Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Joana Loureiro Freire Meus favoritos: crianças, sites e metodologias de pesquisa Rio de Janeiro 2012 Joana Loureiro Freire Meus favoritos: crianças, sites e metodologias de pesquisa Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Educação. Orientador (a): Prof.a Dra. Rita Marisa Ribes Pereira Rio de Janeiro 2012 Joana Loureiro Freire Meus favoritos: crianças, sites e metodologias de pesquisa Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Educação. Aprovada em 20 de março de 2012. Banca Examinadora: _____________________________________________ Profª. Drª. Rita Marisa Ribes Pereira (Orientadora) Faculdade de Educação da UERJ _____________________________________________ Profª. Drª.Edméa Oliveira dos Santos Faculdade de Educação da UERJ _____________________________________________ Profª. Drª Angela Meyer Borba Faculdade de Educação da UFF Rio de Janeiro 2012 DEDICATÓRIA À minha mãe, Cibélia, por, desde sempre, estimular a minha vida acadêmica. Por todo o seu apoio, pelos lanchinhos aos finais de semana durante os estudos em grupo, pelas leituras atenciosas, pelos “puxões de orelha”. Pelas verdades, às vezes duras, mas que precisam e são ditas mesmo nos momentos mais difíceis, às vezes doces e carinhosas, revigorantes. São essas palavras que me fazem querer sempre melhorar e saber que posso contar com suas críticas, por mais dolorosas, mas que sempre me farão crescer, e ansiar por seus elogios por serem os mais verdadeiros. AGRADECIMENTOS Bons Amigos Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir. Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende. Amigo a gente sente! Machado de Assis Falar em agradecer sem falar na amizade, tema tão caro a esta dissertação, seria impossível. A todos que agradeço, e aos que mesmo sem citar o nome fazem parte da minha vida e aos quais agradeço também, muito obrigada pelo sentimento da amizade, por me fazerem sentir o carinho de vocês! - As crianças da Vila: obrigada pela amizade, pela cumplicidade e, principalmente, pelas brincadeiras!!! Sem vocês nada disso seria possível! - As mães das crianças, em especial à Raquel por ter se tornado minha amiga. Obrigada pelas conversas, pela ajuda com a Dorothy, pela parceria e carinho! - A Luana, Chicre e Madelon, família linda e amiga! Luana, você foi fundamental para este trabalho! - A minha mãe, Cibélia, por sua amizade, por seu companheirismo, por suas palavras e pela leitura atenta deste trabalho. - A meu pai, Carlos, por todos os colos, por me deixar ser a “princesinha do papai” até hoje, por todas as palavras de carinho. - A meu irmão, Tomaz, por todas as piadas, todas as conversas, o companheirismo, as brincadeiras e pelas sugestões para este trabalho. - A Dorothy, de quem a saudade ainda é tão latente, por ter me proporcionado muitos momentos maravilhosos, por seu amor incondicional e por me aproximar ainda mais das crianças. - A meus avós, Maria e Walfredo, por todo o carinho e amor que me deram enquanto eram vivos. - Aos meus primos, Luiz, João e Manuela, por tornarem a minha vida mais alegre, cheia de brincadeiras e descobertas. Luiz, um obrigado especial pela leitura do meu projeto de mestrado e pela tradução do resumo! É bom demais ter primos inteligentes! - Aos meus tios, Marisa, Elizabeth, Ricardo, Cristina e aos tios emprestados, Nick e David, por todos os momentos de conversa e alegria. - Aos professores, Walter Kohan, Maria Luiza Oswald, Solange Jobim e Souza, Fabiana de Amorim Marcello com os quais tive o privilégio de conviver um pouco nestes dois anos. Um obrigado especial para Nilda Alves, por me orientar no início da minha vida acadêmica. - Ao grupo de pesquisa GPICC, Ivana, João, Paula, Vânia, Vânia, Regina, por todas as leituras, comentários, conversas, risos que fizeram esses dois anos serem ainda mais especiais. - A Renata, Nélia e Núbia, pela escuta, pelo carinho, pelas palavras mais reconfortantes. Sem vocês seria bem mais difícil! - Aos amigos Júlia e Bernardo que apesar da correria da vida que nos separa, os momentos e lembranças nos unem para sempre. Vocês moram no meu coração! - A amiga Ana Carolina, Carol, por ser minha amiga incondicionalmente, por me aturar em muitos momentos e por me ajudar tanto! Pelos passeios, pelas comidas, pelos risos! Você é a minha chata predileta. - A banca, Edméa e Angela, um obrigado especial! Sei que a leitura atenciosa de vocês me fará crescer cada vez mais! Edméa, obrigada pela leitura do meu projeto e mais ainda pela conversa maravilhosa! - A minha queridíssima Ritinha, por tudo: pelo carinho, pelas palavras, pelas leituras, por apostar que eu conseguiria, pelo apoio, pelos conselhos, pelas “palmadas”! A vida ficou mais bonita depois que passei a conviver com você! - A meu marido Paulinho, meu gatinho, amor da minha vida, meu amigo, meu companheiro. Por todos os momentos que vivemos e viveremos juntos, pelas conquistas que tivemos e ainda teremos, pelo carinho, pelas risadas, pelas conversas, pelo apoio constante e incondicional, por querer construir uma família comigo. Esses dois anos de trabalho não existiriam sem você ao meu lado! Que o nosso amor continue sendo “infinito enquanto dure”. Existe uma crença muito difundida de que as crianças são abertas, de que a verdade sobre seu ser interior praticamente brota delas. Não é bem assim. Ninguém é mais bem protegido que uma criança, e ninguém tem mais necessidade de sê-lo. Essa é uma reação a um mundo que o tempo todo tenta abri-la com um abridor de latas para ver o que ela tem por dentro, com a intenção de avaliar se não seria o caso de trocar por algo mais funcional. Peter Hoëg RESUMO FREIRE, Joana Loureiro. Meus favoritos: crianças, sites e metodologias de pesquisa. 2012. 151f. Dissertação de Mestrado em Educação – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Esta dissertação apresenta uma pesquisa que teve por objetivo descobrir qual a relação das crianças com a Internet e mais especificamente com os sites. Tendo como interlocutores cinco crianças que moram em uma mesma Vila Residencial, a pesquisa, que aconteceu neste espaço, pautou-se em questões do cotidiano, para investigar os usos que as crianças fazem dos sites que acessam. Os desafios de pesquisar em espaços particulares, onde questões como amizade, autoridade e metodologia de pesquisa ganharam destaque, fizeram-se presentes em todo o processo: do campo à escrita do texto. Uma grande questão que perpassa a discussão metodológica é sobre como, ao pesquisar através dos jogos, surge o desafio em conciliar os papéis de pesquisadora e jogadora. As reflexões sobre a construção de uma metodologia de pesquisa em espaços particulares contou com a contribuição de autores como Nilda Alves, Mikhail Bakhtin, Marília Amorim, Angela Borba, Fabiana Marcello dentre outros. As questões do cotidiano foram feitas a partir do debate principalmente com Michel de Certeau. As reflexões mais específicas sobre a Internet foram feitas a partir do que emergiu em campo, com as crianças, e contaram com o auxílio de, entre outros, André Lemos, Edméa Santos, Lucia Santaella e Marco Silva. Palavras-chave: Infância. Metodologias de Pesquisa. Cotidiano. Sites. ABSTRACT This dissertation presents research on the relationship between children and the Internet, specifically their relationship with websites. It interviewed children living in a Vila Residencial (Residential Village) about their day-to-day lives in order to investigate how they used the websites they access. Researching private spaces where questions of friendship, authority and research methodology played a central role provided challenges that were present throughout the process; from field work to writing the results. An additional issue which goes beyond methodological discussions involved how to manage the roles of researcher and ‘playmate’ when conducting research through games and play. The reflections on how to create an appropriate research methodology in private spaces received contributions from authors such as Nilda Alves, Mikhail Baktin, Marília Amorin, Angela Borba, Fabiana Marcello, and others. The questions about the children’s daily life were built mainly from the debate with Michel de Certeau. More specific reflections on the Internet emerged from the work in the field and with the children, and were assisted by André Lemos, Edméa Santos, Lucia Santaella, Marco Silva and others. Key words: Childhood. Research Methodologies. Daily Life. Websites. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagem 1 Jogo Vida Natural – formas e cores..................................................... 57 Imagem 2 Cabelereiro da Polly............................................................................ 59 Imagem 3 Jogo do Ben 10.................................................................................... 64 Imagem 4 Metade da Vila Residencial desde a entrada ...................................... 71 Imagem 5 Outra metade da Vila Residencial com o final ao fundo..................... 71 Imagem 6 A varanda da minha casa..................................................................... 71 Imagem 7 Home Page do Club Penguin............................................................... 84 Imagem A Ilha Club Penguin............................................................................ 86 Imagem 9 Área de login para acesso ao Club Penguin......................................... 86 Imagem 10 Meu pinguin......................................................................................... 87 Imagem 11 Servidores............................................................................................ 88 Imagem 12 Bate Papo SuperSeguro....................................................................... 88 Imagem 13 Exemplos de conversa em um Bate Papo SuperSeguro..................... 89 Imagem 14 Bate Papo Seguro............................................................................... 89 Imagem 15 Conteúdos exclusivos para assinantes................................................. 92 Imagem 16 Assinatura............................................................................................ 93 Imagem 17 Assinatura 1......................................................................................... 93 Imagem 18 Pinguim assinante................................................................................ 94 Imagem 19 Aviso assinatura.................................................................................. 95 Imagem 20 Meu iglu.............................................................................................. 96 Iglus assinantes.................................................................................... 97 Depoimentos usuários.......................................................................... 98 Imagens 21 e 22 Imagem 23 Imagem 24 Convergência de mídias...................................................................... 103 Imagem 25 Bonecos ............................................................................................... 104 Imagem 26 Cards Desafio Ninja............................................................................. 104 Imagem 27 Álbum de figurinhas............................................................................ 104 Imagem 28 História em quadrinhos........................................................................ 104 Imagem 29 Nintendo D.S....................................................................................... 104 Imagem 30 Alerta senha......................................................................................... 105 Sequência de alertas sobre senha......................................................... 106 Imagem 34 Desafio Ninja – Sensei......................................................................... 109 Imagem 35 Desafio Ninja – Início.......................................................................... 110 Imagem 36 Desafio Ninja – Exemplo de jogo........................................................ 110 Imagem 37 Desafio Ninja – Eu perco..................................................................... 111 Imagem 38 Desafio Ninja – Faixa laranja.............................................................. 111 Imagem 39 Desafio Ninja – Conquista de selos..................................................... 112 Imagem 40 Álbum de selos – Capa ....................................................................... 113 Imagem 41 Álbum de selos.................................................................................... 113 Imagem 42 Meu pufle............................................................................................. 115 Imagem 43 Sequência tutorial sobre pufles.......................................................... 116 Imagem 31, 32 e 33 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................ 1 A PESQUISA NO COTIDIANO: EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA DE PESQUISA COM CRIANÇAS EM UM ESPAÇO DA VIDA PRIVADA........................................................................................ 13 19 1.1 Conceitos que atravessam a pesquisa............................................................... 20 1.2 A aproximação com as crianças: a história de uma amizade........................ 26 1.3 Lapidando o campo de pesquisa....................................................................... 30 1.4 Delimitando o campo de pesquisa..................................................................... 33 2 OS USOS DA INTERNET NAS RELAÇÕES DE PESQUISA.......................................................................................................... 51 2.1 Os ‘usos’, as ‘maneiras de fazer’, as crianças e os sites.................................. 51 2.2 A Vila.................................................................................................................. 70 2.3 Os interlocutores................................................................................................ 73 2.4 Achados da conversa inicial.............................................................................. 74 3 INVESTIGANDO UM SITE ATRAVÉS DAS CRIANÇAS.......................... 81 3.1 Club Penguin...................................................................................................... 81 3.2 O site.................................................................................................................... 82 3.2.1 Jogar e consumir.................................................................................................. 91 3.2.2 Assinatura............................................................................................................. 92 3.2.3 Moedas................................................................................................................. 99 3.2.4 Senha.................................................................................................................... 105 3.2.5 Faixas................................................................................................................... 107 3.2.6 Selos..................................................................................................................... 112 3.2.7 Pufles.................................................................................................................... 115 4 AS CRIANÇAS, A PESQUISADORA, OS SITES: AS RELAÇÕES VIVIDAS EM CAMPO..................................................................................... 117 4.1 Jogar.................................................................................................................... 117 4.2 Computador: é legal usar junto?...................................................................... 4.3 As relações no usar junto................................................................................... 121 4.3.1 Cooperação......................................................................................................... 123 4.3.2 Competição......................................................................................................... 126 4.3.2.1 Competir através do jogo.................................................................................. 126 4.3.2.2 Competir com o jogo.......................................................................................... 127 4.3.2.3 Competir entre eles............................................................................................ 129 4.3.2.4 Status.................................................................................................................... 131 4.4 Quando a pesquisadora interfere nas relações: defendendo o irmão menor 132 4.5 Múltiplos papéis: pesquisadora, jogadora, professora, mediadora 135 5 VIVENDO E APRENDENDO A JOGAR. JOGANDO E APRENDENDO A PESQUISAR................................................................................................... 140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 145 120 13 INTRODUÇÃO Para poder estudar a criança, é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. E isso não é dado a toda a gente. Roger Bastide Longe de querer tornar-me integralmente uma criança, meu objetivo, com esta dissertação, foi mergulhar no mundo dos jogos on-line e viver esta experiência com as crianças. Nascida em 1980, faço parte da geração chamada de Nativos Digitais, expressão cunhada por Marc Prensky para caracterizar as gerações nascidas nas últimas décadas do século XX em que se deu o início e a rápida difusão das tecnologias digitais. Para ele, os nativos digitais são todos “falantes nativos da língua digital dos computadores, videogames e internet” (2001). No Brasil muitas crianças da minha geração não tiveram acesso a essas tecnologias desde cedo, visto que a tecnologia no Brasil tem um custo elevado e, nesta época, ainda era considerado luxo ter uma linha de telefone. Cabe ressaltar que, ainda hoje, o acesso às tecnologias não é para todos e continua sendo algo bastante dispendioso, apesar de, pelo menos nos centros urbanos, ser cada vez mais acessível. Em pesquisa realizada no segundo trimestre de 2011, o total de pessoas com acesso à Internet, em qualquer ambiente (residência, trabalho, lan-house, escolas etc.), foi de 77,8 milhões1, infelizmente, se considerarmos o universo de quase 200 milhões de brasileiros este ainda é um número bem baixo. Enfim, devo o privilégio em ter contato desde cedo com a tecnologia a meu avô paterno que era um grande entusiasta das novidades e a meus pais que começaram a trabalhar com editoração eletrônica e abriram uma empresa em casa, que existe até hoje. O fato de termos, em casa, uma empresa que precisava estar atualizada tecnologicamente proporcionou 1 .Fonte: Ibope Nielsen on-line. http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=cald b&comp=pesquisa_leitura&nivel=null&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F 14 à nossa família muitos momentos em torno das tecnologias. O primeiro deles foi no dia em que meus pais contaram para nós que a “firma” ocuparia o quarto do meu irmão, Tomaz, e por isso teríamos que voltar a dividir um quarto, causando em nós a reação imediata de contrariedade. Desta notícia, veio a pergunta do meu irmão que nos faz rir até hoje: “Mas, quem é essa tal de firma e quando ela vai embora?”. Assim, o computador ganhou um espaço de destaque em nossa família e recordo que minha casa estava sempre com alguma novidade e fomos vivendo esse mundo de forma intensa. Cada mudança de computador, 386, 486, Pentium, o primeiro Mac, nos trazia um novo mundo de possibilidades: reunidos ao redor do computador, disputando o uso, aprendendo com nossos pais, íamos, eu e Tomaz, nos apropriando desta tecnologia. Desta forma, durante a minha infância e início da adolescência, pude acompanhar a evolução do Computador Pessoal que chegava ao país: vi a mudança da tela preta e verde com muitos comandos manuais até a interface Windows; outra mudança percebida foi a evolução da conexão, pois quando eu era criança usávamos a conexão via BBS para nos comunicarmos com a família (eu, meu irmão e meus pais viemos morar no Rio de Janeiro por volta de 1986/87, mas nossa família, à época, continuou morando em Porto Alegre, cidade em que nasci) até a Internet via cabo que passamos a utilizar na minha pré-adolescência. Não posso deixar de mencionar os celulares, aparelhos de fax, videogames, os disquetes, CD-ROM, o videocassete; a vitrola e as primeiras fitas cassete de áudio, os primeiros CDs de música, o primeiro aparelho de DVD, enfim, posso dizer que acompanhei muitas mudanças tecnológicas. Muitas das minhas recordações de infância e adolescência estão atreladas à tecnologia. Recordo de vários momentos vividos, mas os que mais gosto são os momentos ao lado de meu avô paterno: jogávamos cartas, Freecell, brincávamos no programa Paint Brush, e eu acompanhava a confecção de faixas e cartazes, de boas vindas, de parabéns, que ele adorava fazer. Eu e meu irmão passávamos as férias na casa de veraneio dos meus avós, em Garopaba/SC. Era neste período que eu mais jogava videogame Atari: às tardes, após o almoço a minha avó permitia que jogássemos. Porém, “nada de ficar o dia todo jogando!” Podíamos jogar apenas um pouco para descansar do almoço e depois tínhamos que ir brincar na rua, no quintal etc., até por que ela também queria descansar e ver televisão. Todos esses relatos pertencem a um passado muito distante e é preciso que voltemos a um passado mais recente. No ano de 2005, meus primos, nascidos na Espanha, João (com 3 anos à época) e Manuela (com 1 ano), vieram morar em São Paulo. A partir daí, comecei a conviver com eles de forma mais constante. Em uma das minhas primeiras visitas à casa 15 deles, ainda em 2005, percebi o fascínio deles por jogos on-line, o que acabou gerando em mim muita vontade em descobrir mais sobre o assunto e com isso, foram surgindo alguns questionamentos: Como os pais lidam com esse desejo deles? Como são os sites produzidos especialmente para as crianças? Que conteúdos eles apresentam? Quais são as diferenças entre os sites? Que discursos sobre infância encontramos nos sites? Como é a interação das crianças com eles? Elas levam as brincadeiras que fazem on-line, no mundo virtual, para o cotidiano das escolas e das brincadeiras com os amigos? Em 2009, já formada em Pedagogia e trabalhando como professora em uma escola particular no bairro de Ipanema na cidade do Rio de Janeiro, decidi apresentar um projeto para o curso de mestrado. A fim de juntar elementos para embasar o meu pré-projeto (um dos requisitos para este ingresso), resolvi conversar com meus alunos sobre a Internet. Em uma roda de conversa na sala, expliquei para elas sobre qual assunto conversaríamos e pedi que eles respondessem às perguntas: Vocês conhecem os sites na Internet? O que é isso? De que sites vocês gostam? O que vocês fazem neles? Das 17 crianças, apenas uma não soube dizer o nome de um site. O mais citado foi o da Discovery Kids2 (7 crianças). Em seguida foi o da Cartoon3 (5 crianças) e os sites Iguinho4, Papa Jogos5, Nick6, Youtube7, Disney8, Barbie9 e Turma da Mônica10 foram citados uma vez cada. Naquele momento, pretendia investigar até que ponto e de que forma as brincadeiras on-line se faziam presentes nas brincadeiras em sala. Novas questões surgiram: há reprodução dos jogos em outros ambientes? Como elas reproduzem o que vivenciam nestas experiências? Que narrativas são produzidas quando a criança acessa e interage com um site? Ainda nesta escola e neste mesmo ano, presenciei cenas que me ajudaram a qualificar uma das minhas perguntas iniciais: “Elas levam as brincadeiras que fazem online, no mundo virtual, para o cotidiano das escolas e das brincadeiras com os amigos?”. A resposta apresentada pelo grupo de crianças foi positiva: de fato elas utilizavam as brincadeiras on-line para criar novas brincadeiras quando estavam juntas. Ao ingressar no mestrado fui selecionada para ser bolsista, o que naquele momento, me impedia de trabalhar em escolas a partir do ano seguinte (2010), mas isso, de forma 2 http://www.discoverykidsbrasil.com/ http://www.cartoonnetwork.com.br/ 4 http://iguinho.ig.com.br/ 5 http://papajogos.uol.com.br/ 6 http://www.nick.com/ 7 http://www.youtube.com/ 8 http://home.disney.com.br/ 9 http://br.barbie.com/ 10 http://www.monica.com.br/ 3 16 alguma, seria um empecilho para que eu pesquisasse na escola em que trabalhava até então, dando a certeza de que faria uma pesquisa naquela escola. Entretanto, ainda em 2010, mudei-me para uma Vila Residencial e lá tive contato com um grupo de crianças que poderiam ser os interlocutores desta pesquisa, o que me fez abandonar o projeto de pesquisar na escola e optar pela pesquisa em espaços particulares tendo como principal objetivo investigar a relação das crianças com a Internet, mais especificamente os sites por elas acessados. A partir disto as principais questões que nortearam essa pesquisa foram: Quais são os ‘usos’ que as crianças fazem da Internet? Quais ‘maneiras de fazer’ criam ao acessá-la? O que esses sites possibilitam e como elas exploram essas possibilidades? Este escopo aproxima esta dissertação, que teve apoio do CNPq, do projeto institucional “Artes do dizer e do dizer-se: narrativas infantis e usos de mídia”, coordenado pela Profª Rita Ribes Pereira e vinculado à Linha de Pesquisa “Infância, Juventude e Educação” do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. A pesquisa institucional tem como objetivo estudar a produção de narrativas infantis a partir dos usos que as crianças fazem de diferentes formas de mídias – televisão, DVD, MP3, iPod, internet, aparelhos de telefone celular. Cabe ressaltar que não pretendi fazer um estudo conceitual sobre a Internet e por isso, apresento os conceitos básicos necessários para o entendimento da relação das crianças com a Internet e com alguns elementos da cibercultura. Destaco ainda que esta dissertação é de caráter exploratório, se situando no campo dos estudos da infância e se dedicou a buscar metodologias comprometidas em perceber no cotidiano os usos espontâneos que as crianças fazem dos sites que acessam. Penso ser importante fazer esse destaque por entender que o campo de estudos sobre a cibercultura e as mídias digitais é muito mais amplo do que aquele que se delimitou no contexto desta pesquisa. O recorte que aqui trago, conforme será detalhado ao longo do trabalho, segue as pistas colocadas pelas crianças e as questões que daí surgiram. Compreender o que as crianças fazem on-line mostra-se cada vez mais urgente, pois, apesar das diferenças socioeconômicas da população brasileira, recentes pesquisas apontam para o crescente número de crianças com algum tipo de acesso à Internet. Uma delas, a TIC CRIANÇAS11, realizada em 2010, com crianças de 5 a 9 anos do Brasil todo constatou que 51% das crianças entrevistadas usam o computador e 27% a Internet, e que destas, quase 1/3 11 http://www.cetic.br/usuarios/criancas/2010/apresentacao-tic-criancas-2010.pdf 17 usam as redes sociais. Do total de crianças entrevistadas, 90% respondeu à questão sobre qual atividade realizou na internet com a resposta: “jogou joguinhos”. Outra pesquisa 12 realizada pela Millward Brown Brasil em 12 países, afirma que as crianças brasileiras, de 4 a 12 anos, como as que mais acessam a internet no mundo todo. De acordo com os resultados apresentados, elas passam cerca de 13 horas online por semana e, como já era de se esperar, o entretenimento é o que mais os anima: do tempo gasto conectado, a maior parte é passada em jogos e similares. Desta forma, não pretendi, em meu estudo, julgar se os sites acessados são bons ou ruins ou se as crianças devem ou não acessar à Internet, nem por quanto tempo podem acessála; enfim não pretendi fazer nenhum juízo de valor acerca da Internet, mas sim dedicar-me a vivenciar junto com as crianças esse acesso. Por isso acredito que me aproximei ainda mais do que Pereira aponta como necessário para pensarmos a experiência da infância, formulando uma crítica da cultura e compartilhando com elas pontos de imersão e coautoria de interpretações. Esses processos envolvem tanto a criação de uma relação social entre adultos-pesquisadores com as crianças, como também a construção de uma análise material dos objetos culturais que se colocam em meio a essa relação. Benjamin nos oferece preciosos conselhos para essa empreitada: buscar aproximar-se das crianças como quem percebe nelas traços de si mesmo, olhar para os objetos culturais que usam com o júbilo de que já se foi capaz, compreender que a sinceridade da pergunta é chave para a significação da resposta, aprender a detalhar e recriar com autoria, recomeçar todas as vezes que preciso for (2012, no prelo). Redigir sobre todo esse processo de pesquisa foi bastante complexo e ressaltou ainda mais a abordagem da metodologia de pesquisa. A medida que o campo foi se transformando percebi que a metodologia foi ganhando cada vez mais destaque. Por isso, é com os caminhos que percorri para a construção da metodologia que inicio esta dissertação, trazendo no capítulo 1, sob o título “A pesquisa no cotidiano: em busca de uma metodologia de pesquisa com crianças em um espaço da vida privada” o registro do processo vivido, apresentando os interlocutores da pesquisa, apresentando a minha visão de infância e dialogando com autores como Mikhail Bakhtin, Nilda Alves, Solange Jobim e Souza, Willian Corsaro, Manuel Sarmento, Angela Borba, Rita Ribes Pereira, entre outros. No capítulo 2, “Os usos da internet nas relações de pesquisa”, reflito, com a ajuda de Michel de Certeau, sobre as relações das crianças com os sites. Apresento também as 12 http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI128629-10587,00.html 18 discussões acerca da cibercultura, destacando os conceitos de Web 2.0, interatividade e leitor imersivo e aprofundo a apresentação dos interlocutores, trazendo alguns dados relevantes sobre a relação deles e de suas famílias com o computador. Neste capítulo, o debate sobre as questões da cibercultura se dá a partir dos autores: Edméa Santos, Marco Silva, Pierre Lévy, André Lemos e Lucia Santaella. No terceiro capítulo, “Investigando um site através das crianças” me proponho a analisar o site Club Penguin, site que marca meu ponto de encontro com as crianças, a partir das observações que fiz durante os momentos de acesso com elas. Para isso, escolhi itens que apareceram em campo, tais como “Jogar e consumir”, “Assinatura”, “Moedas” etc. Com o intuito de favorecer a compreensão do leitor acerca do assunto tratado, apresento imagens do site e reflito também sobre algumas questões referentes à cibercultura e que se fazem presentes no Club Penguin. Cabe ressaltar que a ideia inicial era abordar, de forma mais detalhada, os vários sites acessados pelas crianças e apresentados como seus “favoritos”, entretanto percebendo que precisaria dar um recorte maior à pesquisa e tendo a metodologia suplantado algumas outras questões, restringi a análise a este site específico, “favorito” para nós, por ter desencadeado o encontro que se transformou em pesquisa. O quarto capítulo, “As crianças, a pesquisadora, os sites: as relações vividas em campo”, apresenta algumas categorias de análise que surgiram durante o acesso aos sites pelas crianças. É neste capítulo que aprofundo as questões relativas ao meu papel durante a pesquisa. Para a reflexão sobre as categorias de análise dialogo com Willian Corsaro, Manuel Sarmento, Angela Borba etc. Por fim, no quinto e último capítulo, apresento as conclusões que sintetizo como “Vivendo e aprendendo a jogar. Jogando e aprendendo a pesquisar”, onde busco fazer um apanhado sobre as principais questões levantadas ao longo do processo e refletir, principalmente, sobre o papel do pesquisador em uma pesquisa feita com crianças em espaços particulares, tendo os jogos como articuladores desta relação: adulto pesquisador e crianças. 19 Capítulo 1 A PESQUISA NO COTIDIANO: EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA DE PESQUISA COM CRIANÇAS EM UM ESPAÇO DA VIDA PRIVADA Como encontrar o outro, como fazê-lo falar, como se fazer ouvir, como compreendê-lo, como traduzi-lo, como influenciá-lo ou como deixar-se influenciar por ele... Na maior parte dos casos, a resposta a essas perguntas aparece lá onde não se espera lá onde não há nenhum método. Marília Amorim Neste capítulo relato a procura por uma metodologia para investigar o cotidiano em espaços privados, através de um levantamento das concepções teóricas que construí como fundamentos em minha vida acadêmica relacionando-as com minha postura no campo de pesquisa. Apresento aqui também os sujeitos da pesquisa e o desenrolar de nossa aproximação, relatando o caminho trilhado, o processo vivido, pois acredito que olhar para este percurso possibilita olhar para o meu próprio trabalho como quem olha de fora, em um olhar exotópico, que busca ver de fora o outro e a si mesmo como outro (BAKHTIN, 2003), em um movimento de afastamento e aproximação de mim mesma, olhando-me pela ótica das crianças, refletindo sobre os diversos papéis que ocupei durante a trajetória: amiga, professora, pesquisadora, jogadora... 20 1.1 Conceitos que atravessam a pesquisa Caminhante não há caminho. Ao andar faz-se o caminho Antônio Machado A opção de pesquisar com crianças no cotidiano13, principalmente em espaços da vida privada, mostrou-se um terreno desconhecido para mim. O entendimento de que uma investigação se faz no processo, no caminho percorrido, me foi muito útil; entretanto fez-se presente o desafio de construir uma metodologia que considerasse o uso 14 cotidiano e espontâneo que as crianças fazem do computador e, mais especificamente, da Internet. Dentre esses desafios, ressalto o fato de realizar a pesquisa em espaços cotidianos particulares e não em espaços escolares. Defino o presente estudo como sendo no cotidiano, não só por ele ter acontecido em espaços particulares, mas por entender que a minha postura frente aos sujeitos, meus interlocutores, e as minhas indagações são próprias de uma pesquisa deste gênero, já que investiguei os artefatos culturais com os quais os praticantes desses cotidianos tecem essas relações (ALVES, 2003, p. 65). Embora estudar o cotidiano faça parte da minha trajetória, somente ao transcrever as anotações que fiz e conversações que gravei, percebi o quanto os conceitos que envolvem este tipo de pesquisa estavam enraizados em mim, possibilitando a criação de novos conhecimentos sobre o que é pesquisar, pois não pude ter métodos rijos, fixos, já “que como a vida, o cotidiano é um ‘objeto’ complexo, o que exige também métodos complexos para conhecê-lo” (ALVES, 2001, p 15). Tendo em vista essa complexidade, utilizei os aspectos descritos por Alves (2001, p. 15) como norteadores para a tentativa de compreendermos o cotidiano. Durante a pesquisa, que acredito não se iniciar ou finalizar no campo, procurei “mergulhar com todos os sentidos”, inferindo o cotidiano como espaçotempo15 de criação de conhecimento exigindo do pesquisador que sinta o mundo. Procurei me afastar da ideia de neutralidade e distanciamento 13 O conceito de pesquisa no cotidiano está sendo utilizado aqui com base nos estudos de autores da linha de pesquisa Cotidiano, redes educativas e processos culturais, principalmente nos estudos da Professora Doutora Nilda Alves que foi minha orientadora durante a graduação e durante o período de minha bolsa de Iniciação Científica (2004-2006). 14 A noção de ‘usos’ será discutida no capítulo seguinte, com o auxílio de Michel de Certeau, 1994. 15 Utilizo esta forma de escrita das palavras baseada nas discussões de autores como Nilda Alves que defendem esta junção como uma maneira de fugirmos da dicotomização herdada da ciência moderna (Alves, 2003, p.66). 21 outrora defendida nas Ciências Humanas como forma de garantir uma “cientificidade”, que se baseava na teoria de que “o olhar do homem sobre si mesmo deve ser frio, objetivo e calculista” (JOBIM e SOUZA, 1994, p. 31), teoricamente, possibilitando assim a coleta de dados sem a interferência do observador. Este mergulho com todos os sentidos impossibilita o distanciamento do pesquisador e consequentemente suas crenças e valores interferem em seu modo de se relacionar com a pesquisa, não permitindo a ele o álibi da neutralidade. Este mergulho exige ainda daquele que esteja atento a tudo o que acontece na vida cotidiana, em seus diferentes espaçostempos. Outro movimento defendido por Alves (2003) é o de “virar de ponta cabeça”, pois é preciso utilizar várias teorias, ter a prática como critério referencial e tentar desvincular-se das marcas que trazemos (principalmente as que remetem às dicotomias da Ciência Moderna), para que possamos apreender a complexidade do cotidiano. É obrigatório ainda que se “beba em muitas fontes”, aceitando-as como lugares para produção do conhecimento. Sendo assim, cabe ao pesquisador notar as nuances do cotidiano, olhando para o que sempre foi visto como repetição, como banal, com outra visada, para tentar capturar a variedade do cotidiano. “Pela existência dessa variedade, sou obrigada a pensar diferentes formas para captá-la e registrála, bem como preciso tratar de maneira diferente os dados que [...] for capturando” (ALVES, 2001, p. 28). Abordar um assunto que se originou em âmbito familiar não poderia ser feito senão em um espaço particular e com o olhar para o cotidiano, mergulhando no mundo dos jogos e da relação com o computador de forma semelhante àquela em que observei meus primos submersos em suas atividades, conforme relatado na introdução desta dissertação. Por isso, acredito que o envolvimento com os sujeitos da pesquisa “nos leva a falar em mergulho e não em observação por que sabemos que a vida cotidiana desses praticantes não se reduz àquilo que é observável e organizável formalmente” (ALVES, OLIVEIRA, 2001, p.6). A observação de crianças durante seus usos espontâneos do computador exigiu a busca de um grupo de interlocutores infantis cuja rotina permitisse minha presença, por esta razão elegi como campo de estudos a Vila onde resido e como interlocutores um grupo de crianças vizinhas com quem constituí amizade. Esta amizade permitiu colocar o meu tema em debate como parte de nossa vida cotidiana: “o que de fato interessa nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos são as pessoas, os praticantes, como as chama Certeau (1994) porque as vê em atos, o tempo todo” (ALVES, 2003, p. 6). Para mergulhar com todos os sentidos, precisei exercer a alteridade, estranhando o cotidiano ao mesmo tempo em que reconheço pertencer a ele. É na relação com o outro que 22 acontece a investigação, em uma “compreensão respondente, ou seja, uma tensão permanente entre eu e o outro na qual o pesquisador e seus interlocutores se implicam e se afetam incessantemente” (PEREIRA et al, 2009, p. 1022). Vale demarcar que a alteridade pode acontecer onde não vemos, onde não queremos ver e principalmente onde acontece o desconhecido e imprevisível. Uma relação será alteritária também quando houver uma diferença de lugar na construção do saber entre observador e sujeitos. Para construir essa relação, tentando ao máximo me conscientizar dela em suas várias nuances, procurei realizar uma pesquisa com crianças, entendendo a infância como um momento de múltiplas possibilidades, estabelecendo um relacionamento alteritário com elas, onde há a possibilidade de entendê-las como “um legítimo outro” (MATURANA, 1998, p. 22). Acredito que uma pesquisa com a criança é feita quando o adulto não a vê como um “objeto a ser conhecido”, mas como “um sujeito que dispõe de um saber que deve ser reconhecido e legitimado”. (JOBIM E SOUZA, CASTRO, 1997, p. 83). Desta forma, cabe ao pesquisador adotar a postura de quem desencadeia “o processo de pesquisa junto com as crianças, atuando como parceiro na produção de significados no processo em que adulto e criança se propõem a construir sentidos para a experiência de um, de outro, ou de ambos” (CASTRO, 2008, p. 27). Ao pesquisar com crianças, o fiz a partir da visão de que elas são “participantes, atores sociais, com suas próprias experiências e interpretações do mundo” (BORBA, 2005, p. 82). Esta visão nos leva ao entendimento de que as crianças, enquanto atores sociais são produtoras de cultura, compreendendo cultura como um conceito semiótico, ou seja, formada por fenômenos de produção de sentidos e significações, “uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 2008, p. 4). É pelo contexto da cultura que posso descrever com densidade os acontecimentos sociais (GEERTZ, 2008, p.10). Esta forma de abordagem me aproxima dos estudos de caráter etnográfico nos moldes como ele vem sendo pensado no campo da sociologia da infância. Concordo com Sarmento (2008, p. 24) quando ele afirma que “os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da infância”, pois eles propiciam a escuta das diversas vozes e uma participação mais direta das crianças. Ainda sobre a etnografia, peço ajuda à Corsaro (2005, p. 446) quando ele diz que esta “exige que o pesquisador entre e seja aceito na vida daqueles que estuda e dela participe”. A etnografia, segundo Geertz (2008, p. 7) é uma descrição densa, que vai interpretar o fluxo do discurso social, pois 23 o etnógrafo enfrenta de fato uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. A etnografia parece um bom alicerce para as minhas indagações, afinal criei uma relação com os interlocutores que me permitiu entrar um pouco no jogo de cultura de pares deles. Utilizo este conceito, baseando-me em Corsaro (2011, p. 128) quando este assim o define: “[...] como um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e compartilham em interação com as demais”. O interesse no uso que as crianças fazem do computador justifica-se pelo fato de que com este artefato tive acesso à produção cultural delas, facilitando o entendimento de suas culturas de pares, acredito que “todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades” (BAKHTIN, 1986, p.32). Compreender a infância como uma categoria geracional que se modifica de acordo com as transformações da sociedade me aproxima de diversos teóricos e de alguns modos de perceber a infância. Desta forma, é importante trazer algumas concepções sobre crianças e infâncias com as quais procurei dialogar durante o processo de elaboração da pesquisa. A Sociologia da Infância considera que as crianças são atores sociais e que há uma categoria social, a infância, propondo que estes dois conceitos sejam analisados em separado, já que a infância vai existir enquanto categoria social independente dos sujeitos que dela fazem parte. E sugere considerarmos “a infância como categoria social do tipo geracional, socialmente construída e dependente da categoria geracional constituída pelos adultos” (SARMENTO, 2008, p. 22). De acordo com a Sociologia da Infância, essa dependência gerou uma relação legitimada e reconhecida em que os adultos têm o poder de controle sobre as crianças. A infância pode ser considerada homogênea, já que os adultos e até as crianças a entendem como uma experiência específica da vida, e deve ser entendida como heterogênea já que dentro dessa fase existem vários tipos de infância que serão determinadas pelo contexto e por outras categorias sociais (classes sociais, gênero, etnia etc.), como nos traz Sarmento (2008, p. 23), “a condição social da infância é simultaneamente homogênea, enquanto categoria social, por relação com as outras categorias geracionais, e heterogênea, por ser cruzada pelas outras categorias sociais”. 24 Uma análise sociológica da infância, segundo Sarmento, citando Prout e James (1990) e Qvortrup (2001) (2008, pp. 23-24) considera como paradigmas, dentre outros, entender a infância como uma construção social, [...] sendo distinta da imaturidade biológica, não é uma forma natural nem universal de grupos humanos, mas aparece como uma componente estrutural e específica de muitas sociedades; a infância não é uma fase transitiva, mas uma categoria social permanente [...] e uma [...] análise comparativa e multicultural revela uma variedade de infâncias, mais do que um fenômeno singular e universal. Falar em conceitos de infância pressupõe compreender que os adultos tendem a construir concepções culturais para as crianças de forma a ajudá-los a entendê-las melhor e também como uma forma de preservação de sua própria infância. A infância como categoria pode ser entendida de duas formas: um discurso sobre ela, que é produzido por adultos e dirigido para adultos, e outro discurso sobre ela, também produzido pelos adultos, mas voltado para as crianças (BUCKINGHAM, 2007). Quando determinamos o papel da infância e das crianças, facilitamos nosso entendimento sobre elas e passamos a encarar a nossa própria infância de outra forma. Entretanto não podemos esquecer que “a maior parte das crianças do mundo de hoje não vive de acordo com a ‘nossa’ concepção de infância e [...] que nenhuma descrição de crianças – e consequentemente nenhuma invocação da ideia de infância – pode ser neutra” (BUCKINGAM, 2007, p. 25). Esta necessidade que nós, adultos, temos em definir o que é a infância e quem são as crianças que vivem esta infância se origina da nossa vontade em definir o que é a infância, no que pensamos que sabemos sobre esse momento da vida, afinal nós já passamos pela infância e isso pode nos fazer crer que sabemos tudo sobre ela. Por isso, podemos querer que ela caiba em um modelo de infância semelhante ao vivido por nós – ou que queremos acreditar que foi – e, por isso, muitas vezes criticamos a infância contemporânea. Muitos dizem que a infância está perdida, que antigamente era muito melhor ser criança, que as crianças não vivem mais a infância, que estão adultizadas. Esta visão romantizada sobre a perda de uma suposta inocência da infância e, consequentemente, o esvaziamento do que é ser criança, é muito bem retratada no artigo de Garcia chamado “Todas são crianças... mas são tão diferentes” (2002, pp. 9-29) em que ela desconstrói esta visão romantizada: [...] vivemos num momento histórico e numa sociedade em que a infância vem sendo mais e mais encurtada, seja pela mídia, seja pela miséria e pela 25 contravenção. Meninas de menos de 10 anos se vestem, se pintam, se calçam, se portam como mulheres adultas e sedutoras. Estas meninas adultizadas e glamourizadas, às vezes, se distraem e retornam à sua condição de crianças, pondo-se a brincar com bonecas e bichinhos de pelúcia, a pular, a correr, a fazer artes que todas as crianças vivem fazendo (2002, p.9). Para além desta visão de um ideal de infância, temos que buscar inferir a infância contemporânea, infância que parece ser tão diferente da vivida por nós, infância que abarca muitas crianças que vivem em diferentes condições, mas que continuam sendo crianças e vivendo a infância. Estamos vivendo um “processo de reinstitucionalização da infância”, ou seja, as crianças hoje ocupam outro lugar social (SARMENTO, on-line [2012]). Talvez possa sintetizar a pesquisa que fiz como qualitativa de cunho etnográfico, realizando uma observação participativa, de forma a produzir uma descrição densa de tudo o que vivi durante o processo, considerando os conceitos da Sociologia da Infância como balizadores da minha postura com as crianças. Esta postura adotada foi possível graças à compreensão de que as crianças devem ser vistas como sujeitos e que devem participar do processo de forma ativa, assim como participam ativamente da sociedade, e requer ainda perceber que seus conhecimentos, sentimentos e valores devem ser respeitados durante o percurso. Também o tema de pesquisa convidava a buscar caminhos diferentes que me colocassem o mais próximo possível dos usos que as crianças faziam espontaneamente da Internet e dos sites. Nesta reflexão sobre os caminhos percorridos e sobre os autores com quem dialogo, recorro a Bakhtin (2010), pois a partir da leitura deste autor compreendi que precisava assinar a minha dissertação, pois é esta assinatura que me obriga em relação ao conteúdo. Ou seja, refletir sobre a vivência que tive, traduzindo-a em palavras, em conteúdo, requer que eu reconheça a minha responsabilidade sobre o que escrevo. A ida a campo já tem a assinatura e, portanto, é um ato responsável. O ato é o que não me deixa não pensar sobre as questões que surgem e que me movem, sobre as dificuldades, as dúvidas, as crianças, as famílias e sobre o meu lugar neste percurso. É o reconhecimento deste ato responsável que me faz intentar ser ética. Esta ética está na minha implicação, enquanto pesquisadora, com a pesquisa e com os pesquisados. 26 1.2 A aproximação com as crianças: a história de uma amizade Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos. Miguel Unamuno Em setembro de 2009 mudei-me para uma Vila Residencial na cidade do Rio de Janeiro, na qual moram muitas crianças. No dia em que eu me mudei, enquanto ajudava a descarregar a mudança e andava de um lado para outro, um menino de uns 4 anos na época, virou-se para mim e perguntou: - “Você não tem um filho pra brincar com a gente?” Achei aquela pergunta maravilhosa e trago esta passagem para exemplificar a espontaneidade de muitas destas crianças que estão sempre dispostas a travar diálogos com os adultos e entre si. Percebo na pergunta a clara intenção de aproximação, já que de acordo com Bakhtin (1986) é através da palavra que podemos ter o “modo mais puro e sensível de relação social” (1986, p. 36). Ainda segundo o autor, “o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra” (BAKHTIN, 1986, p.37), ou seja, “a palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN, 1986, p. 38). Assim, por meio de várias conversas em minha porta ou em encontros casuais na Vila, eu pude conhecer mais as crianças vizinhas e aos poucos fomos estabelecendo uma relação de amizade. Alguns fatores colaboraram para que esta relação de amizade se concretizasse, tais como minha disponibilidade para escutar, conversar e “curtir” o que as crianças propunham, o fato de aceitar brincar com elas, que costumavam (e ainda costumam) me chamar para brincar de pique-esconde, pique-pega etc., principalmente aos finais de semana. Outro ponto que destaco como importante na criação desta amizade é o fato de eu não me incomodar com as brincadeiras que acontecem na varanda da minha casa, até sugerindo algumas e por vezes oferecendo objetos para que se distraiam: bolas de encher, papel e lápis etc. A possibilidade de as crianças brincarem na minha varanda ganha destaque, pois muitas casas têm as varandas fechadas por grades ou tem muitos vasos de plantas na frente, ou simplesmente os moradores não gostam que os meninos e meninas fiquem brincando em suas portas durante o final de semana. Além disto, tinha uma cadela que não os amedrontava e que 27 serviu como mais um elo entre nós: muitas vezes elas batiam à minha porta para chamar a Dorothy para brincar. Creio que a minha relação com elas se aproxime do que nos traz Fabiana de Amorim Marcello (2009), quando analisa relações entre adultos e crianças que se estabelecem para além da obviedade esperada em uma relação como esta, e que podem ser consideradas como de outra ordem: de amizade. Nosso relacionamento pode ser explicado “em torno da possibilidade de a criança fazer-se potente e de potencializar outrem”, tentando compreender a “amizade como exercício de autotransformação, como busca e criação de si mesmo – enfim, práticas que não se fazem na solidão”. (MARCELLO, 2009, p. 2). Essa amizade e participação na cultura de pares deles proporcionou aproximar-me do objeto de pesquisa, transformando o espaço cotidiano no próprio campo. Nossa amizade ajudou a consolidar o caráter etnográfico da minha pesquisa, já que a interação e a proximidade com os sujeitos é um dos requisitos nestas investigações. O papel do etnógrafo vem sendo bastante debatido nestas investigações e, por um lado há concordâncias no entendimento de que o adulto não pode exercer o papel autoritário e nem destacar-se enquanto observa; por outro, há divergências no que diz respeito à forma de participação e envolvimento do adulto no grupo de crianças. (BORBA, 2005) Em sua tese de doutoramento, Borba (2005) traz alguns conceitos que ajudam a caracterizar a postura do adulto em uma investigação etnográfica com crianças. O adulto mínimo (MANDELL, 2003 apud BORBA, 2005, p. 95), onde o pesquisador deve ter um envolvimento total com as crianças, tornando-se membro desse grupo de pares, sendo a única diferença entre eles o tamanho do pesquisador. Essa postura é criticada por Borba: A estratégia de total envolvimento, se por um lado promove a proximidade do pesquisador com o grupo, corre o risco, a meu ver, de dificultar o distanciamento necessário que o investigador deve ter para apreender as práticas sociais produzidas pelas crianças. Impede também que o pesquisador assuma a postura de quem deseja conhecer o que a criança pensa aprendendo com elas, o que só é possível se ele não se colocar no lugar da criança, mas de alguém que, em certa medida, é estrangeiro frente às formas próprias infantis de pensar e de agir. Penso ainda que é artificial para o adulto adotar a postura de crianças, impedindo a construção de uma relação aberta e de confiança mútua e podendo até provocar o efeito oposto ao desejado, ou seja, a não aceitação do pesquisador pelo grupo. Refletir sobre as diferenças – quando e porque ocorrem e que efeitos trazem para as relações de investigação – talvez traga mais informações e possibilidades do que tentar nos tribalizar (2005, p.97 – grifo da autora). 28 Essa citação é compartilhada por Fine e Sanstrom (1988, apud BORBA, 2005, p. 97) que defendem que o adulto pode ser amigo das crianças, desenvolvendo uma relação de confiança e intimidade sem negar a autoridade e a idade que limitam a relação entre eles. A intenção não é ser igual às crianças, mas sim ser um companheiro que não interfere e não ameaça o grupo. Ainda segundo os autores, para conquistar a amizade o adulto deverá: expressar seu afeto positivo na relação, sem demonstrar autoridade ou interferir em seus comportamentos; respeitar as crianças e mostrar a elas o interesse em conhecer sua cultura e, por fim, cabe ao adulto construir e cultivar essa relação ao longo do processo. Corsaro (2005), por sua vez, traz o conceito de observador periférico em que o adulto deve se aproximar das crianças sem apresentar-se, mantendo-se ao mesmo nível de altura delas e transitando em seus espaços de brincadeira sem chamar a atenção para si até que as crianças venham falar com ele, interagindo com elas a partir deste momento e procurando construir uma relação de amizade. Desta forma, Corsaro defende que o pesquisador se transforma em um “adulto atípico”. Após trazer essas duas diferentes abordagens em relação ao papel do adulto na pesquisa, Borba (2005, p. 99) relata como ela própria tentou construir a sua relação com seus interlocutores, ressaltando que pretendia tornar-se amiga das crianças, demonstrando a elas que era uma adulta diferente e que não pretendia exercer o papel de autoridade comum aos adultos da escola, pretensão que mostrou-se, segundo a autora, quase impossível, já que as crianças a solicitavam com o intuito de buscar a sua (dela) autoridade: Minha relação com as crianças foi sendo construída aos poucos, através de conversas informais, de brincar com, de sentar-me com elas no chão, correr gritar, trocar abraços e sorrisos, olhar com naturalidade as transgressões como parte das brincadeiras e de colocar-me sempre disponível para dialogar e colaborar com elas. Ao mesmo tempo, procurei desde o início demarcar o meu papel de um adulto diferente e, quando as crianças confundiam (ou testavam?) a minha posição com a de professora, eu explicava-lhes que não tinha autoridade para resolver disputas ou brigas, e que elas deviam recorrer à professora. No início elas pareceram um pouco espantadas com isso, mas, aos poucos, foram se habituando a me solicitar cada vez menos nesse tipo de situações. O percurso de Ângela Borba guarda proximidades com o que pretendi em minha pesquisa. Conforme já relatado, também procurei constituir um vínculo de amizade com os meus interlocutores; entretanto, não almejei despir-me do meu papel de autoridade, por muitos motivos: nossa relação começou antes de eu elegê-los como interlocutores e as 29 brincadeiras na minha varanda, quando geravam conflitos ou machucados, faziam com que eu prontamente interferisse na relação deles. Manter essa autoridade foi possível por entender que a pesquisa acontece na vida e que o meu agir nela somente será possível no contexto em que vivo, ou seja, não posso tentar “descobrir o todo pelas partes” (BAKHTIN, mimeo, p. 4). É preciso ter claro que o pesquisador, ainda mais em meu caso, faz parte do contexto, ou pelo menos, é inserido em um contexto e por isso pode tentar perceber o mundo na perspectiva do outro, mas sem jamais perder de vista que nunca ocupará o lugar do outro. Desta forma, ao não querer ser uma criança entre os interlocutores, assumindo o meu lugar de adulta e de autoridade, compreendo que consegui perceber que a minha posição naquela relação fazia parte do contexto da pesquisa e que não serviria de nada tentar “mascará-la”. Sendo assim, me aproximo do que nos traz Amorim, ao discorrer sobre a postura ética do pesquisador que carrega consigo na pesquisa a sua posição em relação ao grupo, fazendo com que seus pensamentos e atos sejam únicos. O dever de pensar e a impossibilidade de não pensar são dados pela posição que ocupo em um dado contexto da vida real e concreta. Desse lugar, que somente eu ocupo, o que vejo e o que penso são da minha responsabilidade. Ninguém mais pode pensar aquilo que penso. Ninguém mais pode prestar contas da minha posição e realizá-la, por isso não existe nenhum álibi para que eu não pense e não assuma o que penso. (AMORIM, on-line, p. 23 [2012]). Sendo educadora e tendo um carinho especial por crianças em geral, gostando de relacionar-me com elas, tornava-se impossível não apartar brigas ou consolar choros; a pesquisa, conforme descreverei ainda neste capítulo, aconteceu na minha casa e isso coloca de antemão uma pergunta: como não ser autoridade em sua própria casa? As crianças demonstraram, na maioria das vezes, terem incorporada a regra social do bom comportamento na casa de outras pessoas, e isso provavelmente foi reforçado por seus pais sempre que elas vinham à minha. Será que se a pesquisa fosse realizada na residência das crianças eu poderia lutar contra esse papel de autoridade que carrego por ser adulta e professora (ao estreitarmos nossos laços eles souberam que eu era professora de crianças), recorrendo à autoridade dos seus pais para a resolução de conflitos? Ressalto que entendo a autoridade como um lugar que não é pré-determinado ou fixo, mas que é construído na relação e é alterado pelas circunstâncias. Em muitos momentos vivenciamos essa questão da autoridade, e listarei vários deles ainda neste capítulo e em outros momentos desta dissertação, onde transcreverei outros que ocorreram durante o campo. 30 1.3 Lapidando o campo de pesquisa Descobrir consiste em olhar para o que todo mundo está vendo e pensar uma coisa diferente. Roger Von Oech Tendo esta relação de amizade sido estabelecida, a interação com as crianças era constante. Em outubro de 2010, enquanto as crianças brincavam na Vila e eu passeava com a Dorothy (minha cadela), percebi que elas conversavam sobre o site Club Penguin16 e, por se tratar do meu tema de interesse, resolvi participar da conversa, dizendo que o conhecia. Lucas17 (um dos meninos que mora na Vila) perguntou se eu tinha Club Penguin e, quando eu respondi afirmativamente18, todos acharam “o máximo”. A seguir transcrevo as anotações sobre esse encontro. Lucas: Você tem Club Penguin? Joana: Sim. Lucas: A gente (ele e o Samuel, que também é meu vizinho) vai jogar agora. Qual é o seu pinguim? Joana: Temos que combinar um lugar para a gente se encontrar, porque senão não dá para adicionar como amigo.19 Lucas: Me encontra na loja dos Pufles20. Joana: Tá bom. Qual é o nome do seu pinguim? Lucas: Trói21. 16 Este site (http://www.clubpenguin.com/pt/) foi desenvolvido pela Disney e tem por objetivo ser um local de encontro de crianças que usam um pinguim como avatar (nome usado para os personagens criados à semelhança do usuário de jogos on-line). Ao se cadastrar, a criança ganha um iglu e cria o seu pinguim. Entrando no servidor (este é o nome dado pelo site para os locais que as crianças podem entrar e interagir com outras crianças, como se fossem salas de bate-papo, chats. Algumas opções de servidores são: boreal, zero grau, avalanche) ela terá várias opções de brincadeiras e interações com outras crianças. No terceiro capítulo aprofundarei as discussões e descrições sobre esse site. 17 Os nomes das crianças foram alterados. A justificativa desta escolha será apresentada mais a frente. 18 Eu havia criado o meu pinguim em 2009 a fim de elaborar o projeto para a seleção do mestrado. 19 Atualmente já é possível adicionar um pinguim como amigo, desde que saiba qual é o nome dele, mesmo que esteja off-line. Caberá ao pinguim adicionado aceitar a amizade. 20 Pufles são os “animais de estimação” dos pinguins. Eles não têm uma forma definida, parecendo mais uma bola de pelos. 21 Nome fictício. Dada a possibilidade de adicionar um pinguim, compreendo ser mais prudente e ético preservar a identidade do pinguim do Antônio, preservando também a sua identidade e privacidade. 31 Entrei no servidor e fiquei esperando na loja de Pufles. Como ele não chegava ao local combinado eu fui à residência dele (física e não o iglu do pinguim) e chamei por ele embaixo da janela para saber se ele tinha entrado no jogo online. Ele disse que ainda não havia entrado pois ele e o Samuel, seu amigo, estavam revezando o uso do computador, que seria de cinco minutos para cada um jogar. Samuel não quis me dizer qual era nome do pinguim dele e nem se mostrou interessado em jogar comigo. Passou mais um tempo e nada, então fui lá novamente. Eu disse para ele que o nome do meu pinguim era Nanamestra e que era cor de rosa. Ele respondeu que, Trói, seu pinguim, era preto e tinha faixa preta22. Quando me afastei um pouco o escutei brigando com o amigo, pois já tinha passado muito tempo e era chegada a vez dele. Logo depois, ele entrou no local combinado e eu o adicionei como amigo. Jogamos: esqui, surfe e pizzaria, jogos disponibilizados para os usuários desse site. Ele usou seu irmão mais novo para ser o porta-voz: era o Vinícius quem me chamava, da janela, me dizia aonde deveríamos nos encontrar virtualmente e gritava “já” quando ele já estava no local combinado. Na hora do jogo do esqui, por exemplo, que é uma competição entre três pinguins, ele ficou todo feliz que havia ganhado de mim e ficou gritando da janela: eu ganhei da Joana, eu ganhei da Joana! Outra situação interessante foi quando ele foi ao iglu23 buscar seu Pufle (os pufles podem ser levados para passear) e eu resolvi ir a “casa” (virtual) dele, opção disponível para todos os amigos pinguins. Nesta hora as crianças começaram a gritar da janela: a Joana quer roubar o meu iglu, ela invadiu a minha casa! Provavelmente eles falavam isso para implicar comigo ou, talvez, eles não soubessem que é possível visitarmos os iglus dos amigos. Neste mesmo dia, ainda jogamos na minha casa, uma vez que eles queriam jogar com o meu pinguim para ajudá-lo a conquistar novas faixas e ganhar mais moedas. Esta movimentação na vila acabou atraindo a atenção de uma vizinha que 22 A faixa preta é conquistada após jogar e ganhar muitas vezes, por isso, muitos pinguins que conquistaram esta faixa fazem questão de mostrar. 23 Cada pinguim tem um iglu próprio que pode ser decorado (é preciso ter muitas moedas e muitos objetos decorativos são liberados apenas para os jogadores que são sócios, ou seja, que pagam uma mensalidade). É no iglu que ficam os pufles que não são levados para passear. 32 falou que a sua filha (Camila) também gostava de jogar on-line. A menina me contou que gosta de jogar no Discovery Kids24 e no Papa jogos25. O curioso foi que, por ele ser meu vizinho e eu ter ido à janela dele para descobrir onde ele estava no jogo, acabamos estabelecendo uma relação on-line/off-line, em que ele ficava gritando da janela dele para me chamar e para a gente se encontrar virtualmente em determinados lugares, criando novos usos26 (CERTEAU, 1994) para o site que extrapolam os imaginados por seus idealizadores. Esta questão será aprofundada no capítulo seguinte. Após estes acontecimentos, compreendi que as crianças moradoras da Vila poderiam se tornar meus interlocutores e decidi que deveria explorar esta possibilidade. Tudo isso mostra que um campo não está dado, não pode ser pré-definido, que não é simplesmente a escolha de um lugar, afinal até o momento desta minha conversa com as crianças eu ainda não pensava em observá-las na condição de pesquisadora. Acredito que a investigação se dá para além da escolha do lugar onde faremos o trabalho de campo. É necessário estabelecer uma relação com ele e é a partir desta que o trabalho acontece. É claro que a busca pelos interlocutores tem um objetivo: esquadrinhar respostas à questão que orienta a indagação; em vista disso, essa procura não pode ser feita a esmo, é preciso saber se aquele campo poderá vir a ser fértil. Isso pode ser exemplificado neste processo de percepção de que naquele grupo poderiam estar meus interlocutores e de que a minha pesquisa seria feita no cotidiano, mais especificamente em um espaço particular, percepção esta só possível porque as próprias crianças me mostraram que faziam parte do universo que eu almejava: afinal elas jogavam on-line, atividade que é parte da minha questão. A opção de observá-las em espaços cotidianos não institucionalizados surgiu, portanto, da minha convivência com essas crianças que moram na Vila, espaço específico e gerador de muitos encontros entre meninos e meninas que normalmente ficam brincando por horas a fio durante os finais de semana, feriados e fins de noites e, tendo tomado a decisão de concretizar a pesquisa neste espaço e com este grupo, procurei me aproximar mais, estreitando a nossa relação. Inicialmente eu não consegui perceber que aquele primeiro encontro em que joguei Club Penguin com os meninos poderia ser considerado parte do meu trabalho, pois achava que uma investigação deveria estar pautada em encontros organizados e estruturados de 24 http://discoverykidsbrasil.uol.com.br/ http://www.papajogos.com.br/ 26 O conceito de usos será aprofundado no capítulo seguinte. 25 33 antemão pelo pesquisador; aos poucos fui notando que meu campo ganhava forma e que por isso, eu precisava instituí-lo, ou seja, apresentar para as crianças e seus responsáveis minha intenção e solicitar sua possível concordância de participação. Já tinha com elas vínculo como “vizinha” e “jogadora”, precisava agora instaurar uma relação de pesquisa e, para isto, uma série de decisões teriam que ser tomadas. Ao pensar nestas, várias questões surgiram: os encontros seriam na minha casa ou na deles? Será que conseguiria fazê-los individualmente sabendo que estão, em todos seus momentos livres, brincando juntos na Vila? Se fizéssemos encontros na casa deles, será que a presença de familiares interferiria na escolha dos sites a serem acessados? Enfim, muitas questões foram se apresentando e, com isso, o grupo de “amigos vizinhos” foi se transformando num grupo de interlocutores de pesquisa. 1.4 – Delimitando o campo de pesquisa As crianças são as melhores fontes para a compreensão da infância. Willian Corsaro Partindo do que já foi discorrido sobre um modo de perceber a infância e a pesquisa, considero que pesquisar com crianças, implica em reconhecê-las como interlocutoras e sujeitos ativos na elaboração de suas culturas e participantes fundamentais da investigação. Isto conduziria a utilizar os nomes verdadeiros das crianças nesta dissertação, uma vez que os encontros não apontaram situações que levassem a ocultá-las. Porém, uma dúvida se fez presente: ao utilizar seus nomes verdadeiros poderia estar expondo as crianças já que a pesquisa foi realizada em seu local de residência? Optei por usar nomes fictícios como forma de relativizar esse universo tão comum a eles e a mim. Outro fator que me fez optar por utilizar nomes fictícios, apesar de ter obtido a autorização delas e dos pais para usar seus nomes ou apelidos, é que a investigação foi realizada em contexto muito próximo ao da intimidade e as crianças abordaram muitos aspectos de sua vida cotidiana, o que poderia expô-las face a suas famílias. Mas, não poderia definir nome algum sem a participação deles; se assim o fizesse, estaria negando a elas o prazer de se reconhecerem na pesquisa. Portanto, após explicar-lhes 34 essa justificativa, perguntei quais nomes cada uma delas gostaria que fosse adotado, e 3 delas, Lucas e as duas meninas, optaram pelos nomes de seus melhores amigos da escola, ideia sugerida por Lucas. Os dois outros meninos escolheram o nome de personagens de desenho animado. Ao apresentar uma parte do campo para a minha orientadora ela alertou-me que a utilização dos nomes de personagens “quebrava” a fluidez da leitura, remetendo o leitor ao personagem. Desta forma surgiu uma nova questão: Como explicar aos dois meninos que escolheram nomes de personagens a necessidade de trocar novamente o nome e quais opções sugerir? Então expliquei que não tinha ficado muito legal termos dois nomes de personagens e que a minha professora não tinha gostado muito. Lembrei a eles que as outras crianças haviam escolhido o nome dos melhores amigos e perguntei se gostavam da ideia. Na mesma hora eles aceitaram e, demonstrando bastante alegria, falaram os nomes de seus melhores amigos da escola. Ficamos todos satisfeitos com a solução, encontrada por Lucas, vale lembrar, e em uma pesquisa onde a amizade esteve tão presente, nada melhor e mais adequado que os nomes dos melhores amigos para que as crianças se reconheçam no texto. De um grupo de 6 crianças que moram na Vila e 3 crianças que vêm aos finais de semana visitar as avós, o grupo de interlocutores foi constituído por 5 crianças moradoras da Vila com as quais tenho uma relação bem próxima. São elas: os meninos Samuel, Lucas (ambos com 827 anos) e Vinícius (com 5 anos) e, duas meninas, Camila (5 anos) e Luiza (11 anos), que participou esporadicamente. Com exceção do menino Vinícius, todos já estavam alfabetizados28. Dentre estes, Lucas, Vinícius e Luiza são irmãos. Com a concordância dos pais, convidei as cinco crianças para uma primeira conversa em minha casa. A roda de conversa aconteceu com pipoca e suco e tinha por finalidade explicar a pesquisa e fazer algumas perguntas-chave, e nesta conversa, obtive a autorização deles para utilizar o que a gente conversasse tanto neste quanto nos futuros encontros. Vale destacar que, sendo o tema da pesquisa um tema relativamente novo no contexto de pesquisa com crianças, a metodologia a ser construída era também um desafio. Embora nossa vida cotidiana permita encontros não planejados com o grupo e que destes possa surgir material importante, optei por planejar uma sequência de encontros com objetivos mais direcionados ao tema, e a expectativa era organizar de 3 a 5 encontros individuais com as crianças. A princípio queria fazer 01 encontro por semana com cada criança, mas como os encontros eram marcados de acordo com as possibilidades delas e muitos aconteceram ao acaso, o tempo entre um e outro não seguiu um cronograma. Contando 27 28 Idades referentes à época em que os encontros foram realizados (janeiro/2011). Camila ainda não frequenta a escola, mas aprendeu a ler e escrever com a mãe e a avó. 35 todos, tivemos um total de 13 que são divididos da seguinte maneira: 1 que foi o da conversa inicial; 4 apenas com a Camila; 1 reunindo Lucas, Vinícius e Luíza; 1 com o Lucas e o Samuel; 4 reunindo Lucas, Samuel e Vinícius e 1 com o Vinícius sozinho. Os encontros aconteceram entre os meses de outubro de 2010 e fevereiro de 2011, sendo o maior número deles durante as férias escolares, situação que permitiu ter uma maior participação dos meninos e meninas da Vila. Todos os encontros foram filmados visando à gravação de áudio e à uma melhor apreensão das expressões corporais delas enquanto navegavam. Além da filmagem mantive um diário de campo para anotar os comentários feitos nos encontros casuais e mesmo nos planejados em que surgiram conversas sobre sites, e também para anotar detalhes sobre os mesmos. Apesar de eu considerar que seria imprescindível fazer encontros individuais - fiquei preocupada quando observei que os meninos quase nunca vinham sozinhos - a interação entre eles enquanto jogavam trouxe uma riqueza ainda maior ao meu trabalho. Compreendi que esta interação foi possibilitada principalmente pela relação de amizade entre eles, anterior à minha chegada, e que, longe de atrapalhar, enriqueceu a pesquisa. Nesse percurso, foi possível constatar que [...] a amizade concentra um mundo de possibilidades: no jogo com o amigo, torna-se possível para o indivíduo um movimento de autotransformação, jamais previsto de antemão, jamais entendido como resultado ou como objetivo último, e sim como espaço de afirmação e, sobretudo, de criação. (MARCELLO, 2009, pp. 2 -3) Com estas informações tento demonstrar que a especificidade do campo fez com que eu fosse levada por ele: ao invés de querer que as coisas fossem como eu havia planejado, tive que ceder aos acontecimentos. Esta postura pode ser por mim adotada, principalmente, em função da relação de amizade que se estabeleceu entre nós. Enquanto elas se apresentavam a mim como usuárias da Internet, eu me apresentava a elas como pesquisadora. Com certeza, ao final do processo, sabíamos muito mais uns sobre os outros. Fabiana Marcello (2009), discorrendo sobre os pensamentos de Foucault acerca da amizade, me leva a interpretar que o desprender-me de mim mesma solidificou a minha colocação frente aos interlocutores: É o fato de estar ligada a um “desprender-se de si mesmo” que permite à amizade formas de criação e não de previsão ou de antecipação do que ainda está por vir. Em relação ao trabalho do intelectual hoje, Foucault nos mostra o que seria esse “desprender-se de si mesmo”: diferente de desenvolver um 36 campo de conhecimento factível ou de proceder em direção a uma recusa de si, desprender-se de si mesmo significa deixar-se levar por aquilo que não é auspiciado ou esperado (p. 3). Desprendendo-me de mim, percebia que uma metodologia se construía. A relação de intimidade que nossa amizade criou conduzia a um caminho que permitia observar os usos espontâneos que as crianças faziam do computador. Ao longo do caminho, também o “jogar junto” foi se oferecendo como uma metodologia que permitia fazer indagações “por dentro” do próprio tema, isto é, fazendo do uso da tecnologia um ambiente de pesquisa. Cabe ressaltar que apesar de ter planejado encontros com propósitos específicos, eles não seguiram a lógica do pesquisador, ou seja, a minha lógica. Quando falo em minha lógica, estou dizendo que no momento anterior ao início da investigação eu já possuía uma concepção do que deveria ser uma pesquisa. Esta concepção englobava encontros agendados, com temáticas pré-definidas por mim, com um início, um meio e um fim também por mim determinados. Ou seja, uma concepção de estar com as crianças para descobrir algo com elas, sabendo que eu poderia descobrir outras coisas diferentes das que me propus, mas com uma estrutura, uma forma específica de estar com elas. Esta estrutura, hipotética, em poucas palavras, havia sido pensada em encontros formais, agendados, nos quais apenas eu e uma criança por vez, acessaríamos sites que eu sugerisse, mas também os que elas quisessem, durante 1 hora. Mas, ao invés de ter toda essa “organização” que eu pensava ser essencial para a realização do trabalho, tive de lidar com a lógica que as crianças trouxeram para acrescentar e mesmo contrapor à minha, e com o contexto onde eu estava inserida, o que me levou a rever meus conceitos sobre a necessidade de uma estruturação a priori do trabalho a ser desenvolvido. É claro que a observação, o mergulho, estava acontecendo com uma finalidade, que, inicialmente, era só minha e não delas. É impossível haver uma investigação sem a intencionalidade do pesquisador, sem um intuito, por isso a pesquisa acontece porque o pesquisador quer, mas o processo de desenvolvimento da mesma pode não ser (e geralmente não é) decidido apenas por ele. O rumo, a direção que ela toma passa a ser compartilhada com os interlocutores. Assim eu cheguei a campo com a certeza de que haveria um método a seguir, que estava em mim inscrito por tudo o que já li e vivi. E apesar de ter participado de uma pesquisa no cotidiano, a minha formação, os conceitos do que deve ser a ciência eram muito fortes e foi preciso que eu virasse de ponta cabeça e me desprendesse desses conceitos para apreender, guiada pelos acontecimentos do cotidiano, que a complexidade do que realizava exigiria de mim novas formas de olhar os sujeitos. Assim, pego carona no que diz 37 Alves sobre como precisamos chegar a campo sem pressupostos, sem um método estabelecido: Mas, mais uma vez, ao contrário do aprendido, vou ter que me lançar “no mergulho” sem a “boia” que as categorias e as classificações significam, admitindo que esse estado de absoluta instabilidade e insegurança é o único “abrigo” que me é concedido. (2001, p. 24). A pesquisa realizada em minha casa com crianças que são minhas vizinhas exigiu de mim, como pesquisadora, uma postura de “entrega” frente aos interlocutores. A escassa literatura que trata dessa opção metodológica não contribuiu para que eu pudesse ter alguns pontos de partida já sugeridos por experiências anteriores, ainda que eu soubesse que teria que construir meus próprios pontos de partida. Até por que “explorar a potência do cotidiano seria impensável sob a tutela de abordagens e registros guiados por qualquer unidade metodológica rígida” (VICTORIO FILHO, 2007, p. 06), e se assim o fizesse poderia não me conscientizar sobre as imprevisibilidades e os transbordamentos próprios ao cotidiano. Foi necessário deixar o campo indicar o melhor caminho a seguir, apreendendo que uma investigação acontece no percurso, na interação entre pesquisador e pesquisados, acreditando que não há neutralidade nesta relação já que o primeiro não consegue se desvincular de sua indagação. Por isso, “assumir o dialogismo e a alteridade como marcas das relações estabelecidas no contexto da pesquisa significa, portanto, buscar o encontro com o outro e compartilhar experiências, conhecimentos e valores que se alteram mutuamente” (PEREIRA et al, 2009, p. 1023). Esta postura adotada foi possível graças à compreensão de que as crianças devem ser vistas como sujeitos e que devem participar do processo de forma ativa, assim como participam ativamente da sociedade e requer ainda perceber que seus conhecimentos, sentimentos e valores devem ser respeitados durante o percurso. Também o tema de pesquisa convidava a pesquisar caminhos diferentes que me colocassem o mais próximo possível dos usos que as crianças faziam espontaneamente da Internet e dos sites. Sendo assim, as dúvidas que eu tive antes de começar os encontros foram sendo respondidas: os encontros acabaram sendo todos na minha casa e geralmente em grupos. Durante os encontros iniciais deixei a porta aberta com a intenção de possibilitar às famílias e às crianças o livre acesso à minha casa. No que se refere às mães, esta postura se fez necessária devido a minha relação recente com elas, em uma tentativa de estabelecer uma base sólida e de confiança com as mesmas. Para as crianças, a porta aberta possibilitou o entra 38 e sai de meninos e meninas da minha casa durante a pesquisa, o que acabou proporcionando experiências interessantes que serão debatidas mais a frente. Entretanto, ao longo dos encontros passei a fechar a porta por causa da Dorothy (cadela), pois muitas vezes ela fugia para a Vila fazendo com que eu me afastasse das crianças por alguns momentos, ocasionando lapsos durante estes momentos de ausência. Apesar de fechada, a porta ficava destrancada, possibilitando que as crianças continuassem com a liberdade para entrar e sair da minha casa. O fato de pesquisar em minha própria residência trouxe algumas reflexões: como receber as crianças em minha casa, de forma a mostrar-lhes que são bem vindas, que podem se sentir à vontade? Como conseguir manter uma relação de distanciamento com a intimidade que é inerente à minha condição de dona da casa? Derrida (2003) ao falar sobre a questão do estrangeiro e da hospitalidade ajuda à construir uma reflexão: a casa, que é o requisito para termos hóspedes, é o reino de seu dono, mas toda casa “para constituir o espaço de uma casa habitável e um lar, é preciso também uma abertura, uma porta e janelas, é preciso passagem ao estrangeiro” (p. 55). Desta forma, a casa guarda comunicação com o estrangeiro, com o outro, com o estranho. Amorim (2004), relacionando a hospitalidade com a atividade de pesquisa e o estrangeiro ao estranhamento e a alteridade, nos diz que a última requer um estranhamento: para eu olhar para uma pesquisa eu preciso me colocar no lugar de estranhamento sobre o objeto, preciso ter dúvidas e questionamentos. Assim, realizar uma pesquisa em minha casa exigiu que fizesse “uma espécie de exílio deliberado onde a tentativa é de ser hóspede e anfitrião ao mesmo tempo” (AMORIM, 2004, p. 26). Ao receber as crianças na minha casa, tendo que ser hóspede e anfitriã ao mesmo tempo, penso ter conseguido aproximar-me ainda mais delas, possibilitando que a hospitalidade diminuísse o estranhamento, exigindo do estrangeiro que ele deixasse de o ser, ou pelo menos, que as crianças sentissem cada vez menos que eram estrangeiras em minha casa. Isto pode ser evidenciado na naturalidade com que as crianças passaram a entrar e sair de minha casa. Muitos encontros foram propostos por eles e não seguiram um cronograma específico. Apenas com a Camila, que normalmente não brinca muito com os meninos, foi possível fazer os encontros individuais. Não posso deixar de contar que com ela os encontros foram bastante “formais”: havia dia e horários combinados semanalmente (quase sempre os dias e horários foram mantidos e respeitados) e ela sempre fazia questão de se arrumar para os encontros, tomando banho e fazendo um penteado que nunca se repetia. 39 Outro acontecimento interessante em relação à Camila se deve ao fato de que ela só brinca na Vila quando a mãe está presente e isso acabou gerando outra relação: a minha amizade que começou com a filha se estendeu para a mãe, ou seja, a mãe da menina virou minha amiga particular. Como criamos uma relação de amizade, participei da preparação da festa de aniversário dela e até ajudei Camila a se arrumar para a festa, neste dia, posterior a nossa conversa inicial sobre os sites, ela me mostrou o “quarto do computador”. Também fui convidada para as festas de aniversário do Lucas e do Samuel, sendo que a do Lucas aconteceu no espaço comum da Vila e não entramos na casa dele e a do Samuel foi uma festa em casa com alguns amigos e familiares. O surgimento da amizade com as crianças foi algo muito marcante, visto que conseguimos estabelecer uma relação diferente, onde elas me veem como uma adulta em quem podem confiar e com quem podem compartilhar brincadeiras e até travessuras, mas que ao mesmo tempo tem algum tipo de autoridade. Essa autoridade é definida pela amizade que, ao mesmo tempo em que permite uma relação mais próxima, também exige dos amigos um compromisso entre eles. Além disso, no que se refere à pesquisa, também assumo um papel de autoridade que me coloca o dever de pensar, entre outras coisas, os compromissos éticos que a atravessam e a relação que se criou entre amizade e pesquisa, uma amizade que, para além das crianças, incluía também suas famílias. É do que trato a seguir. As mães participaram da pesquisa, mesmo que indiretamente, pois faziam parte do cotidiano das crianças e das minhas redes29 de relações. De acordo com Alves (2001, pp. 2122): É preciso entender, assim, que o trabalho a desenvolver exigirá o estabelecimento de múltiplas redes de relações: entre eu e os problemas específicos que quero enfrentar; entre eu e os sujeitos dos contextos cotidianos referenciados; entre eu, esses sujeitos e outros sujeitos com os quais constroem espaços/tempos cotidianos. Ao solicitar autorização das mães para que as crianças participassem da pesquisa, todas concordaram, mas a mãe dos irmãos verbalizou seu receio de que a participação deles 29 O conceito de rede é amplo e perpassa várias áreas do conhecimento. Para esta dissertação, utilizo a definição de que a rede é algo que possibilita vários caminhos (MUSSO, 2004, p.30). Assim, com a ajuda de Kastrup (2004), considero que “o elemento constitutivo da rede é o nó, pouco importando a sua dimensão, pois podemos aumenta-la ou diminuí-la sem que ela perca as suas características de rede. [...] A rede não é definida por sua forma, por seus limites extremos, mas por suas conexões, por seus pontos de convergência e bifurcação. [...] As redes não são definidas por seus limites externos, mas por suas conexões internas.” (p. 80) No que se refere à apropriação do conceito de rede para o campo da pesquisa em educação, sigo as orientações de Alves (2001) 40 pudesse incentivar ainda mais o uso do computador. Ela ressaltou que não permite que os filhos joguem por muito tempo e que prefere que eles fiquem brincando na Vila e com outros jogos. Afirmei que não pretendia estimular ou não o uso dos jogos e que compreendia perfeitamente a sua posição, no entanto, ela ressaltou que os jogos já são estimulantes por si só e que se ela deixar, seus filhos querem ficar jogando por horas e por isso ela costuma regular o tempo de acesso deles ao computador. Solange Jobim e Souza (1998) ajuda na reflexão sobre esse receio demonstrado por essa mãe, ao tratar do distanciamento cada vez maior entre as crianças e os adultos, deixando esta relação cada vez mais vazia de contato e diálogo. Ao afirmar essa ruptura entre adultos e crianças, a autora destaca que as crianças estão estabelecendo “uma nova inserção no mundo da cultura, uma inserção mediada por identificações da ordem do virtual” (p. 58). Deste modo muitas crianças que há muito, nos centros urbanos, perderam o espaço da rua como possibilidade de brincadeira, tornam-se cada vez mais isoladas em suas casas. Esta nova relação estaria impedindo que as crianças convivessem com o outro, ficando enclausuradas em casa, conectadas à televisão ou ao computador que traz o “outro” de uma forma diferente. Sendo assim, a mãe dos meninos privilegia o espaço de brincar da Vila em detrimento das brincadeiras em casa conectadas aos aparatos técnicos. Já outra mãe não demonstrou essa preocupação com o tempo de uso, deixando claro que ele poderia ter livre acesso à minha casa e que poderíamos jogar quando ele quisesse. Ela ainda destacou que achou muito engraçado perceber como o filho estava surpreso por uma adulta (eu) jogar Club Penguin. Esta surpresa é bem explicitada na resposta dada por uma criança durante a pesquisa de mestrado realizada por Flavia Motta (2007, p. 117), que determina qual é o papel que o adulto assume usualmente na relação com as crianças: Pesquisadora: A crianças brincam... e o adulto? Lívia M.: O adulto não, ele tem que fazer coisa importante. Este mesma concepção de que o adulto trabalha e a criança brinca, apareceu em minha interlocução com as crianças e será debatida no capítulo seguinte. A preocupação de uma das mães fornece indícios para a análise das diferentes formas de tratamento do uso do computador no ambiente familiar já que algumas mães permitem o uso quase que irrestrito e outras preferem controlar o tempo de acesso à Internet. Não cabe à pesquisa, e nem à pesquisadora, determinar se a utilização da Internet é boa ou ruim ou como ela deve ser feita, já que estas decisões estão destinadas ao espaço privado. No que se refere, especificamente, à construção de uma metodologia, esses comportamentos mostraram que a 41 escolha por realizá-la nestes espaços faz com que a dinâmica da observação seja atravessada por decisões próprias ao ambiente familiar. Observar as crianças em um espaço privado, me relacionando diretamente com as famílias, fez com que eu adentrasse nessa relação, ocupando um entrelugar ao pensar o uso que as crianças fazem da Internet dentro dos parâmetros que a família institui como regras para esse uso, sendo permeada por questões que pertencem às decisões familiares. As crianças podiam até jogar um pouco mais quando estavam comigo, na minha casa, mas a decisão de vir jogar ou não naquele momento era destinada às famílias. Um exemplo é a transcrição a seguir: No final da tarde, depois da escola, Vinícius bateu à minha porta pedindo pra jogar Club Penguin. Perguntei se a mãe dele tinha deixado e ele disse que sim, mas fiquei um pouco desconfiada, pois dava para perceber que ele não estava falando a verdade. Aí eu perguntei de novo e ele disse que quem havia deixado era a empregada. Eu falei que não dava porque quem tinha que deixar era a mãe dele e então ele respondeu que não, que a empregada também podia deixar. Resolvi ceder, mas fiquei preocupada que a mãe dele achasse que eu a estava desrespeitando ou algo semelhante. Jogamos um pouco, mas fiquei pouco à vontade por não ter certeza se a mãe dele sabia que ele estava ali. Outro motivo para a minha preocupação foi que no domingo anterior ele havia me dito que seus pais não o deixavam jogar Club Penguin30. Depois de uns 15 minutos eu falei que não podia mais jogar. Duas mães permitiram que eu convidasse as crianças quando quisesse e também autorizaram a vinda delas à minha casa quando elas pedissem. Entretanto, a mãe dos irmãos permitiu a participação de seus filhos apenas com a sua autorização e quando eu convidasse (afinal ela confiava que eu não estimularia o uso em excesso, pois já havíamos conversado sobre isso). Esta estratégia criada pela mãe para que eles não quisessem jogar muito e para que ela pudesse manter o lugar de poder que ocupa em relação a eles, acabou fazendo com eles criassem uma ‘tática’ que acabou gerando situações complexas e a principal delas foi a ‘tática’ criada pelos irmãos de mentirem para mim e para a mãe: eles vinham à mim pedindo para jogar e eu falava que sim, mas dizia que eles deveriam pedir à mãe também. Para a mãe 30 Ele jogava com o pinguim do irmão, Lucas, e apenas com alguém por perto (os pais ou irmãos). 42 eles diziam que eu os estava chamando para jogar para conseguir autorização. Ao ser descoberta por nós, esta ‘tática’ elaborada pelas crianças acabou gerando um mal estar. Isso evidenciou que a relação das crianças com os sites foi permeada por outras relações que se estabeleceram ao longo do processo: a relação crianças-crianças, criançaspesquisadora, pesquisadora-mães, crianças-mães. No contexto destas relações surgiram ‘maneiras de fazer’, que tiveram espaço durante o acesso à Internet e no cotidiano, e que podem ser chamadas de ‘táticas de praticantes’, já que segundo Certeau (1994, p. 100): “A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”. Destas relações, muitas observações surgiram. Uma delas é a minha posição frente às crianças e às mães: sem perceber, em alguns momentos, ressaltei o lugar de autoridade das mães de forma a marcar para mim uma posição de “boazinha”, de que se dependesse apenas da minha vontade tudo seria diferente. Como vemos na transcrição a seguir: Estava passeando com a Dorothy e o Lucas veio perguntar se a gente não podia jogar Club Penguin. Respondi que ia passear com a Dorothy e depois a gente jogava. Aí ele foi pedir para a mãe dele que o deixou jogar por 15min. Ele insistiu para jogarmos logo, pois teríamos pouco tempo de jogo. Desisti do passeio com a Dorothy e fui jogar com ele. Logo Vinícius e Samuel se juntaram a nós. Joana – Olha, daqui há pouquinho tem que parar por causa dos 15 minutos que a sua mamãe falou, tá? Se não ela não deixa mais a gente jogar. Lucas – É, mas ela às vezes se confunde e deixa eu jogar mais um pouco. Joana – Às vezes ela se confunde? Lucas não responde. Samuel – Posso jogar? Lucas – Rapidinho, deixa eu ir só mais uma vez. Joana – O Lucas vai jogar mais um pouquinho depois ele tem que parar que a mamãe dele falou 15 minutos senão depois ela fica brava. (...) Joana – Gente, a gente vai ter que parar. Lucas – Ai, não. Joana – Já tá super tarde, 21:30h. Lucas –Ah, posso fazer só uma fase? (fazendo vozinha de bebê ). 43 Joana – Não, depois que o Vinícius acabar esse jogo a gente vai desligar, sabe por que, Lucas, por mim, a gente ficava jogando aqui até amanhã, mas aí a sua mamãe não vai deixar da próxima vez, entendeu? Não dá para a gente ficar jogando sem parar. Tem que obedecer a mamãe. Já passou muito tempo os 15 minutos que ela falou. Lucas – Eu falei, ela se confunde! A transcrição evidencia o que foi dito acima: não percebi que, devido ao meu envolvimento, estava colocando a mãe dos irmãos em uma posição ruim, marcando a proibição dela como uma coisa que era chata, mas que não era culpa minha. Também podemos observar que Lucas faz questão de ignorar a autoridade da mãe, dizendo que ela se confunde com os horários, criando táticas para lidar com os limites impostos a ele. Claro está que a minha pesquisa virou o momento de brincadeira em que eles podiam jogar sem a tutela e os limites da família. Trago ainda mais um relato que nos ajuda a refletir sobre esses limites que encontrei e que acabaram interferindo sobremaneira na realização da investigação. Samuel e Lucas vieram jogar. Samuel trouxe seu laptop. A mãe do Lucas não o deixou jogar, apenas assistir. Ele ficou desolado e queria enganar a mãe. Disse que se a gente não contasse, ela nunca saberia, mas achei melhor não deixar... Ele ficou olhando o Samuel jogar e dando dicas, interagindo. Joana – Lucas, me conta como é que você falou com a sua mãe. Lucas – Que eu queria jogar computador com você e você tinha deixado, aí ela falou não por que senão você vai jogar muito e vai ficar muito irritante. Um pouco depois Lucas foi jantar e quando voltou falou pela janela: Lucas – Minha mãe não deixa eu entrar. Joana – Tá bom, meu amor, o Samuel já vai embora também, que já são 20h. Ele só tá acabando de jogar esse aqui. Lucas – Joana, quer vir brincar? (Lucas estava na minha varanda com um jogo de garrafa pet com tampinha. Aquele de acertar a tampinha na garrafa cortada do outro). Joana – Quer parar Samuel, para ir brincar com ele? Samuel – Tá. 44 Notamos que a mãe do Lucas começou a limitar cada vez mais o acesso dele à minha casa e aos jogos comigo, desta forma os encontros foram ficando cada vez mais espaçados. Até que em fevereiro aconteceu algo que determinou o fim dos encontros com os irmãos, conforme segue abaixo: Lucas, Vinícius e Samuel bateram aqui querendo jogar. Vinícius diz que a irmã os deixou jogar. Pergunto qual irmã (eles tem duas: uma de quase 18 anos e outra de 12 anos) e ele responde que foi a mais nova, a Luiza. Eu disse que não poderia deixar, por que quem teria que autorizar era um adulto ou, pelo menos, a irmã mais velha. Fiz isso, por que a tensão com a mãe dos dois já estava instalada. Então ele foi a sua casa e voltou dizendo que a avó havia deixado. Ficamos jogando e depois de uns 40 minutos eles foram embora. Alguns dias depois, a mãe deles veio falar comigo e disse que somente ela poderia autorizar, ou seja, não posso considerar a autorização da avó, da irmã e nem da empregada. Enquanto conversávamos eu disse que entendia a posição dela e que eles haviam batido na minha porta para jogar, tentando mostrar a ela que eu não estava querendo incentivar o uso do computador, já que muitas vezes a proposta de jogar partia deles. Quando ela soube que eram eles que, na maioria das vezes, pediam para jogar, ficou muito brava e disse que sempre que eles vinham aqui com a autorização dela, eles diziam para ela que era eu quem estava convidando. Ficou um clima ruim e percebi que a partir daquele momento seria bem mais difícil fazer novos encontros. Realmente, este foi o último dia em que nós jogamos juntos. Após esta conversa com a mãe dos irmãos, eu ainda tentei fazer mais um dia de encontro, pois estava angustiada com a possibilidade de ter poucos encontros, o que poderia ocasionar inconsistência na pesquisa etc. Transcrevo o que aconteceu conforme anotei em meu diário de campo. Os meninos vêm a minha casa. Entram, mexem nas coisas e brincam de se esconder. Eu falo para eles: “O último a sair fecha a porta”. Depois que eles saem eu vou atrás deles, que estão na minha varanda, abro a porta e falo: Joana - Meninos, mais tarde, a gente podia jogar no computador. Eu vou pedir para a mãe de vocês. 45 Vinícius – Vamos jogar agora! Joana – Agora não dá, mas depois vou perguntar pra mãe de vocês se ela deixa. Lucas – A gente só pode quando você convidar e não quando a gente quiser, lembra Vinícius? Acabei não perguntando para a mãe deles e alguns dias depois nos encontramos. Ela e os meninos estavam na porta da casa em que moram. Lucas – Joana! Vamos jogar? Joana – Claro! Quando vocês quiserem e a mamãe deixar podem ir lá em casa e a gente joga. Mãe - Meninos, vocês podem jogar por 15 minutos, mais tarde, aqui em casa. Esta última frase da mãe me fez ver que a pesquisa de campo com os irmãos havia terminado. Deduzi que ela não queria mais que eu jogasse com eles, pois ela não me convidou para ir mais tarde lá. Inclusive, naquele momento em que ela falou “mais tarde”, estava nas entrelinhas, que eu não estava incluída. Nunca mais os convidei para jogar no computador, mesmo assim, eles ainda pediram algumas vezes. Eu sempre respondia que combinaríamos depois. Passado algum tempo encontrei com todos novamente e a mãe deles me entregou um filme chamado Gente Grande31. Ela disse que esse filme falava sobre o que acontece quando as crianças ficam muito tempo jogando no computador. Joana – Que legal. Obrigada! Você assistiu Lucas? Gostou? Lucas – Sim. Mostra como as crianças ficam chatas quando só jogam e não brincam de outras coisas. Alguns meses depois, Vinícius veio à minha casa. Joana – Oi, tudo bem? Vinícius – Tudo. A minha mãe não deixa mais eu jogar aí. Joana – Por quê? O que ela falou? 31 Sinopse de Gente Grande (Grown Ups, EUA, 2010, Sony Pictures): Trinta anos após a formatura do colégio, cinco amigos (Adam Sandler, Chris Rock, Kevin James, David Spade e Rob Schneider) se reencontram para passar um fim de semana juntos. Com suas mulheres (Salma Hayek, Maria Bello e Maya Rudolph) e filhos, eles celebram o feriado de 4 de Julho em uma casa no lago, para celebrar os anos de juventude e relembrar os bons momentos. No filme, os filhos dos cinco amigos não sabem se divertir sem equipamentos eletrônicos e como forma de mostrar a eles outras formas de diversão, os adultos proíbem as crianças de brincarem com esses equipamentos, fazendo com que elas aprendam a brincar no lago, de bola, de correr e até consigam conversar com adultos e outras crianças. 46 Vinícius – Ela vai deixar a gente jogar no computador dela. Joana – E ela deixa? Vinícius – Às vezes. De vez em quando. Entendo que esses percalços encontrados nos mostram que para realizarmos um estudo no cotidiano com crianças em espaços privados, ainda é preciso muita reflexão e estudo. Verificar os limites entre a pesquisadora, a jogadora, a vizinha, a professora, a adulta foi quase impossível durante a imersão no campo. E aí, entra em cena uma grande questão: como se envolver a tal ponto em uma pesquisa sem deixar de ser pesquisadora, sabendo, quando necessário, distanciar-se e fazer as perguntas certas? Talvez eu não tenha conseguido fazer isso, mas como acredito que a redação da escrita ainda é parte do processo, que não se encerra no campo, posso utilizar este momento para refletir sobre as questões que me passaram despercebidas nos períodos em que estava imersa nos jogos com as crianças. Outra possibilidade, que experimentei, foi a de voltar, aos interlocutores e fazer perguntas que achava pertinentes e que fossem imprescindíveis para refletir sobre o que observara. Escrever sobre uma investigação feita no cotidiano é mais um ponto que exige reflexão por parte do pesquisador, pois é preciso “narrar a vida e literaturizar a ciência” (ALVES, 2001, p.29). Para que esta escrita possa tecer uma rede de múltiplos fios, ela não deve obedecer à linearidade da exposição, deve perguntar mais do que responder, duvidar das próprias afirmações, exercer a arte de contar histórias, sem apenas descrever, mas refletir sobre o vivido, sabendo que ao tecer essa rede, muitos fios serão do pesquisador e muitos dos interlocutores, tendo claro que a escrita, parte integrante da análise, não consegue ser neutra. Também cabe salientar que quando escrevemos, escrevemos para um interlocutor, ou seja, nosso discurso escrito é direcionado para alguém e isto também o define. Ao pensar sobre esta transposição das experiências para a escrita, cabe destacar que acredito que ao trazer os acontecimentos do meu campo, de forma verdadeira, sem maquiar dados, contando os transtornos, o processo e não apenas os resultados, buscando refletir sobre o meu trabalho, sobre o meu posicionamento, as minhas conversas, as observações dos meus interlocutores, tenho o intuito de que a minha pesquisa seja ética, já que “o ato é movimento do pensamento, é o seu vir-a-ser” (AMORIM, 2004, p. 22). A ética em um questionamento é por mim entendida como o meu pensar sobre ele, a minha reflexão sobre as “verdades” que escrevo nesta dissertação. 47 Desenvolver uma pesquisa em espaços da vida privada se mostrou mais complexo do que imaginei. Entendo que qualquer investigação pode trazer surpresas, mas creio que a necessidade que um pesquisador tem de definir suas ações, planejar de acordo com os seus propósitos, tornou-se ainda mais difícil nesta, pois a metodologia escolhida se afasta um pouco de outras formas de abordagens mais usuais. Sei que uma pesquisa qualitativa nunca será engessada e não poderá seguir objetivos pré-definidos durante todo o tempo. Sei também que toda análise guarda, atrás dos dados que são trazidos para o texto de forma relativamente limpa, conflitos de diferentes ordens. Mas, apreendo que o contexto em que se desenrolou a minha procura trouxe ainda obstáculos que atravessavam a institucionalidade da pesquisa e os sentimentos mais próprios da vida privada. Foi preciso ouvir o campo com atenção e principalmente, se deixar levar por ele, constatando que um estudo no cotidiano requer do pesquisador que ele execute “um mergulho com todos os sentidos” (ALVES, 2001, p.15). A falta de dias certos para os encontros (por mais que eu marcasse um dia, nem sempre ele era cumprido), a necessidade de estar disponível quando as crianças quisessem, a negociação com as famílias, tudo isso fez com que a investigação tomasse um rumo totalmente inesperado. A opção de estar disponível para as crianças quando elas queriam, atendendo aos seus pedidos para jogarmos, acabou gerando ainda mais espontaneidade às suas ações. Procurando não ser muito ingênua supondo que conferissem à “minha” exploração a mesma importância que confiro, entendo que para elas, nossos encontros eram “para jogar”. Acabei, sem perceber, envolvendo-me com os jogos, inserindo-me na cultura de pares deles de forma intensa e, muitas vezes, abdicando de ser pesquisadora e transformando-me em jogadora. Isso me permitiu, por um lado adentrar num universo pouco conhecido: aquele das crianças imersas no jogo e, nesse caso, no jogo on-line. Tive o privilégio de me sentir “hóspede”, um hóspede que se sente em casa, ao viver com eles uma relação horizontal no jogo. Por outro lado, escrever esta dissertação me permite ver que, o jogar implica um mergulho que quase impossibilita vermos a situação “de fora” e, muitas vezes, nessa horizontalidade, a jogadora se impôs à pesquisadora. Paradoxalmente a pesquisa exigia um distanciamento, e o jogo, um despojamento de papéis. Poucas vezes, vi as crianças preocupadas com o que deveriam ou não dizer para mim. Apenas no nosso último encontro elas notaram que eu estava escrevendo no meu caderno (não por que eu ficasse escondendo, mas nas outras ocasiões a interação com os sites era tão intensa que os olhos e ouvidos delas estavam sempre voltados para o computador) e demonstraram curiosidade querendo vê-lo, perguntando o que eu estava anotando. Em relação 48 a filmagem, a única vez em que eles mostraram alguma timidez foi no primeiro encontro “oficial” em que conversamos sobre o que eu faria e por que estava querendo conversar com eles. Outro item interessante foi ter que mediar a relação entre eles e entre eles e o computador. Por exemplo: quando vinha mais de uma criança tínhamos que decidir quanto tempo cada uma jogaria, quem jogaria primeiro etc. A mediação também acontecia na hora em que estávamos on-line: muitas vezes eu lia algo em inglês, pensava com elas em como faríamos para passar de fase, enfim, ajudava a resolver questões dos jogos ou de acesso aos sites. Outro momento em que era solicitada minha intervenção era quando uma criança estava jogando e as outras queriam ficar dizendo o que esta deveria fazer para passar de fase ou não perder a vida durante o jogo. Isto era interessante porque ao mesmo tempo em que eu tinha alguma autoridade por ser adulta e também por ser a “dona” da casa e do computador, eu não estava em uma escola, eu não era a professora ou a mãe. Esta oscilação entre ser autoridade, mas não exercê-la a partir dos parâmetros mais convencionais que se colocam entre adultos e crianças, fez com que muitas vezes os meninos e meninas me chamassem para ajudar a resolver conflitos quando estavam brincando na Vila, mesmo que eu não estivesse brincando com elas. A minha amizade com as crianças é sincera e creio que elas não me veem como outra criança, apenas por eu participar de atividades que elas propõem, mas distinguem sim que sou adulta e que ocupo um lugar de adulto na nossa relação. Muitas vezes, conversei sério com eles por terem deixado sujeira na minha porta e pedi para limparem; eles já derrubaram dois ou três vasos de plantas da minha varanda, enfim, já aconteceram muitas situações em que tive que “falar sério” com eles. Esse jogo entre o “falar sério” e o partilhar de suas peraltices foi demonstrando, para mim e para eles, de que a relação de amizade entre adultos e crianças é uma construção que acontece no dia a dia, mesmo que seja atravessada por todas as convenções sociais que sugerem a cada um, modos de se comportar em relação aos outros. Elas percebem que sou uma adulta mais disponível, tanto para brincar quanto para ajudar na resolução de conflitos ou ajudar alguma criança que se machuca. Entendo que esta relação de cuidado e ajuda vem de uma circunstância curiosa: as crianças ficam sozinhas na Vila e, geralmente, na minha porta e de alguma forma, criamos uma relação de cumplicidade que perdura até hoje. Estava constantemente alternando meu lugar na nossa relação: jogadora, professora, mediadora, pesquisadora... Mas, ao mesmo tempo, esse lugar de autoridade que construí junto deles de nada servia para determinar quando e quanto elas podiam jogar no computador 49 comigo, pois essa autorização era de um outro campo de autoridade das relações sociais: das famílias, tanto quanto em outros espaços institucionais seriam definidos em outros lugares de autoridade. Se pensarmos no caso das crianças que criaram uma ‘tática’ para poder jogar, podemos ver que esta tensão entre ser autoridade na pesquisa e não ser na relação entre pais e filhos no plano da vida privada é ainda maior. Isto mostra que simultaneamente ocupamos muitos lugares sociais e que a noção de autoridade não é dada, mas construída de acordo com o contexto e com os interlocutores que temos. Outro aspecto a ser observado nesta situação vivenciada é a necessidade que as crianças têm em desafiar a autoridade adulta e não respeitar suas regras, buscando fazer valer seus interesses e adquirir algum tipo de controle sobre as decisões que envolvem as suas vidas (CORSARO, 2011). Se para mim, assumir essa construção não é fácil, cabe nos perguntarmos: como as crianças enfrentam essas alterações? Acredito que todos esses acontecimentos foram muito valiosos e refletir sobre eles pode acrescentar algumas pistas para a realização de uma pesquisa em espaços particulares. O encaminhamento feito por mim no início do processo pode ter colaborado para estes entraves: o fato de eu ter jogado com eles antes de informar aos pais sobre os meus interesses, ter solicitado as autorizações em encontros casuais com os pais no espaço comum da Vila (sem uma aparente seriedade) e o próprio fato de não conseguir marcar dias e horários fixos com as crianças pode ter causado a não percepção dos pais e das crianças de que os encontros “para jogar” faziam parte de uma pesquisa. Outro gerador destas tensões pode ter sido o tema abordado, a Internet, que muitas vezes é vista como um motivo de preocupação pelos pais, o que inclusive foi dito por uma mãe. Uma reflexão que se faz necessária é: descobrir sobre a cultura das crianças a partir de seus momentos de brincadeira não pode ser um compromisso protocolar. Em se tratando de uma brincadeira específica e não de observação de momentos em que eles brincam livremente, ou seja, propondo a brincadeira estamos sujeitos ao querer das crianças, afinal, o brincar é eletivo e não podemos obrigá-las (CORSARO, 2011). Em relação aos jogos on-line, percebi que as crianças não querem ficar jogando-os o tempo todo e gostam de outras brincadeiras também. Mais uma vez, fica a questão: é possível marcar uma hora com a criança para brincar? Esses acontecimentos podem ter revestido a pesquisa com um tom de brincadeira não só para as crianças, como para as mães também, fazendo com que eu não conquistasse a cumplicidade de todas elas. Vale dizer que própria concepção de “brincadeira” assume diversos sentidos para mim, para as crianças e para seus familiares, exigindo cumplicidades de ordens diferentes. 50 Reconheço que experimentei um certo receio em estimular o uso excessivo do computador pelas crianças, que pudesse gerar algum mal estar entre mim e as mães. A percepção das crianças de que na minha casa elas poderiam jogar por mais tempo e sem os limites impostos pela família, nos mostra como essa pesquisa em ambientes particulares com um meio midiático tão debatido pela sociedade, pode ser complexa. Experimentei, simultaneamente, ser aquela que procura conhecer os usos que as crianças fazem, sem, no entanto, libertar-me por completo do lugar de “adulta” que prescreve sobre os usos que as crianças devem fazer. Juntam-se, nesse sentimento, o não-saber de quem está á procura, e a expectativa de quem deve responsabilizar-se por um “já saber” acadêmico/adulto. Cabe deixar claro que a pesquisa traz questões e achados que só foram possíveis devido ao encaminhamento que dei, mas gostaria que ela servisse como forma de pensarmos o estudo em espaços particulares, buscando construir novas formas de pesquisar nestes espaços. Algumas interrogações se fazem necessárias: Como investigar em outros espaços com os quais não estamos tão familiarizados quanto o espaço institucional escolar? Que encaminhamentos se fazem necessários em uma pesquisa em espaços particulares? Quais métodos utilizados em outros espaços podem ser aproveitados para os espaços particulares? Como oscilar entre os aspectos da vida cotidiana e da vida de pesquisa ao investigar em seu próprio cotidiano? Como ser vizinha, amiga, jogadora, professora e pesquisadora ao mesmo tempo sem perder de vista a pesquisa em si? 51 CAPÍTULO 2 OS USOS DA INTERNET NAS RELAÇÕES DE PESQUISA Neste capítulo apresento os conceitos de Michel de Certeau que orientaram o meu mergulho em campo no que se refere ao conceito de usos. Desta forma, procurei observar as crianças em seus momentos de acesso aos sites para perceber como elas produzem sua cultura em contato com um produto que foi pensado por adultos para elas, refletindo o que a sociedade contemporânea pensa sobre a infância. Para falar sobre as questões específicas dos sites, discuto questões ligadas à cibercultura, Web 2.0, interatividade etc. Reapresento as crianças, trazendo suas famílias e uma descrição mais detalhada do local onde foi realizada a pesquisa. Finalizo com os achados da nossa roda de conversa, onde há um detalhamento maior das relações de cada criança e sua família com o computador e a Internet. 2.1 Os ‘usos’, as ‘maneiras de fazer’, as crianças e os sites Os conceitos de usos e maneiras de fazer são trazidos aqui a partir da perspectiva teórica de Michel de Certeau, em seu livro “A invenção do cotidiano 1. Artes de fazer”. Este livro nasceu de “uma interrogação sobre as operações dos usuários” (1994, p. 37), indagação que compartilho já que procuro observar as crianças e suas reações enquanto usuárias da Internet. O conceito de usos visa compreender como o usuário se apropria daquilo que usa, como inscreve naquele uso a sua forma de consumo, que geralmente, está para além do que foi pensado por quem fez o produto. Certeau traz um exemplo que nos ajuda a entender ainda mais a investigação sobre os usos de produtos que não deixam lugar para os consumidores marcarem sua atividade. Uma criança ainda rabisca e suja o livro escolar; mesmo que receba um castigo por esse crime, a criança ganha um espaço, assina aí sua existência de autor. O telespectador não escreve coisa alguma na tela da TV. 52 Ele é afastado do produto, excluído da manifestação, perde seus direitos de autor para se tornar, ao que parece, em puro receptor (1994, p 94). Atualmente, os programas de televisão tentam possibilitar cada vez mais que os consumidores se identifiquem com o que passa na tela e, mais ainda, procura caminhos para que o usuário possa deixar a sua marca na TV seja através de envio de SMS, de vídeos, de telefonemas, de mensagens via Twiter e de votações sobre a programação. Entretanto, o usuário continua limitado a participar quando a programação permite, pois o suporte televisão, não é interativo. Certeau pretende alcançar os consumidores e suas operações cotidianas, que permitem a eles uma produção que não é pensada pelos fabricantes da ordem social. Em outras palavras: Certeau busca no cotidiano, no indivíduo, no micro, investigar como os sujeitos lidam com a cultura de massa, com as leis, com a economia, enfim, com as macroestruturas que regem a sociedade. Segundo Certeau, se passarmos de uma forma de pesquisar, quantitativamente, o que é consumido socialmente para uma forma que investiga qualitativamente como é consumido, quais formas de consumo, como o indivíduo processa as informações e lida com elas no dia-adia, é aí que compreenderemos as “maneiras de fazer” que estão nas maneiras “de caminhar, ler, produzir, falar etc.” e que “intervém num campo que as regula num primeiro nível” (1994, p. 92) modificando-o de acordo com a maneira em que as utiliza. Essas “maneiras de fazer” podem acontecer por duas vias: as “estratégias” ou as “táticas”. A estratégia é uma ação que supõe a existência de um lugar próprio, ou seja, é capaz de produzir e impor, visando à manutenção de um poder estabelecido. A estratégia é “o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder pode ser isolado” (CERTEAU, 1994, p 99). A tática atua nas ocasiões, permitindo utilizar e alterar o poder imposto, mas não visa à aquisição do poder e nem a manutenção desta conquista “ela opera golpe, por golpe, lance por lance” (CERTEAU, 1994, p. 100). É a partir destas ‘maneiras de fazer’ que podem emergir alguns indicadores da criatividade que se multiplica onde supostamente não há espaço para ela, onde ela não foi pensada. Muitas vezes, não tem lugar no produto ofertado para consumo, não têm um espaço onde possa marcar o que gera para além do que está posto, ou seja, muitas vezes não há espaço para a criação para ultrapassar o que foi pensado pelos produtores. Certeau, abordando o costume de ver televisão como exemplo, nos fala sobre a relação entre produção e consumo: 53 A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem economicamente dominante. (CERTEAU, 1994, p. 39 – grifos do autor). Embora a televisão esteja ligada a um tipo de produção que distingue muito claramente o campo da produção e o campo da recepção, diferente do site que é disponibilizado em um mundo digitalizado e pode permitir uma maior imbricação entre esses dois campos, a utilização pelas crianças, que não participam da elaboração dos sites feitos para elas, acarreta uma “produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização” (CERTEAU, 1994, p. 40). Esses usos são maneiras de fazer que subvertem o que é oferecido pelos sites como forma de utilização dos mesmos. Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural. (CERTEAU, 1994, p. 41). O estudo dos usos e maneiras de fazer do cotidiano nos ajuda a refletir sobre a relação das crianças com os sites a partir do momento em que compreendemos qual é o espaço disponível para as crianças nesses sites. Assim Certeau propõe que por mais difícil que seja os consumidores não são meros receptores, eles produzem algo, mesmo que muitas vezes não possam inscrever o que produzem nos meios massivos há essa produção que pode ser investigada a partir das “maneiras de fazer” dos usuários. Entendo que cada criança vai interagir de maneira diferente com os sites em ‘combinatórias de operações’ que ultrapassam as possibilidades pensadas pelos produtores que os elaboram e os disponibilizam aos consumidores, neste caso, as crianças. [...] os avanços tecnológicos têm produzido mudanças de comportamento dos grupos sociais, mudanças no cotidiano vivenciado e, ainda, no campo da criação daqueles que usam a tecnologia, não se limitando às destinações previstas para o produto oferecido, modificando-o por meio dos usos que inventam para eles, para além daqueles previstos nos seus “manuais” e regras estabelecidas de uso. (OLIVEIRA, 2002. p. 28) Falar em avanços tecnológicos requer, nesta dissertação, uma aproximação dos estudos mais específicos do campo da Internet. Cabe ressaltar que tenho consciência de que a minha discussão sobre o assunto se dará muito mais a partir do olhar do usuário, buscando 54 compreender alguns processos que podem ajudar a ampliar as discussões sobre os usos das crianças e sem querer entender a complexidade do mundo técnico. Também tenho clareza de que estes estudos acerca da tecnologia são velozes e sofrem mudanças constantes, se tratando de uma discussão em permanente modificação e cuja velocidade pode escapar ao que é possível ser trazido neste trabalho. Sendo assim, trarei com a ajuda de autores como Lemos (2010), Lévy (1999), Santaella (2004), Santos (2010), Silva (2010), algumas discussões que podem enriquecer a compreensão das relações entre as crianças e os sites. A nossa sociedade vive um momento de expansão das tecnologias digitais 32 que permite que transformemos as formas de produção e socialização dos saberes. Elas nos possibilitam produzir, acessar, transmitir informações sem, necessariamente, precisar de um suporte físico fixo facilitando assim os processos de transmissão, circulação, armazenamento e também de significação das informações, conhecimentos e saberes. Em síntese, esse processo de digitalização se caracteriza tecnicamente pela convergência da computação (informática e suas aplicações), da comunicação (transmissão e recepção de dados) e dos conteúdos (textos, sons, imagens, gráficos). (SANTOS, 2002, p. 114) Desta digitalização e do crescimento do acesso à Internet, possibilitado pela transição do Computador utilizado nas grandes empresas, passando pelo Computador Pessoal (PC) e chegando ao Computador Conectado (CC) a partir da década de 90 evidenciam-se as novas formas de comunicação e de estruturação das atividades humanas. “As tecnologias digitais surgiram, então, como a infraestrutura do ciberespaço, novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento” (LÉVY, 1999, p. 32). Do livro de ficção científica de William Gibson (Neuromante, 1984), surge o termo ciberespaço, sendo prontamente utilizado pelos usuários e criadores de redes digitais. Segundo Lévy, ciberespaço é “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores” (1999, p. 92). Esse conceito, entretanto, como a própria realidade cultural em que estamos inseridos, tende a se alterar constantemente. O ciberespaço é um exemplo do modelo informatizado de comunicação possibilitado pelas redes digitais, onde a mensagem circula livremente “não mais editada por um centro, mas disseminada de forma transversal e vertical, aleatória e associativa” (LEMOS, 2010, 32 Digitalizar uma informação consiste em traduzi-la em números. (LÉVY, 1999, p. 50). 55 pp. 79-80). O ciberespaço tem sua popularização na cultura contemporânea a partir do desejo de conexão da sociedade. Esta comunicação possibilitada pelo ciberespaço pode acontecer das seguintes formas: “um-um, um-todos e todos-todos em troca simultânea (comunicação síncrona) ou não (comunicação assíncrona)” (SANTOS, 2002, p. 115, grifo meu) e são as interações entre os usuários e as máquinas que vão criar o ciberespaço e a cibercultura. Lemos (2010) localiza o nascimento da cibercultura no surgimento da microinformática na metade dos anos 70 e defende que para além da técnica, o que favoreceu o nascimento da cibercultura e da microinformática foram os movimentos sociais, já que “a microinformática vai acentuar a democratização do acesso à informação” (2010, p. 115), possibilitando um maior acesso social ao ciberespaço e demonstrando que a sociedade se apropria da inovação tecnológica sem apenas consumi-la passivamente, reinventando as formas de uso da tecnologia. Sendo assim, o autor define a cibercultura como “produto da digitalização dos media, do advento de um fluxo de mensagens planetário, multimodal e bidirecional, em que o receptor torna-se também, um emissor potencial” (LEMOS, 2010, p. 259). Cabe ressaltar que o poder de emissão do usuário está cada vez mais presente na Internet com o “desdobramento sóciotécnico” (SANTOS, 2010, p. 122) da Web e a transformação em seu conceito. Lévy nos ajuda a entender que: “a World Wide Web é uma função da Internet que junta, em um único e imenso hipertexto33 ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos e hipertextos que a alimentam” (1999, p. 27). Em 2005, Tim O’ Reilly coloca a expressão Web 2.0 em destaque com a publicação do artigo “O que é Web 2.0?”. Em seu texto O’ Reilly traz um mapa com algumas das principais características que o novo conceito de Web apresenta. Algumas delas são: Confie nos seus usuários; O Beta perpétuo; Software melhor quanto mais as pessoas o utilizam; Experiência rica do usuário; “Hackeabilidade”; O direito de Remixar: “Alguns direitos reservados”; Comportamento do usuário não predeterminado; Descentralização Radical. Ainda conforme O’Reilly (2006), a Web 2.0 deve “facilitar o autosserviço do consumidor” (p. 7); ser quase que uma transposição do PC (computador pessoal) on-line, permitindo que o usuário gerencie arquivos pessoais e conteúdos na Web e possuir sistemas que são projetados para serem 33 Hipertexto é um texto em formato digital, reconfigurável e fluido. Ele é composto por blocos elementares ligados por links que podem ser explorados em tempo real na tela. A noção de hiperdocumento generaliza, para todas as categorias de signos (imagens, animações, sons etc.), o princípio da mensagem em rede móvel que caracteriza o hipertexto. 56 hackeados ou remixados, ou seja, sistemas que permitem a alteração pelos usuários. Uma expressão que caracteriza a Web 2.0 é “alguns direitos reservados”, utilizada pelo Creative Commons para opor-se ao sempre utilizado “todos os direitos reservados”. Estas características ressaltam o destaque que o usuário adquire com a Web 2.0 já que para além de buscar informações, ele poderá contribuir com informações. Ainda sobre a Web 2.0, peço ajuda a Santos (2010), que explica as diferenças entre a Web em sua primeira fase, conhecida como Web 1.0 e em sua segunda fase, a Web 2.0. A autora nos mostra que em sua primeira fase a Internet não era um lugar de fácil acesso para a produção e compartilhamento de informações, sendo necessário para isso, conhecer linguagens como html34. Já com a Web 2.0, começaram a aparecer sites que possibilitam essa inserção dos conteúdos sem a necessidade do conhecimento de linguagens específicas, pois têm o acesso aberto, com conteúdos dinâmicos criados pelos usuários, oferecem conteúdo livre para cópia e utilizam tecnologias já existentes. A Web 2.0 pode ser exemplificada se pensarmos em sites colaborativos onde o usuário participa do conteúdo, tais como: Facebook, Orkut, blogs, sites de notícias que possibilitem ao leitor colocar seus comentários, Wikipedia etc. Com a apropriação da rede por grupos-sujeitos (mercado, mídia clássica e, principalmente nativos digitais) criativos e antenados com a lógica da interatividade e da colaboração, novas e surpreendentes soluções informáticas foram criadas no contexto em que também fizeram emergir novas atitudes mais engajadas com a autoria e coautoria de sentidos, significados e significantes. Com a Web 2.0, a cibercultura ganha contornos mais concretos (SANTOS, 2010, p. 123). Estas características trazidas por O’ Reilly e Santos nos possibilitam adentrar em outra questão bastante importante para esta dissertação: a interatividade. Os autores nos mostram que o usuário precisa ter acesso ao outro lado, ou seja, além de ser “passivo” frente ao conteúdo ele deve poder alterar esse conteúdo. Em 2009, época em que ainda não estava cursando o mestrado, mas já tinha a elaboração do projeto para ingresso em vista, observei uma criança jogando on-line. Na casa de um casal de amigos que tem uma filha, Luana, que naquele ano estava com 4 anos, pude observá-la enquanto navegava no site Discovery Kids35. Ela jogava Vida Natural – formas e 34 Abreviação para a expressão inglesa HyperText Markup Language, que significa Linguagem de Marcação de Hipertexto. 35 www.discoverykidsbrasil.com 57 cores, cujo objetivo é escolher a opção correta para a cor de um elemento da natureza (ilustração a seguir). É perguntado (em áudio) à criança: “Como você pintaria esta figura?”. Imagem 1 – Jogo Vida Natural – formas e cores. No caso do peixe, a opção correta é a primeira que imita as escamas do animal. As opções que aparecem são: morango, árvore, cobra, dentre outras. A cada erro ou acerto, há a emissão de mensagens sonoras para incentivar a criança a continuar ou para parabenizá-la. No caso de erro, há mensagens como: “Humm, as cores não parecem corretas” ou “Não, não. Tente com outra” e em caso de acerto, as mensagens podem ser: “Muito bem!” e “Você acertou!”. Luana “conversava” com o computador e, ao mesmo tempo em que escolhia a opção errada propositalmente, ela dizia: “Ah! Assim é mais bonito! Tá bonitinho!”. O fato de ela estar “desafiando” o jogo me surpreendeu. Entendo que esta criança estava querendo jogar o jogo de outra maneira, estava querendo ser coautora, modificar o conteúdo, fazer suas próprias criações a partir daquele material, mas como o site não permitia que ela criasse, restou a ela argumentar oralmente com o jogo, construindo “táticas de praticantes” (CERTEAU, 1994, p. 45), ou seja, ela estava sendo uma “produtora desconhecida” (CERTEAU, 1994, P. 45) visto que produzia algo que não estava previsto por quem fez o jogo. À época, fiquei bastante apreensiva com a impossibilidade de Luana poder fazer o que gostaria dentro do jogo. Ao iniciar o mestrado, pude ter contato com o conceito de interatividade, entre outros, e assim, refletir mais sobre essa minha inquietação. Buscando compreender a interatividade, recorro a Lemos (2010, on-line[2012]) que ao trazer a evolução das interfaces e dos media digitais os aponta como grande disseminador da interatividade na cibercultura contemporânea, constatando que a interface é o espaço em que a interatividade pode acontecer. 58 De acordo com o autor, em 1963 “houve o impulso para uma interatividade gráfica onde o usuário podia desenhar no monitor, através de uma caneta (pen light)” (LEMOS, online). O desenvolvimento da realidade virtual, transformando o computador “numa ferramenta universal de manipulação cognitiva graças à interatividade e à simulação” (LEMOS, on-line[2012]) também favoreceu o desenvolvimento da interatividade. Situa o surgimento do teclado e do monitor, na era dos microcomputadores nos anos 60, como possibilitadores de “uma interação mais dinâmica com os computadores e uma visualização mais confortável das informações” (LEMOS, on-line[2012]). A partir do surgimento da microinformática, a massificação dos computadores cresce vertiginosamente: os jogos eletrônicos e a manipulação virtual dos ícones e janelas da tela através do mouse permite que a interface gráfica ganhe uma agilidade e facilidade no manuseio. Sendo assim, “a simulação dos objetos e tarefas é fundamental” (LEMOS, online[2012]) nesta fase evolutiva do computador e da interatividade. Desta forma, vimos que o computador nem sempre foi interativo havendo uma evolução das interfaces para que ele chegasse ao ponto em que estamos, onde há uma interatividade intensa. Caracterizando a World Wide Web como um hipertexto, onde podemos navegar de site em site, de informação em informação, Lemos nos traz a concepção de que neste hipertexto digital “podemos navegar sem que aquele que o concebeu tenha o poder de determinar o percurso (guardado claro, os limites de opções dadas por ele ao programa utilizado)” (LEMOS, on-line, grifo meu[2012]). É desta limitação que as crianças parecem querer avançar, ir além. Posso incorrer o risco do entusiasmo em relação ao campo, mas o que vi foi uma relação de quem pede mais dos sites. As vivências abaixo se aproximam da observação feita em 2009 com a menina Luana. Neste caso, em minha pesquisa de campo, Camila me mostrou como gostaria de fazer coisas diferentes das que são propostas pelos sites acessados por ela. a) Acessando o site do Discovery Kids36, Camila quis jogar um jogo em que o Doki, mascote do Discovery, tem que achar a forma pedida (estrela, quadrado, oval, retângulo) pulando em cima de plataformas redondas, de tubos e subindo escadas, exigindo destreza manual do jogador. Camila – Ai, ai! Quase que o sapo me pegou! Joana – Que sapo? 36 http://www.discoverykidsbrasil.com/ 59 Camila – Eu estou fingindo que tem um laguinho de sapo pegando o cachorro. E ele é um cachorro, não é? (Camila está se referindo ao personagem Doki). Joana – Você acha que seria mais legal se tivesse um laguinho de sapo? Camila – Ía. Não. Seria muito difícil. b) Camila está acessando o site da boneca Polly37 e escolhe um jogo sobre salão de beleza. Quando entramos no jogo aparece uma Polly dizendo: - “Às vezes a gente fica doida por um visu novo, né? Então pode escolher o que a gente vai fazer”. Eu leio para ela as coisas que ela pode escolher durante o jogo. Joana – Escolha um estilo de cabelo, escolha um acessório de cabelo, você também pode escolher a cor do cabelo. Camila – Pode escolher tudo! Joana – É, tudo pro cabelo. Explico pra Camila como ela deve jogar, pois ela não estava conseguindo entender. Camila – Queria cortar um pouquinho o cabelo dela. Joana – Cortar? Acho que não dá, nessa tesoura daí está escrito ajuda. (ela fica bastante frustrada por não conseguir cortar o cabelo da Polly). Imagem 2 – Jogo de cabelereiro da Polly 37 http://br.pollypocket.com/ 60 A solução seria termos mais opções de manipulação nos sites? Como fazer para que a tesoura seja o que Camila quer e não o lugar de ajuda do site? Mas, o que Camila quer é o que outras crianças querem? Como fazer para que cada criança possa usar a tesoura para o fim que desejar? Não saberia dizer se, tecnicamente, isso é possível e deixo para programadores e afins a pergunta e as possíveis respostas. Mas, acredito que uma nova postura dos produtores/emissores das mensagens está sendo exigida pelos usuários e isto ficou claro em meu campo. Cabe ressaltar que compreendo que o universo da minha pesquisa foi limitado, tendo um número pequeno de interlocutores (o que, além de intencional, facilitou o desenvolvimento de outras questões) e que seria necessário um estudo de maior abrangência para tentar dar conta das questões que envolvem a tecnologia em si. Entretanto, claro está que, os interlocutores desta pesquisa, demonstraram algumas insatisfações durante os usos dos sites. Como possibilitar que a criança possa, realmente, colocar sua imaginação criativa na tela? Quando Camila nos diz que está fingindo que tem um sapo no jogo, ela está nos mostrando que aquele jogo não satisfaz toda a sua imaginação? Será que, em algum momento, algum jogo terá essa capacidade? E mais: será necessário ter essa capacidade ou a criança sempre criará algo além para o que está posto e isso, felizmente, é inerente à sua criatividade? Acredito que é importante destacar que para além de um possível tolhimento da criatividade esses jogos que já apresentam “tudo” pronto podem também favorecer algum tipo de criação pela criança: por mais que já tenha toda a ação pronta e o cenário já ilustrado e mostrado na tela, com seus movimentos já preestabelecidos, Camila nos mostra que ela continua criando, colocando um sapo onde esse não existe. O fato de permitir que Camila interfira no jogo, mesmo que dentro de opções préestabelecidas, já pode ser considerado como interatividade? Ou será que as crianças estão nos mostrando que querem algo além, algo mais do que está sendo ofertado para elas? Em que medida a técnica ajuda a qualificar a imaginação? Silva (2010b, 2004, 2010) nos ajuda a refletir sobre estas questões ao afirmar que a interatividade é um mais comunicacional, permite coautoria, cocriação do usuário em relação ao produto, além de permitir a modificação dos conteúdos. “O termo significa a comunicação que se faz entre emissão e recepção entendida como cocriação da mensagem. [...] A mensagem só toma todo o seu significado sob a intervenção do receptor que se torna, de certa maneira, criador” (SILVA, 2004, pp. 4-5). Se propondo a depurar o conceito, Silva (2004) nos traz a que o adjetivo interativo tem servido para qualificar qualquer coisa ou sistema cujo funcionamento permite ao seu usuário 61 algum nível de participação ou de suposta participação. Destacando que para muitos autores esta participação é o principal aspecto da interatividade. Entretanto, Silva ressalta que este é o aspecto mais enganoso, já que a simples participação não resulta em interferência. Citando a TV como exemplo, Silva nos traz que o poder do consumidor está “em ligar ou desligar o aparelho, mudar de canal ou responder sim ou não” (2004, p. 7). Desta forma o telespectador não tem o poder de mudar a programação. O autor apresenta os fundamentos da interatividade, ressaltando que não são estanques e que não podem ser considerados como únicos, mas que nos ajudam a pensar sobre interatividade. São eles os binômios: participação-intervenção; bidirecionalidade-hibridação; permutabilidade-potencialidade. De acordo com ele, a interatividade é a “possibilidade libertadora da autoria do usuário sobre sua ação de conhecer” (2010b, p. 45). Este autor destaca três características que fundamentam a interatividade, a partir dos seguintes binômios: a) bidirecionalidadehibridação que é a comunicação feita a partir do consenso de que não se pode mais separar o emissor e o receptor. Baseia-se na troca entre estes polos, onde cada um assume o papel do outro, não havendo mais distinções; b) participação-intervenção permite que o usuário participe do processo de produção; e c) potencialidade-permutabilidade é a liberdade de navegação sem pontos fixos de saída ou chegada, ou seja, a possibilidade do usuário em decidir o que acontece no monitor. Silva (2004) propõe que a comunicação seja pensada contemplando o primeiro binômio bidirecionalidade-hibridação, ou seja, considerando que há emissor e receptor e agindo de forma a possibilitar uma comunicação onde “todo emissor é potencialmente um receptor e todo receptor é potencialmente um emissor” (p. 8). Para ele toda a comunicação é, a priori, bidirecional, pois é a “troca entre codificador e decodificador sendo que cada um codifica e decodifica ao mesmo tempo” (2004, p. 8). Com o terceiro binômio, potencialidade-permutabilidade, Silva defende que o PC e o CD-ROM trazem muitas informações “permitindo ao usuário ampla mobilidade para fazer múltiplas conexões ou permutas em tempo real”. (2004, p. 8). Para buscar informações nestes dois lugares, o usuário não precisa seguir uma sequência, podendo de forma aleatória, clicar em qualquer ponto, não havendo pontos intermediários. Segundo ele, o que faz o PC e o CD interativos é a “liberdade diante das informações armazenadas” (2004, p. 9) neles. Com potencialidade ele quer dizer que há potencial por causa da enorme quantidade de informações instantâneas e com permutabilidade ele traz a liberdade que temos ao combiná-las. 62 Diante desse equipamento é o usuário quem decide o que vai acontecer no monitor. Ele tem diante de si uma tecnologia capaz de produzir uma narrativa também potencial e permutativa, uma tecnologia capaz de produzir narrativas possíveis. Dependendo do que ele fizer acontecer, novos eventos ou combinações podem ser desencadeados. Então ele mesmo não sabe o que vai acontecer. Depende da conexão que fizer a cada momento. Depende do acaso. (SILVA, 2004, p. 9) Silva afirma que a imagem digital requer uma nova dimensão comunicacional “aquilo que define o digital como peculiar disposição comunicacional é precisamente a condição de hipertexto essencialmente interativo” (2010b, p. 83). Sendo assim, defende que para além de compreendermos a interatividade temos que entender que é necessário haver uma nova forma de comunicação, aquela que permite a participação-intervenção do interlocutor e não entender a comunicação como aquela que transmite. Para exemplificar, Silva (2004, p. 85) nos traz o quadro abaixo. A COMUNICAÇÃO38 Modalidade unidirecional MENSAGEM: fechada, imutável, linear, sequencial. EMISSOR: “contador de histórias”, narrador que atrai o receptor (de maneira mais ou menos sedutora e/ou por imposição) para o seu universo mental, seu imaginário, sua récita. RECEPTOR: assimilador passivo Modalidade interativa MENSAGEM: modificável, em mutação, na medida em que responde ás solicitações daquele que a manipula. EMISSOR: “designer de software”, constrói uma rede (não uma rota) e define um conjunto de territórios a explorar; ele não oferece uma história a ouvir, mas um conjunto de territórios a explorar; ele não oferece uma história a ouvir, mas um conjunto intricado (labirinto) de territórios abertos a navegações e dispostos a interferências, a modificações. RECEPTOR: “usuário”, manipula a mensagem como coautor, cocriador, verdadeiro conceptor. A fim de explorar mais um pouco o conceito de interatividade vivenciado em campo, apresento duas observações que aconteceram em dias diferentes, mas que trazem conversas 38 Cabe ressaltar que Silva traz essa discussão para a construção de seu objetivo que é o de debater a interatividade em sala de aula. Sendo assim, ele está buscando facilitar ao professor um novo olhar sobre sua prática diária, sem deixar de reconhecer, em seu texto, que as características da leitura mudaram e que o professor deve, para além de conhecer e adotar a modalidade interativa, não invalidar o paradigma clássico que tem o seu valor e destaque em sala de aula. 63 sobre o mesmo site. Neste as crianças podem criar um joguinho do Ben 1039, dentro de opções pré-estabelecidas. Mas, também, sabemos que o desenvolvimento de um jogo não é algo tão simples, então a opção encontrada pelos criadores do jogo foi a de possibilitar a criação de uma fase a partir de elementos previamente disponibilizados (inimigos, caminhos, cores, poderes). Para melhor exemplificar, posso fazer uma aproximação: é como se o jogador tivesse que arrumar uma sala e para isso o jogo disponibilizasse algumas opções de móveis e decorações necessárias para que o jogador escolhesse a sua combinação preferida. A oportunidade de criar ou cocriar deixando sua marca on-line, já que sua opção de fase pode ser aprovada e ficar on-line para outros jogadores, é uma característica que aproxima este site da interatividade e da Web 2.0. Pois, “na perspectiva da interatividade é preciso que o suporte informacional disponha de flexibilidade e disponibilize disposições para a intervenção do usuário” (SILVA, 2010b, p. 132). a) Joana – Samuel, você já pensou em fazer algum jogo assim, alguma vez? Samuel – Aã? Como assim fazer? Joana – Inventar um jogo desses. Samuel – Ué, eu já inventei. No computador do jogo do Ben 10. Joana – Dá para inventar? Mas, não é na internet, né? Samuel – Aã? Como assim? Joana – Que aqui a gente tá na internet, não tá? Samuel – Tá. Joana – E o do Ben 10 é onde, é no DS? Samuel – Ah, não. É na internet sim. Joana – Depois você me mostra esse que dá para fazer? Samuel – É igual aquele do Ben 10 que a gente estava jogando. b) Vinícius fez o jogo, mas não consegue jogar direito nele. Vou explicando para eles o que deve ser feito. Vamos vendo e conversando juntos sobre o que deve ser feito. Samuel fica jogando o jogo que o Vinícius criou e consegue vencer. Depois de um tempo Vinícius continua jogando. Lucas fala: Lucas – Caraca, é muito fácil. Eu colocaria uma daquelas moedinhas que desaparecem. Joana – Ah, é verdade, ía ficar mais difícil o jogo, né? 39 http://ben10gamecreator.cartoonnetwork.com/ 64 Lucas – É. Joana – Já que não tem alienígena pra matar... Lucas – E também colocava uns 3 alienígenas. Imagem 3 – Jogo do Ben 10 em que podemos criar uma fase. Outro conceito referente aos estudos da cibercultura e que apareceu em campo foi o de “leitor imersivo”. Este conceito, cunhado por Santaella (2004), nos ajuda a compreender algumas questões vivenciadas em campo durante a pesquisa. Entretanto, primeiro precisamos entender que a palavra leitor utilizada pela autora, transcende ao seu uso habitual: para além de um leitor de “letras”, de palavras, devemos pensar em um leitor de imagens, do cinema e da TV, ou seja, um leitor para além daquele que lê livros: [...] “visto que as habilidades perceptivas e cognitivas que eles desenvolvem nos ajudam a compreender o perfil do leitor que navega pelas infovias do ciberespaço, povoadas de imagens, sinais, mapas, rotas, luzes, pistas, palavras, textos e sons” (SANTAELLA, 2004, pp. 16-17). A autora justifica essa nova forma de entendimento do que seja um leitor, trazendo as modificações que a leitura vem sofrendo há décadas para além do ciberespaço. Essa modificação é ainda mais clara se pensarmos no próprio livro infantil que, muitas vezes, conta 65 com imagens, facas (imagens que saltam do livro), sons, texturas etc. Ou seja, não foi o ciberespaço que modificou a leitura que, neste momento, se apresenta de diversas formas em diversas plataformas. O ciberespaço proporciona mais uma forma de leitura e, consequentemente, outros tipos de leitores. Sendo assim a autora classifica o leitor em três tipos: [...] contemplativo – leitor da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa; movente – leitor do mundo em movimento, dinâmico, mundo híbrido [...]; imersivo – que começa a emergir nos novos espaços incorpóreos da virtualidade (SANTAELLA, 2004, p. 19). Para esta dissertação, não interessa trazer uma discussão acerca dos três tipos de leitor levantados por Santaella (2004), mas sim a caracterização do leitor imersivo, pois foi uma experiência que vivenciei em campo. O leitor imersivo é aquele que aparece com a digitalização da informação e que vai conectar-se entre os nós e os nexos ao navegar pela tela, num roteiro multilinear. Dentre as especificidades do leitor imersivo estão a interatividade e as transformações sensórias, um agir física e mentalmente: “não há mais tempo para contemplação” (SANTAELLA, 2004, p. 181). Além de situar as características deste leitor imersivo, a autora nos traz os estilos de navegação que o acompanham: o errante, o detetive e o previdente. Ela descreve cada modo de navegar da seguinte maneira: O errante é aquele que navega utilizando o ponteiro magnético do seu instinto para advinhar. (...) Enfrenta a sua tarefa como quem brinca, explorando aleatoriamente o campo de possiblidades aberto pela trama hipermediática com o desprendimento que é típico daqueles que não temem o risco de errar (...) não traz consigo o suporte da memória, pois navega como quem percorre territórios ainda desconhecidos e, por isso mesmo, surpreendentes. O detetive é aquele munido de uma memória operativa aguçada movimentase no campo. (...) Suas estratégias de busca são acionadas mediante avanços, erros e autocorreções. Seu percurso caracteriza-se, portanto, como um processo auto organizativo próprio daquele que aprende com a experiência. O previdente (...) é aquele que, tendo já passado pelo processo de aprendizagem, adquiriu tal familiaridade com os processo informacionais (...) que é capaz de antecipar as consequências de cada uma de suas escolhas. (SANTAELLA, 2004, pp. 178-179) Na transcrição abaixo, apresento um momento bastante comum durante a pesquisa: percebi que as crianças não faziam nenhuma questão de ler as instruções dos jogos, mesmo dos que não conheciam ainda, o que nos faz querer classificar o tipo de leitura imersiva que 66 vivenciei: as crianças, nos exemplos abaixo, poderiam ser qualificadas como leitores imersivos errantes, pois se recusam a ler previamente o que é para fazer, buscando adivinhar qual o melhor caminho, quais teclas devem ser usadas no jogo etc. a) Vinícius, Lucas e Samuel estão na minha casa jogando Ben 10. Eles começam a tentar descobrir o que deve ser feito. Neste momento, Lucas assume o controle do jogo, já que Vinícius não está conseguindo fazer nada. Joana – Ali em cima estava explicando como é que faz no jogo. Vocês não querem ler, não? Em silêncio, completamente concentrados no jogo, fazem que não com a cabeça. Joana – E como vocês sabem? Preferem descobrir a ler? Os três fazem que sim com a cabeça, ainda sem responder com palavras b) Camila está no site Papa Jogos. Ela escolhe um jogo e eu pergunto o que tem que fazer. Ela responde que não sabe por que nunca jogou. Joana – E você não tenta ler as coisas? Você já sabe ler, né? Camila – Eu sei o que é para fazer: é para clicar. Joana – Mas, e por que você não tenta ler? Você não gosta? Camila – Não, é muito cansativo. Fugir da armadilha positivista de querer encaixar os meus interlocutores em algum destes tipos de navegação não é um desafio fácil, pois toda uma tradição científica nos empurra para isso. Entretanto, Santaella (2004) alerta que, em sua pesquisa, ela constatou que mesmo os internautas mais experientes podem apresentar um estilo errante de navegação. Entretanto, a partir das minhas observações, posso afirmar que muitas vezes as crianças variavam entre os níveis dependendo, principalmente, do seu conhecimento prévio sobre o site ou se o mesmo oferecia alguma estrutura semelhante a outros já acessados. Cabe ressaltar que esta concepção de leitor imersivo, ao destacar uma forma de leitura que envolve todos os sentidos, ajuda na compreensão da situação debatida no capítulo anterior: como pesquisar e jogar ao mesmo tempo? A cibercultura cria formas culturais de se relacionar, de brincar, de viver, que são atravessadas por uma lógica que é trazida pelas tecnologias digitais. As crianças quando jogam esses jogos operam com lógicas que não apareciam nos jogos convencionais e isso traz uma mudança de pensamento, de atitude, uma mudança em relação ao objeto físico e em 67 relação ao uso desse objeto. Elas têm um modo diferente de lidar com isso e mesmo o que acontece entre elas enquanto elas compartilham o uso é atravessado por uma lógica de pensamento que vem da cibercultura: quando a criança que está assistindo outra jogar dá uma dica, por exemplo, ela está participando do mesmo modo de pensar, aprendida no jogo online. De acordo com o que foi exposto, compreendendo que os sites voltados para o público infantil estão inseridos neste contexto, surgem algumas questões: os sites infantis acompanham a evolução da Web? As crianças têm espaço para marcar suas produções nela? Há sites feitos por crianças? Sarmento (on-line, 2006) nos ajuda a refletir sobre a última questão quando ao relatar as conclusões a que chegou em sua pesquisa “Os saberes das crianças e as Interações na REDE”, concorda que a Internet ainda é território produzido por adultos para crianças e raramente pelas crianças para elas, sendo raros e insignificantes os sites produzidos por elas. Ao ler esta constatação de Sarmento me senti instigada a pesquisar no site de busca Google a expressão “sites produzidos por crianças” ou “sites feitos por crianças” e pude confirmar a afirmação do autor: na primeira página dos resultados não achei quase nenhum site, apenas listas de sites para ou sobre crianças. Procurando mais achei um fórum em que um tópico40 de 2009 convidava os participantes a postarem links de sites que eles tivessem produzido quando eram crianças. Muitos participantes postaram links de sites que dizem ter produzido com 8 anos, mas não consegui acessar nenhum. Uma matéria de 2011 disponibilizava uma lista dos 10 sites mais feios e apresentava como um argumento para justificar a escolha destes: “Porém, mesmo com essa grande quantidade de informação gratuita, muitas vezes encontramos na Internet endereços que mais parecem feitos por crianças em suas primeiras aulas de desenho41.” Outro resultado encontrado foi um blog42 que diz ser “de gente pequena feito para gente grande”. Havia entendido que era um blog feito por uma criança, mas não é. Procurando no blog achei um comentário de um menino que dizia ter 7 anos e que fazia um blog com a ajuda da mãe, mas ao entrar no blog eu fui alertada pelo antivírus de que continuar navegando ali não era seguro. Ao pesquisar no Google “blog feito por crianças” e “blog de criança” consegui achar alguns exemplos de blogs que hipoteticamente são elaborados por 40 http://www.teamfortress.com.br/forum/viewtopic.php?f=4&t=4454&view=next 41 http://www.grupochapeco.com/portal/entretenimento/Variedades/Curiosidades/2652_Top_10_os_sites_brasileir os_mais_feios_da_atualidade.html 42 http://criancagenial.blogspot.com/ 68 crianças. Alguns deles estavam inativos, com postagens bem antigas 43, mas alguns estavam bem atualizados44. Ainda pesquisando encontrei um site de um professor do Texas que ensina crianças a fazer sites45 em HTML e vende um DVD com que, segundo ele, as crianças podem aprender a fazer. Ele disponibiliza algumas criações de seus alunos 46. Também encontrei um site47 de uma escola do Reino Unido em que as crianças colocam histórias e poemas em sites criados por elas. Assim percebemos que, a princípio, é bastante complicado encontrarmos sites feitos por crianças, pelo menos a partir dessa forma convencional de buscar e tendo por referência essa forma de classificação, surgindo a questão para reflexão: como identificar se um site foi feito ou não por uma criança? Que tipo de indexadores as crianças utilizam ao criar seus blogs e sites? A respeito desta constatação e de tudo o que foi exposto, Sarmento (2006) nos traz uma importante reflexão: há uma dualidade entre as culturas infantis e da sociedade e é a partir da intervenção criativa das crianças sobre os sites produzidos pelos adultos para elas, que elas integram os mesmos às suas culturas de pares. Esta criação para além do que os realizadores imaginaram não pode ser reconhecida como tendo uma forma única, homogênea, ou seja, não quer dizer que todos os usuários subverterão o que está posto da mesma maneira. Por isso, cabe ressaltar que a investigação desenvolvida se refere a um grupo peculiar de crianças e suas formas específicas de usos dos sites. Algumas reações esboçadas durante a observação que fiz demonstram que os produtores dos sites não as previram, gerando desvios que “não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem” (CERTEAU, 1994, p. 45). Estas ‘maneiras de fazer’ são as ‘táticas’ que elas criam para se relacionar com os sites, para criar além do que está previsto por quem os produziu. Trarei algumas dessas situações no capítulo 4. Testemunhar as crianças entre seus pares, em momentos de socialização, foi uma possibilidade de validar suas experiências de forma própria e autônoma, entendendo que suas ‘maneiras de fazer’, suas ‘táticas’ criadas são parte desse mesmo processo de socialização que tive oportunidade de compartilhar com as crianças e suas famílias. A minha pesquisa, que intentou observar os usos que as crianças fazem dos sites, me trouxe a possibilidade de valorizar o que as crianças dizem e não apenas o que eu queria 43 http://cantinhodafantasia.zip.net/ http://coisasdemeninojoao.blogspot.com/ 45 http://www.webdesignforkids.net/index.html 46 http://foundation.webdesignforkids.net/Jacob/Jacob.html e http://foundation.webdesignforkids.net/Archie/Archie.html 47 https://sites.google.com/a/robinhoodschool.co.uk/c-k-s-poetry/ 44 69 ouvir, pois tinha poucas questões pré-formuladas sobre eles. Eu conhecia alguns sites acessados pelas crianças como Club Penguin e Discovery Kids, por exemplo, mas o que eu queria descobrir? A minha grande questão era saber como elas se relacionavam com os sites, portanto, fui à campo com a ideia de assistir, de conhecer mais, de me familiarizar com os sites que elas usavam, de conhecê-los melhor para tentar captar porque as crianças demonstravam tanto interesse por eles. Por isso, ao descobrir os interesses das crianças e como as relações aconteciam busquei a partir daí elaborar e construir as categorias, tentando deixar que elas trouxessem categorias para mim e não o contrário. Posto isto, procurei valorizar “a produção cultural das crianças, nos contextos de pesquisa, e particularmente à sua forma de falar sobre suas próprias experiências” (GIRARDELLO, 2009, pp. 19-20). Investigar o cotidiano está para além de tentar compreender como os objetos do cotidiano são representados, pois assim como Alves (2001, p 21), acredito que para conhecêlo devemos partir [...] de questões muito amplas e de um total envolvimento com os sujeitos do cotidiano, pois só assim conseguirei entender o que o “usuário” destes espaçostempos “fabrica” com os objetos de consumo a que tem acesso e que redes vai tecendo no seu viver cotidiano, que inclui pessoas e objetos. (grifo da autora) O conceito de usos, atrelado à pesquisa no cotidiano, bem como alguns conceitos da cibercultura também serão utilizados buscando compreender como se dá a relação das crianças com o aparato técnico computador. Afinal, para investigar como as crianças usam os sites, foi preciso descobrir algumas coisas anteriores, por exemplo: quem tem computador com acesso à Internet em casa, em que momentos ele usam o computador, quando aprenderam a usar, se usam sozinhos, como alternam o brincar no computador com o brincar na Vila, etc. 70 2.2 A Vila Conforme relatado no capítulo anterior, fiz uma roda de conversa em minha casa com as crianças que seriam minhas interlocutoras com o intuito de explicar os objetivos do meu estudo e de fazer algumas perguntas sobre a relação deles com o computador. Neste dia, fiz pipoca e suco tentando deixá-las à vontade e também com o intuito de agradá-las, tornando aquele momento não muito formal. Durante a conversa elas questionaram o fato de eu estar gravando e mostraram alguma apreensão em relação a isso e após eu explicar que não estava, naquele momento, interessada em filmar os rostinhos deles, mas em capturar a voz, eles logo pareceram esquecer. A filmagem dura 30 minutos e após conversarmos sobre o assunto específico para o qual eles estavam em minha casa, aos poucos eles foram indo embora. Ressalto que tentei fazer tudo de forma mais natural possível, recebendo-os como quem recebe visitas em casa e que por isso eu não os dispensei após acabarmos a conversa, deixando-os à vontade para irem embora quando quisessem. Eles quiseram ver televisão e comer mais pipoca, desejo prontamente atendido. Ainda neste dia, Camila (uma das meninas que participaram) deu a ideia de eles fazerem desenhos o que foi prontamente acatado. O mais peculiar deste pedido de Camila é que ela comparou aquele momento que vivemos com as atividades da escola: disse ela que na escola quando eles acabam uma atividade de conversa ou televisão a professora pede para eles fazerem um desenho. Mais curioso ainda é que, conforme trago abaixo, Camila ainda não frequentava a escola à época da nossa conversa e esta sua fala, provavelmente, pode ser explicada pelo fato de sua avó ser professora aposentada. Faz-se necessário recordarmos quem são as crianças e também é interessante que o leitor se aproxime um pouco mais da vida delas, ou seja, é necessário trazermos o contexto em que os sujeitos estão inseridos, pois este nos mostra um conjunto da realidade da criança e “as condições sociais que moldam a vida familiar” (KINCHELOE, 2004, p. 56), nos permitindo compreender melhor o seu universo. Contextualizar a realidade dos interlocutores, nesta pesquisa, também se mostra importante pelo fato de eu participar do mesmo universo que elas. Ressalto que as informações48 descritas a seguir foram colhidas das falas das crianças, de conversas com os pais e da minha observação. 48 Estas informações referem-se à época em que realizei a pesquisa (janeiro de 2011). 71 A Vila Residencial em que a pesquisa foi feita está situada no bairro do Catete, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que é considerado um bairro de classe média à alta. A Vila conta com 20 casas geminadas que variam entre 1 e 4 andares, todas com varanda e algumas com terraço no piso superior. Há uma quantidade quase igual de casas alugadas e casas onde quem reside é o proprietário. A maioria dos moradores é composta por idosos ou pessoas que tem família com filhos, também é comum que os moradores tenham algum animal de estimação. A rotatividade dos moradores não costuma ser grande e mesmo os que moram de aluguel estão aqui há no mínimo 4 anos (eu fui a última moradora a chegar, em 2009). Há espaço livre e estacionamento para os carros. As informações sobre a Vila fazem parte da contextualização do local com o intuito de ampliar a visão do leitor. Imagem 4 – Metade da Vila desde a entrada. Imagem 5 – Outra metade da Vila com o final ao fundo. Imagem 6 – A varanda da minha casa, que como muitas outras, foi dividida pelo proprietário em 2 apartamentos. Eu moro no térreo e o outro inquilino nos dois andares acima. A minha casa é a que está com a porta aberta. 72 Conforme podemos analisar nas imagens, há bastante espaço livre para circulação. É neste espaço que as crianças costumam brincar por mais tempo. As brincadeiras variam de jogos com bola, pique-pega, pique-esconde, brincadeiras com brinquedos variados, conversas, andar de skate etc. As casas que não possuem grades na varanda são as mais utilizadas, contudo, nem todos os moradores concordam ou gostam que as crianças utilizem estes espaços. As crianças costumam brincar em grupos e, além das que moram aqui, há as que vem visitar as avós e juntando esses dois grupos, temos um total de 11 crianças que frequentam o espaço da Vila. A relação entre as crianças é de amizade, porém, elas podem se dividir por faixas etárias e gênero. Desta forma, é comum vermos grupinhos de pré-adolescentes conversando e crianças brincando. Entretanto, não é impossível que eles brinquem juntos, sendo as brincadeiras preferidas nestes momentos, as que envolvem o pique-pega: a mais realizada é a da “rua” em que o grupo fica em um lado da “calçada” (a varanda do meu vizinho de frente) e tem que desviar de um pegador até chegar à minha varanda. Este pegador está “na rua”, ou seja, no meio da Vila. Quem for pego assume o papel de pegador. Conforme já foi dito, a movimentação de crianças à minha varanda é bem grande e isso foi mais um facilitador da minha aproximação com elas. Todavia, cabe ressaltar que muitos adultos não toleram as bagunças das crianças e algumas vezes, as brigas entre os responsáveis, pode afastá-las do convívio umas com as outras por um período. Mas, geralmente, elas voltam a brincar juntas apesar dos responsáveis não terem uma relação próxima. Importante dizer que as crianças, com raras exceções, passam a maior parte do tempo sozinhas na Vila. Este fato acaba trazendo situações específicas: quando fazem alguma “bobagem” na frente da casa de um vizinho o mesmo chama a atenção das crianças e, quando necessário, queixa-se ao responsável; as situações em que as crianças sujam o espaço comum com suas brincadeiras e vão embora sem limpar nada são frequentes e motivo de muita reclamação entre os vizinhos; jogar futebol é praticamente proibido por muitos motivos: ou as crianças podem quebrar algo da varanda de alguém, ou algo do espaço comum, ou estragar um carro, ou mesmo, são acusadas de danificar os portões; muitas vezes elas ficam até tarde brincando e, consequentemente, falando alto ou mesmo gritando, ocasionando transtornos para muitos vizinhos. Esses acontecimentos fazem com que muitos vizinhos vejam as crianças como “personas non gratas”, percebendo-as como um estorvo para a tranquilidade da Vila. Há 73 vizinhos que não podem ver as crianças chegando perto de suas varandas para que reclamem, há outros que temem que elas se aproximem de seus carros e há ainda os que, por não aturar de forma alguma o barulho, fazem de tudo para que elas não fiquem em suas varandas, sendo que um vizinho especificamente, coloca bastante creolina em sua varanda, de forma que se torne insuportável ficar perto da mesma. Apesar de achar que alguns vizinhos exageram em suas reações em relação às brincadeiras das crianças, compreendo que muitas vezes elas parecem querer extrapolar todos os limites da boa convivência e entendo que a falta de supervisão dos pais e responsáveis pode ser o maior gerador destas tensões. Muitos pais tem o costume de deixar as crianças brincando por horas na Vila sem se preocupar onde elas estão ou o que estão fazendo. Não é raro vermos um responsável batendo de porta em porta ou mesmo gritando pela Vila atrás de seu filho. Não quero, com este relato, criticar esta postura dos pais, até por que percebo como as crianças gostam desta liberdade e, a meu ver, “aprontam” bem menos do que qualquer adulto esperaria sabendo deste contexto, desta liberdade. Inclusive, esta liberdade deles, para mim, foi um facilitador da nossa relação: muitas vezes eu conversei com eles na minha varanda, ajudei a mediar conflitos, cuidei de um machucado mais superficial, propus brincadeiras e brinquei com eles. Cabe dizer que a premissa de mediação dos conflitos entre eles, mostrou-se no campo também, o que discutirei mais à frente. 2.3 Os interlocutores Os irmãos Luíza (11 anos), Lucas (8a) e Vinícius (5a) moram com os pais, uma irmã mais velha (19a) e a avó materna em uma casa com 4 andares e que é alugada. A mãe deles é empresária e tem uma loja que vende produtos artesanais na Região Serrana do Rio de Janeiro. O pai trabalha com computador49. Os meninos e Luíza estudam em uma escola particular católica do bairro. A irmã mais velha estuda em uma escola pública federal. Há uma empregada doméstica que trabalha na casa de segunda à sexta. Por causa do trabalho da mãe, constantemente a família viaja para a Região Serrana onde mantém uma casa própria. 49 As crianças não souberam precisar exatamente o que ele faz e nunca tive a oportunidade de conversar com ele. 74 Camila (5a) mora com a mãe no primeiro andar da casa, de 3 andares, que é da família. A mãe de Camila não trabalha fora e é responsável por cuidar da casa e ajudar sua mãe a cuidar da casa da família. A avó, que é professora aposentada, um tio (filho temporão que está na faculdade) e a bisavó dela ocupam os outros dois andares. Ela ainda tem um tio (que é o filho mais velho) que não mora na casa, mas sempre vem visitar a família. Camila tem um irmão mais velho (24a) que mora em Brasília. A renda da família é composta pela aposentadoria da avó e pelo aluguel de alguns imóveis que a família possui na zona norte da cidade. Samuel (8a) mora com os pais, a irmã mais velha (20a) e a avó materna em uma casa alugada de 3 andares, dos quais o primeiro é ocupado pela proprietária. A mãe não trabalha fora e cuida da casa e a de sua mãe. O pai dele já exerceu algumas profissões50 (trabalhou em hospital, no judiciário e como professor). 2.4 Achados da conversa inicial Ele não aprendeu. Ele sabe, já consegue. Ele já nasceu sabendo. Lucas Na conversa inicial, em janeiro de 2011, descobri que todas as crianças possuem computador com acesso à Internet em suas residências. Samuel disse ter um laptop só para ele e em sua casa há ainda mais dois computadores: um do pai (laptop) e um da irmã mais velha (desktop), sendo que nem sua mãe, nem a avó (que mora com eles) utilizam computador. Os laptops ficam na sala quando em uso, e são guardados dentro de um armário, já o desktop da irmã fica em seu quarto. Por possuir seu próprio laptop, Samuel aparenta, ao restante do grupo, ter maior liberdade de acesso ao computador, apesar de ele alegar que só usa para jogar e somente quando autorizado pela mãe. Ter o seu próprio laptop parece conferir a ele um certo status frente aos demais: 50 Samuel não soube explicar qual é a profissão que seu pai exerce no momento. 75 Joana – E você Samuel? Quando você pode usar o computador? Lucas – Ele pode usar a toda hora! (meio revoltado). Samuel – Quando a minha mãe deixa, às vezes. Lucas – Mas, você usa toda hora o seu? Samuel – Toda hora não. Joana – Mas, quando você mais usa, Samuel? Samuel – É... quando eu quero jogar. Lucas – O (computador do) Samuel é legal por que é dele. Samuel disse que fica sozinho no computador, sem adultos por perto, e que prefere assim, sem amigos ou adultos e também não se recorda como aprendeu a utilizá-lo, o que causa em Lucas mais uma reação de admiração quanto à autonomia de Samuel, conforme mostra este outro trecho: Joana – E você Samuel, lembra como aprendeu a usar? Samuel faz que não com a cabeça. Lucas – Ele não aprendeu. Ele sabe, já consegue. Ele já nasceu sabendo. No caso dos irmãos (Vinícius, 5, Luiza, 11, e Lucas, 8), eles fazem uso dos laptops do pai e da mãe, sendo que usam mais o da mãe, já que o do pai é utilizado para o trabalho, ficando menos disponível. Os laptops ficam no escritório, na sala ou no quarto dos pais e todos da família utilizam inclusive a avó que mora com eles. Os irmãos só podem usar o computador com a autorização da mãe e se nenhum outro adulto estiver utilizando. Joana – E quando vocês podem usar o computador? Luiza – Quando não tem ninguém mexendo. E quando minha mãe deixa. Mas, o computador do meu pai é de trabalho dele e aí ele só deixa algumas vezes. Joana – Não pode usar? Luiza – Pode, só que só raramente. Nesta fala percebemos o lugar do brincar e do trabalho: usar o computador para trabalhar é o que os adultos fazem e as crianças que querem jogar, escutar música ou navegar livremente não tem preferência de uso. O lugar da criança no computador é o de quem vai brincar que em contrapartida com o trabalho, perde em importância. E as próprias crianças 76 lidam com isso de forma normal, naturalizando esse lugar: o trabalho é mais importante do que o lazer. Provavelmente, se a necessidade de utilizar o computador for para fazer um trabalho escolar, haverá maior liberdade de uso e até incentivo pelos pais. Cabe ressaltar que as crianças não trouxeram o uso do computador para pesquisas e trabalhos escolares. Sarmento (on-line [2012]), ao trazer a ludicidade como um dos princípios geradores e uma das regras das culturas da infância, aponta essa dicotomização entre trabalho e brincar: Brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas atividades sociais mais significativas. Porém, as crianças brincam, continua e abnegadamente. Contrariamente aos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério. Em outro momento da pesquisa, Lucas nos mostra novamente como o lugar da criança na relação com o computador pode ser o de não atrapalhar o trabalho, neste caso, ele é levado para o computador para não atrapalhar o trabalho da mãe. Lucas – Eu já joguei no Animakids. Meu pai me deixa lá algumas vezes por que eu não posso ficar na loja da minha mãe se não eu posso atrapalhar. Joana – Ele deixa onde? No Animakids? Que é isso? Lucas – É um lugar onde pode brincar, tem um computador e pode jogar. Lucas pode ficar sozinho no computador, mas Vinícius ainda não consegue e, por isso, sempre há alguém com ele: a mãe, o pai ou um dos irmãos. Vinícius diz que gosta de usar o computador com o irmão, mas que prefere sozinho. Já Lucas diz que gosta de usar sozinho, porque usando junto tem que ficar esperando o outro acabar. Diz que aprendeu a usar o computador com a irmã mais velha, e que depois foi aprendendo mais ao ficar mexendo no computador da mãe. Nas palavras dele: Antes eu não sabia mexer no computador, agora eu sei mexer em todos. Camila tem um desktop na sua casa que fica em um quarto separado. Ela diz: “É... Fica no quarto do computador. Pode chamar de quarto do computador que eu tenho dois quartos: um de dormir e o outro de computador.” Ela acharia mais legal ter um laptop51 já que poderia levar para onde quiser. Ela diz que todo mundo que conhece usa o computador de sua casa e que, também ela, pode usá-lo quando quiser, sem ter que pedir para a mãe, desde que o mesmo não esteja sendo usado. Ela diz que fica sozinha no computador, pois sua mãe 51 Acredito que essa fala se deva ao fato de seu irmão, que mora em Brasília, possuir um laptop que traz para o Rio quando vem visitá-las. 77 tem muita coisa para fazer. Diz também que procura sozinha novos jogos e conta que aprendeu a usar o computador com a mãe. A questão de Camila saber usar o computador sozinha, acaba surpreendendo Lucas que comenta: Joana – Camila, você fica sozinha no computador? Camila – Ah... Fico. Lucas – Caraca, mais inteligente do que o Vinícius. Ela (Camila) é mais inteligente do que ele (Vinícius). Esta surpresa vem do fato de Vinícius e Camila terem a mesma idade e apenas ela saber mexer no computador sozinha. Um fator que ajuda Camila em sua relação com o computador é o fato de ela já saber ler e de sua mãe a deixar sozinha no computador, favorecendo sua autonomia em comparação a Vinicius. Em outros momentos veremos como o Vinícius é colocado em um lugar de quem não sabe e, muitas vezes, menosprezado por não ter as habilidades necessárias pelas outras crianças durante os jogos. A questão do saber jogar é um status que se estabelece na relação das crianças. Muitas vezes Vinícius é menosprezado simplesmente por ser o menor e não só por não saber jogar. Entretanto, pode ser valorizado por conseguir vencer algum obstáculo do jogo. A questão do status em relação ao tamanho ou idade foi constatada por Flavia Motta em sua dissertação de mestrado, em que ela descobriu que esta é uma categoria importante para as crianças. “Ao identificar-se como “de uma série” ou idade, a criança estabelece parâmetros para sua ação, define grupos de afinidades, conceitua o que acha inadequado para sua faixa etária, enfim, define alguns critérios que facilitam sua inserção social” (2007, p.102). As perguntas feitas foram importantes para que eu pudesse contextualizar a relação das crianças com o computador e foram introdutórias para outras questões: Quais sites vocês gostam? O que vocês fazem quando os acessam? E qual é o favorito? Em resposta à primeira pergunta, as crianças citaram muitos sites: Discovery Kids, Papa Jogos, Club Penguin, Batle force 5, Friv, jogos do Ben 10, MSN, Orkut, Cartoon etc. Obtive como resposta à segunda pergunta que o que eles fazem ao acessar estes sites é jogar, e foi o que fizemos durantes os nossos encontros a partir daqui. Elas não perguntaram algo mais específico sobre a pesquisa em si e o interesse delas se deteve no tema sobre o qual conversávamos. Creio que elas tenham gostado tanto da ideia de conversarmos sobre um assunto tão atrativo que nem se preocuparam com mais nada. Afinal, eu, uma adulta, estava demonstrando: [...]” uma curiosidade real por algo que para 78 as crianças tem um grande valor simbólico, num quadro que tende a facilitar o diálogo entre pesquisador e informante” (GIRARDELLO, OROFINO, 2002, p. 5). Porém, é necessário termos em mente que o interesse das crianças pelo tema não significa que elas não terão atitudes e respostas às quais acham adequadas ao contexto, ou seja, isso não significa que estarão deixando de desempenhar papéis, inerentes ao jogo da interação social (idem, p. 5). O questionamento sobre o site favorito levantou dois assuntos interessantes, o primeiro, descrito no diálogo abaixo, é a dificuldade encontrada por Lucas em estabelecer somente um como favorito: Joana – Agora eu quero saber qual é o site favorito, aquele que vocês mais amam. Samuel – Hot Wheels Batle Force 5. Lucas – Só que eu tenho dois, Club Penguin, não eu tenho três: o Friv, o Club Penguin... Luiza (interrompendo o Lucas) – Não! Tem que ser o favorito, o preferido, só tem um. Lucas – Então é Hot Wheels Batle Force 5. A segunda observação interessante, e que só foi percebida por mim após a transcrição do campo, foi o fato de os meninos nunca terem acessado o site escolhido por eles como o favorito durante os encontros. Ao perceber isso perguntei por que eles achavam que isso havia acontecido. Esta possibilidade de retorno a campo foi uma particularidade da minha pesquisa, pois as crianças estão sempre brincando na Vila e não demonstram aborrecimento em responder as minhas perguntas. Esse retorno para novas perguntas foi feito outras vezes. Nós conversamos na minha varanda. Joana – Eu perguntei qual é o site favorito de vocês, o que vocês mais gostam. Aí vocês... (sou cortada por Lucas) Lucas – Sim! Club Penguin! A minha mãe vai, talvez, me deixar ser assinante. Samuel – O meu eu mudei agora. O meu eu pesquisei jogo de quebrar computador. É ficar clicando no computador aí o cara fica dando soco. Lucas – Eu tenho 3. Aquele do Ben 10, Club Penguin e Friv. Samuel – Ah, Friv eu também gosto. 79 Joana – Sabe qual vocês me falaram que a gente acabou não jogando e eu queria saber por que: Hot Whells Battle Force Five. Lucas – Ah! Eu gosto também! Samuel – Eu já joguei! Joana – Mas, aqui em casa a gente não jogou, por quê? Vocês nem lembraram... E como é que ele era o favorito? Muda o favorito? Samuel – Eu mudei. Lucas – Algumas vezes muda. Joana – Como é que muda o favorito? Porque que muda? Porque que deixa de ser favorito o site? Lucas – Por que enche o saco. Algumas vezes. Samuel – Fica jogando toda hora aí começa a ficar sem graça. Sendo assim, fica a pergunta: a criança precisa ter “um” site favorito? Da mesma forma como as brincadeiras mudam de acordo com a idade, o local, as opções, variando entre muitas favoritas, ele também muda. Basta lembrarmos nossa infância para percebermos como experimentamos muitas brincadeiras. No meu caso foi assim e as brincadeiras preferidas variavam de acordo com muitos aspectos: brincava de boneca com minha amiga, de boneco e boneca com meu irmão, de pique com os amigos do prédio, de muitas outras coisas na casa de praia e não me lembro de ter amado mais uma brincadeira do que outra. Porém, é interessante refletirmos sobre isso em relação aos sites, pois muitos têm a necessidade de fazer com que a criança, pelo menos por um tempo, o considere como favorito (caso do Club Penguin, por exemplo, que será analisado no capítulo seguinte, mas que possibilita essa fidelização pela assinatura). A própria barra de ferramentas do nosso navegador nos permite escolher sites favoritos, mas não apenas um site e sim vários. O que mais me chamou a atenção foi que apesar de eles alegarem que esse era o favorito, em nenhum momento eles quiseram jogá-lo. Com o site do Club Penguin foi assim também: por ser nosso primeiro contato, nós só jogávamos e conversávamos sobre ele, antes de eu explicar a eles sobre minha pesquisa, mas depois quando, provavelmente, eles entenderam que eu gostava de todos os sites e queria conhecer os que eles quisessem me mostrar, o Club Penguin não foi mais falado e nenhum deles pediu para jogarmos novamente. Então, podemos perceber que o site favorito pode mudar e que às vezes a criança cansa de determinado jogo. Ou seja, o site favorito está vinculado também ao contexto que cerca as crianças. Esse movimento, a meu ver, é por um lado, constitutivo da cibercultura e da 80 oferta imensa de opções de jogos on-line; por outro, os próprios sites dão indícios de que esse movimento das crianças de torná-los “favoritos” e em seguida, deixar de considerá-los assim, procurando outros é conhecido e por isso costumam renovar as ofertas de jogos etc. Outro ponto que pode ser percebido neste diálogo é a questão de eles não gostarem muito do jogo pelo nível de dificuldade52, este assunto foi bastante abordado durante o campo e será retomado mais a frente. 52 A maioria dos jogos possui níveis de dificuldades que vão do mais fácil ao mais difícil. Quanto mais difícil, menos atrativo para os meus interlocutores. 81 CAPÍTULO 3 INVESTIGANDO UM SITE ATRAVÉS DAS CRIANÇAS Brincar com as crianças nos aproxima delas. Chico dos Bonecos Este capítulo se dedica a conhecer, compreender e refletir sobre o site que desencadeou e promoveu mais debates entre as crianças. Esse site, vale lembrar, foi o que deu início às conversas com as crianças, instaurando, assim, a possibilidade de transformar esse grupo de amigos em grupo de interlocutores de pesquisa. A partir da análise do campo, das falas que as crianças trouxeram sobre o site, procurei trazer as principais questões que envolvem o uso do mesmo por elas. Além do campo, trago imagens e descrições do site, tentando refletir sobre as relações que se estabelecem na cultura infantil. 3.1 Club Penguin53 Em matéria, de 2010, da Revista Crescer on-line, a repórter Simoni Tinti apresenta um número estimado de usuários brasileiros do Club Penguin: 500 mil. Outra informação interessante e que nos mostra a importância deste site no cenário cultural da infância brasileira é que, tendo sua origem na língua inglesa, a primeira tradução do site foi para o Português. A revista traz ainda uma entrevista54 com um dos criadores do Club Penguin, Lane Merrifield, em que ele esclarece sua a vontade em expandir os conteúdos relacionados à cultura brasileira. “A primeira tradução do Club Penguin é esta, em português. Agora, a nossa ideia é adicionar algumas informações mais personalizadas, mais brasileiras”. 53 54 Acesso em 15/11/2011. http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI19061-10531,00.html 82 Conforme relatado anteriormente, este site foi determinante para a minha primeira relação de pesquisa com estas crianças, já que ao saberem que eu tinha um pinguim, as crianças ficaram muito espantadas e animadas e quiseram jogar comigo. Foi desta forma que esse grupo de crianças se apresentou para mim como possíveis interlocutores de pesquisa. Surpresa trazida pela mãe do Samuel. No dia em que fui pedir autorização para a mãe do Samuel para que ele participasse da pesquisa: Mãe do Samuel - Joana, você não sabe! Ontem quando o pai do Samuel chegou em casa, o Samuel falou assim para ele: Pai, você não vai acreditar quem tem Club Penguin: a Joana!” Além de ter sido o mais citado pelos meninos como o site que mais gostavam, este foi um dos mais acessados por nós durante os encontros iniciais. Apenas Camila não jogou neste site e diz que não conhece. Não cheguei a apresentá-lo para ela, pois queria explorar os sites que ela gostava, os que ela havia me apontado como favoritos. Afinal, a minha intenção era partir do interesse das crianças. 3.2 O site Este site (http://www.clubpenguin.com/pt/) foi comprado pela Disney em 2007 pelo valor de $700 milhões após a ascensão do mesmo entre as crianças americanas: neste mesmo ano eram 12 milhões, sendo 70 mil assinantes pagos que geraram uma receita anual de $40 milhões (ANDERSON, 2009). Tem por objetivo ser um local de encontro de crianças que usam um pinguim como avatar o qual pode ser personalizado. Segundo Alves (on-line[2012]) em texto que trata dos jogos como um novo locus de aprendizagem, a opção de utilizar um avatar possibilita que os jogadores experimentem diversos papéis que podem se distanciar da vida real do jogador. Isso possibilita que os jogadores construam narrativas bem singulares que podem projetar desejos, estilos, conteúdos psíquicos. Criando assim cenários que atuam muitas vezes como espaços de catarse, nos quais é possível expressar medos, afetos, angústias sem correr o 83 risco de ser pré-julgado, vivenciando situações que não podem se concretizar no dia-a-dia (ALVES, on-line[2012]). Ao se cadastrar, a criança ganha um iglu e cria o seu pinguim, podendo desta forma, participar deste espaço e conviver com outros pinguins. Entrando no servidor, que lembram as opções de sala de bate-papo, chats, onde podemos escolher qual lugar iremos entrar (alguns nomes são: boreal, zero grau, avalanche) ela terá várias opções de brincadeiras e interações com outras crianças devidamente personificadas em seus avatares. Em quase todas as brincadeiras, a criança junta moedas que pode trocar por objetos (roupas, chapéus, móveis para seu iglu, um animal de estimação etc.). Cada pinguim pode ser diferente do outro, já que com as moedas adquiridas nos jogos a criança pode comprar diversos tipos de roupas, mudar a cor do pinguim, fazer camisas personalizadas, adquirir objetos colecionáveis etc. Permitir que a criança faça alterações em seu iglu e Pinguim, possibilitando que ela deixe a sua personalidade transparecer em ambos, aproxima o Club Penguin da interatividade e da Web 2.0, pois modifica-los, que inicialmente é o mesmo para todos, possibilita que o usuário intervenha no site. Além desta modificação, o fato de podermos ver os iglus dos outros pinguins é mais uma forma das crianças mostrarem suas alterações no jogo e também se torna uma possibilidade de atualização do próprio site. Esta convivência on-line entre crianças, que muitas vezes nem se conhecem, participando de um mesmo local por causa de um interesse em comum e mais ainda, com a necessidade de participar deste ambiente, é o que nos traz Lemos (2010) ao definir como as comunidades do ciberespaço podem oferecer proximidade sem contato físico. [...] “A cibercultura, através do ciberespaço e suas tecnologias, parece instituir um contato generalizado, uma relação de proximidade e de sentimento comunitário, mesmo sem contato físico” (p. 145). Ao permitir a convivência e a interconexão entre as crianças, acredito que o Club Penguin possa ser classificado como uma “rede social” o que é uma solução característica da Web 2.055. Uma das principais características das soluções Web 2.0 é a possibilidade de interconexão entre os sujeitos. O conceito de rede social na Internet parte da ideia de juntar pessoas com interesses comuns que interagem colaborativamente a partir da mediação tecnológica das redes e suas conexões (SANTOS, 2010, p. 125). 55 Este conceito foi debatido no capítulo 2. 84 A página inicial do site traz as seguintes opções de navegação: Assinatura, Comunidade, Responsáveis, Brinquedos, Aplicativos, Diversão, Ajuda e Suporte, conforme vemos abaixo na imagem da home. Imagem 7 - Home do site onde é possível vermos as opções do menu de navegação. A seguir trago a descrição que aparece no próprio site disponível na seção para pais e responsáveis: O que é o Club Penguin? O Club Penguin é um mundo virtual coberto de neve onde as crianças brincam com joguinhos e interagem com amigos. Na ilha, todos assumem a forma de avatares-pinguins coloridos. Para fazermos amigos no Club Penguin bastava adicionar o pinguim que estava online. Desta forma, para eu adicionar o Lucas no dia em que jogamos juntos pela primeira vez, conforme relatado, foi necessário marcamos um lugar na ilha para que nos encontrássemos. E sempre que quiséssemos adicionar algum pinguim, avatar de alguém que já é nosso amigo na vida real, teríamos que marcar um encontro. Entretanto, atualmente (final de 2011), já é possível adicionarmos um amigo desde que saibamos o nome de seu pinguim e caberá ao 85 amigo aceitar a nossa solicitação de amizade (este é o mesmo sistema que existe em sites de relacionamento como Orkut, Facebook e Google +). Também já é possível marcarmos os nossos melhores amigos. a) Enquanto jogávamos Club Penguin, surgiu o assunto de ser amigo. Isto aconteceu no primeiro dia em que jogamos. Lucas – Eu e ela já somos amigos no Club Penguin (fala pra Luiza). A Luiza também tem. Faz amizade com ela! Joana – É. Depois a gente tem que combinar. Lucas – Ela é XXX.56 Joana – Só que tem que estar todo mundo, tem que estar conectado ao mesmo tempo, tem que estar online ao mesmo tempo.57 b)Samuel – Eu acho que eu já vi o seu pinguim no Club Penguin. (se referindo ao fato de possivelmente eu ele estarmos on-line ao mesmo tempo e no mesmo servidor – o que é quase impossível sem combinar). Luiza – Eu já vi. Lucas – Ah, eu já vi, eu sou amigo dela. Como funciona? Os jogadores criam um pinguim e então passeiam pela ilha do Club Penguin, participando de uma série de atividades divertidas e criativas. Os usuários podem conversar, mandar cartões com mensagens, usar emoticons ou escolher dentre uma série de ações pré-definidas, como acenar ou dançar. Os usuários também podem participar de festas temáticas e eventos especiais, interpretar um papel na peça de teatro, adotar e cuidar de um Puffle fofinho de estimação, e se divertir com os jogos para ganhar moedas virtuais, que podem ser usadas para decorar seu iglu e comprar diversas roupas para seu pinguim. Toda semana o site apresenta um novo conteúdo. 56 O nome do pinguim da Luiza foi ocultado como forma de manter o anonimato das crianças, opção explicada no primeiro capítulo. 57 Esse diálogo é de encontro realizado em novembro de 2010. Quando da escrita deste capítulo, ao acessar o site em novembro de 2011, descobri que agora é possível adicionar um pinguim que não está online, basta sabermos o nome dele. Confirmei com o Samuel e esta é uma opção nova. 86 Imagem 8 – A ilha Club Penguin. Em cada local há possibilidade de jogos diferentes. Imagem 9 – Página que exibe as opções de criar o pinguim ou de fazer login. Também há a opção de se tornar assinante. 87 Imagem 10 - Meu pinguim. Podemos ver que eu tenho algumas cores para o pinguim (rosa, vermelho, roxo e verde), alguns itens colecionáveis (boné, capacete, torneira, cenoura etc.) e já estou na faixa amarela. Para quem é o Club Penguin? O Club Penguin foi criado para jogadores de 6 a 14 anos, mas é aberto a todas as idades. Por que o Club Penguin foi criado? Porque queríamos construir um “parquinho virtual” conduzido por um compromisso tão sério com a segurança que ficaríamos à vontade para deixar nossos próprios filhos e netos visitarem. O Club Penguin é seguro? Como parte desse compromisso em criar um ambiente virtual seguro para crianças e suas famílias, o Club Penguin oferece duas opções de bate-papo: Bate-papo SuperSeguro: Limita as palavras que os jogadores podem usar de acordo com uma lista pré-definida de saudações, perguntas e frases, assim como emoticons, ações e cartões com mensagens. Ao conversar com outros pinguins, os jogadores conseguem ver apenas as mensagens usadas no Bate-papo SuperSeguro. Bate-papo Seguro: Permite que os jogadores digitem suas próprias mensagens para os outros usuários. Cada mensagem é filtrada para permitir apenas palavras e frases 88 pré-aprovadas, e bloqueia tentativas de informar um número de telefone ou qualquer outro tipo de informação pessoal identificável. Ao oferecer a opção de chat, ou em português, salas de bate-papo, o Club Penguin permite o diálogo direto em tempo real e de forma síncrona entre seus usuários. Ele se apropria das regras, rituais e estilos de comunicação próprios dos chats. Os smiles são “uma forma de passar emoções de um corpo ausente” (LEMOS, 2010, p. 151). Imagem 11 – Imagem dos servidores. Os servidores que possuem balões são os que oferecem o Bate Papo SuperSeguro. Imagem 12 – Opções de diálogos em um servidor com Bate Papo SuperSeguro. 89 Imagem 13 – Exemplos de pinguins conversando em um Bate Papo SuperSeguro. Imagem 14 – Exemplos de pinguins conversando em um Bate Papo Seguro. 90 Apesar de o filtro ser constantemente atualizado, comentários que podem ser ofensivos para outros jogadores às vezes conseguem passar pelo mecanismo. Para limitar essas situações e proteger outros participantes, o Club Penguin conta com uma equipe altamente treinada para monitorar as atividades e o bate-papo, receber denúncias de mau comportamento e fornecer assistência personalizada ao jogador. Um ícone com a letra “M” no canto direito superior da tela lembra os participantes que um moderador está à disposição para ajudar. Jogadores com comportamento inapropriado podem ser advertidos e banidos. A experiência de ter um pinguim banido já aconteceu com o Lucas e segundo ele algum colega utilizou o seu pinguim de forma imprópria, fazendo com que ele fosse banido. Isso foi possível por que Lucas contou sua senha para alguns amigos, prática não recomendada pelo site Entretanto, as crianças parecem não entender muito bem como funciona exatamente o processo que ocorre para que um pinguim seja banido. Lucas – Samuel, agora é sério. Samuel – O que? Lucas – Ela vai morrer! Samuel – O pinguim só morre se alguém tirar ela do Club Penguin. Joana – Como assim, Samuel? Como é que o pinguim não existe mais? Samuel – Se alguém clicar pra ser amigo, aí o outro pode entrar no pinguim aí pode tirar do Club Penguin. Joana – Ah, é? Lucas – Mas, eu não vou fazer isso com a Joana. Quais são os benefícios do Club Penguin? Além de ser um ótimo lugar para brincar e se divertir, o Club Penguin é um ótimo lugar também para aprender e crescer. No Club Penguin, as crianças praticam a leitura, desenvolvem habilidades no teclado e participam de situações criativas de faz-de-conta. Ao acumular e gastar moedas virtuais obtidas nos jogos, as crianças praticam matemática e aprendem a lidar com dinheiro. A natureza cooperativa do ambiente do Club Penguin, assim como iniciativas como nossos programas de agente secreto e guias de turismo, ajuda as crianças a desenvolverem habilidades sociais importantes, enquanto obtêm uma compreensão mais global de seu papel como membros de uma comunidade. 91 O site oferece alguma ferramenta para ajudar os pais a controlar o tempo que seus filhos passam online? Você é quem decide quanto tempo seu filho pode passar no computador e no Club Penguin. Para tornar tudo mais fácil, criamos o Controle de Horas do Club Penguin. Você precisará de uma senha para acessá-lo. Então, se ainda não tem uma Conta para Pais e Responsáveis, vá para Criar uma Conta para Pais e Responsáveis página para criar uma. Usando o Controle de Horas, com alguns cliques você pode: Definir horário de jogo - estabelecer o horário em que seu filho pode jogar; Limitar o total de horas diário - limitar o número total de horas que seu filho pode jogar. 3.2.1 Jogar e consumir A inserção deste item dentro do capítulo que se dispõe a compreender o Club Penguin se faz necessária e obrigatória, já que surge dos usos das crianças e também por ser uma forte característica deste site especificamente. Pensar as relações das crianças com este site nos traz esta discussão. O Club Penguin nos mostra o entendimento das empresas de que a criança é consumidora, atribuindo-lhe um papel central na sociedade de consumo e uma forma de reconhecimento da infância permeada “pela lógica do consumo, lógica essa que se consolida nos anos 80 e 90, quando a criança deixa de ser olhada apenas como filho do cliente e se torna, ela própria, consumidora” (PEREIRA, SANTOS, 2008, p 7) e o cotidiano passa a ser visto como lugar de consumo. Desta forma, o site utiliza esta lógica e aproveita este mercado consumidor de forma intensa: todos os usos trazidos nesse jogo se pautam nas ideias de acumulação que se desdobra em um permanente ganho de moedas como prêmio e, consequentemente, no gasto delas na compra de acessórios. Desta forma, o site segue o pressuposto pelo mercado, pela lógica de consumo. Não se pode perder de vista que o mercado está bastante atento ao público infantil, grupo que tem por linguagem mais singular a brincadeira, onde o real e o imaginado/fictício se entrelaçam. A possibilidade de, pela imaginação, ser outro, ser o que não é, na vida, contribui para a construção da identidade e da singularidade. No mundo do consumo, entretanto, a relação entre ser e ter se confunde, uma vez que possuir os objetos passa a ser um modo de inclusão (PEREIRA, SANTOS, 2008, p 17). 92 Veremos a seguir que o Club Penguin utiliza muitas formas de representação da nossa sociedade de consumo em seu mundo virtual, fazendo com que as crianças participem ativamente da lógica do consumo. Conforme nos traz Santos (2010), o crescimento da Internet e do Computador Conectado fez com o que o recente mercado consumidor infantil fosse almejado neste campo também. “O público infanto juvenil passou a ser alvo do mercado na Internet. Programas de televisão, fabricantes de brinquedos passaram a criar sites infantis, com recursos como jogos e atividades interativas (p. 118).” 3.2.2 Assinatura Possuir ou não uma assinatura no site surgiu durante os encontros e, como veremos, o assinante é um jogador que possui alguns benefícios em relação aos demais. Portanto, ser assinante confere status ao jogador que além das vantagens é identificado por um símbolo que aparece para todos os outros pinguins verem independente de serem amigos. A assinatura consiste em pagar para ter acesso a conteúdos exclusivos, podendo-se comprar objetos e participar de jogos só para assinantes. De um total de 32 itens de conteúdo listados pelo próprio site 18 são acessíveis por todos os usuários e 14 são exclusivos. A assinatura mensal custa R$ 8,95, a semestral R$ 44,95 e a anual R$ 84,95 sendo possível pagar em cartão de crédito, com renovação automática até o cancelamento, ou seja, é necessário solicitar o cancelamento se não há a renovação automática no cartão de crédito. É possível pagar em boleto bancário também. Abaixo vemos imagens que mostram as razões para fazermos uma assinatura. Imagem 15 – Listagem de acesso exclusivo para assinantes ao conteúdo do site. 93 Imagem 16 – Motivos para fazermos uma assinatura, com um discurso mais voltado para os responsáveis ou futuros jogadores. Imagem 17 – Mais motivos, desta vez com o discurso voltado para os jogadores, para assinarmos o site. 94 Nas imagens acima podemos ver os apelos utilizados pelo site para que façamos uma assinatura. Algumas frases destacam as possibilidades de compras que são exclusivas para os assinantes, fazendo com que eles possam ser vistos com muito status pro outros participantes, além de poderem exibir seu estilo próprio. Assim, mais uma vez, percebemos como este site pode ser caracterizado como pertencente à Web 2.0. Abaixo trago um relato que trata exatamente o status vivenciado pelo jogador que possui assinatura. Vinícius – Caramba! Maneira! (se referindo a um pinguim que está com uma fantasia que ele considera bonita). Samuel - Até eu tenho essa fantasia. Vinícius – Tem? Lucas – É para assinante. Samuel – Eu sei. Então, eu sou assinante. Como você entrou se você não é assinante? (perguntando pro Vinícius como ele conseguiu entrar em um espaço do jogo). Luiza – Dá pra entrar mesmo quem não é assinante. Lucas – Dá para comprar coisas, mas só que é só para assinantes. Vai aqui, no azul, é o único que pode, o resto é pra assinante. Imagem 18 – Exemplo de pinguim quase irreconhecível devido aos apetrechos que estão disponíveis para quem é assinante. O nome do pinguim foi apagado propositalmente. 95 A assinatura permite que o Club Penguin mantenha seu compromisso já comprovado de criar uma experiência online divertida e segura, livre de anúncios publicitários de terceiros. Não é preciso pagar para jogar Club Penguin, mas a assinatura permite que o jogador explore e use mais a criatividade, e dá acesso a mais jogos e atividades e eventos exclusivos. Toda semana há alguma coisa nova para os assinantes descobrirem e se divertirem. Há ainda a afirmação de que os assinantes terão conteúdo exclusivo, acesso prioritário aos servidores e também acesso ilimitado a todas as áreas do Club Penguin. Esta questão da assinatura surgiu quando jogávamos, pois como há conteúdos exclusivos para os assinantes, muitas vezes não podíamos fazer algo dentro do site. Lucas – Olha, pra continuar é esse, olha. Samuel – Mas, tem que ser assinante. Lucas (lendo a mensagem que apareceu na tela quando ele tentou avançar) – “Fazer assinatura.” - Aí ganha um saco de dinheiro. Imagem 19 – Esta é a mensagem que aparece quando tentamos comprar, acessar ou jogar algum conteúdo reservado para os assinantes. 96 Ao falar que fazendo a assinatura ele ganhará um saco de dinheiro, Lucas se refere ao fato de que o jogador que fizer uma assinatura ganha 500 moedas de brinde. O que acaba se tornando mais um atrativo para querermos fazer a assinatura. Vinícius estava jogando com o pinguim do Lucas e queria comprar coisas diferentes. Joana – Mas você vai comprar coisas com o dinheiro do Lucas? Ele vai ficar bravo, não vai? Vinícius – Não. Ai, olha, é tudo pra assinante, olha. Joana – É tudo pra assinante? Não tem nada pra quem não é assinante? Vinícius – É. Conforme debatido mais acima, a decoração do iglu é outra forma em que o jogador consegue mostrar suas singularidades, consegue criar, modificando o site. Conforme vemos nos imagens abaixo que trazem exemplos de iglus de assinantes e não assinantes, lembrando que as opções de alteração somente estão disponíveis para os assinantes. Imagem 20 – Imagem do meu iglu. Por não ser assinante não posso comprar móveis e nem modificá-lo. 97 Imagens 21 e 22 – Iglus de pinguins assinantes. Há muitos objetos e modificações. O iglu abaixo sofreu modificações até em sua estrutura. 98 Outra informação importante vinculada pelo site são os depoimentos de usuários que estão disponíveis no item da assinatura. Nestes depoimentos podemos ver responsáveis por usuários e uma avó que acessa para ter contato com seus netos valorizando e recomendando o Club Penguin. Imagem 23 – Depoimentos de responsáveis dos jogadores. A relação das crianças com a assinatura nos mostra como a importância de ser assinante foi incorporada na cultura de pares dos interlocutores da pesquisa. Essa importância também pode ser verificada acessando o site onde facilmente podemos constatar que um grande número de usuários é assinante: ao clicar em 20 pinguins para observar seu perfil, descobri que todos eram assinantes. Tendo participado ativamente das questões relativas a este site, inclusive por ter meu pinguim e por ter jogado algumas vezes, posso dizer que há quase que uma necessidade de assinarmos. A partir do momento em que nos envolvemos com os jogos e conquistas disponíveis, sentimos vontade de fazer a assinatura. Desta forma, ao fomentar nos jogadores este desejo, principalmente com a exclusividade de conteúdo e com o lançamento de novos jogos, o site mostra-se de acordo com a cultura de consumo que “fundamenta-se em práticas sociais relacionadas não somente ao ato de adquirir bens, mercadorias e experiências, como 99 também à criação e perpetuação de desejos em relação ao que não se tem” (CASTRO, 1998, pp 57-58). Ainda com a ajuda de Castro, que ao trazer reflexões sobre o surgimento da cultura do consumo e o consequente deslocamento da sociedade de produção para o consumo, nos mostra como essa mudança proporcionou um novo entendimento sobre as coisas, já que ter algo, significa ser, traduz a personalidade do indivíduo que possui o objeto. Assim, de meros objetos, as coisas se tornam porta-vozes dos gostos, dos interesses e dos valores subjetivos de modo que se estabelece uma economia de bens simbólicos onde a demanda, a oferta, a monopolização e a distribuição destes bens determina estilos de vida e a posição estrutural dos sujeitos e dos grupos nas interações sociais (CASTRO, 1998, p.56). O Club Penguin incentiva esse sentimento de pertença a uma classe, a dos assinantes, que possuem algo. Ser assinante e ter objetos do site ou acesso a determinadas coisas possibilita, um status, é constitutivo da identidade das crianças. “Neste sentido, consumir, e o que consumir, adquire uma importância decisiva para definir quem é quem no mundo social (CASTRO, 1998, p. 57)”. Por isso, o assinante tem um símbolo específico que o destaca dos demais, além de, conforme já dito, ter acesso a bens diferenciados. 3.2.3 Moedas A partir do momento em que entramos no site somos deslocados para um mundo de possibilidades de consumo. A principal “praça” do jogo é constituída por três locais onde podemos consumir algo: uma danceteria, um café e uma loja de presentes. Em recente análise sobre o site, Saraiva (2009), nos traz a reflexão sobre uma possível aproximação do Club Penguin com o incentivo ao empreendedorismo, uma característica da sociedade de consumo, onde é necessário aprender a “batalhar” pelos bens que se quer consumir. Desta forma, para consumir o pinguim tem que ganhar moedas e para ganhá-las ele deverá ser perspicaz a fim de descobrir jogos “camuflados” nos espaços do jogo. Segundo a autora: Desse modo, não apenas oferece produtos para o consumo, como também propicia oportunidades para que os participantes ganhem algum dinheiro. Ao explorar o ambiente, descobrem-se diversos jogos que retribuem a habilidade dos jogadores com moedas. Cabe notar que, enquanto as ofertas de produtos são muito visíveis ao jogador, os jogos estão dissimulados no ambiente e devem ser descobertos. O jogador deve saber buscar as 100 oportunidades que lhe permitem obter recursos para o consumo. Nesse sentido, estamos entendendo que os jogadores devem comportar-se como gestores de sua vida-pinguim, em conformidade com uma racionalidade dominante na atualidade. (...) Não podem esperar que um outro sujeito venha lhe oferecer um trabalho organizado, mas devem buscar suas próprias oportunidades, num jogo que se assemelha ao jogo do mercado. Cada jogador é, assim, convocado a transformar-se em uma microempresa a ser gerida com competência para maximizar seus ganhos e, portanto, sua potencialidade de consumo (SARAIVA, 2009, p. 5). Algumas crianças pedem a outros jogadores mais habilidosos que joguem usando o pinguim delas. Esse pedido se deve ao fato de que o sucesso nos jogos é revertido em moedas as quais são utilizadas para comprar objetos para o pinguim, o iglu ou outros acessórios. Essa atitude revela uma outra forma de compartilhar o computador e o jogo que, diferentemente das outras formas citadas, traz para o centro das relações o tênue limite entre o compartilhar e o competir. Quem é bom no jogo pode se impor e quem não é tem que ceder e pedir ajuda para ganhar mais moedas. Andando na rua, fora da Vila, encontrei com o Lucas e o Vinícius que estavam indo para a escola. Lucas - Joana, ganha muitas moedas pra mim! (ele queria que eu jogasse com o pinguim dele que estava salvo no meu computador). Joana - Mas, você tá cheio de moeda. Lucas - Pega mais moeda. Em um momento de jogo em minha casa vivenciamos a questão do ter moedas, jogar para ganhar mais moedas, e o status que um jogador tem ao possuir muitas moedas. Ressalto que esta informação sobre o número de moedas não é visível aos outros pinguins, mesmo que amigos, ou seja, as crianças só souberam por que estavam jogando com o meu pinguim. Entretanto, vemos na fala de Samuel a importância dada à quantidade de moedas de cada jogador. Lucas – Posso comprar várias coisas para você? Joana – Eu não tenho dinheiro... (ele vai ver quanto eu tenho de dinheiro, clicando no pinguim) Tem bastante então, né? 1145. Pode comprar. Lucas – Vamos ver o que você quer. Não eu já sei! Vamos no joguinho primeiro. Samuel – Eu tenho 10 mil e poucas moedas. 101 Ganha-se moedas em alguns jogos em que fazemos pontos que são convertidos para moedas. Por exemplo, fazendo 787 pontos o jogador ganha 78 moedas. Ou seja, 10%, e podemos ver que a Luiza, por exemplo, entendeu como fazer essa conta, apesar de o site não explicar isso. Joana – Caraca, 1000 pontos. Luiza – Vai ganhar mais ou menos 110, 120, moedas. Lucas – Vê quanto ela tem. 363! Samuel – Só? Lucas – Eu tô com 90 é ...é... é... 911 eu acho. Samuel – Eu tô com 2000 e pouco. Analisando este site, mais os diálogos trazidos pelas crianças, é impossível não refletirmos sobre a questão do consumo. Ele é a representação virtual da sociedade de consumo, sendo uma forma de contato das crianças com a cultura do consumo. Ao ganhar moedas e comprar, a criança é inserida em uma regra básica da sociedade de consumo: para comprar precisamos ter dinheiro. E como ela fará para conseguir este dinheiro? Ela terá que “trabalhar”, neste caso, jogar os jogos para poder ganhar muitas moedas. Outra forma de consumo é a questão da assinatura, pois ao comprar uma assinatura, a criança passa a ter privilégios exclusivos, desta forma fica claro que quando pagamos conseguimos vantagens sobre as pessoas que não pagaram para frequentar o mesmo lugar que nós. O acesso a este site faz com que a criança se torne ator da economia, colocando-a em contato com o mercado. Entendendo este site como um brinquedo, por permitir uma forma de brincar e sabendo que ele foi desenvolvido para a criança pelos adultos da sociedade atual, do nosso contexto social e cultural, onde o consumo está inserido, não é exagero afirmar que a “criança é formada para o consumo, aprende que seus desejos podem ser satisfeitos com a compra de objetos materiais, grande lição do capitalismo triunfante ou da produção contemporânea das pequenas alegrias cotidianas” (BROUGÉRE, 2004, pp. 247-248). Entretanto, reconhecer que este site favorece a relação com a sociedade de consumo pela criança, não quer dizer que a criança será consumista apenas por utilizá-lo. Temos que voltar e lembrarmo-nos de Certeau que traz o outro lado dos consumidores: tendo em vista tudo o que foi dito no segundo capítulo, não podemos pensar que a criança será determinada pelo acesso a esse site. É necessário entendermos que vivemos nessa sociedade, mas que todo 102 o contexto da criança e sua produção a partir de suas experiências será mais forte do que o apelo ao consumo feito por um site ou jogo. Ser assinante possibilita que a criança compre muitos pufles, objetos para o iglu, roupas diferenciadas e acesse áreas restritas. Há um poder e um status muito grande para as crianças que são assinantes. O próprio site faz questão de destacar como é bom ser assinante a cada momento em que um não assinante tenta fazer algo restrito aos assinantes. Além das formas de representação da cultura do consumo retratadas acima, a Disney recorre ainda à convergência entre as mídias como mais uma forma de possibilitar o consumo pelas crianças dos objetos do site. Segundo Henry Jenkins (2009) a “Cultura da Convergência”, é o lugar onde as velhas e novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis. [...] A convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados à procurar novas informações e fazer conexões em meio à conteúdos de mídia dispersos (pp. 29-30) Entretanto, acredito que o Club Penguin, a Disney, não esteja disposta a favorecer o contato das crianças com esta cultura como a define Jenkins que em seu livro Cultura da Convergência (2009), colocando o papel do consumidor como alguém que tem a possibilidade de interagir com o conteúdo produzido. Como exemplo, ele cita o caso de um seriado transmitido pela televisão americana, onde o público, através das redes sociais, blogs e fóruns, ou seja saindo da mídia televisiva e indo para a Internet, conseguiu fazer valer sua vontade em relação ao seriado. Desta forma, compreendo que a convergência de mídias do Club Penguin está inserida diretamente à possibilidade de expansão das vendas. A convergência, neste caso, “representa uma oportunidade de expansão aos conglomerados das mídias, já que o conteúdo bem sucedido num setor pode se espalhar por outras plataformas” (JENKINS, 2009, p. 47). Assim, o Club Penguin expandiu seu mercado com a comercialização de brinquedos, cards para o jogo Desafio Ninja, vídeo games, álbum de figurinhas, revista em quadrinhos etc. Cabe destacar que como é comum na convergência entre as mídias, muitos dos produtos lançados não trazem nenhuma inovação, sendo uma simples convergência entre as diversas mídias, ocasionando, em muitos casos, uma saturação pela oferta de muitos produtos com a marca, mas que não propõem nenhuma alteração no conteúdo básico. 103 De acordo com a reportagem publicada no jornal O Globo on-line esse movimento de produtos saírem de um site é novo, já que normalmente o movimento é o contrário. Geralmente uma boa propriedade intelectual que vira brinquedo nasce como história em quadrinhos, videogame ou desenho animado e depois é reproduzida em série. Empresas como Mattel, Hasbro e outras também fazem lançamentos casados simultâneos, onde o brinquedo promove o desenho e vice-versa. É tudo um fascinante jogo de marcas, marketing e massificação. Mas em tempos de crianças começando a usar internet, seus personagens virtuais favoritos também ganham corpos, mas de plástico e veludo. Jogos casuais como Angry Birds e redes sociais como Moshi Monsters e Club Penguin estão abrindo o caminho para o sucesso garantido desses produtos. Enviado por Alex Moura - 04.02.2011 | 12h32m Imagem 24 – Acesso permitido apenas com a compra de brinquedos para ganhar um código que destrava o acesso. 104 Imagem 25 - Bonecos Imagem 26 – Cards Desafio Ninja que vem com um código para destravarmos itens on-line. Imagem 27 – Álbum de figurinhas Imagem 28 – História em Quadrinhos Imagem 29 – Nintendo DS exclusivo do Club Penguin. 105 3.2.4 Senha Outra questão interessante que apareceu no campo e que é bastante reforçada pelo site é a questão da senha. Como é necessário fazer um login, é preciso ter uma senha. O site reforça de diversas maneiras que devemos ter muito cuidado com ela e quando optamos por salvar a senha no computador, aparecem as seguintes mensagens: Imagem 30 – Primeira mensagem que aparece quando optamos por salvar a senha. Ao confirmarmos que há outras pessoas usando o computador as mensagens abaixo se intercalam até que haja uma decisão. Se decidirmos que queremos salvar a senha nada mais acontece. Se clicarmos em “saiba mais” somos direcionados para a área de pais e responsáveis que explica mais sobre a segurança no site. Mesmo se afirmarmos que não há outras pessoas usando o computador, as imagens abaixo aparecem. 106 Imagens 31, 32, 33 – Sequência de mensagens que alertam sobre os riscos de salvarmos a senha em um computador compartilhado. 107 a) Luiza está jogando e tem dificuldades. Lucas quer assumir o jogo de qualquer jeito. Lucas – Se quiser eu posso mostrar pra ela. Quer que eu entre, posso entrar no meu? Só que todo mundo vai ter que sair por que eu vou botar a minha senha. Joana – Tá bom. Não pode mostrar a senha pra ninguém, né? Lucas – Mas a Luiza já sabe por que foi ela que fez. Joana – Mas ela é sua irmã. Sabe o que fizeram com o pinguim da minha prima? Ela disse a senha para uma amiga e aí ela foi lá e mudou tudo, mudou todo o iglu dela, mudou o penteado dela, mudou tudo. b) Lucas – Não. Ah, gravou meu pinguim, que saco! (ele quer dizer que quando eu entrar no Club Penguin no meu computador o pinguim dele e o meu aparecerão como opção para login). Joana – Depois a gente tira. Dá para esquecer o pinguim. Lucas – Não, você só fica... Não, não esquece. Joana – Não? Mas eu não sei a sua senha, não vou poder entrar no seu... Lucas – Pode sim! É só você clicar no meu pinguim já mostra tudo. Como gravou o seu. Joana – Tá. Mas, eu só posso entrar no seu se você autorizar, né? Lucas – É... Eu só deixo você entrar no meu se ficar pegando moeda e dar comida pros meus pufles. A preocupação do Lucas pode ser explicada pelo fato ele já ter perdido um pinguim por que algum amigo utilizou o mesmo de forma incorreta fazendo com que, segundo Lucas, seu pinguim fosse banido. Apesar do site alertar bastante sobre a necessidade de mantermos a senha em segredo, percebemos pelos relatos das crianças, inclusive o que eu trouxe da minha prima, que nem sempre essa norma é seguida. 3.2.5 Faixas A questão das faixas é muito importante para as crianças, pois ser faixa preta é uma conquista muito difícil que requer muito tempo do jogo Desafio Ninja e para conquista-la é 108 necessário vencer o Sensei58 (um personagem virtual que é o mestre). A mudança de uma faixa para outra é lenta, sendo necessário completar 100% em cada faixa. No meu caso, por exemplo, estou na faixa amarela e falta pouco para chegar à laranja. Esta mudança da branca para a amarela e quase laranja, só foi possível por causa das crianças que jogaram Desafio Ninja diversas vezes com o meu pinguim. As crianças queriam me transformar em faixa preta de qualquer jeito. a) Samuel – Ainda na faixa branca? (falando sobre o meu pinguim). Luiza – 10% ainda. Vinícius – A minha faixa é amarela. Samuel – É. Eu já tô na faixa roxa. Joana – Falta pouquinho então. Olha quantas eu ainda tenho que conquistar. Vai demorar a beça. Samuel – Só se ganhar do Sensei aí vai direto pra faixa preta. b) Lucas – Olha aqui as minhas coisas. Rapidinho (perfil pinguim). Joana – Nossa, você tem tudo isso? Todas as cores! Já tá na faixa preta? Lucas – É por que? Você já tá? Joana – Nãooo! Tô na branca! Lucas – Caraca! Eu vou entrar no seu e vou te transformar em faixa preta! Enquanto Lucas jogava o Samuel apareceu na porta. Samuel – Você é que faixa? Joana – Eu? Faixa branca... Lucas – Ela é faixa branca, maluco. Samuel – Eu já sou faixa preta. Joana – Já? Também? Lucas – Eu também! Joana – Ih, eu tenho que virar faixa preta então... Samuel – Ela já devia ser faixa preta! (falando para o Lucas) Joana – É por que eu não tô jogando muito, Samuel, por que eu fui viajar, entendeu? 58 Os ideogramas (kanjis) para a palavra “sensei” possuem os seguintes significados: (“sen”) antes, na frente, anterior, futuro, precedente; (“sei”) vida, genuína, nascimento. Literalmente, significam “quem viveu antes”. Assim, a palavra “sensei” significa um ser humano que simplesmente acumulou mais experiência e/ou treinamento específico para exercer uma determinada função. 109 Samuel – É. c) Vinícius – Eu vou arrumar você em faixa preta! (ele clica em falar com Sensei para começar a jogar o Desafio Ninja). Lucas – Vai, Vinícius, rápido! Aperta sim, sim, sim. Mais rápido! Vinícius – Ah, eu não vou lutar com o Sensei não! Ah, para! (jogar contra o Sensei é difícil, pois ele é o mestre dos ninjas. Mas se vencermos o Sensei pulamos direto pra faixa preta). Lucas – Mas, tem que conquistar a faixa (preta)! No último diálogo, podemos perceber como, às vezes, os maiores tentam fazer com que Vinícius passe por situações difíceis às quais ele não vai conseguir transpor, e às quais, muitas vezes os próprios meninos mais velhos não conseguiriam. Entendo que a necessidade de colocar o Vinícius para jogar contra o Sensei, seja uma forma de desvalorizá-lo perante a sua incapacidade. Cabe ressaltar que durante os nossos acessos, os meninos não demonstraram interesse em jogar contra o Sensei, apesar de terem jogado o Desafio Ninja e de falarem em me ajudar a conquistar mais faixas para ser faixa preta também. Mesmo quando Lucas diz que vai jogar com meu pinguim para me transformar em faixa preta ele não opta em jogar contra o Sensei. Imagem 34 – Este é o Sensei. Para jogarmos desafio Ninja temos que ir falar com ele e escolher uma das opções. 110 Imagem 35 – Eu jogando com um pinguim que não sou amiga. Basta que qualquer pinguim queira jogar para o site organizar o jogo. Imagem 36 - Momento do jogo em que o meu pinguim ganha uma jogada. Cada carta tem um símbolo e um valor, como por exemplo, a segunda carta amarela que mostra o símbolo da neve e um número 7. O meu pinguim ganhou a jogada por que eu joguei uma carta com neve e o meu adversário uma carta com água. A neve vence a água, a água vence o fogo, o fogo vence a neve. Se jogarmos duas cartas iguais (neve e neve, por exemplo), vence a de número maior. 111 Imagem 37 - Ganha o jogador que completar 3 cartas diferentes ou 3 iguais antes. No caso o meu adversário completou o fogo, a água e o gelo. Imagem 38 – Momento em que consigo conquistar a faixa laranja. 112 Imagem 39 - Selo que meu pinguim ganhou ao jogar Desafio Ninja. É o primeiro de 10. 3.2.6 Selos Os selos são um brinde que ganhamos ao acessar os jogos do Club Penguin. Entretanto, não é sempre que ganhamos e quanto mais jogarmos mais ganharemos. Os selos são divididos em categorias e cada jogo dá um diferente. São colecionáveis e há um álbum onde estão todos os selos adquiridos pelo pinguim. É possível ver o livro de selos de qualquer pinguim. a) Lucas – Você ganhou um selo. Joana – Eba! Lucas – Aí também ganha selo. Joana – E o que acontece quando a gente ganha estes selos? Luiza – Não sei. Lucas – Você ganha figurinhas. Samuel – Figurinhas? Lucas – Figurinha é selo! Só que não mostra naquele negócio. Aparece já os selos e aí você troca por uma roupinha (pro pinguim), eu acho. Joana – Ah, entendi. 113 Imagem 40 – Capa do meu álbum de selos. Imagem 41 – Primeira página do álbum. Nela podemos ver as legendas de cada selo, ou seja, o formato do selo diz de onde ele vem. Também podemos observar que há níveis de dificuldade e selos exclusivos para assinantes. b) Lucas – Você já achou os doces de Halloween (se referindo a um jogo temporário dentro do Club Penguin sobre o Halloween, já que estávamos no começo de novembro e a festa de Halloween do site foi no dia 31/10). Joana – Não... Lucas – Nenhum? Joana – Nenhum... Lucas – Caraca... Vinícius – É muito fácil!!!! Lucas – Você conseguiria nove selos. Joana – E o que faz com os selos mesmo? Lucas – Você tem um livro de selos aí você tem que completar os selos. Samuel – Pra que tem que completar? Samuel – Sei lá. 114 Além dos selos, há os objetos colecionáveis, os quais podemos juntar percorrendo o site, fazendo uma coleção pessoal e que pode ser comparada com a de outros pinguins, pois tudo o que possuímos (menos as moedas) estão visíveis a outros jogadores. A fala do Haroldo e do Lucas nos mostra a questão do objetivo que um jogo tem que ter, provavelmente por que tudo neste site tem algum objetivo. Aparentemente, estas são as únicas opções no Club Penguin em que podemos apenas colecionar, sem termos algum objetivo ou recompensa. A possibilidade de colecionar os selos pelo prazer de ter uma coleção não parece sensibilizar estas crianças. O Lucas afirma que após juntar os selos é possível trocá-los por uma roupa para o pinguim, entretanto não consegui confirmar esta informação. Desta forma, as crianças interlocutoras desta pesquisa, parecem não sentir o prazer de colecionar objetos pelo simples prazer de ter uma coleção, perdendo o sentido de juntar objetos aparentemente sem sentido, de brincar com eles e reinventar sentidos a eles e às suas brincadeiras. Refletindo sobre um possível ganho para o site em disponibilizar este “colecionar selos”, acredito que para crianças que gostam de colecionar, este álbum deve ser um grande estímulo para que elas voltem aos jogos do site. Completar o álbum deve ser motivo de orgulho para muitos. Também podemos entender que ter mais selos e objetos significa ser um jogador melhor, mais habilidoso ou ter mais oportunidades de acesso diário. Entretanto, este colecionar não está mais inserido no que Benjamin (2002) entendia como criança colecionadora, mas também não é exclusividade e nem novidade trazida pelo Club Penguin, e sim pela lógica do consumo, pela lógica do ter que identifica o ser, a identidade dos sujeitos. Desta forma, tomo de empréstimo as reflexões de Pereira (2003) sobre a tênue linha que se estabelece atualmente entre colecionar e consumir: Pedrinhas. Conchinhas. Corujas. Dinossauros. Miniaturas de Kinder Ovo. Papéis de carta. Mamíferos Parmalat. Monstrinhos Pokemon. MacFilhotes. Onde encontrar a diferença entre colecionar e consumir? Manterão as crianças o mesmo tipo de relação com os objetos colecionados, independentemente de eles serem escolhidos a partir da sua singularidade ou de campanhas voltadas ao consumo? Desencadear-se-ão outras formas de singularidade, sob a lógica do consumo? Que perspectivas éticas a massificação do ato de colecionar propõe-se a difundir? Como entender esse novo apaixonado, o “colecionador de aquisições”, afeito a substituir aquilo que ainda há pouco era para si objeto sagrado? (PEREIRA, 2003, p. 55). 115 3.2.7 Pufles Os pufles são animais de estimação que moram com o pinguim que deverá cuidar deles. É possível leva-los para passear pela ilha e jogar jogos com ele. Os jogadores devem alimentá-los, dar banho, passear, colocar para dormir, comprar objetos. Se for assinante, o jogador poderá ter vários pufles. O próprio jogo ensina como devemos cuidar dos pufles. Imagem 42 – Informações sobre as características do meu Pufle. Cada pufle gosta de fazer coisas diferentes. Joana – Todos os pufles gostam de pegar onda? Lucas – Não, só o vermelhinho. O azul, ele só gosta de brincar com a bola. Joana – Entendi. Lucas – Por isso que eu não estou mais passeando com ele, por que ele me traiu. Joana – Por que ele te traiu? Lucas – Por que ele só brinca com a bola. Joana – Ah, tá não brinca com vc... Lucas – Sniff, estou sofrendo... (brincando). Risos Reproduzo na página seguinte a sequencia do tutorial que nos ajuda a entender cada ícone referente ao pufle, além de mostrar onde comprar comida e brinquedos para ele. 116 Imagem 43 – Sequência de imagens retiradas do tutorial sobre como cuidar dos Pufles. Apenas os alimentos são compráveis por todos os jogadores. Os brinquedos e móveis são exclusivos para assinantes. 117 CAPÍTULO 4 AS CRIANÇAS, A PESQUISADORA, OS SITES: AS RELAÇÕES VIVIDAS EM CAMPO Este capítulo se dedica a aprofundar as questões percebidas em campo durante os usos que as crianças fizeram da Internet e mais especificamente dos sites. Introduzo as categorias que as crianças me apresentaram durante os usos que fizemos dos sites. São elas: Jogar, jogar junto, competir, cooperar etc. Reflito também sobre as diversas funções que desempenhei: pesquisadora, jogadora, amiga, adulta... 4.1 Jogar Como moramos em uma Vila, muitas vezes estávamos jogando no computador enquanto outras crianças brincavam lá fora. Enquanto a pesquisa aconteceu houve esse movimento, sair da minha casa e ir para a Vila e vice-versa... Este movimento chamou a minha atenção e resolvi abordar o assunto com as crianças. Cabe ressaltar que eu apresento esta questão para as crianças a partir deste movimento e também em virtude do que a mãe dos irmãos trouxe como preocupação sobre a investigação estimular ainda mais o uso dos jogos on-line. Essa situação logo me fez lembrar a colocação da mãe e aproveitei a oportunidade para perguntar. a) Em um encontro em que Lucas e Vinícius estavam em minha casa jogando (estávamos com a porta aberta) e outras crianças estavam na Vila, brincando de pique-esconde, eu aproveitei para abordar o tema. Joana – Vocês não querem brincar de pique-esconde? Lucas – Não. Logo depois escutamos alguém chamando o Lucas. Vinícius vai até a porta e fala: Vinícius – Não, a gente tá jogando Club Penguin e não quer ir não. 118 b) Em outro encontro estavam na minha casa: Lucas, Luiza e Vinícius. Luiza estava jogando no Orkut e conversávamos sobre brincar no computador e na Vila. Joana – Mas, o que é melhor, brincar na rua ou no computador? Luiza – No computador. Lucas – Os dois. É só me cortar assim no meio aí uma parte fica no computador e outra fica na Vila. Vinícius – Em mim também. Em outra ocasião, eu estava em casa e o Lucas e o Samuel bateram a porta, convideios para entrar e mostrei o álbum do Club Penguin. Como estávamos conversando sobre um site, aproveitei para perguntar quando eles gostam de jogar no computador. Lucas - Quando não tem nada pra fazer. Samuel concordou. Também perguntei se eles preferem brincar na Vila ou jogar e eles responderam que preferem brincar na Vila. Ressalto mais uma vez que a minha insistência em abordar este tema deve-se à preocupação levantada pela mãe e por uma dificuldade própria do adulto de não conseguir evitar não hierarquizar as atividades. Até por que sempre achei que as crianças brincavam bastante na Vila e nunca pensei nelas como crianças que passam seu tempo livre jogando. Podemos perceber que essas crianças não trazem a necessidade de estar ao computador o tempo todo, preferindo brincar na Vila sempre que possível, recorrendo ao computador quando não há nada melhor para fazer. Luiza diz que prefere o computador, mas contextualizando a fala dela, podemos perceber que não há nenhuma criança da idade dela que more na Vila, o que faz com que, na maioria das vezes, o brincar dela tenha que seguir as crianças mais novas. Sendo assim, conforme ela cresce, percebo que se afasta cada vez mais desta convivência no espaço comum da Vila, ainda assim é possível vê-la brincando lá. A fala do Lucas em que ele diz que é só cortar ele ao meio nos ajuda a refletir sobre a alardeada dicotomia entre o brincar de antigamente e o brincar atual que muitas vezes é assumida na academia e mais ainda no senso comum. É possível encontrar discursos que desvalorizam as formas de brincar atuais e valorizam as formas de brincar de antigamente que, muitas vezes, são consideradas mais adequadas à infância. Este discurso é voltado, principalmente, contra os brinquedos eletrônicos, a televisão, os videogames que são vistos 119 como impossibilitadores da brincadeira infantil. Os brinquedos e brincadeiras de outrora, nessa perspectiva, são vistos como possibilitadores de um brincar com o outro, que favorece a interação com o outro e a criatividade, já os brinquedos e brincadeiras atuais, fabricados em série, são vistos como favorecedores da individualidade, da agressividade ou como impossibilitadores da criatividade. Segundo Brougère: [...] A ambiguidade do brinquedo vem do que ele exprime, por um lado, a infância e os seus valores positivos, por outro, uma sociedade artificial oposta à naturalização da brincadeira. Sem dúvida ainda somos românticos, pois o discurso contemporâneo sobre o brinquedo continua a trazer esse duplo valor, a positividade da infância na brincadeira, a negatividade de uma sofisticação que destruiria a espontaneidade infantil (2004, p. 265). Sarmento, ao falar sobre a interação das crianças em rede, nos traz a concepção de que os brinquedos eletrônicos são uma forma de observar como os adultos interferem na cultura de pares das crianças, pois eles são feitos pelos adultos para as crianças e, ao contrário das brincadeiras inventadas pelas crianças, esses brinquedos são uma forma de imposição da cultura do adulto na cultura de pares delas. Mas, o autor não acha que as crianças estão sendo manipuladas e sofrendo intervenções da cultura por causa do afastamento com os brinquedos e brincadeiras de antigamente, ele, assim como eu, entende que ao invés de criticarmos e comparamos, devemos ter consciência do que as crianças estão fazendo com a cultura que elas encontram na nossa sociedade e como estão se relacionando com esses brinquedos, meios eletrônicos e Internet que por fazerem parte do cotidiano “estão presentes nos dispositivos, modos e processos de elaboração e reelaboração dos saberes das crianças” (SARMENTO, 2006, p7). Entretanto, veremos a seguir que os sujeitos da pesquisa, além de demonstrarem não ter essa dicotomia em relação aos tipos de brincadeira, mostram que a brincadeira no computador pode trazer questões comuns à qualquer tipo de brincadeira, inclusive as que eles brincam na Vila. 120 4.2 Computador: é legal usar junto? Esta pergunta foi feita para as crianças e nos ajuda a pensar sobre a individualização das crianças, sobre o isolamento creditado, principalmente, ao uso dos meios eletrônicos e digitais, no caso o uso do computador. As crianças interlocutoras demonstraram que conseguem brincar juntas no computador, apesar de alegarem que preferem utilizar sozinhas, conforme evidenciam as falas abaixo: Joana – E vocês preferem usar sozinhos ou usar com alguém o computador? Samuel e Lucas – Sozinho. Lucas – Com alguém enche o saco. Joana – E mesmo se for um amigo? Lucas – Amigo não. Joana – Amigo é bom ou não? Vinícius – Amigo do irmão não pode, não vale. Luiza – Só se for meu pai ou minha irmã, eu tenho que ficar tirando pra ela mexer no dela. Joana – Aí é chato, né? Então quando que é legal ter um amigo do lado no computador? Quando, em que momento? Pra fazer o que no computador que é legal ter um amigo? Lucas – Pra mostrar coisas novas. Luiza – Escutar música. Joana – E pra jogar Club Penguin? Luiza – Às vezes. Lucas – Algumas vezes. Porque senão ele fica enchendo o saco: eu primeiro, eu primeiro. Apesar de as crianças alegarem que preferem usar o computador sozinhas, a dinâmica do campo acabou propiciando o usar junto. Assim, as crianças brincavam muitas vezes juntas no meu computador, revezando-se em operar o jogo (os teclados e o mouse) e participar ativamente com palpites e dicas sobre como a criança que estava no comando do jogo deveria proceder. As crianças, apesar de alegarem que preferem jogar sozinhas, jogaram juntas e participavam ativamente quando outra criança estava no controle do jogo. Cabe ressaltar que 121 eu havia dito que pretendia pesquisar individualmente com elas, mas as próprias crianças reverteram esse método e quiseram brincar juntas em meu computador. Sarmento (2006) nos traz a constatação de que, ao testemunhar crianças acessando a Internet mesmo quando estas dispunham de vários computadores, o movimento natural delas era o de se agruparem ao redor de um computador só. O autor ressalta que o PC (personal computer) tem como premissa o uso individual, mas as crianças parecem não ter interesse em jogar sozinhas. Portanto, percebemos que as crianças gostam de usar o computador em grupos o que nos faz refletir: as crianças que ficam sozinhas no computador, causando preocupação em muitos sobre o isolamento e a falta de interação com outras crianças, o fazem por que querem ou por falta de opção? Será que os responsáveis estimulam a socialização destas crianças? Sem pretender criticar os pais, até por que existem muitas variáveis para que uma criança não conviva com outras intensamente, acredito que podemos verificar isso, pois a Camila jogou sozinha comigo, pois conforme relatado anteriormente, ela não tem o costume de ficar na Vila brincando com os meninos e nunca estava presente quando os meninos vinham jogar. Ora, sabemos que ela fica mais isolada dos meninos e isso influenciou seu jogar sozinha, porém, entendo que isso se deva à sua relação não muito próxima com eles. Até por que já pude observá-la jogando com um menino mais novo que é filho de um casal de amigos que frequenta minha casa e com quem ela fez amizade. Desta forma, repito a pergunta: é o computador quem individualiza? 4.3 As relações no usar junto Muitas foram as formas de usar junto o computador e pretendo refletir sobre elas a partir da fala das crianças. Antes, é válido contar as condições em que esses usos aconteceram nos encontros de pesquisa que ocorreram em minha casa. À época, eu possuía um computador desktop que ficava em uma mesa em uma espécie de corredor da casa. É um apartamento pequeno e este corredor foi aproveitado como espaço de trabalho para mim. Portanto, o computador ficava em uma mesa com uma cadeira. Este espaço pequeno e estreito foi, a meu ver, responsável pela organização de muitas situações vividas: o máximo de cadeiras que podíamos colocar neste espaço eram duas o que criou situações de duas crianças sentadas na mesma cadeira; quando alguma criança precisava passar para ir ao banheiro ou à cozinha, era 122 necessário que quem estivesse sentado nesse espaço, chegasse a cadeira mais para perto da mesa; a falta de espaço fazia com todos ficassem próximos uns aos outros e principalmente ao jogador, o que facilitou a participação dos que não estavam com as mãos no teclado e mouse. O fato de termos um único computador disponível conduziu o trabalho para uma forma de usá-lo, minimizando, com isso alguns aspectos de ordem tecnológica que, em outras circunstâncias poderiam surgir. Por exemplo, aspectos como a interatividade on-line entre eles ou a mobilidade hoje disponível pela diversidade de aparatos e de formas de conexão que existem não se apresentaram como questão devido às condições do contexto em que a pesquisa aconteceu. Longe de considerar isso um limite penso que o contexto vivido é representativo do cotidiano de muitas crianças hoje, e que ofereceu ricas formas de questionamento. De acordo com Corsaro (2011) poucos são os “estudos de crianças jogando jogos” e que se pretendemos compreender “o rico mundo social da vida das crianças e das culturas de pares, é necessário adentrarmos sua brincadeira, estarmos dispostos a sujar nossas calças e a sujar de barro nossos sapatos”. Ao trazer exemplos de pesquisas feitas enquanto crianças jogam, Corsaro elenca as principais características das culturas de pares que apareceram nestes momentos: as negociações de status durante as brincadeiras, a competição e a cooperação. As interações das crianças são movidas principalmente pelo desejo de brincar juntas e este brincar juntas exige muita negociação, exigindo que a criança tenha conhecimento dos interesses do outro e saiba lidar com seus próprios desejos a partir desta perspectiva. As ações conjuntas constituem um complexo processo interativo envolvendo a apreensão e a interpretação de pistas dos comportamentos dos outros, a negociação de significados e de ações, a compreensão mutua, o alinhamento de suas ações com as dos outros na busca de algo comum. (BORBA, 2005, p. 211) A partir das negociações que apareceram para que se desse esse uso conjunto, criei as seguintes categorias para analisar o trabalho de campo, em diálogo com a reflexão teórica: “Cooperação”; “Competição”, dividido em: “Competir através do jogo”, “Competir com o jogo” e “Competir entre eles”; “Status”, “Quando a pesquisadora interfere nas relações: defendendo o irmão menor” e, por fim, “Múltiplos papeis: Pesquisadora, jogadora, professora, mediadora”. 123 4.3.1 Cooperação De acordo com Borba (2005) a cooperação é o que possibilita o brincar junto. No exemplo abaixo vemos como as crianças conseguiram criar uma forma cooperativa de jogar juntos em um jogo que foi planejado, supõe-se, para o uso individual. O momento de brincar no site é um momento de brincadeira como outra qualquer, mas no computador o jogador é o que executa o ato de jogar, é ele quem decide. Então, o jogar descrito possibilita que mais de uma criança participe. Lucas estava sentado na cadeira que estava em frente ao computador e quando levantou para me chamar, Luiza aproveitou para sentar-se. Quando cheguei perto, ela e Lucas estavam brigando para ver quem jogaria. No final da discussão, ele cedeu e concordou que ela deveria jogar um pouco, mas ele também queria jogar e disse que faria as manobras. Os dois ficaram jogando juntos no site do Club Penguin em um jogo de pegar onda e enquanto um guiava o pinguim na onda com o mouse o outro fazia as manobras com o teclado. Joana – Uhhhu! Nossa, hein! Lucas – Gostou? Eu que tô fazendo as manobras! Luiza – E eu que estou andando! Outra forma de uso cooperativo se deu quando havia um jogador com o controle sobre o jogo, enquanto outros viam, deram palpites etc. Acredito que uma boa comparação é pensarmos que em muitos jogos há os que estão na reserva esperando a sua vez para jogar. Ou seja, quando havia apenas uma criança manipulando os controles sobre o jogo, mas as outras estavam em volta participando ativamente, sem distanciamento por não estarem com as mãos em ação. Nestes momentos elas utilizavam outras formas de ser jogador: davam dicas, conselhos, pediam para ajudar em um momento específico, ficavam nervosas e apreensivas, criticavam as decisões do jogador etc. Samuel estava jogando um jogo que eu, Lucas, Vinícius e Luiza tínhamos jogado no dia anterior. Ele está com dificuldades, apesar de já ter jogado o mesmo jogo em outras ocasiões. Joana – Como é que a gente fez para matar eles mesmo, Lucas? Lucas – Esqueci... 124 Samuel – Eu também! Joana – Ai não, a gente vai ter que ficar pensando de novo todo esse tempo? Samuel – Hahã (confirmando). Lucas – Como você fez pra descer? – Pergunta para Samuel. Joana – Ai! Aí, foi isso mesmo Samuel! A gente pulou e atirou enquanto pulava. Não daí não dá. Fica bem coladinho aí. Isso! Lucas – Ah é, né? Agora tem que pular um pouco mais pra trás. É o campo de força dele. Samuel – Ah é, eu tinha me esquecido disso. Esta situação acaba possibilitando a criação de táticas para que os que estão olhando consigam ingressar no jogo antes de ser sua vez, antes do tempo do outro acabar. Corsaro (2011) nos ajuda a pensar sobre isso quando traz as “estratégias de acesso” das crianças às brincadeiras descrevendo comportamentos que ele pode ver que crianças de até 6 anos faziam na tentativa de inserir-se em uma brincadeira que já havia começado. Ele destaca o ingresso não verbal, que seria uma observação com o intuito de conseguir elementos sobre o assunto da brincadeira e tentar ingressar com uma variante da mesma. Se não for aceita, a criança pode recorrer à amizade para entrar na brincadeira e se ainda assim não conseguir, ela pode oferecer uma variação do jogo, mas verbalizando suas ideias. O autor coloca que elas não são diretas em suas colocações por que há uma tentativa constante de proteção do espaço de brincadeira. Em minha pesquisa isso aconteceu? Acredito que não por que as crianças já estavam inseridas num grupo, mas ao mesmo tempo havia a necessidade de entrar na brincadeira do amigo diretamente, intervindo. A maneira de ser aceito nessa intervenção era sabendo jogar ou dizendo para o outro o que deveria ser feito para ganhar o jogo. Sendo assim, algumas vezes o uso cooperativo do computador se transforma em tática para jogar, o que aconteceu quando Lucas olhava Samuel jogar Lucas para Samuel – Aperta aqui! É mais rápido! Samuel - Não vai adiantar nada. Lucas – Eu aperto aqui. Samuel – Não, deixa que eu aperto. Lucas – Por favor! Samuel – Não, deixa que eu aperto. 125 Lucas – Eu sou bom em apertar! Cuidado! Tem que prestar muita atenção. Quer que eu faça? Samuel – Calma aí. Lucas – Não desce senão você perde! Pula, pula! Ah... Samuel – Ai! Lucas – Você tinha que pular. Podemos ver que a vontade em participar é muito grande, fazendo com que Lucas use argumentos e conselhos para que Samuel ceda e o deixe jogar. Além da tática para jogar, observamos neste diálogo o poder que pode ter quem está com o controle sobre o jogo, ou seja, o uso conjunto só é permitido com autorização do jogador. Vinícius está jogando um jogo do Ben 10 e está com dificuldades. Lucas começa a falar: Lucas – Acho que eu já entendi como pegar aquelas dali. Joana – Deixa ele (Vinícius) tentar. Lucas – Acho que eu já entendi. Tem que ficar ali em cima pra poder fazer. Vinícius – Eu não consigo, vem aqui? (falando pro Lucas) Lucas fala para mim – Ele quer que eu faça. Vinícius – Eu quero que você mate todas as tartarugas... Eu não sei. Depois de um tempo, Lucas continua jogando, em pé, enquanto Vinícius olha ele jogar: Joana – Vinícius, por que você pediu pro Lucas jogar? Lucas – Por que ele não consegue. Pergunto novamente para o Vinícius, mas ele não responde. No diálogo abaixo vemos como a ajuda, que na maioria das vezes é bem vinda, pode ser transformar em forma de não jogar. Durante a vez do Lucas ele estava gostando da ajuda de sua irmã Luiza, mas quando ela estava jogando ele tentou usar a ajuda dela como desculpa para dizer que não havia jogado quase nada. Luiza – Eu vou ganhar surfando. Lucas – Não, não Luiza. 126 Joana – Deixa ela surfar uma vez aí depois você vai. E o Samuel também, o Samuel não jogou. Lucas – Mas, eu nem joguei direito. Joana – Você fez a missão toda. Lucas – É, mas ela que ficou mandando eu fazer as coisas! Joana – Ah, mas ela estava ajudando, né? 4.3.2 Competição A competição é uma forma de uso que apareceu principalmente com o uso conjunto. Podemos perceber três formas de competição: competir través do jogo; competir com o jogo e competir entre eles. Entendo que competir através do jogo é quando eles competem entre si para ver quem é o melhor em tal jogo, ou seja, usam o jogo como modo de comparar quem é melhor, quem tem mais status, quem sabe mais. Competir com o jogo é quando eles demonstram dificuldade em conseguir vencer o jogo ou um inimigo. Às vezes essa dificuldade determina o desinteresse deles pelo jogo. Por fim, compreendo a competição entre eles como a disputa que se faz sobre as habilidades pessoais deles, sobre as conquistas em comparação com o outro. 4.3.2.1 Competir através do jogo Enquanto Samuel joga Ben 10, ele e Lucas conversam. Lucas – Caramba, Samuel, eu consegui ir até o último! Samuel – E eu consegui ir até o... calma aí.... eu consegui o que foi depois do último. A fala do Samuel mostra um tipo de competição bem característica: querer ser o melhor, saber mais do que o outro. Samuel queria tanto ser melhor do que o Lucas que diz que conseguiu ir depois do último. Em outro momento, estão os três meninos jogando Ben 10 e surge o assunto sobre quem consegue ganhar o jogo. Ser o melhor é mostrar que o que o outro acha difícil, para este é fácil. Podemos perceber como o Vinícius quer mostrar que também consegue, tentando afirmar-se no grupo. 127 Lucas – Ih, vou no Bola de Canhão! Essa daqui é difícil, mas é maneiro! Samuel – Ah é. Pra mim é muito fácil. Eu ganhei esse jogo rapidinho. Vinícius – Eu já consegui, um dia desses. 4.3.2.2 Competir com o jogo Conforme trouxe na reflexão sobre o site favorito, as crianças desistiam de um jogo quando estavam com muitas dificuldades, afirmando que o mesmo é chato. Entretanto, essa desistência foi mais comum quando havia apenas uma criança jogando, pois quando estavam com outras crianças, o uso compartilhado como forma de ajudar prevalecia. Será que os meninos não queriam jogar em jogos difíceis por não quererem gastar o tempo de jogos, que muitas vezes era limitado a 10 ou 15 minutos, com um jogo que não conseguiriam vencer? E qual será a importância do grupo para a decisão de continuar jogando um jogo apesar da dificuldade encontrada? Lucas está pesquisando qual jogo do Ben 10 vai jogar. Ele acha um. Lucas – Ah, caraca, conheço esse daqui. É muito chato, eu nunca consegui. Porque também é muito difícil. Joana – Ah, é chato ou é difícil? Lucas – Os dois. Joana – Quando o jogo é difícil você acha chato? Lucas – Sim. Ele começa a jogar, mas logo desiste do jogo. Lucas – Ah, vou sair desse jogo. Ele é meio chatinho (ele não estava entendendo o que deveria fazer e estava morrendo toda hora). Vou colocar pesquisar Ben 10 de novo. Lucas entra em outro jogo e morre. Joana – Só de tomar um tiro você já morreu? (me refiro ao fato de não ter mais de uma vida como é normal nos jogos, ele tem que começar desde o início). Lucas – Por isso que é meio chato esse jogo. Mas, é maneiro. Joana – Eu não entendo como é chato e é bom ao mesmo tempo. Pô, mas é chato só ter uma vida, né? 128 Lucas – Por isso que é meio chato (o jogo). Em outro momento do jogo, Lucas deixa claro a sua posição em relação a um jogo difícil. Lucas – Eu odeio quando chega no final! Por que é difícil! Por que vem um bicho que é uma mula praticamente! Oh, oh! Tô pertinho do lugar. Não queria tá perto, queria tá longe, queria tá no inferno por que senão eu chego aqui e aí eu vou ter que lutar com o hamster gigante. Porém, Camila que sempre jogava sozinha, traz duas concepções sobre o perder, em momentos diferentes. Em um ela diz que não há problema em perder, pois pode tentar de novo, em outro momento ela fala que é ruim ter que fazer tudo de novo no jogo. a) Joana – E quando você perde um joguinho, você fica triste? Quando dá game over ou quando você erra? Camila – Bom, eu não gosto da música que o game over faz, mas posso tentar de novo. Camila – Olha, esse aqui vai ser difícil, né? Joana – O amarelo não fica no vermelho. Tem que ser ao contrário, né? Camila – Esse tá difícil. Joana – Tá difícil, mas você já tá quase terminando! Por que você acha que esse quadrado precisa desse raio? (eu estava perguntando de uma forma geral pra ver o que ela entendia sobre o objetivo do jogo). Camila – Por que assim eu passo de nível, eu já passei de muitos. Joana – É bom passar de nível? Camila – É, para ser vencedor. Joana – Mas e aí se você perde você fica triste? Camila – Não, por que eu posso tentar de novo. b) Joana – Você gosta quando um jogo é difícil? Ou você prefere quando é mais fácil? Camila – Ah, prefiro quando é fácil. Joana – Esse estava difícil? Camila – Não, nenhum tá difícil. Joana – No Papa-jogos tem uns que são difíceis, né? 129 Camila - É. Quando são difíceis eu não jogo nunquinha. Por que aí eu perco toda hora. Joana – É chato perder? Camila – É. Alguns você tem que fazer tudo de novo. É interessante constatarmos que Camila justifica que o jogo poderá ser jogado de novo e que ela continuará tentando ganhar, mas ao mesmo tempo, ela valoriza o passar de nível para ser vencedora. 4.3.2.3 Competir entre eles É interessante perceber que a posição das crianças em relação ao jogo ser fácil ou difícil varia de acordo com a situação. Para além do que eu já coloquei sobre as crianças jogarem apesar da dificuldade quando estão em grupo, também podemos perceber a necessidade de afirmação de uma superioridade frente ao outro no discurso das crianças. Como exemplo, trago duas situações em que perguntei para o Samuel sobre o que ele achava de um jogo difícil. Em um dia em que estávamos apenas eu e Samuel, pergunto sobre o que ele acha do jogo que estamos jogando: Joana - É bonitinho, né? É fácil também, né? Samuel – É. Joana – Você gosta mais quando é fácil ou quando é difícil? Samuel – Quando é fácil. Já em outro momento quando estávamos eu, Lucas e Samuel, o discurso deste último muda, numa possível tentativa de mostrar que sabe mais do que o amigo em relação aos jogos. Joana – Samuel, ontem o Lucas falou pra mim que quando um jogo tá muito difícil é chato, você também acha isso? Samuel – Eu acho mais ou menos legal. 130 Ainda nesta competição entre os meninos, podemos observar o diálogo abaixo, onde Lucas está jogando e Samuel e ele iniciam uma argumentação sobre se o jogo é difícil ou fácil. Samuel continua querendo mostrar que sabe mais do que o amigo. a) Samuel – É o mais difícil que tem. Brincadeira, eu consigo, é fácil. Lucas – É agora que me dá medo. Eu tenho que subir aqui e matar. Samuel – É muito fácil. Lucas – Ah, pô, tô falando, Samuel, é difícil. Ô, Samuel, me ajuda aqui. Samuel – Cadê? É fácil. Lucas – É difícil. Samuel – Eu consigo. b) Vinícius está com dificuldades e passa o controle e deixa que Luiza assuma. Ela joga por um tempo, mas também não está conseguindo. Lucas – Caraca, se fosse eu que tivesse jogando já teria conseguido. Joana – Depois você vai jogar aí você vai conseguir. Lucas – Quer que eu vá nesse, Vinícius? É facinho. Vinícius – Não... Em alguns momentos o jogar junto pode ser motivo de discórdia, causando uma discussão para ver quem é o culpado do erro, como vemos a seguir no diálogo que aconteceu no mesmo dia do diálogo acima, com os meninos dando continuidade ao jogo que Lucas e Luiza estavam jogando: Lucas e Vinícius estavam jogando juntos, enquanto Lucas mantinha o pinguim na onda Vinícius fazia as manobras. Lucas – Agora eu vou surfar! Você já fez várias manobras! Vinícius – Ah não! Deixa eu fazer as manobras! Lucas – Tá, você faz as manobras! Joana, você vai ver! Pô, Vinícius! Seu burro! Você podia ter feito manobras! Olha, viu quantas! Oh, oh! Besteira! (ele morreu). Vinícius – Viu o que você fez Lucas! Lucas – Você que tem que fazer para eu pular! Mas, a gente ainda tem essa e uma outra (se referindo às vidas). Deixa... 131 No diálogo acima entre o Lucas e o Vinícius, destaquei em negrito os momentos em que há manifestações de conflitos entre as crianças. Este fato, bastante comum entre eles está de acordo com o que nos traz Corsaro ao falar que muitas vezes as crianças devem “cooperar para competir”, ou seja, “as brigas são um meio básico de construir a ordem social; de cultivar, implicar e de manter as amizades; e de desenvolver e demonstrar identidade social” (2011, p. 231). Como podemos ver, nos diálogos acima, o fato de os irmãos estarem brincando não significa que eles estejam em desacordo ou que a brincadeira vá acabar por causa de uma discussão. A tentativa de culpabilizar um ou outro pelo erro no jogo é rapidamente contornada pelo irmão mais velho que, colocando panos quentes à discussão e provavelmente admitindo uma mea culpa, diz que eles ainda têm mais duas vidas para jogar, afinal, brigar definitivamente, pode significar o fim do jogo. 4.3.2.4 Status Os diálogos (a) e (b) apresentados acima (página 130) nos remetem à questão do status abordada anteriormente (a partir da página 77): Vinícius é o mais novo, o menor, e consequentemente, é o que constantemente fica fora das brincadeiras ou tem suas atitudes desvalorizadas. De acordo com Corsaro (2011) as crianças que convivem em pequenos grupos, como é o caso dos meus interlocutores, estão mais sujeitas às provocações referentes à hierarquia de status. Corsaro destaca ainda que há vários motivos para que ocorram as hierarquias de status entre as crianças e que elas não são fixas: As crianças geralmente competem umas com as outras e tentam controlar umas às outras usando uma variedade de habilidades interpessoais e comunicativas, e as hierarquias de status são frequentemente fluídas e estão em constante mudança. (CORSARO, 2011, p.205) Alguns diálogos nos apontam essa relação dos mais velhos com Vinícius. a) Lucas – Aperta no ponto de interrogação, o burro! Vinícius – Onde? Samuel – Ele não sabe como se clica! b) Vinícius – Meu planinho é ir por aqui, matar esse ... Lucas – Seu planinho é planinho de bebê. 132 Corsaro nos ajuda a refletir mais ainda sobre a posição do Vinícius nesta relação ao trazer uma análise da criança que fica à margem das brincadeiras denominando-a como “criança rejeitada” como sendo aquela que “não consegue se tornar participante ativo da cultura de pares” (2011, p. 209). No caso específico do Vinícius, acredito que esse rótulo seja demasiado forte. É visível, na relação entre os meninos (Vinícius, Lucas, Samuel) que os dois mais velhos normalmente tripudiam da posição dele de ser menor, e nas brincadeiras na Vila, geralmente ele é deixado de lado ou tem que seguir as brincadeiras dos mais velhos, não possuindo status para propor brincadeiras. 4.4 Quando a pesquisadora interfere nas relações: defendendo o irmão menor Nas interações ocorridas em minha casa, eu, com frequência interferia nesta relação deles, defendendo o Vinícius e mostrando para os mais velhos que eles não podiam agir de maneira excludente com ele, não podiam desvalorizar os conhecimentos e ideias que ele trazia. Essa atitude fica ainda mais visível na situação abaixo em que o Vinícius está jogando e seus irmãos ficam dando palpites e querendo jogar em seu lugar. Segue a transcrição da situação: Luiza e Lucas estão dizendo o que Vinícius tem que fazer para conseguir ganhar o jogo. Joana – Ele vai conseguir. Lucas senta aqui que ele vai conseguir. Não pode ficar pressionando ele. Quando o Vinícius se queixa de que o personagem não consegue pular, o que não é verdade, Luiza mete a mão no teclado para ajuda-lo. Ela consegue e Vinícius volta a jogar. Mas, logo depois apresenta dificuldades. Lucas – Ai, Luiza, consegue ali pra ele? Joana – Não, deixa ele tentar, gente. Ainda no que se refere à relação de saber jogar, podemos perceber o quanto eu acabava protegendo Vinícius. Isso acontecia porque os outros estavam sempre desvalorizando suas habilidades no jogo ou pedindo para jogar no lugar dele para resolver as coisas que ele não conseguia. Ao longo do processo essa situação não era tão explícita para mim. Tornou-se 133 clara na medida em que transcrevi as gravações do campo e pude refletir sobre elas. Entretanto cabe assumir que até eu ficava nervosa quando o Vinícius não estava conseguindo. Na verdade, eu ficava nervosa quando qualquer criança não estava conseguindo, mas isso era bem mais frequente com o Vinícius. O diálogo a seguir mostra esta minha ansiedade. Vinícius está jogando, Luiza e Lucas ficam dando palpites. Lucas – Vinícius, quer que eu pegue aquela última? Vinícius – Não. Luiza – Empurra, ai.. (Vinícius morre). Vinícius – Ai, Gabi, para de me atrapalhar (ela só tinha falado, não estava com a mão no mouse nem nada parecido). Luiza – Eu não tô fazendo nada. Joana – Ele conseguiu??? (falo com urgência na voz) Lucas – Não, ele tá morrendo toda hora por causa da Gabi. Se você morrer eu faço pra você, tá? Quer que eu faça? Vinícius – Não. Em outro momento, podemos perceber como nas vezes em que o Vinícius sabia fazer alguma coisa ele, às vezes, poderia ser valorizado pelos amigos. Isso aconteceu ao acessarem pela segunda vez um jogo e Vinícius sabia fazer algumas coisas que Lucas não conseguia. Lucas – Ah, morri! Caraca, eu nunca perdi nesse. Vinícius – Eu já ganhei todas as vezes nesse. Lucas – Eu vou fazer do jeito do Vinícius. Vinícius – Lucas esqueceu o que eu fiz? Que eu pulei e fiz aquele negócio? Pula, pula, pula. Lucas tem que pular pro outro lado. Tem que pegar por ali e ir pra lá. Viu? Lucas – Eu já sei. Vinícius – Viu, isso foi bom, a minha ideia. Joana – A sua ideia foi boa, né Vinícius? Vinícius – É. Por que fui que fiz. Lucas tem que pular ali, dahh! Lucas – Vinícius consegue subir aqui de novo? Vinícius – Eu sim, eu sim. Lucas eu consigo. 134 Lucas – Tá. Valeu Vinícius. Vinícius – Eu fiz pra ele ali, pra subir ali, por que ele não sabe! Joana – Que bom Vinícius! Lucas continua jogando. Vinícius – Quer que eu faça aí, Lucas? Por que você não consegue. Lucas – Você só quer na minha vez Vinícius – Não. Joana – Ele quer te ajudar, você quer a ajuda dele? Lucas dá o teclado pro Vinícius que consegue resolver o problema dele e devolve o teclado para o irmão. Na fala sublinhada, podemos ver o orgulho de Vinícius ao conseguir ajudar o irmão mais velho. Em outra ocasião, enquanto jogávamos, Vinícius descobriu uma coisa nova no jogo, exatamente quando não sabíamos mais o que fazer, pois era um jogo de estratégia. Joana – Gente, como ele vai passar por aí? Lucas – Eu consigo, ele é que não consegue. Vinícius acaba conseguindo, pois descobre um novo poder da formiga no jogo. Luiza – Ué, como você fez Vinícius? Vinícius – É só apertar aqui ó. Lucas – Ah, que legal! Faz de novo, Vinícius. Joana – Vinícius, que legal como você descobre as coisas, né? Quando ele acaba de jogar, fala: Vinícius – Eu tô bom, não tô? Que bom que eu ganhei no meu, né? Joana – É. Muito legal! Mais uma vez podemos perceber a necessidade de autoafirmação das crianças, pois saber jogar e vencer é ser aceito pelos outros, ser valorizado. 135 4.5 Múltiplos papéis: Pesquisadora, jogadora, professora, mediadora Conforme já foi dito no primeiro capítulo, o estudo realizado exigiu de mim uma postura de entrega em campo e esta entrega, permitiu que eu ocupasse muitos lugares durante a minha relação com os interlocutores: vizinha, amiga, jogadora, adulta, professora, pesquisadora... Como ocupar esses lugares e ao mesmo tempo deixar que a pesquisadora seja a mais presente? Revisitando as gravações, percebo que muitas vezes o meu lado jogadora, ou o meu lado professora-adulta-mediadora falou muito mais alto do que o lado pesquisadora. Entretanto, acredito que esta constatação não retira da investigação o que ela pretende ser: um estudo feito no cotidiano com crianças em seus espaços particulares acessando jogos on-line como forma de observar seu interesse no assunto. Sendo assim, apresento algumas transcrições que nos ajudam a compreender a minha relação com meus interlocutores em suas diversas formas. Muitas vezes, as crianças queriam me mostrar o quanto sabiam sobre um assunto, sobre um jogo, conforme a fala de Lucas: “Tá, você faz as manobras! Joana, você vai ver!” (página 130 deste capítulo). Essa posição de “saber mais” das crianças em relação a mim aconteceu algumas vezes, como por exemplo, quando as crianças estavam jogando um jogo que eu não conhecia e cabia a elas me explicar o que deveria ser feito. Assim, as crianças podem se impor ao investigador como aqueles que conhecem mais do que ele o assunto que está em pauta, as crianças tornam-se autoridade e ganham um status na nossa relação. Esta situação, conforme nos traz Girardello e Orofino, denuncia [...] a percepção das crianças, frequentemente acertada, de que elas estão falando sobre algo que conhecem melhor do que os adultos. (...) Isso pode facilitar uma espontaneidade maior do que em outros contextos em que o entrevistado se percebe como alguém que “sabe menos” do que o entrevistador. É comum que as crianças revelem uma alegre excitação ao explicar aos pesquisadores qual o enredo de um programa, ou quais os motivos por trás das ações de um herói ou vilão. Afinal, aquele adulto está manifestando uma curiosidade real por algo que para as crianças tem um grande valor simbólico, num quadro que tende a facilitar o diálogo entre pesquisador e informante. (2002, p 5) No caso desta pesquisa, a pergunta que é feita de acordo com o que pesquisador não sabe e realmente quer conhecer, aconteceu em muitos momentos, principalmente, por 136 estarmos em jogos que eu conhecia pouco ou que estava tendo um primeiro contato. Outras vezes eu acreditava que deveria ser feito algo, mas estava errada. Joana – Tem que apertar aqui para começar. Camila – Não pode, por que senão eu entro em outro site. Vemos como, do lugar de adulta e de quem supostamente sabe mais, falo para a Camila o que ela deve fazer no site e acabo descobrindo que estava errada e que se ela clicasse onde eu falei, nós sairíamos do jogo. Nos diálogos abaixo podemos ver como as crianças, que às vezes tem a certeza de que sabem muito mais do que eu, também podem precisar da minha ajuda. Algumas vezes eu conseguia ajudá-las em outras não. a) Eu e Vinícius estamos no Club Penguin. Não há mais nenhuma criança na minha casa Quando ele encontra um obstáculo mais difícil, fala pra mim: Vinícius – Você que faz. Joana – Eu que faço? Você não quer fazer? Vinícius – Não. Joana – Por quê? Vinícius – Por que é difícil. Vou fazer e não consigo. Joana – Acho que é difícil para mim também. b) Samuel e eu estamos jogando sozinhos na minha casa. Ele acessa o site Friv e escolhe o jogo da formiga. Ele fica preso, sem conseguir passar da fase. Joana – Morre aí que eu te explico como é que é. Que eu já lembrei. Esse daí a gente já jogou (ontem, eu, Vinícius, Luiza e Lucas). Você tem que pular aqui e ficar aqui em cima. Vai. Samuel – Ah tá, já sei. Aí depois ele vai destruindo. Joana – Isso. E o negócio te leva. Eu acho que primeiro ela tem que empurrar as que estão embaixo. Samuel – Ai, dá certo! Ainda nestes diálogos podemos ver a minha mediação que apareceu bastante: era necessário mediar as relações entre eles, o tempo de uso do computador e algumas vezes as 137 dúvidas deles. Estes diálogos nos ajudam a pensar sobre o lugar do pesquisador em uma pesquisa com crianças em que, na maioria das vezes, elas podem dominar mais o conteúdo do estudo. Sendo assim, como se posicionar frente ao assunto? Como não se perder em detalhes “técnicos” mantendo a concentração sobre o que queremos saber? Acredito que por ter me envolvido de tal forma com os jogos, eu acabei não sabendo diferenciar os momentos de jogo dos de pesquisa, desta forma, minhas perguntas eram sobre os jogos e raramente sobre o que as crianças pensavam sobre os jogos. Desta forma, analisando estes momentos eu me descubro muito mais como jogadora do que como pesquisadora, entretanto, acredito que ao mergulhar tão profundamente no campo pude envolver-me com a cultura de pares deles. A ansiedade para jogar, expressa na dificuldade demonstrada pelas crianças em respeitar o momento do outro jogar gerou mais uma vez a necessidade de que eu fizesse o papel de mediadora. Durante os nossos encontros tínhamos a regra, sugerida por mim e acatada pelas crianças, de que cada criança jogaria por 15 minutos. Quando todos acabassem de jogar, o primeiro jogaria novamente e assim em diante. Esta estratégia que criei tinha a intenção de que todos pudessem jogar, nenhum jogasse mais do que o outro e de diminuir os conflitos entre eles. Contudo, acabamos tendo conflitos, pois as crianças dificilmente saíam do computador quando havia acabado o tempo delas. Algumas questões que apareceram foram as táticas que as crianças criaram para driblar a minha regra e também o meu papel de mediadora, adulta e professora que acabava aparecendo bastante nos momentos de conflito. Vinícius – Já está na minha vez agora? Joana – Já. Lucas, tá na vez do Vinícius. Lucas – Ah, deixa eu só mais um pouco. Joana – Lucas, não. Não adianta nada, né, a gente falar não pro Lucas. Lucas – Por favor? Só mais um pouco. Vinícius – Não! Lucas – Só deixa eu conseguir passar dele (falando de um personagem inimigo). Lucas nos convence e começa a tentar derrotar o inimigo. Estávamos tão concentrados no jogo que ficamos mais uns 10 minutos com ele jogando e com todos na torcida por ele. Lucas continua jogando até ganhar o jogo e passa pro Vinícius. Percebemos como as crianças criavam táticas para continuar jogando ou para jogar novamente. Também podemos perceber o meu papel de adulta nestes momentos, pois na frase 138 em negrito eu, claramente, dou uma bronca no Lucas por causa da atitude dele. Ainda neste papel de mediadora, adulta, professora, há outro diálogo interessante e que traz estes lugares exercidos por mim, em alguns momentos. Lucas – Vinícius, joga nesse é legal! Vinícius – Não, não quero! (com voz de choro) Joana – Deixa o Vinícius escolher. Deixa o Vinícius sentar pra escolher. Lucas continua sentado na cadeira e Vinícius senta numa parte da mesma. Joana – Lucas, deixa o Vinícius sentar aí. Senta lá na outra cadeira para não dar briga. Podemos ver o quanto esta relação de mediação acabou interferindo em alguns momentos. Afinal, eu não queria que houvesse briga e separei os dois, não os deixando sentarem na mesma cadeira. O sentar-se a mesma cadeira, provavelmente, traria situações diferenciadas às quais eu poderia acrescentar à minha pesquisa. O meu papel, de professora, de mediadora e de adulta fica bem evidente em vários diálogos quando elas pedem minha ajuda para a resolução de um conflito. Todavia, é possível que essa forma de agir das crianças fosse mais forte por estarem na minha casa, jogando no meu computador. O diálogo abaixo traz essa importante reflexão, pois mostra que mesmo Luiza recorria a mim para fazer valer a sua vez. A minha pergunta é: se as crianças estivessem sozinhas, ou em suas casas, Luiza que é mais velha do que os meninos, teria resolvido o problema sozinha? Vinícius está jogando e já está acabando a vez dele. A próxima é a Luiza. Luiza – Já tá na minha vez? Vinícius, já tá na minha vez. Joana – Pronto Vinícius. Agora é a Luiza. Vinícius – Não. Luiza – Aí, Joana ele não deixa. No diálogo abaixo, vemos mais uma vez a minha mediação das relações, desta vez entre os meninos. A questão que se coloca é: eles teriam resolvido sozinhos o problema se eu não assumisse esse papel? 139 Os meninos Vinícius, Lucas e Samuel estão na minha casa. É a vez do Samuel jogar, mas Vinícius começa a mexer no teclado o que faz com que Samuel fique desesperado: Samuel – Caramba, Vinícius, não! Que isso! O que o Vinícius tá fazendo? O Vinícius apertou na minha vez! Joana – Vinícius tira o dedinho, por favor. Vinícius – Eu só estava ajudando ele. Joana – Tá, mas a gente só ajuda quando o amigo pede, entendeu Vinícius? Muitas vezes eles têm de resolver seus conflitos sem a ajuda de nenhum adulto, mas por eu já ter assumido esse papel, eles recorriam a mim. Segundo Motta, em sua dissertação de mestrado ficou claro que as crianças conseguem resolver seus conflitos sozinhas: Entretanto, pude perceber que as crianças apresentam uma capacidade de resolução dos conflitos que baseia-se na própria relação entre elas, não demandando sempre a intervenção de um adulto, pois baseiam suas ações em regras compartilhadas entre elas. Há uma tentativa frequente de solução pois, de uma maneira geral, a outra alternativa é a ruptura ou fim da brincadeira (2007, p. 99). Penso que aqui uma outra reflexão se coloca: se, como venho afirmando desde o início da dissertação, o pesquisador não é um sujeito neutro e, ainda, sabendo que a amizade exige compromisso, essas atitudes de me comprometer, defender o menores, negociar os conflitos, são formas de expressar minha postura ética no campo, de pesquisar com todos os sentidos. 140 CAPÍTULO 5 VIVENDO E APRENDENDO A JOGAR. JOGANDO E APRENDENDO A PESQUISAR. Toda pesquisa em Ciências Humanas, em última instância é uma pesquisa sobre o homem e sua cultura e, portanto, um trabalho em que o pesquisador, pesquisando o outro, pesquisa também a si mesmo. Rita Ribes Pereira Ao retomar minha história para iniciar a apresentação desta dissertação, percebi o quanto as tecnologias influenciaram meu modo se ser, de pensar e me relacionar. Dialogar com as crianças, predispondo-me a jogar com elas, pareceu um caminho fecundo para melhor compreendê-las e rememorando a trajetória da pesquisa, exercitando o olhar de fora para situações que vivi de forma intensa, refletindo sobre minha postura nesta relação com as crianças e com o jogar, posso afirmar, mesmo correndo o risco de parecer pedante, que consegui realizar a contento a tarefa a que me propus: conhecer os jogos on-line com as crianças. Durante a redação desta dissertação, refiz os caminhos percorridos procurando repensar as atitudes tomadas, não omitindo o processo vivido, a construção da metodologia, enfim, os acontecimentos que se apresentaram e as escolhas que fiz. Assim, procurei relatar as dificuldades vivenciadas: a primeira delas foi a minha dificuldade em entender, desde o primeiro momento em que conversamos sobre o Club Penguin, que as crianças da Vila formavam um grupo perfeito de interlocutores. Seguindo a lógica de que a pesquisa é apenas do pesquisador e que cabe a ele instaurar as regras para o desenvolvimento da mesma, demorei um bom período para entender que a minha pesquisa de campo já havia se iniciado e, quem deu início a ela foram as crianças. Evidentemente, eu já tinha a intenção de abordar este tema na pesquisa e por isso já tinha um pinguim no Club Penguin e já havia navegado em vários sites de jogos infantis. 141 Portanto, não foram essas crianças que me incentivaram a conhecer mais sobre esse assunto, mas foram elas, sim, que deram o pontapé inicial ao trabalho de campo. O segundo ponto, que, confesso, considerei como fracasso por muito tempo, foi não conseguir fazer encontros agendados individualmente com cada criança, mantendo a organização e o método que eu havia preestabelecido. O que ocorreu de fato foi que as crianças passaram a frequentar minha casa quando queriam para jogarmos, em grupo, sem ter uma regra de horários estipulada. Entretanto, cabe destacar que o que eu considerei como fracasso por um tempo, mostrou-se uma forma interessante de pesquisar com crianças, já que ao não estipular horários específicos para os encontros, ao decidir me deixar levar pelas vontades das crianças, ao permitir que a minha casa fosse um espaço para jogarmos onde elas eram bem-vindas a hora em que quisessem, a minha pesquisa ganhou um ar de brincadeira que possibilitou uma espontaneidade muito grande na relação entre mim e as crianças. Porém, reconheço que esta forma não é melhor nem pior do que outras, mas é uma forma que trouxe caminhos específicos, assim como pesquisar com horários estipulados ou qualquer outra regra que eu havia pensado ser necessária, traria outras possibilidades para a pesquisa. Para mim, o que mais se destacou com essa metodologia que utilizei, foi a possibilidade de pesquisar enquanto efetivamente participava da cultura deles. Esse viés pela brincadeira desencadeou outro problema: conforme relatado no capítulo 1, ao se darem conta de que em minha casa eles podiam jogar on-line com maior liberdade, os dois irmãos criaram táticas para burlar as limitações impostas pela mãe e por mim, táticas que, ao serem descobertas, criaram um mal estar entre mim e essa mãe, provocando um estremecimento em nossa relação e ocasionando o fim da pesquisa de campo. Esta tática das crianças nos mostra que elas querem jogar on-line e para isso vão buscar meios de conseguir o que querem. Relembro também que as crianças recorreram a esta tática por causa do receio da mãe de que a minha pesquisa estimulasse ainda mais o uso da Internet e esta preocupação fez com que eu também ficasse tensa em relação a isso, pois não queria que a mãe deles pensasse que eu estava incentivando o uso do computador. Movida por esta questão, abordei o assunto com as crianças, perguntando se eles preferiam brincar no computador ou na Vila e, conforme vimos, pude descobrir que as crianças não fazem essa distinção. Desta forma, percebemos que nós, os adultos, é que tendemos a qualificar e querer determinar as preferências das crianças. E talvez, a pergunta que essa experiência ainda deixa em aberto seja: por que as crianças precisam criar táticas como essas para garantir seu direito a brincar? Se a brincadeira fosse de outro tipo, mais convencional, teria causado este desconforto? O que existe de “verdade” por trás da “mentira” que as crianças produziram? Outra forma que apareceu em relação a nossa 142 constante necessidade de qualificar e determinar o que as crianças gostam ou não, o modo como lidam com as suas brincadeiras, foi quando eu quis que elas determinassem qual era o site favorito e com isso descobri que além de não conseguirem determinar um site favorito, as crianças nem quiseram acessar o que elas haviam definido como único favorito após grande insistência minha. O fato de eu ter incorporado vários papéis, além de pesquisadora durante o desenvolvimento da pesquisa, mostra algumas especificidades que podem ser encontradas ao pesquisarmos com crianças em espaços particulares com jogos on-line. Ao observar as crianças enquanto jogavam, sem querer assumir uma postura de distanciamento dos interlocutores, nem querendo ser neutra em campo, acabei envolvendo-me sobremaneira com os jogos e com as relações que se desencadearam em função de estarmos jogando juntos. E com isso, além de pesquisadora, tornei-me jogadora, interferindo nos jogos, pensando soluções que ajudassem as crianças a passar de fase; acumulei e coloquei em conflito o tempo todo funções de adulta, mediadora, professora agindo de forma a facilitar as relações entre as crianças durante os momentos de acesso aos jogos, exercendo meu papel de autoridade inerente a minha condição de adulta. Estes múltiplos papéis apareceram em vários momentos da pesquisa e acho que um momento bastante representativo é a descrição do caderno de campo que apresento abaixo: Vinícius bate à minha casa e pede para jogar Club Penguin, mas fica claro que ele não consegue jogar sozinho. Em vários momentos tive que ler, escrever e explicar as coisas, pois ele não conseguia entender. Em alguns ele me perguntava e em outros eu interferia para que ele pudesse avançar no jogo, algumas vezes ele demonstrou conhecer alguns ícones do jogo. Quando resolveu jogar uma missão, que é bem complexa no jogo, e não estava conseguindo ele pediu minha ajuda. Eu também não sabia como ajudar, pois para resolver a charada era necessário ter um conhecimento do jogo que eu não tinha. Sugeri que nós podíamos jogar outra coisa dentro do Club Penguin. Neste relato, podemos perceber vários destes papéis, professora, adulta, mediadora e, jogadora, destacando em negrito o trecho em que o conhecimento mais específico em relação ao assunto poderia até facilitar o desenvolvimento da pesquisa, já que no caso acima, tivemos que interromper o processo pela nossa falta de conhecimento do jogo que ele queria jogar. Entretanto, por muitas vezes, esse meu “não saber” foi essencial para o desenvolvimento da 143 minha relação com as crianças: eu realmente não conhecia muitas coisas e tentava descobrir junto com elas ou, ainda mais importante, eu aprendia junto com elas. E ao assumir o lugar de quem não sabe e de quem realmente está interessada em saber, eu consegui redesenhar os lugares de adultos e crianças que já são fixados na nossa cultura, onde, normalmente o adulto assume o lugar do saber e a criança do não saber. Outra questão que surge da relação que estabeleci com as crianças é a questão da autoridade: as crianças eram autoridade no assunto dos jogos, eu era autoridade em minha casa e as mães eram a autoridade no que se refere à permissão para jogar. Como vimos estas relações desencadearam muitas questões, mas acho que a principal, a que mais me marcou enquanto pesquisadora, foi a de ser autoridade em minha casa sem querer ser limitadora, ou seja, eu queria que as crianças se sentissem à vontade em minha casa, mas era necessário que elas respeitassem algumas regras e, principalmente, respeitassem umas às outras. Assim, entre ser jogadora sem autoridade em relação ao assunto, ser autoridade em minha casa, buscando mediar as relações e não ter autoridade para determinar que podíamos jogar quando quiséssemos, fui trilhando o meu caminho de pesquisa, mergulhando com todos os sentidos e me deixando levar pelos acontecimentos sem nunca esquecer do meu maior objetivo: conhecer mais sobre as relações das crianças com os objetos da cultura, com os jogos on-line. Desta forma, consegui olhar para estes jogos com o entusiasmo que as crianças olham e que eu já olhei e costumo ainda olhar para alguns, ou seja, pude pesquisar com as crianças, envolvendo-me com elas percebendo “nas crianças, nos objetos, enfim, na cultura, traços daquilo que se é e daquilo que se foi” (PEREIRA, 2012, no prelo). Acredito que para pesquisar com crianças, percebemos que o melhor é termos em mente que o envolvimento não é algo ruim, que a melhor estratégia metodológica pode ser a de não termos uma predefinida, não iniciarmos a nossa relação de pesquisa com elas cheios de saberes e conhecimentos. Claro que muito já foi dito sobre isso, sobre o papel do pesquisador na relação com os interlocutores, mas acredito que minha pesquisa mostra que para além da fuga da neutralidade, do tipo de aproximação, da observação das brincadeiras, temos que buscar um real envolvimento com as crianças, sem querer que elas acreditem que somos como elas, mas demostrando que estamos abertos ao que elas têm para nos mostrar. Esta constatação fica ainda mais evidente se recordamos o quanto as crianças fizeram questão de me mostrar o Club Penguin e de jogar comigo neste site por várias vezes. E o que elas me mostraram neste processo todo? Mostraram que criam muito mais para além do que os sites propõem, que a imaginação continua ativa durante o jogo e que elas não se limitam a fazer o que os sites pensaram que elas gostariam; descobri que elas têm 144 sugestões a dar em relação aos jogos; que elas não estão confinadas a brincar somente no computador se puderem optar por outras coisas; que o PC (computador pessoal), por si só, elas podem jogar juntas os jogos que foram pensados para o uso de apenas uma criança. E este usar junto possibilitado pelo fato de eu ter apenas um computador em casa, fez com que eu pudesse observar como as crianças se relacionam entre si durante o uso conjunto do computador. Assim, descobri que as crianças podem competir de diversas formas: competir através do jogo, competir com o jogo, competir entre eles e competições que envolvem o status do jogador. Mas, também podem compartilhar esse uso de forma cooperativa. Pesquisando a mim mesma, descobri que havia muita rigidez em minhas expectativas iniciais do trabalho de campo; aos poucos percebi que; percebi que as crianças, e todo o processo de pesquisa, me transformaram em uma pesquisadora da infância contemporânea atenta ao fato de que para perceber situações tão novas na cultura, era também preciso aprender formas novas de percepção. Descobri que os meus estudos sobre a pesquisa no cotidiano estavam inscritos em mim a tal ponto que, mesmo sem perceber no início, eu mergulhei com todos os sentidos no campo e na minha relação com os interlocutores, o que me proporcionou uma pesquisa em que o processo e a participação das crianças se destacaram. Esse mergulho possibilitou que a minha reflexão sobre a pesquisa fosse contínua, inclusive durante a escrita desta dissertação que foi feita de forma dialógica, entrelaçando teoria e prática, em uma narrativa teórica que priorizou a vivência em campo, sem esquecer os aportes teóricos essenciais para a reflexão sobre o processo de pesquisa com crianças. Então, longe de querer formular respostas sobre os sites, sobre o acesso aos mesmos, sobre as brincadeiras e sobre as relações entre as crianças, gostaria de deixar algumas perguntas, que espero suscitem em futuros pesquisadores uma reflexão acerca da pesquisa com crianças: como pesquisar os artefatos culturais que as crianças utilizam sem se deixar envolver profundamente a ponto de “esquecer” que estamos pesquisando? O envolvimento é bom, mas muito envolvimento pode atrapalhar? Deixar-se levar durante a relação em campo com as crianças para depois refletir e até voltar a campo com novas perguntas poderia ser uma boa estratégia? Existe a melhor estratégia para pesquisar com crianças? Entendendo que o objetivo de uma pesquisa é instaurar reflexões para além de respostas, felizmente termino a minha pesquisa com mais questionamentos do que quando a iniciei, e espero que eles possibilitem a reflexão de muitos outros pesquisadores que queiram se aventurar nesse complexo e prolífero campo de pesquisa. 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a04.pdf acesso em 01/2012 ____________ Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. TEIAS: Rio de Janeiro, ano 4, nº 7-8, jan/dez 2003 Disponível em: http://periodicos.proped.pro.br/index.php?journal=revistateias&page=article&op=viewFile&p ath%5B%5D=209&path%5B%5D=208 Acesso em 01/2012 _______________ Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. 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