A uƟlização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende Figura 1a – Auto-retrato de Francisco José Resende. Óleo sobre folha-de-Flandres, 1890. 49,2m x 42,7cm. Câmara Municipal do Porto. Fotografia do reverso da pintura Figura 1b – Auto-retrato, fotografia digital de infravermelhos da inscrição no reverso Resumo A pintura a óleo sobre suportes metálicos tem sido alvo de um estudo sumário quando comparada com a pintura sobre tela e madeira. No entanto, a especificidade do suporte determina diferenças rela vas aos materiais das obras, técnicas de execução, efeito visual e processos de degradação. O presente caso de estudo incide em três pinturas a óleo sobre um suporte metálico, da autoria de Francisco José Resende (1825-1893). Os objec vos foram a iden ficação do metal ou liga u lizado, a caracterização da sua metodologia de produção e do processo de degradação. As pinturas seleccionadas são Auto-retrato, Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa e datam da segunda metade do século XIX. O estudo do suporte processou-se através da análise por microscopia óp ca e por microscopia electrónica de varrimento com espectrometria de dispersão de energia de raios-X, de uma amostra metálica re rada de cada uma das pinturas. As análises revelaram ter sido u lizada folha-de-Flandres nas três obras, que é uma liga de aço (ferro e carbono) reves da a estanho de ambos os lados. A metodologia de produção e o processo de corrosão deste suporte são também abordados. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 1 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga A prá ca recorrente de Francisco José Resende de executar inscrições nas suas pinturas, nomeadamente sobre o reverso do suporte metálico, é igualmente posta em evidência. A escolha de um suporte metálico A pintura a óleo sobre metal foi desenvolvida na arte ocidental a par r da segunda metade do século XVI, tendo para tal contribuído diversos factores de ordem tecnológica, comercial e ar s ca1. As ligas de cobre foram o suporte u lizado por excelência, embora ao longo dos séculos outros metais tenham sido igualmente escolhidos, como ligas de estanho, chumbo, ferro e zinco. O apogeu deste po de pintura é geralmente situado entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII, embora ar stas enquadrados em épocas posteriores tenham também escolhido pintar sobre metal. Esta escolha é consideravelmente menos recorrente ao longo da História de Arte, quando comparada com a u lização preferencial de suportes têxteis e lenhosos. Provavelmente por essa razão, a pintura sobre metal tem igualmente sido objecto de um estudo mais reduzido. Ainda que os materiais u lizados na camada pictórica sejam fundamentalmente os mesmos, o facto de o suporte ser diferente tem uma influência directa nos métodos de preparação, nas técnicas de execução e nos processos de degradação, que importa destacar. Neste sen do, a publicação de casos de estudo pode desempenhar um importante papel para a divulgação deste género de pintura e para o conhecimento dos materiais e problemas de conservação que lhe são mais caracterís cos. Em Portugal, as pinturas sobre metal têm sido alvo de um estudo reduzido, sem prejuízo da existência de algumas referências pontuais2, pelo que subsiste uma lacuna no conhecimento de ar stas portugueses que a pra caram. É de realçar que existe um número significa vo de obras em suporte metálico em museus nacionais, nomeadamente da escola flamenga, holandesa e italiana. Sobre Francisco José Resende em par cular, podemos referir que este ar sta pintou sobre suportes metálicos em diversas ocasiões, mas u lizou também a tela, o cartão e a madeira. Dado que a opção pelo metal não era muito comum no século XIX, podemos ques onar-nos sobre a intenção do ar sta em recorrer a este material. Esta adopção pode ter sido intencional como forma de obter efeitos esté cos dis ntos dos que poderia alcançar através da u lização de um suporte têx l ou lenhoso3; ou mo vada por outros factores, como o preço, a facilidade 1 Para uma breve contextualização da pintura a óleo sobre suportes metálicos, ver VEIGA, Ana Rita - Francisco José Resende: contextualização do autor e da execução de pintura a óleo sobre suportes metálicos. [Em linha] Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal. [Consult. 3 Set. 2010]. Disponível em h p://citar.artes.ucp.pt/mtpnp/estudos/materiais_sec_ XIX_02_contexto_historico_francisco_jose_resende.pdf 2 Destaque-se, neste caso, o seguinte ar go: SANTOS, Paula M. M. Leite – F. Francken II, Peeter Neefs e Simon de Vos: pintura em cobre nos museus do Porto e Beja. II CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA ARTE. 2001 - Portugal: Encruzilhada de culturas, das artes e das sensibilidades: Actas. Coimbra: Almedina, 2004, pp. 792-815. 3 Em algumas zonas de camada pictórica fina das pinturas Auto-retrato e Busto de António Soller pode observar-se um brilho, ainda que ligeiro, proveniente da reflexão do estanho, que não pode ser ob do numa pintura sobre outro suporte. Ver VEIGA, Ana Rita – Francisco José Resende: materiais da camada pictórica e técnicas de execução. [Em linha] Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal. [Consult. 3 Set. 2010]. Disponível em h p://citar.artes.ucp.pt/mtpnp/estudos/materiais_sec_ XIX_04_estudo_tecnico_e_material.pdf Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 2 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga de obtenção e preparação, ou o gosto de pintar sobre um suporte rígido e liso. Embora se tenha procedido, durante o século XIX, a um intenso desenvolvimento e comércio de material de pintura, é provável que os suportes metálicos u lizados por Francisco José Resende fossem vendidos para uso genérico e não específico como material de Belas-Artes4. No entanto, não deixa de ser interessante constatar que existe alguma semelhança entre as medidas de várias das suas obras5, o que suscita a hipótese de os suportes terem sido cortados à medida ou vendidos com tamanhos estandardizados. Figura 2a – Busto de António Soller de Francisco José Resende. Óleo sobre folha-de-Flandres, 1882. 43,1cm x 31,8cm. Casa Museu Fernando de Castro. Fotografia do reverso da pintura Figura 2b – Busto de António Soller, microfotografia da letra P (de “Porto”) da inscrição gravada no suporte metálico Análise do suporte de três pinturas de Francisco José Resende Métodos de análise Com o objec vo de caracterizar o po de metal ou liga u lizado como suporte nas três pinturas 4 No entanto, a Winsor & Newton, uma conhecida marca de material de Belas-Artes, comercializou painéis de zinco preparados, como é referido nos catálogos de cerca de 1840 e de 1842. Ver CARLYLE, L., The ar st’s assistant: oil pain ng instruc on manuals and handbooks in Britain 1800-1900 with reference to selected eighteenth-century sources, London, Archetype, 2001, pp. 192, 449. 5 Entre as doze pinturas sobre metal da autoria de Francisco José Resende que foram observadas, a mais pequena mede 22x17cm, e a maior mede 74,3x63,2 cm. Encontram-se várias dimensões similares: três obras medem cerca de 43,3x31,8 cm, e outras quatro pinturas medem cerca de 35,5x25,5 cm. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 3 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga em estudo – Auto-retrato, Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa –, iden ficar marcas dos processos de trabalho e caracterizar a corrosão da super cie, foi recolhida uma amostra de metal de cada uma destas obras. As amostras foram re radas de um canto das pinturas com um objecto cortante, atravessando toda a espessura do metal. De seguida foram montadas em resina epóxida Epofix Struens® e polidas com uma suspensão de pó de diamante. Recorreu-se à técnica de microscopia electrónica de varrimento com espectrometria de dispersão de energia de raios-X (SEM-EDX) para a observação e análise elementar das três amostras metálicas6. Cada amostra foi posteriormente sujeita a um ataque químico com nitral a 4%, com o objec vo de observar a sua microestrutura com luz reflec da por microscopia óp ca (MO). Figura 3a – Amostra metálica de Camponesa da Murtosa. Observação por microscopia óp ca Resultados comparaƟvos da análise dos três suportes A análise por SEM-EDX às amostras de metal revelaram tratar-se do mesmo suporte nas três pinturas: uma liga de aço (ferro e carbono) reves da de estanho de ambos os lados, que se designa habitualmente como folha-de-Flandres (fig. 2c, 2d)7. A chapa de aço foi laminada 6 O equipamento u lizado foi o microscópio electrónico de varrimento da marca JEOL JSM 35C, equipado com um espectrómetro Noran Voyager. Os espectros foram ob dos para uma tensão de aceleração de 15 kV e um tempo de aquisição de 50 segundos. As análises em SEM-EDX foram realizadas no CEMUP – Centro de Materiais da Universidade do Porto. Agradeço ao Prof. Doutor Luís Malheiros (FEUP-DEMM) os contactos estabelecidos que possibilitaram a u lização desta técnica e todo o apoio prestado na interpretação dos dados. 7 Data da Idade do Ferro a u lização de estanho como forma de reves mento de uma matriz metálica, tendo esta aplicação se tornado mais comum no período romano, como atestam alguns registos documentais: Plínio (século I) referiu a colocação de estanho sobre objectos de bronze que serviriam de recipientes de comida; e Teófilo (século XII) relatou a aplicação de estanho sobre ferro. A produção de ferro reves do de estanho foi con nuada durante a Idade Média e Moderna, destacandose o papel da Alemanha, onde floresceu uma indústria de produção, na Saxónia, no século XVII. De seguida foi introduzida em Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 4 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga e depois imersa numa na com estanho fundido para adquirir o reves mento metálico, conforme a prá ca habitual no século XIX8. Este reves mento de estanho tem como função proporcionar uma protecção sica contra a corrosão da liga de aço sendo que esta, por sua vez, fornece rigidez ao suporte9. Nas três amostras, o reves mento revelou uma espessura irregular e várias fissuras10. A microestrutura dos metais caracteriza-se pela presença de grãos equiaxiais de ferrite, uma solução sólida de carbono em ferro, apresentando-se o carbono em baixo teor (fig. 3a). Dado que, à época, o processo de desoxigenação dos banhos metálicos era ainda algo deficiente, permaneciam bolhas de gás no interior do metal, tal como se observa por MO. Estes espaços vazios correspondem aos pequenos pontos de cor negra, de forma definida e arredondada no interior das amostras (fig. 3a). Foram detectadas algumas impurezas por SEM-EDX no núcleo metálico, como óxidos de silício e fósforo, que se encontram alongados devido ao processo de laminagem11. Na periferia dos suportes encontram-se ves gios de camada pictórica e produtos de alteração do ferro e do estanho. Apresentam uma cor negra por MO visto não reflec rem a luz, em contraste com a super cie reflectora correspondente à matriz metálica (fig. 3a). Inglaterra, tornando-se, este país, o principal produtor durante o século XIX. A par r de cerca de 1930, a maioria da folha-deFlandres foi ob da através de um processo de deposição electrolí ca do estanho. Vd. CORFIELD, Michael – Tin and nplate, technology and conserva on. In CHILD, Robert; TOWNSEND, Joice, ed. lit. – Modern metals in museums. Londres: Ins tute of Archaeology Publica ons,1988, pp. 33-36. 8 Por laminagem do metal entende-se um método de conformação plás ca cons tuído por um sistema de rolos através dos quais é reduzida a espessura do metal. A laminagem da chapa e imersão em estanho fundido segue a metodologia tradicional de produção do século XIX. No entanto, em suportes mais an gos, a chapa de aço ou ferro poderá ter sido ob da através de um processo de martelagem, antecedente da laminagem. Segundo uma descrição publicada em 1883 por Ernest Trubshaw, a matriz de ferro era imersa primeiramente em óleo de palma e só depois em nas com estanho, seguindo-se uma escovagem da super cie e nova imersão em estanho. De seguida, a lâmina seguia para um pote com gordura, sendo a espessura da camada de estanho regulada através da passagem por rolos. Mais tarde o processo foi simplificado pela introdução de máquinas – a folha de ferro era introduzida no estanho fundido através de um fundente de cloreto de zinco. Vd. SINGER, Charles [et al.] – A History of Technology: The late nineteenth century c. 1850 to c. 1900. 6ª ed. Oxford: Oxford University Press, 1982, pp. 616. 9 A tulo compara vo, podemos referir que ao longo do tempo foram ainda aplicados reves mentos metálicos de estanho ou chumbo sobre outros metais, como ligas de cobre. Este reves mento poderia desempenhar uma função protectora, evitando a corrosão do cobre, ou ter um efeito esté co. Como o estanho e o chumbo são metais brilhantes e de cor cinzenta, dis nta da cor avermelhada das ligas de cobre, poderiam conceder um maior brilho e luminosidade à pintura, especialmente com a aplicação de camadas pictóricas transparentes. Esta u lização foi descoberta, a tulo de exemplo, em pinturas de Domenichino (1581 – 1641) e de Nicolas Lancret (1690-1743). Nas pinturas deste úl mo ar sta, o reves mento da liga de estanho e chumbo foi aplicado apenas no lado que recebeu a camada pictórica. Vd. SCOTT, David – Copper as a substrate for pain ngs. In SCOTT, David – Copper and Bronze in Art: Corrosion, Colorants, Conserva on. Los Angeles: Ge y Conserva on Ins tute, 2002, pp. 317-321. Sobre as pinturas de Domenichino, ver MALTESE, Corrado, coord. – I suppor nelle ar pi oriche. Storia, técnica, restauro. Parte prima. Milano: Ugo Mursia Editore, pp. 286, 287. Vd. ainda ACKROYD, Paul; ROY, Ashok; WINE, Humphrey - Nicolas Lancret’s The Four Times of Day. Na onal Gallery Technical Bulle n. Londres: Na onal Gallery Company. 25 (2004), pp. 53, 54. 10 Ainda que no caso das pinturas analisadas o substrato metálico seja o mesmo, parece plausível que o ar sta tenha u lizado outros metais, como na pintura Vendedeiras (MNSR), cuja análise por EDXRF determinou apenas a presença de zinco no reverso. A análise à referida pintura foi feita no âmbito da tese de doutoramento em curso da Dra. Sónia Barros, sobre a introdução e circulação de materiais de Belas-Artes no século XIX, a quem agradeço a disponibilização desta informação. 11 Estes óxidos, como sendo os de silício, magnésio e fósforo, são pertencentes aqueles elementos que não sofreram completamente um processo de redução aquando da fusão dos minérios de ferro. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 5 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga Figura 2c – Amostra metálica de Busto de António Soller. Fotomicrografia de SEM, ampliação de 200× Figura 2d – Amostra metálica de Busto de António Soller. Fotomicrografia de SEM, ampliação de 1500×. Z1 – Núcleo de ferro e carbono; Z2 – Impurezas de óxidos de silício, fósforo e alumina; Z3 – Óxidos de ferro; Z4 – Reves mento de estanho; Z5 – Óxidos de ferro. Processo de degradação da folha-de-Flandres Os suportes metálicos das três pinturas em estudo apresentam deformações mecânicas e, no caso de Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa, um processo de corrosão12. As deformações são influenciadas pela espessura fina do suporte e pelo facto de se tratar de uma liga de aço com baixo teor em carbono, que é menos rígido do que um aço com uma maior percentagem daquele elemento. Dada a duc lidade do estanho, o reves mento metálico não proporciona nenhum acréscimo de dureza. Para que se possa compreender os dis ntos estados de degradação que os suportes das três pinturas apresentam, é necessário perceber o processo de corrosão atmosférica do estanho, do ferro e da folha-de-Flandres. O estanho é um metal brilhante e de cor acinzentada, que forma uma camada de óxidos estáveis quando exposto ao ar sem poluentes e sem humidade elevada, mantendo o aspecto prateado claro. Com a presença de humidade, os óxidos da super cie hidratam-se e aumentam de espessura, perdendo o brilho e adquirindo um aspecto baço, como se observa em Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa (fig. 2a, 2b). Se exposto a agentes poluentes, nomeadamente dióxido de enxofre e sulfureto de hidrogénio, o estanho pode também escurecer. O ferro, quando exposto a uma atmosfera sem poluentes, forma uma complexa camada de óxidos, de estado de oxidação +2 ou +3. Com a presença de oxigénio, exposição a certos valores de H. R. (acima dos 20%) e poluentes, pode formar diversos produtos de alteração. 12 Para uma descrição mais detalhada dos problemas de deterioração das pinturas, ver VEIGA, Ana Rita – Estado de conservação de Auto-retrato, Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa. [Em linha] Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal. [Consult. 3 Set. 2010]. Disponível emh p://citar.artes.ucp.pt/mtpnp/estudos/materiais_sec_XIX_03_ estado_de_conservacao.pdf. Agradeço à mestre Isabel Tissot todo o apoio na compreensão dos problemas de degradação dos suportes metálicos das pinturas. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 6 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga Na folha-de-Flandres, o estanho é aplicado como um reves mento metálico, actuando como uma barreira sica ao contacto da matriz de aço com os agentes externos. Quando este reves mento de estanho se encontra fissurado, como revelado por SEM (fig. 2d), pode dar-se a exposição do aço a um ambiente com oxigénio e humidade, iniciando-se um processo de corrosão atmosférica. Na presença de um electrólito, como a água, poderá estabelecer-se uma célula electroquímica entre o ferro e o estanho. O ferro actua como ânodo, o pólo posi vo no qual ocorre perda de electrões – oxidação –, e o estanho como cátodo, sucedendo um processo de redução13. Uma situação exemplifica va deste processo é visível no reverso de Busto de António Soller, no qual a inscrição feita pelo ar sta com um objecto pon agudo sobre o suporte fissurou o reves mento de estanho, expondo a liga de aço. Por essa razão, observam-se produtos de alteração do ferro, de cor alaranjada, apenas no local onde a inscrição foi executada (fig. 2b). Numa pintura sobre um suporte metálico, a corrosão pode ocorrer no reverso (fig. 3b) ou na parte frontal. Neste caso, acontece na zona de interface pintura/metal, após migração de humidade e oxigénio através dos estratos pictóricos, a par r de fissuras, lacunas ou zonas de maior permeabilidade da pintura. A corrosão do suporte tem implicações directas na conservação da camada pictórica, já que a formação e aumento de volume de produtos de alteração dos metais, nomeadamente do ferro, podem propiciar destacamentos da camada pictórica, como se observa em Camponesa da Murtosa. Em várias áreas de cor clara, especialmente no céu, é evidente um tom alaranjado/acastanhado, resultante da formação e migração de produtos de alteração do ferro (fig. 3c). Figura 3b – Camponesa da Murtosa de Francisco José Resende. Óleo sobre folha-de-Flandres, 1879. 43,7cm x 31,8cm. Casa Museu Fernando de Castro. Fotografia do reverso da pintura. Figura 3c – Camponesa da Murtosa, pormenor do céu. 13 Através da tabela de séries electroquímicas é possível conhecer o potencial de cada metal para ganhar ou ceder electrões, actuando como ânodo ou cátodo. O estanho pode ser mais, ou menos ac vo do que o ferro segundo o ambiente em que se encontra – em ambientes abertos, o estanho comporta-se como cátodo, mas no caso do interior de recipientes fechados, é o estanho que actua como ânodo. Ver SELWYN, Lyndsie – Metals and Corrosion, a handbook for the Conserva on Professional. Canada: Ins tut Canadien de Conserva on, 2004, pp. 29, 30, 148. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 7 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga A realização de inscrições no reverso do suporte metálico É recorrente, por parte de Francisco José Resende, a realização de inscrições nas suas pinturas, quer pela parte frontal quer pelo reverso. As mesmas podem conter dados sobre a execução da obra, como a data, local, tulo e/ou menções biográficas. Esta prá ca é de igual forma notória nas pinturas sobre tela e cartão da sua autoria. No caso das inscrições executadas no reverso, é interessante perceber como o ar sta as executava de variadas formas. Entre as obras que foram observadas destacam-se quatro situações dis ntas: 1. o metal é deixado exposto, sem inscrição; 2. é aplicada uma camada pictórica monocromá ca em todo o reverso, sem realizar nenhuma inscrição; 3. é aplicada uma camada pictórica (que pode ou não cobrir todo o suporte) e executada a inscrição por cima, pintada ou raspada; 4. a inscrição é efectuada directamente sobre o suporte, com um objecto incisivo, sem aplicar nenhuma camada de nta. Rela vamente às inscrições executadas na parte frontal, podem ser pintadas por cima da camada pictórica ou raspadas sobre a nta ainda fresca. Entre as pinturas seleccionadas para este estudo, destaca-se a inscrição patente no reverso de Auto-retrato, na qual o autor escreveu uma súmula da sua biografia, assim como o tempo, “3/4 d’ora”, que demorou a finalizar a obra. Primeiramente aplicou a camada monocromá ca através da sobreposição de quatro estratos de cor, como revelou a amostra estra gráfica recolhida do reverso (fig. 1c). Por cima desta pintou, com nta preta e a pincel, a seguinte inscrição: Fran. co Joze Rezende, nascido n’esta cidade do Porto, a 9 de Dezembro de 1825, nomeado Cavalleiro de S. Mauricio e S. Lazaro, d’Italia, pelo finado rei Victor Manoel, e lente (?) jubilado de pintura historica da Academia Portuense de Bellas-Artes, esboçou este seu retrato (em 1890) na sua caza da esquina do Bomjardim e Gonsalo Cristovam (cujos prédios an gos subs tuídos hoje por outros, foram seus antepassados, occupando todo o largo de S.to Antonio do Bomjardim, onde nascera o auctor.)/ É este um estudo de ¾ d’ora. Outro método ao qual o ar sta recorreu para realizar inscrições foi a gravação da mesma com um objecto incisivo e fino directamente no suporte metálico. Esta situação é visível no reverso de Busto de António Soller, onde se pode ler a seguinte dedicação: Ao seu dedicado amigo e (?) Antonio Soller offerece esta lembrança./ O seu affeiçoado adm.or / Fran.co J. Rezende/ Porto 1.º de Janeiro 1882. Em Camponesa da Murtosa o pintor aplicou, em todo o reverso, uma camada pictórica verde opaca, de fina espessura, provavelmente para poder seguidamente executar a seguinte inscrição (fig. 3b), com nta branca e a pincel: 11.-1/ Portugal. Camponesa da Mortosa/ (?)/ F. J. Rezende/ Porto. 1879. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 8 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga Figura 1c – Microfotografia do corte transversal da amostra estra gráfica do reverso de Auto-retrato, por MO. Ampliação de 200×. 1 a 4: estratos pictóricos; 5 – camada de protecção. Conclusão O suporte das três pinturas a óleo em estudo, da autoria de Francisco José Resende, foi iden ficado como folha-de-Flandres. Este suporte é cons tuído por uma matriz de aço laminado (liga de ferro e carbono) reves do de estanho de ambos os lados. O processo de corrosão deste material tem uma implicação directa no estado de conservação da camada pictórica, podendo ocasionar destacamentos e empolamentos. Para tal são determinantes o estado do reves mento do estanho – con nuo ou com fissuras -, assim como as condições ambientais a que as pinturas foram expostas. A publicação de casos de estudo permite divulgar a prá ca deste po de pintura, nomeadamente entre ar stas portugueses, e dar a conhecer os materiais e problemas de conservação que lhe são mais caracterís cos. Referências ACKROYD, Paul; ROY, Ashok; WINE, Humphrey - Nicolas Lancret’s The Four Times of Day. Na onal Gallery Technical Bulle n. Londres: Na onal Gallery Company. 25 (2004), pp. 53, 54. CARLYLE, L., The ar st’s assistant: oil pain ng instruc on manuals and handbooks in Britain 1800-1900 with reference to selected eighteenth-century sources. Londres: Archetype, 2001. CORFIELD, Michael – Tin and nplate, technology and conserva on. In CHILD, Robert; TOWNSEND, Joice, ed. lit. – Modern metals in museums. Londres: Ins tute of Archaeology Publica ons,1988. MALTESE, Corrado, coord. – I suppor nelle ar pi oriche. Storia, técnica, restauro. Parte prima. Milano: Ugo Mursia Editore. PAVLOPOULOU, Lydia-Chara – Oil Paint on Copper: a study of decay mechanisms. Cardiff: University of Wales College, 2004. Dissertação de Mestrado em Ciências da Conservação (MSc). PHOENIX ART MUSEUM - Copper as Canvas: Two Centuries of Masterpiece Pain ng on Copper, 1575-1775. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 9 A u lização de folha-de-Flandres como suporte em pinturas de Francisco José Resende | Rita Veiga SANTOS, Paula M. M. Leite – F. Francken II, Peeter Neefs e Simon de Vos: pintura em cobre nos museus do Porto e Beja. II CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA ARTE. 2001 Portugal: Encruzilhada de culturas, das artes e das sensibilidades: Actas. Coimbra: Almedina, 2004, pp. 792-815. SCOTT, David – Copper as a substrate for pain ngs. In SCOTT, David – Copper and Bronze in Art: Corrosion, Colorants, Conserva on. Los Angeles: Ge y Conserva on Ins tute, 2002, pp. 317-321. SELWYN, Lyndsie – Metals and Corrosion, a handbook for the Conserva on Professional. Canada: Ins tut Canadien de Conserva on, 2004. SINGER, Charles [et al.] – A History of Technology: The late nineteenth century c. 1850 to c. 1900. 6ª ed. Oxford: Oxford University Press, 1982, pp. 616. THISTLEWOOD, J.; NORTHOVER, P. - Corrosion analysis and treatment of two pain ngs on zinc supports by Frederick Preedy. Journal of the Ins tute of Conserva on. Londres: Ins tute of Conserva on. 32 (2009), pp. 137-148. VEIGA, Ana Rita – Estado de conservação de Auto-retrato, Busto de António Soller e Camponesa da Murtosa. [Em linha] Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal. [Consult. 3 Set. 2010]. Disponível em h p://citar.artes.ucp.pt/mtpnp/estudos/materiais_sec_XIX_03_estado_ de_conservacao.pdf. VEIGA, Ana Rita – Francisco José Resende: contextualização do autor e da execução de pintura a óleo sobre suportes metálicos. MTPNP. [Em linha]. Disponível em h p://citar.artes.ucp.pt/ mtpnp/estudos/materiais_sec_XIX_02_contexto_historico_francisco_jose_resende.pdf. VEIGA, Ana Rita – Francisco José Resende: materiais da camada pictórica e técnicas de execução. [Em linha] Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal. [Consult. 3 Set. 2010]. Disponível em h p://citar.artes.ucp.pt/mtpnp/estudos/materiais_sec_XIX_04_estudo_ tecnico_e_material.pdf. desenvolvido por co-financiamento