Universidade Federal de Viçosa
Centro de Ciências Agrárias
Departamento de Economia Rural
Terra de “Reforma Agrária”: dádiva ou direito?
Luciana M. M. Ribeiro
(Mestranda em Extensão Rural)
José Roberto Pereira
(Orientador)
Maria Izabel Vieira Botelho
(Conselheira)
France Maria Gontijo Coelho
(Conselheira)
VIÇOSA – MG
Dezembro – 2003
2
LUCIANA MARIA MONTEIRO RIBEIRO
TERRA DE REFORMA AGRÁRIA: dádiva ou direito?
Tese apresentada à Universidade Federal de Viçosa,
como parte das exigências do Programa de PósGraduação em Extensão Rural, para obtenção do
título de “Magister Scientiae”.
APROVADA: 12 de dezembro de 2003.
Maria de Fátima Lopes
Lourdes Helena da Silva
Maria Izabel Vieira Botelho
(Conselheira)
France Maria Contigo Coelho
(Conselheira)
José Roberto Pereira
(Orientador)
INDICE
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................2
1.1. METODOLOGIA ............................................................................................... 3
2. CATEGORIAS TEÓRICAS EM ANÁLISE .......................................................... 5
2.1. A IDÉIA DE LIBERDADE EM PAULO FREIRE. ........................................................... 5
2.2. O CATIVEIRO NO CAMPESINATO BRASILEIRO: DA DOMINAÇÃO TRADICIONAL À
DOMINAÇÃO MODERNA. ............................................................................................ 10
2.3. O DIREITO À TERRA E A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL ..................................... 25
2.4. DÁDIVA E CULTURA POLÍTICA NO BRASIL .......................................................... 28
2.4.1. A DÁDIVA SEGUNDO MAUSS. ........................................................................... 29
2.4.2. OS LUGARES DA DÁDIVA NA MODERNIDADE SEGUNDO GODBOUT .................... 32
2.4.3. O PAPEL DO ESTADO NO CIRCUITO DA DÁDIVA ................................................. 40
3. ASSENTAMENTO VEREDA II: UMA PEQUENA ETNOGRAFIA DO
PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO ASSENTAMENTO .................................. 44
3.1 A DÁDIVA VERDADEIRA ENTRE OS ASSENTADOS, A IMPORTÂNCIA DO GRUPO
DOMÉSTICO. ............................................................................................................. 51
3.2 A DÁDIVA PERVERSA: O CONFLITO ENTRE ASSENTADOS E O INCRA NA CRIAÇÃO DE
UMA REDE DE INTERMEDIAÇÃO COMO NEGÓCIO. ........................................................ 52
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 55
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 56
6. ANEXOS. ............................................................................................................... 59
TABELA 2: MUNICÍPIOS E NÚMERO DE ASSENTAMENTOS SOB JURISDIÇÃO DA SR-28. . 59
MAPA 1: LOCALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PADRE BERNARDO NO ENTORNO DE
BRASÍLIA. ................................................................................................................ 60
2
1. INTRODUÇÃO
“Meu irmão eu sou como você é
Saí do mesmo escuro e ando por aí
Toda noite eu sei que amanhã tem mais
Que a gente muda e continua a sonhar
Aprendendo
De manhã não sei como começar
Tantas emoções antigas no mesmo lugar
Ando devagar para não cair
Mais de mil abismos me esperam no jantar
Aprendendo.”
(Lô Borges)
O ponto de partida desta pesquisa científica se deu em uma viagem que originou
outras incursões, umas mais concretas, outras mais abstratas, mas todas numa mesma
busca por respostas, por compreensão da realidade. Trata-se, portanto, de um trabalho
de pesquisa que tem a sua motivação a reflexão sobre a experiência de trabalho de
construção de Plano de Desenvolvimento de Assentamento – PDA, processo de
mediação e de pesquisa, tendo como método o Diagnóstico Rápido Participativo
Emancipador – DRPE1. A experiência vivida nos meses de Janeiro de 2001 à Janeiro de
2002 na região do Entorno de Brasília-DF. Em parceria com a Universidade de Brasília,
tínhamos a tarefa de confeccionar o Plano de Desenvolvimento de quatro assentamentos
por meio de uma equipe transdisciplinar, aperfeiçoando as práticas de intervenção. Este
trabalho de pesquisa não deixou de ser influenciado pelo confronto com a vivência de
campo. E portanto, tem como pano de fundo as inquietações de experiências concretas
de mediação.
Os assentamentos estudados constituem espaço para reprodução de relações de
exclusão ou de construção de cidadania? A reprodução do meio de vida camponês traz
em si, a reprodução de relações de tutela com “chefes” locais? Qual o significado da
presença de relações verticais, de autoritarismo, de opressão e restrição da participação
1
DRPE é um método de diagnóstico participativo, fundamentado na pesquisa qualitativa, que constitui
um instrumento de intervenção planejada e de identificação de problemas, suas causas e possíveis
soluções a partir da interação dialógica entre os atores sociais envolvidos na Reforma Agrária.
3
na viabilidade dos assentamentos? Os assentamentos se constituem novas formas de
“cativeiro” em função da competição, na busca de garantir terra?
A demanda por terra não pode ser vista como homogênea. O espaço microsocial, a constituição histórica da luta tem suas diversidades e complexidades. Trata-se
portanto, nesta pesquisa, de um estudo de caso. A nossa questão recai sobre a ação
política dos assentados: autonomia, emancipação, liberdade ou dependência, tutela e
cativeiro.
1.1. METODOLOGIA
Esta seção trata do método de construção da realidade aqui descrita e o processo
de trabalho de pesquisa. Serão apresentadas brevemente, as questões epistemológicas
que orientam a reflexão sobre a ética da relação entre os planejadores, os técnicos do
INCRA e os assentados. Na perspectiva de trabalho transdisciplinar de pesquisa-ação
considera-se que os atores sociais envolvidos são responsáveis por uma construção de
conhecimento da realidade, a localidade, o assentamento rural. Uma realidade nova que
precisa ser conhecida pelos agentes de desenvolvimento. As técnicas de DRPE,
utilizadas tem como princípio norteador o ato de conhecer de forma dialógica a
realidade.
Os atores sociais envolvidos na unidade de pesquisa, projeto de assentamento
Vereda II, são os trabalhadores rurais sem-terra e seus representantes junto ao Instituto
de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, mais precisamente a Superintendência
Regional (SR-28) e seus respectivos funcionários.
Atores sociais e instituições cujas concepções diferentes se colocaram em
interação no assentamento Vereda II, influenciaram as tomadas de decisões e a
viabilidade econômica e social do grupo de assentados ali residentes como ficou
constado nos relatório do PDA2.
O plano de desenvolvimento do assentamento (PDA) tem como poder restrito
enquanto documento formal. Porém, o processo de mediação, utilizando-se o referido
instrumento metodológico, na resolução de problemas, nas áreas de conflito.
2 Ver Pereira at al (2001). Os autores colocam que a viabilidade é dependente de fatores de organização
social, limitada portanto pela rede de intermediação clientelística que se forma em torno das verbas
públicas e da administração dos recursos do assentamento.
4
Esse assentamento localiza-se no município de Padre Bernardo, distante 90 km
de Brasília, capital federal. A área geográfica que constitui o cenário para a realização
da pesquisa é, então, a região do chamado Entorno de Brasília 3.
É sob a perspectiva do método dialético que construímos nossas análises sobre
mediação, desenvolvimento, comunicação e cultura política. No programa de mestrado
em Extensão Rural incorporamos um olhar mais que sociológico, agregando novas
lentes da antropologia de Mauss e Godbout em torno da dávida, a antropologia social de
Woortman, Garcia Jr., Otávio Velho, Queiroz e as perspectivas históricas sobre o
campesinato no campo político de José de Souza Martins e a sociologia compreensiva
de Weber na abordagem do tema dominação tradicional. Nestes autores fundamentamos
a pesquisa. Um pouco de tempero da psicossociologia de Eugène Enriquez na
abordagem de vínculos sociais.
Pressupõe-se que a realidade pode ser compreendida em sua totalidade por meio
da relação entre fatos históricos, discursos e valores culturais. E que os significados
desta relação podem surgir a partir de diferentes perspectivas teóricas. Neste sentido, o
problema teórico da presente pesquisa gira em torno das categorias teóricas, cativeiro x
liberdade e no contexto da Reforma Agrária” entre terra concedida e terra conquistada.
Para dar conta das interpretações teóricas desse problema de pesquisa, propõe-se o
seguinte quadro analítico, seus desdobramentos serão apresentadas no referencial
teórico deste estudo, a seguir:.
Quadro 1. Configuração das categorias de análise teórica.
Categorias
3
Desdobramentos
Hipótese:
Positivos
Negativos
Cativeiro
Complementariedade
Patronagem
perversa
Liberdade
Autonomia
Dependência
cativeiro
Dádiva
Verdadeira
Perversa
Conflito
Direito
Sujeito
Meros indivíduos
Meros indivíduos
Assentados
Terra conquistada
Direito - Cidadania
Terra concedida
Dádiva Perversa
Cultura do Silencio
Dádiva Perversa
Cultura do
Silêncio
Segundo Fenandes e Cordeiro (1997), atualmente são 42 municípios integrantes da região do Entorno,
localizados nos Estados de Goiás e Minas Gerais, como pode ser visto no Mapa 1, em anexo.
5
2. CATEGORIAS TEÓRICAS EM ANÁLISE
2.1. A idéia de liberdade em Paulo Freire.
Segundo Paulo Freire, a noção de temporalidade é fundamental para a
compreensão do homem sobre si mesmo. A consciência de si e do lugar que ocupa na
sociedade é o que torna essa sociedade auto-reflexiva, capaz de deixar de ser
dependente, capaz de construir seus próprios projetos. O processo de transição entre
velhos e novos valores surge de transformações internas que permite ao homem emergir
do estado de dependência para um estado de autonomia, que se reflete no desejo de
participação. O conceito de “relações humanas” tem em si conotações de pluralidade,
transcendência, criticidade, conseqüência, temporalidade. As características destas
relações diferem da esfera puramente de contato dos animais. A realidade, para o ser
humano, é tida como externa e objetiva, mas passível de ser conhecida. Neste sentido,
está com o mundo e não apenas nele (Freire, 1983).
A organização da vida social na sociedade tradicional rural brasileira autoritária
criou uma população incapaz de decidir sua própria vida por estar sob o mando de
outros. Dominação tradicional, como tipo ideal weberiano, é aquela baseada na
autoridade legítima, patriarcal e patrimonial. A terra é o que garante prestígio e poder
político nesta estrutura. A exclusão da propriedade da terra, aos trabalhadores
transformou-se enquanto representação social e ação política. Neste sentido a visão
religiosa do mundo serviu para justificar uma hierarquia divina que se estenderia ao
plano terrestre na figura dos “Senhores da Terra”. A cultura cristã ocidental quebrou a
cosmovisão tradicional em que as sociedades primitivas viveram, promovendo uma
separação dos planos entre o sagrado e suas divindades e o plano dos homens,
secularizado, destituído de magia.
“O monoteísmo cria assim uma esfera do sagrado intocável transcedente,
que, ao liberar o homem dos ídolos e da magia, lhe confia a tarefa de vir
a ser o senhor do mundo e de submete-lo à lei do criador, para realizar o
Reino de Deus (...) não há mais negociação, oferendas, sacrifícios (...) a
única relação é a de subordinação do homem a Deus, da natureza aos
homens... colocou cada homem em situação de culpabilidade. Ele
6
habitou-o à obediência escrupulosa, fincou as primeiras estacas da
subordinação total e da racionalização do mundo. O cristianismo
terminará essa obra inacabada.” (Enriquez, 1990:239)
A mudança de concepção em relação à terra no pensamento popular se deu
através da ação mediadora da Igreja Católica através das pastorais e das Comunidades
Eclesiais de Base (CEB´s) difundidas no meio rural brasileiro, após a “opção
preferencial pelos pobres” 4 difundida pelos teólogos da libertação. “Terra para quem
nela vive e trabalha”, tornou-se um lema nesta mudança de perspectiva sobre a questão
agrária.
A realidade, antes imutável e estática, impassível de sofrer o impacto da ação do
homem comum, porque estava ligada a uma ordem divina, pode e deve ser transformada
na medida que a concepção religiosa se modifica através da teologia da libertação.
Paulo Freire afirma que é na compreensão de história que o homem conhece a
transcendência, esse sagrado exterior que o integra e o determina como ser mortal,
limitado, historicamente localizado. Uma crítica propositiva das relações e condições de
trabalho no campo ganhou força nova quando surgiram os movimentos
sociais
organizados que tiveram origem na articulação das CEB´s.
Paulo Freire teve um papel fundamental na construção de princípios de educação
popular e de comunicação para os “agentes de desenvolvimento” quebrando antigas
concepções como a de extensão rural. Em seu livro “Extensão ou Comunicação ?”, fez
críticas sérias e profundas à Extensão Rural. Questionou o próprio conceito de Extensão
(estender conhecimentos), revelando o equívoco intrínseco nesse conceito, o que
segundo ele, inviabilizaria a promoção do desenvolvimento da sociedade agrária que se
criava:
“(...)a teoria implícita na ação de estender, na extensão, é uma teoria
antidialógica. Como tal, incompatível com uma autêntica educação
(...)só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido,
transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo,
reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a
situações existenciais concretas. (FREIRE, 1977: 28)
O analfabetismo no Brasil foi usado pelas elites, ora associando ignorância ao
atraso, para justificar a exclusão de parte da população brasileira do processo eleitoral,
7
ora vendo a possibilidade de incorporar um número maior de votantes, contando com a
possibilidade de manipulação. Essa estratégia populista permitiu a abertura institucional
que o educador aproveita para dar início ao círculo de cultura 5. A urgência da prática
política, porque toda “educação é política”, se sobrepõe a construção teórica, que ele
sistematiza, somente depois, no seu exílio.
Essa sociedade agrária em decadência, é vista por Paulo Freire como um período
de trânsito. Weffort no prefácio de “Educação como Prática da Liberdade” de Paulo
Freire (1983), afirma que a leitura que o autor faz como intelectual está centrada não na
análise estrutural, mas na dimensão dos valores. Através da sociologia compreensiva ele
viu a sociedade brasileira no seu período de transição vivendo este conflito, a
possibilidade de modernização e democratização como conseqüência da ação dos
homens, como processo histórico, ao contrário da perspectiva positivista que vê a
transição como um “continuum”, como evolução inevitável.
Ao contrário, dependia de lutas concretas e de aproveitamento da oportunidade
histórica desencadeada com a crise. Com o momento de fissura, de quebra da sociedade
tradicional, momento em que se aproveita para modificar as estruturas diante da
abertura para o novo, mas onde as antigas forças da sociedade tradicional tendem a
redobrar sua ação na tentativa de manter-se. É neste momento que seria imprescindível
e inadiável desencadear um processo que trouxesse o homem comum da imersão no seu
tempo para assumir a responsabilidade social da mudança, tomando consciência de si
mesmo e participando da vida social.
A pedagogia de Paulo Freire foi incorporada pelos movimentos sociais, uma
educação contextualizada, sua figura ficou marcada na história dos assentamentos de
Reforma Agrária surgido nos anos 80. Época de conflitos agrários sérios, com alto
índice de violência e repressão armada tanto dos fazendeiros quanto da polícia. O
impacto das estratégias de ocupação de fazendas como pressão política por Reforma
Agrária após a abertura democrática pode ser percebida como um novo momento da
questão agrária. Neste sentido afirma Abramovay:
“uma das mais importantes conseqüências do desencadeamento do
processo de reforma agrária é a aparição de novas formas de luta e
4
Concílio no Chile: Estabeleceu a possibilidade de uma nova ação do clero católico na América Latina
em meados do século XX.
5
Círculo de Cultura: consistiu em grupos de educação popular sob a coordenação de Paulo Freire que
foram difundidos no Brasil antes do regime militar.
8
resistência por parte dos trabalhadores rurais. Nesse sentido, as dezenas
de acampamentos à beira de estradas que têm surgido nos últimos anos ...
representam formas inéditas de manifestação dos movimentos sociais
pela terra ... Os acampados, ao se organizarem coletivamente, deixam de
ser apenas os objetos do processo de reforma agrária e tornam-se seu
sujeito, eles passam do plano receptivo para o ativo”. (Abramovay, 1985:
51-57)
A respeito de seu método de alfabetização, Paulo Freire disse que ele encarna
uma concepção de mundo e a primeira constatação que faz dentro de sua visão é a de
que não estamos sós, mas com o mundo numa relação com ele e com outros seres.
Compreender esta constatação e as suas conseqüências segundo o educador é mais
importante do que seu método e suas técnicas. Ele valoriza a prática baseada nos
seguintes princípios:
"estar com os outros significa necessariamente respeitar nos outros o
direito de dizer a palavra" (Freire, 1982)6 .
A educação se torna autêntica quando há disposição do educador em viver uma
experiência de escuta da palavra do alfabetizando que se torna assim um criador de sua
aprendizagem.
O reconhecimento ao direito à palavra tem como conseqüência o dever de ouvir.
E o falar ao outro passa a ter a conotação de falar com, ao invés de falar ao outro. Paulo
Freire criticou a esquerda brasileira na sua contradição de falar ao povo e não com o
povo.
"falar a ti só se converte no falar contigo se eu te escuto. Vejam como no
Brasil está cheio de gente falando prá gente, mas não com a gente”.
(Idem, 1982)
Na medida que a sociedade está dividida entre aqueles que acreditam ter posse
da verdade frente aos outros destituídos dela e cujo dever então seria de imputar-lhes a
verdade, seguir este princípio é um desafio.
A tarefa de valorizar o princípio da escuta passa principalmente por escutar
aquela fala que contradiz a nossa. O direito à palavra àquele que está em consenso é
uma estratégia de manutenção de poder, a recusa ao conflito das idéias é exercida por
6
“Como trabalhar com o povo?”: palavras transcritas de uma conferência realizada em São Paulo.
Retirado do site www.paulofreire.org.br
9
quem estabelece relações autoritárias, característica das pessoas e sociedades fechadas
em si mesmas.
"Eu só escuto na medida em que eu respeito, inclusive o que fala me
contradizendo". (Idem, 1982)
Falar com o povo, estabelecendo contradições significa falar sobre algo, situação
concreta em que se vive, problematizar realidades partindo do nível de e das maneiras
como esta realidade é compreendida, não pelo educador mas pelo povo.
Paulo Freire fala a respeito da necessidade de “quebra da visão mágica do
mundo”, uma visão alienada que responsabiliza Deus, em função do nível de repressão
e opressão que passam as comunidades rurais, pela miséria e pobreza em que vivem.
Este nível de percepção e compreensão da realidade cria uma causa superior que destitui
de responsabilidade o homem comum e desvaloriza sua luta por transformação social.
Por outro lado, o educador verifica que a oportunidade de uma prática política imediata
tem a força de quebrar a visão mágica de mundo. Portanto, a construção da realidade
como imutável é utilitarista e temporária, conforta na medida em que não existem saídas
as situações de opressão. Seria “ignorância científica” tratar de luta de classes numa
comunidade em que prevalece a “visão mágica” de mundo, neste contexto é necessário
“desmontar a visão mágica”, mas desconsiderar a impossibilidade de uma ação política
imediata, caso a comunidade esteja imobilizada por uma relação de opressão e de
repressão, é agir de forma violenta desconsiderando o princípio de falar com, e
exercendo o falar ao povo, ao insistir nestas temáticas. Cria-se neste sentido mais medo.
Quando uma comunidade atribui a Deus sua condição de exploração e tem uma
visão fatalista da história, o papel de quem media pode cair no equívoco de concordar
com ela ou negá-la simplesmente, desconsiderando as raízes da espoliação. Ao negar a
ordem religiosa o mediador cria uma situação na “cabeça das pessoas” de ampliar culpa
e pecado, pois se Deus é o criador, justo e poderoso, ir contra ele significa distanciar-se
dele, estar em briga com ele. Numa situação como esta o importante é aceitar, sem se
sobrepor a visão deles, mas principalmente problematizar: “Por que ?”
Enfim, transformação social partindo de Paulo Freire, exige um trabalho de bom
senso, humildade, criatividade e coragem. Nem espontaneidade, nem voluntarismo são
suficientes, mas convivência e aproximação das classes populares.
10
Educação para a liberdade consiste em reconhecer a criticidade e a ingenuidade
de todo ser humano. Um jogo dialético que deve ser estabelecido para aproximarmos
uns dos outros. Ingenuidade é a alienação de si mesmo, ao outro. E criticidade, o
reconhecimento da ingenuidade. Se há transferência da ingenuidade ao outro, se o outro
é que não sabe se comunicar através das palavras, deixa-se de ser crítico, e há
absolutização. A ironia ou arrogância são os exemplos mais claros da ausência de
criticidade, é preciso o exercício de procurar reformular o pensamento do outro de
forma a compreendê-lo, isto feito no contexto de respeito e alteridade. O
reconhecimento da alienação, da distância entre o mundo subjetivo e a representação da
realidade entre sujeitos em interação, é que cria a necessidade de comunicação a fim de
vencer a frustração do isolamento humano, afinal:
“Ninguém sabe tudo e ninguém ignora tudo”. (Idem, 1982)
2.2. O Cativeiro no Campesinato Brasileiro: da dominação tradicional à
dominação moderna.
Neste capítulo analisaremos alguns elementos de autonomia e dependência
procurando delimitar o lócus da luta pela terra, configurada nos assentamentos rurais,
dentro do “movimento pendular” como RICCI (2000) descreve. Além disso, procurarse-à delimitar o sistema de trocas e complementariedade estabelecido entre camponeses,
agregados, homens livres com os “senhores” – proprietários de terra. Período em que a
dominação pessoal regia as relações de produção. Os movimentos sociais, como
conhecemos, hoje surgiram das transformações que a introdução do capitalismo no
campo provocou, principalmente, expulsão dos camponeses e quebra do padrão de
relação destes com os fazendeiros. Os assentamentos rurais podem significar uma
tentativa de retorno ao “tempo de fartura” daquelas antigas relações7?
Segundo RICCI (2000) os cientistas sociais modificaram com o tempo a visão
que criaram acerca dos movimentos sociais contemporâneos no campo. Se quando
surgiram despertaram interesse por se revelarem inéditos quanto ao caráter autônomo e
7
Ver Lembranças e saudades. Eduardo Ribeiro. Um estudo da memória dos agricultores familiares do
Vale do Jequitinhonha, a fartura e a ordem da fazenda é lembrada com saudade frente a desestruturação
das relações pessoais e da pobreza desencadeada pela entrada das empresas agrícolas e da forma salário, a
perda da morada e das terras comunais.
11
endógeno de seus processos de organização, isto foi sendo revisto à medida que a
herança tradicional autoritária, personalista, patrimonialista predominante nas relações
sociais no campo, foi vindo à tona no interior dos mesmos.
O objetivo do autor, ao retomar a história dos novos movimentos sociais e
discutir a construção teórica feita deles pelas ciências sociais no Brasil, é a de apresentar
a tese de que novas formas de gestão de políticas públicas tem surgido do interior deste
“movimento pendular”. Isto é, em resposta a dinâmica do contexto social a sociedade
civil se organiza e cria situações novas. Se num primeiro momento, quando surgiram na
década de 80, os movimentos do campo tiveram como princípio a rejeição a qualquer
forma de institucionalidade, com o passar do tempo, cargos públicos foram ocupados
pelas lideranças eleitas pela sua base e o dilema de ter que participar do governo forçou
a rever a oposição às instituições. Experiências múltiplas e polarizadas criaram novos
modelos de gestão com base numa forte territorialidade que, distintas dos grandes
movimentos sociais como MST, têm sido significativas na contribuição da sociedade
civil para a promoção de desenvolvimento rural. Porém, as políticas públicas ainda são
gestadas em Brasília, sendo o governo portanto, ainda retrógrado, em desconsiderar a
sociedade civil na sua capacidade de planejar.
O pensamento social brasileiro, representado por Oliveira Vianna, Gilberto
Freire e Caio Prado Jr., no período entre a década de 30 e 60, descreve as comunidades
rurais como “não portadoras de um projeto social próprio”, segundo RICCI:
“Em quase todas essas concepções, as comunidades rurais não se
apresentavam como portadoras de um projeto social próprio.
Vinculavam-se atavicamente à grande propriedade fundiária ou
libertavam-se desta dominação política através de atores sociais
exógenos ao seu imaginário”. (Idem, 2000: 3)
Os movimentos sociais surgidos como reação a pauperização e expropriação
acirrada deste período foram percebidos como distintos da lógica anterior pelo grau de
autonomia das mobilizações, práticas e discursos.
“Apressadamente, vários autores perceberam nesses movimentos sociais
uma novidade que rompia com a lógica anterior. Expropriados dos laços
de dominação tradicional, entricheirados em mobilizações autônomas,
novas práticas e discursos forjavam uma identidade própria, um novo
mundo rural. Nessas análises, o conceito de autonomia aparecia como
um elemento articulador”. (Idem, 2000: 4)
12
Porém, no final da década de 80 e início de 90, segundo Ricci, novos estudos
pareciam dar conta da “trajetória pendular dos movimentos sociais rurais, decai a crença
política e o caráter de novidade atribuídos a eles, pelos estudos do começo da década”.
Registram em contextos diferentes o enfrentamento com a “herança” de relações
tradicionais baseadas no compadrio e no coronelismo na articulação dos trabalhadores
rurais no campo.
Mas o que nos interessa de fato neste texto é a idéia de “movimento pendular”
entre o desejo de autonomia e as práticas que reproduzem dependência.
Os estudos clássicos das sociedades camponesas de origem européia e americana
tentam localizar sua origem na história da humanidade, que se confunde com a origem
da civilização, das cidades e do Estado. O camponês surge enquanto produtor de
alimentos sob formas de dominação que o obrigam produzir não só para si, mas para
sustentar grupos sociais que tem sobre ele controle, exercido principalmente através da
restrição à propriedade da terra. Sua origem portanto, está nas sociedades de classe,
onde a detenção dos meios de produção se concentra em grupos não envolvidos com o
trabalho agrícola.
Powell (1974) faz uma revisão de literatura de estudos antropológicos das
décadas de 50 e 60 e adota a definição de Kroeber, que entende o campesinato como
uma sociedade parcial dentro de um sistema maior de sociedade e cultura. Sociedade
parcial com cultura parcial, possuindo identidade própria, forte ligação com a terra e
com o cultivo, forte integração entre unidades locais, mas sem autonomia política. Um
setor rural que viveria em relação através de mercados locais, com os outros urbanos.
Ele critica a perspectiva de Redfield (1964) e os estudos que seguiram sua
tendência de compor uma cultura geral para o campesinato na América Latina,
contrapondo a “pequena tradição”, campesinato, com a “grande tradição”, sociedade
envolvente. Centraram-se na dinâmica interna do campesinato, tratadas como variáveis
independentes, que gerariam os elementos da “pequena tradição”: estrutura de
autoridade, parentesco, comportamento, estratificação. A incoerência destes estudos,
segundo Powell, está em procurar entender a organização interna do campesinato de
forma isolada, o que segundo ele só é possível fazer a partir da abordagem das relações
que estabelece com a “grande tradição”. Ele retoma a idéia de Kroeber “sociedades
13
parciais com culturas parciais”. Isto significa que o campesinato procura relativizar a
pequena com a grande tradição, o que é dependente do grau de penetração desta última
através dos seus mecanismos de controle. Este grau de coerção é o que define o quanto
o campesinato tem de uma e outra tradição que resulta na sua mesclagem constituinte.
Este autor chega a afirmar que a sociedade campesina foi criada e mantida na
sua forma característica por indivíduos que vivem fora dela. A característica do
campesinato estaria assim na sua flexibilidade e não na resistência aos contextos
externos. O caráter bastante variável da sua estrutura e dinâmica interna é resultado dos
diferentes tipos de relações estabelecidas com a sociedade que o engloba.
Wolf (1970) também segue esta linha que entende o campesinato não sendo
autônomo, mas determinado pela relação com o grupo que o domina, tendo, porém, sua
ordem interna própria. Dessa forma, este autor identifica o “dilema camponês” que é o
de conseguir viver atendendo tanto suas necessidades internas, que não só de
alimentação, mas de ordem cultural e simbólica, e as necessidades externas, já que
mantém relações assimétricas com grupos de poder. Retrata o camponês vivendo sob
uma pressão externa e interna procurando sustentar seu mundo, num equilíbrio
dinâmico onde é preciso avaliar seus recursos e usar estratégias na tentativa de
“modificar ou neutralizar os efeitos dessas relações”. As estratégias montadas vão no
sentido de diminuir o consumo ou aumentar a produção, como geralmente estão sob
recursos escassos a saída encontrada costuma ser a primeira.
Na revisão de literatura desenvolvida por Queiroz (1973), analisando o caso
francês a partir de Marc Bloch, ela afirma que o campesinato está subordinado,
primeiramente, a senhores feudais, depois, com a crise e diferenciação do campesinato,
a camponeses ricos que passam a deter poder econômico sobre os demais. Com o
desenvolvimento das cidades o campesinato ficou atrelado pela venda de seus produtos,
à cidade. Cada vez mais burgueses se apropriaram das terras que foram desapropriadas
da nobreza e do clero e passaram a arredá-las aos camponeses. A subordinação à cidade,
portanto, se encontra tanto ligado ao estabelecimento do mercado urbano quanto ao
novos “patrões”.
Portanto, conclui a autora que ao longo da história, transformações ocorrem na
sociedade envolvente e o campesinato se mantém excluído de poder e prestígio. E
politicamente, os movimentos de reação do campesinato na Europa, sobretudo os
14
messiânicos não chegaram a ter expressividade, por estarem restritos às localidades e
nem tenderem a reformas estruturais: “Seu objetivo era mudar as pessoas que ocupavam
os postos hierárquicos, conservando porém as hierarquias”. (Queiroz, 1973:22)
Contrapondo, Martins (1990) retrada um campesinato “progressivamente
insubmisso” surgindo no Brasil. Primeiro contra a dominação pessoal de fazendeiros e
de coronéis, segundo contra a expropriação territorial de grileiros e de grandes
proprietários e, por último, considerando que o livro foi lançado no começo da década
de 80, a luta se concentrava contra a exploração da grande empresa capitalista e contra a
política econômica do Estado que a incentivava.
Esse campesinato que se organiza carecia, porém, de representação política
partidária. A partir da década de 50 a “vontade política própria” desponta através de
ações diversas, como fechamento de estrada cobrando melhores preços agrícolas,
levando a justiça os fazendeiros, cobrando indenizações, se organizando em sindicatos e
ligas camponesas, exigindo do Estado Reforma Agrária, resistindo à expulsões e
despejos, com o apoio da Igreja Católica e do Partido Comunista do Brasil (PCB).
Para Martins (1990) o campesinato brasileiro estava distante estava do
parâmetro russo do século XIX que servia de base às concepções que isolavam a luta
camponesa, como não sendo resultado das relações capitalistas que no Brasil
contraditoriamente o criaram. No lugar de um campesinato estamental baseado na
propriedade tradicional e comunitária da terra, que lutava contra a expansão do capital,
no Brasil “o campesinato é uma classe” que luta pelo mesmo direito capitalista da
propriedade da terra. Terra de trabalho e terra de negócio é que se enquadra nos
conflitos pelo direito à mesma propriedade privada. Campesinato que se desloca
acompanhando o avanço do capital pela terra:
“O campesinato brasileiro é desenraizado, é migrante, é itinerante. A
história dos camponeses-posseiros é de perambulação. A história dos
camponeses-proprietários do sul é uma história de migrações”. (Martins,
1990:17)
O sentido das lutas camponesas passa, então, pela compreensão das relações e
transformações capitalistas, e o lugar político negado ao campesinato pelos partidos
políticos abriram espaço ao Estado, o que contribuiu para adiar a construção da
cidadania, da expressão política do homem do campo que despontava no período
decorrido pós 50. A ação do Estado no período militar tomou para si a representação
15
política dos interesses camponeses. No intuito de combate-los, adotou uma política de
redistribuição de terras nas áreas de conflito e incentivo deliberado à concentração
fundiária e de constituição de grandes empresas no campo (Martins, 1990).
Este autor considera o termo campesinato como uma “importação política da
esquerda” procurando dar força ao trabalhadores rurais que antes disso, ditos caipiras,
caiçaras, tabaréus e caboclos segundo diferenças regionais, o que desqualificava-os
enquanto agente político.
“São palavras que desde tempos remotos têm duplo sentido. Referem-se aos
que vivem longe, no campo, fora das povoações e das cidades, e que por isso,
são também rústicos, atrasados ou, então, ingênuos, inacessíveis. Têm também
o sentido de tolo, de tonto. Às vezes querem dizer também „preguiçoso‟, que
não gosta de trabalho. No conjunto, são palavras depreciativas, ofensivas”
(Martins, 1989:22).
Na construção do discurso político agregou-se no outro pólo, sob o termo
latifundiário, os fazendeiros, estancieiros, seringalistas e senhores de engenho. O autor
argumenta que o termo político define um lugar, um destino social que tem por trás uma
concepção, que no caso do campesinato esteve atrelada a uma realidade estrangeira que
ao ser incorporada esconde as reais relações em jogo. Relações políticas e não só de
produção. Martins considera o impacto político do uso do termo, como a negação do
espaço do campesinato, já que na verdade há uma disputa de outras classes pela sua
mediação. Dessa forma, ele resgata a história das lutas políticas pela perspectiva de que
foi ele excluído do “pacto político” e da história do Brasil, mesmo a esquerda procurava
tutelar o campesinato embutindo nele o seu próprio projeto de reforma desconsiderando
seus reais interesses. Atrelado a outras classes sociais, seja subordinado ao proletariado
ou às alianças com a burguesia de forma revolucionária ou conservadora
respectivamente o projeto político do campesinato desaparece, sua participação na
história se torna invisível. A exemplo disto está o fato de que a história oficial não
registrou com a devida importância as grandes lutas camponesas como a de Canudos e
de Contestado, sua permanência na memória nacional é fraca (Martins, 1990).
O início dessa exclusão começou, segundo o mesmo autor, no sistema de
propriedade da terra, no início da ocupação do território pelo colonizador que restringiu
o acesso à índios e mestiços. Somente o branco puro teria direito à herança e pedir a
16
concessão da sesmaria à coroa. Os agregados que reivindicavam a posse deveriam fazêlo em nome de um fazendeiro.
“(...) pelo fato de viver e trabalhar autonomamente nas terras de um
fazendeiro, um agregado podia retribuir-lhe defendendo o seu direito de
assenhorear de mais terras, de litigar com fazendeiros vizinhos, etc. Com
isso, o agregado defendia também o seu direito de estar na terra do
fazendeiro. Mas não podia defender o direito de estar na terra, sem fazer
dessa terra propriedade do seu fazendeiro. A sua luta era a luta do outro.”
(Martins, 1990:36)
Estabeleceu-se, assim, um sistema de trocas e de favores em torno da terra,
serviços variados, morada, tutela de pessoas, tutela política, proteção, fidelidade, e até a
própria organização da vida social estava em jogo entre fazendeiros e trabalhadores.
Designando esses trabalhadores de caipira, caiçara, tabaréu, caboclo, escondeuse um campesinato que assumia várias formas em torno de sobrevivência e em busca de
liberdade do trabalho que esteve associado à terra, de trabalho e de agricultura: o sítio.
Em troca disso os trabalhadores se sujeitaram e a consciência concreta dessa sujeição
aparece representada simbolicamente nas dualidades: sujeitos x libertos, cativeiro x
liberdade, estudadas pelos antropólogos Velho (1989) e Garcia Jr., (1989) . Estratégias
diferenciadas foram montadas em busca da liberdade de organização da própria vida,
incluindo a organização da produção, do trabalho, dos rumos do grupo doméstico.
Garcia Jr. se refere a um campesinato que encontra na forma do trabalho industrial o
caminho para sair da dominação pessoal da sujeição da morada e da conquista da
condição de “sitiante tradicional” ou da reprodução desta condição.
Associado geralmente a um período histórico passado, dito feudal, os estudos
clássicos de Sociologia Rural acerca das sociedades camponesas no terceiro mundo
tiveram como viés a relação causal entre a necessidade de compreensão da organização
interna destes grupos para promoção de mudanças em suas formas de vida, para a
superação de atraso, pobreza, da auto-subsistência a que estes grupos estavam ligados.
Wolf deixa isto claro ao apresentar os objetivos de seu livro, publicado em 1966 na
França e traduzido para o português na década de 70. O livro tinha a pretensão segundo
o próprio autor, de ser um “manual da vida camponesa” direcionada aos estudiosos e
políticos que desprezavam a complexidade do mundo camponês onde atuavam como
desenvolvimentistas. Era preciso conhecer para transformar:
17
“(...) grande segmento da espécie humana que permaneceram a meio
caminho entre a tribo primitiva e a sociedade industrial. (...) apresentam
também uma importância atual, porque habitam a parte
„subdesenvolvida‟ do mundo, onde sua longa permanência constitui, ao
mesmo tempo, um desafio e uma responsabilidade para os países que se
livraram dos grilhões do atraso.” (Wolf, 1970:9)
Nesse universo entre o primitivo e o moderno ter-se-ia a maior parte do mundo,
aquela subdesenvolvida, vista geralmente sob a necessidade de interferência dos países
desenvolvidos para modificar a sua condição de “atrasada”.
Na transição de sociedades feudais para sociedades capitalistas os estudos sob
perspectiva predominantemente econômica procuraram determinar os impactos da
Revolução industrial sobre o campesinato que levariam a sua desestruturação. A
Revolução Verde introduziu uma concepção de natureza e de agricultura bastante
diferente daquela exercida pelos grupos camponeses. Tida como objeto a ser dominado
e transformado pela ação antrópica através da conhecimento científico e sua aplicação
tecnológica direcionada aos ambientes específicos. A produção agrícola se transforma
em suas bases, especializa-se de tal forma ao agregar-se a revolução industrial que para
cada cultura agrícola específica tem-se um pacote tecnológico direcionado à sua
máxima eficiência e as variações sazonais de clima ou as condições limitantes do solo
não são mais empecilhos à produção direcionada ao negócio agrícola, ao agrobusiness.
De fato, as políticas públicas direcionadas a modernização agrícola no Brasil
desconsideraram a produção camponesa até a década de 90. A partir daí, as entidades de
classe conseguiram articular em torno do termo Agricultura Familiar a valorização da
produção camponesa por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (PRONAF), incluindo pela primeira vez, nas políticas agrícolas do país.
Porém, o viés econômico ainda predomina e o que se busca é a modernização e inserção
do camponês nas cadeias produtivas. A lógica de produção camponesa e seu modo de
vida são, mais uma vez, deixados à segundo plano.
A organização interna é outro foco de estudo pela relação de importância com a
“sobrevivência” do campesinato, atribuída, comumente, nas ciências agrárias, como sua
“resistência” à modernização. Várias correntes teóricas consideravam que a Revolução
Industrial quebraria o mundo camponês, como se deu nos países desenvolvidos
18
As relações sociais no Brasil são complexas e contraditórias para serem
enquadradas sob a determinação de feudais ou capitalistas como aparece nos debates
sobre o campesinato e mercado de trabalho assalariado. As formas de pagamento dos
trabalhadores, por vezes foram utilizadas como classificação que tem um fim em si
mesma. Garcia Jr (1989) e Franco (1983) vão criticar este tipo de analise reducionista
que procura enquadrar o campesinato no Brasil através da economia.
Queiroz (1973) atribui a incorporação do termo campesinato no meio acadêmico
à tradução de estudos europeus, usados para analisar as relações sociais no meio rural
brasileiro. No entanto, descobriu-se um campesinato autêntico, sitiantes que não
pertenciam ao grupo de clientela dos fazendeiros. Os estudos do campesinato em São
Paulo foram quebrando as idéias construídas pelos cientistas sociais quanto ao
isolamento dessas populações, e principalmente, contra a existência de sociedade
polarizada entre fazendeiros e escravos sem que houvesse um estrato intermediário.
Coexistiu com fazendas monocultoras e com as de criação de gado, abastecendo essas
fazendas e os povoados. As Zonas menos férteis, vales úmidos, beiras de rios eram
ocupados por sitiantes livres que ofereciam todo tipo de serviço e cuja subordinação era
característica, formavam a rede de clientela dos fazendeiros e criadores de gado
(Queiroz, 1973; Dayrell, 2000).
Por outro lado, havia um tipo de camponês proprietário,
autônomo,
desvinculado das relações de troca hierárquica com os fazendeiros. Uma população
numerosa com forte coesão social, com uma estrutura interna complexa e uma forte
mobilidade social.
“Não raro o fazendeiro admitia em suas terras moradores que cultivavam
para sua própria subsistência, pagando o aluguel da terra com parte da
colheita e dando ainda dias de trabalho nas plantações do proprietário;
constituíam assim viveiros de mão-de-obra... estes moradores tinham por
obrigação constituir uma espécie de “milícia” do criador de gado,
defendendo-o nas lutas políticas, pois o trabalho com os rebanhos não
exigia quantidade apreciável de mão-de-obra”. (Queiroz, 1973:26)
Os fazendeiros ofereciam proteção, apadrinhavam os filhos dos camponeses,
eram seus chefes políticos, advogados e banqueiros. Eram eles o elemento de ligação
entre o campesinato e a sociedade global.
19
Apesar do tipo de relação remeter a situação do camponês feudal europeu, a
autora destaca que as fazendas em muito distanciavam dos feudos de economia fechada,
eram monoculturas de exportação, empresas comerciais que objetivavam o lucro.
Bastante comum nos lugares onde a grande fazenda estava ausente, se constituir
entre os sitiantes tradicionais uma hierarquia de caráter econômico em que sitiantes
mais abastados e detentores de animais de transporte, tornavam-se também
comerciantes e intermediários entre os mais pobres e o mercado urbano. Determinando
inclusive os preços agrícolas. Desta atividade conseguem ampliar seu patrimônio e
estabelecer sistemas de parcerias com outros sitiantes. Vão se tornando assim “chefetes”
políticos, detentores de prestígio, sem no entanto conseguir competir com os grandes
fazendeiros no plano regional (Queiroz 1973).
Além dos camponeses proprietários, sempre houve também posseiros, ocupando
áreas devolutas ou em terras privadas, mas que não tinham a concessão do proprietário;
os parceiros que pagavam o aluguel da terra em dinheiro ou em produto. Para os
arrendatários, o pagamento da terra não depende da produção, é estabelecido entre as
partes a priori. Moradores e agregados ocupavam terras das grandes fazendas e
produziam com a permissão do proprietário gêneros alimentícios, estavam a serviço do
proprietário.
Segundo Martins, os agregados tiveram uma grande importância na abertura das
fazendas de café em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Queiroz afirma que o campesinato brasileiro, por estar inserido na sociedade
global de forma subordinada, dependente de outros, sofrendo conseqüências dos
conflitos constantes nas disputas de família, por questões de honra, de vingança, de
terra. Vivia em um estado de “anomia endêmico”. A reação advinha de sua forte
religiosidade. O surgimento de um líder sagrado, comumente era restabelecedor da
ordem. Pacificava conflitos, disciplinava regiões e nesse momento era superior em
prestígio aos chefes locais.
Seriam traços gerais definidores desse camponês o trabalhador rural cuja
produção diversificada se destina em primeiro lugar ao consumo da família, a venda do
excedente pode ou não acontecer, quando não é proprietário paga aluguel pela terra. A
produção não objetiva o lucro o que restringe e limita o seu consumo, o sistema de
cultivo utiliza de instrumentos rudimentares e base do trabalho é a família. Quando a
20
produção se destina a venda a organização do seu trabalho se altera e há a necessidade
de contratação de força de trabalho complementar.
A subsistência é o que define o campesinato economicamente. E sua
subordinação econômica, política e social é um traço característico. Pode estar
subordinado a “camadas” urbanas ou mesmo rurais. Mesmo quando proprietários de
suas terras e de seus instrumentos de trabalho gozam de certa autarquia, mas
politicamente são subordinados a outros grupos. Os movimentos de reação são de
caráter religiosos, não alcançaram grandes extensões. Movimentos religiosos são mais
freqüentes.
“(...) é impróprio falar em „sociedades camponesas‟, como tem feito alguns
autores. Como as sociedades se caracterizam sempre pelas suas camadas
dominantes, não existiram nunca sociedades camponesas. O que sempre
existiu foi um campesinato, isto é, um conjunto de camponeses ocupando na
sociedade global uma posição de inferioridade sócio-econômica e política,
muito embora possa constituir a massa majoritária da população” (Queiroz,
1973: 30)
A autora vai contrapor a dualidade característica da sociedade brasileira como
“civilização urbana” e “civilização arcaica” desenvolvida por Jacques Lambert. Nessa
perspectiva a vida nas cidades seria mais complexa e cuja população mais heterogênea,
se diversificava em várias camadas sociais enquanto no meio rural persiste a dualidade
entre senhores e escravos ou entre fazendeiros e sua clientela. O Brasil arcaico seria
constituído por comunidades homogêneas sem participação na vida política do país.
Qualquer que fosse a relação com a terra os trabalhadores estavam subordinados ao
fazendeiro. “Os fazendeiros, por sua vez, se interpunham entre sitiantes e cidade, entre
sitiantes e Estado” (Idem, ibdem: 43).
Não é possível generalizar, pois existiram sitiantes livres, ou seja, não estavam
subordinados a nenhum fazendeiro ou chefe políticos, mantinham autonomia,
independência e individualismo frente a outros grupos e entre si.
“Na verdade, o individualismo de cada família era zelosamente
salvaguardado, cada chefe primando em conservar auto-suficiente tanto
em relação aos vizinhos quanto em relação à cidade” (Idem, ibdem: 43).
Estes sim, seriam verdadeiros camponeses que mantinham uma relação de
complementariedade com a cidade, abastecendo-a, através das feiras e trazendo de lá o
que precisava, sem estar subordinado a esta. Sitiantes deste tipo, autônomos,
21
proprietários, tendo uma vida comunitária intensa numa relação com a cidade de
proximidade e complementariedade, equilibrada, foi descrita em várias partes do país.
Em São Paulo, Sertão de Juquitibá, Itapecerica, Itapetininga, Vale do Paraíba e
Paraibuna, onde a autora pesquisou. Antônio Candido descreve-o numa fase de
decadência em Bofete e Botucatu. Manuel Correa de Andrade, no Nordeste.
O bairro rural é o espaço social do sitiante tradicional. Ali vive relações de
vizinhança intensa onde o grau de coesão social é determinado pelo mutirão, trabalho
coletivo pedido pelo chefe de família em que participam os grupos quando não há
divisão interna. O nível de vida do sitiante é determinado em função da extensão de
terra que pode ser cultivada. A família é conjugal economicamente, mas as relações
sociais são baseadas na parentela. O sistema de compadrio que nem sempre é instituído
por laços de sangue permite a integração dos que chegam. O bairro rural tem sua
estrutura fixa, as famílias variam, na sua mobilidade característica. As migrações são
constantes, deslocam-se no interior do bairro em função do “cansaço” do solo. Quando
o bairro se torna densamente povoado o nível de vida cai em função da impossibilidade
de abrir novas roças. Os casamentos e a construção de uma nova capela abrem um novo
núcleo. As distâncias entre bairros são longas e as distâncias internas o definem, os
moradores centrais do núcleo não têm dúvida do grupo de vizinhança ao qual
pertençam, aqueles que vivem distantes acabam pertencendo participando de mais de
um grupo e não tem o mesmo sentimento de pertencimento. Não há estratificação social
interna, a questão econômica é menos definidora do prestígio do que as qualidades
pessoais que conferem a um indivíduo o ofício de conselheiro, de padrinho, nas
decisões do grupo ele é mais escutado pelos demais. Características como bondade,
coragem, desinteresse.
“A riqueza pode aumentar o prestígio mas não é causa direta deste, que
depende de qualidades pessoais positivamente sancionadas pela tradição:
desinteresse, generosidade, respeito pelos outros, bondade, coragem,
bom-senso e, em último lugar, instrução. Quanto mais o indivíduo der
provas destas qualidades, mais sua autoridade aumenta no bairro, mais
sua voz é ouvida nas deliberações tomadas em comum, mais é procurado
para conselheiro, mais é convidado para padrinho das crianças. Quando
desaparece, aquele que possui qualidades análogas naturalmente lhe
toma o lugar”. (Queiroz, 1973:55)
22
Mutirões e festas religiosas faziam parte de sua vida comunitária. Foram
descritos desde o século XVII. (Queiroz, 1973). Por fim, conclui a autora que existiram
no Brasil, desde o período colonial, dois tipos de economia e de forma de vida: aquela
da grande fazenda, monocultora escravista e exportadora e a economia de sitiantes
independentes, cuja economia era complementar a monocultura e a vida comercial
urbana.
“Chamamos, porém, a atenção para o fato de que nem sempre eram
subordinados aos fazendeiros, existindo muitas vezes em áreas onde
estes não eram encontrados. Desse modo, quando se estuda os sitiantes
tradicionais, há sempre que verificar se se trata de sitiantes subordinados,
clientela dos fazendeiros, ou de sitiantes independentes, vivendo em
simbiose com os aglomerados urbanos”. (Queiroz, 1973:37)
A dualidade com que o meio rural foi descrito, portanto, é equivocada segundo
Queiroz (1973), ao invés de uma sociedade dividida entre fazendeiros e trabalhadores,
sejam escravos ou livres, existiram três categorias, acrescentasse aí camponeses
independentes, “proprietários de direito ou de fato”.
Além desta, nos engenhos de açúcar existia uma hierarquia complexa, cujos
trabalhadores especializados se distinguiam como uma classe média por receberem
salários, pelo certo grau de conhecimento que possuíam, também não se enquadravam
como clientela livre, tinham um desejo de ascensão social tornando-se comerciantes ou
também sitiantes livres. Na hierarquia social, pela falta de autonomia do trabalho eram
considerados inferiores aos sitiantes autônomos. 8
Essa camada de sitiantes, na análise de Queiroz, teve como função social, criar
uma certa idéia de mobilidade social, contendo conflitos entre os trabalhadores rurais. O
trabalho autônomo sempre foi objeto de sonho destes, e que não era difícil de ser
alcançado quando as terras devolutas ainda eram abundantes:
“Se a estratificação no Brasil rústico tivesse tido e conservasse ainda a
rigidez que tem sido geralmente descrita, provavelmente surgiriam
reivindicações nas camadas inferiores, ou reações contrárias vigorosas;
nada disso se verificou, nem se verifica. Nossa hipótese é que essa
8 Em “Cultura e Opulência no Brasil” outro estudo clássico sobre a sociedade brasileira, Antonil (1976)
descreve a hierarquia do engenho, o texto constitui-se em um verdadeiro manual de conduta do senhor do
engenho para com seus subordinados, escravos, trabalhadores de cana cativa, mestres do açúcar,
purgadores, caixeiros e até no “governo” da sua família. Sob o título “Como se há de haver o senhor de
engenho para com...” ele estabelece obrigações, deveres e faz críticas aos padrões de comportamento da
época
23
camada intermediária de sitiantes autônomos teria agido sempre como
um tampão...” (Queiroz, 1973:40)
Essa situação se modifica à medida que a sociedade se transforma, as
propriedades se modificam, tornam-se mais direcionadas ao mercado e se especializam,
surgem novos produtores. Assim, os sitiantes tradicionais “são como que empurrados
para baixo, por novas camadas que passam a existir” (Queiroz, 1973:41)
A autora discorda da idéia de que para sobreviver este tipo de campesinato
deveria se manter isolado cada vez mais do mundo urbano, ao contrário é quando se
quebra essa relação de complementaridade econômica estabelecida com a cidade que o
sitiante tradicional entra em decadência. A situação do sitiante tradicional é bastante
distinta de marginal ou isolada, ele tem dinâmica da vida regional. “Economicamente a
vida do sitiante formava um todo com a economia urbana da cidade de São Paulo, da
qual era complementar” (Queiroz, 1973).
A perda do mercado urbano, isola o sitiante, ele deixa de ir à feira, levando sua
produção, perde seu espaço social. Passa a plantar apenas para o consumo, não compra
mais na cidade e por fim, torna-se carvoeiro. E com o carvão não define mais o preço,
nem precisa mais se deslocar, o intermediário vem a sua porta. Isso sendo descrito por
Lia Garcia Fukui em 1964 na região de Itapecerica-SP.
Dayrell (2000) descreve o mesmo no Norte de Minas, a perda de identidade de
geraizeiro9, com a perda do comércio local, não “descem” mais da chapada para a feira.
Perdem sua identidade, não se apresentam à sociedade. A quebra do mundo camponês
no Norte de Minas não se deve ao crescimento urbano como no caso acima, mas a
entrada das empresas de reflorestamento e à mudança dos padrões de relação com os
fazendeiros, que após 64, quando entra em vigor o Estatuto da Terra, que abria a
possibilidade dos posseiros reivindicarem a propriedade da terra, foram violentamente
expulsos ou tiveram suas terras reduzidas às áreas de vertentes.
“Ignorante dos caracteres de uma economia de mercado, o sitiante passa
a ser explorado pelos intermediários e seu nível de vida não faz senão
baixar... É este o momento em que o isolamento se torna realidade: o
sitiante não precisa mais ir a nenhuma das cidades dentro ou fora do
Sertão para as suas trocas. O intermediário vem até ele. São mantidos
9
Como são conhecidos os camponeses que ocupam “os gerais”, áreas de planalto e serras do sertão nortemineiro. O autor trata especificamente do município de Porteirinha.
24
apenas os contatos esporádicos com uma sede municipal para os raros
momentos em que é necessário legalizar os atos da vida pública ou
privada”. (Queiroz, 1973: 43)
A autora divide em três fases a vida social e econômica do sitiante de São Paulo:
A primeira em que vive em equilíbrio com a cidade, abastecendo-a com seus cargueiros
em complementaridade e independência. A fase do carvão em que conhece a dominação
econômica, passa a ser dependente e subordinado, seu estilo de vida aqui ainda está
inalterado. A fase posterior é a dos carvoeiros sem roça, em que ele conhece a miséria
econômica e social.
“Insulado no meio das matas, vestido de farrapos, não organiza mais novenas,
não vai mais conversar na venda, não conserva as antigas relações de
parentesco e compadrio, chega ao grau mais elevado de isolamento”. (Queiroz,
1973:44)
Em 1973, tal o impacto dos estudos de Antônio Cândido e de Manuel Correa de
Andrade e de seu próprio estudo, Queiroz viu o processo de decadência do campesinato
como um processo geral no país. Possibilidade nova, porém, surgiria com os projetos de
reforma agrária em que ela lança a hipótese, em nota de roda-pé:
“Os projetos de reforma agrária, tal qual têm sido formulados até agora,
provavelmente terão como resultado multiplicar sitiantes de tipo
tradicional, já que dificilmente se poderá dar aos futuros “colonos” o
auxílio e apoio que lhes permita orientar de maneira diferente sua
economia e produção”. (Queiroz, 1973:45)
Como conseqüência das transformações na paisagem rural brasileira com a
modernização da agricultura a partir da década de 70:
“A sociabilidade tradicional foi estilhaçada, fragmentando as
comunidades rurais em inúmeras categorias sociais: assalariados
temporários, assalariados permanentes, agricultura familiar vinculada a
agroindústrias, além das categorias tradicionais, todos sofrendo ainda
outras clivagens definidas pelo tipo de produto a que estavam
vinculados, estruturados em função do grau de especialização e
complexidade da cadeia produtiva”. (RICCI, 2000:2)
Segundo Velho (1995) a situação de cativeiro, analisada muitas vezes como pura
simbologia pelos intelectuais, esconde ao contrário, situações concretas de sujeição que
ele tentou decifrar. A situação de cativeiro está ligada a uma restrição de liberdade.
Estar cativo é estar subordinado a outro, dever-lhe obediência. Destaca-se aqui deste
25
autor a análise de “cativar” por trás desta categoria. A “sedução do mal” que leva ao
cativeiro. O medo do cativeiro se converte e se torna maior neste sentido porque é
delegada uma responsabilidade ao sujeito, que não vai passivo ao cativeiro, mas é
seduzido, iludido por ele. Ele analisa a história de bombons ofertados às crianças por
vampiros, por ocasião da construção da Tranzamazônica, em que oficiais do governo
circulavam em carros pretos para sua inauguração. Este é o elemento simbólico atrelado
ao perigo que a ação estatal conduziria na região da Amazônia Legal, onde os
camponeses estudados pelo autor temiam novas formas de sujeição.
Projetado nas suas próprias crianças ingênuas, o camponês procura criar seus
códigos políticos que segundo Martins fazem parte das estratégias de comunicação e
articulação, ligadas a uma cultura bíblica, simbólica por vezes de difícil entendimento
àqueles que se guiam pela racionalização do mundo responsáveis por políticas públicas
que ignoram o mundo sócio-cultural dos camponeses.
O papel do indivíduo, dessa forma, é de co-adjuvante, também responsável pelo
cativeiro que não se instala sem sua permissão. Para se manter longe do cativeiro o
importante, portanto, é não deixar-se seduzir pelo “mal”.
“Se o cara nunca foi no inferno em vida. Vai para assentamento, aqui vê.
Aqui é como tubarão, fica o mais esperto.” (“Chico latinha”, assentado
do Vereda II).
Nos assentamentos rurais no Brasil, que tipo de “sitiantes”, ou “chacareiros”
como se diz no Entorno de DF, estão sendo criados? Que tipo de relação estabelecem
com o entorno, entre si e com o Estado? Que tipo participação política na gestão do
assentamento lhes cabe? Como assumem o papel a eles atribuído e que papel constroem
por si mesmos? Estas são as questões do próximo capítulo.
2.3. O Direito à Terra e a Reforma Agrária no Brasil
A concepção de Reforma Agrária do Estado pode ser percebida através na
manutenção da grande propriedade privada contida no Estatuto da Terra e reforçada na
Constituição Federal. Analisando a Legislação Agrária do governo Fernando Henrique
Cardoso Guiducci (2001) afirma que “um aspecto fundamental nos embates acerca dos
problemas fundiários brasileiros refere-se ao pressuposto, tal como defendido pelo
26
Governo, de que o processo de Reforma Agrária funde-se na legalidade e no Estado
democrático de direito.” (2001: 45). E a competência do Estado bem como a
sustentação legal do seu projeto político, no que compete a questão fundiária estão
sobretudo no Estatuto da Terra (Lei 4504/1964), regulamentado pela Lei Agrária
8629/1993.
O conteúdo da legislação agrária permite compreender o que o Estado concebe
por “reforma agrária”, e portanto, como define sua ação no tratamento da questão
fundiária. O rito processual de desapropriação foi alterado com a Lei Complementar no.
88 de dezembro de 1996. Esta alteração representa a tentativa do governo em conseguir
terras para promover assentamentos via desapropriações de latifúndios improdutivos de
forma ágil e menos onerosa aos recursos públicos. A pressão social por meio das
ocupações continua maior do que a capacidade de criação dos assentamentos rurais em
áreas improdutivas, apesar da ação do Estado. O lançamento de programas como Cédula
da Terra, que dá origem posteriormente ao Banco da Terra, são significativos para
entender o tipo de “reforma agrária” promovida pelo Estado. Estes programas têm como
objetivo criar um mercado de terras onde os latifúndios improdutivos tornam-se “ativos
financeiros de liquidez imediata”.
“Aqueles que defendem essa proposição [a desideologiazação da
reforma agrária] partem da premissa de que o instituto da
desapropriação, enquanto punitiva das grandes propriedades rurais
improdutivas, apresenta um cunho ideológico, que seria anulado
com a substituição por instrumentos de compra e venda da terra;
apresentando este como um gesto de racionalidade econômica (...)
procura ocultar o objetivo final do processo que evidentemente, não
é a reforma agrária, mas premiar o latifúndio, pagando-lhe a vista e
não em TDA [Títulos de dívida agrária].” (Guiducci Filho, 2001:
65)
Com isso, o governo dá seqüência a seu projeto de “reforma agrária” que não
modifica, na sua essência, a estrutura fundiária concentrada. Estaria por trás da ação do
Estado, através da regulamentação da questão agrária, a desmobilização dos
movimentos sociais?
As medidas seguintes estabelecidas com o Decreto 2.250/1997, que determina
que as vistorias não se iniciem enquanto a propriedade permanecer “invadida” e
sobretudo com a Portaria 62-27 de 2001, que impede a vistoria dos imóveis por dois
27
anos após a desocupação, dão seqüência à tentativa do Estado de neutralizar a ação dos
movimentos e acabar com os conflitos de terra.
“A interpretação do Governo, de que ao invadir propriedades rurais
o MST estaria, em grande medida, querendo conduzir o processo
de Reforma Agrária, o que na realidade caberia ao Estado, levou o
mesmo a implementar ações no sentido de conter as ocupações de
latifúndios improdutivos disseminados por todo o país.” (Guiducci
Filho, 2001: 68)
É neste contexto que procuraremos analisar os reflexos da ação do INCRA,
enquanto órgão executor do Estado. A responsabilidade do cumprimento do papel do
Estado definido por Lei, no que lhe cabe a Reforma Agrária, é transferida para
funcionários públicos. O Estado não é uma entidade invisível, portanto, é representado
pelos seus órgãos e sobretudo pelos seus funcionários. Nossa questão se centrará, então,
em delimitar os papéis na organização dos assentamentos que o Estado se predispõe a
cumprir e o direcionamento dado nas ações executadas pelos funcionários do INCRA,
responsáveis pelos assentamentos pesquisados, cuja ação influencia de forma direta na
história desses assentados.
A superintendência Regional do Distrito Federal e Entorno – SR 28, foi criada
em 1997 com o objetivo de amenizar os conflitos agrários resultantes das ocupações
crescentes na região. Sob sua jurisdição estão 20 municípios de Goiás, quatro do
Noroeste de Minas Gerais e o Distrito Federal. No ano de 2000 chegaram a um total de
100 assentamentos, distribuídos conforme a Tabela 2, em anexo. Entre eles estão os
Assentamentos Vereda I e Vereda II.
O papel do Estado, representado pelo INCRA, tem sido o de cumprir as
obrigações burocráticas, previstas na Legislação Agrária vigente10. Por um lado, há
indicativos de que o caráter da intervenção tem sido, tutorial e arbitrário. Um desses
indicativos é a falta de transparência e de comunicação entre os técnicos do INCRA e a
comunidade assentada, no que diz respeito aos cadastros dos trabalhadores. No processo
10
Constituída principalmente por: Lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra). Capítulo III do Título VII da
Constituição Federal. Lei Agrária no. 8629 de fevereiro de 1993. Lei Complementar no. 88 de dezembro
de 1996 (altera o Rito Sumário). Lei Complementar no. 93 de fevereiro de 1998 (Banco da Terra).
Decreto no. 2.250 de junho de 1997 e Portaria no. 62-27 de março de 2001 que proíbem a vistoria em
imóveis invadidos. (Guiducci Filho, 2001).
28
cadastramento aparecem manifestações de clientelismo e patronagem comuns no âmbito
de políticas locais brasileiras.
Neste contexto, destaca-se a terra como um bem que estabelece o vínculo entre
a Instituição do Estado e os assentados. A burocracia adotada para constituição e
consolidação dos assentamentos acaba sendo usada para justificar esse tipo de relação
personalista, centrado nas figuras de poder: “superintendente”, “empreendedor social” e
“presidente da associação”.
Por outro lado, o grupo de acampados se submete11 a esse tipo de relação para
que possam conseguir se estabelecer na terra, considerada por eles como doação.
Assim, todas as etapas do processo burocrático para constituição e consolidação do
assentamento são vistas, pelos assentados, como verdadeiras “provações” para a
“conquista” da terra. Diante disso, muitos assentados assumem o papel de vítima, de
ignorante, de impotente, legitimando o vínculo de dependência. Passam por situações de
desqualificação, de humilhação e de insegurança por não conhecerem as regras desse
processo12.
2.4. Dádiva e Cultura Política no Brasil
“A magia da dádiva não funciona a não ser que
as regras permaneçam não-formuladas. Assim
que são enunciadas, a carruagem volta a
transformar-se em abóbora, o rei fica nu e
dádiva vira equivalência”.
Godbout
A pesquisa tem como um dos fundamentos a teoria da dádiva desenvolvida por
Marcel Mauss (1974), reformulada por Godbout (1999) e analisada no contexto da
sociedade brasileira por Marcos Lanna (1995). O conceito pode nos dar a dimensão dos
valores que norteiam a ação dos assentados, é uma nova possibilidade de interpretação
pouco comum aplicada à análise da organização dos grupos sociais ligados a questão da
terra. Muitos estudos de origem marxista têm sido feitos, baseando-se na perspectiva de
11
Sujeição: será analisada dentro do contexto do campesinato brasileiro no capítulo 4.
Identidade de Zé-Ninguém: atribuição do senso comum a quem não tem direitos sociais por razões de
desqualificação pessoal. Ver também Reich: “Escuta Zé-Ninguém”.
12
29
luta de classes, de consciência política, de resistência às formas de exploração
capitalista. A análise do circuito da dádiva, proposta neste trabalho, se justifica diante
do contexto que muitos assentamentos têm sido criados, na ausência de conflito em que
não se constituem exclusivamente em formas de luta contra a ordem econômica
capitalista, não ousam propor uma política estrutural, se constituem antes em estratégias
de sobrevivência e tentativas de inserção social dentro desta mesma ordem.
A terra, neste sentido, pode ter o significado de dádiva concedida pelo Estado,
que assume a figura de pai provedor numa projeção do plano familiar para a ordem
social13.
2.4.1. A dádiva segundo Mauss.
No seu ensaio sobre a dádiva que se tornou clássico, Mauss (1974) analisa o
sistema de trocas entre subgrupos de sociedades primitivas e arcaicas da Polinésia,
Melanésia, Noroeste Americano e outras regiões. As trocas nestas sociedades não se
davam entre indivíduos, mas entre coletividades, clãs, tribos e famílias, pessoas morais
representadas geralmente pelos seus chefes. Não havia um mercado de bens e riquezas
somente, mas as trocas envolviam festas, cerimoniais, banquetes e também pessoas,
mulheres e crianças. A esse sistema de troca, onde o mercado não está isolado, mas
dentro da composição de toda a vida social, e onde os bens trocados são de toda ordem,
estabelecendo alianças entre duas tribos, chamou-se de Prestações Totais.
Mauss (1974) identifica que o sistema de troca de presentes, apesar de ter um
caráter aparentemente voluntário, tem por trás um sentido de obrigatoriedade. Vai
procurar descobrir no direito, na moral e na economia as regras que regem esta
obrigatoriedade, e o que contém nos presentes que determinem o dever de retribuí-los.
No exemplo de tribos norte-americanas as prestações totais assumem um caráter
agonístico, chamado de Potlatch. Consiste numa forma mais evoluída de prestações
totais em que há rivalidade entre os chefes que representam a coletividade. Há uma
disputa que passa pela destruição de riquezas, pela morte dos chefes no sentido de
manter a hierarquia e a aliança entre as tribos. Há uma espécie de competição que torna
30
as tribos rivais e ao mesmo tempo aliadas. A obrigação de retribuir, neste caso, está
ligado ao mana, que é uma espécie de talismã que confere autoridade e riqueza. Os
valores de honra e prestígio, elementos essenciais do potlatch, são também elementos
do mana.
Os taonga são objetos mágicos com poderes para destruir quem não observa a
obrigação da retribuição. Eles são a fonte de poder espiritual e mágico das pessoas, da
terra ou do clã. São a fonte de mana.
Mauss analisa um depoimento de um maori recolhido por Elston Best que diz:
ficar com um presente recebido em retribuição a um outro dado pode causar mal e até
mesmo a morte, se este me foi dado primeiro por uma outra pessoa. Isto significaria
ficar com algo que não me pertence. É preciso devolvê-lo a sua origem. Isto porque os
taonga possuem seu próprio espírito, o hau, que é o da floresta e dos animais de onde
vieram.
As tribos maori são divididas em agrícolas, pesqueiras e caçadoras, trocam estes
produtos através de um sistema de troca de presentes que passa pela distribuição e
redistribuição. Logo, o hau move as trocas na tentativa de voltar à sua origem: a pessoa,
ou o solo a que está ligado. Na interpretação de Mauss a obrigação da retribuição
começa a ser entendida através da compreensão da religião e do direito maori que
atribui espírito e magia às coisas, e a ligação deste espírito com o seu lugar de origem
tentando retornar a ele:
"(...) no presente recebido e trocado, cria uma obrigação, é o fato de que
a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo seu doador, ela
ainda é algo dele. Por meio dela, o doador tem ascendência sobre o
beneficiário, assim como o proprietário tem, por meio da coisa, uma
ascendência sobre o ladrão. Pois o taonga é animado pelo hau de sua
floresta, de seu território, de seu solo; é verdadeiramente "nativo": o hau
segue o seu detentor." (Mauss, 1974: 54)
Esta "perseguição" faz com que seu detentor procure retribuir os presentes com
algo equivalente ou superior, se livrando do mal que o hau poderia causar àquele que
impede seu retorno. Assim, Mauss afirma que este fato é chave para entender a
"circulação obrigatória de riquezas, tributos e dádivas" em Samoa e na Nova Zelândia.
13
Ordem Social e figura paterna: ver Faria (2001) Mais adiante discutiremos que a figura paterna
provetada no Estado como verificamos no Vereda II, se forma conflituosa nos dois assentamentos.
31
Há uma busca de ofertar "por meio de banquetes, festas e presentes, um valor
equivalente ou superior, que por sua vez, dará aos doadores autoridade e poder sobre o
primeiro doador, transformado em último donatário." (Mauss, 1974: 56)
Enfim, Mauss afirma que uma teoria geral da obrigação pode ser construída com
entendimento do vínculo gerado pela troca de coisas que não são inertes, mas que têm
alma. "(...) presentear alguma coisa a alguém é presentear alguma coisa de si". E
retribuir, é ofertar um equivalente que substitua a parte dada, já que aceitar algo consiste
numa "ascendência mágica e religiosa" de outro sobre si. (Mauss, 1974: 56)
O sistema de prestações totais da Polinésia inclui outras duas obrigações além da
retribuição: a de dar e de receber. Entender a forma de contrato estabelecida pelas tribos
passa pela compreensão destas três formas de obrigação.
Entre os maori não há a possibilidade de negar a hospitalidade, os alimentos, os
presentes ofertados. Há um conjunto de regras morais direcionadas ao dever de não
rejeitar a oferta. Isto é associado ao conjunto de crenças que permeia também os
alimentos. Da mesma forma, acontece com a obrigação de dar, de abrigar, de hospedar.
Por fim, Mauss afirma que:
"Em tudo isso, há uma série de direitos e deveres de consumir e de
retribuir, correspondendo a direitos e deveres de presentear e de receber.
Contudo, essa estreita mistura de direitos e de deveres simétricos e
contrários deixa de parecer contraditória se pensamos que, e antes de
tudo, há uma mistura de vínculos espirituais entre as coisas, que são em
certa medida, alma e os indivíduos e os grupos que se tratam em certa
medida como coisas" (Mauss, 1974: 59)
Neste sentido, neste regime social tudo é passível de troca. Sejam mulheres,
crianças, bens, como terra, talismã, móveis, instrumentos de trabalho, serviços, ofícios e
postos. Mas a troca consiste num "vai e vem" de uma “matéria que é espiritual”.
Portanto, Mauss dá ênfase no seu estudo para a visão mágica do mundo das sociedades
primitivas. A dádiva entendida desta forma ficaria restrita às sociedades primitivas e
anterior à constituição do mercado enquanto instituição moderna.
32
2.4.2. Os lugares da dádiva na Modernidade segundo Godbout
Jacques Gobout, num tom irônico começa o seu texto contextualizando a
posição do homem moderno frente à dádiva. Este nega tudo que não é concreto,
material, realista. Ser moderno significa perder toda a ilusão, reconhecer o mundo como
ele é, sua ação se baseia no mercado, nos interesses, no cálculo material, no poder.
Reconhece a violência, o sexo, não acredita que haja espaço na modernidade para afeto
e para a generosidade. Ilusões que o homem moderno só se permitiria nos espaços de
fantasia, como no cinema, bem sabe ele que elas não fazem parte do seu cotidiano. Ser
moderno significa perder a inocência, reconhecer um mundo cruel e pensar que ele é
assim mesmo.
“O homem moderno aceita que o acusem de muitas coisas, mas
certamente não de ser ingênuo. Ele pode até mesmo ser tudo, menos isso.
Ele sabe muito bem o que se esconde por trás de todos os belos e grandes
relatos de todos os países e de todos os tempos. O homem moderno é
realista. Sabe portanto o que se esconde por trás da dádiva. Tendo o triste
porém moderno privilégio de olhar a realidade de frente e de não se
deixar iludir pelas falsas aparências, sabe muito bem que o que o motiva
a produção e a troca de bens não é o altruísmo ou a generosidade, mas o
interesse material(...) Depois de Freud, Marx, Lévi-Strauss ou Bordieu –
pensa o homem moderno e culto – a inocência não é mais possível a não
ser com ironia”. (Godbout, 1999: 11-12)
O ato de negar a existência da dádiva no pensamento do homem comum
expressa e reforça a rejeição do estabelecimento de vínculos sociais na modernidade. É
a rejeição da obrigação de retribuição, da dependência que a dádiva traz em relação ao
outro. O homem moderno crer que é auto-suficiente ou deseja ser assim.
Godbout (1999), exemplifica de forma bastante simples e clara a questão quando
descreve a reação das pessoas ao apresentar-lhes a proposta do seu livro.
Espontaneamente, negava-se a existência da dádiva, apesar dela estar sempre presente,
através da sua descaracterização, sendo transformada em interesses egoístas. A dádiva é
identificada como coisa do passado, apesar da nostalgia quando se referiam a ela, as
pessoas no geral não reclamam da sua aparente ausência, porque não há espaço para ela
nos tempos atuais, ou não deveria haver, porque não há espaços para relações sociais
que descontruíriam fundamentos desta modernidade.
apenas como interesse e equivalência.
A dádiva é traduzida agora,
33
Por outro lado, a dádiva é apresentada como um tabu, um assunto proibido,
evitado pelas pessoas assim como o sexo e o dinheiro no passado. Nisto Godbout,
percebe o interesse dado ao oculto pelas ciências sociais, pois contém a “verdade
última”.
A dádiva não é nem meramente gratuita, nem utilitarista, seu objetivo é
estabelecer vínculos sociais, que não se dão sem que haja uma troca. A
descaracterização da dádiva pelo pensamento moderno segue estas duas vias, isto é,
considera-se que ela deveria ser gratuita, como não se percebe esta gratuidade, ela não
existe. Ou ainda, não há dádiva porque o que há é o interesse calculista de obter
vantagem e equivalência, os gestos não são totalmente desinteressados.
Por que o pensamento moderno nega a existência da dádiva? A dádiva é
traduzida como a “imagem invertida do interesse material egoísta”. Ela só poderia ser
verdadeira se fosse gratuita, como não há gratuidade ela não existe mais, o interesse
egoísta por trás das ações, o “tirar proveito”, desvirtua a dádiva. Isto consiste num
engano, segundo Godbout, porque a dádiva estabelece relações sociais e estas não
existem num sentido único, elas pressupõem a troca, o retorno:
“Mais ainda que o capital segundo Marx, a dádiva não é uma coisa, mas
uma relação social. Ela é mesmo a relação social por excelência, relação
mais temível do que seria desejável. A idéia de que a dádiva seria sempre
interessada e a idéia de que ela deveria ser sempre gratuita tem em
comum o fato de dar uma visão asséptica da dádiva, bem como de
impedir a compreensão de que ela é a tal ponto conjurada e negada pelos
modernos, é porque ela é perigosa.” (Godbout, 1999: 16)
Associada a dádiva há uma noção de veneno e de perigo, a palavra em língua
germânica contém este duplo sentido. Ela pode ser indesejável ou perigosa nas
seguintes situações:
a) Quando estabelece relações que não se deseja ter. Godbout exemplifica com o
caso da secretaria que recusa o presente do chefe, porque não quer se tornar próxima
dele.
b) Quando exige uma contradádiva pesada, não correspondente ao presente
recebido. É o caso do livro de má qualidade ofertado pelo autor aos amigos, que se
34
sentem mal em ter que reconhecer um valor não existente em função da relação de
amizade.
c) Por criar ou renovar laços que não se deseja mais. Um ex-marido nega um
agradecimento há um prato preparado pela sua ex-esposa, ele teme reatar os laços com
ela. Neste ponto Godbout discute o significado e o poder de expressão de palavras como
“obrigado”, “por favor” que deixam claro o sentido de dependência e de vínculo quando
se recebe algo, pois, “o presente é um bem a serviço dos vínculos sociais”
principalmente se o que se oferta tem algo próprio de quem oferece, se é confeccionado
por ela: “cristalizando algo de sua pessoa”. Dizer obrigado, neste caso significa
estabelecer o vínculo e a dependência. (Godbout, 1999: 17)
Porém, reconhecer a dádiva como meio para se estabelecer vínculos, e para
negá-los é simples demais, na visão do autor, é considerar “óbvio aquilo que é
problemático”. Há casos em que não há a “represália afetiva” como nestes acima e
mesmo assim a obrigação de retribuir é cumprida. Portanto, o problema está em
entender a recusa da dádiva, e suas formas na modernidade, como o recurso do
mercado, com a “contradádiva monetária imediata”. Pagar pelos favores feitos, ou
presentear com um objeto de valor monetário alto e impessoal são recursos quando não
se deseja estabelecer relações, o que poderia ser feito com algo de sem valor financeiro,
mas afetivo e pessoal.
“Diante dos riscos inerentes a qualquer dádiva, o dinheiro e o recurso a
uma lógica mercantilista são os antídotos – ao mesmo tempo
contradádivas e contra-venenos – por excelência”. (Godbout, 1999:18)
Godbout acredita ser possível completar a tarefa que Mauss teria deixado pelo
caminho, construir uma teoria alternativa ao utilitarismo centrada no que seria a “moral
eterna” nos termos de Mauss, aquela que estaria presente em qualquer tipo de
sociedade, determinando a ação dos homens. A dádiva seria esta moral, que perpassa o
tempo e sendo mais determinante que o mercado, estando também nele presente. A
hipótese de Godbout é que o pensamento utilitarista não permite pensar na dádiva
enquanto norteadora das ações dos homens porque procura explicá-la centrando-se
unicamente na motivação e interesse do recebimento. A hipótese que desenvolve é que
o “desejo de dar é tão importante na compreensão da ação humana quanto o de receber”
(Godbout, 1999:28).
35
Em síntese, o que Godbout propõe desenvolver é que a dádiva é um sistema,
assim como o mercado e o Estado. Está presente na modernidade quanto nas sociedades
primitivas. É relação social a priori. Compõe-se de dar, receber e retribuir desde
palavras a bens materiais. É troca. O pensamento sociológico e o senso comum negam
sua existência por analisa-la através da gratuidade associada ao pensamento religioso,
ao egoísmo do pensamento utilitarista e ao próprio desenvolvimento do mercado e do
Estado moderno burocrático que destrói a forma tradicional de sociedade. A dádiva se
constitui num sistema de relações entre pessoas. Não há como haver uma sociedade sem
dádiva, ela garante a sociabilidade.
“(...) a sedução da dádiva tem tanto ou mais poder do que a sedução do
ganho, e que é portanto tão essencial elucidar as suas regras quanto
conhecer as leis do mercado ou da burocracia para compreender a
sociedade moderna” . (Godbout, 1999:28)
Godbout propõe cumprir a tarefa de dar seqüência ao trabalho de Marcel Mauss,
analisando o tema a partir de onde ele teria parado: “às portas da modernidade”. Para
isto, ele adota a divisão dos lugares de sociabilidade em três esferas, ou nos três formas
de estabelecer vínculos: o Estado, o mercado e o grupo doméstico. Identifica neste
último o lugar “natural da dádiva”,
aquele que “mais se aproxima da dádiva
tradicional” como já descrita por outros autores. A pergunta que procura responder é: “o
que acontece com a dádiva nas outras esferas?” É possível que esteja presente, e de que
forma?
Para responder esta pergunta o autor adota a perspectiva de compreensão da
dádiva não a partir do que circula, o que segundo ele é o equívoco do pensamento
utilitarista que não permite enxergar a dádiva na modernidade, mas a partir dos vínculos
por onde as coisas circulam.
As características dos vínculos estabelecidos na esfera do mercado seriam
baseados no principio do exit, o desligamento livre do vínculo quando a insatisfação de
um dos lados (um consumidor não retorna a uma loja se não ficou satisfeito). Enquanto
o Estado é o lugar próprio de debate a esfera familiar é regida pelo princípio da
lealdade. Ele encontra na esfera doméstica a dádiva como reciprocidade. O mercado e o
Estado têm formas próprias de dádiva, em primeiro momento eles surgem e procuram
quebrar o mundo tradicional e conseqüentemente o sistema de dádiva, mas por outro
estão relacionados a ela. Godbout adota estes conceitos de Albert Hisrchman.
36
O mercado introduz os vínculos baseados nas trocas equivalentes, no cálculo
racional, incompatível com o princípio da gratuidade da dádiva. Porém, Godbout vai
identificar o mercado de arte desconstruindo a versão de mercadoria. O objeto de arte
não deixa de estabelecer vínculo, e não institui o anonimato do produtor como acontece
com outras mercadorias.
A dádiva no Estado assumiria a forma da reciprocidade. O Estado de bem-estar
social é compreendido como o substituto da dádiva. Os homens estariam então liberados
dos vínculos na modernidade, e o papel de prestação de serviços sociais é assumido pelo
Estado.
Godbout considera como a expressão própria da dádiva na modernidade, “a
dádiva entre estranhos”. Ao contrário de Mauss, que se quer reconhece a dádiva nas
dimensões que seriam comuns entre a modernidade e a sociedade primitiva, ele chega a
afirmar ela está tão presente nos tempos atuais que assume uma forma própria: a dádiva
entre estranhos que se configura nos grupos de ajuda mútua e dos organismos
voluntários, cuja importância é tanta, que é possível traçar um paralelo com o mercado,
o Estado, e com os grupos primários (parentesco, família, vizinhança e amigos).
Quando Mauss descreve o sistema de dádiva na sociedade primitiva, ele o
descreve como o único sistema que teria reunido em si todas as dimensões da vida
social: a economia, a religião, a organização política e social das tribos. Talvez pelo fato
de encontrar a dádiva numa sociedade cuja organização seja tão distinta da organização
moderna ele tenha ignorado a possibilidade de continuidade do sistema de dádiva
devido à fragmentação da vida moderna e separação em suas dimensões econômicas,
políticas, da socialização dos grupos primários e, principalmente, da perda da dimensão
mágica da vida. Como seria possível num mundo secularizado, destituído do “mana” (o
espírito das coisas) que move e obriga as ações de dar, receber e retribuir, que a dádiva
ainda persista?
É isso que Godbout procura discutir. Ele
localiza a dádiva na
modernidade na forma como foi descrita por Mauss: nos grupos primários onde, apesar
da magia não ter a mesma importância como na vida primitiva, ela está presente nos
objetos dados, ainda tem o poder de estabelecer vínculos entre pessoas próximas. Mas
ele vai além, identificou um sistema de dádiva que assume formas próprias, novas, a
partir de valores que são propriamente modernos. Ele revela que no voluntarismo e nos
37
grupos de ajuda mútua há uma articulação entre modernidade e tradição, expresso nos
valores de liberdade ou de gratuidade e de vínculo.
A dádiva entre desconhecidos, como nos grupos de ajuda mútua, tem em si a
própria dimensão da modernidade, a quebra da hierarquia entre os indivíduos, da
tradição, por outro lado, revela que há outros valores, que o homem moderno não é tão
moderno assim, como se houvesse na modernidade uma espécie de contradição, de
negação dela mesma.
A dádiva entre estranhos constitui-se numa quarta esfera de sistema de
circulação de coisas. Segundo Polanyi eles seriam três: o mercado, a redistribuição (o
Estado), a reciprocidade (esfera doméstica). Godbout acrescenta a elas o sistema de
dádiva, próprio da modernidade: que se constitui por uma diversidade de organismos
comunitários, grupos que se associam livremente para prestar serviços, entre aqueles
executados pelo Estado e pelos grupos primários. Seriam as igrejas, os sindicatos e
diferentes associações não totalmente autônomas podendo ter ligações com o Estado e
com o mercado e ser por eles, financiados. Porém, distinguem-se deles por ter a dádiva
“no centro do sistema de circulação das coisas e serviços” (Godbout, 1999:81).
Esses organismos têm o caráter de dádiva por serem criados livremente, sem que
haja uma obrigação, e por definirem suas próprias regras internas e as áreas de atuação.
Distanciam da dádiva quando o grupo torna-se uma instituição, aproximando-se do
Estado ou do mercado. Na história de uma organização ela pode assumir diversas
formas, passando do caráter beneficente ao mercantil ou Estatal. Isto se dá quando se
especializam, profissionalizam-se e os membros envolvidos que realizam o trabalho, são
remunerados, perde-se então o caráter do voluntarismo que lhes são próprios. Parece ser
difícil distinguir essa mudança pois há cargos administrativos que não necessariamente
modificam o caráter da organização quando emprega pessoas, ou ainda quando o salário
não é um fim em si mesmo.
Godbout adota o seguinte critério para definir as organizações que tem em si o
caráter de dádiva: o trabalho não remunerado e o caráter aberto. Estas organizações
podem ser agrupadas em duas categorias: organizações beneficentes ou organismos
voluntários e os grupos de ajuda mútua. No primeiro caso, os serviços prestados são
livres, gratuitos, voluntários sem que haja reciprocidade. No segundo, as ações são
38
baseadas na reciprocidade, estabelecendo a cadeia da dádiva de receber e retribuir e
havendo uma responsabilidade de transmitir o que se recebe.
A diferença e importância desses organismos em relação ao Estado está no fato
dos serviços prestados serem feitos pelos membros e não por pessoas remuneradas para
tal. O que estabelece uma pessoalidade das relações apesar das pessoas serem
desconhecidas.
O tratamento dado à dádiva por outros estudos tem sugerido sempre a questão da
obrigação da retribuição, “donde se conclui que a essência da dádiva não é ser uma
dádiva” (Godbout, 1999:113). Os seguintes argumentos são apresentados para
desconstruir a idéia de dádiva enquanto retribuição unicamente:
O retorno existe, mas ele não é semelhante ao do mercado, equivalente e
simétrico. Nem sempre esta presente, como acontece com a dádiva unilateral, nãorecíproca nos casos de beneficência. O retorno pode ser maior que a dádiva, quando se
busca um certo desequilíbrio da relação. Ele está presente mesmo sem ser desejado. Não
é reduzida a dimensão material, é o reconhecimento da ação realizada, não se reduz
como comumente descrito a esfera mercantil.
A retribuição está no próprio ato de dar: “Existe um imediato retorno de
energia para aquele que dá; ele se engrandece” (Godbout, 1999:115). Ela é “energia”,
tem em si algo de “espetacular” com poder de transformação em quem doa e em quem
recebe, efeito sem paralelo na modernidade, que só podem ser comparados aos ritos,
como o de iniciação nas sociedades primitivas. Portanto, “(...) a reciprocidade dos
objetos não é central à dádiva (...).” O primeiro momento, a doação contém em si a
retribuição e o recebimento, eles se misturam. Logo, nem a reciprocidade nem a
obrigação traduzem o espírito da dádiva, mas sim a liberdade, a ausência de cálculo
quantitativo e temporal do que se doa. Ela desafia a racionalidade moderna, por ser um
meio que, de repente, torna-se um fim em si mesmo.
Godbout lança a idéia de que a dádiva tem algo que desafia o espírito moderno.
O paradoxo de Dale Carnegie que inicialmente estava ligado ao mercado somente,
parece está presente em todas as esferas da dádiva: não se dá para receber, mas através
de um gesto sincero e espontâneo se perde para ganhar. Assim, toda os fundamentos da
ação humana desenvolvidos na teoria da racionalidade instrumental caem por terra. A
relação fim-meios se inverte:
39
“Como é que se pode ao mesmo tempo querer um fim (receber) e usar
normalmente de um meio para atingir o fim (dar), e ao mesmo tempo não
considerar que se trata de um meio, sendo esta a condição para alcançar
o fim!” (Godbout, 1999:119).
A dádiva segue outra lógica, não significando porém, que ela seja irracional. O
conteúdo da dádiva que a racionalidade moderna não percebe, ou distorce é o que o
autor se propõe a tratar.
A questão gira em torno do paradoxo que estabelece as relações sociais que
permitem aos homens viverem juntos e formarem comunidades. Ele retoma Aristótoles
que tratou sob o termo “amizade” o que Godbout trata como dádiva: a relação entre os
homens, o prazer de viverem juntos, que para ser assim, deve ser espontâneo e livre. O
paradoxo então é o de como conciliar a espontaneidade com a necessidade de se
estabelecer relações, como mantê-las espontâneas?
“O paradoxo que preside à constituição da relação social (...): como fazer
para produzir espontaneidade?” (Godbout, 1999:123).
A dádiva tem em si o caráter coercitivo dos rituais das sociedades primitivas?
Como conciliar espontaneidade, liberdade e vínculos? Interesse e desinteresse na
constituição do bem-comum? A tarefa de qualquer organização política é a de
proporcionar aos homens viverem juntos, e dessa forma, a de administrar o paradoxo.
As sociedades primitivas e tradicionais foram descritas como transformando a
espontaneidade em obrigação, através dos ritos, das proibições, do cerceamento da
espontaneidade dos vínculos. Os homens eram obrigados a viver juntos. Godbout, vê
esta perspectiva como tendo o seu grau de verdade e equívoco.
Os rituais são coercitivos, porém, a obrigação principal é ofertar, eles não
prevêem tudo. As normas são criadas internamente. Por um lado, as pessoas participam
desta construção ou reproduzem aquelas dos seus ancestrais, por outro lado há
interiorização intensa destas normas, o que acaba por caracterizar uma certa
externalidade no plano individual.
Ele vai, portanto, procurar fazer uma análise dos relatos etnológicos da dádiva,
criticando o fato de traduzirem a dádiva na perspectiva de obrigação, como se de fato
ela nunca tivesse existido.
Godbout (1999) retoma a comumente citada afirmação de Mauss sobre a
obrigatoriedade das trocas apesar do seu caráter aparente voluntário. Segundo ele, essa
proposição de Mauss acerca da dádiva pode ser generalizada a muitas outras sociedades
40
tradicionais e primitivas, senão a todas; da mesma forma também pode ser estendida a
todas as coisas, tudo circula na esfera da dádiva não só bens materiais, mas ritos,
cerimoniais, pessoas, dentre outros: “Eis que a dádiva constitui o „fenômeno social
total‟ por excelência” (Godbout, 1999:125).
Ele retomará aqui os dois exemplos de sistemas de dádiva analisado por Mauss:
o potlach e o Kula. Potlach: Sistema de dádiva de índios norte-americanos, cuja
organização da vida social é dividida em dois ciclos do ano, verão e inverno. Verão é
período de produção, inverno de “vida social intensa”, quando se reúnem em festas,
cerimônias, e realizam o potlach. Sistema de troca onde há disputa entre os chefes da
tribo, cuja regra consiste em oferecer mais e melhor do se recebe, isto garante status
político e determina a hierarquia entre as tribos. As principais moedas do potlach seriam
cobres e mantas luxuosas. Tem um caráter esbanjador, os chefes para obter maior
prestígio chegam a destruir suas riquezas, o que traz o significado de fartura, é uma
demonstração de poder frente aos outros que não podem fazer o mesmo. Noções de
crédito e honra são centrais neste sistema, e estão presentes de forma exagerada. A
busca deles é que provoca a destruição de riquezas, eles regem o sistema, conduzem a
contrair dívidas que aqui tem o sentido de poder restituir mais num tempo posterior,
quanto mais tempo maior a restituição.
“Não se retribui imediatamente, e sim mais tarde e em quantidade maior.
E quanto mais tarde melhor, já que essa demora implica o crescimento
proporcional da dívida. Retribuir imediatamente equivaleria a recusar a
dádiva, reduzindo prestações e contra-prestações a uma simples permuta
ou troca. A um escambo. Ora, se este último não é ignorado nos
interstícios da troca cerimonial, também não deixa de ser malvisto e
limitado a prestações descontínuas que não interfiram com a troca mais
nobre.” (Godbout, 1999:127)
2.4.3. O papel do Estado no circuito da dádiva
Uma tese muito presente acerca do papel do Estado frente a dádiva afirma que
ele é o seu substituto na modernidade por promover a distribuição de bens e serviços
que eram antes realizados na esfera dos grupos primários (família, parentesco e no ciclo
41
de amizades). No Estado de bem-estar social, os impostos cumpririam a função de
dádiva, substituindo as formas de caridade. Neste sentido, o Estado em oposição ao
mercado, pode ser entendido como um promotor da dádiva, seu substituto moderno:
“O desenvolvimento do Estado previdenciário foi visto muitas
vezes como um feliz substituto da dádiva, substituto que reduz as
injustiças sociais e devolve a dignidade, por oposição aos sistemas
anteriores de redistribuição baseados na caridade.” (Godbout, 1999:
65)
O Estado estaria localizado nesta perspectiva acima das redes de sociabilidade
primária e sendo mais “justo” que as redes privadas. Godbout (1999), porém,
desenvolve o argumento de que o Estado ao invés de promover a solidariedade e a
dádiva, ele a quebra.
O Estado se constitui em outro sistema, diferente do sistema de dádiva e do
mercado. Godbout critica a posição de Titmuss e de Mauss que vêem no Estado uma
forma superior de dádiva que passa a circular entre estranhos,
promovendo
solidariedade e altruísmo. Para o autor, a presença do Estado previdenciário assumindo
a responsabilidade sobre serviços antes executados pelas pessoas, em função dos seus
vínculos, promove a quebra do sistema de dádiva. Isto porque o Estado transformaria,
na verdade, a dádiva em imposto e em direito. O caráter espontâneo e os vínculos
desaparecem. As relações passam a ser estabelecidas entre estranhos :
“A difusão da relação entre estranhos a partir do Estado pode
facilmente produzir efeitos perversos se ela não acompanhar as
redes sociais e não estiver “em sitonia” com elas. É o que nos
ensinou a crise do Estado previdenciário; a solidariedade do
governo tem limites que se explicam pelo fato de que o Estado
instaura um tipo diferente de circulação, caracterizado pela
hipertrofia do intermediário; estando fora do sistema de dádiva, ele
tende a desenvolver seu próprio sistema, seus próprios valores”
(Godbout, 1999: 76).
A dádiva que estabelecia vínculos entre pessoas, entre desiguais passa através do
Estado a ser estabelecida entre indivíduos iguais e ser entendida como direito de
cidadania.
“A gênese do Estado moderno consistiu em passar „da dádiva ao
imposto‟ repetindo a frase de Alain Guéry (1983). Mas uma dádiva
„imposta‟ não é uma dádiva. E o Estado previdenciário prolongou
essa tendência ao substituir o sistema de dádiva (doações de
caridade ou doações pessoais) pela seguridade social, passando de
42
um sistema de dádiva para um sistema de direitos”. (Godbout,
1999:75)
Godbout faz a ressalva de que nos Estados democráticos o imposto é “em parte
livremente consentido”, porque as pessoas são representadas antes de pagarem seus
impostos, mas de qualquer forma é uma obrigação, uma imposição, um dever para com
o Estado, é diferente da gratuidade da dádiva.
“O Estado tem horror à diferença, fonte potencial de desigualdades
e preferências subjetivas. A dádiva, ao contrário só vive disso:
afinidades, ligações privilegiadas, personalizadas, que não apenas
caracterizam por definição as relações pessoais, mas também são a
base dos organismos cujo princípio de funcionamento é a dádiva.”
(Godbout, 1999: 76)
A análise do Estado brasileiro na perspectiva do estudo de Lanna (1995) é
diferente da análise de Godbout. Para este autor, o Estado não estaria quebrando o
circuito da dádiva, mas reproduzindo-o através da valorização das relações pessoais
entre poderes locais e o poder do Estado.
Ele é apresentado na interpretação de Lanna (1995) não como uma instituição
constituída de agências, nem como um aparelho somente, mas tendo formas próprias
decorrentes de sua história. Não é produto do mercado e de uma razão funcional prática.
E neste sentido a tradição é o seu fundamento, sua base a ela foi somada a ordem
moderna, fundada no individualismo e nas trocas de mercado. Segundo o autor, no
Brasil, estariam convivendo as duas ordens, a do mercado impessoal, burocrática e a da
dádiva, pessoal e tradicional. Elas se complementariam tanto na esfera do Estado quanto
do mercado:
“Entre esses pólos, que marcam a vida comunitária e as relações dos
estados-nacionais capitalistas, há todo um universo de trocas
intermediárias que combinam de modo complexo e intrigante essas duas
modalidades de dádiva e suas respectivas lógicas. Tal é o caso dos elos
pessoais dentro e fora do estado brasileiro, elos que fazem pontes
insuspeitas e assustadoras entre a impessoalidade do estado, definido a
partir da racionalidade burguesa, e a pessoalidade do sistema social,
definido a partir dos laços de família.” (Lanna, 1995:11)
43
A proposta de interpretação da sociedade brasileira contida em Lanna (1995) não
é a do conflito, mas da complementaridade entre práticas modernas e tradicionais, “não
há uma guerra” . Nas palavras de DaMatta14
“o que temos é, de fato, um sistema híbrido, no qual formas e lógicas
antigas combinam-se com instituições modernas, formando um mapa
ideológico dos mais fascinantes e complexos. Nele o que salta aos olhos
não é a força do mercado e da política tal como são definidos por nós,
mas a resistência da cosmovisão tradicional, fundada nas relações sociais
e não no indivíduo, o que garante a produção e a reprodução do sistema
em todos os níveis”. (DaMatta apud Lanna, 1995: 10)
No seu estudo etnográfico do Nordeste brasileiro ele propõe que a sociedade
brasileira seja compreendida através do conceito de reciprocidade hierárquica em
contraposição a competição capitalista.
O autor encontra uma lógica redistributiva dentro da reciprocidade hierárquica.
E esta lógica se faz presente tanto nas relações sociais estabelecidas pelos “patrões” - os
fazendeiros, coronéis - e no próprio Estado que nada mais seria que uma continuidade
deste poder local. Portanto, não haveria choque entre estado e oligarquia porque seguem
a mesma lógica da sociedade hierárquica baseada na reciprocidade entre desiguais.
Numa sociedade hierárquica os chefes têm poderes transcendentes que lhes são dados
por uma ordem superior:
“Argumentarei que o estado brasileiro se constitui, em boa medida,
como continuação do poder local, tendo com este uma relação de “realimentação” mútua. Isto porque o chefe local, seja ele um coronel, um
fazendeiro, um padre ou um vereador, não é apenas „pessoa‟ no sentido
comum, de entidade privada, mas também um chefe primitivo ou um rei
divino, seus atos têm significado transcendental. (...) a separação entre
público e privado próprio da lógica capitalista européia e americana onde
„o público se define contra o privado‟ não cabem à realidade brasileira
que se define por meio da hierarquia e não por meio dos „aspectos
contratuais capitalistas‟ de Hobbes”. (Lanna, 1995: 19 - 20)
14
Roberto DaMatta faz o prefácio do livro “Divida Divina: Troca e patronagem no Nordeste Brasileiro”
de Marcos Lanna (1995). Neste livro ele estabelece que como a sociedade brasileira híbrida, portando
com dois pólos, onde de um lado estaria um lugar moderno. A idéia de modernidade numa perspectiva
histórica tem em si concepções políticas claras que no meio rural servirão a exclusão. Valores e cultura
construídas com base na terra enquanto lugar de morada, de modo de vida específico numa relação
estreita entre homem e natureza. A modernização da agricultura representou a concepção de terra como
negócio. E não mais como meio de vida. Concepções por trás da idéia de agricultura familiar. O outro
pólo a idéia de tradição, nela se agregam valores estes sim hierárquicos pois baseiam-se numa ordem
patriarcal e patrimonial em crise. Uma sociedade agrária que se abriu. A democracia enquanto luta social
dos movimentos sociais também se abre e pelo menos tem isto como princípio. A pedagogia de Paulo
Freire é usada hoje como pré-requisito nos programas de planejamento.
44
3. ASSENTAMENTO VEREDA II: uma pequena etnografia do
processo de constituição do assentamento
O município de Padre Bernardo15, onde os assentamentos estão localizados,
pertence a região de Luziânia, Estado de Goiás, Microrregião 012 - Entorno de Brasília.
Foi criado em 1963 e possui uma população, segundo o último recenseamento do IBGE
(2000), de 21.495 habitantes, espalhados por uma área total de 3.148,9 Km². A sede do
município fica a 90 km de Brasília. A atividade econômica principal é a agropecuária.
Ele abriga sete assentamentos totalizando 525 famílias, numa área que somada
corresponde a 15.846 ha, como pode ser visto na Tabela 1. Destes assentamentos,
quatro fizeram parte de uma mesma história de ocupação, a área original corresponde a
uma mesma fazenda que foi desmembrada por ocasião de transmissão por herança.
Água Quente, Boa Vista, Vereda I e Vereda II. Foram ocupados em seqüência dando
origem aos assentamentos e estabelecendo uma rede de parentesco entre os assentados.
Tabela 1: Assentamentos localizados no município de Padre Bernardo
Assentamentos
Número de
Área (ha)
Famí lias
Água Quente
55
2829,3
Boa Vista
145
4380,0
Colônia I
23
598,4
Colônia II
21
590,0
Vereda I
70
2063,7
Vereda II
150
3760,7
Jacinto Durães
61
1623,8
525
15.846,19
Total
Fonte: INCRA: Divisão de Suporte Operacional - DSO, 2000.
15
Veja a localização do município no Mapa 1, em anexo.
45
Tratar-se-á aqui de três fazendas Boa Vista, Serra Feia e Vereda, três
movimentos de ocupação seqüenciais cujas histórias estão intrinsecamente ligadas em
que as lideranças se alternam na organização do grupo em função de conflitos entre os
assentados e o INCRA.
No ano de 1998, a fazenda Boa Vista, localizada no município de Padre
Bernardo – GO, foi ocupada por cerca de 800 famílias procedentes das cidades satélites
da capital federal.
No entanto, a maioria delas é de origem nordestina e vieram para Brasília alguns
ainda jovens na busca de “ganhar a vida na cidade grande”, conforme constatou Oliveira
(2002). É, principalmente, a população de migrantes das cidades satélites, que fugindo
da violência, do desemprego e almejando conseguir terra, deslocam-se para áreas de
ocupação em Padre Bernardo.
A terra é um antigo sonho dessas famílias, camponesas de origem, apesar de
terem passado por um longo período no meio urbano. A notícia de ocupação de uma
área passível de reforma agrária, que chega pelo rádio, por um amigo ou por um
parente, renova o desejo de conquista de bem-estar que a cidade grande não permitiu
realizar.
O migrante não faz sua empreitada para um novo lugar sem que um parente ou
um amigo o auxilie (Oliveira 2000). As ocupações no município de Padre Bernardo dão
continuidade a esta estratégia. Essa pessoalidade é uma característica marcante nessa
“empreitada” de luta pela terra.
Como consta no relatório do PDA do Vereda I (Pereira et. al., 2001) a história de
ocupação da fazenda Serra Feia iniciou-se no ano de 1998, ocasião em que o grupo de
acampados estavam organizados pelo MST, sendo que alguns deles eram militantes do
movimento há mais tempo e outros ingressaram no grupo por ocasião da ocupação.
Num primeiro momento, organizaram-se em um grande grupo para entrar na
área que é hoje o assentamento “Boa Vista/Buritis”. Parte desse grupo foi assentado
nesta área e outra parte ficou como excedente. Por sua vez, os acampados excedentes se
organizaram para ocupar outra área, a fazenda Serra Feia 16. A data da primeira
16
O nome Serra Feia, segundo os assentados serviu para definir o grupo que para lá se dirigiu. A fazenda
foi ocupada por um grupo de assentados “corajosos” que percebendo a demora no processo de
desapropriação da Boa Vista, resolve ocupa-la. Corresponde a uma área de cerrado em regeneração, uma
“capoeira” na sua maior parte, “difícil para agricultura.”
46
ocupação foi no dia 11 de fevereiro de 1999. A pedido do INCRA, desocuparam a área
para ser feita a vistoria, momento em que ocorreram desentendimentos que provocaram
o rompimento deste grupo com as lideranças do MST. Os assentados relataram que
algumas lideranças do MST cobravam determinada taxa por família para serem
cadastradas no INCRA, o que as levaram a posicionar a favor do INCRA em momentos
decisivos, como relata um dos assentados:
“Seria pra nós uma aberração não sair quando o INCRA pediu para
sair para negociar com o fazendeiro e quando o MST pediu pra
ficar... temos que ficar junto com esses órgãos que vão legislar,
né?!” (Pereira at al, 2001a)
Retornaram, então, no dia 25 de julho de 1999, quando saiu a imissão de posse.
Por outro lado, o Assentamento Vereda II, conforme relata Pereira et. al. (2001),
ocupa uma área de 3.929 hectares, antiga Fazenda Vereda. Este assentamento foi
projetado, de acordo com o laudo de vistoria realizado pelo INCRA para 150 famílias
ou aproximadamente 900 pessoas. A maioria delas era excedente em outros
assentamentos da região, principalmente da antiga fazenda Boa Vista, “porque lá não
sobrou terra pra gente”.
A primeira ocupação da fazenda ocorreu em junho de 1999, ocasião em que as
famílias ficaram acampadas na área por 20 dias, até a polícia retirá-las do local. Na
época, eram aproximadamente 60 famílias acampadas. No dia seis de janeiro de 2000,
aproximadamente 90 famílias entraram novamente na fazenda e não saíram até a
imissão de posse, datada de 11 de fevereiro de 2000.
Estas famílias ficaram acampadas na entrada principal da fazenda, organizadas
por lideranças que não permitiram que elas plantassem. Apenas uma área comunitária
foi destinada para o plantio de hortaliças, mas não se obteve resultado, pois os
acampados não concordaram com a escolha da área pelas lideranças. Apenas algumas
lideranças plantaram uma área de milho. “(...) Não acabou dando certo porque o pessoal
não quis ajudar” (Assentado, Vereda II).
Em novembro de 2000, o INCRA questionou a falta de plantio por parte das
famílias, e estas alegaram que não haviam plantado ainda porque as lideranças não
permitiram. Isto fez com que algumas famílias mudassem do acampamento, dirigindose para o interior da fazenda onde começaram a plantar, com autorização do INCRA.
47
Em março de 2001, o superintendente do INCRA esteve no acampamento para
“expulsar as almas sebosas do lugar”, segundo o relato dos assentados esta expressão
foi usada por ele para se referir às lideranças. O superintendente havia dito ainda que
“para ganhar terra não era preciso ficar debaixo de barraca de lona”.
Várias pessoas deixaram o acampamento e voltaram para a cidade, ficando cerca
de 60 famílias acampadas na fazenda. Permaneceram no acampamento aquelas famílias
que não tinham outro lugar para estar, não possuíam residência, nem ocupação em
Brasília, eram chamadas de “permanentes”. Por outro lado, aquelas que tinham trabalho
na cidade garantiam sua vaga, desde que levassem gêneros alimentícios para os
acampados. Eram conhecidas como “doadores”.
Além de contribuir para que um número menor de famílias continuasse
acampado, esse episódio também provocou instabilidade na organização do grupo. Os
acampados ficaram desacreditados com novas lideranças, apesar de que, após a
expulsão acreditaram que “dias melhores viriam”. A disciplina rígida, imposta pelas
lideranças, previa proibições e castigos. A bebida alcoólica, por exemplo, era proibida
sob pena da pessoa apanhar ou ser expulsa do grupo se fosse reincidente.
Como pode-se observar, a vida no acampamento, tanto no Vereda I quanto no
Vereda II, é marcada pela demora no processo de desapropriação, pela falta de
informação, pelo ócio e pelo desânimo. As famílias acampadas em número muito além
da capacidade de serem assentadas sabem que muitas terão que se deslocar novamente.
A situação é provisória, vivem de doações e sob dependência de outros, em uma
concorrência pela terra, cujo controle está nas mãos das “lideranças” e dos técnicos do
INCRA.
As lideranças do MST que coordenaram as ocupações foram banidas por
denúncias de corrupção, de vendas de cadastro. Agiam de má fé com os assentados,
distorcendo informações, confundindo-os sobre o andamento dos processos de
desapropriação, o que acabou por valorizar a representação do MST como
“baderneiros”, na visão desses acampados.
Por outro lado, a política assistencialista de doação de lotes em Brasília,
promovida pelo governo Roriz, no início da década de 90, parece ter contribuído para a
reprodução desta concepção de doação da terra pelo Estado entre os assentados. Na
percepção dessas famílias os lotes eram dados pela pessoa do governador, apesar de se
48
tratar de financiamento e não de doação. Os assentados do Vereda I, segundo Oliveira
(2002), participaram das invasões no Plano Piloto que deram origem as remoções para
cidades satélites, local onde foi feita a divulgação dos acampamentos de Padre
Bernardo.
O número de famílias acampadas e a falta de critérios claros para definição de
quem será assentado permite manipulação das famílias por parte das lideranças e por
parte do Estado. As lideranças, por estarem em negociação com o INCRA, adquirem
poder sobre a comunidade. As pessoas são obrigadas a trabalhos sob ameaça de lhes
serem cortados os “pontos”. Pontos estes que, somados e comparados, definiriam os
beneficiários.
Os assentados reagem de forma diferente em cada situação. No Vereda I, eles
romperam com o MST antes que as lideranças fossem expulsas pelo movimento
nacional. Formaram-se no assentamento novas lideranças que se moviam pelo discurso
legal do Estado, mas que mantêm com isso a mesma estrutura vertical com a
comunidade e se beneficiam dos privilégios do cargo. Para ilustrar, o presidente da
associação do Vereda I era também o líder religioso e morava na única casa de
alvenaria, com água encanada e o único lugar que tem fonte de água potável, onde todas
as famílias precisam ir diariamente para obtê-la.
No assentamento Vereda II, ocupado e organizado pelo mesmo grupo do Vereda
I após o rompimento com o MST, as lideranças vão mais longe na constituição
autoritária das relações e no controle da área do assentamento. É o assentamento que
tem maior número de benfeitorias como casas, galpões, currais, represas e que tem
melhor fonte de recursos hídricos. Sobretudo possui áreas de pastagens e um mangueiral
de 29 hectares em fase de produção. As lideranças assumem a sede da fazenda,
arrendam os pastos e comercializam a produção de mangas. Proíbem os assentados de
plantarem em áreas que não eram por eles previamente definidas. E repetem com os
assentados a mesma cultura dos “pontos”.
Denúncias chegaram a polícia civil, inquérito policial foi montado e o INCRA,
na figura do superintendente e do empreendedor social17, iniciaram uma ação a que
chamaram de “pente-fino” e determinaram a retirada das “almas sebosas” do
17
O empreendedor social é o técnico do INCRA responsável pela interlocução entre o órgão e os
assentados. É aquele que vai aos assentamentos resolver problemas e executar ações.
49
assentamento. O assentamento Vereda II ficou conhecido na SR-28 como o
assentamento problema. Ninguém sabia ao certo o que se passava por lá, mas sabiam
que havia “confusão”. Os assentados se já eram concorrentes entre si, passaram a ser
ainda mais sobre a pressão de fazerem denúncias uns aos outros. Por fim, a liderança
que mantinha aparentemente boa relação com os assentados, fruto das trocas de favores,
foi expulsa do assentamento e acusada pela polícia civil de manter trabalho escravo.
Assume então um novo grupo “os excedentes” do assentamento Boa Vista, que
conseguem do superintendente a promessa de que seriam assentados ali.
Criaram, externamente a comunidade acampada, uma associação, que é
registrada em Cartório, Associação dos Trabalhadores Rurais do Vereda II – ASTRUV,
que passa a negociar com o INCRA e com a prefeitura de Padre Bernardo sem que os
acampados participem das negociações. E novamente o discurso burocrático é usado
para manipular a comunidade, que com medo do atraso das negociações legitima esta
associação. O presidente desta associação nos relatou que “reforma agrária não se faz só
com miseráveis”, é preciso que se entenda de “comercialização”.
A importância dada às assinaturas dos contratos18 pode ser agora melhor
compreendida, ela significa o fim da insegurança e do medo de perder a luta de dois a
três anos desde a ocupação. É o compromisso firmado entre Estado e assentado, é a
conquista finalmente de uma identidade que ainda não é de proprietário, mas não é mais
de sem-terra. Permite aos assentados sentirem-se mais independentes uns dos outros
para se dedicar à formação de suas chácaras 19 e a execução de seus trabalhos. Porém, ao
contrário do que imaginam, estão ainda atrelados à associação, pois o INCRA destina os
créditos20 e negocia com os assentados via esse tipo de organização formal.
Portanto, nesse contexto, sob o disfarce de um processo democrático de
construção de participação e autonomia, emerge uma estrutura paternalista,
clientelística, em que prevalece a troca de favores, dando brechas para corrupção e
reproduzindo opressão e violência. Os assentados, por sua vez, não estão totalmente
18
Contratos feitos entre o INCRA e o “candidato” a terra, que passa a ser “beneficiário” e a ter a posse
legal da parcela.
19
Chácara é a denominação usada pelos assentados do Vereda I e Vereda II para se referir aos seus lotes.
20
Créditos: Implantação que consiste em fomento destinado a compra de ferramentas, alimentação, e
habitação. Valor total de R$ 3900,00 por beneficiário. PRONAF investimento e custeio: R$ 9500,00 por
beneficiário.
50
passivos diante das lideranças, pois delegam poder a ela e “aceitam” serem por ela
“conduzidos”.
As metáforas usadas pelos assentados para descrever a figura de quem detém o
poder de decisão sobre suas vidas no assentamento são bastante ilustrativas para
descrever a natureza da relação estabelecida. Estado, mediadores e lideranças atuam
fornecendo “ajuda”, são como “pais” e “mães”, que diante dos seus “filhos” devem
fornecer proteção, segurança, serem seus provedores, como aparece nas palavras dos
assentados:
“[O INCRA] é como se fosse um pai de família que precisa ajudar os
filhos. Nós não teríamos condições de comprar a terra sem o INCRA.
Nós sem ele não somos ninguém; se o INCRA não ajudar nós não faz
nada aqui dentro”. (Pereira et al, 2001a: 15)
“(...) o INCRA colocou nós aqui, se não fosse o INCRA nós não
estaríamos aqui.” (Pereira et al, 2001b: 17)
A equipe de planejamento do PDA verificou que:
“Pode-se observar que as decisões da associação são centralizadas no
presidente,
resultado
das relações
hierárquicas existentes no
assentamento. O presidente da associação exerce representação do tipo
tutorial, o que tem provocado expectativas clientelísticas na maioria
dos assentados.” (Pereira et al, 2001a: 20)
O Estado de bem-estar social recebeu críticas liberais por está ligado ao papel da
figura paterna como provedor. O efeito disto é que, se na esfera familiar a autoridade
paterna se sustenta no papel de provedor, a partir dos vínculos que possui fora-de-casa;
mas principalmente na tutela dos membros da família tido como “carentes e incapazes
de autonomia” o Estado neste sentido exercendo o papel de provedor seria capaz de
“infatilizar os cidadãos perpetuando dependência” (Faria, 2001: 78).
Além do mais a figura paterna tem em si o papel de ser coercitivo e no
assentamento chega assentamento armado para separar “o joio do trigo”, quebrando as
relações e a dinâmica interna de organização.
51
O cenário é contraditório, num contexto de reforma agrária onde os movimentos
sociais organizados procuram estabelecer espaços de conquistas de direitos, construção
de cidadania e participação. O que salta aos olhos nos fatos relatados acima são as
pessoas serem manipuladas, submissas, por outro lado são coniventes com a situação
de exploração e corrupção que os envolve em função de créditos escassos, influências
políticas, verbas públicas. Os assentamentos de reforma agrária ao invés de espaço para
o desenvolvimento de cidadania, estão reproduzindo relações de exploração e de
clientelismo? A busca por autonomia e independência está presente nesse contexto?
Qual será o resultado destes assentamentos rurais, orientados por este tipo de relação?
3.1 A dádiva verdadeira entre os assentados, a importância do grupo doméstico.
A terra, no relato dos assentados tem um significado de patrimônio, faz parte do
projeto familiar, reunido durante a vida para ser deixado aos filhos em herança. As
relações familiares são muito fortes na inserção dos assentados no mundo. Os
indivíduos orientam suas vidas em função dos desejos do grupo doméstico. Suas
atividades no assentamento são definidas pela divisão do trabalho familiar.
Mantém uma dimensão simbólica da natureza entendendo-a não como objeto
que deve ser alterada com tecnologia, dominada em função da produção e do alcance do
lucro.
A questão principal dos assentamentos rurais não parece ser a de produção, os
assentados não orientam suas ações exclusivamente por questões econômicas e
produtivas.
As técnicas de produção são rústicas como a roça de toco, onde a falta de capital e de
tecnologia, direciona para uma agricultura tradicional. A organização do trabalho
familiar, a lógica de trabalho em função do número de membros e a orientação em
função da reprodução familiar permite pensar que estamos tratando de camponeses. No
sentido que compõem um grupo de trabalhadores com identidade cultural própria e que
novamente se encontra no seu universo depois de tentar inserir no mundo capitalista,
urbano. E é neste sentido que o assentamento pode se constituir num conflito.
Por um lado, cobram seus direitos de cidadania. Por outro, lutam para garantir a
autonomia na forma própria do campesinato. Tendo portanto, especificidades cujo
52
significado torna-se diferente do entendimento de autonomia que não passa por
participação política.
O indivíduo não está só no mundo, apesar de ter vivido na capital do país onde
impera a impessoalidade. A vida nas cidades satélites está carregada de elementos da
sociabilidade primária: os grupos de amigos, de vizinhos e os parentes. Eles que
conseguem empregos uns para os outros, colaboram entre si nas adversidades, acolhemse mutuamente dando abrigo e hospitalidade. Quando esses laços se rompem quando
não conseguem apoio da família, estão sós diante do mundo capitalista nas leis do
mercado, sob o medo da violência urbana, se encontram perdidos e sem lugar. Para
muitos o assentamento foi a possibilidade de encontrar este novo lugar e espaço de
sociabilidade. São os vínculos de amizade que encorajam as pessoas para a vida difícil
do acampamento e ajudam a suportar as dificuldades em função do objetivo de
concretizar o projeto familiar que garanta a reprodução da família.
A prestação de serviço como o trabalho na roça, o cuidado dos animais é
freqüente entre os assentados, quando por motivo de doença de ter que sair para a
cidade for preciso. Assim como acontece quando o motivo desta saída é movida pelo
interesse de todo grupo, quando se trata da saída do representante para negociar ou
pressionar o INCRA. Porém, quando a associação deixar de cumprir a sua tarefa em
retribuição e quando o trabalho não é mais espontâneo, mas quando se torna obrigação
em função do regime de pontuação, para seleção dos assentados ele deixa de ser dádiva.
É denunciado ao INCRA e caracterizado como crime contra os direitos humanos.
3.2 A dádiva perversa: O conflito entre assentados e o INCRA na criação de uma
rede de intermediação como negócio.
Os limites entre a dádiva perversa veneno, que cria vínculos de dependência, e
dádiva verdadeira são estreitos nas relações com a hierarquia: seja na hierarquia
estabelecida no acampamento com as lideranças do MST, seja com as lideranças do
assentamento após o rompimento com o MST.
Isto é, a dádiva perversa pode ser caracterizada pelo trabalho a ser feito em
respeito a autoridade de negociador que consiste em prestar um serviço a comunidade, e
é dessa forma entendida pelos diretores das associações dos dois assentamentos. Porém,
a relação de dádiva passa a ser considerada “veneno” quanto ela é distorcida e passa a
53
caracterizar-se por “prisão” e dependência. E quando não há retribuição por parte das
lideranças, na confiança dada, quando rompem o pacto criado para negociar com a
burocracia do Estado, negando informação, criando privilégios.
O exemplo deste fato é o pacto de silêncio criado internamente para esconder a
distribuição desigual das parcelas que foram primeiramente escolhidas e depois
sorteadas segundo a hierarquia do grupo cujo ápice está localizado no presidente da
associação. Isto é um exemplo da reciprocidade hierárquica. Eles estabelecem
estratégias de proteção de suas formas desiguais e hierárquica de relações: Isto não se dá
sem conflito. Não é harmônico o Estado intervém, e os próprios assentados assim que
tomam consciência de que não é preciso estabelecer relações hierárquica que a proposta
do Estado e dos mediadores vai no sentido de criarem autonomia é que assumem
responsabilidades de intervenção e participação na associação.
Porém, se quebram as estruturas internas de relações tradicionais hierárquicas
não há a quebra dos vínculos baseados na dádiva. Considerando o Estado como pai
provedor os assentados estabelecem com ele então a relação de dádiva da ordem
familiar projetada no Estado.
E se há a quebra da organização interna tradicional via intervenção do Estado, de
forma clientelística como ficou constado nos relatórios do Plano de Desenvolvimento –
PDA. A dádiva passa a ser perversa porque cria possibilidades de corrupção se a
associação não age de forma idônea. Se não respeita os limites da dádiva e torna-a
obrigação: o trabalho escravo. Dessa forma, a atuação do INCRA, se aproxima do que
Lanna descreve com os “chefes locais” no Nordeste. No caso do Vereda II, aproxima-se
também do que Bezerra (1995) descreve como clientelismo como negócio, a
intermediação que se instala justificada pela burocracia que “cria dificuldades para
vender facilidades”, surgem empresas de intermediação que fazem a ligação na
captação de recursos entre o governo federal e os municípios.
Os assentamentos são criados pela rede de intermediação de “baixo escalão”,
isto é entre técnicos do INCRA como representantes administrativos do governo e os
representantes dos assentados, via associação. Forma-se assim, um negócio em torno da
constituição dos assentamentos rurais. Para atender as metas estabelecidas pelo
Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA e a demanda por terra da periferia de
Brasília.
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O relatório do PDA Vereda II coloca que a viabilidade deste assentamento é
dependente de fatores de organização social, limitada, portanto, pela rede de
intermediação clientelística que se formou em torno das verbas públicas, os créditos
rurais que como se sabe, por outras experiências relatadas pelos assentados, a
associação que o INCRA exige e indica sua diretoria, sem entrar no mérito de porque
indica, foi corrupta ao administrar os créditos em outro assentamento. Neste sentido, os
associados temem a constituição de um “novo cativeiro da terra”. A discussão de uma
possibilidade cooperativa de gestão trás, visivelmente, a fragilidade da organização
interna quanto ao estabelecimento de formas legítimas de cooperação, tendo em vista, a
história de arbitrariedade e autoridade em que se fundamentam as práticas das diretorias
das associações que se reproduziram no Vereda II.
Por outro lado, a política de Estado no governo FHC tratou a Reforma Agrária,
na prática, como assentamento rural e estabeleceu metas quantitativas ao INCRA para
serem cumpridas em curto prazo. Assentamentos foram criados como indica o caso
Vereda II, bastante diferentes portanto, das experiências dos assentamentos históricos
dos anos 80. No lugar de ocupações baseadas numa forte organização social contando
com mediação da Comissão Pastoral da Terra, e baseada na ação de sindicatos e
movimentos sociais de luta pela Reforma Agrária, temos um processo de constituição
de assentamentos norteado pela luta por sobrevivência imediata, baseada na competição
e seleção dos candidatos e tendo como único mediador, o próprio INCRA.
O processo de constituição dos assentamentos rurais aqui, brevemente,
caracterizados podem ser compreendidos como desencadeadores de emancipação e
autonomia como são comumente caracterizados os novos agricultores familiares nos
termos do Estado e dos mediadores que tratam da questão agrária no Brasil?
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A primeira consideração é que os assentados na relação com o Estado e com as
lideranças estão travando uma batalha contraditória, que vai além da perspectiva de
troca pura e simples.
Ao legitimarem a associação ASTRUV, os assentados instituíram a rede de
intermediação, como negócio. Alguns relataram que por medo de perseguição, votaram
na associação. O controle de informações e as relações pessoais que a diretoria diz ter
com técnicos do INCRA e com a prefeitura de Padre Bernardo é um atrativo que seduz
os assentados ao se associarem e desistirem de construir por si próprios a história de
uma associação legítima e representativa.
Reforma agrária, terra de dádiva se institui no caso do Vereda II. O ideal de
conquista da terra fica marcado pelas concessões feitas durante o processo. Fatores que
reproduzem os problemas vividos na cidade. Continuam sendo “zés-ninguém”, diante
da passividade que lhes cabem no processo de construção dos assentamentos decorrente
da tutela do Estado. Dependem de decisões de outros nas quais o seu papel é o de
manter a conduta coerente de “canditado”, aquele que deve se subjugar para ser “um
dos escolhidos”, reproduzindo a cultura do silêncio.
A reprodução da lógica de produção campesina fica ameaça pela limitação do
tamanho da área destinada a cada parcela. Autonomia política não se configura numa
associação que parte das suas diferenças de poder, baseadas no controle de informações,
para exercer suas funções. Os assentados ficam cativos, por meio da dívida da terra e
dos créditos rurais, e dependentes na destinação dos recursos e administração das áreas
coletivas à associação.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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6. ANEXOS.
Tabela 2: Municípios e número de assentamentos sob jurisdição da SR-28.
Municípios de Goiás*
Água Fria de Goiás
Alto Paraíso de Goiás
Cabeceiras
Cavalcante
Cidade Ocidental
Cristalina
Colinas do Sul
Divinópolis de Goiás
Flores de Goiás
Formosa
Guarani de Goiás
Luziânia
Mambai
Monte Alegre de Goiás
Nova Roma
Padre Bernardo
Planaltina
São Domingos
São João D´Aliança
Total de Goiás
Municípios de Minas Gerais*
Arinos
Buritis
Formoso
Unaí
Total de Minas Gerais
Distrito Federal*
Total Geral
Número de
Assentamentos
3
1
1
1
1
3
1
1
7
8
2
2
5
1
1
7
2
2
6
55
Número de
Assentamentos
12
10
1
19
42
3
100
(%) por estado
5,45
1,82
1,82
1,82
1,82
5,45
1,82
1,82
12,73
14,55
3,64
3,64
9,09
1,82
1,82
12,73
3,64
3,64
10,91
100
Percentual por
estado
28,57
23,81
2,38
45,24
100
100
-
Fonte: SR(28) novembro de 2000. * Sob jurisdição da Superintendência do Entorno e
Distrito Federal SR(28).
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Mapa 1: Localização do município de Padre Bernardo no Entorno de Brasília.
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Luciana Maria Monteiro Ribeiro