Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
Edition: 1
Page: PAGINA_A User: Schinaid Time: 05-08-2013
23:57 Color: C
K
Y
M
ESPECIAL
ABOLIÇÃO
125 ANOS
FOTO: GUITO MORETO
Bisneto de Vicente, um escravo liberto em 13 de maio de 1888, o doutor em História Robson
Machado conta como os descendentes viveram os últimos 125 anos. Do seu avô, que trocou o
Espírito Santo pelo Rio para trabalhar na linha férrea, a seu filho, estudante de Geografia na Uerj
EU ESCREVO A MINHA HISTÓRIA
CAROLINA BENEVIDES
[email protected]
Aos 14 anos, Vicente valia 1.200 réis. Era o ano de
1871, e ele vivia na senzala da Fazenda Córrego
do Ouro, no sul do Espírito Santo. Escravo desde
que nasceu, provavelmente em 1857, na Região
da Zona da Mata de Minas, foi comprado para
trabalhar no plantio e na colheita do café. No ano
em que a Lei do Ventre Livre foi aprovada, Vicente dividia a fazenda com outros seis escravos. A
mais velha, Jeronyma, de 50 anos, valia 400 réis,
quatro vezes o valor de um burro de carga.
Dezessete anos depois, em 13 de maio de
1888, Vicente se tornou um homem livre. Mas,
para ele e para a maioria dos escravos, a Lei Áurea não significou, de cara, uma mudança de vi-
da. Ao ganhar a liberdade, recebeu o sobrenome do dono da propriedade e passou a se chamar Vicente Pereira Machado. E ainda permaneceu por, pelo menos, mais uma década na fazenda. Lá casou e teve os primeiros filhos.
Após 125 anos da assinatura da lei pela princesa Isabel, O GLOBO conta a vida de Vicente e
de seus descendentes — personagens de um
Brasil que redescobre sua História negra e reduz
desigualdades, mas ainda convive com o preconceito e os resquícios da escravidão.
— Essa ideia de que as pessoas saíram correndo e comemorando, isso é lenda. Depois do 13
de Maio, meu bisavô e a maioria dos escravos
continuaram vivendo onde trabalhavam. Registros históricos mostram que alguns receberam
um pedaço de terra para plantar o que iam co-
mer. Mas poucos passaram a ganhar ordenado,
e houve quem recebesse uma porcentagem do
café que plantava e colhia — conta Robson Luís
Machado Martins, bisneto de Vicente, que desde a década de 1990 pesquisa a história de sua
família e, de quebra, a do Brasil.
— Toda família tem uma história. A da minha
é também a do Brasil nos últimos 150 anos.
Foi pesquisando para a graduação em História, o
mestrado e o doutorado que Robson descobriu como viveu seu bisavô. Antes de tudo, ouviu os relatos
dos seus avós maternos, Paulo Vicente e Ana Cândida, filha de uma portuguesa com um africano.
— Cresci com minha avó exaltando mais o lado comunitário e festivo do que as agruras, a violência, os filhos sendo vendidos, os açoites. A
parte humana de uma convivência desumana.
De haver um sentimento comunitário. Quando
fui para a faculdade, resisti bastante a escrever
sobre esse período. E até hoje faço assim: quando estou tranquilo, vou adiante. Quando abala,
eu paro — diz Robson.
Em suas pesquisas, ele descobriu que Vicente
era um negro mais alto e mais forte que a maioria. Em 1871, valia mais que o irmão, Marcos,
um ano mais velho. Foi esse porte que fez com
que fosse escolhido como reprodutor e tivesse
relações com as escravas, que gerariam filhos.
Depois, apaixonou-se por uma branca e acabou
no tronco. Foi ainda capitão do mato, pessoa
que devia resgatar os escravos que fugiam.
— Ninguém tinha opção. Meu avô contava que
o pai teve que aceitar ser capitão do mato, mas
que não ficou com reputação ruim — diz. l
Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
2
Edition: 1
Page: PAGINA_B User: Schinaid Time: 05-08-2013
l O GLOBO
ABOLIÇÃO
125 ANOS
23:57 Color: C
K
Y
M
l Especial l
Primeiros
escravos.
Revolta em
Palmares.
1559
1694
A Coroa
portuguesa
permite o
ingresso de
escravos no
Brasil. Cada
senhor de
engenho
poderia
importar até
120 negros.
Família
avança no
ritmo do
progresso
do Brasil
REPRODUÇÃO/MUSEU ANTÔNIO PARREIRA
Domingo 12 .5 .2013
QUADRO DO PINTOR JOHANN RUGENDAS
Pressão sobre
o Brasil.
1810
1823
GUITO MORETO
Em Salvador,
uma outra
visão da
escravidão
Livro retrata negros
donos de escravos e
vizinhos de brancos
BIAGGIO TALENTO*
[email protected]
Negros e pardos chefes de família, tendo escravos entre suas propriedades, convivendo com brancos em
casas vizinhas e até no mesmo prédio.
O quadro é descrito pelo geógrafo Pedro Vasconcelos a partir de um estudo
feito no Censo de 1775 em duas freguesias de Salvador à época. Professor da
Universidade Católica de Salvador, Vasconcelos fez uma análise minuciosa do
Censo, em parte obtido na Torre do
Tombo de Portugal, publicada no seu
livro “Salvador: Transformações e Permanências (1549-1999)”, cuja segunda
edição ampliada e revisada está no prelo e deve ser lançada ainda este ano.
Pelo Censo de 1775, na freguesia de
São Pedro, a primeira fora dos muros
da cidadela de Salvador, foram registradas 92 casas com chefes de família pretos, 82 casas com chefes de família cabras (termo da época para classificar
mestiços) ou pardos, 348 casas com
chefes de família brancos.
— Em pleno período da escravidão,
essa freguesia contava com um terço
(33,3%) de chefes de família “de cor”,
que conviviam num mesmo espaço urbano com as demais famílias — observa o autor.
Na freguesia da Penha, situada à beira-mar de Salvador, a
U
proporção de libertos
e de livres “de cor” era
Números
ainda mais elevada:
48%, quase a metade
das famílias, sendo
28% delas chefiadas
por pretos e 20% por
DAS FAMÍLIAS pardos e cabras.
O
levantamento
NEGRAS E
mostra inexistência
MESTIÇAS
eram vizinhas de “segregação espacial” entre os indivíde brancos
duos, apesar das difenuma
renças social e de cor.
freguesia de
Exemplo: na casa de
Salvador
número 156 da freguesia da Penha, residia o capitão-mor do
Forte de Itapagipe, Felix Jozé de Barros,
branco, casado, com
DOS NEGROS
50 anos. Seus vizinhos
EM SÃO
eram a costureira AnPEDRO
na M. Mendes, preta,
eram donos
viúva, com 30 anos, na
de escravos,
casa de número 155; e
de acordo
João Felix, preto, casacom o Censo
do, com 30 anos e sem
da época
profissão definida, na
casa de número 157.
Mais interessante, diz Vasconcelos, é
o caso da existência de casas “mistas”:
— Encontramos indivíduos de cores
diferentes que residiam nos mesmos
endereços, certamente em diferentes
andares ou nos fundos e quintais. Na
freguesia de São Pedro, oito brancos residiam nos mesmos endereços que
quatro pardos e quatro pretos, de níveis
sociais diferenciados, como um desembargador branco, um carpinteiro
pardo, ou um médico branco e um
marceneiro preto.
O Censo demonstra ainda a grande
quantidade de escravos que as famílias
possuíam, independentemente de cor
e posição social. Em São Pedro, 26%
dos pardos tinham escravos e 25% dos
pretos também tinham escravos. O livro destaca, por exemplo, relatos de
uma padeira viúva parda (Maria Nunes) que “tinha o enorme contingente
de 24 escravos”. (*Da Agência A Tarde,
especial para O GLOBO) l
-SALVADOR-
Com ‘muita peleja’, avô,
mãe, irmã e filho
de Robson mudam de vida
CAROLINA BENEVIDES
[email protected]
Quando o Brasil fez seu primeiro Censo, em 1872, o
levantamento apontou que 15% da população era
de escravos, o que correspondia a pouco mais de
1,5 milhão de pessoas. Dezesseis anos mais tarde,
em 13 de maio, o país tinha menos de um milhão
de escravos. A redução se deu muito por conta da
Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários, que
em 1885 libertou todos os negros com mais de 65
anos e estabeleceu que os com mais de 60 anos e
menos de 65 estariam livres, mas sujeitos à prestação de serviços por três anos.
Vicente Pereira Machado, o bisavô de Robson
Machado, era um dos escravos que o Censo apontava. Liberto quando a Lei Áurea foi assinada, ele
deixou a fazenda por volta de 1898. Estava casado
com Marcolina Ribeiro de Jesus, que havia nascido
depois da Lei do Ventre Livre. Os dois, os filhos e
Marcos, irmão de Vicente, foram para Vala do Souza, hoje Jerônimo Monteiro (ES). Em 1910, já em
Alegre (ES), nasceu Paulo Vicente Machado.
Avô de Robson, Paulo cresceu ajudando os pais
na lavoura. Menino, ele aprendeu sobre jongo, soube das dificuldades enfrentadas por quem vivia nas
senzalas e ouviu histórias sobre as negras bonitas.
Aos 15 anos, casou com Ana Cândida, 12 anos
mais velha. E foi durante a República Velha (18891930), com a expansão ferroviária, que passou a trabalhar na estrada de ferro. Começou capinando a
linha. Mais tarde, acabou transferido com a família
para Bom Jardim, na Região Serrana do Rio.
— A expansão ferroviária era um trabalho braçal
e arregimentou muitos negros. Meu avô foi um deles e veio para o Rio trabalhar na Estação Santa Luzia — diz Robson.
Foi em Bom Jardim que, em 1947, nasceu Maria
Cleusa Vicente Machado, mãe de Robson. Aos 9
anos, ela deixou a família e foi trabalhar como doméstica no Centro do Rio.
— Em Bom Jardim, a gente tinha uma vida miserável — recorda Cleusa. — Eu dizia que não queria
aquela vida, queria estudar, ter roupa bonita. Então,
minha mãe deixou que eu fosse embora.
Em 1956, Cleusa desembarcou na Rua Calógeras — “lembro o endereço todo até hoje”. Juscelino Kubitschek já era o presidente.
— Fiquei até os 16 anos. A dona da casa enviava
dinheiro para minha mãe e deixava que eu falasse
ao telefone com ela. O marido foi bom até eu ficar
maiorzinha. Daí, passou a dizer que me queria —
conta Cleusa, que foi, então, trabalhar em Copacabana. — Fui arrumadeira até casar, em 1967, quando fomos para São Gonçalo.
Foi em São Gonçalo, na Região Metropolitana do
Rio, quando o governo militar já havia aprovado a
Constituição de 1967, que nasceram Ana Verônica,
em 1968, e Robson, em 1970. O casamento não deu
certo, e Cleusa viu que era hora de “fazer uma profissão”. A neta de Vicente decidiu estudar.
— Fiz supletivo. Continuava doméstica, mas ganhava pouco. Algumas vezes a gente tinha um ovo e
só. Não foi fácil, mas concluí o primeiro grau —
lembra Cleusa. — Uma vizinha viu meu esforço e se
ofereceu para me ensinar a costurar. Consegui emprego numa fábrica. Depois, comprei uma máquina à prestação e comecei a costurar em casa.
E foi costurando que ela pôde fazer com que
Ana Verônica fosse a primeira da família a ter
curso superior. Ela se formou em Ciências Contábeis, numa faculdade particular.
— Foi uma peleja desde a hora da inscrição.
QUADRO DE BENEDITO CALIXTO
José Bonifácio
apresenta uma
representação
à Assembleia
Legislativa e
Constituinte do
Império
propondo a
extinção
gradual da
escravidão.
A Inglaterra
declara ilegal o
tráfico
negreiro. O
príncipe
regente Dom
João VI se
compromete a
estabelecer a
abolição
gradual.
O quilombo de
Palmares (PE)
é invadido e
destruído. Seu
líder, Zumbi,
foge, mas é
capturado e
decapitado no
ano seguinte,
em 20 de
novembro.
Abolição
gradual.
Transformação. Cleusa, o neto Daniel e os filhos Robson (de óculos) e Verônica: educação mudou a vida da família
CINCO GERAÇÕES
Vicente Pereira Machado
ESCRAVO
Nasceu provavelmente em
1857, em Minas Gerais.
Passou a adotar o sobrenome
em 13 de maio de 1888,
quando ganhou a liberdade
Descendentes
ainda vivos
Casaram-se na
Fazenda Córrego
do Ouro, no
Espírito Santo
Vicente
Marcolina
Marcolina Ribeiro de Jesus
Nasceu livre, depois de
setembro de 1871, quando já
vigorava a lei do Ventre Livre.
Não há informação sobre o
local de nascimento
FILHOS
Pedro
Virgínia
Paulo
Casaram-se em 1925
na Paróquia Nossa
Senhora da Penha,
em Alegre (ES)
Paulo Vicente Machado
FERROVIÁRIO
Nasceu em 1910, em Alegre (ES)
Marcos
Ana
Vicente
25%
Ana Cândida Vicente Machado
Nasceu no Norte Fluminense,
possivelmente em 1898
FILHOS
Haroldo
Maria Tereza
Roberta
Nascidos em
Bom Jardim (RJ)
Leônis Ferreira Martins
Nasceu em 29 de
agosto de 1943, em
Bom Jardim (RJ)
Leônis
Casaram-se
em 22 de
julho de
1967. São
divorciados
Romilda
Reni
Rute
Nascidos em Alegre (ES)
Maria Cleusa Vicente Machado
DOMÉSTICA E COSTUREIRA
Maria Cleusa Nasceu em 18 de setembro de
1947, em Bom Jardim (RJ)
FILHOS
Ana Verônica
Machado
Martins
Nasceu em 15
de maio de 1968 Ana Verônica
Robson
Robson Luís Machado Martins
FORMADO EM HISTÓRIA
(UFF). MESTRE E DOUTOR
PELA UNICAMP
Nasceu em 11 de
fevereiro de 1970.
Separado
FILHO
Eu não tinha o dinheiro todo, o diretor falava
que não podia esperar, e ela chorava. Os vizinhos ajudaram e deu tudo certo — recorda.
Com Robson, “a peleja foi igual”:
— Ele estudou em Niterói (na UFF) e, depois,
foi estudar em Campinas (Unicamp), já tendo
um filho pequeno.
Hoje, Daniel, filho de Robson, é um rapaz de 18
anos e cursa Geografia na Uerj.
— Quero que ele passe adiante a história da família. Que lembre que a vida mudou quando minha
Daniel
33%
Daniel Robson
Peixinho Martins
UNIVERSITÁRIO
(UERJ, GEOGRAFIA)
Nasceu em 15 de
dezembro de 1994,
em Niterói (RJ)
mãe, avó dele, disse que o estudo devia vir em primeiro lugar. Eu vivo em Campinas, tenho situação
financeira boa. Minha família continua em São
Gonçalo, numa área em que todos os amigos de
infância do meu filho se envolveram com o tráfico e
estão mortos — diz Robson. — Ficamos para mostrar que é possível mudar. O que temos é esforço
nosso. Os escravos, meus avós diziam, viviam coletivamente. A gente também. Ninguém aqui caminha
individualmente. Carregamos a marca da escravidão até na identidade. Mas temos prosperado. l
Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
Edition: 1
Page: PAGINA_C User: Schinaid Time: 05-08-2013
23:57 Color: C
K
Y
M
l Especial l
Domingo 12 .5 .2013
QUADRO DE JEAN BAPTISTE DEBRET
O GLOBO
REPRODUÇÃO
Lei dos
sexagenários.
Uma lei para
inglês ver.
Livres a partir
dos 8 anos.
É aprovada a Lei
do Ventre Livre,
que estabelece
que filhos de
escravas
nascidos a partir
daquela data
seriam
considerados
livres a partir
dos 8 anos.
Deputado por
Pernambuco,
Joaquim Nabuco
apresenta projeto
de lei propondo a
abolição da
escravidão. No
mesmo ano, é
criado no Rio o
jornal
“O Abolicionista”.
É aprovada a lei
que liberta
escravos de
mais de 65
anos, mediante
indenização.
Proprietários
de escravos
alteram os
registros para
burlar a idade.
Pouco antes da
abolição da
escravatura,
estouram
revoltas de
negros por todo
o país, e suas
fugas são
intensificadas,
principalmente
no Vale do
1831
1871
1880
1885
1888
Após pressão
da Inglaterra, a
Lei Feijó, que
proíbe o tráfico
negreiro, é
aprovada, mas
descumprida.
Em 1850, a Lei
Eusébio de
Queiroz reforça
a proibição.
O abolicionista
do Império.
Enfim, a
liberdade.
REPRODUÇÃO
Paraíba e em
Campos dos
Goytacazes, no
Rio, e em áreas
canavieiras de
Pernambuco.
Finalmente,
em 1888, após
aprovação pelo
Parlamento, a
princesa Isabel
assina a Lei
Áurea.
REPRODUÇÃO/LIVRO COLEÇÃO PRINCESA ISABEL
l 3
REPRODUÇÃO/ACERVO LABHOI
Caricatura. Fazendeiros assediam um liberto
U
DESTINO DOS LIBERTOS
UFF MANTÉM PESQUISAS
SOBRE O PÓS-ABOLIÇÃO
Corte em festa. Milhares de pessoas se concentram no Centro do Rio após a assinatura da Lei Áurea: o calendário de eventos em comemoração à abolição se estendeu por um mês no país
MARCELO REMÍGIO
[email protected]
SONHO DE LIBERDADE
O TRABALHO SILENCIOSO DE ABOLICIONISTAS
O trabalho de abolicionistas anônimos foi registrado na História muito antes da Lei Áurea, mas envelheceu desconhecido em arquivos públicos do
país. Com a lupa na mão e o desejo de encontrar
casos que remontem ao período da abolição no
país, pesquisadores do Laboratório de História
Oral e Imagem (Labhoi) da UFF têm resgatado esse passado que não entrou para os livros. São trajetórias silenciosas de padeiros, juristas, jornalistas e
negros forros que lutaram pelo fim da escravatura.
Somente no século XIX, quando o tráfico negreiro
foi proibido, desembarcaram no Brasil 2,06 milhões de africanos, a maior parte ilegalmente. Os
carregamentos eram formados por homens jovens, pois as mulheres não eram rentáveis na lavoura e tinham baixo valor de venda. O GLOBO foi
em busca dessas histórias e traz registros de anônimos que tinham a vida movida pela liberdade.
Histórias de
heróis anônimos
Pesquisadores vasculham arquivos e resgatam
brasileiros e africanos que lutaram pela abolição
REPRODUÇÃO/ACERVO RESGATE/LABHOI
REPRODUÇÃO/ACERVO LABHOI
LISTA DE MATTOS
PADEIRO ‘FABRICAVA’ CARTAS DE ALFORRIA FALSAS
As mãos que davam forma ao pão de seis onças, o
mais comum nas padarias do Império, eram as
mesmas que alimentavam o sonho da liberdade
de muitos negros na cidade paulista de Santos, na
segunda metade do século XIX. O padeiro João de
Mattos, que todas as madrugadas dividia a arte de
fazer pão com negros escravos, à noite trocava de
ofício. Ele imprimia cartas de alforria falsas, a serem entregues a escravos fugidos. De posse do documento, os negros tornavam-se libertos.
João de Mattos priorizava em sua lista negros
que trabalhavam em padarias. O movimento criado pelo padeiro rompeu os limites de Santos e
chegou a São Paulo e Rio de Janeiro. A saída para
liberdade criada por Mattos também tinha um viés trabalhista. Para ele, enquanto existissem escravos não haveria respeito ao trabalhador e, muito
menos, melhores condições de trabalho.
MANOEL CONGO
LÍDER NEGRO COMANDOU MAIOR FUGA NO ESTADO
A Mata Atlântica que hoje separa os municípios de
Paty do Alferes, no Sul Fluminense, e Petrópolis, na
Região Serrana, guarda memória da maior fuga de
escravos no Rio. O ano do levante, 1838. O idealizador da revolta, Manoel Congo. Negro traficado,
Manoel Congo chegou à Fazenda Freguesia, em
“Eu pisei na pedra, a pedra balanceou. O
mundo tava torto, rainha endireitou. Treze de
maio a corrente rebentou, o cativeiro já
acabou”. Embalados pela canção do jongo,
pesquisadores do Laboratório de História
Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade
Federal Fluminense (UFF) desenvolvem há
23 anos trabalhos que buscam resgatar o
cotidiano das últimas gerações de escravos
no Brasil e o período pós-abolição.
— Há um vazio a partir de 1888. Muitas
dúvidas permanecem sobre o que aconteceu
com os escravos que foram libertados. O
ensino nas escolas e a maior parte dos livros
didáticos não abordam o pós-abolição —
explica Hebe Mattos, que integra o Labhoi.
— Parece que após 13 de maio de 1888
os escravos libertos desapareceram do Brasil
e os livros embranqueceram — acrescenta a
pesquisadora Martha de Abreu.
Em 20 anos, o Labhoi produziu 300
horas de gravações com depoimentos de
descendentes de escravos; documentários;
teses e dissertações sobre a abolição.
período que antecedeu a abolição, das quais, pelo menos a metade, foi favorável aos negros. Por
trás dos processos, estavam advogados abolicionistas que se debruçavam sobre os processos em
busca de soluções para beneficiar escravos.
Francisco José Rebello, advogado na região que
hoje abriga Florianópolis, em Santa Catarina, escreveu seu nome na lista de abolicionistas anônimos ao brigar pela liberdade da escrava Liberata,
mulata que chamava a atenção por sua beleza.
Aos dez anos de idade, Liberata foi comprada. Já
adolescente, a era violentada sexualmente por seu
senhor sob dois pretextos: era de sua propriedade,
e os seus serviços poderiam render-lhe a sonhada
carta de alforria. Liberata teve dois filhos com seu
senhor, sendo o mais velho muito parecido com o
pai. A traição de seu dono levou a mulher dele a
também perseguir Liberata, vítima de seus castigos. Sob alegação de maus tratos, a escrava levou à
frente um processo contra seu senhor. Em 1813,
Rebello enviou requerimento à Justiça contando a
história de vida de sua cliente, pedindo o direito de
liberdade. A ação transcorreu por um ano e foi,
posteriormente, arquivada, após Liberata conseguir sua carta de alforria, possivelmente por meio
de negociação com seu proprietário.
RETORNO À AFRICA
Talento negro. Escravos da Fazenda Resgate, que
integravam banda de música: alvo de estudo do Labhoi
Terreiro de café. Pintura reproduz o trabalho de negros
após a abolição: imagem garimpada por pesquisadores
Arcozelo, Paty do Alferes, para trabalhar como ferreiro. Em pouco tempo, tornou-se líder regional da
luta contra a escravidão. Manoel atuou em silêncio
confeccionando armas para a rebelião. Estrategista, ele traçou rotas de fuga e maneiras de armazenar comida para os rebelados.
O estopim para a revolta foi uma sessão de tortura a qual um dos escravos da Fazenda Maravilha foi
submetido. A propriedade era vizinha à Freguesia, e
ambas pertenciam ao capitão-mor Manoel Francisco Xavier, conhecido por aplicar castigos rígidos
aos seus escravos. Inconformado com a violência,
Manoel Congo reuniu outros líderes negros de Paty
— Pedro Dias, Vicente Moçambique, Antônio Magro e Justino Benguela — e, em 5 de novembro, promoveu o levante que libertou cerca de 400 escravos.
A fuga esvaziou as senzalas das duas fazendas e
atraiu os negros domésticos que trabalhavam na
casa grande. Os fugitivos foram divididos em dois
grupos e seguiram em direção à Santa Catarina, localidade de Petrópolis. O grupo de Manoel Congo
foi pego e o líder, preso. Os demais que conseguiram fugir formaram um quilombo nas matas que
hoje formam a Reserva Biológica de Tinguá. Manoel Congo foi enforcado um ano depois, após ser julgado. Os demais líderes presos receberam como
castigo chibatadas, enquanto mulheres e crianças
foram poupadas. Inúmeras histórias são contadas
em Paty sobre Manoel Congo, como a de um possível romance com Marianna Crioula, negra que participou da organização da fuga. A sede da Fazenda
Freguesia guarda hoje acervo dedicado ao líder negro. A Fazenda Maravilha também foi preservada.
NOS TRIBUNAIS
ADVOGADO DEFENDEU A LIBERDADE NA JUSTIÇA
Vasculhando documentos do Arquivo Público
Nacional, pesquisadores da Unirio descobriram
que não era impossível um escravo processar seu
dono e ganhar a liberdade. Há registros de 402
ações julgadas na Corte durante o século XIX, no
NEGRO LIBERTO E A META DE FUNDAR UMA CIDADE
Líder abolicionista entre os muitos anônimos que
lutaram contra escravidão, o africano liberto Joaquim Nicolau de Brito tentou levar mais de cem
negros forros de volta à África. Em busca de aliados, procurou os ingleses, que reprimiam nas
águas do Atlântico o comércio ilegal de negros
para o Brasil. A atividade foi proibida por lei em
1831. À época, o Império fazia vista grossa para o
tráfico e mantinha uma legislação para “inglês
ver”. Apenas em 1850, uma nova lei ampliou os
mecanismos de fiscalização e aumentou o poder
dos ingleses para interceptar navios negreiros.
Em correspondência ao governo inglês, Joaquim
Nicolau pediu auxílio para que seu grupo fundasse
uma cidade em Cabinda, na África Centro-Oriental.
Enquanto aguardava retorno, buscou interessados
em alugar uma embarcação por 500 mil contos de
réis e levar cerca de 200 ex-escravos de volta às terras africanas. De início, os britânicos encontraram
barreiras que poderiam levar o sonho do grupo ao
naufrágio, como transporte inseguro, falta de alimentação e terras indisponíveis. Ainda assim, o pedido foi aceito pelos britânicos, que, em setembro
de 1851, proporcionaram transporte, armas, munição e proventos necessários à aventura. Documentos sobre o caso estão arquivados em Londres. l
Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
4
l O GLOBO
ABOLIÇÃO
125 ANOS
Edition: 1
Page: PAGINA_D User: Schinaid Time: 05-08-2013
23:57 Color: C
K
Y
M
l Especial l
Conquista do
direito ao voto.
REPRODUÇÃO
Domingo 12 .5 .2013
Mulher, negra e
deputada.
REPRODUÇÃO
Valorização
da cultura.
Mesmo após a
Abolição, o
direito dos negros
ao voto só é
garantido em
1934. A
Constituinte
daquele ano
também teve,
pela primeira
vez, uma mulher.
A educadora e
jornalista
Antonieta de
Barros se torna
a primeira
mulher negra
eleita para uma
Assembleia
Legislativa e
ocupa vaga em
Santa Catarina.
Abdias
Nascimento (foto)
cria o Teatro
Experimental do
Negro. O projeto
revela Ruth de
Souza, Jacyra
Sampaio, Léa
Garcia e
Aguinaldo
Camargo.
1934
1935
1944
Marcas
de um
tempo
nem tão
distante
DIVULGAÇÃO
Punição contra
o racismo.
A Lei Afonso
Arinos estabelece
um ano de prisão
ou multa por
racismo. Em
1989, a prática
passa a ser
considerada
crime
inafiançável pela
Lei Caó.
1951
GUSTAVO STEPHAN
REPRODUÇÃO
Vestígios do Ciclo do
Café devem ressurgir em
escavações planejadas
O bisneto. Maurício Antônio Monteiro de Barros Pinto, guardião atual da Boa Esperança
CHICO OTAVIO
Enviado especial
[email protected]
-RIO PRETO (MG)- Falta apenas o sinal verde do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) para as escavações começarem. Sob o piso da senzala da Fazenda Santa Clara, em Santa
Rita de Jacutinga, Zona da Mata mineira, os pesquisadores esperam desenterrar História. Pela
primeira vez, em 20 anos, eles vão esquadrinhar
um sítio arqueológico do Ciclo do Café, no Vale
do Paraíba, em busca do que ainda resta contar
sobre a passagem dos escravos pela região.
Nos primeiros 30 anos do século XIX, o Porto do
Rio recebeu cerca de 700 mil africanos, pelos cálculos do historiador e especialista em escravidão Flávio Gomes, da UFRJ. Parte considerável foi levada
para as fazendas de café do Paraíba. Diante da
grandeza do número, pode parecer inútil abrir a
golpes de colher de pedreiro um buraco de 45 metros quadrados e 30 centímetros de profundidade,
no máximo. Porém, para o arqueólogo Luís Cláudio
Symanski (UFMG), responsável pelo projeto, e para
o próprio Gomes, as perspectivas são animadoras.
— Como a história dos escravos no Brasil é
praticamente toda contada pela elite, as escavações na Santa Clara darão aos africanos a rara
oportunidade de se expressarem pelo que deixaram enterrado — explica Symanski.
Em processo de tombamento, a fazenda talvez
seja a maior propriedade rural do século XIX
ainda em pé na região, embora as infiltrações e
rachaduras não lhe deem trégua. Seus seis mil
metros quadrados de área construída abrigam
46 quartos, 14 salões, uma capela, dois terreiros
de café e uma masmorra, com grilhões, viramundos (madeira onde se prendiam os pés e as
mãos dos escravos) e outros objetos que conferem ao lugar um aspecto aterrador.
Mas o centro das atenções em julho, quando
começam as escavações, será a senzala em forma de pavilhão, praticamente intacta com as
paredes de pau a pique e 24 falsas janelas. Ao
contrário da primeira e única escavação em
senzalas do Vale, que pouco encontrou em
1999, a integridade da construção dá aos pesquisadores a confiança de desenterrar aquilo
que, há dois séculos, os escravos queriam esconder: vasilhames de cerâmica que reproduziam a memória dos países de origem e vestígios
relacionados às práticas espirituais, como talismãs, moedas furadas, cristais de quartzo e garrafas com produtos espirituais.
— São vestígios que mostram como os africanos construíam a identidade. Muito do que se
sabe sobre os escravos foi extraído de processos-crime, em que eram interrogados sob coação, ou de testamentos deixados por alforriados, ex-escravos que tiveram uma trajetória excepcional. Na área rural, só se consegue uma
história sem distorções quando se escava a senzala — sustenta Symanski.
A propriedade, construída entre 1824 e 1856
pelo comendador Francisco Teresiano Fortes
de Bustamante, amargou a crise do café, foi hiGUSTAVO STEPHAN
História. Senzala da Fazenda Santa Clara, em Minas:
escavações podem revelar objetos dos escravos
O bisavô. Bernardino de Barros, o Barão das Três Ilhas, ou o “Barão Arrogante”
potecada ao Banco do Brasil e, desde 1923, pertence à família do coronel João Honório de Paula Motta. Seus herdeiros, que somam 38 pessoas
divididas em oito núcleos, não se entendem sobre o destino da fazenda. Cada qual ocupou um
pedaço do casarão, que mantém trancado a cadeado, e conspira contra o núcleo rival em situações dignas de um romance rural.
Um dos herdeiros, o advogado José Mendes
Honório, embora satisfeito com o processo de
tombamento no Instituto do Patrimônio Estadual, reconhece que “a maioria esmagadora da
família” é contra a medida e trabalha para vender a propriedade:
— Uma fazenda assim, quase tombada, não
tem valor de mercado. Eles precisam se convencer de que, no rateio, sobrará quase um valor
simbólico para cada um.
PROPRIEDADE SOBREVIVE ÀS INTEMPÉRIES
A poucos quilômetros da Santa Clara, outra propriedade histórica insiste em sobreviver às intempéries. Mas, na Fazenda Boa Esperança, em
Belmiro Braga (MG), reina o consenso sobre a
preservação da casa, erguida no início dos anos
1870 pelo Barão das Três Ilhas, Bernardino de
Barros, e de uma tulha (lugar onde o café era
processado e guardado) que oferece a qualquer
visitante a estranha sensação de ter saído do túnel do tempo em pleno Brasil Império.
O consenso doméstico é fácil porque a imensa
construção, com 15 cômodos, cinco salões, cozinha, capela e banheiro (raríssimo nas sedes do período), é habitada por uma única pessoa. Maurício
Antônio Monteiro de Barros Pinto, de 76 anos, bisneto de José Bernardino, a quem chama de “Barão
Arrogante”, é o guardião solitário da memória da
Boa Esperança. Chega a ser quixotesca sua luta
contra a debilidade do corpo, agravada por uma
diabetes, em capinas, varreduras e limpezas diárias para manter viva a história da família.
Tudo parece conspirar contra esse Dom Quixote mineiro. Não se dá com o único dos três filhos
que ainda mora no município. A ex-mulher não
se interessa pela fazenda. Belmiro Braga encolhe
em população a cada ano, e a produção de leite
da fazenda, restrita a 40 vacas, mal chega para as
despesas de subsistência, reforçada pela aposentadoria no valor de um salário mínimo e a taxa de
R$ 15 que cobra de visitantes eventuais.
Mas o abandono é, ao mesmo tempo, a fortuna
de Maurício. Foi o eterno desinteresse pela fazenda que manteve a Boa Esperança quase igual ao
que era há 125 anos. Móveis, documentos, louças,
objetos pessoais e até perfumes e bonecas franceses, está tudo lá, intacto. Alguns desses objetos,
capazes de encher os olhos de colecionadores de
antiguidades, estão cobertos de poeira. Magro,
olhos claros, sempre de jaleco, o guardião percorre a casa, com explicações sobre cada coisa, como
se obedecesse a um ritual.
Para Maurício, o bisavô é o “Barão Arrogante”
porque nunca admitiu o declínio financeiro e
morreu em 1915 sem saber que estava completamente falido. A fazenda só não foi a leilão porque
o irmão, Gabriel Antônio de Barros, o Barão de
São José Del Rey (“Barão Humilde”, para o bisneto), pagou a dívida a tempo. Sim, Maurício é bisneto do arrogante e do humilde, herdeiro de uma
família que manteve a tradição da elite rural da
época de estimular os casamentos consanguíneos para não fracionar as posses.
Na fazenda, permanece no ar o clima de opulência e declínio do Brasil escravagista. Maurício desconversa. Pouco diz sobre o local da senzala, que já
ruiu, mas garante que a Boa Esperança chegou a ter
715 escravos. Não sabe mais de onde tirou o número, mas não é preciso esforço para encontrar vestígios. Em meio a papéis espalhados pelas mesas, muitos exibindo as marcas da fúria dos cupins, é possível achar, por exemplo, o recibo de venda das escravas Doroteia, Honorata e Cesária. l
DIÁLOGO No encontro de bisnetos, passado e futuro de um país
Preconceito, memória e História
perpassam conversa entre
bisnetos de escravo e fazendeiro
-RIO PRETO (MG)- Toda a conversa não levou mais de
uma hora, mas pareceu durar 125 anos. O desabafo saiu quando a mulher de 44 anos descrevia
o esforço tardio de completar os estudos e concluir um curso técnico de saúde bucal:
— De nada adiantou, porque a prefeitura não
me dá emprego. As pessoas daqui têm a cabeça
pequena. Só eu sei o que passo.
Nisso, ela foi interrompida pelo visitante em
sua casa:
— Para conseguir o serviço, é preciso fazer
concurso. Está na Constituição. Quem for mais
competente fica com a vaga.
— Ah, é? Então me explique: por que as duas única brancas de uma turma de oito conseguiram o cargo sem fazer concurso? O problema está aqui — reage a anfitriã, passando o
dedo na pele negra.
A mulher é Lígia Maria Marçal, moradora de
Rio Preto, Zona da Mata mineira. Bisneta de escravo, mora perto da Fazenda Santa Clara, onde
começou a saga de sua família no Brasil. Naquela manhã, ela recebia em casa o professor de
História João Marcos Honório Carneiro, bisneto
do coronel João Honório de Paula Motta e um
dos herdeiros da propriedade.
Dia após dia, um exército de cupins, morcegos,
pássaros e outros pequenos predadores se encarrega de devorar uma fatia do que sobrou das fazendas
de café do Vale do Paraíba, um dos principais enclaves escravagistas do Brasil no século XIX. Algo, porém, parece imune à ação do tempo: os vestígios
culturais desse passado. Não há festa de 13 de Maio
e outras homenagens que apaguem o que um diálogo entre os dois herdeiros é capaz de revelar.
Lígia procurou confortar o constrangido visitante. Garantiu nada ter contra a sua família, que
só assumiu a fazenda após a libertação dos escravos, ou contra a cidade que a abrigou, depois que
deixou a zona rural quando o pai já não tinha
GUSTAVO STEPHAN
Conversa com o passado. Lígia Marçal, bisneta de
escravos, e João Marcos Honório, bisneto de coronel
mais forças para trabalhar num laticínio. Ela não
sabe o nome do bisavô escravo, mas, até se casar,
levava o sobrenome Fortes na carteira de identidade, cedido pelo comendador Francisco Teresiano Fortes de Bustamante, este, sim, o grande
proprietário de escravos da Santa Clara.
Professor da rede pública e quarta geração dos
Honórios, João Marcos é visto pela família como
um pesquisador da fazenda. Debruçado sobre os
inventários da propriedade, apurou que a Santa
Clara chegou a ter 380 escravos. Descreve o Brasil
pré-1888 como um “período peculiar” e se diz
adepto da “vertente de que a escravidão foi endógena, já existia dentro da África”. Para ele, em vez
de danças típicas, o 13 de Maio teria mais proveito se mostrasse o genocídio de Ruanda, quando
800 mil pessoas foram mortas em 1994 durante
choques tribais na África.
O secretário municipal de Governo de Rio Preto, José Milton Ferreira, negou que a prefeitura
discrimine candidatos a cargos públicos. Ele disse que não conhece o caso específico de Lígia,
mas supõe que o prefeito Agostinho Paiva já tenha empregado alguém da família dela e não a teria contratado para dar a mesma oportunidade a
outras famílias do local, “dividindo o pão”.
— Quando acabou a escravidão, a elite passou
a sugerir que tudo tinha acontecido num passado distante. Mas a escravidão aconteceu ontem.
As feridas estão abertas — disse o historiador da
UFRJ Flávio Gomes, especialista no assunto. l
Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
Edition: 1
23:57 Color: C
K
Y
M
l Especial l
Domingo 12 .5 .2013
Pioneiro em
telenovelas.
Page: PAGINA_E User: Schinaid Time: 05-08-2013
MÔNICA IMBUZEIRO/01.07.2002
O ator Zózimo
Bulbul é o
primeiro negro a
protagonizar
uma telenovela.
Também é o
primeiro negro a
ser modelo de
uma grife de
alta-costura no
Brasil.
1969
Direitos para
quilombolas.
JAMIL BITTAR/05.10.1988
O GLOBO
Ações
afirmativas.
ELIANE MARIA/25.05.2009
A Constituição
Federal é
promulgada e
garante às
comunidades
remanescentes
de quilombos a
propriedade
das terras
ocupadas por
elas.
A Uerj é a
primeira
universidade a
ter cotas raciais.
Dez anos
depois, o STF
julga a política
constitucional, e
elas viram lei
em instituições
federais.
O ministro
Joaquim
Barbosa toma
posse na
presidência do
Supremo
Tribunal
Federal. É o
primeiro negro
a ocupar o
posto.
1988
2002
2012
Isabel:
uma
princesa
avessa à
política
DIVULGAÇÃO
[email protected]
ROBERTA JANSEN
Considerada uma das maiores especialistas em
Brasil Império, a historiadora Mary del Priore
acaba de lançar “O castelo de papel” (editora
Rocco), em que disseca a imagem de Isabel de
Bragança, a princesa que acabou por assinar a
Lei Áurea no Brasil, libertando todos os escravos. O livro revela como Isabel, na verdade,
nunca esteve interessada em política, muito
menos na causa abolicionista. Só acabou sendo
a responsável pela Abolição por puro acaso.
FORMAÇÃO
DONA DE CASA
“Fica bem demonstrado, por meio de vários documentos e frases dela, que detestava a vida política. Havia uma incompatibilidade com o projeto que lhe atribuíam. Não achei nenhuma frase dela que demonstrasse qualquer interesse
pelo assunto. Estava mais preocupada com a vida familiar, as gravidezes.”
INCENTIVO DO IMPERADOR
“Além de todas essas questões, o próprio dom
Pedro II não a aproximou da vida política, não a
incentivou. Então, ela tinha uma vida social
muito privada, ficava muito tempo em Petrópolis, às voltas, primeiro, com as questões da sua
esterilidade e, depois, com a criação dos filhos e
as viagens para a Europa. Não tem exatamente
um círculo de amizades. O casal não tem visibilidade, não vai ao espaço público.”
“Foi um casamento arranjado, mas eles se gostaram muito, foram muito amigos. Ninguém queria
casar com aquelas princesas pobres, de um império sem projeção. E o Brasil era completamente
desconhecido. A única coisa que sabiam sobre os
brasileiros era que eram escuros e gostavam de
cuspir no cão. Gastão, por sua vez, era hostilizado
por outros oficiais por ser primo do rei da Espanha. Ele também, de certa forma, era um príncipe
pobre, sem muita oportunidade. Então considerou bom o arranjo. Ela, como toda mulher do século XIX, mostrou-se logo apaixonada. Ele foi
muito lúcido, chegou a dizer que ela era muito
feia e não tinha sobrancelhas, mas que a situação
toda era boa para ele. No fim, ele acaba gostando
muito dela. Eles foram muito felizes. Um casal
que se queria bem e que ficou junto até o final.
Foram muito companheiros até o fim da vida.”
Escravidão
moderna
mira hoje a
pobreza
ALESSANDRA DUARTE
E CAROLINA BENEVIDES
[email protected]
“Sim, ela teve aquele excesso de aulas, de latim
à religião, passando por geografia e tantas outras coisas. Mas, como a própria condessa de
Barral escreve, ela raramente termina as aulas,
alegava sempre uma dor de dente, uma dor de
barriga, mostrando que o aproveitamento de
todas essas aulas não era tão grande assim e
acabou por não se traduzir em um conhecimento consistente. Quando chega a Pernambuco,
ela escreve para o pai: ‘O que foi mesmo que
aconteceu em Pernambuco?’ Ela não tinha disposição, e seu preparo era inócuo.”
RUY BARON/22.11.2012
Oito em dez libertos,
no entanto, ainda
são pretos ou pardos
Livro de Mary del Priore
revela monarca voltada
aos afazeres domésticos
ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
No topo do
Judiciário.
l 5
Dedicação à família. O conde d’Eu, a princesa Isabel e os três filhos: “Uma mulher mais preocupada com as gravidezes”
RELIGIOSIDADE
“Preparada por uma mãe piedosa e uma aia (a
condessa de Barral) que também vai se tornando piedosa, ela era uma católica praticante, que regularmente organizava festas na
igreja. Mas a perda da irmã e a perda da primeira filha são eventos muito dramáticos,
que vão empurrá-la cada vez mais para os
braços da igreja. Ela espera milagres o tempo
todo. Quando engravida, atribui isso a uma
visita a um lugar de peregrinação. Sua vida vai
se tornando, cada vez mais, a de uma católica
beata.”
FILANTROPIA
“Não vejo muita originalidade. A filantropia,
na Europa, era uma prática das elites, voltada,
sobretudo para pacificar as chamadas classes
perigosas. Naquela época, os sindicatos eram
fortes, o Partido Comunista se fortalecia. E
havia um movimento grande no sentido de
enfraquecer uma eventual tentativa mais forte de luta de classes. Era um modismo, um
modismo europeu, e acho que a Abolição entra nesse mesmo pacote.”
BEATIFICAÇÃO
“Em uma de suas regências, ocorreu a maior
seca do Nordeste, um momento dramático. E
ela passa por isso como gato por brasa. Menciona numa carta que é um desígnio de Deus,
que nada podemos fazer. E ainda teve o episódio dos filhos de Leopoldina (a irmã que morreu), que acabaram esquecidos. Acho que essa ideia da beatificação não se justifica.”
ESCRAVOS
“Ela tinha escravos, escravos que sequer tinham rosto, que ela registra em seus escritos
como ‘negrinha’, ‘escravo de quarto’, ‘negros’
ou ‘pretos’. Não é uma pessoa que tivesse um
envolvimento direto com a questão. Não participou dos debates na época da Lei do Ventre
Livre. Por isso, digo com todas as letras: é um
abolicionismo muito epidérmico. Ela sequer
participa dos debates, só assina a lei.”
ESCRAVIDÃO NO BRASIL
“Havia escravos ainda no Norte Fluminense, no
sul de Minas e no Vale do Paraíba. No resto do
Brasil, não havia mais escravidão. O Nordeste
todo, com a crise da cana-de-açúcar, havia feito
com que os senhores de engenho vendessem
seus escravos para o Sudeste. Já não havia praticamente escravos no país. Eram, ao todo, uns
600 mil, um número baixo.”
ABOLIÇÃO
“Eu diria que ela surfou nessa onda, que nasce
em 1870; essa onda da formação da imprensa
reformista, do partido republicano e da resistência cada vez maior à existência dos escravos.
Há ainda o aparecimento de grandes figuras,
grandes abolicionistas, todo um movimento
que vai empurrando, por assim dizer, a Abolição. Ela teve inúmeras oportunidades de se manifestar. Em Recife, foi recebida por um monte
de abolicionistas, inclusive mulheres; era um
movimento que poderia ter esposado ou, ao
menos, demonstrado simpatia. O primeiro gesto dela em direção ao movimento é de 1878, em
Petrópolis. É a batalha de flores que ela organiza. Foi um único passeio, com um carro todo
decorado, uma ideia que ela trouxe da França.
Sai do palácio, com o carro todo enfeitado. Cai
uma chuvarada, os meninos começam a espirrar, e ela volta correndo. Ou seja, um primeiro
gesto abortado. Depois disso, ela organiza dois
bailes. E só."
LEI ÁUREA
“É importante que se diga que (a Abolição) foi
um processo, que começou por volta de 1870.
Foi uma longa luta, que envolveu escravos, descendentes de escravos, a mudança da mentalidade em todo o país. Nada disso se faz da noite
para o dia, é um acúmulo de tendências que levou à assinatura de papel. E havia várias correntes. A conservadora, por exemplo, achava que
apenas com Lei do Ventre Livre a escravidão se
esgotaria, como havia ocorrido em Portugal.
Havia os abolicionistas radicais, em sua maioria
paulistas, que já trabalhavam com imigrantes
nas plantações de café. E ainda outros.”
Eles são levados para trabalhar longe da
sua terra, chegam lá com dívidas que o
salário precário não consegue pagar, endividam-se ainda mais para comer. Alguns apanham. São os escravos contemporâneos. E 81% deles são “não brancos”,
aponta pesquisa encomendada pela Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e realizada por um grupo de pesquisa da UFRJ. Segundo o estudo, que
entrevistou trabalhadores em condições
análogas à escravidão resgatados por
operações de fiscalização do Ministério
do Trabalho e do Ministério Público do
Trabalho (MPT), um quinto dos resgatados é da cor preta, e 62%, pardos. Em
2012, 2.560 trabalhadores foram encontrados nessa situação no Brasil.
— O percentual de não brancos entre
os escravizados de hoje é bem maior do
que aquele na população brasileira
(51%), e maior até do que os de Norte e
Nordeste, que têm os percentuais de
não brancos mais altos no país — diz o
padre e antropólogo Ricardo Rezende,
do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (Gptec), professor
da UFRJ e um dos supervisores da pesquisa, publicada em 2011.
Também o percentual de pretos é “2,5
vezes superior ao da população brasileira (6,9%)”, diz o estudo, sendo também
maior do que o da Bahia (15,7%), com o
maior percentual de
U
negros no país.
— Até o século XIX, o
Números
recorte para a escravidão era a cor. Agora é a
pobreza. Mas dentro
dela há o recorte de
cor, porque, como os
negros são mais preDE PRETOS E
sentes na população
PARDOS
pobre, estão mais vulEntre os
neráveis a esse alicia2.560
trabalhadores mento — diz Rezende.
Segundo o coordenalibertados do
dor nacional de Erraditrabalho
cação do Trabalho Esanálogo à
cravo do MPT, Jonas
escravidão
Moreno, mais da metade dos trabalhadores
resgatados nas fiscalizações é analfabeta, e sai,
principalmente, do Piauí e do Maranhão.
DO TOTAL
Francisco de Assis FéÉ o percentual
lix, negro e analfabeto
desses dois
— “além do nome, não
grupos na
sei nada” —, é de Barras
população
de Maratauã, “maior exbrasileira
portadora de escravos
do Piauí e uma das maiores do país”, diz o
auditor do Trabalho Paulo César Lima, do
Piauí. Félix foi escravizado no Pará:
— A gente trabalhava das 4h às 19h.
Ninguém podia sair da fazenda; um
que quis sair, bateram. E, para comer
carne, a gente tinha que caçar tatu.
— Já encontramos comida em latas
de soda cáustica e de tinta, e pessoas vivendo em barracas na floresta — lembra Roberto Ruy Rutowitcz, procurador
do MPT no Pará, que defende a aprovação da PEC do Trabalho Escravo.
Professora de História da UFF, Ângela
de Castro Gomes destaca o termo “trabalho escravo”, usado aqui desde os anos 70:
— Não é fortuito. Podia ser “trabalho
forçado”, como usa a OIT. Mas falar “trabalho escravo” é uma metáfora que tem
força, porque mobiliza a memória nacional. E uma memória ligada ao primeiro
grande movimento social do país, o
abolicionismo. l
81%
51%
Product: OGloboEspStd PubDate: 12-05-2013 Zone: Especial1
6
Edition: 1
Page: PAGINA_F User: Schinaid Time: 05-08-2013
l O GLOBO
23:57 Color: C
K
Y
M
l Especial l
Domingo 12 .5 .2013
ABOLIÇÃO
125 ANOS
GUITO MORETO
UMA DÉCADA DE AVANÇOS
PROPORÇÃO DE PRETOS E PARDOS
NO TOTAL DA POPULAÇÃO
45%
50%
51%
47%
45%
48%
46%
44%
38%
34%
PROPORÇÃO DE PRETOS E
PARDOS NO ENSINO SUPERIOR
30%
35%
32%
28%
A DIVISÃO DA POPULAÇÃO
(Em 2011)
25%
22%
19%
Pretos
(8,2%)
e pardos
(43,1%)
Brancos
23%
47,8%
51,3%
18%
Indígenas/
amarelos
1%
19%
1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011
RECÉM-FORMADOS POR
ÁREAS DE TRABALHO
PRETOS E PARDOS EM ALGUMAS
OCUPAÇÕES DO CENSO
2000
(20 a 29 anos, proporção
de pretos e pardos)
Enfermeiros de nível
superior e afins
Formação de professores com
especialização em matérias específicas
41%
Ciências da educação
38%
Enfermagem e atenção primária
Desigualdade
racial em queda
Proporção de pretos e pardos no ensino superior
dobra, e maioria dos negros já é de classe média
30%
Biologia e bioquímica
26%
13%
Médicos gerais
23%
Economia
Arquitetos
22%
Engenharia civil e de construção
[email protected]
Após 125 anos da abolição da escravatura, o
Brasil ainda está longe de ser uma nação livre
de desigualdades raciais. Uma análise dos indicadores econômicos e sociais dos últimos 20
anos revela, no entanto, que o país tem avançado. Tabulações feitas pelo GLOBO em pesquisas do IBGE mostram, por exemplo, que a proporção de brasileiros que se autodeclaram pretos ou pardos no ensino superior dobrou em
dez anos, saltando de 19% para 38%. Como resultado, cresceu o percentual de negros em
quase todas as carreiras universitárias. Ao
mesmo tempo, a distância que separa brancos
de não brancos no país em termos de renda per
capita também diminuiu.
Uma das principais razões para o aumento de
negros no ensino superior está na expansão do
setor, que de 1995 a 2011 viu o número de estudantes quadruplicar, especialmente na rede privada, que concentra 80% das matrículas.
Uma análise dos Censos Demográficos de
2000 a 2010 mostra, no entanto, que este crescimento não foi igual em todas as carreiras.
Em cursos de formação de professores, por
exemplo, o percentual de recém-formados
pretos e pardos já chega a 41%, próximo dos
51% registrados no total da população. Em
Medicina, porém, são só 17%, apesar de mesmo nesse seleto grupo ter havido aumento de
profissionais negros.
Professora da UFRJ, a antropóloga Yvonne
Maggie afirma que a queda da desigualdade racial no acesso à educação teria sido resultado de
um processo vindo nas últimas duas décadas. No
entanto, a desigualdade só será de fato combatida, diz Yvonne, com melhoria da rede pública de
educação básica. Para ela, com esse investimento
na base, haveria menos violência, menos crise de
mão de obra, e menos desigualdade.
— Está havendo uma mudança de perspectiva: há dez anos, pouca gente da classe trabalhaBB
EXPEDIENTE
dora almejava o ensino superior. Isso não é de
hoje, porque não teria dado tempo para medidas mais recentes, como as cotas, terem tido
efeito imediato. Isso é um processo de melhora
que tem vindo nos últimos 20 anos, com a estabilização econômica e a melhora da qualidade
de vida das pessoas e do próprio sistema educacional no período, com governos passando a
enfocar o problema da reprovação, por exemplo
— analisa Yvonne.
O professor Waldir Quadros, do Instituto de
Economia da Unicamp, concorda com Yvonne
sobre a necessidade de melhorar a qualidade da
educação básica na rede pública, mas discorda
na crítica à política de cotas.
— Nas carreiras mais bem remuneradas e visadas, as barreiras continuam mais sérias. Com os
sistemas de cotas nas universidades e com o
ProUni (programa federal de bolsas na rede privada de ensino superior), tem havido maior acesso da população negra ao nível superior. Mas,
mesmo assim, em universidades onde não há reserva de vagas e, sim, pontuação maior para a população negra, por exemplo, a alta relação candidato/vaga continua a desfavorecer os negros nas
carreiras mais procuradas — diz Quadros.
A maior presença de negros no ensino superior e a diminuição da desigualdade racial em termos de renda se correlacionam também com a
Crescimento ocorreu em
todas as carreiras
universitárias, mas foi mais
acelerado em cursos de
formação de professores e
mais lento em áreas como
Medicina e Engenharia
18%
15%
10%
15%
9%
14%
13%
13%
Juízes
PROPORÇÃO DA RENDA PER CAPITA DE PRETOS
E PARDOS EM COMPARAÇÃO COM A DOS BRANCOS
22%
2011
Terapia e reabilitação
55%
22%
Psicologia
2008
21%
51%
Direito
2005
21%
ANTÔNIO GOIS E ALESSANDRA DUARTE
19%
9%
Jornalismo e reportagem
22%
20%
Engenheiros
civis e afins
Dentistas
2004
Engenharia e profissões de
engenharia (cursos gerais)
20%
Marketing e publicidade
19%
Odontologia
35%
26%
11%
13%
26%
Ciência da computação
14%
Advogados
e juristas
Gerenciamento e administração
37%
25%
Fisioterapeutas
e afins
Contabilidade e tributação
Sem preconceito. Casais como Rafael Borges e Mara Pereira, que há 50 anos eram apenas 8% do total, hoje são 31%
26%
Professores do
Ensino Médio
Professores
de universidades e
do Ensino Superior
33%
2010
2002
46%
1992
45%
47%
1993
17%
2001
1995 a 1999
17%
2006
2007
51%
48%
2003
44%
Medicina
48%
2009
52%
45%
44%
43%
Fonte: Tabulações do GLOBO a partir do Censo e da Pnad/IBGE
expansão da nova classe média (cuja renda média per capita varia entre R$ 291 e R$ 1.109), que
se beneficiou da valorização do salário mínimo,
do crescimento da economia e de programas
sociais focalizados nos mais pobres. Como resultado, em 2001, de acordo com um estudo realizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República, 31% da população
preta e parda estava na classe média. Dez anos
depois, já são 51%.
NOVA CLASSE MÉDIA NEGRA AINDA DESIGUAL
Mesmo dentro deste segmento, no entanto, ainda há desigualdades, como revela um estudo do
Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais
(Laeser), da UFRJ. Nos estratos que estão entre
os 10% mais pobres dessa nova classe média, o
percentual de pretos e pardos é de 62%. No outro extremo, dos 10% mais ricos, o percentual
cai para 39%.
Apesar dos melhores níveis de escolaridade e
renda da população preta nas últimas décadas,
a presença de pretos entre ocupações de menor renda persiste. Outro estudo do Laeser revela que, enquanto 20% das pretas e pardas são
domésticas, entre brancas, o percentual é de
12%. Pretas e pardas ganham menos nesse serviço, em média, do que as brancas. Claramente
marcado pela herança escravista brasileira, só
em 2013 o trabalho doméstico passou a dar di-
reito a horas extras e FGTS, garantidos a outros
trabalhadores.
As estatísticas do IBGE também revelam
avanços em comportamentos. Um estudo de
Kaizô Beltrão (Ebape/FGV), Sonoe Sugahara e
Moema De Poli (ambas da Ence/IBGE) mostra
que os casamentos interraciais cresceram de
8% em 1960 para 31% em 2010. Entre esses casais estão Rafael Borges, 32 anos, e Mara Pereira, de 35. Eles contam que, quando o filho deles, Nestor, nasceu, há um ano e quatro meses,
o enfermeiro do hospital demorou para achar
no corredor o pai, mesmo Rafael sendo o único
homem lá.
— Ficou muito claro que o enfermeiro nem
considerou que o pai pudesse ser o Rafael e ficou procurando um homem negro. Até pediu
desculpa quando viu que o pai era ele — conta,
rindo, Mara.
Formada em Produção Cultural, com especialização e mestrado em História da Arte, Mara conheceu o marido, historiador e arqueólogo, no
trabalho. Além do episódio na hora do parto, ela
lembra de outros “estranhamentos” das pessoas.
— A sociedade ainda é assim. Mas não nos afeta porque somos muito tranquilos um com o outro — diz, afirmando que sente mais o preconceito em situações dela com o filho, que tem a pele
mais clara e os cabelos mais lisos:
— Já perdi a conta das vezes em que me perguntaram se ele era meu filho. l
Editora: Fernanda da Escóssia. Subeditores: Antônio Gois, Rodrigo Taves, Mair Pena Neto e Roberto Maltchik. Diagramação: Luciane Costa e Ana Scott. Revisão: José Figueiredo e Karine Rodrigues. Infografia: Alessandro Alvim e Fernando Alvarus
Download

Clique aqui para baixar o conteúdo em pdf.