais entre os
povos. Nesse panorama, que papel é esse que Pêcheux nos cobra ao dizer que a “AD é
antes de tudo uma questão política, portanto de responsabilidade [...]” (PÊCHEUX,
1995, p.314), ou que “AD tem como objeto essencial compreender as realidades
históricas e políticas, a um nível de intervenção teórica crucial para quem quisesse a um
só tempo, compreender a sociedade e trabalhar a sua transformação.” (COURTINE,
1999, p. 7).
Há inúmeros problemas isso é inegável, alguns questionamentos preliminares
surgem reforçando o quanto esses discursos necessitam ser deslinearizado, pelos
analistas. Por exemplo, ao falar que o Estado não pode participar da vida econômica não
seria o mesmo que retirar o povo das decisões? Já que o Estado representaria o povo,
estamos criando um sentido unânime para política e democracia no qual eles não mais
interessam, mas precisam estar lá importando, tão-somente, garantirem a legitimação do
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aspecto econômico, chegamos ao ponto de criar novos sentidos semióticos para política
e democracia. A democracia não deveria estar acima dos sistemas que chamamos hoje
de capitalista neoliberal ou só se efetivaria com a queda dos sistemas? Essas são
algumas das inúmeras interrogações a que nos colocamos como analista que, de alguma
forma, pretende intervir na sociedade que busca compreender com suas ferramentas
teóricas e metodológicas.
Referências
BAKTHIN. M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. Galvão Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BORON, A. A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. São Paulo:
Paz e Terra, 1994.
CALLINICOS, A. A vingança da história: a marxismo e as revoluções do leste
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