1 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM LIVROS DE HISTÓRIA DO BRASIL ENTRE A DÉCADA DE 80 E 90 Marineide de Oliveira Silva Universidade Federal de Mato Grosso [email protected] A discussão sobre o papel da mulher na sociedade não é nova, vem sendo historicamente relatada por diversos autores, de diversos campos científicos. Nos livros de história do Brasil, elas são mencionadas em sua maioria como coadjuvante e raramente como protagonista da história, isto talvez se deva ao fato de que até hoje a sociedade brasileira, conserva ranços da sociedade patriarcal. Por isso, mesmo hoje no século XXI, a mulher em muitas situações, continua sendo deixada em segundo plano. Apesar de algumas conquistas, é difícil para muitas mulheres se colocarem em posição de igualdade de direitos com os homens. Diante desse contexto, buscou-se realizar um estudo que desvelasse as conjunturas sociais que renegaram historicamente a mulher a viver a sobra de um homem, em muitos casos, seu marido. A fundamentação teórica pautou-se nos estudos de Roger Chartier (1990, 17) que aponta para a não neutralidade de alguns discursos sociais. Ressalta ainda que as representações do social “produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor a autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os indivíduos, as suas escolhas e condutas”. O trabalho pautou-se em pesquisas bibliográficas e análise de 04 (quatro) livros de história do Brasil entre as décadas de 80 e 90, nomeadamente: Beiguelman (1987), Carvalho (1990), Castro (1997) e Maluf e Mott (1998). Foram escolhidos, de cada livro, capítulos que referenciavam a mulher, a fim de estabelecer um parâmetro comparativo de como os autores (as) ressaltavam a participação da mulher em seus escritos. Para Chartier (1990) através da noção de representação, os sujeitos podem apreender e entender a realidade social em que estão inseridos. É neste sentido que as análises dos textos supracitados tentam caminhar, “dialogando” entre os assuntos relatados nos livros de história do Brasil e seus respectivos olhares sobre mulheres. 2 CARVALHO (1990) em seu texto: “Bandeira e Hino: o peso da tradição” procura mostrar os acontecimentos que antecederam a escolha da bandeira oficial do Brasil. Em todo capítulo a mulher é referenciada no momento em que surgem os conflitos gerados pela escolha do modelo de bandeira republicana, na qual trazia uma figuração feminina da República, sendo esta, a primeira representação da República em forma de mulher. Esse foto foi motivo para duras críticas, em alguns casos retratadas por meio de charges, como a de Ângelo Agostini no D. Quixote de 25 de novembro de 1985, que Retratou a República, como mulher, cavalgando em direção oposta ao progresso, em contraste com os Estados Unidos e outras repúblicas latino-americanas. No lugar da frase “Ordem e Progresso”, a bandeira trazia o seguinte escrito: “Desordem e Retrocesso”. Em outro trecho do livro, o citado autor utiliza um quadro intitulado “a Pátria”, deixa transparecer traços da ideologia que permeava a sociedade naquele período, a positivista, que delegava a mulher somente o papel de mãe, esposa e dona de casa, uma preservadora dos bons costumes. Um grupo de mulheres de todas as idades, filhas, mães, avós confecciona a bandeira. É uma exaltação tanto da bandeira e à pátria quanto ao papel moral da mulher na educação dos filhos e no culto dos valores morais família e da pátria. O símbolo materno é também óbvio na mulher que amamenta e na outra que abraça e beija uma criança (CARVALHO, 1990, p.119). A descrição desta obra tem muito em comum com a maneira em que os escritos de Maluf e Mott (1998) explicitam a vida cotidiana das mulheres dentro de seus lares e no convívio social. As autoras ressaltam que no final do séc. XIX e começo do séc. XX, as mudanças ocorriam em ritmo acelerado e com estas, esperava-se que a mulher, considerada agora mais moderna, começasse a reivindicar seus direitos e um lugar no mercado de trabalho. Não faltaram vozes nesse começo de século para entoar publicamente um brado feminino de inconformismo, tocado pela imagem depreciativa com que as mulheres eram vistas e se viam e, sobretudo, angustiado com a representação social que lhes restringia tanto as 3 atividades econômicas quanto as políticas (MALUF e MOTT, 1998, p.370). Esta situação conflituosa deixou os conservadores temerosos, pois acreditavam que a revolução feminina traria a corrosão dos costumes e que essa circunstância fora causada pelo inconformismo feminino que almejavam mudanças em suas vidas, principalmente no tripé, mãe-esposa-dona-de casa, imposta pelas representações sociais. Baseado na crença de uma natureza feminina, que dotaria a mulher biologicamente para desempenhar as funções da esfera da vida privada, o discurso é bastante conhecido: o lugar da mulher é o lar, e sua função consiste em casar, gerar filhos para a pátria e moldá-los para serem bons cidadãos (MALUF e MOTT, 1998, p.374). Esse discurso social era apoiado pela igreja, ensinado pelos médicos, divulgado pela imprensa e legitimado pelo Estado. Os papéis que os homens e as mulheres deveriam desempenhar na sociedade e no lar eram bem definidos, sendo que ao homem, chefe da família e provedor do sustento familiar, deviria ser como “a árvore poderosa arraigada ao solo, imutável, idêntica a ela mesma, procuremos no lar o ser estável que nenhum acontecimento pode abalar” (MALUF e MOTT, 1998, p.375), não poderia permitir que a mulher, “dependente e subordinada ao homem, sendo este como senhor de suas ações” (idem, p.375), se rebelasse ou desempenhasse papéis que não lhe pertencia. A ela era ainda destinada a incumbência de adivinhar os desejos do marido. A esposa, a boa dona de casa sabe perfeitamente quais gostos de seu marido, seus pratos preferidos e a maneira pelo qual os quer arranjados. Ela sabe tudo: o lugar que o marido gosta mais de estar, a cadeira escolhida, o descanso para pôr os pés [...] quando o marido lê não o interrompe, nem deixa perturbá-lo sem motivos. Mas se ele lhe fala do que a leitura sugere, a esposa mostra-se interessada - ou procura interessar-se pelo assunto-porque em tudo quer ser agradável ao marido, e isso agrada - lhe sem dúvida [...] (MALUF e MOTT, 1998, p. 389). 4 Del Priori (1997, p. 229) ressalta que o casamento entre famílias ricas era usado para se atingir, em muitos casos, a ascensão social e que as mulheres recém casadas tinham suas funções bem definidas. Mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modeladoras e boas mães. Cada vez mais é reforçada a idéia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera da família [...] A visão de Castro (1997) em seu texto: “Laços de família e direitos no final da escravidão” que envolviam questões ligadas às famílias possuidoras de escravos, não se diferem das demais citadas acima, quanto ao fato do papel da mulher ser o de mãe, dona-de-casa e esposa. A mulher quase sempre é retratada no ambiente doméstico, mas ocorrem vezes em que a autora apresenta de modo enfático o fato de algumas delas não serem casadas e terem amásios. Percebe-se que está prática, viver com um homem sem ser casada, era repugnada na época e acontecia freqüentemente com os escravos, perceptível neste trecho nos textos abaixo: “Bernadino, escravo em São Fidélis [...] escravo em Pernambuco, onde ele próprio nascera. Dizia ter trinta anos de idade e cerca de seis na fazendo. Era amásio de Ana, também escrava” (CASTRO, 1997, p.357). Habitava com sua mulher Custódia numa casa em separado, onde além da roça própria, possuía um cavalo. Era irmão de Manuel, forro, que vivia no bairro rural de Várzea Grande, não muito longe das terras do Sertãozinho, com casa, roca e a família. Era ainda amásio de Cadinha, moça livre, de dezesseis anos, afilhada de Bernadinho, homem livre e amásio de uma afilhada livre do mesmo Pedrinho (CASTRO, 1997, p.361). Diante do contexto acima explicitado, o que chama atenção e fato da autora não mencionar o contexto em que estas escravas viviam e nem o fato de muitas delas não poderem escolher entre ser ou não amásias, como por exemplo, quando o seu “dono” assim determinava. Para Del Priori (1997, p.73) a mulher poderia “ser mãe, irmã, filha, 5 religiosa, mas de modo algum amante. O desejo muitas vezes rebentava o grilhão das convenções e das imposições, e aí mesmo, no momento de transgressão, é que o historiador pode aproximar-se do sentido que, em peças incriminatórias, sobreviveu aos séculos”. A autora ressalta ainda a história de Justina (segunda metade do séc. XIX) que cometeu um crime para qual não se encontrava justificativa. Ela matou cada um dos seus três filhos menores e depois tentou se matar. As hipóteses para tal barbárie se pautaram na desconfiança de Justina. Ela achou que iria ser vendida pelo seu senhor na viagem que este faria ao sertão do Morro Coco-MG. A escrava Justina não cogitava sequer a idéia de se separar de seus filhos e do lugar que sempre vivera. “Justina chegara a lhe pedir que pelo menos vendesse ela por ali mesmo”. Imaginação ou não, o fato que ela desesperou-se e matou os filhos. Outra hipótese é que ela estaria com ciúmes de Bibiana, recém casada com o patrão, pois achava que a mesma roubara o lugar na casa e nos cuidados com o dono da casa, restando para Justina ser vendida. Os cuidados e a supervisão do lar começam a ser desempenhado por Bibiana e talvez esta não quisesse que seus futuros filhos tivessem influência de uma negra e de seus filhos, pois pairava também a hipótese dos três filhos de Justina serem filhos do patrão. Não importa a hipótese que justificaram este crime, o que importa é que em todo relato, Justina tem uma conduta depreciativa aos padrões morais e sociais. Em nenhum momento leva-se em consideração sua situação: escrava e mãe preste a viver longe de seus filhos, provável amásia do patrão, recém casado com uma senhorinha da sociedade. Tanto é verdade que não deram a Justina a chance de se expressar e contar o seu lado da história, que até hoje este crime só ficou nas hipóteses levantadas. Beiguelman (1997) em mais de trinta páginas, somente comenta a participação da mulher como cooperadora do marido entre os imigrantes que vieram para o Brasil substitui a mão-de-obra escrava. . [...] a introdução de imigrantes em famílias permitiria ao fazendeiro obter um suprimento de trabalho suplementar barato, fornecido pelos membros femininos e infantis, enquanto ao colono se tornava possível, através da cooperação da unidade familiar, um melhor aproveitamento das oportunidades de ganho (BEIGUELMAN, 1997, p.10). 6 Como pode o trabalho das imigrantes ser tratado tão de maneira superficial, elas tiveram participação maciça na colheita do café e na história do Brasil. Tinham jornadas triplas, além de labutar nas plantações, eram mães e esposas. Nessa perspectiva, o trabalho da mulher se resume a apenas, como uma “ajuda”, sendo que suas atribuições vão desde cuidar da família até ajudar no roçado e no plantio, ficando para o homem, considerado como trabalhador principal, a comercialização dos produtos e o dinheiro da comercialização. Eluf (2006) ressalta que durante um longo período histórico as vozes femininas nunca foram ouvidas, suas reivindicações como mulheres, trabalhadoras e mães, não foram atendidas, seus direitos como cidadãs não foram respeitados, como ficavam em casa, o poder se concentrava nas mãos daquele que era considerado o provedor do sustento da família, os homens. Até hoje, século XXI, a evolução profissional da mulher no campo, ainda sofre muitos preconceitos. Essa negação do valor do trabalho feminino trás inúmeras conseqüências, pois aos olhos das políticas esse trabalho não é reconhecido e não gera valores econômicos, dificultando assim, sua participação nas atividades remuneradas e na obtenção de créditos rurais. Talvez por se acreditar que a mulher, por não ser dotada de força física igual ao homem, não conseguiria viver e gerenciar as atividades relacionadas com a agricultura. Falcão (2003) ressalta alguns aspectos dessa divisão do trabalho no campo, ao pontuar que o lugar destinado as mulheres é cuidado do lar. Nesta divisão, as mulheres foram as mais prejudicadas, pois o papel feminino tradicional estabeleceu a maternidade como a principal atribuição da mulher. Suas atividades restringe-se ao âmbito doméstico, e o homem é tido como o provedor e que traz o sustento da família. [...] às mulheres no campo “o trabalho dito reprodutivo, cuidar da casa e dos filhos, pequenos animais, horta. Em outras palavras, o trabalho "improdutivo", segundo a ótica capitalista, que é tudo aquilo que é feito para uso e consumo da família, sendo pouco valorizado devido a escassa ou nenhuma participação na geração de renda” (FALCÂO et al, 2003, p. 02, 03). Essa situação deveria ter mudado, já que com a Constituição Federal de 1988, as mulheres garantiram o direito de ser igual ao homem perante a lei e essa parecia ser a 7 chance que as agricultoras esperavam para se tornar visíveis “aos olhos” das políticas públicas. Entre as várias conquistas alcançadas pelo segmento feminino brasileiro, pode-se destacar a promulgação da Constituição de 1988 que, entre outras coisas, assegurou a universalização dos direitos humanos, sem fazer distinção entre os sexos, ao consagrar a igualdade de todos perante a lei. A Constituição também reconhece explicitamente, entre outros direitos, a igualdade entre homens e mulheres na família, dispõe sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres na obtenção de título de domínio ou de concessão de uso de terras para fins de reforma agrária (CADENGUE, 2006, p.03) Os autores possuem poucas diferenças ao retratarem a mulher, mesmo que os contextos históricos de cada texto seja diferente, sempre é delegado a ela os afazeres domésticos, não se valoriza, em algumas situações a capacidade da mulher em desempenhar outras funções fora do tripé; mãe-esposa-dona-de casa. Acredita-se que subestimar a capacidade da mulher é contribuir para que a mesma permaneça invisível. A mulher deve ser levada em consideração como ser humano de direito, principalmente no que diz respeito ao direito de se expressar, direito à educação e o direito a uma vida sem submissão e discriminação. 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS ARAÚJO, Lindomar. Projeto semear: educação e profissionalização de dos agricultores familiares visando ao desenvolvimento sustentável. In Educação de jovens e adultos, Brasília: MEC, Boletim de 15/09/2006. BEIGUELMAN, Paula. A Crise do Escravismo e a Grande Imigração. SP: Editora Brasiliense, 1987. CADENGUE, Hersilia M. et al. Agricultura familiar: estudo de caso nos assentamentos rurais da mata sul. In. In.www.alasru.org/cdalasru2006. ACESSO EM 28/07/2007. CARVALHO, José Murilo de. Bandeira e Hino: O Peso da Tradição. In: A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil. SP: Companhia das letras, 1990. CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de Família e Direitos No Final da Escravidão cap. VII. IN: Historia da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1987, pp. 69-89. DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. ELUF, Luiza Nagib. Lugar de mulher é na cozinha?. In: 12 faces do preconceito. PINSKY, Jaime (Org.). São Paulo: Contexto, 2006. FALCÃO, Roberta Borges de Medeiros et al. A Mulher do Semi-Árido Nordestino, a Agricultura Familiar e o Sindicalismo: Uma Discussão em Seminário. Caraúbas/RN, 2003. In. www.ceplac.gov.br/radar/semfaz/agriculturafamiliar. Acesso em 02/08/2007. GAMA, Cylene Dantas da. A mulher do campo. Núcleo Operacional Mulheres na Defesa da Água e da Vida/MUDEAVIDA. In http://www.serrano.neves.nom.br. Acesso dia 11/08/2007. MALUF, Mariana e MOTT, Maria Lúcia. Recôndito do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau. (org.) História da Vida Privada no Brasil –República: da Belleépoque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Vol. 3, p. 368421. MELO, Lígia Albuquerque de. Injustiças de Gênero: o trabalho da mulher na agricultura familiar. Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. In. www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/GT_Gen_PO9_Albuquerque_texto.pd f. Acesso em 27/07/2007. 9 SILVA, José Graziano da. Tecnologia e agricultura familiar. Porto alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.