o mundo
Mediação
e a complexa rede de significações
da arte e do mundo
é mais
do que
Cristina de Pádula
Maria Tornaghi
Tania Queiroz
[orgs.]
isso
1
o mundo
é mais
do que
isso
2
Cristina de Pádula
Maria Tornaghi
Tania Queiroz
o mundo
é mais
do que
isso
Mediação
e a complexa rede de significações
da arte e do mundo
[orgs.]
O
projeto de Capacitação de Mediadores, coordenado por
Maria Tornaghi e supervisionado por Cristina de Pádula e
Tania Queiroz, teve início a partir da experiência com alunos do programa Fundamentação, ambos implementados pela EAV Parque
Lage, em , com recursos da Secretaria de Estado de Cultura.
O verão daquele ano foi marcante para a EAV . Após um ano de
mudanças na sua estrutura administrativa, a escola implementou
uma série de programas de ensino com bolsas para alunos iniciantes que buscavam uma formação básica e, por assim dizer, um primeiro contato com a arte. O Plano Diretor, elaborado com a colaboração de artistas, críticos de arte e educadores como Adriano
Pedrosa, Ernesto Neto, Daniel Senise, Glória Ferreira, Luiz Ernesto,
Luiz Guilherme Vergara, Maria Tornaghi, Raul Mourão, Ricardo
Basbaum, Suzana Queiroga e Tunga, abriu portas para as transformações que estavam por vir.
Durante os debates, viu-se a necessidade de se construir um programa de ensino abrangente e democrático com uma sólida for-
simultaneamente, proporcionar a experiência em exposições e
eventos promovidos pela escola.
mação nos anos iniciais e um gradativo aprofundamento nos anos
O programa de Capacitação de Mediadores, outra vertente do
seguintes. Dessa forma, o projeto não entraria em conflito com a
programa básico de formação técnica, busca familiarizar o aluno
escola, mas, como sugeriu Tunga, por um processo de “contamina-
com novas práticas de aproximação do público com a obra de arte.
ção”, influenciaria o que estava em curso.
Questiona as tão criticadas (e ultrapassadas) formas de recepção de
Criou-se então o programa Fundamentação, com bolsas integrais
visitantes em museus, galerias e outros centros de arte. De início,
para  alunos a cada semestre. O programa foi posto em prática
formavam-se  alunos por semestre. Decidiu-se então por uma
com carga horária de  horas semanais, distribuídas entre aulas e
formação mais sólida e mais abrangente, com duração de oito meses.
palestras promovidas aos sábados. Hoje, com  alunos por semes-
Hoje, cinco anos depois de sua implantação, o programa recebeu
tre, candidatos inscrevem-se em seleções públicas e são escolhidos
mais de  jovens, muitos dos quais trabalham em instituições
pelos professores. Exige-se como pré-requisito ser estudante, regu-
culturais como o Theatro Municipal, a Casa França-Brasil e a Casa
larmente inscrito em instituição formal de ensino, pública ou privada,
de Cultura Laura Alvim e mediam a importante troca entre o visi-
em nível de graduação ou mesmo de ensino médio ou fundamental.
tante e a obra de arte.
Com a implantação desse programa, verificou-se a necessida-
À frente do projeto, coordenando o programa, Maria Tornaghi,
de de se criar cursos de curta duração para aqueles que buscam
com ampla experiência e inquietante busca pelo novo, nos provoca
uma capacitação técnica de apoio ao sistema da arte. Assim, fo-
a cada dia. E com seu olhar ora azul, ora castanho nos pergunta:
ram implantados cursos de iluminação, design de exposição e fo-
estamos no caminho certo? Existe o certo? E conclui: ninguém está
tografia de obra de arte, entre outros. Tais cursos têm por obje-
aqui para formar, mas para levantar questões.
tivo dar início à profissionalização em um ambiente cercado por
artistas. Nesse sentido, nada melhor do que oferecer a formação e,
8
Claudia Saldanha
    
9
Sumário
este livro
13
Maria Tornaghi
sobre a relação entre arte e palavra (o olhar e a explicação)
seis patas
Credo incrédulo – pressupostos de um
43
Fernando Cocchiarale
17
53
Cadu
trabalho em mediação
a arte e sua relação com o espaço público
Maria Tornaghi
59
Agnaldo Farias
o interesse do visitante
21
Conversa de anna Bella Geiger e maria tornaghi
71
Gosto não se discute
73
Tania Queiroz
Eduardo Coimbra
Capacitação de mediadores – necessidade
27
de formação, desdobramentos e experiências
escritos de artistas
Cristina de Pádula
Glória Ferreira
“os trabalhos são todos ambíguos”
77
81
Leonilson
Linha do tempo: quando os predicados nos escapam
83
Marcelo Campos
metamorfoses da vida e da visibilidade no mundo contemporâneo
89
Paulo Sergio Duarte
textos usados no Programa de Capacitação de mediadores
106
este livro
Maria Tornaghi
Implantado na EAV, em , por Cristina de Pádula, Tania Queiroz e eu com o
objetivo de preparar pessoal especializado para receber os visitantes dos espaços
expositivos da escola, o Programa de Capacitação de Mediadores reflete a atitude de indagação sobre a arte e sua prática pedagógica que mantenho desde ,
quando, há mais de meio século, comecei a atuar na área.
Durante muito tempo só eventualmente trabalhei na recepção de público em
exposições. Na realidade até , quando fui para o Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, eu era radicalmente contra esse tipo de atuação. Visita guiada
era, e de certa forma ainda é, para mim, um termo pejorativo.
A própria palavra “guiada” já me deixava desconfortável, mas trabalhando há
tanto tempo na área, muitas vezes me vi levada a, como chamam os teóricos
do ensino da arte, trabalhar com uma “obra pronta”.  É, dizem eles, o que professores de música fazem quando ensinam seus alunos a tocar uma partitura
composta por outra pessoa. O desafio de transformá-lo num trabalho que eu
considerasse pertinente me mobilizou e acabou fazendo com que eu passasse a
me interessar pelas questões de aprendizagem da arte que surgem na relação do
público com obras expostas.
1 Sobre o trabalho com uma obra pronta ver: WITKING , Robert W. Intelligence of Feeling. London: Hinemann Educational Books, .
12
13
Desde então tenho trabalhado sistematicamente na recepção de público em
exposições. Cristina e Tania têm me acompanhado nesse trajeto e compartilhado inquietações, descobertas, aprendizagens. O programa de Capacitação de
Mediadores é o desafio do momento.
Desde suas primeiras edições, este programa despertou o interesse de outras instituições que já se deparavam com a necessidade de oferecer serviços de
igual natureza. Ampliado para atender essa demanda, o programa mantém, por
ocasião desta publicação, parceria com a Casa França-Brasil e a Casa de Cultura Laura Alvim. Muitas outras instituições têm trabalhado com mediadores
que passaram pelo programa: o Museu Nacional de Belas-Artes, MAM , MAC ,
MAR , Casa Daros, Espaço Furnas, Sesc Madureira, entre outras.
A crescente demanda por pessoal qualificado, resultado, talvez, do reconhecimento da importância de serviços educativos em museus e centros culturais,
nos levou a fazer esta publicação, que visa expandir o alcance do programa e
proporcionar material de pesquisa num campo tão carente de bibliografias que
aliem experiência na área e conhecimento teórico.
Um diferencial da EAV é o fato de seus professores serem todos profissionais
atuantes na área de arte. Procuramos preservar essa característica selecionando
textos de profissionais da área para abordar aspectos que consideramos importantes para a aprendizagem que surgem na relação do público com obras expostas. Foi neles que pinçamos o título do livro.
Junto de cada texto colocamos algumas palavras que apontam facetas do nosso trabalho que são tratadas pelos autores desses textos. Poderiam ser muitas
outras. Os textos vão, certamente, muito além dessas questões e é isso que é
descoberto, de maneira sempre diferente, por cada turma. Ao escolher essas palavras quisemos apenas pontuar aspectos que, em nosso trabalho, consideramos
importantes para uma boa mediação, para a aprendizagem de arte.
Como o roteiro de uma visita, que pode e deve ser rasgado em função dos
visitantes, de outros interesses, de outras questões, a sequência em que os textos
aparecem não é a única possível e nem mesmo a que é sempre usada no curso.
Escolha um caminho, leia um, leia outro, volte a um, volte a outro. Não temos
dúvidas de que a cada nova leitura “novas leituras” serão feitas.
Esses não são os únicos textos usados no programa. No final da publicação
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há uma série de referências que foram usadas até agora. Foram sendo escolhidas em função das necessidades de cada turma. As escolhas são puramente
circunstanciais: pensando em fatores que influenciam a aprendizagem em museus lemos Falk & Dierking que, para tratar do assunto, falam de acomodação e
assimilação, o que nos levou a um texto de Piaget e assim sucessivamente.
Poderia ser qualquer outro texto, não se pretende “estudar” Piaget. Apenas refletir sobre as questões levantadas. O programa e suas leituras transcorrem como
uma visita, onde qualquer comentário dos visitantes pode ser um ponto de partida para que, de desdobramento em desdobramento, se teça uma rede de saberes, se construa aprendizagem.
Complementando o texto da Cristina de Pádula “Capacitação de Mediadores – necessidade de formação, desdobramentos e experiências” estão folders que
fizemos para algumas exposições. Eles visam provocar o interesse dos visitantes por questões tratadas pelos artistas. Acreditamos que assim os estejamos
aproximando do que é exposto e possibilitando a tão desejada construção de
conhecimento.
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Credo incrédulo –
pressupostos de um
trabalho em mediação
Maria Tornaghi
Gostosa a situação de completa crença e completa descrença! É mobilizadora,
dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa procurando uma estabilidade impossível, desejável e indesejável.
Assim nos sentíamos quando fizemos os primeiros trabalhos de recepção de
público em exposições e assim nos sentimos ainda depois de tanto tempo. Faz
sentido o trabalho de mediação? É possível aprender alguma coisa em uma visita de cerca de uma hora? O que se pode aprender? Como contribuir para esse
aprendizado? Os contextos pessoais, sociais e físicos podem ser, como propõem
Falk e Dierking, “as janelas pelas quais podemos ver a perspectiva do visitante”?
Trabalhos e estudos aumentaram nossas certezas e incertezas. Preservamos
a atitude de questionamento, mas acreditamos hoje que o papel do mediador é
criar condições para que o visitante possa ter uma relação direta (e insubstituível) com as obras e saia querendo conhecer ainda mais sobre o que viu.
Criança (salvo exceções que justifiquem a regra) não é artista. Acreditamos
piamente nisso. Já acreditávamos nisso quando trabalhamos no Núcleo de
Crianças e Jovens da EAV . Criança não é cientista, mas quando planta o famoso feijão no algodão e anota as observações sobre seu crescimento dia após dia
procede como um cientista. Criança pode não ser artista, mas ao proceder de
modo similar ao de um artista, pode ir acumulando saberes que a aproxima do
universo da arte. Um artista trabalha em projetos que envolvem o que, em falta
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17
de palavra melhor, costumamos chamar questões de arte. Identificando seus interesses e questões no Núcleo, os alunos e o professor inventavam projetos que
tratavam de questões da arte. Como um recurso para desenvolver esses projetos,
cada aluno tinha um portfólio no qual, além dos trabalhos e de “diários de bordo”,
armazenavam todo tipo de informação que achassem pertinentes aos projetos,
de referências da arte a acontecimentos do cotidiano. Um portfólio como o proposto por Howard Gardner: “mais um registro do processo de aprendizado do
que só de trabalhos prontos”. O portfólio aberto em frente ao aluno permitia
que ele estabelecesse relações entre os trabalhos e entre estes e as anotações coletadas. A troca de ideias com outros alunos, com outras pessoas, ampliava essa
rede de relações e contribuía para o aprofundamento da reflexão. Criava-se a
possibilidade de aprendizagem sem se estabelecer caminhos prévios.
Esses projetos possibilitavam que, de maneira lúdica e séria, mesmo as crianças menores, explorando diferentes meios e materiais, se familiarizassem com a
arte. Seria possível transpor essa experiência para o trabalho com visitantes de
uma exposição?
Sem esquecer a atitude de indagação que tanto prezamos, tentamos a transposição. Cada visita é pensada para criar condições para que os visitantes, não só
crianças, mas os públicos mais diversos, desenvolvam seus “projetos” que abordam questões de arte tratadas na exposição. Os caminhos não são predeterminados. Cada grupo, cada visitante, constrói, com o mediador, seu “projeto”, sua
visita. As bagagens de vida de cada um, trazidas para o grupo com seus comentários, e as obras que estão na exposição tomam o lugar do portfólio. A mediação
acontece a partir do que se vê, se conversa, se reflete. O mediador, um profissional qualificado, capaz de lidar tanto com questões de arte como de educação,
acompanha o visitante, levando em conta seus interesses pessoais, pontua descobertas, traz informações, provoca a reflexão. Pensamos em Paulo Freire – para
nós, a tarefa do mediador “não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. De troca de ideia em
troca de ideia, de desdobramento em desdobramento, o grupo trabalha com os
mediadores relacionando arte e vida, construindo conhecimento. Decorrendo
dessa maneira, cada visita é diferente, mesmo quando é feita à mesma exposição
e pelo mesmo grupo.
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Quando oportuno, as visitas – seja de crianças, adolescentes ou adultos – são
acompanhadas de atividades educativas que abordam questões tratadas na exposição e que fazem parte do dia a dia do visitante. Gerando também reflexão e
troca de ideias, elas têm duplo papel de criar oportunidade para que o mediador
conheça melhor o grupo, e de despertar a curiosidade e o interesse pelo que vai
ser visto.
A análise de uma obra de arte requer um repertório conceitual poucas vezes
encontrado entre crianças e leigos que procuram uma visita mediada. Em lugar
de se deter na análise de uma obra em particular, o que essa mediação procura é
levar o visitante a usar as obras e a sua organização no espaço como pistas para
as pesquisas do artista, para a compreensão das razões de escolha do curador,
para a visão da instituição.
Dessa forma, a mediação cria condições para que a insubstituível relação direta do visitante com a obra seja preservada.
Se a visita é prazerosa, se o interesse pela exposição é estimulado, o conhecimento específico do que está exposto acontecerá durante e depois da visita e o
visitante sairá querendo conhecer ainda mais sobre o que viu.
O visitante aprende a visitar exposições. Adquire recursos para uma apreciação crítica do que está exposto e, por extensão, condições de transpor essa experiência para o cotidiano, para a vida. Desenvolve o prazer e o hábito de visitar
exposições.
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o interesse do visitante
Tania Queiroz
Um dos aspectos característicos do nosso trabalho é acreditar que o visitante
sempre traz alguma experiência ou impressão relacionada ao que está sendo
mostrado.
Como o artista, que trabalha e reúne sua produção em um portfólio, o visitante traz consigo para o museu ou espaço cultural seu portfólio de percepções e conhecimentos, que precisam, apenas, ser usados. Esse portfólio precisa,
apenas, ser aberto e visitado.
Identificar o visitante, reconhecê-lo, perceber seus interesses é o ponto de
partida para essa ação. Essa identificação se dá no primeiro momento das
apresentações, do encontro. De onde vêm? Já estiveram aqui antes? O que
lhes chama a atenção?
O grupo que vem da Zona Rural, por exemplo, traz um olhar impregnado
de paisagens diversas das que existem nas cidades, de conhecimentos sobre a
natureza; grupos que vêm de outros países trazem questões de sua cultura, hábitos e referências que lhes permitem ter um olhar inaugural sobre nossa produção; grupos de escolas trazem experiências em comum proporcionadas por
aquele espaço e pela convivência cotidiana, mas também as experiências particulares de seus alunos, dos locais onde moram, com acesso a diferentes bens
culturais, valorizando as mais diversificadas manifestações. São informações
preciosas, da maior importância, que devem ser consideradas durante a visita.
20
21
A relação que pode ser de proximidade ou distanciamento do que trazem, do
que já sabem, do que está exposto, das questões do artista ou da curadoria é
estabelecida aí. A partir da vivência de cada grupo e de cada visitante, um elo
se constrói.
Em toda a história da arte pode se identificar as questões que motivaram
os artistas a produzirem suas obras. Questões essas que se referem ou podem
se referir a inquietações, críticas ao establishment, às diferentes condições de
cada época. Os artistas as tornam visíveis, sensíveis. A arte trata, de alguma
maneira, da vida.
Entendemos que sempre foi assim.
Em mostras históricas, que falam de outro tempo, o resgate do que já se estudou ou ouviu falar sobre este ou aquele período, as histórias de reis, deuses,
de guerras, mesmo que deturpadas ou fantasiosas, podem ser resgatadas. Em
algum momento estudamos, ouvimos falar, participamos de um game, tivemos
brinquedos com personagens desses períodos. Cabe ao mediador levantar essas referências que certamente estão ou estiveram presentes na vida do visitante e relacioná-las ao que está sendo mostrado. Sempre se “saberá” alguma coisa.
A proposta de uma viagem pela mostra resgatando a própria ida ao museu
pode ser um caminho. Como foi da sua escola até aqui? Já tinha feito esse
caminho? O que observou? Como um viajante se comporta? Estas pinturas
mostram realmente o que se viu? Estão impregnadas pelo olhar do viajante? E
vocês? O que encontraram aqui corresponde as suas expectativas? Como e o
que contarão para seus amigos?
Na mostra “O Brasil redescoberto”, que mostrava o Brasil dos viajantes, a
própria visita se tornava a viagem. Os alunos eram convidados a registrarem
em etiquetas adesivas suas impressões sobre as obras expostas. Cada escola
visitante (e eram muitas) era representada por uma linha de cor diferente e,
como os viajantes de outrora, os alunos realizavam a visita com o olhar atento
de quem está descobrindo. Ao final, uma grande colagem com as diversas etiquetas interligadas pelas diferentes linhas coloridas formava os diversos percursos, com as imagens dos interesses e registros de cada um.
“O Brasil redescoberto”, curadoria Carlos Martins, Paço Imperial, Rio de Janeiro, de 6 de outubro a  de
novembro de .
1
22
Quando pensamos em arte contemporânea esse caminho parece não apresentar dificuldades. Afinal, na arte contemporânea as relações entre arte e vida
se apresentam de forma bastante clara, direta. Os recursos e as imagens utilizadas pelos artistas para apresentação de suas ideias e elas próprias são bastante familiares.
Muitas vezes a proximidade com o que está sendo mostrado é de tal ordem
que pode causar estranhamento ao público que não está familiarizado. Arte
é o que está no museu, sacralizado, distante do senso comum e como, frequentemente, a arte contemporânea procura provocar o questionamento dessa
sacralização promovendo ações de ruptura, identificar algumas obras como
arte pode ser mais difícil num primeiro momento. Está tão próximo que parece distante. Um estranhamento que pode surgir, até, de um preconceito em
relação à arte em geral.
A conversa que desfaz essa premissa é o primeiro passo para viabilizar a
aprendizagem.
Enquanto procuramos estabelecer esse contato entre a experiência do visitante e a obra, buscamos trazer à tona as questões do artista com e em seu
tempo. O ponto de vista do artista ou da curadoria se torna, no transcorrer da
visita, visível.
Identificada essa familiaridade entre espectador e obra, entre espectador e
questão do artista ou da curadoria, a aliança se estabelece, o visitante se sente
à vontade para explorar a mostra, tentando identificar cada vez mais as questões ali apresentadas. A curiosidade é despertada, e o constrangimento pela
impressão de distanciamento entre obras de arte e público em geral pode ser
dissipada aí.
Aprender se torna mais fácil, mais próximo. Aprendemos o que nos interessa; interessamo-nos pelo que conseguimos perceber e com o que nos identificamos, com nossas vidas e experiências.
A equipe do educativo, depois de minucioso estudo da obra do artista, da
proposta da curadoria, da trajetória do artista e das suas questões, será o “facilitador”, para o visitante, dessa identificação.
Se entendemos que aprendizado está diretamente relacionado ao que nos
interessa, a identificação desses interesses e dos saberes do visitante será o
23
caminho para que se estabeleça a sua relação com a exposição, com o que está
sendo mostrado e o consequente aprendizado.
Estranhar, desconhecer, perceber, reconhecer, conhecer mais. Pode ser esse o
roteiro para a aprendizagem em exposições de arte. Nesse caminho, a mediação busca/traz à tona o que o visitante já sabe e, como vimos, ele sempre sabe
sobre o que está ali sendo apresentado. Esse saber não é organizado, consolidado como teoria, mas vivido, apreendido das mais diversas maneiras.
Os caminhose as estratégias simples de aproximação que utilizamos requerem, no entanto, que o mediador esteja bastante seguro em relação ao que está
sendo mostrado, de forma a ser capaz de lidar com as mais diversas reações,
observações e vivências trazidas pelo visitante. Quanto mais se conhece sobre
o que está exposto, mais se consegue lidar com os diferentes depoimentos e
asrelações que o público estabelece.
Os fios que vão sendo puxados e tecidos em conjunto têm de ser capazes
de trazer à superfície as questões do artista e sua relação com a vida, com as
experiências e conhecimentos trazidos pelo público. Se somos eficientes nessa
abordagem, o grupo sai da visita motivado a saber mais, a conhecer mais profundamente. E retorna. Cada vez mais.
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25
Capacitação de mediadores –
necessidade de formação,
desdobramentos e experiências
Cristina de Pádula
Em , Tania Queiroz, à frente da Coordenação de Ensino da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage, identificou uma demanda que se tornava urgente: como
suprir a formação dos mediadores que trabalhavam nas exposições da escola?
Durante os anos de  e , estudantes universitários de artes e ainda
alunos da própria escola eram preparados para atuarem como mediadores. Ela
enfatizava a importância de um programa educativo para as exposições da escola
de modo a ampliar a formação de público de arte contemporânea e estimular o
acesso aos bens culturais da cidade. Nesse momento, não havia ainda o curso
formalizado, mas um trabalho continuado com um pequeno grupo de alunos,
que se dava a cada nova exposição e em reuniões de preparação e avaliação.
A partir da bem-sucedida implementação, em , do Programa de Cursos
Gratuitos, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura, Tania propôs em
 formalizar esse trabalho de modo a capacitar mediadores para atender a
nossa demanda interna. Para a criação desse Programa de Capacitação de Mediadores, ela convidou Maria Tornaghi e a mim para desenvolvermos juntas esse
trabalho. O fato de Tania e eu começarmos a trabalhar com ensino de arte em
 sob a coordenação de Maria Tornaghi na EAV Parque Lage e no MAM –RJ 
nos permitiu uma sólida experiência no ensino de arte.
26
1
Na época o nome do programa era Incubadora de Monitores.
2
Trabalhamos no educativo do MAM–RJ entre  e , além de outras mostras em outras instituições.
27
Esse breve histórico resume nossa experiência que tem sido, em grande parte,
construída em parceria. Anos de trabalho com continuidade e aprofundamento
nos faz lembrar que aprender exige tempo.
Em nossos primeiros encontros para debatermos sobre o programa, a questão
primeira que nos colocávamos era se seria possível capacitar jovens estudantes,
ainda com tão pouca formação, em tão pouco tempo para esse trabalho. Por um
lado, acreditávamos que sim, e por outro lado, pensávamos que não.
Sabemos que se tornar mediador, educador ou professor exige tempo e
formação continuada. E compreendemos também que essa capacitação que
realizamos é um primeiro passo a ser preenchido pela prática e formação continuada. Assim, enfatizamos que as instituições devem estar atentas para a
necessidade de supervisão e formação de nossos mediadores a cada nova exposição a que venham trabalhar.
O programa foi pensado de modo a proporcionar noções básicas de ensino
e aprendizagem de arte e de mediação, complementados por estágio supervisionado, com preparação específica para que atuem em diferentes espaços e
mostras. Essa é uma especificidade do curso.
Depois de um processo de seleção, os alunos passam por um período de atuação e de estudos que os capacita a criar condições para conduzir uma mediação com diferentes perfis de grupos e visitantes eventuais. Assim, “acreditamos
que o papel do mediador é criar condições para que o visitante possa ter uma
relação direta (e insubstituível) com as obras e saia querendo conhecer ainda
mais sobre o que viu”. 
O programa tem etapa intensiva inicial de  horas, apresentando aos participantes a metodologia, estratégias de trabalho e conteúdos específicos sobre os
espaços e mostras onde aconteceram os estágios.
Em seguida, nos encontros semanais são discutidas as experiências a partir
dos estágios e ainda complementamos a formação, promovendo estudos complementares (com textos, dinâmicas, vídeos, visitas a outras instituições, palestras com convidados), além de aulas especiais em que os alunos participam de
3
28
TORNAGHI , Maria. Credo incrédulo, . [Texto integrante desta publicação].
encontros com curadores e artistas para a preparação específica de exposições
apresentadas na EAV Parque Lage.
De acordo com as características de cada turma, os interesses, as exposições e
os eventos que aconteçam na cidade, reestruturamos e mudamos os textos e as
atividades.
O fato de a EAV Parque Lage ser uma escola com uma programação intensa
de exposições é um dado importantíssimo para o desenvolvimento do curso. Ao
longo do semestre, os alunos podem ter experiências com no mínimo quatro
exposições.
A carga horária total do curso é de  horas, sendo  horas de aula e 
horas de estágio. Os estágios de observação podem acontecer na EAV , na Casa
França-Brasil ou na Casa de Cultura Laura Alvim. Nesse estágio semanal, o
aluno permanece no espaço expositivo observando e acompanhando o mediador
que já trabalha na instituição recebendo grupos e visitantes eventuais. As turmas
têm, em geral,  alunos, mas podem variar de acordo com o processo seletivo.
Experiências em diferentes instituições
Como já foi mencionado, inicialmente o nosso objetivo era capacitar mediadores
para uma demanda interna, mas a partir da primeira turma de mediadores em
, a procura de outras instituições por mediadores formados tem se tornado
constante.
Estabelecemos uma parceria com a Casa de Cultura Laura Alvim, entre 
e , e com a Casa França-Brasil a partir de  até o presente momento.
Também fomos convidadas para implementar um programa de visitas na Fundação Theatro Municipal entre o final de  e , além de muitas outras
instituições que nos procuram buscando indicação de mediadores formados
pelo programa.
Cada instituição, seja pelo seu perfil cultural, proposta curatorial e condições
físicas, acaba por determinar diferentes abordagens e estratégias para a preparação continuada dos mediadores e sua relação com o visitante.
Nesse sentido, em seguida farei um breve relato das características principais
de cada instituição e como o trabalho vem sendo ou foi desenvolvido.
29
Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Atualmente consideramos o espaço da EAV Parque Lage um lugar fundamental
para o desenvolvimento do trabalho com os mediadores recém-formados pelo
programa.
Depois de formar mais de oito turmas, conseguimos identificar que muitos
dos jovens recém-formados necessitam de uma prática maior para consolidar o
processo de aprendizagem proposto pelo programa.
Nesse sentido, logo que uma turma conclui o programa, procuramos integrar
os alunos à equipe de mediadores da EAV .
Na EAV , o mediador interage com um público muito heterogêneo. Desde
escolas e grupos sociais previamente agendados ao público em geral (adultos,
crianças, famílias, turistas), que visitam o Parque e desconhecem a existência da
escola e de seus diversos espaços de exposições.
Atualmente a EAV tem as Galerias  e , Galeria EAV no térreo, Cavalariças
e Capelinha. Essa variedade de espaços expositivos permite muitas experiências
para o público e os mediadores.
Todas essas variáveis possibilitam aos mediadores novas oportunidades de
lidarem na prática com o que aprenderam, sendo ainda continuamente supervisionados por nós e por Vanessa Rocha, assistente da coordenação de ensino.
Casa de Cultura Laura Alvim
A EAV Parque Lage, que funciona como um centro cultural, tem, em princípio,
muitas características em comum com a CCLA , que, distintamente, é um espaço
de exposições, com um programa de arte contemporânea consolidado a partir
de  e o objetivo de ampliar e formar o público para as artes visuais. Assim,
entre junho de  e fevereiro de , foi estabelecida a parceria entre as instituições para que implementássemos as ações educativas. Durante esse período,
pudemos trabalhar a partir das curadorias de Ligia Canongia, Fernando Cocchiarale e Glória Ferreira.
4 Realizamos alguns programas especiais, como para a própria Casa França-Brasil, antes da nossa parceria e
para o Theatro Municipal como será relatado ainda neste texto.
5
Muitos de nossos mediadores trabalham ou já trabalharam para instituições como a Casa Daros, MAM-
RJ, MAC -Niterói, Museu Nacional de Belas-Artes, Museu de Arte do Rio, Oi Futuro, entre outros.
30
Diferentemente da EAV que, em geral, trabalha com uma equipe de  mediadores, na CCLA iniciamos o trabalho com duas (atualmente são três) que se
revezam no espaço expositivo.
Temos a destacar que contamos com a presença de uma mesma mediadora
desde  – Patrícia Aguiar –, que foi aluna da primeira turma do Programa de
Capacitação de Mediadores. Só com a continuidade e o aprofundamento do trabalho durante um longo tempo, ela pôde revelar o seu interesse em trabalhar com
programas educativos e consolidar esse desejo. Esse é um exemplo importante,
pois muitas vezes, depois de algumas experiências com mediação, um jovem estudante procura outros estágios para sua formação e não necessariamente almeja
se tornar um educador. Só o tempo poderá afirmar ou não esse desejo. Porém,
para nós que coordenamos programas educativos, sabemos que a maturidade
e a experiência contam muito. Atualmente, Patrícia também trabalha na Casa
França-Brasil e iniciou uma pós-graduação direcionada para arte-educação.
Voltando a tratar sobre o que tem se tornado específico no trabalho que realizamos na CCLA e, de certo modo, determinado pelas características físicas da
casa, nosso principal foco tem sido o atendimento do público eventual. O espaço
não permite um grupo com mais de  pessoas e, ainda, sem sala de atividades
para se realizar atividades educativas com escolas, acaba-se por tornar o lugar
menos convidativo para grupos maiores.
Eventualmente recebemos grupos menores de escolas particulares. Realizar
visitas em exposições de arte para crianças tão pequenas requer um trabalho
cuidadoso e, muitas vezes, uma mostra pode não ser adequada para esse tipo de
visitante – em razão de conteúdos impróprios para crianças ou simplesmente
porque as obras ficam numa altura em que não consigam ver.
Tivemos essa experiência, quando, em , foi realizada a exposição de Vik
Muniz, a essa altura já um artista conhecido pelo grande público, e tivemos fila
na entrada e um enorme agendamento de visitas de escolas. Muitos dos grupos
com crianças pequenas e que não conseguiam ver algumas obras. Assim, como
sempre fazemos, adequamos a visita às características de cada grupo e geralmente não conversamos sobre todas as obras.
Muitas escolas comentaram a respeito de a visita ter sido bastante proveitosa, porém, é curioso notar que, com a exposição seguinte, mesmo convidando
31
novamente as escolas, muito poucas retornaram à CCLA . Para a exposição de
Vik Muniz havia patrocínio para transporte de escolas públicas e nós, professores e educadores, sabemos como isso faz a diferença.
Fundação Casa França-Brasil
Em , Maria Tornaghi já havia preparado o programa educativo para a mostra da artista Rosana Palazyan. E foi, então, em  com a exposição da artista
francesa Valérie Belin que iniciamos nossa parceria.
O trabalho educativo tem sido realizado com os mesmos objetivos das outras
parcerias e foram ao encontro do anseio que a Presidência da FCFB e a Coordenação de Projetos buscavam para um trabalho dessa natureza.
Realizamos, em geral, para todas as exposições a preparação específica com
três encontros iniciais (três horas cada), quando estudamos as referências indicadas pela curadoria e artista; pesquisamos e discutimos suas obras; visitamos a
exposição durante a montagem para identificarmos questões e relações entre as
obras para, em seguida, encontrarmos a curadoria e artista para uma conversa.
Todo esse “material” inicial é o ponto de partida para a configuração do trabalho. Para todas as mostras, seja na CFB , na EAV ou CCLA , escrevo um “roteiro
inicial para mediação”, no qual reúno estratégias e questões das obras e da curadoria para uma visita mediada, além do partido geral do trabalho educativo.
Minha experiência, desde a época em que fui mediadora no MAM - RJ , me faz
pensar como é importante formalizar e ter sempre à mão questões que foram
pensadas e discutidas durante a preparação, e que no dia a dia podem ser esquecidas. Por isso, sempre enfatizo que é um “roteiro inicial” a ser adaptado a cada
mediação realizada.
Inaugurada a exposição, realizamos reuniões quinzenais de supervisão. No
dia a dia a supervisão é realizada por Jeanine Toledo, coordenadora de Projetos,
que eventualmente avalia a necessidade dessas reuniões serem semanais. Mas
na prática, tem sido muito difícil conciliar horários, já que muitos mediadores
ainda são estudantes.
Durante esse tempo de parceria tivemos algumas exposições com patrocínio
para transporte de escolas públicas e folheto educativo.
6
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Ao final desta publicação disponibilizamos alguns folhetos educativos.
O trabalho com escolas, além de ampliar o alcance do trabalho educativo, é
para os mediadores uma fonte riquíssima de trocas e aprofundamento do trabalho. Diferentes faixas etárias, diferentes tempos de uma visita; como realizar
um atendimento quando a professora nos informa que só tem quinze minutos,
pois o ônibus já vai chegar. São situações frequentes quando estamos cercados
de outras instituições culturais que também recebem escolas.
A feitura de um folheto educativo para uma exposição traz sempre a questão:
qual é o público-alvo? De acordo com a proposta curatorial da FCFB e pensando
tanto no visitante eventual, não familiarizado com arte contemporânea, quanto
nos professores, que são multiplicadores em suas escolas, temos elaborado um
folheto voltado para o público adulto. Assim, o visitante pode se relacionar com
a exposição recorrendo a algumas questões que são levantadas. Nesse sentido,
acreditamos que podemos ajudar a relação do público com as obras expostas e
ampliar as visitas a exposições de arte.
Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro
O trabalho realizado na Fundação Theatro Municipal foi um desafio diferente.
Mas os nossos pressupostos de trabalho não se alteram de modo algum, independentemente de ser ou não uma exposição de arte. Isso é uma questão importante que enfatizamos no Programa de Capacitação de Mediadores: como fazer
é fundamental, e esse fazer deve estar apoiado nas questões da curadoria seja ela
de arte ou não.
Na época em que trabalhamos no MAM chegamos a desenvolver atividades
em exposições que não eram especificamente de arte como “A paisagem carioca”,
com a curadoria de Carlos Martins e como no acervo dos Museus Castro Maya,
mais especificamente no Museu do Açude.
Para a implementação das visitas para a Fundação Theatro Municipal baseamo-nos nas questões e nos objetivos da Presidência da instituição. O Theatro
tem muitas obras de arte como dos irmãos Bernardelli, de Visconti, mosaicos
de Facchina e muitos outros elementos decorativos fascinantes. Com o então recente restauro e reforma de todos os elementos em , a visita foi direcionada
para esses aspectos.
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Para esse projeto desenvolvemos um curso específico. Maria Tornaghi e eu
trabalhamos intensamente com um grupo inicial de  mediadores. Durante
um mês de preparação nosso desafio foi conhecer os bastidores, conhecer cada
elemento e espaço restaurados, os materiais empregados, as técnicas e a história
do teatro que corrobora e se desenvolve com a história da cidade. Tivemos encontros com a arquiteta responsável pelo restauro e reforma, e com funcionários
que estavam ali há mais de 20 anos, além de diferentes profissionais da área de
espetáculos, palco, iluminação, etc.
A cada dia descobríamos algo novo, e pensávamos: como vamos incluir isso na
visita? Como dar conta de tantos assuntos? O que pode ser mais importante?
Assim como numa visita mediada, o nosso curso procurou criar uma aproximação (mais aprofundada) com o que seria exposto, além de questões de ensino
e aprendizagem. Estudamos, planejamos, ensaiamos. E, ao contrário de uma
exposição de arte que é feita para ser visitada, a principal função do teatro é funcionar como uma casa de espetáculos. O nosso cotidiano de trabalho e as visitas
aconteceram durante os ensaios e manutenção. Muitas vezes precisávamos ficar
em silêncio absoluto. Foi um desafio enorme e não imaginávamos que a agenda
de visitas ficasse logo esgotada e com fila de espera. Mesmo a visita não sendo
gratuita, recebíamos  visitantes por dia.
Ao elaborar as estratégias e os percursos, acabamos nos deparando com muitas limitações. Por isso as visitas tiveram de se tornar mais padronizadas do que
gostaríamos. Sempre enfatizamos que num trabalho educativo a importância de
lidar com o imprevisto, o acaso, ouvir as demandas dos visitantes e a necessidade
de rasgar o roteiro, porque surgiu uma questão mais importante, é fundamental.
Eis um exemplo a partir de uma situação durante o treinamento dos mediadores. Estávamos atrás do palco, na coxia. Para quem conhece, tínhamos acabado
de atravessar a ponte que liga o prédio do anexo ao teatro. Eu estava em pé, conversando com o grupo reunido a minha frente e, de repente, vi que eles estavam
com os olhos arregalados, iluminados. Quando me virei, estava o palco sendo
revelado, uma das varas recolheu parte do cenário e surgiam aquelas lindas lanternas vermelhas do cenário do Balé Nacional da China que apresentaria em
breve o espetáculo. Ter aquele ponto de vista especial e aquela vivência mágica
foi uma experiência que nunca esqueci.
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Passado aquele momento de espanto, conversei com o grupo de mediadores
que nossos visitantes iriam muitas vezes ter experiências análogas. Nesses momentos, respeitar o espanto, a comoção estética e conversar sobre ela poderia ser
mais importante do que dar a informação, por exemplo, de quantos metros tem
o palco.
Depois de quase um ano de implementação da equipe, encerramos essa parceria em setembro de .
Esses três exemplos de trabalho em instituições diferentes apresentam algumas questões particulares a respeito da formação de mediadores e suas ações.
Procurei enfatizar que um trabalho educativo sério precisa de pesquisa e aprofundamento contínuos e que jovens mediadores não têm bagagem necessária
para conduzirem sozinhos um partido educativo de uma exposição.
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Folder educativo desenvolvido para a exposição O ser e o parecer, de Valérie Belin, Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro, setembro a novembro de 
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Folder educativo desenvolvido para a exposição de Ivens Machado, Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro, dezembro de  a fevereiro de 
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Folder educativo desenvolvido para a exposição Lugar de reflexão, de Cristina Iglesias, Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro, agosto a outubro de 
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sobre a relação entre arte e palavra
(o olhar e a explicação)
Fernando Cocchiarale
Este texto foi originalmente publicado no catálogo
da mostra “É hoje na arte contemporânea brasileira”,
Santander Cultural, Porto Alegre, 2006.
“Não se pode resumir um poema como se resume...
um ‘universo’”.
É frequentemente esperado que o discurso verbal seja a chave de comunicabilidade entre o expectador e a obra.
O mediador é solicitado a explicar o que é visto:
“o que isso significa?” – é uma pergunta contumaz.
O mediador deve deixar claro para o visitante que a
palavra não pode substituir a experiência pessoal.
Parte considerável do público leigo considera a arte contemporânea algo de difícil compreensão. Espera da explicação verbal do crítico de arte, do curador ou
do próprio artista o esclarecimento do sentido dessas obras, como se seus significados só pudessem ser apreendidos por meio da palavra escrita ou falada.
A crença absoluta no poder esclarecedor da palavra, quando se manifesta no
campo da visualidade, cria frequentemente uma inversão: o público ao invés
de procurar o significado da obra nela própria (a partir do que vê), espera da
palavra alheia do especialista uma explicação de seu sentido poético.
Em carta escrita em  para Leo Ferrero (“Leonardo e os filósofos”), Paul
Valéry problematiza a tensa relação entre arte e palavra: Não se pode resumir
um poema como se resume ... um “universo”. Resumir uma tese é reter-lhe o essencial. Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte é perder-lhe o
essencial. Vê-se o quanto essa circunstância (se se compreender seu alcance) torna
ilusória a análise do esteta.
“Deixar que o público perceba que arte e palavra pertencem
a regimes de significação diferenciados é fundamental”.
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VALÉRY , Paul. Leonardo e os filósofos – carta a Leo Ferrero. Em Introdução ao método de Leonardo da
Vinci. São Paulo: , .
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O discurso verbal, no entanto, nem sempre funcionou como chave de ignição do sentido de uma obra de arte. Na Idade Média, período no qual a maioria da população era analfabeta, a arte religiosa ajudou, por meio de imagens
e da ilustração de temas do Novo Testamento, a fixar no imaginário dessa
população a narrativa bíblica que não podia ler. A arte (imagem), então, ao
contrário das expectativas da atualidade, substituía a palavra escrita.
Se para a compreensão histórica ou filosófica da arte o discurso teórico é
certamente indispensável, o mesmo não se pode dizer quando tratamos de
obras específicas. Tanto as explicações didáticas como os textos críticos, por
complexos e sofisticados que sejam, padecem de limitações crônicas. Não podem substituir a riqueza do contato direto com as obras reais, concretas. Tudo
o que delas se possa dizer estará sempre aquém do sentido silencioso, ambíguo e plural que as caracterizam. Ainda assim, desde o modernismo até a
mais recente produção contemporânea, a arte nunca dependeu tanto de um
acordo entre o que vemos e o que lemos (ouvimos) a seu respeito. A origem
e o significado dessa dependência histórica são não só conhecidos, como bem
caracterizados.
Na segunda metade do século XVIII , o século das Luzes ou iluminista, a
relação entre arte e palavra passa a ser indissociável. Nessa época surgem as
primeiras disciplinas teóricas permanentes sobre a arte. Seus fundadores e
principais representantes foram Johann Joachim Winckelmann (-),
pensador alemão que lançou as bases da história da arte como disciplina independente; Denis Diderot (-), editor da Encyclopédie que, graças
às críticas que escreveu para os Salons da Real Academia Francesa de Pintura
e Escultura, pode ser considerado um pioneiro da crítica de arte; e os alemães
O pensamento iluminista marcou a filosofia, as ciências, as artes e os ideais políticos da época, sobretudo
na Alemanha, França e Inglaterra. Defendia a racionalidade crítica contra os dogmas religiosos, a liberdade e os
direitos dos cidadãos. A independência humana decorreria da razão e do conhecimento aos quais todos teriam
direito pela universalização do ensino secular
2
Principal propagadora dos ideais anticlericais, racionalistas e humanitários do Iluminismo, já que foi pensada como um instrumento de difusão do conhecimento entre as camadas da população tradicionalmente
excluídas do reduzido grupo de intelectuais, cientistas e pensadores laicos ou do clero que concentravam todo
o saber da época.
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Alexander Baumgarten (-), que usou pela primeira vez o termo estética para designar a reflexão filosófica sobre a arte; Gotthold Ehphram Lessing
(-), autor de Laocoonte (), obra que teve grande influência no
pensamento alemão da época e no romantismo; finalmente, Immanuel Kant
(-), maior filósofo do século XVIII , autor da Crítica da faculdade de
julgar, na qual investiga as possibilidades de fundamentar em bases objetivas
o juízo estético.
As consequências teórico-práticas imediatas dos ideais iluministas na arte
serão sua separação radical do artesanato; a diferenciação diametralmente
oposta das funções do artista e do artesão; e aquela que supervalorizou os prazeres especiais, refinados (arte), em detrimento dos prazeres comuns, proporcionados pela vida cotidiana (artesanato), distinções conceituais e culturais até
então impensáveis.
Segundo o historiador americano Larry Shiner, autor do livro A invenção da
arte, uma história cultural, se tomarmos a tradição greco-romana veremos que:
A ideia de que os ideais e as práticas modernas são eternos e universais ou
de que, pelo menos, remontam à Grécia antiga ou ao Renascimento é uma
ilusão provocada em grande medida pela ambiguidade própria da palavra arte.
A noção de arte deriva do latim ars e do grego techné, termos que se referem a
qualquer habilidade humana, seja montar a cavalo, escrever versos, consertar
sapatos, pintar vasos ou governar. Conforme os modos antigos de pensar, o
oposto à arte humana não é o artesanato, mas a natureza. [ ... ] Não obstante,
no século XVIII foi estabelecida uma distinção decisiva no conceito tradicional de arte. Após significar durante dois mil anos toda atividade humana realizada com habilidade e graça, o conceito se decompôs na nova categoria de
belas-artes (poesia, pintura, arquitetura e música), em oposição ao artesanato
e às artes populares (fabricar sapatos, bordar, contar histórias, cantar canções
populares).
4 Terceira e última Crítica de Kant. Suas obras da maturidade são a Crítica da razão pura (), a Crítica da
razão prática () e a Crítica da faculdade de julgar ().
Em SHINER , Larry. La invención de/ arte – una historia cultural. Barcelona: Paidós Ibérica S . A . ,
p. .
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Shiner, mostra-nos que o conceito de arte tal como o entendemos hoje em
dia resultou dessa separação histórica. A arte estética (pensada como um produto humano sem qualquer função utilitária, diverso do fazer ordinário e cuja
existência justifica-se apenas por suas qualidades intrínsecas, estéticas, que
nos permitem transcender a banalidade dos objetos comuns de nosso cotidiano) seria uma invenção europeia do século XVIII . Desde então passou a
ser um campo específico, cujo acesso pleno só poderia ser feito por meio da
contemplação ou da reflexão estéticas.
Certo é que as ideias renovadoras dessas teorias da arte, impossíveis de serem concebidas anteriormente, só tiveram trânsito em função das transformações que começaram a ocorrer, pouco a pouco, no interior da própria produção
artística, cerca de três séculos antes, a partir do Renascimento (por exemplo,
a consolidação do papel do autor e a proliferação dos estilos individuais como
algo oposto ao caráter coletivo da autoria no artesanato). Se a produção artística já não tivesse prenunciado e antecipado essas mudanças, muito difícil seria
que elas surgissem primeiramente no campo teórico para, em seguida, serem
postas em prática pelos artistas.
A separação de arte e artesanato (que é, em último caso, a separação de
arte e vida) preparou o terreno para a conquista progressiva daquilo que se
convencionou chamar autonomia da arte. Antes dessa separação, a arte era
próxima da vida por diversas razões. Primeiramente pela predominância da
função religiosa e política em detrimento da contemplação autônoma, estética.
Além disso, como já vimos, até o século XVIII , os produtos utilitários (móveis,
vasos, estribos, tecidos etc.), isto é, produtos pertencentes à vida diária, eram
produzidos por artesãos, cujas atividades eram classificadas no mesmo grupo
que as do pintor, escultor e músico, por exemplo.
Distinta de todas as outras formas de produção (ligadas à sobrevivência
cotidiana), a arte que emerge do Iluminismo (lugar da contemplação e da
transcendência) passa a ser designada no século XIX não mais como trabalho,
mas, como criação: uma prática tão diferente das demais atividades produtivas
6 Quando no século XVIII a arte e o artesanato tornam-se não só conceitos como atividades opostas, a
figura do artesão como trabalhador que produzia todos os bens utilitários de que nos servimos em nossa vida
cotidiana estava com os dias contados. O surgimento das primeiras indústrias decretou a morte histórica do
artesanato e o artesão será pouco a pouco substituído pelo proletário.
46
que pode reivindicar para si a autonomia não só em relação a essas atividades,
como também em relação aos cânones da representação naturalista acadêmica.
A arte estética (produzida somente para a contemplação) introduziu uma
dinâmica nunca antes observada na história. Do final do século XVIII até a
passagem das décadas de  e  do século XX , a arte tornou-se um campo de
provas, lugar de inúmeros projetos e versões possibilitados em função de sua
recém-conquistada independência.
Nos três últimos decênios do século XIX , em nome da investigação plástico
formal, a produção artística abandona os grandes temas que marcaram tanto a
arte clássica renascentista, quanto o romantismo e o neoclassicismo.
Do anonimato dos personagens de Courbet e Manet às naturezas-mortas
de Cézanne, conteúdos esvaziados de transcendência temática tornaram-se
apenas pretextos para a livre criação e para a invenção plástica. As obras tornam-se menos narrativas, menos literárias, menos verbais. Para suprir esse vácuo começam a surgir agentes intermediários (a crítica), cuja função seria a de
mediar a incomunicabilidade crescente entre a produção artística e o grande
público, explicando-a ou criticando-a por meio da palavra.
Outras transformações, sem dúvida, foram também essenciais para a consolidação histórica da autonomia da arte: a substituição progressiva, ao longo
do século XIX , do vínculo da encomenda (no qual o público-cliente relacionava-se diretamente com o artista contratado), pelo mercado de arte (que ajuda
a separar o artista de seu público), justificava-se como adequação da arte ao
universo especializado e ao mercado industrial. Mas abordá-los implicaria um
desvio de rota do texto em curso.
Podemos supor que o sentido da arte estética pode ser encontrado de diversas maneiras e pontos de vista entre dois regimes paralelos de significação:
o visível e o legível. Entretanto o artista moderno, em nome da autonomia
da arte e da forma, desconsiderou frequentemente o papel do literário para a
compreensão de sua obra, já que tinha aversão aos seus sentidos figurados e
simbólicos. Quando muito (e para isso tanto os manifestos artísticos quanto
a interpretação formalista da obra de arte foram decisivos para a instauração
do texto modernista) aceitava a mediação textual desde que ela se restringisse
a fazer falar a linguagem plástico-formal de suas obras.
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Por outro lado, à medida que as vanguardas históricas do século XX radicalizavam seu projeto de produzir uma arte pura (autônoma), teóricos, críticos e
público, num polo oposto, reivindicavam a mediação do discurso para explicá-la.
Indissociável do projeto histórico de conquista da autonomia da arte, a vertiginosa sucessão dos ismos nas primeiras décadas do século XX obrigou os
próprios artistas a explicarem o que propunham. O papel mediador dos manifestos foi de tal sorte importante para a formação de uma nova sensibilidade
e de novas teorias sobre a arte que é atualmente impossível estudarmos o período pioneiro das vanguardas históricas sem que lancemos mão da palavra de
seus integrantes, fontes primárias de suas ideias artísticas.
O pós-guerra marcará a hegemonia da grande crítica de arte (Clemente
Greenberg e Harold Rosenberg, Estados Unidos; Pierre Restany, França; Romero Brest, Argentina; Mário Pedrosa, Brasil). Seu compromisso militante
com setores das vanguardas a autorizou fazer a mediação entre as novas ideias
e o público da época.
No entanto, apesar da permanência e do fortalecimento do capitalismo, sistema econômico que tornou possível o mundo moderno, são notáveis as transformações ocorridas mundialmente não só no comportamento e na rotina cotidiana, como também no âmbito político, tecnológico e na produção cultural,
a partir da segunda metade do século passado. Se a vida moderna nasceu com
a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX , o mundo contemporâneo
começou a ser esboçado com a crise ético-política e estética causada pela Segunda Grande Guerra (-) e se afirma a partir dos anos , com o
desenvolvimento vertiginoso das tecnologias eletrônicas da informação.
Essas mudanças podem ser, ao menos em parte, creditadas ao novo papel social conquistado pelo jovem no pós-guerra. Antes voltado para a perpetuação
dos valores tradicionais da comunidade, o jovem passa agora a questioná-los
seja porque esses valores não puderam evitar o genocídio provocado pela guerra, da qual foram as principais vítimas, seja por associá-los diretamente ao
conflito. Agentes sociais fundamentais das transformações comportamentais
ocorridas tanto na vida intelectual, nos valores morais, na sexualidade, na política e na cultura, os jovens (e sua recém-inventada rebeldia) contribuíram
decisivamente para o nascimento da vida contemporânea.
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No campo da arte, a principal diferença entre o moderno e o contemporâneo talvez esteja na crise da ideia de autonomia da arte gestada ao longo
dos últimos  anos. Se confrontarmos o caráter altamente especializado das
vanguardas modernistas (especialização semelhante à de todas as atividades
profissionais modernas, das liberais às tecnológicas, científicas e industriais)
com o começo da contemporaneidade, é visível como esta última transborda o
campo específico que a modernidade havia construído, em busca da reaproximação e integração da arte com a própria vida.
Os artistas modernos estavam primeiramente interessados na pesquisa e
invenção formais, nos elementos exclusivos das linguagens da arte (cor, luz,
espaço, plano, volume, matéria, grafismo). Daí a força adquirida pela arte abstrata, ponto culminante do projeto de uma arte autônoma. Mas na passagem
dos anos  para os  esses valores dão lugar a uma brusca reorientação que
marca os primórdios da arte contemporânea.
Embora de modo renovado, os contemporâneos voltaram a se interessar por
imagens (pop art, nouveau réalisme, otra figuración, nova figuração etc.), isto é,
por meios favoráveis à tematização de questões políticas, identitárias, da sexualidade, do cotidiano. Voltaram-se, enfim, para a produção de narrativas que
só poderiam ser feitas fora do campo especializado no qual se concentraram
os modernistas desde o final do século XIX . Os interesses dos contemporâneos foram sendo reorientados pouco a pouco e nos últimos  anos migraram
da pesquisa formal autônoma para o conteúdo, da arte para a vida (o Grupo
Fluxus e as poéticas pós-neoconcretas de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia
Pape, por exemplo).
Essa diferença de foco determinou uma mudança da atitude teórico-intelectual em relação à arte. Impedidos de produzir suas análises a partir da clareza classificatória que a objetividade dos ismos modernistas e a generalidade
universal dos conceitos então permitiam, curadores, historiadores e estetas
contemporâneos buscam, hoje, sentidos específicos e pontuais para situações
singulares, fragmentárias já que fatalmente permeadas pela subjetividade tanto dos artistas, quanto do público e até mesmo pela do próprio teórico.
A reaproximação da arte com a vida teve, portanto, como consequência
a valorização do fragmento, de situações triviais, da esfera do vivido e da
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experiência. Ela contribuiu, também, para generalizar a apropriação de materiais, de objetos do circuito industrial do consumo e, finalmente, a utilização
de espaços cotidianos como a cidade, suas instituições, a natureza, o corpo, o
universo sonoro, o comportamento e o conceito, como suportes de situações
artísticas, num inequívoco transbordamento dos meios convencionais como a
pintura, o desenho e a escultura.
Essas transformações fazem com que no mundo contemporâneo a palavra e
o discurso não possam mais designar ou classificar a variedade da produção artística com o rigor especializado das teorias formalistas modernas. Claro está
que não mais podemos pensar a arte separada das questões mais candentes e
das carências do mundo hoje.
No entanto, o esforço de reaproximação com a vida empreendido por algumas gerações de artistas contemporâneos não tornou a arte de nossos dias
mais compreensível e comunicável do que aquela desenvolvida na era de sua
autonomia. Ao contrário, a arte hoje parece ter ainda maior dificuldade de
ser apreendida pelo público do que a produção moderna, e a demanda por
explicações parece ter aumentado consideravelmente, basta que consideremos
a positiva proliferação dos setores de educação das instituições culturais e museus em escala mundial.
Muitos podem ser os motivos dessa incomunicabilidade. Talvez o principal
deles decorra do fato que as obras e intervenções dos artistas sejam tão parecidas com a vida que o público não mais as reconheça como artísticas (estéticas).
Certamente, porém, a arte atual possui muitos sentidos, ainda que diversos
daqueles esperados por uma sensibilidade fundada em valores que não mais
correspondem à nova realidade.
A busca por explicações que fixem sentidos unívocos, fáceis de transmitir,
seguramente em nada contribui para a compreensão do público a respeito da
complexa rede de significações da arte e do mundo atuais. Não nos faltam critérios verbais, mas autoconfiança para navegarmos nas teias que diariamente
enredam nossa fragmentada subjetividade. Deixar que o público perceba que
arte e palavra pertencem a regimes de significação diferenciados é fundamental, uma vez que têm sido tão entrecruzadas nos dois últimos séculos que nos
habituamos a tomar a segunda como extensão natural da primeira.
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Uma curadoria deve procurar preservar a especificidade da experiência visual
sem reduzi-la ansiosamente (como querem muitos) à mera explicação. Isso
não quer dizer que arte e palavra não possam vir juntas num mesmo empreendimento, nem que mediadores preparados não possam interagir com o público,
mas devemos ter sempre em mente e passar para o público que uma mostra
de arte não pode explicitar (ou ilustrar) discursos verbais, nem estes podem
tampouco substituí-la. Nada mais perigoso, dirigista e autoritário que o didatismo a qualquer preço.
51
seis patas
Cadu
Como o pastor e o coiote, também o papel do mediador é
procurar “equilibrar o que é apreendido pela racionalidade
com aquilo que apenas o faro retém, a fim de desenvolver
uma espreita sofisticada, rica, inundada de tantos odores a
ponto de torná-la incerta novamente”.
É nesse equilíbrio instável, nessa espreita novamente incerta,
que pode acontecer um processo de aprendizagem.
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O coiote sai à noite para caçar, para abater as ovelhas do rebanho. Seu passeio delituoso ocorre sob o brilho secreto da lua. Um ritual violento, mas de beleza plástica
rara. Quando a morte é limpa, quando o canino trinca com precisão a garganta da
vítima derramando o mínimo de sangue pelo canto da mandíbula, o crime ganha
significado, crucialidade, e logo abre-se espetáculo no sacrifício. Mas o predador
não é bem-sucedido todas as vezes, e mais de uma vítima tomba até a manhã descer. Mata-se por alimento, mata-se por insurreição, não por crueldade. Portanto,
no dia seguinte, o pastor não amaldiçoa a besta por seu gestos. Executa sereno a
inspeção: conta os corpos, trata feridas, remenda a cerca por onde a fera invadiu.
Também aproveita para separar carne para si, para colher lã e couro.
É importante sabermos que quem detém as chaves do cativeiro do coiote é o
próprio pastor.
Em , os cineastas Werner Herzog e Dmitry Vasyukov viajaram para o coração da Sibéria com a intenção de acompanhar os preparativos para o inverno
do punhado de caçadores que habitam a vila de Bakhtia. Não há estradas ou
estações de trem. Chegar até a comunidade de pouco mais de  habitantes só
é possível de helicóptero. Barco apenas durante os meses de verão. O resultado
é o documentário Happy people – a year in the taiga, um filme tocante sobre a
bravura humana em meio à inclemência selvagem. O vilarejo parece parado no
tempo. Assim como os métodos de espreita e captura empregados pelos caçadores. Rifles, serras elétricas e snowmobiles são um dos poucos aparatos modernos
admitidos. Espólios do regime, quando a maior parte foi enviada na década de
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 para a região com a intenção de “caçar para o Estado”. O fim do socialismo
pouco alterou suas rotinas, pois logo no primeiro ano o contato com o governo
foi perdido e assim permanece até hoje.
Apesar da aparente agressividade da estação, o inverno inaugura a principal temporada de caça, cujos preparativos tomam o restante do ano. Cada
membro possui, para explorar, uma área de algumas centenas de quilômetros
quadrados divididas ao longo do rio que corta a região. Afastam-se da vila e
passam os meses na floresta em cabanas. Aves, mamíferos, peixes, qualquer
manifestação de vida tem inestimável valor para esses homens. Suas ferramentas são armadilhas, varas de pescar, armas de fogo, machados e alguns cães.
“Não se é um caçador sem um cão”, afirma um deles.
É impressionante como há paz no olhar desses homens. Autossuficientes,
contam apenas com suas habilidades e seu código de conduta disciplinar para
sobreviver. Como sugere o título do filme, apesar da aridez do ambiente, são
pessoas felizes. Em cada testemunho dado durante a película, não há um sinal de revolta, inconformismo. A dureza do cotidiano impressiona a nós citadinos; para esse seleto grupo, isto é apenas vida. Vida junto da paisagem
selvagem, que para se manter exige dedicação, força física e tenacidade. Não
parecem necessitar além daquilo que já têm. Tal simplicidade reverbera os versos cantarolados por Henry D. Thoreau enquanto cortava madeira para sua
cabana em meados de :
Os homens tanto conquistaram;
Vejam! Até asas tomaram –
Artes, ciências,
Mil exigências.
E apenas do sopro do vento
O corpo tem conhecimento.
Esse convívio secular entre morte e nascimento, surgimento e desaparecimento, relembra-me Perseu, caçador anterior, que ao tocar as águas do mar
com a cabeça da Medusa, que tudo transformava em pedra maciça, provocou o
1
54
THOREAU , H.D. Walden – a vida nos bosques. São Paulo: Global, , p. .
nascimento de Pégaso, o cavalo alado fluido como o vento, e a precipitação
dos corais, que enfeitam a cabeça das musas. Como uma criatura tão veloz e
extraordinária, e adornos dignos dos cachos das semideusas, puderam nascer
do sangue da Górgona? Porque de certa maneira essa é a dicotomia da vida.
Quando houver pouca mobilidade, abuso de cristalização, é preciso olhar indiretamente para o problema e extirpá-lo, devolvendo assim à vida o espaço
para o nascimento do novo. O pastor sabe disso, por isso mantém o coiote
próximo. Ele representa o lado “sombra” da arena tauromáquica, representa a
espontaneidade inconsequente da primeira vez. O pastor batizou seu companheiro de Caim.
Esse aprendizado, essa coreografia entre os dois, iniciou-se ainda na juventude, quando prevalece o ímpeto de lançar-se à vivência de situações de gozo
e punição, cujo objetivo maior é repetir, retornar à desobediência e endurecer
a carne com os golpes do castigo. Não há somente inconsequência aí, ambos
saíam em corridas na tentativa de saber do que eram feitos, perseguindo resistência, resignação, e para acostumarem-se com a solidão e perplexidade de
irmãos e irmãs. Vivências em que vestiam seu Prometeu particular e iniciaram
o pagamento do tributo por aquele que os inflou de calor, inquietação, astúcia e tolice. Pergunto-me se eram atraídos para o mito motivados apenas por
ânsia de conhecimento. Buscavam mesmo saber mais que pais e mestres ou
eram movidos pela nostalgia da contravenção, do questionamento da autoridade? Por todas essas razões creio. Há generosidade e solidariedade em seus
gestos, mas também o desejo de manter acesa a fogueira da inquisição infantil,
da desobediência. Brasas em que foram tantas vezes lançados, mas que hoje
aprenderam a andar sobre. Chamemos isso de forja.
Ao assistir a esses rituais fica mais fácil entender por que imitamos os movimentos, sons e gemidos selvagens. São tentativas de retorno a estados naturais
de paixão ainda não racionalizados, que visam ao aumento do grau de representação do jogo erótico da criação e, quem sabe, de sua intensidade. Realizamos essas cerimônias para sair de nós mesmos, para obter algum tipo de conciliação ou equilíbrio entre as forças que nos habitam. Observar a Natureza
é perceber que ela se encontra em contínuo devir, em simbiose desarmônica,
em dilaceração, e não há nada que indique que o mesmo não se aplique a nós.
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O caçador da taiga e o pastor do rebanho sabem que é necessário assumir
os devires animais sem medo. Precisamos deles para abordar o mundo instintivamente, tolerando manobras excêntricas, posturas nômades e a relação
direta com materiais, substâncias e energias que atuam de modo subliminar e
muitas vezes violento ao nosso redor. Devemos equilibrar o que é apreendido
pela racionalidade com aquilo que apenas o faro retém, a fim de desenvolver
uma espreita sofisticada, rica, inundada de tantos odores a ponto de torná-la
incerta novamente. Aceitando nossa condição de espreitadores reconhecemos
que não estamos sozinhos, que partilhamos, que coabitamos ao lado de outros
animais com quem devemos gerar zonas de interseções. Nossa vigia é para
proporcionar encontros, aproximar o pensamento do não pensamento, constituir e abandonar territórios, não somente predar.
A figura do pastor é o lado “sol” da arena. Ele representa o protetor, aquele
que evita caprichos. É a avaliação crítica sobre o desvario inaugural da experiência, aquele que verifica se o gesto é capaz de consequência construtiva após
abertura agressiva. Ele nos faz lembrar que somos bestas tenras, desejosas de
dominar as forças do mundo através da fagulha iluminadora da inteligência,
mas também pela associação de desobediências sagazes. Anarquia com disciplina é o que de melhor se espera de um autor.
Daí advém o poder da arte. Seu auxílio colossal a quem precisa fazê-la.
Pois sintetiza a possibilidade do convívio entre contrários. A união de duas
imagens aparentemente tão antagônicas, que no criador surgem apaziguadas.
A arte nos ajuda a aceitar as desfigurações da impermanência, ao mesmo
tempo em que oferece a oportunidade de se erigir um mundo onde podemos
permanecer e não perecer, imprimindo a ele igualmente caos e ordem. Uma
tentativa de ajuste, uma afinação que, como consequência, povoa o mundo de
objetos, conceitos e sentidos. Há uma lenda judaica que diz que Deus escreveu
as leis na tábua sagrada utilizando dois fogos, um branco e um negro. Com
o fogo negro foram escritas as palavras, com o fogo branco foram escritos os
espaços entre as letras, que possibilitaram a leitura das palavras. Durante sete
mil anos o homem lerá as palavras escritas em preto, mas nos próximos sete
mil anos o homem aprenderá a ler os espaços em branco. De um lado o mundo
inteligível, aparente; do outro uma linguagem amorfa e latente, aguardando
56
por manipulação. Devemos borrar esses limites, exercer superposições, conjunções, trocas entre dados da racionalidade e da imaginabilidade. A criação
nasce dessa natureza de atritos.
Mas é crucial ter em mente que essas resultantes são de arestas imprecisas,
não se ajustam diretamente umas às outras, mas ainda assim complementamse. E nunca oferecerão uma explicação, uma figuração satisfatória. Pois nascem em nossas mitologias pessoais, em planos de imanência particulares, pelos cortes do acaso. Ao alinhavarmos essas lacunas, aproximando as fendas,
estabelecemos um relevo interior de topografia complexa. Um elevado platô
brocado de sonho, misticismo e convívio sem reprovação com a infância. Se
confiarmos e mantivermos esses movimentos continuamente, seremos capazes
de atravessar as linhas da dor e da doçura, da vida e da morte, da razão e da
loucura em relativa paz, com o mínimo de controle, uma vez que sempre existirá a possibilidade do suspiro. Somos apenas mortais, aprendendo o instintivo ato da contração e da expansão, do mover e do repousar sob o silencioso
brilho peregrino da quadratura. O coiote batizou seu companheiro de Abel.
Cadu, Amanhecer no ano do cavalo
57
a arte e sua relação
com o espaço público
Agnaldo Farias
O texto a seguir reúne trechos da palestra que Agnaldo Farias
proferiu na abertura do V Encontro Técnico dos Polos da Rede
Arte na Escola, na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em
28 de abril de 1997. Logo na introdução, ele enfatizou que,
antes de ser crítico de arte, é professor. “Na verdade, meu
trabalho como crítico e curador é um desdobramento da
minha atividade como professor”, sublinhou, relatando um
pouco da experiência de quem já lecionou filosofia no segundo
grau e vem participando ativamente do dia a dia do curso de
arquitetura da USP/São Carlos, desde sua criação, em 1985.
Neste texto, Agnaldo deixa bem clara a importância da
informação para se ter novas dimensões de uma obra. Como
ele diz, “É preciso, portanto, sempre deixar espaço para a
outra leitura, aquela leitura que eu não possuo”.
Cabe ao mediador, sem esquecer que seu papel, como diz
Paulo Freire, não é “transferir conhecimento”, procurar
conhecer muito bem o que está exposto para fornecer ao
visitante a informação que for pertinente.
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Hoje produzimos conhecimento sobre arte, construímos escolas de arte e nos
organizamos em grupos, nas mais diversas comunidades deste país. Todo esse
processo significa que existe um conhecimento acumulado, uma série de práticas, conceitos e visões acerca de determinadas produções artísticas que cuidamos em transmitir para os alunos. Ao mesmo tempo, é curioso notar que
aquilo que mais interessa na arte é exatamente o que de incerteza, de estranhamento, ela pode nos oferecer. No campo da arte, isso não só é natural como é
o seu próprio motor e é um equívoco não encará-la desse modo.
Como professor, o tempo todo procuro transmitir ao aluno que a formulação que estou fazendo ou utilizando é uma formulação entre outras e não “A
formulação”. É preciso deixar aberto o espaço para uma outra leitura, a leitura
que eu não faço. É preciso esclarecer também que toda a produção artística,
assim como em qualquer conhecimento e objeto produzido pelo homem, está
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enredada na história. É necessário que o aluno saiba, ou ao menos seja consciente, das genealogias dos objetos estudados, aí incluído a genealogia dos modos de abordá-los. É preciso que ele considere os campos de referências de que
faz uso, pois quando comentamos, julgamos e falamos, fazemos isso de um
lugar teórico. Isso, dito de uma outra maneira, nada mais é do que aqueles dois
versos do Fernando Pessoa: “O que em mim sente está pensando” e “Não sou
eu quem descrevo, eu sou a tela e oculta mão colore alguém em mim”. Essas
ideias são fundamentais e nossos alunos devem tê-las em mente.
Isto posto, quero relatar uma experiência para chegar à questão do espaço
público e sua relação com a arte contemporânea. Na Documenta de Kassel,
em , havia uma obra de Anish Kapoor – Descendo para o limbo – que
estava chamando muito a atenção do público. Naquela altura, Kapoor era um
artista de  anos que ganhara a condição de estrela, afinal, dois anos antes
havia sido o representante oficial da Grã-Bretanha na Bienal de Veneza, onde
ganhou o Prêmio Duemila e, no ano seguinte, o prestigioso Prêmio Turner.
Kapoor, diga-se de passagem, praticamente estreou internacionalmente na
Bienal Internacional de São Paulo de , ponto de partida de sua fulgurante
carreira.
A obra estava na praça em frente ao Fridericianum, o museu de Kassel, centro da Documenta, e as pessoas, no dia da abertura da exposição, enfrentavam uma fila de uma hora e meia de duração sob o sol a pino do alto verão
germânico. O trabalho de Kapoor consistia num grande cubo branco, com as
dimensões de  ×  ×  metros, com uma porta em uma de suas faces. Quase
na minha vez, testemunhei a saída indignada de um sujeito bradando: “Uma
hora e meia para ver um tapete redondo no chão!” Pensei naquele momento,
entre o riso sem graça dos que estavam junto de mim: mais um que a arte
contemporânea perde...
A arte contemporânea, ou a mídia – imprensa e publicidade ligada à arte
contemporânea –, convida as pessoas, e as obras, em razão de sua complexidade, terminam por rechaçá-las. Os visitantes das exposições são induzidos a
pensar que passearão por espaços de entretenimento, pensam que estabelecerão uma relação amigável, coisa que a esmagadora maioria da arte contemporânea não é e não pretende ser, antes o contrário.
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Finalmente, entrei com um grupo de  a  pessoas naquele espaço tomado
por uma penumbra muito intensa. A discretíssima iluminação escorria lateralmente, efeito de uma fímbria linear e quadrilátera de luz que vazava pelo
intervalo entre o teto e as paredes. A luz era de fato muito pouca, sobretudo
para quem, como nós, estivesse ofuscado pelo sol intenso. Dentro da obra
experimentava-se a conhecida e curiosa sensação produzida pela escuridão, de
ficar como que tateando visualmente o ambiente. O olhar, todos sabemos, não
encontra escoras, não esbarra em limites, o que nos leva a concluir que o espaço é também uma invenção da luz. De fato, o espaço vai variando na medida
em que o corpo vai como que se arremessando para fora de si, conhecendo sua
extensão do espaço. Nesse processo o olho é quem abre alas.
Havia uma pessoa, um monitor, dentro da obra cuidando para que o grupo se
organizasse em círculo, em torno de algo que, em pouco tempo veríamos, estava
no centro. Aos nossos olhos gradativamente se acostumando, a sensação era que
havia algo mais escuro do que a própria escuridão do ambiente, algo circular:
o tal tapete redondo denunciado pelo visitante decepcionado. É bem verdade
que, num primeiro momento, esse tapete não funcionava, ou melhor, não se
assemelhava exatamente a um tapete, um plano sobre o chão. Uma zona, uma
região, ou um objeto, como parecia ser o caso, mais escuro que a escuridão
do ambiente, parece pulsar. Lembro-me de Joseph Conrad, em seu livro The
heart of darkness (Coração das trevas), quando escreve “as sombras se moviam
dentro da noite”. As sombras eram os estivadores negros. Uma linda e precisa
descrição de como se comportam as coisas escuras no interior da escuridão.
Voltando à obra de Kapoor, olhávamos para o chão com certa cautela porque não sabíamos o que era aquilo, paulatinamente conhecíamos o espaço e
nos localizávamos. Então, aquilo indiscernível que estava no chão, pulsando
lentamente como uma anêmona. À medida que o olhar foi se acostumando, a
forma, o objeto, não se sabia ao certo o que era, foi se acomodando como... um
tapete.
Antes de prosseguir convém assinalar que Kapoor costumava empregar pigmentos opacos em pó, obtendo na superfície aplicada uma qualidade peculiar,
uma textura aveludada muito diversa da superfície espelhada, reflexiva, em
que o olho desliza. Ao proceder desse modo, o artista propiciava uma espécie
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de visualidade táctil, diversa da ligeireza que habitualmente associamos à visão.
Pois bem, tão logo a forma enigmática foi assumindo a forma e a característica própria a um tapete, nós fomos nos acomodando, nos aproximando, até
quase o ponto de nos debruçarmos sobre ele. Quando então irrompeu um último e surpreendente detalhe: não se tratava de um tapete, mas de um buraco
circular cavado no chão. Um buraco cuja profundidade era inapreensível, a
não ser se se tivesse acesso ao projeto da obra.
Saí dali completamente incomodado. Um incomodo que durou alguns anos
e que só se acomodou depois que ele se traduziu na longa introdução da minha tese de doutorado. Sob meu ponto de vista, essa é a prova de um bom
trabalho de arte. Arte serve para incomodar. Mesmo quando nos enleva, isto
é, leva-nos com ela, é porque nos apresenta de um outro modo aquilo que já
nos era familiar, demonstrando sua infinitude. Por seu intermédio, revemos,
reconhecemos, remontamos e reiventamos o que já existia para nós. Posto que
se trata de uma relação, rever, reconhecer, remontar e reiventar algo significa
rever, reconhecer, remontar e reiventar a nós mesmos.
Nós, que somos da área de artes, muitas vezes ficamos apreensivos com
nossa insegurança diante de certos trabalhos artísticos, de nossa profunda ignorância diante deles. O pior é que, como somos identificados como aqueles
que sabem, sempre corremos o risco de alguém nos perguntar: “O que isso
quer dizer?” Não pergunte isso para mim, porque eu não sei rigorosamente
o que responder na hora. Ainda mais quando se está num acontecimento da
envergadura de uma Documenta de Kassel ou Bienal de São Paulo, verdadeiros hipermercados de problemas. Você tem  problemas colocados em cada
esquina, cada um deles uma equação de quatro incógnitas.
Voltando a obra de Kapoor, convém agora recuperarmos algumas de suas
referências. Um bom ponto de partida é a noção de escultura para Auguste
Rodin, noção que ele tensiona e transforma radicalmente, razão pela qual a
crítica norte-americana, Rosalind Krauss, começa o seu livro – Passages in
modern sculpture –, analisando sua obra. Mesmo uma rápida leitura sobre a
obra de Rodin, mais precisamente sua estatuária, leva-nos a concluir o modo
peculiar como ele trabalha, o modo como compreende a dimensão dupla da
escultura, um volume material que, em função de seu compromisso simbó62
lico, de seu vínculo com a ideia de monumento, atua como suporte de uma
mensagem; sua presença evoca, lembra, ao mesmo tempo em que engrandece,
uma passagem histórica, mítica, um fato, um homem. Essa definição, lembremos, repousa já na etimologia da palavra. Pois bem, em uma obra como Os
burgueses de Calais (), Rodin desloca ou soma ao respeito ao tema a materialidade crispada da obra, a diversidade de pontos de vista, a quase ausência
de pedestal, dispositivo que, como a moldura para a pintura, garantiria sua
colocação num espaço dierenciado.
Não é o caso de se estender nesse assunto, mas sabe-se que grande parte da
produção moderna fundava-se justamente na arte chamando a atenção para a
importância do suporte, elementos como corpo, matéria, cor, gesto, vontade
de formalização e discurso etc. Grande parte da arte do século XX significou
um rebaixamento do caráter metafórico da arte, seu objetivo histórico em remeter a algo fora dela, um tema, uma narrativa. Sob o ponto de vista da escultura, temos, após Rodin, o extraordinário legado de Medardo Rosso e Constantin Brancusi. No caso de Brancusi, cabe sublinhar a inteligência como ele
incorporou a base, o pedestal da escultura, tornando ele mesmo um elemento
constitutivo, em alguns casos convertendo-se em seu protagonista. O exemplo
mais grandioso produzido por Brancusi sobre o problema do pedestal é sua
Coluna sem fim, uma escultura/pedestal com  metros de altura, realizada
entre  e , em sua cidade natal, na Romênia.
Em seu Descendo para o limbo, Anish Kapoor procede de modo análogo
a Brancusi. Como ele faz uma escultura que é só pedestal. Por fora, é claro.
Aquilo que estava posicionado na praça era um pedestal, enorme, superlativo,
é verdade que vazio, sem nada por cima, mas ainda assim um pedestal. De
saída, essa configuração proposta pelo artista leva a pensarmos a posição da
arte dentro da sociedade/cidade contemporânea e, porque se trata de termos
interligados, em como a sociedade/cidade contemporânea, ao menos em sua
dimensão pública, não mais se ocupa em simbolizar nada, não tem valores
a repassar a seus cidadãos. Kapoor oferece um pedestal que está vazio, não
simboliza nada, não significa nada. Por outro lado, sua obra não se oferece
apenas como objeto ostensivamente visível, com o qual você tem uma relação
de exterioridade. O artista nos coloca dentro da obra, submergimos dentro
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dela. E, como se não bastasse, dentro há um buraco no chão, um buraco que
não se consegue saber até onde vai. Tratava-se, portanto, do negativo de um
monumento. Antes dele, o topo do pedestal era um limbo ocupado por símbolos, sua proposta em Kassel foi inversa, um convite para que o espectador
descesse em direção ao limbo.
Uma obra de arte como essa não é algo que se oferece por inteiro e menos
ainda de modo imediato, mas antes uma potência. Produz em nós sensações
que, na qualidade de bons enigmas, não são apreendidas pelos sentidos que,
por si só, não dão conta do problema. Só tive acesso às dimensões da obra de
Kapoor comprando o catálogo da exposição que trazia uma vista em corte do
trabalho, uma perspectiva axonométrica indicando que o buraco era uma esfera perfeita, como uma laranja cortada no topo. E quem garante que o artista
tenha se dado ao trabalho de efetivamente construir uma esfera? A dúvida
quanto a isso não impede o premeditado descompasso entre a construção física da obra e o seu projeto, prova de que a obra existia além da sua dimensão
concreta, mas também num outro plano, na qualidade de desenho impresso
nas páginas do catálogo.
Um outro trabalho artístico que eu gostaria de comentar é o personagem
Auggie Wren, criado por Paul Auster e interpretado por Harvey Keitel no
filme Cortina de fumaça (), dirigido por Wayne Wang. Um detalhe nesse
filme me interessou em particular: uma relação da arte com o cotidiano da
cidade, diametralmente oposta a de Kapoor e sua obra, troca a possibilidade
de ser um objeto intensamente visível para, em lugar disso, criar uma fresta no
meio da praça principal de Kassel, o coração da cidade, um lugar de recolhimento, isolamento, escuridão e silêncio, uma recusa ao espetáculo perpétuo
e diverso que toda cidade oferece. O caminho proposto por Paul Auster e
Wayne Wang é outro, e Auggie Wren nosso guia. Auggie é gerente de uma
tabacaria situada numa esquina do bairro do Brooklyn, em Nova York. Um de
seus fregueses constantes é um escritor em crise criativa, Paul Benjamin, personificado por William Hurt. Em um determinado momento, Paul aproxima-se de Auggie, jantam, conversam, vão estabelecendo laços de amizade até que
uma noite, na casa do Auggie, este resolve mostrar o singular e despretencioso
trabalho fotográfico que há anos, sem falhar um dia sequer, vem realizando.
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O método de Auggie é singelo e o resultado aparentemente monótono: todo o
dia, rigorosamente às  horas da manhã, ele coloca o tripé e a câmera fotográfica no mesmo lugar, na mesma posição, e bate uma foto.  resultado dessa obra
em processo interminável vem sendo acondicionado em uma imensa coleção
de álbuns fotográficos, todos eles idênticos, um dos quais Auggie, escolhendo
ao acaso o álbum relativo ao ano de , oferece a Paul para que ele possa
apreciar seu trabalho. O escritor fica folheando as páginas do espesso livro
de fotografias, seis fotos em cada página, frente e verso, detendo-se aqui e ali,
manifestando de quando em quando seu interesse, virando, virando, virando
as páginas..., quando é suavemente repreendido por um Auggie que lhe sugere
ir mais devagar, pois ele não estaria olhando com atenção. Paul argumenta
que, afinal, é tudo repetido, tudo mais ou menos a mesma coisa. Auggie insiste: “Está certo. Mais de  mil fotos do mesmo lugar na mesma hora. Não é
tudo igual, olhe com atenção.” Paul desacelera, prossegue numa cadência mais
lenta, deixando-se levar por cada uma das imagens, notando-lhes as nuances,
as modificações das luzes no correr dos dias, o que dizer dos meses. A tela
do cinema estampa as imagens das pessoas, sublinhadas pelos comentários,
quando então, surpresa!, Paul, o escritor em crise, depara-se com a imagem
de sua própria mulher, a mulher que ele amava e que morreu. Ele aponta para
o perfil de Ellen e, começando a chorar, é ternamente consolado pelo amigo.
A passagem é muito tocante, muito forte a surpresa de Paul mas o que me
interessa é destacar o projeto fotográfico de Auggie Wren, que ele chama de
projeto de uma vida, e consiste em atentar para os detalhes, para o universo
infindável e variado dos acontecimentos cotidianos. Gostaria de traçar um paralelo entre a atenção de Auggie para com a cidade e as derivas Situacionistas,
aquele grupo de artistas que gostavam de visitar cidades que não conheciam,
para então, armados de máquinas e gravadores e tudo mais que pudessem usar
na captação desse território imenso e inabarcável que é uma cidade, qualquer
que seja ela. Eles encaravam a cidade como um corpo polimórfico, onde a cada
minuto, a cada segundo, acontece de tudo.
O problema, segundo Auggie e os Situacionistas é que, quando andamos
em uma cidade, temos objetivos. Vamos de um ponto ao outro e não percebemos o que há no meio do caminho. Essa é a diferença da arte com relação ao
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resto, assim como da dança para a caminhada. Você caminha com o objetivo
de chegar a determinado ponto, enquanto que, na dança, é o corpo por ele só,
com tudo o que pode oferecer. Há uma certa ociosidade por princípio. Gosto
de citar o Millôr Fernandes que disse que o jogo de xadrez “é um jogo chinês
que aumenta a capacidade de jogar xadrez”. É o livre pensar, o saber e o fazer
desinteressados. É a capacidade de abstrair, de focar a atenção numa coisa que
se resolve ali mesmo, despojado da razão pragmática de quem contempla o
mundo com a intenção de extrair algo dele.
Num texto clássico de Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, Kublai Khan, o
imperador mongol que tinha um império tão vasto que ele não conseguia
percorrê-lo, nomeava embaixadores para atuarem como seus olhos. Eles visitavam as diversas cidades que compunham o império e voltavam para a corte
para contar ao Kublai como elas eram. Marco Polo era o embaixador preferido
de Kublai Khan porque as cidades que ele visitava eram as melhores, as mais
surpreendentes. Simples coincidência ou resultado da alta qualidade narrativa
do viajante italiano? Cabe, portanto, perguntar, quais cidades? As cidades que
ele visitava ou as que ele inventava em suas narrativas maravilhosas? Seriam
todas elas invenções ou cada cidade visitada era realmente espantosa ou ainda cada cidade era simultaneamente visitada e inventada? Num determinado
momento, talvez o ponto alto da narrativa, Kublai Khan manifesta sua dúvida
acerca da honestidade de Marco Polo, desconfia que ele sequer saísse da corte que, por ser imensa, garantiria seu anonimato. Indo além, afirma que as
cidades descritas por Marco Polo seriam uma mesma cidade, a única cidade
que ele efetivamente conhecia: Veneza. A hipótese de Calvino procede; afinal,
quantas cidades cabem dentro de uma cidade?
Isso me lembra aquela poesia do Jorge Luis Borges em que ele, tentando descrever Buenos Aires, conclui que sua cidade “é a outra rua, aquela que nunca
pisei [...] o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem meu, que ignoramos
e queremos.” Então são mesmo muitas as cidades que cabem dentro de uma
mesma e única cidade. Essa é a hipótese de Kublai Khan, e a resposta de Marco Polo, isto é, a resposta de Calvino é extraordinária: “Mas você há de convir,
ó poderoso Kublai, que uma coisa é a cidade e outra é o discurso que a descreve, mas entre ambas existe uma relação”. Quer dizer, o discurso que a descreve
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não se confunde com o objeto, tem relação com o objeto, mas não é igual a ele.
Nós vivemos nos esquecendo disso. A rigor, uma passagem como essa de Ítalo
Calvino deve ser pensada dentro dos marcos da modernidade, pois é nela que
se agudiza a consciência de que a arte é uma aventura de linguagem. Então é
essa força que a palavra tem, ou que uma boa tela pode ter, ou que uma boa
escultura pode ter. É disso que nós estamos falando, dessa capacidade que o
homem tem de apresentar coisas novas, colocá-las diante de si e dos outros.
Atualmente leciono no curso de Arquitetura da USP de São Carlos e quase
toda a informação que eu tenho é de segunda mão. Quase tudo é, no melhor
dos casos, informação impressa. Essa situação enseja que muitos estrangeiros
nos vejam como incapazes de criar, pois o que poderíamos fazer em termos de
arte se os nossos museus são precários, se não dispomos de obras exemplares
para contemplar e estudar. Segundo esse ponto de vista nossa produção artística jamais terá importância. Importância em relação a que, cabe perguntar?
Quero chamar a atenção para o fato de que existem outras referências, outras formas de se pensar a arte que não as definidas pelos cânones europeus,
por exemplo, a infinita e variada matéria que há no detalhe, como nos mostra
o diretor e o roteirista do filme comentado, Wayne Wang e Paul Auster, respectivamente.
Uma das piores falsas questões que se colocou neste país diz respeito ao que
é regional, nacional ou internacional. Toda a grande arte é regional, em última
análise, porque de onde é que o artista vai falar, se não do seu próprio lugar? E
o seu lugar pode ser Itirapina, desde que ele olhe para lá, porque Itirapina está
no mundo. Também é preciso entender que aquilo que é inventado na Europa,
ou na Índia, não pertence à Índia ou à Europa, pertence ao mundo, porque o
nosso mundo é o universo.
O que importa é despertar o aluno para essa riqueza que o mundo tem e
para a riqueza que pode ter a relação dele com o mundo. Nesse sentido, a
cidade é o maior exercício que nós temos. Na cidade há uma proliferação de
matérias. É uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva porque os
espaços falam de nós e para nós.
Quero encerrar com uma passagem de Guimarães Rosa, da qual eu gosto
muito. Miguilin é o inesquecível protagonista de Campo geral, uma novela
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inteira muito sonora, auditiva. Ao final, Miguilin está na estrada quando vêm
dois homens a cavalo, um deles pergunta algumas coisas. E pergunta também
por que o Miguilin aperta os olhos: “Você não é limpo de vista?” Miguilin não
entendia. Daí o sujeito tira os óculos e coloca em Miguilin: “Miguilim olhou,
nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente [ ... ] os grãozinhos de areia a pele da terra [ ... ] aqui, ali, meu Deus, tanta
coisa, tudo.” Esse homem que dá a visão a ele, esse homem “tudo podia”, ia
levá-lo para morar na cidade. E ele, com sua cabecinha aturdida, agarrado em
sua mãe, pergunta: “Mãe, é o mar?” E prossegue com a sentença da mais pura
beleza: “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?”
A arte talvez seja o último recurso contra a opacidade do mundo. E está rigorosamente nas mãos de quem trabalha com educação fazer com que as pessoas
que estão se formando, especialmente as crianças, percebam a infinidade de
coisas que compõem esse mundo. Entendê-lo como um elenco de imagens
gloriosas que a nossa expressão produziu é pouco. O mundo é mais do que
isso. E mesmo que tenhamos à mão instrumentos e materiais precários, não
importa. E mesmo dispondo de recursos de qualidade, não importa, devemos
conjugar nossos esforços nas salas de aula com uma visita àquilo que é próximo, o que está do lado de fora, fonte inesgotável para o trabalho dos sentidos
e também da evocação, da imaginação, da nostalgia, da alegria, da memória.
Quando qualquer um de vocês pedir a um aluno que ele olhe para o mundo,
que escolha um fragmento de sua cidade, ele vai escolher e, ao fazer isso, estará
se escolhendo, estará encontrando-se no mundo.
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Conversa de anna Bella Geiger
e maria tornaghi
(fevereiro de )
Maria Tornaghi: Anna Bella, em um texto publicado no livro Gravura brasileira
hoje – depoimentos  você que diz que “a arte não é apenas uma questão de intuição
e vocação. Existe a grande história da criação por trás, e é preciso conhecer este
pensamento, senão a pessoa se torna, no mínimo, ingênua, ao pensar que está
criando algo de muito original e no entanto algumas das questões já foram anteriormente reveladas por artistas conhecidos”. Você poderia falar mais sobre isso?
Uma visita transforma mediador e visitante em aprendizes
de arte. É importante que eles se deem conta que existe uma
Grande História da Criação alicerçando o que estão vendo.
“Porém, não de forma enciclopédica, mas “iniciaticamente”.
É um processo complexo mesmo. A sua informação visual
precisará ir se sofisticando e alimentando uma espécie de
arquivo pessoal de memória”.
Aprender leva tempo.
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Anna Bella Geiger: Na minha trajetória profissional, e talvez por estar também
ligada ao ensino da arte há tanto tempo, creio que não basta você ter talento ou,
quando jovem, possa ter sentido alguma vocação, como foi no meu começo.
Na arte não se trata apenas de intuição ou vocação. A formação de um artista
passa obrigatoriamente por um conhecimento seu do que existiu e vem existindo até agora na Grande História da Criação. Porém, não de forma enciclopédica,
mas “iniciaticamente”. É um processo complexo mesmo.
A sua informação visual precisará ir se sofisticando e alimentando uma espécie de arquivo de memória pessoal. Então, no seu processo de elaboração e de
criação não caberá mais espaço para clichés ou ideias apropriadas das anteriormente originais em suas épocas.
Porém a limitação individual de cada um produz resultados diversos, como
em Leonardo da Vinci, Goya, Van Gogh, Picasso, Winslow Homer e uns outros
tantos. FERREIRA , Heloisa Pires (coord.). Gravura brasileira hoje: depoimentos, vol. III . Rio de Janeiro:
Oficina de Gravura-Sesc/Tijuca, .
1
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Gosto não se discute
Eduardo Coimbra
“Isso é arte?”, “Isso é horrível!” – reage o visitante ao que
não está familiarizado.
São comentários semelhantes aos citados por Coimbra
neste texto em que pondera que “A pertinência ou não
de um trabalho de arte não se mede isoladamente, nem
à primeira vista; ele faz parte de um todo que exige certo
cuidado para ser conhecido”.
Uma função do mediador é levar o visitante inicialmente
refratário, respeitando seu indiscutível gosto, a compreender
e se aprofundar nas questões expostas pela obra.
72
É comum ouvirmos de expoentes da nossa mídia cultural – jornalistas, cronistas, cineastas, músicos, comentaristas e até escritores – interjeições como: “A
arte é beleza!”, “Não precisamos da arte para nos lembrar que o mundo é horrível” (Arnaldo Jabor e Nelson Motta, respectivamente, no programa Manhattan Connection, GNT , dia  de abril), “Instalações? Só conheço as elétricas e
hidráulicas” ou até “A arte acabou!” (A. Jabor no mesmo programa). O incrível
nos comentários desses cavaleiros do apocalipse é a demonstração de um total
desconhecimento, por vezes transformado em ira, das questões que motivam a
produção de arte contemporânea.
A letargia com que grande parte da inteligência brasileira se relaciona com
os avanços da pesquisa artística, ignorando ou até retaliando a produção dos
próprios artistas brasileiros contemporâneos, demonstra ainda uma arraigada ligação com uma tradição elitista e seu perfume aristocrático. Conhecer e apreciar
um trabalho de arte é bem mais que o exercício do gosto pessoal. Arte não tem
de agradar aos sentidos, nem enfeitar ambientes, nem florear discursos. Arte é
um modo de pensamento e de conhecimento de uma civilização.
A obra de arte contemporânea não se limita mais ao quadro ou à escultura
que podem ser posicionados como adereços de decoração; ela agora incorpora o
espectador e o espaço real tornando-os elementos da mesma experiência estética.
Também não há mais os meios específicos (pintura, escultura, desenho, gravura
ou música, texto, vídeo e cinema) como parâmetros excludentes para avaliações
de qualidade: a obra de arte é uma totalidade de proposições, e é a estratégia do
artista que vai selecionar os meios e direcionar sua realização.
73
Portanto, dizemos que o que importa é compreender e se aprofundar nas
questões expostas pela obra de um artista. É necessário identificar as possibilidades de sua linguagem e os desdobramentos de seu processo de trabalho.
A pertinência ou não de um trabalho de arte não se mede isoladamente, nem à
primeira vista; ele faz parte de um todo que exige certo cuidado para ser conhecido. No embate com a obra de arte, várias polêmicas ganham corpo e confrontos
se tornam necessários, uma coisa, porém, é certa: gosto não se discute.
74
75
escritos de artistas
Glória Ferreira
Textos de artistas são, como enfatiza Glória, “fundamentais
tanto para compreendermos as suas poéticas quanto o contexto
em que operam e o estado da arte. Seus princípios derivam do
mesmo processo imaginário que dá origem aos trabalhos.”
É longo o caminho dos escritos de artistas em suas diversas modalidades e épocas históricas. Dos tratados teóricos aos textos atuais, sobretudo a partir da década de , a grande diferença é a reflexão teórica tornar-se interdependente à
gênese da obra, não como pré-texto como os dos artistas modernos, mas solidários aos questionamentos da arte. De Alberti, que terminava seu livro Da pintura, em , afirmando falar na qualidade de pintor e ter a satisfação “de pensar
que fomos os primeiros a conquistar a glória de ousar escrever sobre esta arte
tão sutil e tão nobre”, aos de Robert Smithson ou de Hélio Oiticica ou aos mais
recentes, são textos fundamentais tanto para compreendermos as suas poéticas
quanto o contexto em que operam e o estado da arte. Seus princípios derivam
do mesmo processo imaginário que dá origem aos trabalhos.
Na arte contemporânea tem sido crescente a intelectualização dos artistas,
por vezes, universitária ou por diferentes outros meios, capacitando-os a sustentar suas opções poéticas. Ou como assinalava Duchamp, em texto de ,
“L’artiste doit-il aller à l’université?”, no qual enfatizava a importância de o artista
se informar e se manter ao corrente do soi-disant “progresso material cotidiano”,
pois o artista hoje “é livre e pode impor a própria estética”.
Na tradicional ideia do silêncio dos artistas, as obras falando por elas mesmas, vê-se um trânsito, como assinala Ricardo Basbaum, em diferentes ações
de que se ocupam, entre elas, críticos, curadores e professores etc. O contexto
é também de uma profunda crise da crítica de arte com a perda dos seus meios
Conhecendo a palavra do artista, o mediador exerce melhor
sua função de aproximar o público do universo de sua obra.
76
1
DUCHAMP , Marcel. “L’Artiste doit-il aller à l’université?”. In: Duchamp du signe. Paris: Flammarion,
.
77
de comunicação dirigidos ao grande público, voltada, hoje, sobretudo, para os
textos de catálogo – dependentes das conversas com os próprios artistas. Os
conflitos entre os críticos e os artistas datam desde o surgimento da crítica no
século XVII , quando a arte passa a ser cada vez mais pública com a instauração
dos Salões. Conflitos que têm se voltado, especialmente, para os critérios e para
a avaliação dos curadores.
A pluralidade e a importância desses escritos, em múltiplas publicações, assinalam um deslocamento na definição, intenção ou direção da arte. Representam
não somente a tomada da palavra como também um contexto para o trabalho,
o que é incontornável em qualquer aproximação com a produção artística e sua
análise crítica.
78
79
Leonilson
“[ ... ] Os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma verdade diretamente, mas mostram uma visão aberta. Eu nunca me conformei com um lado
único das coisas [ ... ].”
Leonilson ( Fortaleza –  São Paulo) em entrevista a Lisette Lagnado.
(LAGNADO , Lisette. Leonilson – São tantas as verdades. São Paulo: DBA , ,
p. -).
Partir do ponto de vista que toda a obra de arte é aberta
a múltiplos olhares e percepções é um pressuposto
fundamental para a prática da mediação. Assim, o perceber
e o refletir de cada um promovem, na mediação, trocas,
discussões e construção de conhecimento sobre a exposição.
80
81
Linha do tempo: quando
os predicados nos escapam
Marcelo Campos
conforto”, nos coloque em dúvida, que provoque o desejo de
Em abril de , a artista Rosângela Rennó ocupou uma das salas da Casa Daros, instituição de arte com sede em Zurique, destinada à “criação e manutenção”
de uma coleção de arte contemporânea da América Latina.1 A exposição denominou-se “Projeto Educandaros -”. Aproveitando-se dos arquivos
da instituição, tanto quanto atuando em trabalho de campo com seus antigos
ocupantes, Rennó se apropriou de mobiliários, objetos, arquivos que tanto nos
situam em relação à trajetória da ocupação institucional – já que a Casa Daros
ocupa, no bairro de Botafogo, um casarão neoclássico do século XIX que fora,
em tempos pretéritos, colégio e educandário para moças – quanto nos estimula
a percepção afetiva das estudantes que foram educadas naqueles colégios. O projeto de Rosângela Rennó teve longa duração, pois desde a obra para a construção
do espaço cultural, de  a , a artista solicitou o acompanhamento das
reformas pelo registro fotográfico de Tiago Barros.
Rosângela Rennó nos oferecera, com esse trabalho, a possibilidade de recuarmos e avançarmos no tempo, funcionando como uma espécie de mediadora
entre momentos distintos. Criou, como artista, o que muitos mediadores de
exposição fazem com o público dos museus e das instituições pelo mundo, uma
contextualização histórica dos objetos e das imagens apresentados. Rennó, sem
assumir um tom explicativo, indicara, em diagramas e afinidades espaciais, uma
leitura da “história linear”, entre aspas, da instituição. Em outra medida, também
aprender, de conhecer mais.
1
“Com a obra de Rosângela Rennó, ficamos em suspensão.
Criamos sensações latentes de espanto”.
Esse desejável estado de suspensão e essa sensação latente
de espanto são elementos preciosos se queremos uma
medição que em lugar de domesticar nos faça “sair de um
82
Disponível em www.casadaros.net.
83
percebemos a função curatorial ser substituída, pois a própria condição artística
dispensara a distinção entre objetos e ocupação espacial. O desenho do projeto
era, por si, a obra a ser apresentada que incluía relatos, artefatos, fotografias, etc.
A linha do tempo de Rennó se inicia em , ano de inauguração de uma
casa para “órfãs e desvalidas” na ladeira da Misericórdia, Centro da Cidade do
Rio de Janeiro, passando, depois, pelos bairros de Laranjeiras e São Cristóvão.
Em , D. Pedro II institui um decreto que determina a fundação do Recolhimento de Santa Thereza que, depois, a pedido das próprias alunas, em ,
passa a se chamar educandário Santa Teresa. No entremeio, , o educandário passa a dividir o espaço com um colégio misto, de nome Anglo-Americano,
onde conviviam, lado a lado, as regras instituídas para as moças do educandário
e uma escola livre.
Ali, na exposição, víamos passar, a partir das coletas de Rennó, o colonialismo de uma instituição de ensino destinada às moças. Ensinando-as a serem
moças, numa repetição exaustiva do gênero: bordar, pintar, rezar, confessar-se.
Sabemos, como nos informa Judith Butler, que o “gênero não é um fato”, mas,
sim, atos encenados em “ficções punitivas”, muitas vezes.2 O educandário Santa
Teresa servira, então, para sublinhar esses propósitos. A estratigrafia do prédio,
os porões, o apagamento de algumas memórias, o avivamento de outras tantas colocam Rennó na tarefa de mediar essa complexa história. A mediação é
a capacidade de trânsito entre estratos sociais, grupos culturais e religiosos. A
exposição de Rennó na Casa Daros nos faz refletir sobre essa condição. Como se
posiciona um artista diante da memória alheia? Como transformar uma história
tão aderente em obra de arte?
A artista se situa entre os papéis de curadora, arquivista, documentarista, mediadora. Mas não cumpre bem nenhum deles, já que ativa o lugar da arte. Se
pensarmos em documentos, faltam-nos informações, registros, há lacunas entre
as datas. Ao tentarmos imaginá-la arquivando, ela corta mobiliários, escolhe
uma única página de um diário, lacra todas as demais. Não há como ler o que
está escrito ou mesmo averiguar a real importância da escolha por um único
exemplar. Como mediadora, quais conceitos, quais predicados serão elencados
para entendermos a linha do tempo, o esgarçado de uma história? E aqui, Rennó
confirma taxativamente seu papel como artista ao afirmar, “meu trabalho não é
panfletário, nunca fecho uma história, nem escolho um dos lados como conclusão”. 3 A arte, aqui, reitera suas ambivalências.
Ao mesmo tempo, colocamo-nos como leitores de um folhetim. Jesús Martin-Barbero nos informa sobre a importância dos folhetins para a compreensão
de uma literatura que dialogava com um novo meio de comunicação: os jornais.
Rennó nos atiça a curiosidade jornalística, folhetinesca. Queremos ler os diários,
vemos as moças se exercitando, perscrutamos segredos e desejos. O folhetim
traz para primeiro plano o que antes se destinava ao “rodapé” das páginas, “onde
iam parar as variedades, as críticas literárias, as resenhas teatrais, junto com
anúncios e receitas culinárias”. 4 Um lugar que coadunava o mundo feminino
(receitas) e a arte (teatro e literatura). Ali, os grandes personagens dão lugar a
histórias comezinhas. E Rennó, no Projeto Educandaros, age, justamente, mesclando memórias de mulheres comuns, anônimas, com reflexões mais amplas.
Mas estamos num espaço museológico, destinado a obras de arte. André Malraux nos explicita a condição do museu como local de guardar, arquivar e como
escola, ensino. Ao mesmo tempo, no museu, o que antes era objeto de cultura,
civilização passa a ganhar status de arte, um retrato se torna a pintura de Velásquez. Mas a arte contemporânea cria outros desafios para o museu. Hans
Belting nos informa que “o museu no qual é conduzida a discussão em torno da
compreensão de si dos artistas e dos especialistas em arte é debatido hoje como
instituição até mesmo na opinião pública”. 5 A arte contemporânea estimulou,
nas instituições de exposição, a encenação como tarefa e o museu tornou-se “lugar de fantasia” e “lugar de formação”. 6
3
Declaração coletada em conversa com a artista na visita à exposição, em  de março de .
4
MARTIN-BARBERO , Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janei-
ro: UFRJ , , p. .
5
2
BUTLER , Judith. Actos performativos e constituição de gêneros. In: MACEDO , Ana Gabriela e
RAYNER , Francesca. Gênero, cultura visual e performance: antologia critica. Minho: Húmus, , p. .
84
BELTING , Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, ,
p. .

Idem , p .  .
85
Com a obra de Rosângela Rennó, ficamos em suspensão. Criamos sensações
latentes de espanto: Que interessante ver a história deste prédio! Belas inscrições nas paredes! Havia capelas nestas salas! As meninas-alunas saíam apenas
uma vez por ano! Eram obrigadas a se confessar! As relações interétnicas e religiosas não eram respeitadas em sua pluralidade! Uma escola eminentemente de
brancos!
Pronto, saímos de um conforto, uma possível explicação histórica, uma mediação, um cruzamento entre mundos e estamos em dúvida, sem saber, ao certo, a
que lado atribuir valores, conceitos sociais e políticos. Vale a pena exibir um passado colonialista, escravocrata? As instituições de ensino, como nos alertara Jack
Goody, são manobras de domesticação.7 A alfabetização serviu para domesticar
o “pensamento selvagem”. Instituíram-se regras morais, sexuais, criaram-se docilidades nos corpos, nos termos de Foucault, e não se estimularam a escolha e a
convivência. De outro modo, acessar o lado douto da vida é poder ter armas para
lutar por supostas condições de igualdade, entre homens e mulheres, negros e
brancos. E a arte faz o que com isso?
O trabalho de Rosângela Rennó, entre tantos outros, nos faz perceber que
vivemos, hoje, um grande desafio aos meandros da mediação cultural nos espaços de arte contemporânea. Mais além da mediação de exposições, daquela que
estimula os visitantes a conhecer, enveredar um pouco mais pela poética dos
artistas, hoje, os próprios trabalhos de arte habitam esse interregno entre a arte,
a “experiência de lugar em que se encontram as peças corpóreas” e a “experiência
de tempo que elas derivam e na qual as peças são comunicadas”. 8 Chegamos ao
museu e o trabalho pressupõe a participação da comunidade e do espectador,
abrimos e fechamos objetos, deitamos em redes, somos convidados a desenhar,
vemos grupos de crianças carentes em oficinas fotográficas, tomamos banho de
piscina, participamos de abaixo-assinados, partilhamos segredos. E tudo se inscreve como arte. Há, sem dúvida, uma troca intensa de funções e esferas, entre
formação e teatralidade, ficções e ativismos, inclusão social e estratégias de distinção, denúncias e memórias afetivas. Artistas como Rosângela Rennó podem,
7
GOODY , Jack. Domesticação do pensamento selvagem, Lisboa: Presença, .
8
BELTING , Hans. O fim da história da arte. Op. cit., p. .
86
então, orquestrar essas ambivalências, mas não resolvê-las, já que a arte continua
como instância suspensa, incorporal, habitando documentos que podem, a qualquer instante, ser repatriados por quem os utilizará como patrimônio privado
ou público ou, simplesmente, os guardará em seus arquivos pessoais.
87
metamorfoses da vida
e da visibilidade no
mundo contemporâneo
Paulo Sergio Duarte
Este artigo foi publicado originalmente em Artes visuais no
Brasil: registros de um ciclo de palestras. Organização: Sílvia
Borges. Niterói: Universidade Livre de Niterói / Niterói Livros,
2012. Agradeço a Sílvia Borges e a Cláudio Valério Teixeira que
o provocaram. Agora segue numa versão ampliada, para uma
publicação da Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro – Parque
Lage, a convite de Maria Tornaghi. Meu amigo José Fernando
Guaranys, a quem o artigo foi originalmente dedicado, faleceu em
16 de fevereiro de 2014. Esta reedição ampliada vai à sua memória.
Conhecer arte pode ser muito prazeroso, mas nada mais
longe desse prazer do que “gritos de participantes de obras
interativas, crianças correndo e outras peripécias não
coibidas”. Certamente essas situações “não colaboram para o
desenvolvimento de um conhecimento artístico”.
No momento em que a “arte fica sendo a hora do recreio,
vista como uma atividade de puro entretenimento dissociada
de seus aspectos cognitivos mais interessantes”, em que é
frequentemente confundida com entretenimento, o texto de
Paulo Sergio Duarte é fundamental.
88
Que coisa é essa?
Desculpem-me se não abordo detalhes da arte contemporânea e me preocupo
aqui mais com o pano de fundo histórico que permitiu o advento disso que
chamamos arte contemporânea. Os regimes de visibilidade e nossas percepções vêm sendo alterados. Muitos jovens estão longe de experimentar aquilo
a que chamamos de “moderno”. Uma pesquisa na Inglaterra indagou quantos jovens de até  anos tinham colocado um CD no player no último ano.
A maioria nunca tinha tido essa experiência. Só conheciam músicas baixadas
da internet em MP . São muitas as transformações bem além do comportamento. Quem só conhece música nos padrões MP tem uma percepção auditiva alterada, perde uma experiência espacial e de profundidade da música,
além de muitos harmônicos, dependendo de seu repertório. Theodor Adorno,
89
um dos primeiros teóricos da indústria cultural, e muito reticente quanto a
seus progressos, reconheceu o progresso da alta-fidelidade e da estereofonia,
em , na possibilidade de restituir, no ambiente doméstico, condições de
escuta próximas da experiência da audição ao vivo. Com os fones de ouvido
muito precários e o MP toda essa experiência se perde. Imaginem gerações
cujo consumo ótico foi inteiramente dominado pelos tubos de raios catódicos
da televisão, agora pelas telas de cristal líquido, plasma e LED . Seu regime
de percepção ótico já estava alterado quando se altera o regime de percepção
auditivo.
Estamos diante de um novo olhar, conformado pela velocidade e interatividade dos videogames e que certamente vai gerar obras de arte para as quais não
estamos preparados para perceber seus conteúdos poéticos. Mas não devemos
subestimar a presença da herança moderna no mundo contemporâneo.
São muitas as transformações que ocorreram desde que, em meados da
década de , começou a ser constatada uma reviravolta no campo das artes visuais que indicaria, se não uma ruptura, ao menos uma disjunção com
o campo da grande arte do século XX : aquele que tinha se constituído de
Cézanne e o cubismo até o expressionismo abstrato norte-americano. Eram
dados claros do fim de uma era sem que necessariamente pudessem ser detectadas com clareza as características do novo território em formação.
Da falta de uma imagem bem focada sobre a nova situação, derivam suas
designações: “pós-modernidade”, “hipermodernidade”, “contemporaneidade” e
por aí vai. “Pós-modernidade” e “hipermodernidade” nomeiam o presente em
relação ao passado recente que já se sabe razoavelmente o que foi: a modernidade. Contemporaneidade tampouco vai designar as características de uma
época ou de um momento histórico: contemporaneidade sempre existiu de
Lascaux e Altamira até hoje. Na passagem do século XIII ao XIV , Giotto foi
contemporâneo de Dante e vice-versa. Todas as épocas são contemporâneas
de si mesmas, não importam as diferenças e os paradoxos que isso implique.
No Brasil o período dos anos - foi chamado de “contemporaneidade do
não coetâneo” ou, em termos redundantes, “a contemporaneidade do não contemporâneo” para explicar a presença de relações de produção pré-capitalistas
ao lado de relações de capitalismo avançado quando, se essas contradições
90
efetivamente existissem, diziam respeito à complexidade de qualquer contemporaneidade. Contemporaneidade deveria designar um tempo presente, qualquer presente.
O que sabemos, a partir dessas designações, é que estamos procurando qual
é esse presente em que nos encontramos. Temos que tentar um desenho desse
novo campo antes de entrarmos nos meandros das artes visuais. Que coisa é
essa? Por enquanto ainda não temos uma palavra mais precisa para nomear
essa coisa.
O conhecimento de uma cultura sem progresso
Nós, que estamos preocupados com o estudo da arte, temos mais um fator
de adversidade a enfrentar: a égide do progresso da ciência e da técnica que
domina nosso tempo. Essa noção de progresso, absolutamente legítima para
o campo do conhecimento científico e tecnológico, dominou o senso comum
desde o século XIX até os dias de hoje de tal forma que se tornou o próprio
sinônimo de conhecimento. Ela se infiltrou tão fortemente em todos os meandros da vida contemporânea que, para usar os termos de Jurgen Habermas,
se tornou uma ideologia. Esqueceu-se de formas de conhecimento arcaicas,
como o mágico e o religioso, aquelas que só se entregam pela adesão na crença,
na fé, nos dogmas para ter acesso à revelação, como, sobretudo, foi descartada
a possibilidade da existência de um conhecimento especificamente artístico.
Um conhecimento sempre construído a posteriori, sem hipóteses, a partir da
experiência sensível e intelectual da obra.
Giulio Carlo Argan, um dos maiores historiadores da arte do século XX ,
no seu único texto puramente teórico apresenta com clareza as características
da cultura artística tão diferentes daquelas da cultura científica e tecnológica.
Veja como Argan apresenta o problema do progresso em arte:
A partir da pesquisa de uma metodologia especial da historiografia artística que, partindo da escola vienense do século passado, se desenvolveu até
Panofsky e mais além, foi ficando cada vez mais claro que a história da arte
é, sim, história da cultura, mas de uma cultura sui generis, estruturada e dirigida pelo empenho operativo de um trabalho a ser executado de maneira a
91
ter valor de exemplar; e que essa cultura, pela própria finalidade imanente do
valor a ser alcançado através desse trabalho, é refratária àquela linearidade
ascendente do progresso que, na política, é invocada para justificar, ou pelo
menos, para tornar tolerável a autoritária presença de um guia ou de um
chefe. Viu-se também que essa cultura sem progresso, pela qual toda experiência passada permanecia disponível e aproveitável no presente da obra que
se faz, qualificava-se independente do esquematismo lógico, da identidade
fortemente limitativa do real-racional hegeliano. Sua composição heterogênea, em que vinham à tona como ainda vitais tantos motivos que a cultura
oficial dava por superados e irrecuperáveis, e seus procedimentos destituídos
de consequencialidade lógica revelavam uma profundidade, uma extensão,
uma riqueza desconhecidas da cultura mais diretamente relacionada com as
estruturas ferrenhas da autoridade. Era uma cultura igualmente aberta às
antecipações e aos retornos, às divagações e às ligações a distância, cheia de
sedimentos e de canalizações secretas, como a que Foucault definiu recentemente com o termo epistéme.
Um dos mais instigantes pensadores atuais, o filósofo italiano Giorgio
Agamben, realiza, a meu ver, do modo mais bem-sucedido possível esse esforço de designar o que é o contemporâneo. Aqui, como em Argan, desaparece
o domínio do progresso. Na passagem a seguir, privilegia o campo estético e,
particularmente, o da história da literatura e da arte como capazes de perceber
o presente:
Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas
parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a
chave do moderno está escondida no imemorial e pré-histórico. Assim, o
mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar, aos primórdios; a
vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse
ARGAN , Giulio Carlo. “A história da arte”. In: A história da arte como história da cidade. São Paulo:
Martins Fontes, , p. . (Os grifos são meus P.S.D.).
1
92
sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado
remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso
viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem
jamais poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de
não vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a
sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida
a esse não vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa,
nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.
O desenho do novo capitalismo: suas forças e vetores
Lidamos com uma “cultura sem progresso”. Temos de procurar as transformações no mundo para saber com o que estamos lidando, o que é essa coisa chamada de mundo contemporâneo. Temos muitas indicações no mundo para
essas transformações que ocorrem há pelo menos sete décadas – desde o segundo pós-guerra – e que modificam a natureza do capitalismo gerado pela
Revolução Industrial no século XIX . Os valores não podem mais permanecer
os mesmos daqueles herdados do humanismo iluminista do século XVIII depois da experiência do Holocausto e das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Antes havia a crença no progresso da ciência e da técnica como um benefício
para toda a humanidade. Depois desses eventos históricos inéditos, o terror e
o medo passam, também, a ser parte do resultado do progresso da ciência e da
técnica. A esse abalo ético nos fundamentos do progresso, nas últimas quatro
décadas acrescenta-se a descoberta científica das consequências ambientais de
um modelo de sociedade de consumo, fundado no desenvolvimento adotado
de um ponto de vista puramente econômico, que afeta agora não apenas parcelas mais pobres da população humana, mas a vida no planeta.
Os efeitos do progresso da ciência e da técnica em intensa interação com os
interesses políticos, ou em termos marxistas não mais utilizados, o desenvolvi2 AGAMBEN , Giorgio. O que é o contemporâneo? In: O que é o contemporâneo e outros Ensaios. Tradução
de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC : Argos-Unochapecó, , p. .
93
mento das forças produtivas, não cessam. A Guerra Fria advinda da nova conjuntura política do segundo pós-guerra impulsiona em ambos os lados fortes
investimentos em ciência e tecnologia; primeiro para a corrida armamentista,
logo depois, sem excluir a primeira, para a corrida espacial. As consequências
desses investimentos são muito diferentes em cada um dos lados. Enquanto
no capitalismo de Estado da União Soviética e de seus dependentes esses investimentos permanecem restritos ao campo militar, no capitalismo de mercado dos Estados Unidos e do Ocidente esses investimentos permitem uma
grande sinergia positiva com o mercado civil. Tão logo entra no mercado uma
conquista que não se justifique como segredo militar, as pesquisas independentes civis igualmente se abastecem desses conhecimentos e conquistas. Os
resultados ficam claros – alimentados pelos mesmos sonhos de consumo, de
um lado vê-se uma sociedade afluente com uso intensivo do transporte individual; do outro, formam-se filas para compras dos produtos mais elementares
como prosaicos eletrodomésticos.
Sob essa superfície visível opera-se uma das maiores mudanças desses novos
tempos. O progresso da ciência e da técnica dirigido para a corrida armamentista e para a corrida espacial permitiu um formidável avanço nas pesquisas
de novos materiais mais resistentes e mais leves e, sobretudo, da indústria eletroeletrônica. Os avanços da ciência da computação no Ocidente rapidamente
se civilizam, saem da órbita militar e entram no mercado, enquanto no Leste
socialista permanecem fechados nos limites dos segredos de Estado. As conquistas ocidentais, a partir da década de , promovem a mais formidável
transferência da produção de valor do trabalho manual convencional – aquele
cuja exploração havia provocado uma das obras importantes do século XIX :
O capital de Karl Marx – para o trabalho intelectual. Cresce enormemente o
valor agregado de trabalho intelectual nos produtos da nova indústria. A própria esfera da produção é revolucionada com a introdução da automação robotizada. Mesmo numa fábrica de caminhões e automóveis, numa indústria de
produtos convencionais, parte significativa da mão de obra mais bem remunerada não são trabalhadores manuais, mas operadores de máquinas alfanuméricas – os robôs. Na indústria eletroeletrônica, a fração do trabalho intelectual
é muito superior à do trabalho convencional e na indústria de software, com a
94
possibilidade da transmissão do produto a distância pelas redes, chega quase à
totalidade do valor do produto. O horizonte político do século XIX e da primeira metade do século XX que se orientava do ponto de vista do proletariado
urbano como a classe social, segundo Marx, capaz de emancipar a humanidade no futuro para uma sociedade sem classes, simplesmente desaparece em
seu peso econômico e político no novo capitalismo. Se aplicarmos as fórmulas
de Marx para medir a composição orgânica do capital (a razão entre o capital
constante – investimentos na planta industrial, em equipamentos e matéria-prima – e o capital variável – a força de trabalho), nunca teríamos no século
XIX uma taxa de exploração tão alta quanto a que se exerce hoje sobre PhDs
altamente remunerados na indústria de software. Nesse novo quadro, o horizonte da revolução proletária se dissipou. O “proletário” mais explorado do
novo capitalismo vive muito bem, tem elevada qualidade de vida e, com muita
frequência, trabalha em casa enviando pela rede, onde quer que esteja – em
Seattle, Mumbai, Kyoto ou Cidade do Cabo – o resultado de seu trabalho.
A experiência do trabalho coletivo se elevou a um grau de abstração nunca
antes conhecido. Estamos muito distantes da situação da classe operária na
Inglaterra descrita por Engels em .
Os avanços da engenharia genética apontam para um novo horizonte, não
somente de melhor produtividade na produção de alimentos, mas de possibilidade de intervenções radicais nos animais superiores. A ovelha que já faz
parte da história encontra na arte um paradigma mais radical. Eduardo Kac,
artista brasileiro, professor e pesquisador do Art Institute of Chicago – uma
das mais proeminentes instituições de arte dos Estados Unidos – projetou e
realizou, em , com a colaboração de um cientista de Paris – um coelho
transgênico. Coelhos transgênicos já existiam desde . Mas esses coelhos
anteriores tinham uma alteração em algumas regiões de seus tecidos. O projeto de Kac foi de alterar as células do coelho “miscigenando-o” com os genes de
uma alga fosforescente. Alba, o coelho projetado por Kac, não tem interesse
científico maior. Para a ciência só interessam coelhos alterados em certas regiões específicas. Mas Alba é um evento estético-tecnológico da maior envergadura. Não se trata mais de discutir as relações entre arte & vida, mas de fazer
a arte interferir da forma mais radical na vida. Rompidos os problemas éticos
95
e morais que ainda impedem a interferência em seres humanos, podemos imaginar o que o futuro próximo nos reserva, não somente em matéria de proezas
científicas como estéticas.
A eliminação aparente da distância
O desenvolvimento das redes de comunicação por satélites propiciou uma experiência da televisão inédita. Ver um jogo da Copa do Mundo em  no
momento mesmo em que ele acontecia era formidável. O clímax desse processo ocorreu na Primeira Guerra do Golfo, em -, quando o mundo
assistiu em tempo real às batalhas e aos mísseis cruzando os céus de Bagdá.
Na época da guerra do Vietnam, a imprensa e a imagem distribuída haviam
jogado um papel decisivo em contraposição aos relatórios oficiais do Pentágono, mas agora era diferente. Não era no dia seguinte, ou dois dias depois: o
espectador assistia à guerra em casa da mesma forma que assistia ao anúncio
de um novo sabão em pó.
Mas a possibilidade de uma televisão instantânea, onipresente, era pouca.
Os avanços da ciência da computação permitiram o advento da internet: uma
rede civil, ainda hoje não submetida a maiores controles nos países democráticos, capaz de interligar centenas de milhões de computadores simultaneamente. Em  foi estabelecido o protocolo de comunicação. De novo não devemos subestimar o papel dos interesses militares na abertura desse caminho
civil. Uma rede de satélites militares é capaz, em certas condições, de identificar a marca e o tipo de um determinado veículo num grande engarrafamento.
Os mísseis teleguiados têm nos dispositivos em sua ogiva o mapa em GPS
do percurso que têm que ser percorrido até o alvo; e seu sistema é atualizado
em tempo real pela rede de satélites capaz de captar qualquer novo obstáculo
que apareça na sua rota e que não esteja no sistema instalado na ogiva. Essas
conquistas tecnológicas, preservadas as exigências de segredo de Estado, são
filtradas e repassadas nas sociedades chamadas “abertas” ao mercado. Por isso,
podemos ter acesso hoje a serviços como Google Earth e Google Maps e ver
na tela do monitor a situação do trânsito num cruzamento de uma cidade
a milhares de quilômetros de onde estamos. Não quero dizer que não haja
inteligência e invenção nas empresas civis de novas tecnologias. Há, e muita.
96
Mas é preciso nunca esquecer o formidável investimento estatal realizado para
fins militares que tornaram viáveis numerosas pesquisas em departamentos
universitários e mesmo o desenvolvimento de sistemas específicos, tanto algorítmicos quanto heurísticos, que mais tarde se tornam acessíveis ao mercado.
Um bom modo de pensar politicamente o desenvolvimento das novas tecnologias é pensar em duas culturas: a militar e a civil. A exploração de pesquisas de
ciência pura ou ciência de base na cultura civil não pode cessar para a cultura
militar, porque mais cedo ou mais tarde elas se tornarão aplicadas; e da mesma
forma pensa o mercado. Mas logo identificado um interesse militar, esse será
objeto de investigações reservadas, fechadas e o capital investido pelo Estado
nesses nichos não se compara ao que é submetido somente a interesses do
mercado. Essas pesquisas têm de ter seu prazo de retorno de investimento
severamente calculado sob pena do fracasso: a falência. O Estado pode correr
riscos que o empreendedor privado não pode correr.
A formidável expansão da internet a partir da década de  propicia o surgimento de uma nova camada cultural que se superpõe à imediatamente anterior: à da computação isolada ou restrita a redes de menor extensão como a
Bitnet. Com a possibilidade da computação ponto a ponto em escala planetária, por meio dos provedores de serviços, rapidamente o fax se torna obsoleto.
O sistema de mensagens eletrônicas (e-mail), permitindo anexar documentos
digitalizados, torna ordinário e praticamente sem uso o aparelho integrado
ao telefone que cuspia papel fac-símiles. Temos agora o fenômeno das redes
sociais, o seguidor de mensagens curtas, e tudo isso e muito mais pode estar
acessível no bolso por meio da telefonia celular. Uma pesquisa que necessitava
uma bolsa para uma viagem ao exterior agora pode ser realizada, em grande
parte, numa estação de trabalho em casa.
Todos esses aspectos civis e democratizantes, entretanto, não encontram
concorrência com a possibilidade de transferência instantânea de enormes
volumes de capital. A ideia do virtual transmigra para o coração do sistema.
Sem enfrentar as barreiras nacionais, as transferências instantâneas de capital de Hong Kong a Londres, de São Paulo a Frankfurt, de Tóquio a Nova
York, permitem um fluxo financeiro inédito na história do capitalismo. É a
chamada financeirização do capitalismo, que se desprega do capitalismo real:
97
aquele que produz bens e serviços. O próprio conceito de capital se transfigura
do real para o virtual. Essa situação gera uma ideologia: o capital passa a ser
uma ficção, posto que virtual; por isso posso multiplicá-lo à revelia de uma
correspondência real; o capital fictício, ou virtual, pode ser cinco, dez, vinte
vezes maior que o capital real. O fluxo dessa situação não submetida a nenhum
controle ou regulação deu no que deu: a crise iniciada em setembro de .
Mais que a circulação privada, a ideologia do capital virtual levou governos ao
que se chama de irresponsabilidade fiscal: criaram benefícios e um suposto
“bem-estar” para suas populações sem sustentabilidade, ou como se dizia antigamente, sem lastro. De qualquer forma foi o capital privado que exacerbou
essa possibilidade, a financeirização do capitalismo inteiramente desvinculado
da produção que produziu o capital esquizofrênico: um sistema econômico
psicótico. Ou como diria o genial Hitchcock: um caso de dupla personalidade.
Com a internet tudo isso está ao alcance de todos. Nada está distante. Tanto
aplicar dinheiro na bolsa de Hong Kong, como pesquisar um texto grego de
Aristóteles. Tudo está próximo. Não seria o momento de começar a pensar
sobre a anulação de distâncias de coisas tão díspares: analisar valores de ações
a milhares de quilômetros de distância e ao mesmo tempo estudar um texto de . anos atrás? Essa compressão que anula tempo e espaço não cria
ideologia, ou seja, formas falsas de representação do mundo? Ou já se pensa,
apressadamente, que estamos dotados de uma mente onde não cabe mais o
falso e o verdadeiro? Não é por esse caminho que estamos indo quando não
somos mais capazes de experimentar subjetivamente as distâncias no tempo e
no espaço? Esse é um problema a ser refletido para pensarmos que coisa é essa
que estamos vivendo.
Este é o mundo no qual vive a arte contemporânea.
As peças íntimas das relações entre arte e mercado: o novo vestuário do
meio de arte
Em primeiro lugar, andando no compasso do mundo, cresceu muito a importância das leis do mercado no meio de arte. O meio artístico acompanha
a mercantilização generalizada de todos os processos sociais, políticos e culturais. Mais do que isso, a interação entre mercado e instituições, particular98
mente os museus, no campo da arte contemporânea passou a ser mais direta,
queimando muitas instâncias mediadoras antes existentes. Por exemplo: o
planejamento de prioridades de aquisições para preencher lacunas de coleções,
cuidadosamente traçadas por curadores-pesquisadores à luz da história, para
posterior apresentação a mecenas e patrocinadores, hoje é privilégio de algumas raras instituições de alguns países avançados. Em boa parte dos casos, o
crescimento dos acervos se dá pela intervenção direta de marchands e mecenas
oferecendo obras de determinados artistas. A instituição fica exposta a essas
investidas em face da retração dos fundos disponíveis capazes de dar autonomia de escolha às equipes de curadores e pesquisadores.
Vou mais longe: instituições nos países mais ricos estão expostas às decisões
de proprietários de coleções que cedem em comodato suas peças, as valorizam
pela permanência num museu público; mais que isso: negociam com os artistas preços privilegiados pelo seu destino original e anos mais tarde as destinam
ao mercado.
O raciocínio, no início dessa nova conjuntura, era “melhor isto do que nada”.
À força da permanência dessa situação ao longo dos anos perde-se a memória
de como as coisas se passavam antes da vigência da clara hegemonia das forças
do mercado no campo da arte. Seria longa a lista de exemplos desse tipo de
relação às vezes agressiva, às vezes promíscua, entre mercado e instituição no
campo das artes visuais.
Sempre é bom lembrar que não são novas as relações entre arte e dinheiro,
não são nenhuma novidade introduzida pelo capitalismo recente.
Em apresentação para o livro Arte & dinheiro eu lembrava:
Baxandall pôde observar com pertinência as relações arte/dinheiro. Logo
no primeiro capítulo de seu estudo O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença, afirma: “A relação da qual a pintura é o
produto era, entre outras coisas, uma relação comercial, e algumas práticas
econômicas daquela época estão muito concretamente materializadas nas
pinturas. O dinheiro tem uma importância considerável na história da arte.
3 DUARTE , Paulo Sergio. Apresentação. In: SIEGEL , Katy e MATTICK , Paul. Arte & dinheiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, .
99
Ele atua sobre a pintura não somente no que se refere ao fato de o cliente
querer investir seu dinheiro em uma obra de arte, mas também através das
modalidades de pagamento escolhidas.” 
O fato é que, no momento em que o trabalho convencional ou manual entra
em declínio a favor do trabalho intelectual em face da história que apresentamos, o artista se transforma no trabalhador intelectual por excelência e o
produto de seu trabalho – a obra de arte – na commodity por excelência. Essa
mercadoria vai alcançar valores inéditos e nenhuma racionalidade vai explicar
porque um artista de  anos de idade vai valer mais do que um artista moderno com seu nome inscrito na história da arte, da mesma forma que ninguém
explica porque um cliente de banco, sem cadastro e sem renda comprovada
pode hipotecar sua casa duas vezes a % de seu valor real.
Novos regimes de visibilidade, novos regimes de fruição e a persistência do
moderno
Desde os anos  detectou-se uma transformação de maior vulto na produção
artística que parecia destituir os parâmetros modernos que estabeleciam os
princípios da autonomia da arte, como um campo cognitivo específico submetido a princípios de ordem formal para constituição e ancoragem de suas
poéticas. É preciso lembrar a progressiva constituição dessa autonomia que
se identifica em grande parte com o que chamamos de crise da representação.
Essa é a própria emergência da arte moderna durante a segunda metade do século XIX e início do século XX . Ela se confunde com o crescente declínio dos
temas ou motivos a favor de uma maior força dos elementos estruturais da forma da obra na sua constituição. Era a ascendência da forma sobre o conteúdo.
Se antes uma série de convenções formais estava submetida aos temas, como
aqueles na pintura religiosa regendo a hierarquia dos anjos, a representação
de figuras mitológicas, ou a estatuária equestre, por exemplo, as questões de
4 BAXANDALL , Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Tradução de Maria Cecília Preto da Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, , p. . (O grifo é meu.
P . S . D .).
100
linguagem da obra, a partir de Manet, se despregam claramente dessa subordinação. Os temas, quando são significativos, se ordenam, digamos, de dentro
para fora a partir de necessidades internas da obra de arte e não mais se impõem de “fora para dentro” como na arte pré-moderna. Essas transformações
culminam na segunda década do século passado com a arte abstrata e o surgimento da fruição estética visual completamente desprovida de vínculos temáticos tal como já acontecia na fruição musical. Paralelamente a essa vertente
que atinge seu ponto culminante no expressionismo abstrato norte-americano
do segundo pós-guerra, desenvolvem-se correntes críticas como o dadaísmo
e o surrealismo.
A conquista da autonomia da arte não é nenhuma invenção perversa do formalismo como pode levar a crer certas leituras excessivamente sociológicas da
cultura. A autonomia da forma na arte moderna deriva do processo histórico
mais geral que decorre do progresso da ciência e da técnica e o consequente
advento das especialidades, da revolução industrial, do acelerado deslocamento da importância da vida do meio rural para o urbano, e da cada vez mais
complexa divisão social e técnica do trabalho. A figura social do artista, sua
prática e sua produção, não estão imunes e impermeáveis a todas essas mudanças. Desaparece a figura dominante desde o Renascimento do artista da
corte e surge o profissional liberal cuja produção não está mais dependente
diretamente da nobreza ou da igreja e passa a ser mediada pelo mercado. A
pintura, e logo a escultura, passam a campo de investigação específico a partir
de sua lógica interna na produção de sensações, como claramente já demonstra
a obra de Cézanne que prepara a revolução cubista.
Todas essas obras, mesmo depois da conquista da verdade planar na pintura
pelo cubismo e das aventuras do plano no espaço iniciadas por Tatlin, continuavam submetidas ao regime da contemplação para sua plena fruição.
Nos anos  esse modo de “consumir” a obra de arte sofre múltiplas transformações. Em primeiro lugar, é introduzido o observador participante que
inicialmente altera a configuração da obra com sua intervenção para logo se
transformar em parte indispensável da própria realização da obra. São exemplos pioneiros dessas manifestações os bichos de Lygia Clark e os Parangolés de
Hélio Oiticica. A obra não está no mundo para ser objeto do juízo estético e
101
alcançar o “subjetivo universal” pensado por Kant na sua terceira Crítica através da contemplação. Agora é objeto que só se completa quando o sujeito da
fruição se investe em “coautor” e parte da obra.
Outra mudança importante ocorre no próprio conceito de espaço para a
produção artística. Toda obra de arte moderna era concebida para o espaço
idealizado por Platão: aquela entidade neutra, vazia, extensa e a mesma em
qualquer de seus pontos. Agora surgem as obras in situ (site specific). As obras
são produzidas para um lugar específico, sua presença não apenas altera o
lugar como o incorpora como parte da obra. Um exemplo dessas intervenções
pioneiras continua sendo as obras de Robert Smithson.
Desdobram-se daí as experiências que, nos anos , eram chamadas “ambientes” e que vieram a ser chamados, posteriormente, de “instalações”. Aqui
também obras como a Tropicália, Ninhos e Penetráveis de Hélio Oiticica estavam desbravando trilhas ainda pouco conhecidas na arte do século XX .
Outras mudanças precisam ser sublinhadas: o fenômeno definido por Lucy
Lippard como “desmaterialização da obra de arte”, que coincide com a emergência da arte conceitual na qual o modo como a arte é pensada se sobrepõe à
própria evidência plástica, chegando até mesmo ao seu apagamento no mundo
substituído por reflexões teóricas como no caso do movimento inglês Art &
Language.
O ressurgimento dos temas como núcleos centrais das próprias obras é outra profunda modificação em relação ao passado moderno. Nessas manifestações, a política e a arte de gênero (arte feminista, arte gay) restauram o conteúdo de modo tão ou mais intenso que o próprio investimento formal. Por fim,
a referência ao medium (pintura, escultura, gravura, desenho) perde o valor
arquetípico que possuía na história da arte.
Em torno dessas transformações que apontam um período de aparente declínio da qualidade artística, podemos detectar manifestações de elevado teor
poético que se desenvolvem em torno de dois polos na arte contemporânea: a
“estratégia do espetáculo” e as “manobras da delicadeza”. Ambos operam nos interstícios deixados pelas metamorfoses da visibilidade na arte contemporânea
e parecem manter uma relação positiva com o legado moderno da primeira
metade do século passado. Algo como se o pai moderno não precisasse ser
102
assassinado para viabilizar a passagem dessas novas investigações. Fazendo interagir a herança da grande arte moderna com experiências do presente, constituem a produção mais instigante para a arte do novo século.
O novo circo
Entretanto, as instituições museológicas sofreram grandes transformações.
Em , O maior espetáculo da Terra (The Greatest Show on Earth), dirigido
por Cecil B. DeMille, ganhou o Oscar de melhor filme. No título habitava
uma ambiguidade: quem era o maior espetáculo da Terra? O circo, tema do
filme, base de seu enredo, ou a própria obra cinematográfica? O circo podia ser
apresentado para o consumo de massa, como o maior espetáculo da Terra ou o
próprio cinema. Passados sessenta anos, jamais um filme de Hollywood seria
apresentado da mesma forma. Os circos migraram e foram deslocados para
instituições muito mais complexas e sofisticadas que aquelas que nas periferias das cidades abrigavam a vertigem dos trapezistas e a tristeza dos palhaços;
os filmes podem ser alugados pelo controle remoto sem o espectador sair de
casa e, pelo menos no Brasil, cada vez mais salas outrora de cinema abrigam
igrejas de diferentes seitas cristãs. A indústria cultural ficou mais complexa
e conseguiu introduzir a arte na indústria do entretenimento. Hoje, o maior
espetáculo da Terra é o museu de arte, no qual se apresenta o grande circo
contemporâneo: a Tate Modern, o Beaubourg, o Louvre, o MoMA, o Metropolitan e seus milhões de visitantes anuais (Inhotim, em breve). Uma obra
de arte jamais será o que era no seu momento moderno. Adeus Cézanne, Picasso, Braque, Malevich, Mondrian, Pollock, Newman, Rothko; nunca mais
serão vistos como antes. E pior, nem mesmo Johns, Rauschenberg ou Warhol,
poderiam atualmente dar conta do recado. O mundo está mesmo para Jeff
Koons, seus cachorros de bolas de festas de aniversário e os corações gigantes enlaçados de fita dourada. Lá onde Gerard Richter e Anselm Kiefer, cada
um a seu modo, tornam-se importantes extremos da pintura, tomando a sopa
pós-moderna pelas beiradas, fica o território delimitado para o que se está
chamando de arte contemporânea.
Em  de maio de , o crítico Jonathan Jones, em seu blog no jornal The
Guardian, publicou uma severa crítica à Tate Modern sobre a forma como
103
são exibidas as telas de Rothko e àquele museu em geral. Vale a pena ler essa
crítica na íntegra. O motivo do artigo é a devolução ao espaço de exposição
de uma das telas de Rothko da série Black on Maroon, vandalizada em ,
e tem como título Why Tate Modern should show Rothko a little respect (numa
tradução livre: “Por que a Tate Modern deveria demonstrar um pouco de respeito por Rothko”). Jonathan Jones se pergunta:
“Mas a Tate em algum momento pensou por que esse ataque aconteceu e
considerou por um segundo se a atmosfera menos que convencional da Tate
Modern como um museu de arte encoraja uma perda de reverência pela arte?
E depois, não faz muito tempo, crianças foram vistas escalando um Donald
Judd como um brinquedo no parque. Isso não deveria surpreender quando a
Tate Modern é famosa por apresentar slides como obras de arte?” As críticas
de Jonathan Jones vão muito mais fundo e poderiam ser resumidas em “a Tate
Modern definitivamente não é um local para a fruição de obras de arte”. Pode
ser que Jonathan Jones não esteja inteiramente correto ao atribuir o ato de
vandalismo ao clima inteiramente estranho ao conhecimento de obras de arte
que impera naquela instituição. Afinal, atos de vandalismo já ocorreram em
diferentes épocas e em diferentes locais como no próprio interior da Basílica
de São Pedro do Vaticano, quando a Pietá de Michelangelo sofreu um atentado. Entretanto, tem inteira razão que gritos de participantes de obras interativas, crianças correndo, e outras peripécias não coibidas pela instituição não
colaboram para o desenvolvimento de um conhecimento artístico.
Mas, afinal de contas, foi a própria abertura da Tate Modern um marco no
novo estatuto dos museus de arte nesse milênio. No ano de sua abertura, em
maio de , esperava-se um milhão de visitantes, recebeu cinco vezes mais.
Ver: <http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/ / may /  / tate-modern-rothko-black-on-maroon-restored>. Acessado em  de maio de .
5
“But has the Tate thought at all about why the attack happened, and has it considered for a second – can it
bring itself to ask – if the less than conventional atmosphere of Tate Modern as an art museum may encourage
a lack of reverence for its art? After all, it’s not long since some children were spotted using its Donald Judd as
a climbing frame. Is that so surprising when Tate Modern is famous for presenting slides as art?” Disponível
em <http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog//may//tate-modern-rothko-black-on-maroon-restored>. Acessado em  de maio de . A propósito da notícia da criança escalando
Judd, ver: <http://www.apollo-magazine.com/climbing-frames-tate/>. Acessado em  de maio de .
6
104
Desde então, recebeu mais de  milhões de visitantes. Segundo o portal da
instituição é uma das três maiores atrações turísticas do Reino Unido e gera
uma receita em torno de  milhões de libras esterlinas (cerca de  milhões
de reais na data atual) para Londres por ano. Esse novo circo ou parque de
diversões definitivamente não é um local para o desenvolvimento de processos
cognitivos no âmbito poético. A atmosfera que reinava nos museus de arte
há algumas décadas era a mesma que aquela que ainda está em vigência em
qualquer biblioteca que se preze. Esse clima, favorável ao conhecimento das
obras de arte parece cada vez mais distante. A arte pop triunfou mesmo, mas
não somente nas paredes das instituições, mas as transformando em museus
pop. Para muitos demagogos e populistas isso significa a “democratização” da
arte, na verdade é o maior grau de rebaixamento que qualquer grande obra de
arte, como a pintura de Mark Rothko, poderia atingir.
A esperança na adversidade
O Brasil, devido a seu atraso educacional, está muito distante de apresentar
situações como essa, salvo em algumas esporádicas exceções. Caso haja uma
concentração de esforços na formação de professores de todas as disciplinas
para uma formação artística em todos os âmbitos poderemos assistir, talvez,
a uma situação diferente: futuras gerações formadas em torno do poético nos
campos da música, da literatura, das artes visuais. O nosso atraso poderia
ser revertido em vantagem. Mas não é o que vemos. Continuamos a observar
abandonadas as prioridades educacionais e o país registra os piores índices
mesmo quando comparado somente a países da América Latina.
A arte fica sendo a hora do recreio, vista como uma atividade de puro entretenimento dissociada de seus aspectos cognitivos mais interessantes. Sempre
haverá ganhos residuais, mas estamos longe de ter um público formado para
compreender a estatura da poderosa arte que já produzimos.
7
Ver: <http://www.tate.org.uk/about/who-we-are/history-of-tate>. Acessado em  de maio de .
105
textos usados no
Programa de Capacitação de mediadores
ALENCAR , Vera de. Museu–Educação: se faz caminho ao andar... Rio de Janeiro: PUC -Rio,
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a . Este capítulo foi originalmente publicado no livro The Participatory Museum, editado pela
autora em .
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Alegre: ArtMed, .
DC : Museum Education, Roundtable, , p. -.
106
107
Governo do Estado
do Rio de Janeiro
Escola de Artes Visuais
do Parque Lage
g ov e r n a d o r
d i r e to r a
Luiz Fernando Pezão
Claudia Saldanha
s ec r e t á r i a d e e sta d o d e c u lt u r a
Adriana Scorzelli Rattes
coordenadora de ensino
Tania Queiroz
Olga Campista
s u b s ec r e t á r i o d e p l a n e j a m e n to e g e st ã o
Mario Cunha
organização
Cristina de Pádula
Maria Tornaghi
Tania Queiroz
p r oj e to
s u p e rv i s o r a
s u b s ec r e t á r i a d e r e l a ç õ e s i n st i t u c i o n a i s
o mundo é mais
do que isso
Vanessa Rocha
Suzy Muniz Produções
a s s i st e n t e s
coordenação
Ana Carolina Santos
Lucas Leuzinger
Suzy Muniz
Rachel Korman
c o o r d e n a d o r a d e e x p o s i ç õ e s e d e b at e s
t e x to s
superintendente de artes
Clarisse Rivera
Eva Doris Rosental
a s s i st e n t e s
Agnaldo Farias
Anna Bella Geiger & Maria Tornaghi
Cadu
Eduardo Coimbra
Fernando Cocchiarale
Franz Manata & Saulo Laudares
Glória Ferreira
Leonilson
Marcelo Campos
Paulo Sergio Duarte
OS OCA LAGE
presidente
Laara Hügel
Renan Lima
Sabrina Veloso
c o o r d e n a d o r d e e v e n to s
Vitor Zenezi
a s s i st e n t e s
Marcio Botner
Naldo Turl
Selma Fraiman
vice-presidente
p r o g r a m a e d u c at i vo
Lisette Lagnado
coordenação
presidente do conselho
Cristina de Pádula
Maria Tornaghi
Tania Queiroz
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s u p e rv i s ã o
vice-presidente do conselho
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g e r e n t e a d m i n i st r at i vo e f i n a n c e i r o
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s u p e rv i s o r a d m i n i st r at i vo
Sergio Bastos
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