como referenciar esta recensão:
CAMPELO, Álvaro - Recensão de Literatura e
religião, coord. Isabel Patim [et al.]. Revista da
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
Porto : Edições Universidade Fernando Pessoa.
ISSN 1646-0502. 6 (2009) 275-279.
LITERATURA E RELIGIÃO
Isabel Patim et al. (Coords.)
Nasce esta obra do «III Encontro de Estudos sobre Ciências e Cultura», promovido pelo Centro de Línguas, Culturas e Literaturas, do Pólo de Ponte de Lima, da Universidade Fernando
Pessoa. O III Encontro versava o tema «Literatura e Religião» e, na senda dos anteriores, tinha
como objectivo cruzar as disciplinas e temáticas através do discurso literário. Um dos primeiros dados a reter logo na abordagem ao seu índice é a transdisciplinaridade, tanto dos
intervenientes, como da reflexão de cada uma das comunicações, agora apresentadas em
artigos. A religião, enquanto conteúdo, forma ou ritual expressivo e estético de uma crença, está intimamente ligada ao literário, não fossem as primeiras narrações literárias conhecidas textos religiosos, míticos, como havia acontecido anteriormente com as expressões
artísticas. Da arte pré-histórica ao início da história com a escrita, a humanidade deixou a
expressão do seu sentir mágico-religioso. Portanto, nada de estranho nesta relação entre a
literatura e a religião.
Os textos de “Literatura e Religião” vão desde a análise que teoriza as suas interdependências, até ao estudo de obras específicas onde esta presença do religioso está evidente ou
velada, passando por abordagens mais abrangentes, com estudos de literaturas nacionais, e
até por um trabalho de terreno.
No primeiro grupo situam-se os trabalhos de Judite Freitas, Álvaro Campelo, Maria Adelina
Vieira, João Casqueira Cardoso e José Soares Martins. Com o título «Tradição e práticas culturais na Idade Média Final: a escrita, o livro e a moral prática», Judite Freitas, especialista em
história medieval, demonstra como para a investigação da literatura medieval é incontornável a esfera do religioso, pois ela é uma das bases da mentalidade da época. O pensamento
e ordem religiosa comunicam-se em muitas e variadas tipologias literárias, apresentando-se
os mosteiros como lugares centrais de produção cultural, pois a autoridade sobre o livro
era condição da sua divulgação. Com a introdução do vernáculo na literatura oficial, e com
a afirmação da cidade como pólo cultural, onde a universidade é uma das mais destacadas
evidências, o livro ocupa novo papel na sociedade e, por sua vez, altera a posição social do
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sábio, que agora pode ser alguém sem ser necessariamente um homem ligado à religião,
clérigo ou monge. A autora desenvolve o particular lugar ocupado na literatura medieval
da obra de Santo Isidoro de Sevilha, “Etimologias”. Esta enciclopédia do saber medieval é a
prova de como todas as áreas de saber, herdadas dos gregos e romanos, são agora colocadas ao serviço dos desígnios divinos, neste caso cristãos. As palavras deixam transparecer
não só o significado original, mas também a realidade que expressam! E, acrescenta, o saber
estava directamente ligado com a conduta, com a moral, ou seja, a literatura dos séculos XIV
e XV que trata da conduta do bom governante faz da relação entre saber e boa conduta a
chave do bom governo. De alguma forma podemos concluir com a autora que o livro e a
literatura medieval nascem da necessidade de explicar e dar a conhecer a verdade e que
esta está intimamente ligada à autoridade que a comunica, daí a relação forte entre religião
e poder e entre governo e moral nesta literatura. Entre as literaturas medievais faltou, talvez,
a abordagem ao género «catecismo», onde os pontos anteriores estão em grande evidência.
Por sua vez, o nosso artigo, intitulado “A linguagem religiosa como linguagem performativa”
procura, utilizando exemplos de textos míticos, sagrados, orações e invocações religiosas,
mostrar como esta linguagem, que depois passa para a literatura religiosa, se caracteriza
por fornecer ao leitor ou ouvinte um espaço de acção, que o implica. A linguagem religiosa obriga à participação dos actores. Apresentando-se como uma «linguagem outra», ela
transforma o mundo e a posição dos actores no próprio acto de enunciação. Oral ou escrita,
a linguagem religiosa é uma linguagem mais criadora do que interpretadora de mundos!
Interno à linguagem religiosa está o acto de crença, que lhe possibilita a eficácia desejada.
Já no artigo “Mito, religião e literatura”, de José Soares Martins, parte-se de uma aparente
confrontação entre «mythos» e «logos», onde se joga a relação entre o fabuloso, encantatório e o racional, na ordem do verdadeiro e inteligível. Há também subjacente uma diferenciação entre o oral e a escrita, vindo esta a criar uma nova maneira de pensar ao racionalizar
a realidade. Aparentemente há um discurso evolucionista que colocaria o mito no início da
história e a razão no seu final! O autor do artigo pretende demonstrar que o mito deve ser
pensado dentro de todas as etapas da história ao relevar o seu próprio carácter histórico.
Por outro lado, ao confrontar a relação histórica com o mito e com o dogma, nascido da
necessidade de afirmação das grandes religiões em se diferenciarem do mito, o autor vê
mais possibilidades de sobrevivência e de eficácia no mito, porque pela sua narração vence
o medo, enquanto o dogma se fixa num discurso de verdade imposto e inflexível, por isso
sujeito sempre à crítica e ao esvaziamento. É dentro destas possibilidades do mito que as
novas narrativas literárias constroem os sentidos totalizantes com que pretendem interpretar a sociedade actual.
Em “Natureza e empirismo: uma visão antropológica dos males do corpo”, Maria Adelina Vieira
procurou aliar o «ser que pensa» com o «corpo que sente», onde o corpo aparece na condição de mediador. E é esta condição do corpo que o transforma em espaço de afirmação do
religioso, porque nele se sintetiza o «natural» e a «fonte do conhecimento». Partindo da experiência de Torga – médico, escritor e doente – e da obra "Cirurgia Reformada", de um autor
anónimo do século XVIII, a autora mostra como a pele e a carne, na condição de sofrimento,
são espaços de construção de saber e de descoberta de um sentido que passa pela integridade do corpo. É nessa integridade que o corpo é inteligível e, ao mesmo tempo, sagrado.
Partindo de um conjunto de definições jurídicas e de conceitos, João Casqueira, em “Direito, ética e religião”, mostra como o acervo jurídico português, aqui entendido como mais
um conjunto literário, tem sobre a religião uma visão demasiado minimalista, própria da
situação social e cultural de um Portugal que ainda não sentiu necessidade de ser mais
pró-activo com novos grupos culturais e religiosos que, certamente, com o fenómeno das
grandes migrações a que assistimos, irão ser mais relevantes.
Versando obras literárias concretas e a presença do religioso nelas, temos os artigos de Paula
Mota Santos, Maria do Carmo Castelo Branco, Fernando Hilário, Teresa Toldy, Marília Brito e
António Joaquim Oliveira. Mota Santos dá-nos uma contextualização pertinente da «encorporação da norma» pelo sistema cultural, que ordena a realidade. Ora o monstro, que
a autora vai procurar em M. Shelley e L. Stevenson, é uma das encorporações da norma
pela adição ou subtracção. A necessidade que as sociedades têm de ordenar a realidade faz
com que elas criem o «monstro», porque é a forma de «situar» o «não-igual-a-nós», tanto a
nível físico como comportamental. A experiência de Frankenstain e de Henry Jekyll passa
pelo uso do interdito e pelo abuso das suas possibilidades, o que leva ao risco do limiar do
conhecimento e à fronteira da morte. O Interdito como projecto, deixa-se transparecer no
horrível do corpo e na condição malévola dos fins, mostrando como a ideia criadora do saber, sempre uma tentação humana, entra na sua condição religiosa, quando não usurpadora
do papel divino. Um projecto que se paga necessariamente caro.
A obra de Eça de Queirós, o eterno insatisfeito e crítico da sociedade portuguesa, é analisada por Maria do Carmo Castelo Branco dentro desta relação entre religião e literatura.
Contextualizando a análise no mundo literário em que escrevia Eça, a autora mostra como o
escritor utiliza o religioso – e as suas personagens – mais como elemento estético e irónico,
do que como afirmação apologética ou denunciadora de uma sociedade anti-cristã, com
um discurso cristão, como os seus contemporâneos faziam.
Fernando Hilário vai à poesia de Ângelo de Lima, o louco prisioneiro da psiquiatria, procurar uma outra loucura. Deuses e mitos atropelam-se na veia inventiva do poeta, numa
engenharia filológica em que a nomeação assume carácter genésico, criador, poético, em
suma! Das narrativas míticas, Ângelo de Lima constrói um mapa geográfico em que os seus
sentimentos se deixam simbolizar em metáforas. Nesta geografia reinventada, bem e mal,
vida e tempo transbordam a poesia de Ângelo de Lima. Fernando Hilário mostra como o
poeta quer renascer, purificando-se: “este renascimento do homem após a morte, mantido
mistério, mas celebrado pelo mito e pela poesia, já que ambos visam a (ou uma) explicação
das coisas pela metáfora, é um dos vectores da poética de Ângelo de Lima” (p. 112).
Numa tentativa de entrar por dentro do silêncio de Deus na vida e obra de Elie Wiesel,
Teresa Toldy confronta os leitores com a paradoxal experiência deste judeu, crente e vítima,
enquanto prisioneiro, dos campos de concentração nazis. No cerne da questão estão as
palavras de Robert MacAfee Brown citadas pela autora: “para ele (Wiesel), o problema é a
existência de Deus, não a sua inexistência”! Ao longo deste ensaio somos introduzidos nos
acontecimentos e nos desafios morais e filosóficos colocados a alguém que experienciou
um dos crimes mais inexplicáveis do século XX. Perante eles, a questão da existência de
um Deus que, pelo seu poder, podia salvar as vítimas de tal sofrimento, colocou-se sempre
como razão de duas atitudes: reconhecer a impossibilidade da sua existência, a mais simplista, ou, apesar da sua ausência, acreditar na existência de Deus, mesmo perante o absurdo
desse silêncio divino. A autora, seguindo a própria experiência de Wiesel, acaba por dar um
sentido para este paradoxo ao direccionar para a fragilidade de um corpo de criança enforcada a visão da face do Deus.
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O Outro Pé da Sereia, de Mia Couto, é a oportunidade para Marília brito desenvolver um
ensaio sobre a presença do sincretismo religioso na literatura. E tratando-se de Mia Couto,
nada de surpreendente na conciliação e invenção de um maravilhoso que cruza espaços,
identidades e crenças. A acção do livro transporta o leitor entre a realidade e a fantasia de
personagens, que são capazes de «enterrar estrelas», e uma estranheza constante, que o deixa de ser a partir do momento em que o mundo é sempre passível de invenção e o insólito
faz parte do quotidiano.
Já António Joaquim Oliveira vai a Eugénio de Andrade reafirmar a constatação de todo o
poeta de que «o sonho cristão do amor humano universal com rosto foi substituído pela
realidade assassina do ódio desumano universal sem rosto»! Ao longo da obra do célebre
poeta, Oliveira reafirma a presença de palavras e sentimentos contraditórios, onde justiça
e injustiça, perfume e carne, jogam com a palavra deus e com o sentimento do amor. O
mundo é uma pura contradição e o poeta o seu revelador! E a revelação é o espaço para a
«palavra», onde está a santidade e a verdade da salvação. Eugénio, segundo Oliveira, faz da
criação poética o ritual religioso de eleição, a sua «missa», o seu sacrifício redentor.
Viajar junto com a Marquesa de Alorna pelo naturalismo e por uma construção filosófica
do mundo que parte de um convento até aos palácios da Europa, é a proposta de Joaquim
Fernandes. Na obra da poetisa, o autor do ensaio vê a manifestação da cultura europeia da
época e a influência dos espíritos mais ilustrados que conviveram com Leonor de Almeida
Lorena e Lencastre. Se o convento foi um cativeiro que a obrigou a libertar-se na meditação
da natureza, enamorando-se dela, a experiência meditada ou real da fuga libertou-a para o
cosmos, na busca de uma «inteligência imensa», desvelando o «oculto» como sentimento
de busca.
Num outro registo, Jesús Varela-Zapata, percorre as literaturas em inglês sublinhando nelas
os conflitos religiosos, desde a Idade Média ao presente. Uma das características desta literatura em inglês é a influência da bíblia e da crença religiosa nos seus textos e nos seus temas.
Varela-Zapata mostra-nos que se a religião pode servir para milhares de pessoas como um
alívio espiritual, ela pode, também, servir e espelhar o conflito social ou pessoal. Desde a
divisão ou cisma protestante na Inglaterra de Enrique VIII, esta clivagem reflectiu-se na literatura e nos sentimentos dos personagens, profundamente marcados pela história e pelos
dramas vividos pelos próprios autores. A libertação do religioso é mais um dos temas e dos
dramas de uma cultura literária que passa tanto pela angústia como pela manifestação da
rebelião. Na contemporaneidade, esta literatura em inglês já não espelha apenas o conflito
cristão, mas está profundamente marcada pelo islamismo e pelas profundas roturas sociais
e culturais que a sua adesão ou repulsa causam nas sociedades que escrevem em inglês.
Isabel Ponce de Leão não vai à literatura religiosa propriamente dita, presente em Portugal,
mas à manifestação da religiosidade cristã na literatura dita profana. E logo a primeira conclusão é a de que a literatura portuguesa está desde as suas primeiras criações marcada
pelos ideários e símbolos cristãos. Se a tradição judaico-cristã estrutura a forma, a hierarquia
e o léxico da sociedade, da mesma forma o faz na literatura e na estrutura cultural. A própria
literatura de oposição e de renovação da sociedade, nascida no iluminismo, constrói-se sob
este paradigma, que funciona como o contrário aos novos ideais a implementar. Ao longo
do tempo, esta aproximação e afastamento do literário com o religioso, ou com a mentalidade que o afirma, estão directamente ligados aos acontecimentos históricos das sociedades
onde vivem os escritores e poetas, pois, como Isabel Ponce de Leão diria logo no princípio,
«a literatura e a história não dividem o seu património», ou seja vivem-no indissociavelmente. No fim, e passando por várias épocas, escolas literárias e autores, a ensaísta diz-nos que
a religião cristã, junto com outras crenças, lendas e mitos, sempre esteve presente, e nunca
indiferente, na literatura portuguesa.
Por fim, o ensaio de Paulo Castro Seixas, nascido do seu trabalho de campo em Timor Leste. O autor parte de rituais e mitos timorenses – Sorot Malae – , para mostrar a dinâmica e
criatividade destas narrativas mitológicas. Na sua ancestralidade definidoras de identidade
tribal, cimentada ao longo de séculos, estas narrativas têm na actualidade – e olhando para a
conjuntura cultural, social e política da sociedade timorense – um papel de reinterpretação
da história e de construção de papéis, servindo como «tradução» entre mundos diferentes,
mas que se compreendem e se explicam mutuamente.
O livro que apresentamos, que como vimos nasceu do III Encontro de Estudos sobre Ciências e Culturas, oferece-nos um largo arco de reflexão sobre a presença do fenómeno religioso na cultura humana, através da escrita literária. Esta experiência transdisciplinar deixou
transparecer tanto os perfumes e notas poéticas da literatura, como a análise aprofundada
das suas implicações nas grandes questões que afligiram os homens ao longo dos séculos.
Álvaro Campelo
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