ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 DANÇAS FOLCLÓRICAS E DANÇAS POPULARES: LIMITES E POSSIBILIDADES DA CULTURA POPULAR Thais Ferreira* (UFBA) Orientadora: Lúcia Matos** RESUMO: Estudar a cultura popular nos leva a pensar em diferentes entendimentos da dança. Assim, propomos discutir os modos como as diferentes configurações de dança, folclórica e popular, estão sendo abordadas na cultura popular. Como compreender formas de manifestações que são parte de um mesmo processo, com significados díspares e alcance singular? Será necessário compreender as danças como parte de um processo de transformação, representado ora pelo olhar da cristalização da tradição e ora pelo olhar da tradução da cultura. PALAVRAS-CHAVE: Dança Popular. Dança Folclórica. Cultura Popular. Tradição. Tradução. ABSTRACT: Studying popular culture leads us to think in different understandings of dance. Thinkin these perspectives, we propose to discuss the ways in which different folk and popular dance’s configurations are being approached in the popular culture. How what to understand expressions forms that are part of the same process, that have different meanings and an unique reach (competency)? For this will be necessary to understand the dances as part of transformation process, represented sometimes by a crystallization view of one tradition, sometimes by view of version’s culture. KEIWORDS: Popular Dance. Folk Dance. Popular Culture. Tradition. Translation. 1 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 Entre-lugares da cultura: folclore como tradição e cultura popular como tradução A discussão apresentada neste artigo está circunstanciada pela pesquisa de mestrado, ora em estágio inicial,e visa ampliar a discussão sobre meu objeto de pesquisa– danças populares. Minha experiência nas escolas públicas do Paraná, instigou a pensar nas manifestações populares, mais especificamente nas danças folclóricas como o foco da pesquisa. Entretanto, ao me inserir no universo da dança em Salvador, pude verificar diferenças de abordagens entre as danças folclóricas, abordadas, no meu contexto, e as danças populares em Salvador. Isso gerou uma problematização para o termo folclore, suas limitações bem como instigou-me a compreender o alcance da cultura popular. O termo folklore – folk (povo), lore (saber) – foi criado pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms em 22 de agosto de 1846 e adotado com poucas adaptações por grande parte das línguas européias, chegando ao Brasil com a grafia pouco alterada: folclore. O termo identificava o saber tradicional preservado pela transmissão oral entre os camponeses e substituía outros que eram utilizados com o mesmo objetivo – “antigüidades populares”, “literatura popular” (Vilhena, 1997, p. 24). Nesse sentido de “saber do povo”, o folclore designa diferentes formas de conhecimento e manifestações culturais de diversos grupos de uma sociedade. É a partir do conjunto das tradições culturais transmitidas que o folclore é pensado, tais como as danças, festas tradicionais, brincadeiras infantis, lendas, superstições, músicas, manifestações religiosas, mitos, entre outras. Há aqui um contraponto entre a cultura popular e erudita, mas não parece claro delimitar onde começa e termina o folclore. Considera-se, por exemplo, a dança do Frevo ou Maracatu uma manifestação do folclore ou cultura popular? Ou ainda o Fandango Paranaense é uma dança folclórica ou dança popular? Foram estes questionamentos que me levaram a iniciar esta discussão, e investigar isso é o maior desafio no momento. 2 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 A Carta do Folclore Brasileiro de 19951, a qual é uma releitura da Carta de 1951, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, traz no Capitulo I o seu conceito: 1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. (s/p) Nesta Carta, folclore e cultura popular são entendidos como equivalentes, como se fossem iguais, pois dialogam sobre as mesmas questões e ocupam o mesmo espaço na pesquisa. Para Cascudo (1972) o folclore é considerado como cultura, nele ocorrem mudanças, por isto é dinâmico, enquanto funcional. Estas mudanças operam-se através da invenção de novos instrumentos e técnicas em prol da melhoria da qualidade de vida do povo. Tanto a Carta do Folclore quanto Cascudo trazem o conceito de folclore como algo dinâmico, estático mas mutável, porém como ser tradicional e dinâmico ao mesmo tempo? Sendo que tradicional é o que se funda na tradição, que incorpora hábitos e costumes. Para melhor compreensão, a tradição vem do latim traditio, tradere que significa entregar ou "passar adiante", é a continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social. Com isso, tradição é a tentativa de permanência, é uma postura rígida frente a cultura, a qual não corresponde ao dinamismo que é apresentado acima pelos autores. A tradição pode ser interpretada como a cristalização da cultura, como se fosse possível transferir ou transpor conhecimentos e costumes de uma época para a outra sem que eles sofram transformações e adaptações, como algo estável, de forma que a cultura 1 O VIII Congresso Brasileiro de Folclore, reunido em Salvador, Bahia, de 12 a 16 de dezembro de 1995, procedeu à releitura da Carta do Folclore Brasileiro, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 31 de agosto de 1951. Esta releitura, ditada pelas transformações da sociedade brasileira e pelo progresso das Ciências Humanas e Sociais, teve a participação ampla de estudiosos de folclore, dos diversos pontos do país, e também teve presente as Recomendações da UNESCO sobre Salvaguarda do Folclore, por ocasião da 25ª Reunião da Conferência Geral, realizada em Paris em 1989 e publicada no Boletim nº 13 da Comissão Nacional de Folclore, janeiro/abril de 1993. 3 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 seja transmitida de uma geração a outra e reproduzida de forma fiel, acreditando na possibilidade de manter viva a tradição. De acordo com Hall, 1998 (apud AMOROSO, 2009, p. 125), existe outra possibilidade para a tradição: a Tradução: Ela descreve aquelas formações de identidade que atravessam e cruzam as fronteiras naturais, e que são formadas por pessoas que se dispersam para sempre de suas terras natais. Tais pessoas mantêm fortes vínculos com seus lugares de origem e de tradições, mas não possuem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a chegar em um acordo com as novas culturas em que vivem, sem que sejam completamente assimiladas por elas, ou que percam completamente suas identidades. A tradução descrita por Hall corresponde ao que é possível compreender como cultura, pois ela atravessa as fronteiras da tradição, dissolve as consolidações do passado no presente, repensando, reconfigurando e realizando uma releitura da cultura. Este acordo entre o que passou e o presente é uma postura que possibilita ir além, estar no além, revisitar o passado com o olhar do aqui e agora. Conforme a afirmação de Homi Bhabha (2013): Estar no “além”, portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas residir “no além” é ainda, como demonstrei, ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o fundo em seu lado de cá. Neste sentido, então, o espaço intermédio “além” torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora. (p. 28) Deste modo, Bhabha explana um conceito de cultura dinâmico, tradutório e híbrido, que gera o trânsito de experiências e cria significados novos para símbolos culturais. Para ele, o conceito está relacionado aos deslocamentos que colocam em choque diferenças culturais, como uma ação da sobrevivência, pois para ir além ou estar no além é necessário o retorno ao passado e uma reinscrição histórica no presente. Para o autor, o conceito de hibridismo ressalva que “culturas são construções e as tradições, invenções” (Bhabha, 2013, p. 126), e que, quando em contato, criam novas construções desterritorializadas, ou seja, para além das fronteiras, atravessando-as e cruzando-as, “tocando o fundo em seu lado de cá”. 4 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 Conforme a citação do parágrafo anterior, se a ideia de tradição está presa ao folclore então ele possivelmente é invenção, e se o conceito de cultura leva em conta a dinâmica das transformações por que passam as sociedades, tanto de perdas quanto de recuperações constantes de valores sócio-histórico-culturais, o folclore também pode ser compreendido como a tradução ou construção. Mas há um risco neste entendimento do folclore, pois ele estabelece vínculos com algo que já não tem sentido para quem o faz, como um processo de repetição sem reinvenção, ao mesmo tempo em que se ele é tradição também é inventivo, sendo assim será que toda invenção não é uma forma de construção? Como passado e presente estão relacionados à cultura sem ser continuidade um do outro, sendo que são constantemente construção ou invenção? O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (Bhabha, 2013, p. 29). Os entre-lugares representam as diferenças culturais, os quais fornecem terrenos para criar estratégias singulares e plurais de subjetivação, dando início a novos signos e traduções da sociedade, são deslocamentos culturais que em contato com o outro se contaminam e transformam, tendo nas fronteiras não o fim de algo, mas sim o ponto inicial de alguma coisa que começa ali naquele momento presente. Este entendimento de cultura leva em consideração o sujeito como agente social, portanto cultura constitui parte indissociável da experiência humana. No seu livro Cultura Brasileira: o que é, como se faz? Aldo Vannucchi (2011, p.9) afirma que como todo ato humano, a cultura envolve as categorias fundamentais do sujeito (a própria pessoa humana), do objeto (o conjunto infinito dos produtos culturais) e do processo (o vir-a-ser permanente da existência criadora). Considerando que todo grupo humano, assim como nós brasileiros, vai adquirindo uma identidade própria ao longo da história, com ingredientes dinâmicos e híbridos como então definir cultura popular? Para Vannucchi (2011, p. 13) “existem dois planos culturais no Brasil: o erudito, marcado pela branquidade e pela europeidade, alienado e alienante; e o vulgar, das 5 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 camadas subalternas, mais criativo, mais aberto à convivência humana e ao atendimento imediato das necessidades espirituais.” O segundo plano cultural, considerado como vulgar pelo autor, diz respeito a cultura popular, aos saberes dos colonizados, com diversas influências desde a européia até a indígena e africana, o qual é a identidade do Brasil, representando nossa brasilidade e sua história. O mesmo autor complementa: “Foi por meio desta cultura vulgar – recheada de elementos indígenas e africanos – que o povo brasileiro edificou, com os tijolos e cimentos de que dispunha, a cultura nacional que tinha assentado na terra e de significativo para toda a população.” (2011, p.14). Existia e ainda existe preconceito sobre tudo que é popular, como sendo algo subalterno, ruim, de pouco valor, inferiorizado, justificado na história do país como a cultura dos povos de cor, sendo assim a cultura popular foi e ainda é marginalizada, ao mesmo tempo em que pode ter sido manipulada e influenciada pela dominação cultural. Conforme Hall (apud AMOROSO, 2009, p. 106): A dominação cultural tem efeitos concretos – mesmo que estes não sejam todo poderosos ou todo-abrangentes. Afirmar que essas formas impostas não nos influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como enclave isolado, fora do circuito de distribuição do poder cultural e das relações de força cultural. Não acredito nisso. Creio que há uma luta continua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. (Hall, 2003, p.239). Esta citação de Hall pode ser exemplificada nas danças populares de determinado grupo que passam a visitar palcos e teatros, para esta transição do chão de determinado povoado para o palco do espetáculo pode ser necessária uma releitura do que é popular em seus modos de fazer dança/dançar. É uma constante busca por aceitação, uma estilização do popular, que muitas vezes perde o sentido ao se deslocar do meio social que realmente acontece, pois tende a reproduzir modelos da cultura dominante e acaba por desvalorizar sua própria cultura. Apesar de a cultura popular ser um lugar de ascensão, a qual tem buscado legitimidade e valorização, ainda existem preconceitos, tanto no meio acadêmico quanto da sociedade em geral. É uma dificuldade de compreensão de que todo povo é povo e que o “saber do povo” é cultura popular, e sendo saber é carregado de conhecimento, o qual compartilhamos e construímos no dia a dia da sociedade. 6 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 Estudar a cultura popular nos leva a pensar em diferentes abordagens da dança, os conceitos acima discutidos apontam para o entendimento das danças folclóricas e danças populares como diferentes formas de compreensão da cultura, ora como tradição ora como tradução. Neste momento investigaremos as danças folclóricas, que tem como foco a tradicionalidade. Para a discussão a seguir vou me valer da manifestação do Fandango Paranaense, considerando que o mesmo pode ser observado dentro das perspectivas da tradição ou da tradução da cultura popular e, para tanto, irei entrelaçar os conceitos dos autores com depoimentos de um mestre do Fandango2, Aorélio Domingues. Danças folclóricas e danças populares: cristalização da tradição e tradução da cultura Para situar o leitor será feita uma breve descrição sobre o fandango paranaense: “O fandango é um rico depositário de canções e ritmos. Podemos dizer que Fandango é uma reunião de várias danças (marcas). Sua coreografia variada é difícil, exige técnica, atenção agilidade, preparo e calçados especiais para o sapateado.” (NOVAK, 2005, p.20) Não se sabe ao certo a origem do fandango, alguns livros trazem a manifestação como original dos portugueses, outros dos espanhóis, também acredita-se que originalmente foram os índios carijós que iniciaram, outra possibilidade foram os casais de colonos açorianos, e ainda há a influência dos negros vindos da África. Enfim não é possível dizer que o fandango possui uma única matriz, e talvez seja por isso que ele é tão rico em detalhes e técnicas, pois certamente tiveram múltiplas influências. Desde as suas matrizes o Fandango sofreu transformações, adaptações e foi sendo reconfigurado de alguma forma, porém existe uma compreensão do Fandango como dança Folclórica e outra como Dança Popular. Considerando que as danças folclóricas refletem a compreensão da tradicionalidade, como entender quando um grupo de dança é folclórico ou popular, considerando que ambos são manifestações da cultura popular? 2 Aorélio Domingues é neto de fandangueiro, rabequista e filho de Paranaguá PR, constrói instrumentos de fandango. Mestre de Folia do Divino, do Fandango e do Boi de Mamão, trabalha na manutenção da cultura popular como atividade espontânea em loco e costura possibilidades de promoção da arte popular através da Orquestra Rabecônica do Brasil a qual é o idealizador. 7 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 A ideia de tradição se prende ao folclore, porém o conceito de cultura popular leva em conta a dinâmica das transformações por que passam as sociedades, então a perda e recuperação constante de valores sócio-histórico-culturais podem ser entendidas como a tradução da cultura. O risco do folclore é manter vínculos com algo que já não tem sentido para quem o faz, como um processo de repetição sem reflexão, é o que pode acontecer em determinados momentos com grupos de danças étnicas quando deixa de ser cultura popular e passa a ser show, espetáculo. O mestre do Fandango Aorélio Domingues, durante uma entrevista3 realizada em 17 de agosto de 2014, apresentou uma reflexão sobre o fandango paranaense, considerando-o como não apenas dança, mas sim um universo: Fandango é uma dança, ela ta inserida num contexto onde ela acontece por causa daquele contexto social, fandango ele começa como paga de mutirão4 em outrora, se fazia mutirão pra roçada, pra tiragem da mandioca, roçada de palha de samambaia, daí a paga deste trabalho era um baile de fandango, quem não participasse do trabalho não podia dançar. E mesmo sendo paga de trabalho, dentro deste contexto que acontecia o fandango existiam também bebidas próprias do fandango, comidas próprias do fandango e todo um vocabulário que rege este fandango, expressões, nome de peça de viola, nome dos instrumentos propriamente dito, por isso que eu falo que é um universo de coisas, fandango se estiver fora deste contexto caiçara ele passa a ser folclórico. (Domingues, 2014). O universo que rege o fandango é que dá sentido à sua prática, que o identifica como manifestação, logo excluir o fandango desta comunidade é como deixar de lado o que o caracteriza. Marianna Monteiro (p.44, 2011), observa e estuda danças populares, e para ela nesta configuração escapa ao olhar o sentido que lhe dá o popular, pois desconhecer alguns códigos internos que regem cada manifestação impede a apreciação da expressão peculiar das comunidades. Então deslocar a dança da sua comunidade pode ser uma forma de folclorizá-la, pois isto demonstra que a preocupação é a representação de uma tradição, a 3 Entrevista concedida por DOMINGUES, Aorélio. Entrevista I. [agosto. 2014]. Entrevistador:Thais Ferreira. Paranaguá, 2014. 1 arquivo .mp3 (1:06:38). 4 Paga de mutirão: fandango estava vinculado ao pixirão, ocasião em que os vizinhos auxiliavam o dono da casa nos trabalhos da roçada ou plantação, após a plantação ou colheita o dono da casa oferecia um Fandango de agradecimento, o que era muito apreciado pelos trabalhadores. 8 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 cristalização da cultura, a qual desconsidera o universo, a comunidade na qual ela é tida como tradutora desta mesma cultura. Aorélio ainda complementa: [...] Para se ter um exemplo quando a gente faz espontaneamente esta manifestação ela ta ali acontecendo por causa da amizade da camaradagem, da troca de favores entre compadres ou entre violeiros, então existe esta troca e quando a gente faz isso fora do contexto a gente ta fazendo ou por um cachê ou pra representar a dança como a gente faz na comunidade né. Então a gente faz uma dança, por exemplo, Curitiba a gente tem uma série de marcas que a gente já faz organizadamente, os dançarinos entram e saem no momento que foi determinado e a gente realiza aquilo num espaço de tempo determinado também, então isso é folclórico, é uma sistematização. A dança não é folclórica porque ela não é morta ela é viva espontaneamente, mas o ato de se fazer é folclórico, então é uma representação, então o grupo comunitário ele se organiza como grupo, tem um representante, um mestre, ele sai do contexto pra fazer uma representação daquilo que é na verdade, sai do universo do fandango, então a gente considera isso folclórico. (Domingues, 2014). Para Aorélio quando o Fandango está inserido dentro da comunidade, quando as pessoas tocam viola e trocam versos, quando um sorri para o outro porque sabe que errou, ele se torna parte do universo de vida daquelas pessoas, que cantam, comem, dançam, falam e vivem o Fandango. Ele não é apenas algo isolado que é feito para manter uma tradição, vai muito além disso, fandango é um modo de vida do povo caiçara. Assim quando se trata de dança popular não há como separar o homem do seu contexto, ou a dança dos acontecimentos que a envolvem. Marianna Monteiro afirma que “a dança não pode ser apreciada separada da música, do poema, da linguagem cênica, do conjunto de aspectos espetaculares da festa, na qual se insere (...) não podemos compreender desvinculada do contexto das festas em que ocorrem, com seus múltiplos significados religiosos, sociais, artísticos, afetivos e simbólicos entrelaçados.” (2011, p.45). Este é o reconhecimento de grande abrangência do fenômeno da dança popular, pois as relações entre cultura popular e vida social são parâmetros da própria dança, que de alguma forma identifica uma comunidade, na forma de compreender os espaços que ela ocupa e as pessoas que estão inseridas naquele contexto. Para Monteiro (2001): A vida cultural é sempre uma forma poderosa de manipulação do real por meio do símbolo, cuja eficácia reforça um campo relativamente autônomo de significados. Como entender as danças folclóricas sem considerar estes significados do presente, como algo isolado, cristalizado, que reproduz a tradição de um povo? 9 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 É possível que existam nas danças folclóricas formas expressivas vindas do passado, porém estas são atualizadas a partir de novas compreensões e dinâmicas. O Mestre Aorélio Domingues, representante do Fandango Paranaense traz uma reflexão sobre os grupos de fandango do litoral paranaense, dentro dos quais consegue identificar um grupo como folclórico. Este grupo de Mestre Romão5 recebeu a influência de um professor e folclorista paranaense Inami Custódio Pinto que fez parte do grupo em um momento que o fandango estava sendo revitalizado: Na linhagem do mestre Romão que era apresentação, os melhores violeiros eram dele, os melhores batedores de tamanco eram dele, então se via o grupo era realmente perfeito, mas também era perfeito de figurino, também era perfeito de maquiagem, também era perfeito de marcação de palco, era perfeito de mapa de palco, de som, de luz, o grupo era perfeito, então ele tinha essa função de apresentação. Quando começou a se fazer os bailes de fandango aqui no mercado6, que começou a envolver o órgão publico, quem estava no órgão publico até então era só o grupo de mestre Romão, que era um grupo folclórico porque também ele se intitulava folclórico, e que ele vinha desta escola de folclore brasileira, então ele era mestre, ele é mestre, os violeiros são mestres, cantadores, tocadores, mas é eles repassaram o fandango perfeitamente para os jovens, formaram dezenas, centenas de fandangueiros, mas com uma função folclórica, então você nunca via esses dançarinos num baile por exemplo, se via muitos e muitos dançarinos em palco, mas nenhum em baile, eles não participavam do universo do fandango. (Domingues, 2014). A percepção dessas cristalizações parece essencial à compreensão dos sentidos das danças folclóricas, pois existe um formato no qual ela se insere, a dança é sistematizada e organizada para reproduzir uma manifestação folclórica. Não envolve batedores de tamanco, tocadores e mestres em uma experiência além do palco, apenas apresenta um repertório coreográfico previamente ensaiado, sem que o fandango seja vivenciado na sua totalidade e além deste espaço, ficando limitado a apenas algumas expressões da cultura popular, deixando de habitar o universo que Aorélio nos apresentou. Em contrapartida ao grupo de Mestre Romão, existia também em Paranaguá, 5 Romão Costa, 74 anos, aposentado do serviço duro de estivador, ainda acha forças para ensinar e divulgar o Fandango para os jovens de Paranaguá, dança desde os 12 anos de idade, desenvolvendo assim o amor pela arte. Aprendeu muito sobre o fandango com seus pais e hoje é um grande conhecedor, é quem passa com dedicação tudo que aprendeu sobre o fandango. Foi este conhecimento adquirido desde os 12 anos que lhe rendeu o título de “Mestre”, pois “Mestre”, em fandango, é aquele que domina todas as marcas. (NOVAK, 2005,p. 56) 6 Mercado do Café em Paranaguá – local onde os grupos de fandango se reúnem para os bailes. 10 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 mais especificamente na Ilha dos Valadares, o grupo de mestre Eugênio 7 que compreendia o fandango de outra forma: Muito pelo contrário você via raramente o Mestre Eugênio em palco, mas o via em todos os fandangos (bailes) e os dançarinos dele em todos os fandangos. Então são duas linhagens assim, que nasceram com propósitos bem marcados, um folclórico mesmo e o Sr Eugenio com um grupo de fandango, grupo ainda falando em grupo só pela questão de se organizar, mas era fandango da Ilha dos Valadares. O grupo do Mestre Romão era Grupo Folclórico Mestre Romão, tinha ele como mestre – figura central e a função dele era representar a cidade em festivais e também fazer apresentações em festas da cidade, a função deles era essa, depois que o Sr Eugenio começou a se estruturar e começou a fazer os bailes na própria Ilha dos Valadares ainda assim não houve um movimento do Grupo do Mestre Romão pra olhar pra esta questão. (Domingues, 2014). Conta Aorélio que com o tempo os grupos8 foram se modificando, os discursos foram mudando e as diferenças começaram a diminuir, apesar delas existirem até hoje. Na atualidade é possível ver os integrantes do Grupo Folclórico do Mestre Romão freqüentando bailes e também quando convidados, os outros grupos se organizam e fazem apresentações em palco. Este olhar múltiplo que dá visibilidade a sabedoria popular propõe uma ligação com a história que acredita no deslocamento no espaçotempo e nas transformações que acontecem neste percurso. O fandango e suas pluralidades fazem parte da construção da história que o tempo todo se desvelam e revelam, indicando um olhar mais contemporâneo e menos folclórico para a dança. Conforme Daniela Amoroso (2013) que apresenta a poética da dança popular brasileira que mostra um corpo que tem uma maneira de viver, uma técnica de corpo, um movimento que nos traz a tradição do passado para o dinamismo do presente. Desta forma podemos compreender que danças folclóricas ou populares dependem das manifestações culturais que em que estão inseridas, sendo elas parte do passado, tidas como tradições, ou sendo a cultura viva que se transforma e modifica. É possível compreender que há limites em uma e possibilidades na outra, porém é importante admitir que ambas andam juntas, compartilham de pensamentos e crenças, 7 Mestre Eugenio: mestre do fandango que faleceu em 2011, grande representante do fandango enquanto dança e manifestação popular, entusiasta da cultura de Paranaguá. 8 O fandango paranaense está se firmando a partir destes grupos que incansavelmente mantiveram as festas, bailes e pessoas reunidas, seja para bater tamanco, comer barreado ou tocar rabeca, fazendo com que hoje ele seja considerado patrimônio cultural imaterial do Paraná. 11 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 que são envolvidas pelos mesmos saberes do povo e que buscam expressar a cultura popular. Esta pesquisa investigou o limite da dança folclórica que é a tradição e as possibilidades da cultura popular, traduzida nas danças populares. O lugar que na dança folclórica é cristalizado é o mesmo entre-lugar onde a dança popular se articula, comunica e transforma. Ou seja, elas estão conectadas no passado, ligadas de alguma forma no presente e inter-relacionadas no que diz respeito à cultura popular e suas manifestações, ambas defendem e representam um espaço próximo, dentro do qual em algum momento se atravessam, sendo que de algum modo contaminam e são contaminadas, considerando as dinâmicas sociais. Portanto, mesmo uma dança folclórica que tenha como foco o espetáculo, com a tentativa de manter viva a tradição, ainda assim ela está dentro do contexto da cultura popular que faz com que o tradicional seja transformado pela cultura dinâmica. Para este entendimento foi necessário perceber a cultura popular, as tradições e as traduções enquanto dança, também foi imprescindível a reflexão para compreender os deslocamentos, no caso o trânsito de lugares - do Paraná a Salvador, o de conceitos - do Folclórico ao Popular, criando assim embasamento para a compreensão do aqui e agora, alicerces que por vezes foram indefinidos, mas que nunca perderam o sentido, apenas se permitiram transformar e modificar, para que o objeto de pesquisa desta investigação seja sempre o melhor lugar do mundo, conforme Gilberto Gil (1977): “O melhor lugar do mundo é aqui, E agora Aqui onde indefinido Agora que é quase quando Quando ser leve ou pesado Deixa de fazer sentido Aqui de onde o olho mira Agora que ouvido escuta O tempo que a voz não fala Mas que o coração tributa...” Concluo este artigo com o sentimento de algo que esta em um constante processo de transformação, como a cultura popular. Como se esta discussão seja apenas o 12 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 princípio de um estudo que não pode ser descrito em linhas ou citações, ele faz parte de um entendimento maior e ao ser contextualizado pode ter sua compreensão modificada. Este é o universo da cultura popular, que instiga, inquieta e move o pesquisador. Referências AMOROSO, Daniela. Levanta, mulher, e corre a roda: dança, estética e diversidade no samba de roda de São Félix e Cachoeira. 260p. Tese. (Doutorado em Artes Cênicas), Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Dança e de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. BHABHA, Homi K. O local da Cultura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. CASCUDO, Luiz Camara. O folclore está vivo. Entrevistador: Dailor Varela. Veja, São Paulo. P. 3-5, edição 189. 19 abr. 1972. GIL, Gilberto. Refavela. Aqui e Agora. Rio de Janeiro: Som Livre, 1977. CD. Faixa 3. MONTEIRO, Marianna Francisca Martins. Dança Popular: espetáculo e devoção. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. NOVAK, Patricia. Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares: uma manifestação caiçara. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005. VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira. O que é, como se faz? São Paulo: Edições Loyola, 1999. VILHENA, L.R. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro, Funarte, 1997. * Mestranda em Dança na Universidade Federal da Bahia (2014), membro do grupo de pesquisa PROCEDA – Políticas e Processos Educacionais em Dança e bolsista da CAPES, especialista em Ludopedagogia (2013) e graduada em Educação Física pela UFPR (2007). Seus estudos recaem sobre o tema Danças 13 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014 Populares na escola, tendo como linha de pesquisa Mediações Culturais e Educacionais em Dança. E-mail: [email protected] ** Lúcia Matos é professora Adjunto III da Escola de Dança da UFBA, Bolsista de Produtividade em Pesquisa UFBA (PQ 2014/2015). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Dança – UFBA (20112013/reeleita para o biênio 2013-2015). Doutora em Artes Cênicas (UFBA, 2006, bolsista CAPES). Mestre em Educação (bolsista CAPES). É co-lider e pesquisadora do grupo PROCEDA – Processos Corporeográficos e Educacionais em Dança (UFBA), atuando na linha de pesquisa Políticas e Processos Educacionais. E-mail: [email protected] 14 http://www.portalanda.org.br/anai