11 A bola de futebol como um importante aliado na aquisição de novos conhecimentos Elda Vieira Tramm Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Brasil Centro de Formação de Professores da APM, Portugal [email protected] Contextualização Esta comunicação é fruto de um trabalho de cunho investigativo, que tem os seus pressupostos assentes em leituras que venho realizando na última década, nomeadamente, relacionadas com as contribuições para a educação feitas por Piaget (1985), Vygotsky (1979, 1996), Freudenthal (1978, 1983), Paulo Freire e D’Ambrósio (1986). Assim, concebo o educando como um sujeito inteligente1, social2 e que possui seus próprios desejos e a sua cultura3. Ao planear e implementar a presente intervenção, tive em conta estes aspectos bem como o ambiente de aprendizagem, visto que o educando deverá ser o agente de sua própria formação. Para que um ambiente de aprendizagem se torne facilitador e significativo entendo que deve, minimamente, atender duas condições. Em primeiro lugar, a aprendizagem tem que ter significado para o educando e este significado deve estar vinculado à sua funcionalidade, ou seja, os conhecimentos adquiridos devem ser efectivamente utilizados. Em segundo lugar, o processo mediante o qual se produz a aprendizagem requer uma intensa actividade por parte do educando, ranto de natureza externa como de natureza interna4. Por esta razão a actividade pedagógica deverá ter cunho investigativo, uma vez que ela favorece a construção de objectos, a exploração, a descoberta de conceitos matemáticos embutidos, a conjectura de situações que surgem no decorrer da intervenção, sejam elas intencionais ou não. O aprendiz, desta forma, torna-se um sujeito activo na sua aprendizagem, apropriando-se do saber, ao tornar este processo uma viagem única e intransmissível. 159 160 Elda Vieira Tramm Agradeço aos matemáticos, que nos brindaram com a classificação dos poliedros convexos, o que me levou a identificar, de imediato, o elemento da cultura do educando, e ao Prof. Hans Freudenthal, pela sua luta a favor da inclusão da Geometria5 no ensino da Matemática, que assumi como verdadeira e passível de ser concretizada. Estes apoios indirectos deram-me segurança e ousadia para investir na elaboração de propostas pedagógicas. É neste contexto que nasceu a presente intervenção pedagógica, cujo objectivo era explorar e investigar os poliedros, nomeadamente os de Platão, tendo como meta a construção da bola de futebol, surgindo esta última como um elemento do desejo e da cultura do educando. Eis o elo que precisávamos para matematizar a sua realidade. Esta intervenção tem subjacente aideia que a Geometria é a compreensão do espaço em que a criança vive, respira e se move. O espaço que a criança deve aprender a conhecer, explorar e conquistar de modo a poder aí viver, respirar e mover-se melhor. Utilizo a Geometria (espaço e plano) porque ela se presta muito bem para a aprendizagem da matematização da realidade e para a realização de descobertas que sendo feitas com os próprios olhos e mãos são mais convincentes e surpreendentes. Freudenthal trabalhou para abrir a Matemática para todos e nunca diminuiu a exigência de um intelectual, de um pensador científico. Espero que esta comunicação contribuía para enriquecer o debate e para clarificar o tipo de actividade de investigação que nós, educadores, desejamos para nossas escolas no pressuposto que a Matemática é “assunto de todos e todos somos responsáveis por tornar este instrumento de organização do mundo, da vida, do quotidiano, acessível às crianças e jovens deste país” (Abrantes, Serrazina e Oliveira, 1999). A investigação proposta Atentemos na seguinte questão: “Existe um elemento na cultura do aluno, que faça parte do seu desejo, que nos sirva de ponte para o estudo da Geometria, do nível 1, no ensino básico?” Para lhe podermos responder, é necessário que haja um acompanhamento destes alunos, que sofreram a intervenção pedagógica, em diferentes momentos da sua vida académica posterior ao 1º ciclo (prova de aferição, desempenho no 2º ciclo). A intervenção pedagógica que é referida neste relato tem sido por mim realizada através de professores do ensino básico e dos seus alunos 3º e 4º anos de escolaridade, em Portugal. Encontra-se, portanto, em fase de testagem da metodologia, das actividades e dos materiais pedagógicos bem como o campo conceptual escolhido (poliedros de Platão). A bola de futebol como um importante aliado na aquisição de novos conhecimentos 161 Como esta fase se traduz numa rica experiência/caminhada realizada, em parceira, com professoras6 e seus alunos, acredito ser válido socializar esta etapa, esperando com isto conquistar algum interesse de algum pesquisador, desta área. O ponto central deste relato é as reacções dos alunos, frente às actividades propostas. Mas sei, de antemão, que ficará o sentimento que falta algo a contar mas por outro lado, tendo a certeza que meu esforço não será inútil. A metodologia de trabalho Esta intervenção pedagógica pode resumir-se em três momentos: (i) construção do contrato de trabalho, (ii) estudo de poliedros, nomeadamente, os de Platão, e (iii) construção da bola de futebol. Momento I – Construção do contrato de trabalho Este momento tem por base a seguinte proposta: que tal construir uma bola de futebol? (tema lançado) Geralmente esta proposta é aceite com muito entusiasmo pelos alunos. Depois, vamos pensar juntos o que precisamos para construir a bola de futebol (planeamento). Com a bola de futebol em mãos, passamos a discutir e planear com os alunos, o que será necessário fazer para construir uma bola de futebol. Chegamos à conclusão que a ferramenta que nos ajudaria, seria o estudo dos poliedros. Firmamos deste modo, um contrato de trabalho verbal, pois sabemos que a aquisição de conhecimentos significa um trabalho árduo, com muita persistência, organização e disciplina. Feito isto, passamos à acção. Momento II – Estudo de poliedros, nomeadamente, os de Platão Etapa 1: Descoberta de poliedros regulares (regras/limites) a) Construção e descoberta dos deltaedros (só triângulos equiláteros, usando palhinhas, anexo 1). Nesta fase, introduzimos a necessidade de etiquetar os poliedros feitos, com os seguintes dados: • • • Nome do poliedro (que é inventando pelo aluno), Número de palhinhas utilizadas (que em momento oportuno é substituído por arestas), Número de triângulos utilizados (que em momento oportuno é substituído por faces (naturalmente, subentendem-se polígonos regulares), 162 Elda Vieira Tramm • Número de bicos (que em momento oportuno é substituído por vértices). Logo na primeira aula, os alunos demonstram o interesse pelos poliedros, ao solicitar à professora o consentimento para levar o poliedro construído para casa. A professora não permite de imediato pois precisa dos poliedros para continuar a investigação. Depois consente que levem para casa e sugere que levem palhinhas e agulhas para continuar a tarefa em casa. Nas três intervenções realizadas, a instrução por si só não basta. O aluno procura clarificar entre eles as regras colocadas pela professora para a construção dos poliedros. De início os alunos trabalham em equipa mas cada um por si. Depois naturalmente trabalham aos pares (se ajudam) (ver anexo 2). Como numa aula os alunos não esgotam a investigação dos deltaedros, a professora prepara um espaço na parede da sala, com o título Poliedros, para que os alunos afixem seus poliedros, devidamente etiquetados. Desta forma ela dá condições para que os alunos possam ter uma visão global dos poliedros construídos. A visão do todo, ajuda-os a descobrir regularidades, a classificar e organizar o pensamento do aluno. No final preenchem a ficha de registo. b) Construção e descoberta do cubo/hexaedro (só quadrados, usando palhinhas). Aqui, as crianças descobrem com surpresa, que o mesmo não fica em pé (anexo 3). Não aceitam este facto, cuja descoberta constitui uma desilusão. Propõe de imediato colocá-lo de pé. Surgem então diversas conjecturas. 1º caso (2000) – E.B.1 10 – Setúbal: “Coloca-se uma palhinha atravessada”. Mesmo com problemas na linguagem a professora incentiva-os a desenhar sua ideia, o que é feito de imediato. Mas quando vão colocar em prática verificam que o tamanho da palhinha não é suficiente e dizem logo: “não dá”. A professora socializa para a turma a conjectura (a descoberta), perguntando o porquê daquilo acontecer. Os alunos sabem que precisam de uma palhinha maior. A professora explica que a conjectura da diagonal é boa e pergunta se eles são capazes de dizer exactamente a medida da diagonal. Uns envolvem-se em cálculos, outros usam o fio de lã para medir o trajecto da diagonal. A professora não aceita e pede que se desenrasquem com o que eles sabem. Ela aproveita para conversar sobre o papel da Matemática e a sua importância no nosso dia a dia. Surgem, então, várias conjecturas que são eliminadas por falta de argumentos convincentes até à conjectura do balão, o que toda a turma de imediato aceita. A professora (que está surpresa e eu também) solicita minha ajuda. Digo que é uma excelente sugestão e que nunca havia pensado nisto. Então peço que expliquem mais a ideia. A bola de futebol como um importante aliado na aquisição de novos conhecimentos 163 O aluno explica para os demais. Então, todos adoptam o balão. Fica-se com a sensação que não é uma boa conjectura mas foi a que eles puderam chegar. 2º caso (2º semestre de 2000/01) – E.B.1 nº 09 – Setúbal. Passou-se da mesma forma que a anterior (nesta acção de formação as professoras construiram o dodecaedro com o polidron e o zoomtool). 3º caso (1º semestre de 2001/02) – E.B.1 nº 15 – Lisboa. Neste grupo surgiram duas conjecturas: • • Colocar plasticina nos vértices. A professora socializa para a turma a conjectura (a descoberta), perguntando o porquê daquilo acontecer. Eles concluem que assim a palhinha fica em pé. Neste momento a professora pergunta qual o papel da plasticina. Depois de muita troca de ideias e da condução da professora, chega-se à conclusão que amarra as 3 palhinhas (arestas); Colocar 2 palhinhas em cruz (que são os eixos de simetria, horizontal e vertical). Ambas as conjecturas foram aceites. Estes alunos não aceitaram o balão (anexo 4). Estas professoras utilizaram o polidron na construção do dodecaedro. Só no 3º curso concluímos que o material mais adequado seria as palhinhas no início (deltaedros e hexaedro) e, em seguida o polidron. O uso de palhinhas na construção dos deltaedros e do cubo facilita a descoberta da rigidez (triângulo) e a representação do cubo (espaço) no plano (papel). Ao movimentar o cubo em palhinhas fica visível linha paralela, ângulos, etc. c) Construção e descoberta do dodecaedro (só pentágonos, usando palhinhas e polidron, ver anexo 5). d) Descoberta do impedimento na construção de um poliedro (só hexágonos, usando palhinhas e polidron, anexo 6). Finalmente os alunos descobrem que com hexágonos, é impossível construir poliedros. Neste momento eles percebem que se trata de situação análoga à dos deltaedros (quando o número de triângulos equiláteros é 6). A professora incentiva-o a desenhar as duas situações e socializa para todos, a conjectura descoberta, perguntando o porquê daquilo acontecer. Surge assim um óptimo gancho (motivação) para trabalharmos a construção do desenho do hexágono (representação) com as ferramentas da matemática (transferidor, compasso), a medida de ângulos, e a circunferência versus seis triângulos… Etapa 2: Formalização O pensamento formal (presente no ensino da gramática da língua materna e no ensino da Matemática) alfabetiza a criança, mas não se desenvolve de forma 164 Elda Vieira Tramm natural. Precisa de acções educativas para que o aluno se aproprie desta competência. Já o pensamento intuitivo, concreto, se aprende de maneira natural. Isto não significa que o aluno seja alfabetizado. Esta etapa envolve as seguintes actividades: • • • Descobrindo regularidades; Registando os elementos, de cada poliedro construído, na folha de registo; Classificando os poliedros construídos em relação as faces (formados por triângulos, por quadrados, por pentágonos). Cada aluno possui sua folha de registo preenchida. Etapa 3: Poliedros regulares ou de Platão Finalmente, os alunos identificam aqueles que sempre apresentam a mesma imagem, apesar de trocarmos de posição. Eles chamaram estes poliedros de certinhos. A professora diz que estes poliedros (certinhos) têm o nome de Regulares ou de Platão, contando-lhes que cada um representa um dos 5 elementos do universo, segundo a interpretação de Kepler (ver Veloso, 1998). Momento III – Construção da bola de futebol Os alunos concretizam seu objecto de desejo ao construir a bola de futebol, que reconhece como um icosaedro truncado – poliedro semi-regular ou arquimediano). Deste modo desenvolve a sua auto estima e confiança em si e na escola (educação formal). Reflexão final Este processo de ensino-aprendizagem foi regulado com base nas observações das reacções dos alunos e na análise das opiniões obtidas através das redacções dos alunos nas actividades. As três experiências realizadas permitiram-me fazer as seguintes conjecturas que mereceram a minha atenção e que agora partilho convosco. • • A construção da bola de futebol se apresenta como um forte elo de ligação que aproxima a realidade do aluno dos conteúdos matemáticos; O campo conceptual trabalhado – Poliedros de Platão – apresenta-se como adequado para se trabalhar geometria neste nível de ensino; A bola de futebol como um importante aliado na aquisição de novos conhecimentos • • • • • • • • 165 O material de apoio utilizado presta-se à descoberta de propriedades (rigidez de figuras) e à identificação de todos os elementos que compõem um poliedro; As regras/limites impostas para a construção e descoberta de poliedros funcionam como regras de um jogo, pois foram aceites sem nenhum obstáculo; As crianças gostaram de trabalhar este tema (poliedros regulares) estando sempre muito absorvidas pelas tarefas; As tarefas que envolviam organização, sistematização e formalização de conteúdos matemáticos ajudam na realização de tarefas interdisciplinares; Os professores envolvidos estiveram bastante entusiasmados com os resultados alcançados por seus alunos; O despertar do interesse do professor pelo ensino da Matemática teve um papel preponderante no resultado alcançado; O tempo gasto no estudo dos poliedros vem sendo diminuído de experiência para experiência; Os sujeitos envolvidos na experiência (formador, formadores e alunos) evoluíram ao longo do percurso (acção de formação, intervenção e reflexão crítica dos resultados), modificando sua atitude em relação ao papel da matemática. Transcrevo, a seguir, a reflexão que os professores da EB1 nº 15 – Lisboa fizeram a respeito de si próprios, ao finalizar a intervenção pedagógica em uma sala de aula: O professor iniciouum percurso de inovação, reflexão e reorganização do ambiente de aprendizagem que ultrapassam a área de Matemática. Despertou a curiosidade das comunidades envolventes, especialmente, a família… Notas 1 Piaget via a “criança como um construtor activo de suas estruturas intelectuais...” pode-se concluir que o homem não nasce inteligente, ele torna-se inteligente. Para Vygotsky, “a relação entre o significado de uma palavra, o pensamento e a linguagem é tão estreita que é quase impossível distinguir entre o fenómeno da fala e um fenómeno do pensamento”. 2 Paulo Freire e D’Ambrósio “… ao se considerar de forma integrada conteúdos, objectivos e métodos, considerações de natureza socio cultural estarão permanentemente em jogo. É aí que é fundamental a capacidade do professor de reconhecer no aluno um determinante na definição dos objectivos na prática pedagógica.” 3 4 Nesta, o aprendiz estabelece relações entre o novo conteúdo e os elementos já disponíveis em sua estrutura cognitiva; julga, decide ou não a pertinência deste conteúdo e finalmente 166 Elda Vieira Tramm constrói novas matizes. A este processo de natureza interna Piaget denomina-o de assimilação e acomodação deste objecto/conteúdo. Freudenthal sempre defendeu “a inclusão da geometria na aprendizagem matemática e se possível o mais cedo possível. Não defendia a matemática euclidiana como objecto ideal para pensar dedutivamente”. Para ele, “Matemática é organizar áreas de experiência; a geometria, neste sentido se presta para matematizar experiências espaciais. Eis uma óptima oportunidade para a criança experimentar a organização local.” (1978, pp. 276-292). 5 6 Esta caminhada dá conta das três intervenções realizadas até ao momento. Estas intervenções sofreram a influência das actividades desenvolvidas na acção de formação “Novos ambientes de aprendizagem no ensino da Matemática”, dinamizadas por mim. As Escolas Básicas envolvidas até então foram: • E.B.1 nº 10 – Setúbal, que envolveu duas professoras (apenas uma delas participou da acção de formação) e duas turmas do 3º ano. A escola ganhou o concurso AMM2000; • E.B.1 nº 10 que envolveu 7 professoras e 5 turmas, do 1º ao 4º ano; • E.B.1 nº 15 que envolveu 7 professoras e 5 turmas, do 1º ao 4º ano. A escola participa no Concurso Pedro Nunes. Referências Abrantes, P., Serrazina, L., & Oliveira, I. (1999). A matemática na educação básica. Lisboa: DEB do ME. D’Ambrósio, U. (1986). Da realidade à ação: Reflexões sobre educação e matemática. São Paulo: Summus. Freudenthal, H. (1978). Weeding and sowing: Preface to a science of mathematical education. Dordrecht: Reidel. Freudenthal, H. (1983). Didactical phenomelogy of mathematical structures. Dordrecht: Reidel. Piaget, J. (1985). O possível e o necessário: A evolução dos possíveis na criança. Porto Alegre: Artes Médicas. Veloso, E. (1998). Geometria, temas actuais: Materiais para professores. Lisboa: IIE. Vygotsky, L. S. (1979). Pensamento e linguagem (Tradução de M. Resende). Lisboa: Edições Antídoto. Vygotsky, L. S. (1996). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. A bola de futebol como um importante aliado na aquisição de novos conhecimentos Anexos 1. 2. 3. 4. 5. 6. 6. 167