A OPOSIÇÃO
MOURO-CRISTÃO NA NARRATIVA DE GOMES EANES DE ZURARA
Sylnier Moraes Cardoso - UFG/CAJ
Neste texto pretendemos discutir a associação entre História
e Literatura, utilizando a narrativa literária como fonte histórica,
observando a oposição mouro-cristão,
presente na Crônica de D. Duarte
de Meneses
A oportunidade de se trabalhar novas perspectivas teóricometodólogicas em História surge na década de 1920 com os Annales “Na
França o movimento dos Annales surge na pós-primeira guerra, propondo
uma
nova
abordagem
historiográfica”
(REINATO,
1998,
p.
44).
A
abordagem preconizava uma intensa modificação em relação à pesquisa
histórica: uma história que permitisse a captação de manifestações
humanas pouco valorizadas, tais como sentimentos e sensibilidades (o
que está detrás do documento).
Dentro da perspectiva de mudança da pesquisa histórica é que
pretendemos
trabalhar
a
associação
entre
História
e
literatura.
Enfocaremos num primeiro momento o referencial teórico da primeira
geração dos Annales e, em especial, o da terceira geração, utilizando
autores como G. Duby e Jacques Le Goff. Neste estudo a literatura
passa a ser vista como fonte essencial para captação do imaginário
medieval. O movimento de aproximação entre História e Literatura, a
partir da década de 1960 na Europa, e de 1980 na América, trouxe
também o resgate da narrativa. As fontes narrativas e o exercício
narrativo do historiador tentam trazer uma verdade na ficcionalidade.
Assim, o texto ficcional permite ao historiador perceber, pelas
estruturas narrativas, a atmosfera de uma época. Temos como exemplo o
trabalho pioneiro de Lucien Febvre, historiador da primeira geração
2
dos Annales, com a obra “O Problema da Descrença no século XVI: a
Religião de Rabelais”.
Como mencionamos a relação entre História e Literatura é um
dos pontos de abordagem de nossa pesquisa. Desse modo, ao tratarmos da
documentação relativa à ocupação portuguesa na África, usamos como
fonte principal, as crônicas de Gomes Eanes de Zurara. A crônica
situa-se
na
fronteira
tênue
entre
História
e
Literatura.
São
documentos de grande utilidade, mas exigem uma constante crítica aos
dados referidos, já que são relatos patrocinados pela Corte Régia e,
em geral, elaborados posteriormente às realidades apresentadas. No uso
da crônica como fonte histórica, não podemos esquecer ainda da
dependência dos historiógrafos em relação aos príncipes, na época
recortada para o estudo, que é por vezes tão próxima que se torna
difícil a análise do contexto apresentado.
Dentro
da
historiografia
portuguesa,
as
primeiras
manifestações de erudição portuguesa foram desenvolvidas no centro da
Igreja Católica, desde o início do século VII, notando-se uma escassez
de
escritos
históricos,
anteriores
ao
séc.
XV.
“A
perspectiva
eclesiástica foi alterada pela evolução do Estado Português, e pelo
aparecimento da língua portuguesa como unidade lingüística nacional”
(KING, 1978, p.22).
No século XIII houve a continuidade da Nação Portuguesa e a
mudança do latim para o português como língua literária da corte, esta
se
torna
padrão
somente
com
o
desenvolvimento
de
uma
tradição
literária secular. A longa tradição da historiografia portuguesa pode
ser atribuída ao rei Dom Duarte, que criou o cargo de Cronista-Mor do
Reino em 1434. O intuito de Dom Duarte era de que se relatasse sobre
os monarcas portugueses que o antecederam. Interessante destacar que
3
Fernão Lopes, considerado o cronista do povo, foi o primeiro a ocupar
o cargo de Cronista-Mor em Portugal.
Em Portugal a tradição dessa historiografia foi causada:
“1) pela actividade literária já existente em Portugal. 2) pelo
conhecimento de que a historiografia se tinha já iniciado em outros
reinados e 3) pela mão talentosa e possível de Fernão Lopes” (KING,
1978, p. 24).
Fernão Lopes desenvolveu a atividade de cronista durante
vinte anos e foi substituído, provavelmente por causa de sua idade
avançada e de sua saúde precária por Gomes Eanes de Zurara, que foi
incumbido pelo rei D.Afonso V de terminar a crônica sobre D.João I.
O português Gomes Eanes de Zurara foi considerado um dos
maiores escritores da Idade Média. Nasceu provavelmente no ano de 1410
(cálculo de Esteves Pereira), pois há controvérsias tanto na data
quanto no local de seu nascimento. A origem de seu apelido “Azurara”
também é polêmica. Alguns de seus biógrafos dizem que foi retirado da
vila em que nasceu; outros afirmam que era natural de Azurara do
Minho, ou de Azurara da Beira.
Em relação a outros dados de sua biografia, observamos
imprecisões: seu estado civil é desconhecido, apesar de ter deixado
dois filhos ilegítimos (Gonçalo Gomes de Zurara e Felipa Gomes).
Zurara foi comendador da Ordem de Cristo e sabemos que nesta, a
princípio se fazia o voto de castidade, mas posteriormente o Papa
Alexandre VI decretou apenas a castidade conjugal (DINIS, 1945, p.97).
A data de seu falecimento e local de sepultamento também
foram objetos de discordâncias. Todavia, segundo autores como Souza
Viterbo e Duarte Leite, o cronista faleceu entre primeiro de dezembro
de 1473 e dois de abril de 1474 (DINIS, 1945, p. 106).
4
Além das funções de Comendador da Ordem de Cristo e Cronista
Régio, Zurara também foi cavaleiro e guarda-mor do Arquivo Nacional.
Gomes Zurara foi escolhido como cronista régio e guarda-mor das
escrituras do Tombo (arquivo nacional) entre os anos de 1451 ou 1452.
Foi o sucessor de Fernão Lopes, eleito para continuar sua obra.
Zurara
é
considerado
o
cronista
da
nobreza
e
um
dos
representantes dos valores nobres, ou seja, a honra e a glória a
serviço de Deus e do Rei. As características específicas que refletem
os mais altos valores da corte são reafirmadas por Zurara, o qual
intensifica o papel de cavaleiro em seus relatos (KING, Larry. 1978,
p. 26).
Três das quatro crônicas de Gomes Eanes de Zurara tratam da
expansão portuguesa no Norte da África, narrando com precaução os anos
em que os portugueses permaneceram em Marrocos, de 1415 à 1464: a
crônica da Tomada de Ceuta, a Crônica do Conde D. Pedro de Meneses e a
Crônica do Conde D. Duarte de Meneses, objeto de nosso estudo, que
teve por pretensão realçar o “perfil ideal” de nobreza no século XV,
inserida no contexto da reconquista em África. Esta última obra feita
no fim de sua produção literária foi considerada a mais ambiciosa obra
de Gomes Eanes de Zurara:
“O último trabalho de Zurara representa a culminação da obra
de um grande escritor e reflete uma maturidade literária e uma
perspectiva histórica não encontrada em nenhuma de suas crônicas
anteriores. Ele pode justamente ser considerado como a mais ambiciosa
produção do cronista” (KING, Larry. 1978,
p. 28).
Larry King propõe a divisão da crônica de D. Duarte de
Meneses da seguinte forma:
1- prólogo ou introdução;
5
2- um relato da transição de D.Pedro para seu filho D.Duarte;
e
3- a crônica das Guerras no Norte de África de 1437 a 1464
(KING, 1978, p.29).
A Crônica do Conde D. Duarte de Meneses1 relatava a vida de um
dos mais fiéis súditos do rei D. Afonso V. Anteriormente o próprio
Zurara havia escrito uma crônica sobre o pai de D. Duarte, D.Pedro de
Meneses. No capítulo III, Zurara concluiu o prólogo narrando a
genealogia do protagonista da crônica. De acordo com o cronista, os
antepassados
paternos
do
Conde
remontam
aos
reis
de
Castela
e
Portugal. Sua mãe foi muito pouco citada, pois D. Duarte era filho
ilegítimo. “Nem escreuemos aquy a geeraçom da madre do conde dom
Duarte por quanto elle era filho natural o qual seu padre fezera em
huma moça de sua casa”. (ZURARA, 1978, p.17) Recorrer a uma linhagem
nobre era de fundamental importância para a legitimidade do poder da
fidalguia.
Já no início da Crônica D. Duarte foi levado à Ceuta para
viver com seu pai que era governador da cidade. Com 15 anos travou sua
primeira
batalha,
na
qual
de
acordo
com
triunfalmente, levando a morte trezentos mouros.
o
cronista,
venceu
“O jovem guerreiro
é prontamente armado cavaleiro por seu pai e participa de outros
encontros com o inimigo até um intervalo de calma que ocorre na guerra
de 1429 a 1431” (ZURARA, 1978, p. 32). A segunda característica do
cavaleiro além de possuir uma linhagem, era a de ser guerreiro. “E
sseguido entender dos homeens nom se desenfadaua tanto em outra cousa
1
Das quatro crônicas atribuídas a Gomes Eanes de Zurara, três tratam exclusivamente da história
da ocupação portuguesa no Norte de África. A trilogia narra com cuidado cinco décadas da presença
portuguesa em Marrocos, de 1415 a 1464. (Introdução à Crónica do Conde D. Duarte de Meneses.
Edição Diplomática de Larry King)
6
como nos feitos da cauallaria, como aquelle que casy do berço husara
ho officio das armas” (ZURARA, 1978, p. 31).
A imagem de cavaleiro, de acordo com as fontes, estava
associada a atributos como honra, esforço, bravura, justiça, moderação
e especialmente o de ser um bom cristão. Em vários momentos da Crônica
sobre o Conde Duarte de Meneses estes atributos foram reforçados.
O
modelo
de
cavalaria
do
século
XV
atingia
só
alguns
representantes da nobreza como exemplo de forma de vida aristocrática.
Outro momento clássico da existência do ideal cavalheiresco foi o
discurso de D.Álvaro Vasques D. Almada, fidalgo do século XV, quando
da partida dos validos do Duque de Coimbra para o encontro fatídico em
Alfarrobeira.
Antes morrer grande e honrado, que vyver pequeno e dshonrado, e
que pêra ysso vistissem todos, os corpos de suas armas, e os
coraçoões armassem pryncipalmente de muyta fortalleza, e que se
fossem camynho de Santarém nam como gente sem regra desesperada
nem leal, mas como homens d’acordo, e que hiam sob governança
e mando, de hum tal pryncepe e
tal Capytam, que a ElRey seu
Senhor sobre todos era mais leal e servydor mais verdadeiro, e
que mandasse a ElRey pedir e requerer, que com justiça o
ouvysse com seus ymigos, que lhe tam sem causa tanto mal
hordenavam, ou lhe desse com elles campo, em que de suas
falsydades e enganos, elle por sua lympeza e lealdade faria que
se conhecessem e desdysessem. E que quando ElRey alguma destas
cousas nom ouvesse
por bem, e todavia quysessem. E que quando
ElRey alguma destas cousas nom ouvesse por bem, e todavia
quysesse vir sobre elle, que entam defendedosse morressem
campo como bons homens e esforçados cavalleiros
p.96).
no
(PINA, 1901,
7
Ao
se
trabalhar
com
os
cronistas
régios,
observa-se
a
intensificação do aspecto religioso ao exaltar o aspecto cruzadístico,
tanto que na narrativa de Zurara , torna-se visível este
embate entre
aspecto no
o ideal cristão em contraposição com os mouros. O
protótipo da caracterização relativa à oposição ao cristão-mouro foi
constante na crônica. Um dos objetivos do bom cristão era conquistar o
infiel. Percebemos aí a presença do espírito cruzadístico ainda
existente em alguns momentos do início da ocupação portuguesa na
África.
Zurara revela D. Duarte como guerreiro/cristão primordial no
Norte
da
África,
exaltando
seus
atributos
de
honra,
glória,
intensificando o valor de suas façanhas e heroísmo.
Larry
King
organiza
a
estrutura
da
Crônica
de
Zurara,
evidenciando a oposição entre mouros e cristãos, através de exemplos
claros e incompatíveis. O cronista propaga o ideal cristão, onde o
traidor mouro é considerado um herói em contrapartida, se o traidor
for um cristão, torna-se um ser desprezível.
“ Os Mouros: nom há temperança, nem justiça, muyta cobijça,
pouca verdade, engano, bebem destemperadamente, não temem a morte;
Duarte:
amador
de
justiça,
foy
de
sua
fazenda
assaz
D.
prestador
aaquelles...pollas dadiuas que fez,
temperado
Amador
de
em
comer
uerdade,
e
muyto
beber
e
ardido
dormyr,
e
de
homem
honroso
deuoto,
coraçom,
amigo
de
deos.”(KING, Larry. 1978, p.34)
O objetivo inestimável de um cristão era a conquista do mouro
(pagão/infiel).
Nesta
busca
observa-se
“
a
confrontação
entre
8
Cristãos e Mouros escorada num ódio intenso e numa vontade de
destruição, com sobrevivência de Cristãos independente da invencível
desigualdade e falta de provisão.” (KING, Larry. 1978, p. 37)
A
honra
era
outro
atributo
que
garantia
à
cavalaria
distinguir-se dos demais homens, pois “o defender fta em tres cousas,
a
faber,
esforfo,
honra
e
poderio”
(ORDENAÇÕES,
1984,
p.60).
Obviamente também na crônica de Zurara o esforço em distinguir as
características
de
D.
Duarte
de
Meneses
possui
a
intenção
de
caracterizar um tipo ideal de cavaleiro, sendo este personagem de
forma exagerada colocado como um exemplo a ser seguido, um espelho do
que foi seu pai D. Pedro de Meneses.
A par do discurso representado nas crônicas, o cavaleiro, por
pertencer a nobreza, também tinha vários privilégios, como jurisdição
própria em suas terras, além de receber quantias. O cavaleiro podia
ser vassalo de ricos homens, apesar de serem armados exclusivamente
pelo rei. Na maioria das vezes estas quantias eram destinadas aos
cavaleiros pelo próprio rei, em especial àqueles que combateram na
África.
“A aplicação prática destas normas pode verificar-se da
análise de algumas cartas de quitação, nomeadamente de uma carta
passada ao tesoureiro-mor das coisas de Ceuta, relativa aos anos de
1453 e 1454 onde vemos uma trintena de escudeiros e cavaleiros da casa
real recebendo vários montantes em trigo, vinho e dinheiro, de
mantimentos relativos a períodos passados em Ceuta, que vão de um a
quatro meses” (GOMES, 1995, p. 212).
A morte do protagonista, D. Duarte de Meneses, em 1464,
também está carregada de uma grande simbologia, pois este morreu
protegendo o rei D. Afonso V que havia entrado em território inimigo
com poucos homens, correndo o risco de ser capturado ou morto. A ação
9
do Conde, de acordo com o cronista, foi a de proteger primeiramente
seu rei, mesmo que para isso fosse necessário perder a vida, como
realmente aconteceu.
“E entom abalhou el Rey e o Conde nom foy renganado em sseu
dito, por que caasey todos partyram onde lhe logo mataram a
cavvallo e feryram a elle na traseyra. E elle a pee chegousse a
elle o conde de moonsantoe huum scuydeyro que era filho de huum
criado de seu padre que por lhe dar se cavallo morreo aly como
boa, o qual avya nome Nuno Martinz de Villa Lobos. Trabalhou o
conde de moonsanto por tomar seu cunhado a cavvallo. E porque
elle avya as pernas curtas e desey armado e apressado dos
contraryos e desacompanhado nem pode tam ligeyramente cavalgar
como lhe cumpria... E assy acabou aquelle nobre e tam honrado
cavalleyro, cuja morte foy muy chorada” (ZURARA, 1978. p 354).
O objetivo da crônica de Zurara, de realçar os “grandes
feitos” de Dom Duarte, continuou mesmo após a morte deste. Nesse
momento o cronista exalta a morte cavalheiresca deste nobre e o legado
que este deixou para ser continuado por sua família. Assim, a saga da
família prosseguiu na pessoa de Dom Henrique, herdeiro de Dom Duarte.
O capítulo final da crônica já mencionava a ascensão do jovem Meneses
ao título de conde Dom Henrique, entendendo-se que outro membro desta
família continuaria com as mesmas características cavalheirescas de
seus antepassados.
Como discorremos os escritos de Zurara contém um discurso
simbólico em relação à cavalaria, tendo como principal representante o
conde Dom Duarte de Meneses. Observa-se, todavia, que a sua Crônica
1
0
não deixa de apresentar uma concepção e uma propaganda do ideal de
cavaleiro ainda existente em pleno século XV e, como já foi observado
anteriormente, nesse período, ligada à expansão marítima portuguesa
rumo à África.
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