HOMENAGEM A DUAS GLÓRIAS DA MÚSICA ITALIANA: ARTURO TOSCANINI E MAGDA OLIVERO Emilio Spedicato Universidade de Bérgamo [email protected] Dedicado a: Giuseppe Valdengo, barítono preferido de Toscanini, que retornou ao Maestro no início de outubro de 2007. Textos produzidos para a revista Liberal, aqui apresentados com pequenas modificações. Agradecimentos à condessa Emanuela Castelbarco, neta de Toscanini, pela revisão e sugerimentos da parte relativa a seu avô; e à Senhora da Música Lírica, Magda Olivero Busch, pela revisão da parte a ela dedicada. A foto da última página apresenta Spedicato com a Sra. Olivero, e foi feita na primavera de 2007. 1 RECORDAÇÕES DE TOSCANINI, GLÓRIA ITALIANA DO SÉCULO XX Como já citado no artigo sobre Andrea Luchesi e sobre Mozart (e aqui anuncio a próxima publicação do novo livro de Taboga sobre a morte de Mozart, enriquecido com o material descoberto na última década) não sou musicólogo, mas um apaixonado pela música clássica e, nos últimos anos, também pela música lírica e popular. Tive a sorte de conhecer pessoalmente grandes músicos, como o pianista Badura-Skoda, e estrelas da Música Lírica como Taddei, Valdengo, Di Stefano (devo dizer sua esposa porque Pippo ainda não se recuperou da agressão sofrida no Kenya onde, para defender a medalha presenteada por Toscanini, foi golpeado gravemente na cabeça e, mesmo havendo se recuperado do coma, está paralisado há três anos), Giulietta Simionato e sobretudo Magda Olivero. E a lista de livros que li é bastante ampla, sete somente sobre Toscanini; eu pude também interagir com o biógrafo de Toscanini, considerado o primeiro do mundo, Harvey Sachs, resolvendo-lhe um problema sobre o motivo do rompimento de Toscanini com o amigo Alberto Erede e informando-o que, contrariamente ao afirmado no seu livro sobre as cartas de Toscanini às suas amantes, existe uma carta de uma outra amante, Rosina Storchio. Encontra-se na sua biografia, à venda no Museu Storchio em Dello, perto de Brescia, museu que é o segundo da Itália para a Música Lírica (possui também a mais vasta coleção de libretos de ópera do mundo) e que é virtualmente desconhecido. Estando Sachs praticamente desaparecido da Itália este ano, suponho que seja para fazer um lucrativo ciclo de conferências sobre Toscanini nos EUA, onde o grande maestro é mais lembrado do que na Itália, “nemo propheta in patria”, as informações abaixo elencadas são do livro Toscanini, dolce tiranno de Renzo Allegri, na minha opinião o melhor do mercado, baseado nas memórias que as filhas Wanda e Wally escreveram há alguns anos e foram na época publicadas em capítulos em uma revista de grande difusão. Tenho uma ligação familiar com Toscanini. Meus pais o estimavam mais do que qualquer outro italiano do século XX, talvez porque meu avô foi o primeiro intérprete em Milão no início do mesmo século, então certamente o havia encontrado no Teatro alla Scala. E somente recentemente fiquei sabendo, por uma tia de noventa anos e também por outro parente um pouco mais jovem, que Aureliano Pertile, o tenor preferido de Toscanini pela extraordinária expressividade, capaz de fazer chorar todo o auditório, era amigo da família e ia tocar piano e cantar na casa dos meus avós. E suspeito que algumas partituras de árias líricas (Mi par d’udire ancora… e lucevan le stelle) que sobreviveram à bomba inglesa (última bomba sobre Milão), que destruiu a casa da minha avó, pertenceram à Pertile. E me lembro que, quando eu tinha 12 anos, a notícia da morte do Maestro deixou em casa uma grande tristeza. 2 Não sendo competente para entrar nos aspectos musicológicos de Toscanini, a alguns anos submetidos a uma revisão discutível, apresentarei agora, mesmo se anedoticamente, os elementos principais de sua vida. Para aprofundar-se no assunto, além de alguns livros disponíveis no mercado, é aconselhável uma visita à casa onde Toscanini nasceu, em Parma, e ao Conservatório da mesma cidade, que também possui uma Sala-Museu. Escreverei T para indicar Toscanini. T nasceu em 25 de março de 1867 em Parma, na zona operária além do rio, de pai garibaldino e anticlerical e de mãe católica praticante. Descobriram logo a sua capacidade musical, uma das quais era tocar ao piano, que ainda não tinha estudado, motivos apenas escutados. Graças a uma bolsa de estudos entrou no Conservatório de Parma, onde a disciplina era muito rígida, a comida escarça, não tinha aquecimento, tinha missa obrigatória toda manhã, mas os professores eram de alto nível. Por ter faltado um dia, T foi obrigado a passar 24 horas em um quartinho escuro, somente com o violoncelo. Não lhe foi permitido ir ao banheiro e usou então o violoncelo como recipiente. No dia seguinte seu professor perguntou: “mas o que há com o seu violoncelo, está suando?!” Foi logo chamado de gênio pelos colegas, que tinham notado a sua extraordinária memória e paixão em aprender todo tipo de música e tocar qualquer instrumento. Um docente perguntou porque o chamavam assim e quis testá-lo. Primeiro lhe disse para tocar uma peça a primeira vista e depois tocá-la de cor; depois lhe fez ver uma peça de Wagner e pediu para interpretá-la ao violoncelo. Vendo as respostas perfeitas de T, disse: “é verdade, Toscanini, és um gênio”. A extraordinária capacidade mnemônica de Toscanini é um dos fenômenos documentados da história humana. Lembrava visivelmente também de eventuais marcas ou manchas da folha, e parece que tenha memorizado cerca de 1500 obras entre sinfônicas e operísticas. Certa vez um músico da orquestra lhe disse que não podia tocar porque tinha uma corda arrebentada e não podia substitui-la. T lhe perguntou que nota esta corda soava, pensou um pouco e disse: “mas não tem esta nota na tua parte!” Uma outra vez, quando já tinha quase noventa anos, e o pianista Delli Ponti ia à sua casa para tocar peças barrocas (às quais tinha dado pouca atenção) Delli Ponti disse: “tocarei uma peça quase desconhecida de Frescobaldi…” E T replicou, lembrando que tinha visto a partitura quando estava no Conservatório: “existem duas versões publicadas, ambas com um erro no quarto compasso”. De qualquer forma vale dizer que outros grandes, como De Sabata no campo musical e Von Neumann no campo científico, tinham uma similar memória extraordinária. Sem contar o caso citado por Oliver Sacks, de um russo que lembrava tudo de cada dia da sua vida, o que é um tanto incômodo… ou os cantores kirghisi que memorizam os seis milhões de versos da poesia épica de Manas. No Conservatório, T se especializou em violoncelo, mas não temos fontes confiáveis sobre a sua qualidade como intérprete. Lembrando que nos anos seguintes tocou muitíssimo piano, acompanhando cantores, e nos últimos anos realmente passou dias inteiros ao piano, tocando óperas inteiras e cantando-as com sua voz muito afinada e expressiva (isso fica evidente em uma célebre gravação do ensaio da Traviata onde Violetta era cantada por Licia Albanese, que agora vive em Nova Iorque e tem quase cem anos…). 3 Aos dezenove anos, T partiu para uma turnê como violoncelista na América do Sul. Já conhecia de memória mais ou menos vinte óperas e na viagem se divertiu, além de seduzindo algumas cantoras (T era irresistível e, como me contou sua neta Emanuela Castelbarco, as mulheres caíam em seus braços), regendo várias óperas com seus colegas tocando e cantando. No Brasil, a péssima performance do maestro gerou clamorosas vaias em uma récita onde estava presente o Imperador Dom Pedro. A turnê corria o risco de acabar, deixando os músicos da orquestra e os cantores sem dinheiro para voltar. Então uma corista voltou-se a T, em dialeto de Parma, insistindo para que ele subisse ao pódio. Depois de um momento de hesitação, T aceitou, entrando no palco sem ter ensaiado e sem o fraque, e regendo, como depois disse, como em transe e com os olhos fechados. Foi um triunfo, o público aplaudiu intensamente compreendendo que estavam diante não só de um maestro muito jovem, mas de um músico de extraordinária capacidade, e o imperador o presenteou com uma caixinha preciosa. E o triunfo se repetiu nos dias sucessivos da turnê, com críticas de grande futuro nos jornais, como foi o caso depois. De volta à Itália, T pensava em continuar a carreira de violoncelista (e por alguns anos foi também compositor; destruiu as suas composições quando, ouvindo Wagner, concluiu que não podia superá-lo). Entretanto a fama do seu sucesso na América foi difundida e logo foi chamado para reger várias orquestras, até chegar, poucos anos depois, no Teatro alla Scala, onde foi maestro e diretor por muitos anos, mudando para sempre a noção de ópera teatral e de concerto. Não é este o lugar e não é de minha competência discutir as inovações por ele trazidas, contrariando tanto o público quanto a orquestra e os cantores, estes habituados a modificar o que foi escrito pelo autor segundo as próprias comodidades. Digamos brevemente que T era motivado por um extraordinário respeito pelo texto original e pela vontade do compositor, e que exigia uma sagrada atenção da parte do público (adeus às partidas de cartas e aos pequenos jantares durante o espetáculo) e uma perfeito rendimento em termos de tempo e expressividade do texto musical por parte da orquestra. São conhecidos os seus movimentos bruscos e certas vezes quase violentos, mas somente no palco, e certamente compensados pela generosidade com a qual ajudou muitos músicos que tinham necessidades financeiras. Conheceu muitos compositores, a partir de Verdi (que foi encontrar em Gênova por uma questão interpretativa que surgiu entre ele e Tomagno… e Verdi confirmou que a memória de T era correta); Puccini, grande amigo, mas com o qual teve também ásperas discussões especialmente sobre política, sendo Puccini simpático ao fascismo; Catalani, Boito, Mascagni… Durante a Primeira Guerra Mundial T foi freqüentemente à frente de combate regendo para os soldados mesmo em condições de real perigo (e obviamente sem cachê; o recusou também quando ia a Bayreuth, templo wagneriano, e à Palestina, em apoio à comunidade hebraica que estava se formando). T tinha interesses políticos, mesmo se não a nível de empenho prático. Era favorável a Mussolini quando este era socialista, depois se afastou, tornando-se seu crítico rude e sem medo de revelar a sua oposição. Recusando de executar hinos fascistas antes das óperas ou concertos, entre os quais Giovinezza, foi atacado em Bolonha por gangues de jovens fascistas referentes a Farinacci, estapeado e ameaçado de morte. Mussolini lavou 4 as mãos dizendo que T devia reger uma orquestra de 100 homens, ele a Itália inteira. Depois disso, T deixou a Itália pelos EUA, onde os seus sucessos foram estrepitosos e a NBC lhe pôs a disposição uma orquestra. A sua casa em Riverdale tornou-se um dos supremos centros da vida musical e um lugar acolhedor para os opositores de Mussolini. Na América, já tendo superado a idade com a qual normalmente as pessoas se aposentam, reduziu a atividade, deixando de reger óperas e concentrado-se na música sinfônica. Tocaram em seu concertos pianistas como Serkin, Rubinstein, Horszowski, Horowitz (que tornou-se seu genro em 1933, casando com Wanda), e violinistas como, Heifetz, Busch. Nem sempre T entrava em perfeito acordo com tais estrelas solísticas, como podemos ver na seguinte nota de O’ Connel sobre o concerto para violino de Beethoven com Heifetz: “era divertido observar aqueles dois homens um tanto iguais (como perfeccionistas), mas muito diferentes em idade, temperamento e conceitos musicais, trabalharem juntos. Exteriormente eram excessivamente cerimoniosos, mas na realidade eram desconfiados como dois gatos estranhos um ao outro, cada um ferozmente decidido a alcançar a perfeição a qualquer modo e tempo…” Terminada a guerra voltou à Itália para o concerto inaugural do reconstruído Teatro alla Scala. Na audição, para soprano escolheu Tebaldi, que foi lançada internacionalmente como 'voz de anjo'. Apesar disso , T queria ter tido Magda Olivero, que em 1941 se retirou de cena. Tinha pedido que a contactassem, mas o seu pedido foi perdido pelos dirigentes do Teatro. Portanto Olivero, que pouco depois voltou às cenas sob insistentes convites de Cilea, e que Tullio Serafin, preparando-a para Adriana Lecouvreur, julgou “ela é sempre a número um”, nunca cantou com T. Contudo, encontrou-se com ele em Sirmione, com duas horas de críticas de T sobre cantores e músicos, o que seria de grande interesse ver publicado (mas não será, Olivero não o fará). O concerto inaugural foi realizado com o Teatro alla Scala lotadíssimo e com 37 minutos de aplausos quando aparece Toscanini. Entre as últimas óperas regidas por T na América estão: Aída, Traviata, Otello e Falstaff (esta considerada por T a obra-prima da ópera italiana; considerava Manon a obra-prima de Puccini), com a presença da soprano Licia Albanese e do barítono Valdengo (morto com 93 anos em outubro de 2007). Com ele cantou também a jovem estrela Di Stefano, do qual T apreciava a maravilhosa voz e expressividade, e a quem presenteou a medalha com seu retrato, que foi o motivo da agressão sofrida pelo grande tenor no Kenya. T sobreviveu poucos anos à esposa Carla, com a qual foi casado por 54 anos. Um casamento difícil devido às freqüentes traições de T, que as mulheres gostavam bastante, uma situação com a qual Carla conseguiu se adequar. Entre as amantes citamos a belíssima e grande soprano Rosina Storchio, cujo retrato se pode ver no Museu do Teatro alla Scala, com quem teve um filho, morto jovem e nascido espástico. Storchio passou seus últimos anos em Milão como freira laica, trabalhando com crianças deficientes. Sua carta a Toscanini, escrita pouco antes de morrer, é de uma extraordinária serenidade, o agradece pelas ajudas recebidas na carreira musical e diz que o espera no céu. T era anticlerical e não freqüentou mais a igreja depois da “indigestão” sofrida no Conservatório. Apesar disso tinha fé, se bem que quase nunca falasse de questões religiosas. Carregava no bolso do casaco um crucifixo que lhe foi colocado nas mãos 5 quando foi sepultado. Morreu com quase 90 anos, poucos dias depois que seu aluno preferido, Cantelli, perdeu a vida em um acidente aéreo. Foi atingido por um icto, ao qual sucumbiu depois de alguns dias. O único sacerdote com quem tinha contato e que estimava muito era Dom Gnocchi. As filhas lhe telefonaram pedindo que viesse confessar o pai e a resposta foi: “ele não precisa, praticou muito o bem em sua vida…” Dom Gnocchi (cujo assistente era dom Giovanni Barbareschi, meu professor de religião) foi nomeado por Israel “o justo das nações” por haver salvado tantos e tantos judeus levando-os além das fronteiras suíças e terminando depois em um campo de concentração… Dom Gnocchi, com T, uma das poucas grandes glórias da Itália do século XX e, estranhamente, ainda não santificado. Em 25 de março de 1910, mesmo dia que T nasceu, mas 43 anos depois, nascia em Saluzzo outra glória da música italiana, Maria Maddalena, conhecida como Magda, Olivero, hoje com 97 anos e ainda ativa, voz para três senão quatro gerações. A ela é dedicada a próxima seção. 6 FELIZ ANIVERSÁRIO, SENHORA DA MÚSICA LÍRICA! Extraído da Enciclopédia LE MUSE, editora De Agostini, 1967), apresento três sopranos italianas do Século XX. ROSINA STORCHIO (Verona 1876, Milano 1945), inicia a carreira em Milão, na ópera Carmen, em 1892. Foi aceita rapidamente nos grandes teatros, desenvolvendo uma intensa carreira internacional, cantando freqüentemente também na Itália. Dotada de uma voz tipicamente lírico ligeira, de um brilho delicado e de puríssima coloração prateada, se dedicou a um repertório muito vasto, causando os entusiasmos mais vivos com papéis intimistas apropriados ao seu temperamento (Mimi, Butterfly...). Foi uma vibrante e apaixonada intérprete e prestigiosa atriz. CLAUDIA MUZIO (Pavia 1892, Roma 1936) debutou na ópera Manon de Massenet em Arezzo. Em pouco tempo cantava já no Teatro alla Scala e em seguida nos principais teatros do mundo, obtendo em toda parte sucessos triunfais. Se distinguia pela fenomenal versatilidade, executando um repertório vastíssimo que compreendia as maiores óperas do gênero lírico, lirico-spinto e dramático. Sua voz, não fenomenal pelo volume, mas de incomparável fascínio, era entre um soprano dramático e um soprano lirico-spinto; sabia realizar qualquer inflexão, da expressão dramática mais vibrante à dor angustiante e pungente. Não foi somente uma intérprete musical genial, mas também valiosa atriz. MAGDA OLIVERO (Saluzzo 1910) considerada desde o início de carreira uma das maiores sopranos líricos de seu tempo, dedicou-se principalmente ao repertório verista. Declamado, fraseado penetrante, tons macios e persuasivos, unidos a uma grande experiência em arte cênica fazem dela a maior cantora-atriz verista da nossa época. A sua voz, de grande extensão, é de um brilho puro, capaz de fazer esplêndidas 'filaturas' e douradas 'mezze voci', ainda mais fascinante com uma vibração que se acentua nos pianíssimos. Em 25 de março de 1867 nascia, em Parma, Arturo Toscanini, glória da música italiana do século XX. Em 25 de março de 1910, exatamente 43 anos depois, nascia em Saluzzo Maria Maddalena, conhecida como Magda, Olivero. A ela é dedicado este artigo, com a aproximação do seu 98° aniversário, para recordar os leitores uma grande glória da música lírica italiana, ou melhor mundial. Iniciamos com as breves biografias de duas grandíssimas sopranos de geração anterior à da Olivero (Storchio e Muzio, que ela não conheceu pessoalmente), tendo como base às seguintes conexões, mesmo que um tanto tênues: Rosina Storchio, por muitos anos amante de Toscanini, com o qual teve um filho (invalido grave, morreu ainda adolescente). Quando deixou as cenas se dedicou ao tratamento de crianças do Cottolengo de Milão; vivia no Corso Magenta, 68, quase em frente à casa onde vive hoje a Olivero... 7 Claudia Muzio, quase sem rivais como soprano que costumava ir ao teatro em uma carruagem coberta de rosas brancas e puxada por cavalos também brancos, foi chamada “divina” por Eugenio Montale, o grande poeta que ganhou o Premio Nobel e que era também um refinado crítico musical. No livro Estrelas da Música Lírica de Stinchelli, locutor da transmissão de rádio La Barcaccia, que foi publicado antes nos EUA e depois na Itália, de cerca de 300 cantoras examinadas, a única que foi chamada “divina” foi a Olivero. Podemos recordar também, como Tullio Serafin afirmou, antes que a Olivero debutasse, que entre os cantores existem três milagres, Caruso, Titta Ruffo e a Ponselle, entre os outros existem bons cantores. Talvez Serafin acrescentou mais tarde Scialiapin e a Olivero, a qual disse, preparando-a para a Adriana Lecouvreur ao seu retorno às cenas, “a senhora é sempre a número um”. E quando a Olivero, depois dos cinqüenta anos, iniciou as turnês nos EUA com enorme sucesso, a Ponselle já tinha se retirado e não morava mais onde ela cantou. Mas a escutou no rádio e telefonou-lhe para dizer que a apreciava. Este artigo nasce primeiramente para recordar uma das glórias da música lírica italiana, da qual a altíssima arte não foi justamente valorizada pela mídia, interessados muito mais no caso Callas e na pretensa hostilidade entre esta e a Tebaldi; e depois devido a uma lembrança pessoal: quando eu tinha dez anos, no segundo ano de estudos de piano, curioso pelas partituras de ópera que encontrava entre os livros sobrevividos à bomba que destruiu a casa dos meus avós, perguntei quais eram os maiores cantores, e esta foi a resposta da minha mãe: os tenores Tito Schipa e Beniamino Gigli, e as sopranos Renata Tebaldi e Magda Olivero. Somente há poucos anos desenvolvi um interesse particular pela música lírica. Schipa e Gigli morreram há muito tempo, a Tebaldi há pouco (consegui falar com ela brevemente por telefone, já estava doente). Tive a sorte inesperada, ao contrário, de encontrar a Olivero, graças ao prof. Crespi, crítico notável, pianista, musicólogo e colecionador de quadros de arte sacra (doados ao Museu diocesano de Milão, uma doação de cem milhões de euros). Desde 2003 tenho então a possibilidade de conhecer mais profundamente uma pessoa maravilhosa pela sua humanidade, além de ter alcançado o apogeu da música lírica. Como não sou musicólogo, deixo de lado os aspectos mais específicos da maneira de cantar da Olivero, limitando-me aos elementos biográficos. A chamarei Magda a seguir, como ela gosta de ser chamada pelos que a conhecem, lembrando entretanto que a mezzo-soprano Giulietta Simionato, poucos meses mais nova, a definiu como “Senhora da Música Lírica”. Magda nasceu em Saluzzo de uma família de bom nível social e cultural e de tradicional religiosidade, à qual sempre foi fiel. Esta é uma diferença com muitos cantores, os quais as suas raízes são do mundo operário (Caruso) ou do campo, onde o ato de cantar era elemento importante da vida quotidiana (no livro Viaggio in Italia Goethe escreve que as pessoas na Itália cantavam por toda a parte... um hábito agora virtualmente desaparecido, um fato que eu receio que se espalhe até chegar às mães que não cantarão mais canções de ninar e musiquinhas aos seus filhos). Iniciada em uma carreira musical (mas também lhe agradaria a carreira de atriz teatral, Sarah Ferrati era o seu ideal) escolheu a estrada do canto. Se apresentou em duas audições na EIAR de Torino, foi julgada privada 8 de capacidades como cantora, obtendo, entretanto, na segunda audição o parecer favorável do maestro Gerussi, herdeiro da grande tradição da técnica de canto de Cotogni, que ocupou-se com empenho da sua educação vocal. Sob a sua tutela, e depois sob a do maestro Luigi Ricci, e graças a um enorme e sofrido empenho, Magda eliminou os erros de respiração devidos aos professores precedentes e desenvolveu extraordinárias capacidades técnicas. Alcançava o sol superagudo (Callas, estando em Stinchelli, chegava ao fá; mas os cantores pigmeus chegam até a uma oitava acima disso!), podia fazer dois ou mais vocalizes em um único fôlego (deixando Lauri Volpi incrédulo) e em geral podia cantar uma ópera sem sentir cansaço vocal, mas somente mental e psicológico, devido à sua profunda identificação com as personagens confiadas a sua voz. Certa vez, tendo cantado quatro vezes em uma semana, o otorrino dos cantores do Teatro alla Scala pediu para examinar suas cordas vocais, para avaliar o grau de cansaço, e ficou estupefato em constatar que não havia nenhum sinal de que ela tivesse cantado! Foi graças a essa extraordinária técnica que pôde cantar em cena por cinqüenta anos, e talvez ainda teria continuado se não houvesse perdido o marido. E existem gravações suas até dos anos 1993 e 1999 (com 89 anos!). Ainda em 2006, como nos 30 anos precedentes, cantou na igreja de Solda: portanto uma voz ativa por quatro gerações e não somente por três, como se intitula sua biografia escrita por Quattrocchi. Devo ainda dizer que quando Callas retornou ao palco em companhia de Di Stefano, depois de ter se ausentado durante os anos em que estava com Onassis, verificou que sua voz não era mais a mesma e disse: “somente Olivero poderia me ajudar...mas é tarde demais.” Magda debutou em 1932, cantou no carro de Tespi, organizado por Achille Starace, e foi rapidamente chamada aos grandes teatros. Depois de um início dedicado aos compositores do começo do século XIX, passou ao verismo, obtendo imenso sucesso com La Traviata e com Adriana Lecouvreur de Cilea. Um episódio deve ser recordado: depois de uma récita de Adriana, quando seu camarim já estava vazio, notou que num canto uma senhora chorava. Esta se aproximou de Magda, a abraçou e lhe disse: “ até hoje eu fui Adriana, agora é você.” Era Giuseppina Cobelli, grande soprano dos anos 20, que pouco tempo depois deixou os palcos devido à perda da audição. Em 1941, casada, e julgando os deveres familiares mais importantes que a carreira, e também pelos problemas ligados à guerra, Magda abandonou os palcos. Em 1946, Toscanini, que a conhecia via radio e a apreciava muito, queria Magda como soprano na reabertura do Scala, mas ninguém a contactou. Se fez então uma audição que foi vencida por Tebaldi, que comoveu Toscanini com as duas famosas árias do terceiro ato de Otello. Em 1951, Magda, sabendo que não podia ter filhos, decidiu retornar, talvez um caso único na história lírica depois de uma ausência de dez anos, por causa dos insistentes pedidos de Cilea, que desejava ouvir ainda uma vez sua Adriana cantada por ela exatamente como ele queria. Foi nessa ocasião que Serafin lhe disse: “ela é sempre a número um”. Dali em diante, por trinta anos, Magda esteve presente em muitíssimos teatros na Itália e no exterior, cantando oitenta óperas das cerca de cem que havia estudado. Teve extraordinário sucesso nos Estados Unidos, em Dallas e no Metropolitan de Nova Iorque, onde sua Tosca teve 40 minutos de aplausos, recorde absoluto, e o público era como que “magnetizado” pela sua voz e pela aparência dessa cantora-atriz, muito bela e por muitos 9 chamada ‘Alida Valli da lírica’. E podemos nos perguntar como teria sido Adriana Lecouvreur, se esta não tivesse sido cancelada por motivos que omitimos. Magda trabalhou com cantores como Pertile, Gigli, Schipa, Tagliavini, Corelli, Di Stefano, Pavarotti, Domingo, Protti, Bastianini, Simionato, Stignani... Encontram-se no mercado, infelizmente, poucas gravações dos seus concertos, quase todas ao vivo e pouquíssimas em estúdio, sinal de desatenção da parte das gravadoras, justificável provavelmente pela postura “não diva” de Magda. Mas é possível que uma pesquisa nos arquivos das rádios possa no futuro fazer emergir outras... uma tarefa importante para a musicologia. Em 2007 se recorda Maria Callas , depois de trinta anos de sua morte. Maria foi uma grandíssima soprano, mesmo se foi ativa somente por cerca de 12 anos (na retomada a sua voz tinha perdido a qualidade de um tempo) e certamente a mais famosa, mesmo se mais pelos fatos sentimentais e pela pretensa, mas inexistente, guerra com Tebaldi. Agora é definida “tout court” pela mídia como a maior soprano do século XX. Definir quem foi a maior é uma tarefa objetivamente impossível, influenciada pelo gosto pessoal, mas achamos interessante referir algumas avaliações sobre a Olivero na literatura. Do livro de Stinchelli “Stelle della lirica” citamos: − se pensamos em Tito Gobbi, Mirto Picchi, Magda Olivero, Gino Bechi, vozes que não podem ser definidas “belas” mas que se apóiam em qualidades interpretativas, e, no caso da divina Magda, também técnica de absoluta excepcionalidade. − A arte não tem idade. Magda Olivero... memoráveis são as suas intensas interpretações (...) onde em um “crescendo” de emoções, alternava frases e saltos cortantes e ardentes a momentos estáticos ou melancólicos de incomparável intensidade expressiva, sempre em virtude de um perfeito controle da emissão e do domínio absoluto da respiração. Do livro “Opera fanatic” de Stefan Zucker, crítico musical que produziu um documentário com entrevistas de várias estrelas da música lírica, citamos: “Given a choice between Callas and Olivero, I'd actually pick Olivero. She has greater warmth and depth and is more moving.” O grande barítono Giuseppe Valdengo foi escolhido por Toscanini para as últimas óperas (de Verdi) que regeu. Valdengo tinha escutado Olivero na execução de La Traviata nos anos trinta em Parma. Me disse que nunca mais teve a oportunidade de ouvir uma Violetta tão maravilhosa. Há alguns meses, quando eu estava em sua casa em St Vincent, lhe propus de telefonar a Magda, com quem ele nunca tinha falado. Inicialmente hesitou, temia não poder controlar as lágrimas, mas depois pegou o telefone: “Collega”..... Valdengo morreu no início de outubro de 2007, uma outra perda entre os grandes cantores que honraram o século XX. Há algum tempo conheci um aluno do tenor Ettore Parmeggiani, especialista em Wagner e que depois da guerra foi líder do 'claque' (pessoas que iniciavam os aplausos ao fim do espetáculo) do Teatro alla Scala. Luigi Cestari, era também parte do 'claque' e escutou 10 centenas de cantores. Me disse que a Olivero era a única cantora capaz de fazer arrepiar a espinha dorsal. Querida Magda, muitos anos se passaram de quando você, menina de apenas dois anos, usando um chapeuzinho, cantava Torna a Surriento, agarrada às grades de uma janela em Saluzzo. Te queremos ainda entre nós por muitos anos, sempre lúcida, plena de vida e com boa vista, mesmo quando você passar os longos anos vividos por Gina Cigna, 101, com quem, como Liù, cantou em uma Turandot dos anos trinta. Apêndice – Algumas opiniões sobre Magda Olivero De Alfredo Kraus, Cofidencias para uma leyenda. Conservaciones com Francis Lacombrade, Ediciones del cabildo de Gran Canaria, Las Palmas de Gran Canaria, 2000 Kraus, as suas Violette se chamam Magda Olivero, Maria Callas... Ah, Magda! Nunca escondi uma autêntica veneração por ela. Grande foi a minha surpresa que nos ensaios ela se comportava como debutante. Esperava sem solicitar, pedia também a opinião e as correções do regente e do diretor de cena com inacreditável humildade. A experiência em Torino nos tornou amigos por toda a vida. No ano passado, eu cantei o Fausto em Parma e ela foi me assistir entusiasmada. “Felizmente encontro alguém que canta o 'bel canto' como está escrito”. Uma bela colega, uma mulher de coração... De Lanfranco Rasponi, The last prima donnas. Limelight Editions, New York, 1985 p. 61, entrevista com Eva Turner Além do Teatro alla Scala, Torino foi a minha segunda casa italiana.... o meu parceiro no Don Giovanni foi Carlo Galeffi, um protagonista ideal. E sabem quem foi Zerlina? Magda Olivero. Ela ainda canta, e devo dizer que é magnífica! Ela sempre teve uma qualidade muito especial, não tanto uma bela voz, quanto uma “atração magnética” em cena que poucos possuem. 11 p. 123, entrevista com Gilda dalla Rizza No meu tempo se dava tudo de si para o bem da arte, porque acreditávamos naquilo que fazíamos. Puccini podia pedir-me para ir a qualquer lugar cantar para ele por um pequeno cachê, e eu teria aceitado. Existem grandes vozes hoje, certamente, algumas grandes ou melhores do que no meu tempo. Mas não dão nada de si. Freqüentemente me pergunto, o que fizeram dos seus corações? Nasceram sem? Como se pode cantar com a voz assim bela tal divina música e não colocar nada mais nisso? Penso comigo mesma e sei a resposta: estes cantores vivem em um mundo diferente, sem ideais, onde o patriotismo é ridicularizado, os vínculos familiares se desintegraram e a paixão não existe mais. Se deteve por um momento e acrescentou: devo fazer uma exceção, Magda Olivero. Não sei qual é a sua idade, mas superou os sessenta já há algum tempo. Não importa. Ela é a única pela qual eu hoje andaria muito, debaixo de chuva ou de neve, para escutar. Não falarei da sua voz, é aquela que é, mas esta mulher conhece aquilo em que a arte consiste. Fiquei tão comovida por sua Adriana que pensei que Deus ajudou Magda a prosseguir por tantos anos, para que as pessoas pudessem ainda saber como era quando o cantar era uma arte. p. 282, entrevista com Maria Laurenti Penso que existe um tempo para cada artista encerrar a carreira de modo elegante. Existem poucas exceções como Magda Olivero. Ela é um fenômeno a parte. Uma vez estava cantando uns pianíssimos que pareciam que vinham de um outro mundo. Perguntei a ela como os produzia, pensei que fossem sons de cabeça. Absolutamente não. Ela pegou a minha mão e a apoiou sobre o seu diafragma, que era mais duro que uma rocha. Ninguém conhece a sua verdadeira idade, mas isso não é importante. O que importa é que com um fio de voz, mesmo partida, possa ter todo o público na palma da mão. Isso é arte. p. 391, entrevista com Germana di Giulio ... pela primeira vez ouvi Magda Olivero em Torino, que cantava 'Francesca da Rimini'. Muitos colegas meus tendem a subestimá-la, não sei o porquê, talvez por inveja, porque ela continua a cantar e eles não. Naquela época fiquei enormemente impressionada com ela e ainda estou. Me empenhei pra descobrir como esta mulher, mesmo possuindo um instrumento vocal não de grande qualidade como potência e timbre, podia e ainda pode ter o público absolutamente interessado. Depois de tê-la escutado diversas vezes, eu descobri. Se trata do seu domínio vocal. Hoje todos fecham as vogais, pensando que assim o tom fica mais alto, mas ela conhece melhor as coisas. Não é pela voz que a gente vai ouvir a Olivero, hoje ainda em pleno sucesso mesmo próxima dos setenta anos. É a sua pronúncia inacreditavelmente clara, é o valor de cada palavra em particular, que os outros se esqueceram, no que chamamos de matrimônio do instrumento vocal com a 12 orquestra. O público, no seu instinto, tem fome disso. E depois, obviamente, tem a personalidade, outro elemento perdido. Ela tem o dom de fazer o público sentir o privilégio de ter a sua presença, e o seu modo de voltar ao palco pelos aplausos, movendo-se em toda a área iluminada, faz cada um pensar que ela o agradece pessoalmente. Embora na sua voz se sintam os anos passados, ela é sempre afinada e ainda capaz de produzir uma “messa di voce” que parece não pertencer a um instrumento terrestre. Os seus hábitos são aqueles de uma grande senhora e ainda hoje, mesmo nesta caótica democracia, ela é apreciada. p. 462, entrevista com Gemma Bosini Stabile Todos sabemos como é difícil comportar-se em “Vissi d'arte”. Canta a si mesma, ou suplica a Nossa Senhora, ou de qualquer modo dirigi-se ao chefe da polícia? Existem muitos modos de interpretá-lo. Jeritza cantava tudo deitada no chão, Olivero abandonada no sofá.... Tradução de Laura Ansante [email protected] 13 Magda Olivero e Spedicato. 14 Toscanini 15