Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
A MULHER NO IMAGINÁRIO BÍBLICO NA OBRA O CORO DA SERPENTE, DA
ESCRITORA IARA VIEIRA
Maria Carolina Barcellos (UFS)
Os estudos culturais têm sido atenciosos com a questão do gênero, pelas lutas
feministas que geraram um sem número de mudanças sociais na sociedade moderna
(ou pós-moderna, ou da modernidade tardia ou líquida, não pretendemos discutir
contendas epistemológicas num texto tão breve). A dicotomia masculino/feminino é
ainda alvo de discussões incontáveis no campo da sociologia e de saberes afins, mas
aqui tomaremos suas acepções simbólicas, por sua recorrência na literatura.
Escolhemos a autora Iara Vieira (1949-2003) não só por ser uma mulherautora, nem pelo fato de ser sergipana, mas pelas imagens presentes em sua obra O
coro da serpente, publicada em 2001, depois de receber a publicação no II Concurso
Internacional de Poesia Mulheres Emergentes, Edições Alternativas, em Minas Gerais.
Ao observarmos o título da obra, temos duas pistas muito claras do que está
por vir. Coro, um conjunto de vozes a declamar em uníssono suas preces, agonias e
protestos. Muitas dessas vozes claramente femininas, lideradas pela figura simbólica
da serpente, que possui centenas de interpretações culturais, até mesmo sagradas.
Entretanto, não é essa a serpente à qual se refere com maior
frequência o pensamento da Idade Média, mas à serpente de Eva,
condenada a arratar-se e à serpente, o dragão-cósmico, cuja
anterioridade São João não contesta, no Apocalipse, mas cuja
derrota proclama: Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o
chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi
expulso para a terra e seus Anjos foram expulsos com ele
(Apocalipse 12, 9). A partir de então, de sedutor passa a repugnante.
Seus poderes, sua ciência, que não podem ser contestados na sua
existência, o são na sua origem. Foram considerados como o fruto de
um roubo; tornaram-se ilegítimos aos olhos do espírito; a ciência da
serpente passa a ser maldita e a serpente que nos habita passará a
gerar apenas os nossos vícios, que nos trazem a morte e não a vida.
(CHEVALIER, 2009, p.823)
A obra já nos sugere a polifonia e a profusão de figuras e os poemas (ínfimos
em tamanho mas vastos em possibilidades semânticas) oferecem ao leitor um ponto
de vista absolutamente diverso de episódios da mitologia judaico-cristã. A autora situa
personagens do Antigo e do Novo Testamento sob a ótica de uma “narrativa”
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emancipada e por vezes subversiva dessas figuras. Enquanto aos homens cabe
anunciar a palavra de Deus e salvar a humanidade, a mulher desempenha papel
coadjuvante, quando não é um empecilho à vontade divina. Por essa razão, vamos
focar as seguintes personagens: Lilith, Eva, Sara, a mulher de Lott, Judite e Maria
Madalena.
Graças ao caráter sucinto deste trabalho, não vamos nos deter em nenhuma
das personagens com minúcias, mas traçar um padrão sobre a visão das mulheres
num discurso (o texto blíblico) que ainda exerce influências inegáveis na cultura
ocidental. As personagens femininas aqui tratadas fazem parte de diversas tradições,
entre elas a cabalística, que prima por uma visão mística dos livros de fundação da
cultura hebraica.
Segundo algumas versões da “Criação”, Deus forja homem e mulher do
mesmo barro. A primeira mulher, Lilith, teria fugido do paraíso por não ser submissa
ao homem. Em textos anteriores, ela foi nosso foco principal:
Eva sempre aparece como uma personificação da fraqueza e
incapacidade de raciocinar, que seriam atributos mormente femininos.
Enquanto Eva é incapaz de ser virtuosa por alguma “falta”, Lilith
escolhe o caminho contrário do que lhe for reservado. E não volta
atrás.
A tradição ocidental, como a conhecemos, restringiu por muitos
séculos a presença feminina fora do ambiente exclusivo da
maternidade. Qualquer posição de destaque representava desonra,
quebra das leis. Há o discurso de que o lugar “natural” da fêmea é
tendo filhos. Era assim na pré-história. Ao homem, cabia caçar. À
mulher, cuidar das crias. Ter autonomia, prazer sexual e voz no
espaço público até muito pouco tempo era prerrogativa masculina.
Lilith é uma lenda ancestral que preconizou as demandas do
movimento feminista. Antes disso, a mulher que reivindicava direitos
seria punida, como o foi Antígona, na tragédia de Sófocles. Foram
necessários muitos séculos para as mulheres adquirirem o direito de,
por exemplo, escrever. Nesse ponto, as reivindicações de Lilith se
confundem com os anseios das mulheres até mesmo na
contemporaneidade. (BARCELLOS, 2010, p.3-4)
Eva, segunda mulher, feita da costela de Adão, é a primeira ludibriada pela
serpente, o que desencadeia os males da humanidade. Ainda que submisso ao
masculino, o sexo “frágil” está fadado ao erro, à falta de racionalidade. Ou ainda: aos
ardis que levam a humanidade à perdição. Ainda que opostas em atitudes, Lilith e Eva
são as responsáveis pela perda do paraíso. No poema intiludado “Lilith” os versos
econômicos de Iara Vieira vaticinam:
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Da terra brota
a primeira mulher
insônia de Deus.
Ao pronunciar
o Seu nome: o
Inferno
trama de Eva?
Entre elas o pacto
e o silêncio. (VIEIRA, 2001, p.14).
Mesmo em tratados não literários, homens ilustrados de períodos muito
recentes se detiveram sobre a natureza do feminino; em geral apenas para ratificar a
natureza ruim do sexo feminino.
As mulheres perjuram nos tribunais com muito mais frequência do
que os homens. Dever-se-ia mesmo questionar se elas poderiam ser
admitas a prestar juramentos. [...]
As mulheres, como pessoas que, por causa da fraqueza de seu
intelecto, são muito menos capazes do que os homens de entender,
reter e tomar como norma princípios gerais, ficam em regra atrás
deles em relação à virtude da justiça e, portanto, também da
prioridade e da retidão; por isso, a injustiçã e a falsidade são seus
fardos mais frequentes e a mentira seu elemento real. [...] A ideia de
ver mulheres exercendo a magistratura desperta risos.
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 92-93. Grifo nosso)
Lott, único salvo da destruição de Sodoma e Gomorra, tenta escapar com sua
mulher. A única condição que Deus lhe impunha era não olhar para trás, em hipótese
alguma. Sua esposa, “incapaz” de seguir a instrução – obviamente uma fraqueza
feminina – não se contém e volta o olhar, sendo transformada numa estátua de sal
como punição:
A escolha do sal
esconde
uma sombra:
a caverna
e suas sobras.(VIEIRA, 2001, p.19)
O sal, apesar de ter uma série de significados místicos positivos, em alguns
casos,
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pode ter todo um outro sentido simbólico e opor-se à fertilidade.
Nesse caso, a terra salgada significa terra árida, endurecida. Os
romanos jogavam sal nas terras das cidades que destruíram para
tornar o solo para sempre estéril. Os místicos às vezes comparam a
alma a uma terra salgada [...] A terra é infértil por ser salgada, diz
ainda Guillaume, citando um texto de Jeremias 17,6. Tudo o que é
salgado é amargo, a água salgada é, portanto, uma água de
amargura que se opõe à água doce fertilizadora. (CHEVALIER, 2009,
p.797-798)
Observamos um padrão de associação das mulheres às fraquezas morais, ao
vício e à insubordinação do stablishment patriarcal dos contextos em que essas
figuras se encontram. Ainda que haja exceções, como o caso da Virgem Maria, o
feminino é comumente associado ao mal, à escuridão, ao próprio demônio. Aqui
seguimos com as personagens que Iara Vieira elegeu para seus versos.
O patriarca Abraão, já idoso e cuja mulher não fora capaz de gerar
descendentes, oferece uma escrava para que o marido pudesse ter o sonhado filho.
Ironicamente, depois do nascimento de Ismael, filho “bastardo”, a própria esposa –
também idosa – recebe a graça de um filho homem. Enciumada do primogênito e da
bela Agar, Sara induz o marido a mandar filho e escrava para o deserto, onde
certamente morreriam. No discurso bíblico, Deus salva Ismael e sua mãe, por serem
inocentes. No poema A mulher de Abraão, a poetiza registra a inclemência da matrona
que desejava seu filho Isaac como único herdeiro:
Cântaro nos ombros
a serpente
no olhar
Sara
(e suas garras). (VIEIRA, 2001, p.16)
Mesmo que não haja um julgamento óbvio na Bíblia com relação à conduta de
Sara, fica o retrato da mulher rancorosa e inclemente, incapaz de acolher a escrava
que ela própria oferecera a seu marido (o que aparentemente era uma prática
comum). As “garras” nos remetem a algum ser monstruoso, sem empatia com sua
presa.
E agora tomaremos um dos poemas que nos pareceu casar perfeitamente com
o evento ao qual este texto se destina. No poema Em nome de Deus, a protagonista é
(ainda que a forma do poema faça alusão à oração santa da mãe de Jesus) Judite, a
mulher ardilosa que liberta seu povo cometendo o que parece uma atrocidade:
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Ave, Judite,
cheia de mácula
Satã é convosco
Maldita sois vós
entre as mulheres
maligno é o signoa
de vossa raça
Amém. (VIEIRA, 2001, p.23)
Holofernes, de acordo com o Antigo Testamento, um general assassinado por
Judite. Ele aparece no livro de Judite como um general do rei babilônico
Nabucodonosor II, que se mudou com o seu exército para subjugar os povos, entre
eles os hebreus, por vingança. Diz-se que Holofernes roubara, matara e saqueara
todo o Oriente Próximo. Na ausência de água, os habitantes estão à beira da rendição.
Algumas das pessoas que pedem um prazo de cinco dias para ser visto em Deus
ainda pode salvar. Judite era uma viúva judia decide salvar seu povo. Ela vai ao
acampamento das tropas Holofernes e, por causa de sua beleza, facilmente consegue
chegar à tenda de Holofernes. Enfeitiçado por sua beleza, Holofernes se deixa seduzir
e fica a sós com ela. Judite embebeda o general e arranca sua cabeça, episódio que
vários artistas consagados tentaram retratar.
Com a cabeça decepada, ela retorna. As soldados só descobrem o general
assassinado na manhã seguinte, e entram em pânico. Assim, os judeus pode derrotar
os inimigos. Há quem discuta a veracidade histórica desse episódio, mas o mito
permanece. A narrativa que põe em xeque o poder masculino, que é enfraquecido
pelo desejo despertado pelos encantos femininos. Assim, a luxúria que a mulher
desperta é a arma para cessar o sofrimento de seu povo. Ainda que haja um
componente heroico/altruísta, a mulher se apresenta como figura falaciosa. O eu lírico,
ainda que fale em mácula, rende homenagem à mulher maldita que cumpre seu
destino.
Passamos para outra figura polêmica, agora do Novo Testamento. Madalena,
seguidora fervorosa de Cristo, que algumas pessoas retratam como uma prostituta
que se arrepende da vida que levava ao ser salva do apedrejamento. Há controvérsias
se a Madalena que seguia Jesus com os outros apóstolos seria a mesma mulher do
episódio mencionado. É a controvérsia, no entanto, que aumenta a curiosidade de fiéis
e incrédulos.
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Nos últimos anos, ficções que falam de textos apócrifos se tornaram best
sellers, colocando essas questões em evidências. O que o texto de Iara Vieira traz não
tem nenhum compromisso com historicidade nem mesmo com fé, mas o valor
simbólico da figura de Madalena inspirou uma releitura do famoso poema
drummoniano:
TENTAÇÃO NO DESERTO
Entre as pernas de
Madalena
tinha umas pedras.
Tinha umas pedras
entre as pernas de
Madalena.
Nunca me esquecerei
da embaraçosa cena.
As pedras entre as pernas
de Madalena. (VIEIRA, 2001, p.29)
Conhecedores do Novo Testamento sabem que Jesus foi exposto às tentações
quando foi ao deserto jejuar; no poema, a tentação é imediatamente associada ao
sexo da mulher, pois as pedras estão “entre as pernas de Madalena”. As pedras no
caminho da purificação representariam o obstáculo da tentação da carne diante da
salvação espiritual. E ao mesmo tempo, as pedras são o castigo mais comum no
Oriente Médio para mulheres infiéis. A pedra, neste poema, ganha significações que a
pedra do caminho já não tinha.
A embaraçosa cena seria o sexo exposto? Ou o constrangimento daqueles
que, diante da provocação de Jesus (“Quem não tiver pecado que atire a primeira
pedra.”) não podiam mais esconder que a condenação da mulher só seria coerente se
todos ao redor tivessem a alma “limpa” de erros.
A poesia não nos oferece resposta e nem havemos de querer tirar conclusões
de um poema. O poema cala o leitor, que diante de tanta concisão eloquente não tem
muito o que comentar. As inferências são possível, são abundantes, mas nenhuma é
conclusiva.
No entanto, não achamos que nos cabe concluir uma análise, já que nossa
proposta não busca nada além de abrir possibilidades. E as possiblidades que
desencadeamos em nossa leitura giram em torno da simbologia e do imaginário que
envolvem a mulher.
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Grosso modo, o que apontamos é que: os estigmas que a Cultura empresta ao
sexo feminino têm raízes profundas e antigas. Se esses estigmas permanecem em
sociedades ditas laicas é porque as imagens que sustentaram o feminino são mais
forte do que os dogmas. Nos interstícios desses discursos (míticos, religiosos, sociais)
é que são perpetuadas as imagens que designam os papéis de gênero. E sobre isso
há certa urgência, já que – pelo menos teoricamente – já não vivemos a era dos mitos.
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Maria Carolina. A figura mítica de Lilith na poética de Iara Vieira. São
Cristóvão: Anais do II Senalic. Vol. 2, GELIC, 2010.
<http://200.17.141.110/senalic/II_senalic/textos_completos/Maria_Carolina_Barcellos.pdf>
Acesso em: 22 de abril de 2014
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da Costa e
Silva et al. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de lidar com as mulheres. Introdução e notas de Franco
Volpi. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VIEIRA, Iara. O coro da serpente. Belo Horizonte: Mulheres Emergentes Edições Alternativas,
2001.
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