REFLEXÕES INFINDÁVEIS E REPETITIVAS
EM TORNO DE UM CARNAVAL SEMPRE
MAL-ENTENDIDO E MAIS DO QUE ANUNCIADO
Roberto da Matta
Professor de Antropologia da Universidade
de Notre Dame, Indiana, Estados Unidos.
Autor de Carnavais, Malandros e Heróis.
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evido à sua presença, o carnaval é evento intrigante
e de difícil entendimento. Preparar-se, pois, para
dele falar é ser obrigado a discorrer também
sobre uma realidade ainda mais complicada: o nosso fugaz e
indomesticável Brasil.
O elo complexo entre o carnaval e o Brasil tem muitas
máscaras. Tanto o carnaval pertence ao Brasil — não há como
negar um “carnaval brasileiro” com história, gestos, espaços,
objetos, música e outros tantos elementos particulares —
quanto, o Brasil pertence ao carnaval. Esse carnaval que, com
sua generosa mansidão, com o seu maravilhoso espírito antiburguês, com a sua atitude resolutamente contrária à razão
utilitária (que junta meios e fins), com o seu pendor pelas
ambigüidades, pelas transformações míticas e, sobretudo, pela
possibilidade de trocar radicalmente de lugar, não tem rival
como modelo de um “contrato social” brasileiro e como visão
de mundo do Brasil.
Seria possível caracterizar e interpretar o Brasil sem falar
em carnaval?
Embora o carnaval tenha estado sistematicamente
ausente da nossa historiografia e sociologia oficiais, pois se
não me falha a memória fui o primeiro a levá-lo a sério no
plano acadêmico, estudando-o em seus múltiplos planos de
uma perspectiva sociológica, simbólica e comparativa (Cf.
DaMatta, 1973, 1979, 1981), sua presença em outros setores
da vida social brasileira sempre foi flagrante. Tanto que
ninguém exprimiu melhor esse laço íntimo entre Brasil e
carnaval do que Lamartine Babo, numa marchinha composta
em 1934 e significativamente intitulada, História do Brasil ,
quando pergunta:
Quem foi que inventou o Brasil?
— Foi Seu Cabral… Foi Seu Cabral?
No dia 21 de abril…
Dois meses, depois do carnaval!
Seria Lamartine Babo uma milagrosa antecipação do
pensamento pós-moderno? Claro que não! Sugerir isso,
aliás, seria ofender o compositor que não tinha presunções
filosóficas, mas apenas expressava uma daquelas trivialidades
que, por estarem tão dentro de nós, precisam da visada
não prevenida para vir à tona. A antropóloga inglesa Mary
Douglas chama essas coisas de “idéias implícitas”. O grande
Alexis de Tocqueville, fundador de uma sociologia política
que comparava por contraste e não por semelhança, falava
em “hábitos do coração”. E Nelson Rodrigues denominava
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esse plano das coisas próximas, mas invisíveis, de “óbvio
ululante”1.
No caso do carnaval, o óbvio ululante não é o seu estudo
como festa popular de feitio “alienado” e “pré-político”,
prestes a ser tragado pela indústria de comunicação, mas
como um dos fios com os quais tecemos um importante
discurso coletivo.
Cai a moeda, entram em crise o mercado e o governo,
mudam-se as constituições, desenham-se novos pactos,
transformam-se os regimes, ajustam-se os câmbios,
constroem-se novas cidades, e o carnaval fica onde sempre
esteve. Não contamos muito com a moeda que já mudou
muitas vezes, mas contamos com a escola de samba e com
as “loucuras” permanentes dos bailes de carnaval, nos quais
um dado tipo de comportamento invertido, licencioso e
grotesco — oposto — à conduta adequada ao “mundo real”
é praticado. No entanto, seria absurdo dizer que o carnaval
não mudou. Hoje ele não é mais aquele evento obrigatório
obrigatório,
que exigia certas roupas, gestos e atitudes, bem como a
participação de todos2.
E, não obstante, o carnaval continua um belo rito
de inversão do mundo. Um momento espremido entre
temporalidades que a tradição católica define como
opostas: o Advento que comemora o nascimento de
Cristo e a Quaresma, quando se marca a paixão e a
morte de Jesus. Situado no meio, o carnaval aciona no
plano simbólico a ética do “tudo é possível”. Por conta
disso, mesmo neste mundo marcado pela didatura da
racionalidade econômica e pela tirania da globalização
e da burocracia, o carnaval continua honrando as
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fantasias, as máscaras, a criatividade popular, o gesto
livre, o concurso, o samba e, por meio disso, a liberdade
e a igualdade. Em outras palavras, a festa de Momo tem
resistido a todas as massificações e continua profanando
profanando,
como quer Bakhtin (Cf.1981:106; veja também 1987), o
nosso estilo de vida burguês, fundado na sacralização
do equilibrio, do decoro, do individualismo, do bomsenso, da linearidade histórica, da poupança e, last
but not least, do dinheiro como símbolo de prestígio,
racionalidade e de sucesso neste e no outro mundo,
como querem os Calvinistas.
É preciso acentuar, porém, que a liberdade
carnavalesca não é a liberdade e a igualdade do código
burguês catalizado e agendado pela revolução francesa
— liberdade e igualdade definidas em termos de
direitos e deveres perante a lei, o governo e o Estado.
A liberdade e a igualdade do carnaval vão além (ou
estão aquém…) da lei 3. No fundo, o que ali se veicula
é a substituição desses “direitos” abstratos por uma
liberdade substantiva, endereçada para o que, no
mundo moderno, é considerado “natural”, “irracional”,
“marginal” ou “incorreto”. Como a zona situada debaixo
do Equador do nosso corpo: as pernas, as coxas, o
umbigo, as nádegas, os órgãos genitais e tudo mais que
está abaixo da cintura: quadris e pés (que remetem,
respectivamente, a sexualidade e a vulgaridade das
pessoas comuns que “têm os pés no chão” têm os “pés
sujos”, de “barro” ou “pretos”). Esse pé e não a mão que
representa o trabalho equacionado a “castigo” e que
todo brasileiro salienta como fundamental na teoria
O extraordinário dessas posições é o fato de elas trazerem à consciência um modo local de pensar o mundo e de responder a certos desafios e problemas.
Modo local que, no caso das elites, é sempre sufocado pela vertente “moderna”, dominada por valores Iluministas que enxergam o mundo como sendo
governado por leis e valores universais, ponto de chegada inevitável para todas as sociedades. No caso do Brasil, esse ponto de fuga já foi o “socialismo” hoje é a
globalização. Quer dizer, as mesmas “leis históricas” que conduziam ao socialismo, dirigem-nos hoje para a globalização.
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Marcel Mauss foi dos primeiros a mostrar as exigências sociais que vão da prescrição das vestimentas, comidas, palavras, gestos e até mesmo certos estados
internos como os sentimentos, em ocasiões sociais como festas e solenidades. Usamos terno e gravata num infernal verão quando vamos atendemos a um convite
formal, ouvimos com fingido interesse a arenga demagôgica dos “políticos” na posse de um ministro, mostramos uma cara compungida no funeral do nosso
maior inimigo e rimos em casamentos, bailes e, claro, no carnaval. Aqui, transponho a idéia maussiana (publicada em 1921[Cf. Mauss, 1979]) de uma “expressão
obrigatória dos sentimentos” para as festas, com a intenção de revelar que os grandes congraçamentos populares eram fenômenos abrangentes, englobadores
de toda a sociedade e, por isso mesmo, obrigatórios
obrigatórios. Nos feriados religiosos havia a obrigação de rezar; nas mascaradas, de rir. A idéia de escolha individual hoje
associada ao conceito de “lazer”, uma idéia que supõe um momento (e um espaço social) vazios de trabalho, era pressentida, mas não estava ainda institucionalizada.
Antigamente o carnaval nos achava onde quer que estivéssemos. Hoje, triste novidade, saimos de casa procurando o carnaval.
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Em relação a esse tópico, diz Bakhtin: “Essas categorias todas categorias do carnaval, como a profanação] não são idéias abstratas acerca da igualdade e da
liberdade, da interação de todas as coisas ou da unidade das contradições. São, isto sim, “idéias” concreto-sensoriais, espetacular-rituais vivenciáveis e representáveis na
forma da própria vida, que se formaram e viveram ao longo de milênios entre as mais amplas massas populares da sociedade européia” (1981:106).
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e na prática do samba 4. Pés que, embora comuns, são
também símbolos de mobilidade e de leveza contidas no
sambar e se transformam em poderosas armas no jogo
da capoeira e no futebol.
Os recônditos da carne são outra área tocada por essa
igualdade carnavalesca. Daí a ênfase nos orifícios e entranhas
que só se revelam no sexo franco ou libertino, nos atos
fisiológicos mais íntimos ou no momento do parto. Essas
aberturas que formam o “avesso” e o “direito” do corpo (e
da sociedade). Aberturas banidas pela etiqueta e pela rotina
burguesas que as abominam e delas têm pavor, mas que no
carnaval são revividas por meio de um “realismo grotesco”
que nos envergonham e fazem rir, ao mesmo tempo que
recheiam nossas tevês, desfiles e salões 5.
Essas são “liberdades” que escapam da legislação
moderna e formam um conjunto relativo. A elas se junta
a liberdade da tristeza, da dor, da finitude, da família, do
pecado, da morte, da seriedade, da doença, do cargo e até
mesmo de uma sexualidade oficial e obrigatória, chamada
por Oswald de Andrade de “cadastrada”, publicamente correta
e devidamente enjaulada por Freud. Conjunto de liberdades
movediças porque são relativamente indepedentes da posição
social, já que no Brasil a sabedoria popular (cujo paradigma
ideológico e ritualístico ainda é o carnaval) entende que a
“riqueza não traz felicidade” que o dinheiro — equacionando
as teses — “não compra”, conforme diziam Noel Rosa e legião
de compositores populares, a alegria, o sofrimento, o talento,
a coragem ou a honra. Observando, em pleno carnaval, os
marginais do mercado de trabalho e as menos abastadas
desfilando como deuses, anjos e heróis no negro asfalto da
avenida, concientizamo-nos de que a pobreza não impede a
explosão de alegre sensualidade ou o riso do mundo, como
se, finalmente, todos entendessem que tudo na vida, inclusive
dinheiro e poder,é mera e arbitrária convenção.
Ainda que necessite “recursos”, não deixa de ser paradoxal
que o carnaval relativize a poupança e o dinheiro na sua lógica
do luxo e do esbanjamento. Existem, diz a festa, múltiplos
eixos pelos quais as pessoas e as situações podem ser lidas e
hierarquizadas6. Na falta de dinheiro, temos a música, o amor,
o carnaval e a alegria.
A essas se juntam outras espécies de liberdade:
transcender o cisma entre a casa e a rua, a mocidade e a
velhice e, principalmente, o abismo entre masculinidade e
feminilidade — entre homem e mulher. A abertura ritual
chega mesmo a diluir a opção entre Deus e o Diabo que, no
carnaval, são chamados a “brincar” e se misturam, trocando
de lugar7.
Por tudo isso, o carnaval se configura como ritual regular
e cíclico de práticas utópicas tal como são definidas no Brasil.
Como também ocorre no messianismo, trata-se de rejeitar
e de se criar outra realidade. Só que no carnaval — em
oposição ao que acontece no banditismo (social ou não) e nas
fugas religiosas do mundo — vai ao encontro da plenitude
da vida, agora englobada pelo riso, pela beleza corporal, pela
música e pela fantasia.
No limite do simbolismo e da ideologia, a grande
tradição carnavalesca — da qual somos herdeiros exclusivos
— pretende abarcar inclusive o gesto utópico das sociedades
de classe que é sair do segmento social ao qual estamos presos.
Do trabalho que nos faz “burros de carga”, que nos “esfola” e
escraviza.
“Como um povo pobre pode realizar uma festa tão
sensual, bonita e luxuosa?”, pergunta uma atônita “razão
burguesa” circunscrita pela coerência e pela disciplina dos
elos entre meios e fins? Ora, responde uma “razão popular”
simbolicamente orientada, a festa existe precisamente
porque o povo sabe que a pobreza é um conceito relativo.
Além de uma situação, ela é um estado que transcende à
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Dançado, como se diz entre nós, “o samba no pé”, como uma atividade que implica em ação e, principalmente, em desempenho, não se ligando a nenhum
atributo socialmente herdado como a posição social ou o nome de família.
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Tratei desse assunto com clareza no livro Universo do Carnaval, por meio das belas fotografias de João Poppe. Ali, as imagens revelam essa temática do
grotesco que relativiza a sacralidade privada do sexo, da excreção, da micção e de vários outros atos que Bakhtin, com surpreendente poder evocativo e rara
sensibilidade sociológica, situou no carnaval. Aquele carnaval que ele julgava desaparecido, consumido pelas chamas de uma iluminada racionalidade burguesa
ou, no seu caso, stalinista. Veja-se Bakhtin, 1978.
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Discorri pela primeira vez sobre essa “classificação múltipla do mundo” que transcende o mero eixo econômico como uma singuralidade do sistema
brasileiro, quando analisei o rito autoritário do “Você sabe com quem está falando?” no livro Carnavais, Malandros e Heróis (Cf. DaMatta, 1979: 130).
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No livro João Ternura, Anibal Machado termina a história usando imagens de um carnaval cósmico, no qual, em pleno Rio de Janeiro, tudo acontece,
inclusive a presença ambígua do próprio Deus que
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esfera econômica e, por isso mesmo, pode ser ritualmente
relativizada e servir como motivo de brincadeiras e risos.
Ademais, numa sociedade de mandões, teóricos,
professores e bacharéis, o carnaval — que horror — comanda
pelo exemplo e pelo desempenho. Tremenda inversão num
sistema no qual o “povo” é sempre o alvo de leis que não
pegam, de impostos injustos, e do “sabe com quem está
falando?” dos que estão por cima. Impossível não perceber a
reversão das rotinas oficiais fundadas no “façam o que eu digo,
mas não façam o que faço”, das hierarquias que promovem
distância, medo e reverência do povo, em franco contraste com
a sinceridade do jogo carnavalesco que promove o justo oposto,
desmascarando os ricos e poderosos, como fez pelo menos com
um imperador (Pedro II levou um “limão de cheiro” na cara
numa folia carioca) e com um presidente (Itamar Franco foi
fotografado ao lado de uma jovem com a pudenda de fora).
Isso ocorre porque, diferente dos outros rituais que não
dispensam um centro, um motivo e um sujeito, o carnaval
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tudo fragmenta e descentraliza. Podemos “perder” um
aniversário, um baile ou uma formatura, mas é impossível
“perder” um carnaval dotado de múltiplos centros e
sem dono. Nele convivem comunidade e competição,
solidariedade e conflito, pecado e pureza, individualismo
e holismo. Daí o contraste radical entre a festa da ordem
marcada por alvo e centro, por chefes e patrões (reais e
sobrenaturais, como os santos e os deuses) e o carnaval
dissolvente de hierarquias. Realmente, se as solenidades
glorificam o poder, o carnaval, por contraste , gargalha dos
ricos e dos poderosos. O resultado é história: nem Vargas,
nem a ditadura militar foram capazes de usar a folia de
Momo politicamente.
Finalizando reflexões que poderiam não ter fim,
permita-me o leitor lembrar a notável observação de uma
das personagens de Aníbal Machado, naquele carnaval
cósmico de João Ternura:
Ternura “É preferível fazer o carnaval
a defini-lo”.
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Reflexões infindáveis e repetitivas em torno de um Carnaval sempre