UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Sonia Maria Rodrigues
o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura
São Paulo
2012
Sonia Maria Rodrigues
o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Lílian Lopondo
São Paulo
2012
R696r
Rodrigues, Sonia Maria
O remorso de baltazar serapião : uma escrita de ruptura /
Sonia Maria Rodrigues - São Paulo, 2013
191 f. : il., 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2013.
Referências bibliográficas : f. 169-172.
1. Figuras. 2. Ironia. 3. Trágico. I. Título
CDD 869.09981
Sonia Maria Rodrigues
o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura
Dissertação apresentada ao Curso de Pósgraduação
em
Letras
da
Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Banca Examinadora:
Profª. Drª. Lílian Lopondo - Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez - Universidade Presbiteriana
Mackenzie
Profª. Drª. Flávia Maria F. S. Corradin - Universidade do Estado de São
Paulo
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela presença constante na minha vida, suprindo minhas forças e
me ajudando a seguir em frente.
À minha mãe, pelo carinho e compreensão, mas, sobretudo, pelas orações
que me deixam mais forte.
Ao Prof. Dr. José Gaston Hilgert, o mais humano dos coordenadores.
À Profª Drª Elisa Guimarães pelo exemplo de conduta e profissionalismo
e, acima de tudo, pela amizade e carinho em me ajudar.
À minha orientadora, Profª Lílian Lopondo, cuja capacidade e seriedade
tornaram possível esta pesquisa.
À Profª Drª Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Flávia Maria F. S. Corradin
pelas excelentes ideias para o desenvolvimento da minha pesquisa.
A todos os queridos amigos, peças-chave em minha vida, pela força,
incentivo e ajuda. Em especial, à Carol, Clara, Lara, Miúcha, Mor,
Wellington e Zé, pela amizade, sempre tão presente, que me permitiu
compartilhar os altos e muitos baixos desta jornada.
Aos funcionários da Biblioteca Central do Mackenzie, em especial à
bibliotecária Ana Lúcia Gomes de Moraes, ao Ricardo, Charles e Jairo,
pela presteza no atendimento.
À Carolina Fernanda, da Secretaria de Pós-Graduação, pela competência,
agilidade e boa vontade em me atender.
Ao Leandro e Zenilde, do Setor de Bancas, e Renato, da Assessoria de
Suporte Administrativo e Logística, sempre tão gentis, em facilitar o
trabalho do pesquisador.
Dor de cotovelo
(Caetano Veloso)
O ciúme dói nos cotovelos
na raiz dos cabelos
gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
e o estômago vão e sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
dói pra fora na paisagem
arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
atravessa a voz e a melodia.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo central analisar o processo de construção do
poético na narrativa do romance o remorso de baltazar serapião, de Valter Hugo Mãe,
tomando como referência principalmente os recursos linguísticos e extralinguísticos por
ele empregados na obra. Para a análise do texto, será privilegiada a leitura de dois
excertos do romance a partir do modelo defendido por Olivier Reboul, que elege o
motivo central como um procedimento que serve de princípio organizador para o texto e
se constitui na unidade viva do discurso. Assim, procuraremos comprovar que o motivo
central do excerto 1 (Encontro-Apresentação, desencadeamento do conflito) será a
ironia ambígua, enquanto do excerto 2 (Agressões Apaixonadas) será a hipérbole
irônica. O objetivo é mostrar que o romancista criou modos de dizer que se afastam do
uso comum, promovendo força e originalidade ao discurso, ao eleger as figuras como
motivo central. Por fim, como resultado da pesquisa, mostraremos também os
elementos da tragédia clássica e o entrelaçamento da principal figura do romance – a
ironia, com o trágico e o humor negro.
Palavras-chave: figuras, ironia e trágico.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to examine the construction process of the poetic
effect in the narrative of the novel o remorso de baltazar serapião, written by Valter
Hugo Mãe, taking the linguistic and extralinguistic resources used by the author as a
reference. For the text analysis, the reading of two excerpts is selected and Olivier
Reboul’s concept that considers the central motif a procedure that serves as the textual
organization principle and the speech’s live unit constituent is applied. In this way, it
may be shown that ambiguous irony is #1 excerpt’s central motif (Introductionencounter, conflict’s unfolding) while ironic hyperbole is #2 excerpt’s central motif
(Passionate agressions). The study has shown that through the selection of the figures as
the central motif, the novelist created unusual ways of saying, bringing strength and
originality to the speech. As a result of the study it is also shown the components of
classical tragedy and the interweaving of the novel’s main figure – the irony with the
tragic and the black humor.
Key-words: figures of speech, irony and tragic.
SUMÁRIO
Introdução
“O prazer do texto” p. 9
Capítulo I
Uma escrita poética p. 17
Capítulo II
A paixão do ciúme p. 69
Capítulo III
O trágico e os elementos da tragédia p. 115
Considerações Finais p. 156
Referências bibliográficas p. 169
Anexos p. 173
Introdução
“O prazer do texto1”
A escolha do romance o remorso de baltazar serapião (2011), de Valter Hugo
Mãe2, deveu-se ao impacto que a obra nos causou pela criatividade e experimentação da
sua escrita ao tratar do sentimento amoroso quando tomado pelo ciúme. Sabemos que
escrever sobre manifestações literárias contemporâneas, refletir sobre os livros no
mesmo momento em que estão sendo lançados, avaliar o discurso e o percurso de um
autor cuja consagração pode acontecer ou simplesmente não acontecer significa um
risco. Trabalhar sem aval da fortuna crítica pode gerar certa insegurança. Por outro
lado, podemos ser pioneiros em acreditar em um escritor, ainda pouco conhecido e,
portanto, não muito estudado, até o momento, sem falar da possibilidade de
acompanharmos as novas linguagens que vêm sendo desenvolvidas na produção
literária contemporânea. Enfim, como se faz e se refaz, como se renova essa matéria tão
sedutora
a literatura.
Sem esquecermos as referências aos já consagrados, lançaremos os olhos ao
presente, aos consagráveis em potencial. Assim, apresentamos o escritor Valter Hugo
Mãe, nome artístico de Valter Hugo Lemos.
Considerado uma das vozes mais representativas do romance contemporâneo
português, o escritor Valter Hugo Mãe nasceu no dia 25 de setembro de 1971, em
Angola. Filho de pais portugueses, aos três anos do nascimento, mudou-se com a
família definitivamente para Portugal. Atualmente vive na Vila do Conde, cidade
portuguesa no Distrito do Porto. Licenciou-se em Direito e cursou pós-graduação em
Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto.
Valter Hugo Mãe venceu o prestigiado Prêmio Literário José Saramago em
2007, por unanimidade, com o romance o remorso de baltazar serapião. Durante a
entrega do prêmio, Valter Hugo Mãe teve a oportunidade de ouvir de José Saramago
uma declaração que se tornaria famosa e constaria de qualquer apresentação do autor no
mundo literário. Disse-lhe Saramago: “Este livro é um tsunami no sentido total:
linguístico, semântico e sintáctico. Deu-me a sensação de estar a assistir a uma espécie
1
Referência e homenagem ao famoso livro de Roland Barthes, O prazer do texto, São Paulo: Martins
Fontes.
2
O escritor não usa maiúscula em sua obra, nem para seu nome. Neste trabalho quando for o meu
discurso, empregarei letras maiúsculas.
9
de parto da língua portuguesa. [...] Lembrou-me algumas ousadias a que me atrevi há
vinte anos e que produziram escândalo. Temos outro escândalo, porque Valter Hugo
Mãe louvou a expressão escrita da palavra, e abandonou a parafernália sinalética,
portanto, tudo o que é supérfluo.”3
O Prêmio Literário José Saramago, bastante prestigiado, distingue uma obra
literária no domínio da ficção, romance ou novela, escrita em língua portuguesa, por
escritor com idade não superior a 35 anos4 cuja primeira edição tenha sido publicada em
qualquer país da lusofonia, excluindo as obras póstumas, bem como os autores que
tenham já sido premiados em edições anteriores do Prêmio. Do júri de 2007, que
escolheu por unanimidade o remorso de baltazar serapião, participaram: Guilhermina
Gomes, Nelida Piñon, Ana Paula Tavares, Pilar del Río, Vasco Graça Moura.5
Antes da publicação de o remorso de baltazar serapião, Valter Hugo Mãe já
contava com uma consistente obra poética que incluía mais de dez livros, entre os
quais: silencioso corpo de fuga (Coimbra, A Mar Arte, 1996); o sol pôs-se calmo sem
me acordar (A Mar Arte, 1997); entorno a casa sobre a cabeça (Vila do Conde,
Silêncio
da
Gaveta
Edições,
1999);
egon
schiele,
auto-retrato
de
dupla
encarnação(Porto, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1999), com
o qual recebeu o Prêmio Almeida Garret; estou escondido na cor amarga do fim da
tarde (Porto, Campo das Letras, 2000); três minutos antes de a maré encher (Vila Nova
de Famalicão, Quasi, 2000); a cobrição das filhas (Quasi, 2001), útero (Quasi, 2003); o
resto da minha alegria seguido de a remoção das almas (Porto, Cadernos do Campo
Alegre, 2003).
As obras livro de maldições (Vila do Conde, Objecto Cardíaco, 2006);
pornografia erudita (Maia, Cosmorana, 2007); bruno (villanueva de la Serena, Littera
Libros, 2007) foram publicadas concomitantemente com a produção em prosa.
No gênero romanesco, é autor dos romances o nosso reino (Lisboa, Temas e
Debates, 2004); o remorso de baltazar serapião (Matosinhos/Lisboa, Quid-Novi, 2006);
o apocalipse dos trabalhadores (Quid-Novi, 2008); a máquina de fazer espanhóis
(Alfaguara, 2010); O filho de mil homens (Alfaguara, 2011).
3
Informações a partir de: www.valterhugomae.com. Acesso em: 12 de junho de 2012.
Valter Hugo Mãe contava 35 anos quando a obra foi publicada (2006). Ao receber o Prêmio Literário
José Saramago estava com 36 anos.
5
O valor pecuniário do Prêmio somou 25.000 euros.
4
10
Escreveu alguns livros infantis e juvenis: a verdadeira historia dos pássaros, a
história do homem calado (Quid-Novi, 2009), as mais belas coisas do mundo e o rosto
(Alfaguara, 2010).
Quatro livros foram publicados no Brasil, o remorso de baltazar serapião, em
2010 e o nosso reino, em 2012, pela Editora 34; a máquina de fazer espanhóis, em 2011
e O filho de mil homens, em 2012, pela editora Cosac Naify.
O escritor participou da Flip – Festa Literária Internacional de Parati, em 2011.
Dois de seus livros publicados no Brasil, o remorso de baltazar serapião e a máquina
de fazer espanhóis fizeram parte da relação de melhores livros do ano de 2011, do
Jornal O Globo..
A Editora Oficina Raquel, do Rio de Janeiro, publicou, em 2009, uma antologia
Portugal,0, com poemas de Valter Hugo Mãe e prefácio de Monica Simas, intitulado
Boca de Fronteira, Incandescências na Garganta de Valter Hugo Mãe.
Um dos aspectos fundamentais da criatividade, a que nos referimos no começo
desta dissertação, é a forma do tratamento conferido à linguagem. Nossa investigação
examinará como o autor imprime marcas no enunciado de modo a conferir ao texto
uma feição poética.
Para isso, sobretudo no capítulo I, dedicar-nos-emos ao levantamento
pormenorizado dos recursos estilísticos da obra. A intenção é preparar e sedimentar o
caminho que norteia nossas análises e reflexões. Começaremos examinando a matéria
sonora do discurso, que desempenha importante função expressiva, nas formas de
aliterações e outros sons, como rimas, ecos, assonâncias, repetição de cognatos, de
conjunções e de palavras. Veremos o empenho do plano da expressão para significar o
conteúdo a exprimir, recursos mais reservados à poesia, mas que são caros à narrativa
de Valter Hugo Mãe.
Vistas as figuras que dizem respeito aos significantes, passaremos a tratar
daquelas que visam ao significado. Como estratégia para conseguir os efeitos que deseja
imprimir ao texto, o escritor emprega a figuração da linguagem, na forma de metáfora,
metonímia, antítese, oximoro, hipérbole, sinestesia, polissíndeto, ambiguidade, ironia,
elipse, personificação, pleonasmo, anacoluto, para citar as principais. Destacam-se ainda
na narrativa as construções elípticas, os neologismos sintáticos e semânticos, os
provérbios, bem como o vocabulário insólito, onde convivem o erudito, o popular e o
chulo.
11
O narrador opta, ao delegar voz às personagens, pela marcação não
convencional. Assim, nos diálogos, não há dois pontos, aspas, travessão e fala no
parágrafo subsequente. Os diálogos são colocados em um mesmo período, apenas
destacados, por poucas vírgulas e pontos. Tal emprego recria a espontaneidade da
linguagem conversacional, mas perturba a coesão do texto e exige do leitor muita
concentração. A atenção tem de ser desdobrada, para suprir a falta de marcação dos
turnos das falas e identificar a voz que narra. O recurso imprime um ritmo contínuo e
acelerado ao que vem sendo narrado. Sem dúvida é uma forma também de significar o
conteúdo.
Já no discurso indireto, o narrador ao reconstituir as falas das personagens,
muitas vezes mistura os registros de modo que dificulta saber a quem atribuir a voz.
A preocupação do capítulo I é mostrar que ao criador de o remorso de baltazar
serapião não interessa apenas o dito, muito mais que a mensagem transparente, elabora
ele o material opaco da linguagem. Esta não está só a serviço da transmissão de
conteúdo, e sim como forma de enfatizar e potencializar o tema de que trata. Por isso,
antes de proceder ao exame dos textos particulares, inventariamos e justificamos os
recursos estilísticos, como meio de mostrar o modo singular de expressão do romancista
português, que já na capa da sua obra, aponta a forma original e pouco ortodoxa com que
operará a escrita: o seu nome e o título do livro vêm em minúsculas. E haverá, em todo
o texto, a completa ausência de maiúsculas. Tal insubordinação às regras não é gratuita,
conforme será mostrado no decorrer da pesquisa.
Outras marcas de ruptura na escrita do romance em análise serão vistas, uma
delas, adiantamos, é como se opera a pontuação. Com efeito, são usados apenas o ponto
final e a vírgula, com predominância da vírgula sobre o ponto final. Este é considerado
um sinal de pontuação forte porque marca uma pausa mais contundente, e a vírgula um
sinal de pontuação fraco porque, na maioria das vezes, aparece separando frases
justapostas. Menos frequente, e mais importante, será destacado neste trabalho, o
emprego do ponto funcionando como “operador sintático e semântico”. Conforme a
frase a seguir, na qual a pausa abrupta destaca a aparição de Ermesinda: “juntei-me ao
seu silêncio de longe. vi a minha ermesinda.” (MÃE, 2011, p. 145) Assim, os signos de
pontuação são importantes porque além de fato gramatical, engendram o ritmo e
intensificam o significado.
Sabemos que a pontuação no texto literário goza de liberdade para não
representar limitação ao poder criador do universo linguístico do artista. Existem
12
normas de pontuação gramatical, que cumprem serem conhecidas e respeitadas. Mas, ao
lado delas, há usos que as transgridem para emprestar um ritmo novo e ressaltar algum
efeito de sentido, conforme citação acima do romance e muitas outras situações em que
a criatividade não se intimida diante das regras da gramática. Os fenômenos rítmicos e
prosódicos colaboram para conferir ao texto musicalidade.
Na pesquisa que empreendemos para mostrar a singularidade da escrita de Valter
Hugo Mãe, recorremos a uma bibliografia em que estudiosos da língua se juntam a
especialistas da área literária, não só por considerarmos a literatura um fato da
linguagem mas também porque a obra em análise é muito peculiar na elaboração
linguística.
Nossas
referências
bibliográficas
contam
com
o
amparo
teórico,
fundamentalmente, dos seguintes escritores: José Luiz Fiorin, As astúcias da
enunciação (2008a), Introdução à Linguística I (2010), Introdução à Linguística II (
2010a) e Lições de Texto: Leitura e Redação; Nilce Santana Martins, Introdução à
Estilística (2008); Roman Jakobson, Linguística e Comunicação (2007); Norma Discini,
O estilo nos textos (2004) e A Comunicação nos textos (2005); Heinrich Lausberg
(1967), Elementos de Retórica Literária, e Olivier Reboul, Introdução à retórica
(1998).
A intenção do trabalho é oferecer um estudo capaz de mostrar como a linguagem
se articula para tratar de uma paixão, no caso, o ciúme. Para isso, vamos examiná-lo a
partir do Dictionnaire de Passions Littéraire (2005, p. 123/152), cujo verbete “jalousie”
é assinado por Jacques Fontanille, semioticista francês.
Buscamos também a palavra do primeiro a sistematizar um estudo sobre as
especificidades passionais. Com efeito, já na Antiguidade, Aristóteles dedicou o
conteúdo do segundo livro da Retórica (s/data) inteiramente às paixões. São elas:
cólera, calma, temor, segurança, inveja, impudência, amor, ódio, vergonha, emulação,
compaixão, favor, indignação e desprezo. Embora a paixão aqui retratada não esteja
configurada nas elencadas pelo Estagirita, procuramos no livro do filósofo
embasamento para melhor identificar uma paixão e entender como, mesmo sem levar
em conta as especificidades de gênero, a Retórica é capaz de descobrir o que é
adequado para persuadir, por meio da relação existente entre ethos, pathos e logos. O
filósofo explica que “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a
sentir uma paixão, [...] é mesmo este o único fim a que visam os esforços”. (s.d. p. 33).
O segundo capítulo cuidará da Paixão do ciúme. O embasamento teórico
13
principal coube a Peter Szondi, em seu Ensaio sobre o Trágico (2004). O filósofo
húngaro reflete sobre a dialética do ciúme e da dúvida, com base na tragédia de
Shakespeare, Otelo. Nesse estudo, por ele desenvolvido em seu ensaio, nos basearemos
para focalizar o comportamento de Baltazar quando atinge o trágico e o cômico, bem
como quando o ciúme se apossa do nosso protagonista e ele fica obcecado por uma
prova do adultério de sua esposa:
minha puta, se te apanho um só sinal, um só sinal que me
que o avias, abro-te meio a meio” (MÃE, 2011, p. 96-97).
garanta
A esta dúvida a respeito da fidelidade do objeto do ciúme, que nasce do medo
de sua infidelidade, Szondi (2004) chama dialética da dúvida. Na verdade faz parte da
lógica do sujeito ciumento, segundo o pensador, não procurar a prova da fidelidade, mas
a da infidelidade.
Há dois momentos-chave na trajetória existencial do protagonista: a descoberta
do ciúme e as agressões brutais moral e física que ele impinge à esposa. Diante disso,
examinaremos os referidos momentos, que representam o auge de intensidade máxima
do conflito e, consequentemente, de toda a história. Apresentaremos um estudo
específico do texto a partir de dois excertos. Ao primeiro, denominamos “encontroapresentação” e ao segundo, “as agressões apaixonadas”.
O primeiro excerto será estudado como o marco principal da narrativa, onde fica
configurado um antes e um depois, como resultado da apresentação de Ermesinda a
Dom Afonso. Antes, o narrador era um jovem romântico e apaixonado, predominavam
os valores eufóricos: felicidade, esperança, vida. Depois, o narrador se apresenta como
ciumento e agressivo. Com a referida transformação, os valores mudam para disfóricos:
infelicidade, pessimismo e morte. A exploração desses valores possibilitará a
abordagem de certas particularidades do campo de comunicação no qual o texto literário
está inserido, referimo-nos aos contratos fiduciário e veridictório e, também às funções
da linguagem. A investigação procurará responder à questão: Qual o empenho de
emoção do narrador para levar o leitor a crer na sua verdade enunciada?
Nesta etapa da análise, os recursos linguísticos inventariados e explicados no
capítulo 1, serão chamados a integrar a interpretação. Cada excerto terá um ou mais
motivos centrais, na acepção criada por Reboul, de “princípio organizador para o texto”.
Veremos que a ambiguidade e a ironia são organizadoras da narrativa que trata da
14
apresentação de Ermesinda a Dom Afonso. Enquanto a hipérbole e a ironia são
estruturadores das agressões violentas à Ermesinda, no excerto 2.
Consideraremos, porém, as figuras dispostas e comentadas no capítulo 1 num
plano hierárquico. Haverá aquela a organizar o texto, como motivo central, mas outras
figuras não serão excluídas, por exemplo, as que amplificam a figura principal ou como
intensificadoras do significado, ou mesmo quando evocam o prazer ao se relacionarem
com a matéria sonora, propiciando o delectare. Muitas vezes as figuras são uma fruição
a mais, uma licença estilística para facilitar a aceitação do argumento.
O segundo capítulo trata do abalo sofrido por Baltazar e tem por consequência
“as agressões apaixonadas” em Ermesinda. Ou seja, o protagonista acreditava que sua
relação com a esposa estava assegurada com o casamento. Segurança própria que os
contratos veridictório e fiduciário trazem aos contratantes em uma relação. Mas ocorre o
fato imprevisto no dia seguinte ao casamento que leva Baltazar a declarar: “naquele
tempo o meu martírio começou” (p. 45).
À súbita descoberta do caráter trágico da existência, Baltazar chama “martírio”.
Por considerar este aspecto componente decisivo do romance, o capítulo III tratará da
tragicidade e da tragédia na narrativa. Sem abandonar a característica própria da nossa
investigação, ao tratar desses componentes, destacaremos a ironia hiperbólica como
organizadora do discurso trágico e uma detida análise dela.
Ao examinar a cosmovisão trágica da obra, vislumbramos nela elementos da
tragédia clássica como a hybris, a hamartia, o coro, a peripécia, o reconhecimento, o
pathos, a catástrofe e a catarse. A partir do conceito de cada elemento mostraremos de
que maneira cada um pode se relacionar com o romance. Aristóteles mais uma vez
ilumina a reflexão. Desta vez com sua Poética (2005).
Por fim, encerraremos a dissertação com as considerações finais sobre o remorso
dentro da visão de mundo de Valter Hugo Mãe. A ideia é depreender o modo específico
com que o sentimento fica caracterizado na obra. Um remorso que não redime o sujeito.
Dentro de um modo de dizer que tanto pode atingir um alto grau de elaboração e
de requinte como também reproduzir a oralidade, destacamos, para finalizar esta
introdução a quase cantiga de amor com que Baltazar pede Ermesinda em casamento.
[...] sem condição nem honrarias que me levassem ali refinado ou
melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se notasse, há
tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair à brancura
15
do seu ser. e lho disse assim, depender de mim será só digna sua
pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e
deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a
partir de nós para retribuir aos outros. casai comigo formosa, tanto
quanto meus olhos algum dia poderiam ver.” (MÃE, 2011, p.39,
grifos nossos)
O fragmento acima constitui um dos pontos altos da elaboração da linguagem do
romance. Momentos de grande prazer estético, como o mostrado acima, estão nas
páginas desta obra, que é uma referência da literatura portuguesa contemporânea,
conforme a pesquisa mostrará.
16
Capítulo I
Uma escrita poética
Não é por acaso que, quando me perguntam
qual é o romance português que eu considero
o mais brilhante de todos os tempos, eu digo
que é o “Grande Sertão − Veredas.
Eu acho que o Guimarães Rosa fez foi
libertar de uma forma absoluta o português.
Valter Hugo Mãe
As palavras têm canto e plumagem.
João Guimarães Rosa
Desde a primeira leitura de o remorso de baltazar serapião, consideramos a
linguagem a grande protagonista da história. Mais tarde, ao saber do principal prêmio a
que fez jus e, principalmente, de como foi saudado por José Saramago, tivemos a
certeza de que estávamos muito bem respaldados. O escritor Nobel de literatura não era
dado a tão efusiva admiração.
o remorso de baltazar serapião foi publicado em Portugal, pela editora
QuidNovi, em 2006. A reedição do romance no Brasil ocorreu no final de 2010, pela
Editora 34. Os principais jornais do país, em 20 de janeiro de 2011, a Folha de São
Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, deram destaque ao lançamento e em suas
resenhas literárias elogiaram a obra. Ressaltamos a resenha do jornal O Globo, no
suplemento literário Prosa e Verso, por ter sido feita por um profissional da área
literária, professor Luís Maffei, docente de literatura portuguesa, da Universidade
Federal Fluminense, do Rio de Janeiro. Para Maffei, o romance é “Obra para muitas e
profícuas leituras, ‘o remorso de baltazar serapião’ indica que poder e amor ainda têm
contas a acertar entre si e conosco, leitores da sempre contemporânea língua
portuguesa”.
Ao lermos o romance, percebemos que Valter Hugo Mãe o ambientou em uma
época e local definidos, o feudalismo europeu da Idade Média. Uma família de
camponeses, os Serapião, é explorada pelo proprietário das terras em que habita. De
fato, Dom Afonso consome a vida de homens e mulheres em um cotidiano brutal de
17
ignorância e falta de esperança. Além das relações de poder inteiramente medievais
entre as personagens do núcleo central, el-rei Dom Dinis figura como personagem.
Para tratar de uma época medieval, o autor não só criou personagens, mas
também uma linguagem especial para seus seres de papel. Isto é, não houve reprodução
da linguagem daquele tempo, mas sim a manipulação da língua, o que existe em
potencial nela para ser o código de comunicação entre as personagens.
O escritor, em várias entrevistas concedidas à mídia, foi incansável em
responder à pergunta mais recorrente de como se deu o trabalho com a linguagem na
obra. Importante e esclarecedora a declaração de Valter Hugo Mãe a seguir:
Enquanto escritor, interessa-me a criação, não exatamente a
reprodução simples das coisas, assim nunca me interessaria a
utilização da linguagem medieval por si só, pelo que isso seria apenas
um trabalho técnico. Interessou-me a manipulação da língua
portuguesa para descobrir até onde seria capaz de a levar como se
fosse um elástico e a pudesse obrigar a um certo limite.6
E, na verdade, há que se ter “olhos pirilampos à fraca luz da vela” (MÃE, 2011,
p. 14), para adentrar o mundo criado pelo enunciador que “leva-nos a uma vida mais
intensa, mobilizando desejos múltiplos, criando novas percepções, produzindo
experiências diversas” (FIORIN, 2008b, p. 53). Trata-se de um enunciado com
enunciação fundada na função estética da linguagem. Importam a essa enunciação as
experiências com o conteúdo e com a expressão, sendo que a última passa a ocupar um
papel de relevância na composição discursiva. Ainda de acordo com Fiorin’:
Fruir um texto literário é perceber essas recriações do conteúdo na
expressão e não só compreender os significados. Quem escreve um
texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas
palavras, de forma que, nele, importa não só o que se diz, mas também
o modo como se diz. (FIORIN, 2008, p. 45-46)
A linguagem em função estética transfere a realidade conhecida para um outro
plano axiológico, submetendo-a a uma nova unidade, que se ordena de modo
diferenciado, de maneira a criar uma realidade outra, autônoma e capaz de levar o
homem à reflexão e ao autoconhecimento.
Uma das características marcantes do discurso de Valter Hugo Mãe é a
ressignificação do conteúdo discursivo no plano da expressão. Ele inventa para sugerir
6
Disponível no site: http:/diariodigital.sapo.pt. Acesso: em 5 de dezembro 2011.
18
e, na passagem do plano de conteúdo ao plano de expressão, isto é, na textualização,
reinventa o sentido na materialidade textual para sugerir mundos.
Como explica Bakhtin (1993, p. 33), “a vida não se encontra só fora da arte, mas
também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico: social, político,
cognitivo ou outro que seja”, porque “é com valores que a atividade artística se
relaciona diretamente, é sobre eles que está orientada a intenção estética de nosso
espírito” (Idem, p. 50).
A estranheza das construções do discurso de o remorso de baltazar serapião
fere a percepção do leitor, fazendo-o refletir sobre o significado delas, levando-o a
enxergar além do dito, além do sentido veiculado livremente pelo plano da expressão.
Em Valter Hugo Mãe, é preciso reler o texto muitas vezes, para que a aproximação com
o dito e com o modo de dizer se torne possível, o que faz com que o leitor seja um
participante do processo criador.
Sendo assim, com respaldo nos teóricos citados, um dos objetivos de nossa
pesquisa acerca da escrita poética na narrativa de o remorso de baltazar serapião é o de
investigar como o enunciador explora a originalidade da expressão linguística fazendo
com que ela seja capaz de recuperar todo o seu poder, dentro de um enunciado peculiar
cuja marca se encontra na ordem da ruptura.
Já dissemos anteriormente que Valter Hugo Mãe se serve da grafia de uma
forma pouco ortodoxa; com efeito, o uso ininterrupto de minúsculas não é um fetiche
literário, antes convém a uma igualdade no tratamento dos vocábulos. Uma maiúscula é
já uma forma de salientar um termo face a outro, assim, remete-se ao leitor a
intensificação daqueles vocábulos que ele considera mais impositivos e passíveis de
maior significação. Além disso, também o significante adquire potencialidades a nível
estético, pois o texto surge-nos mais uniforme pela ausência das maiúsculas, que sempre
conferem um aspecto fluido à mancha gráfica, transferindo ao leitor a responsabilidade
de marcar o ritmo narrativo conforme lhe aprouver. O escritor afirma7:
As minúsculas criam uma aceleração na leitura que me interessa.
Tudo nos meus textos pretende uma precipitação do leitor, como se
lhe retirasse os freios, e a escrita em minúsculas, abdicando também
do maior número de sinalética possível, produz esse efeito. Além
disso, sem dúvida que me parece ainda oferecer uma limpeza visual de
que gosto muito. Ao que sei, no início, a primeira reação é um choque.
As pessoas ficam aflitas, não sabem onde parar, não percebem onde a
7
Disponível no site http:/diariodigital.sapo.pt. Acesso em 5 de dezembro 2011.
19
frase acabou. Mas o leitor menos preguiçoso habitua-se ao fim de
quatro páginas e consegue deslizar. Consegue seguir naquela leitura
com menos travões com alguma destreza. Fico contente quando
percebem que este tipo de pontuação os leva mais rápido ao fim da
história.
Assim, para Valter Hugo Mãe, “numa obra literária, as palavras têm todas a
mesma importância. [...] Há uma opção democrática absoluta. Não há nenhuma palavra
com a cabeça ao alto”.8
Destacamos ainda a ausência de sinalética a demarcar o discurso direto e
indireto, bem como a ausência dos pontos de interrogação ou exclamação. Esta escrita,
desimpedida das convencionalidades das normas ortográficas, adquire características da
linguagem oralizante, que exigem ao leitor empenho, acuidade e competência na
interpretação.
No romance, além da supressão de quaisquer outros sinais gráficos, com exceção
das vinte e três letras do alfabeto (não há k, w ou y), o ponto e a vírgula, também não há
algarismos, estrangeirismos, dois-pontos, aspas, pontos de exclamação, ponto de
interrogação. Ressaltamos que, excluindo o uso sistemático das minúsculas, os outros
aspectos também estão presentes no estilo de José Saramago, sendo responsáveis, por
exemplo, pelos longos diálogos sem travessão, com as falas das personagens em um
mesmo parágrafo separadas apenas por vírgulas, que marcam as páginas do escritor.
Nos dois casos, o de Saramago e o de Valter Hugo Mãe, diminuem-se os recursos de
que se dispõe para, daí, experimentar a linguagem encenando uma situação de
precariedade linguística própria dos momentos históricos iniciais da língua portuguesa,
em que de fato diversos sinais gráficos ainda não haviam se constituído.
Baltazar Serapião, o protagonista-narrador do romance, durante toda a narrativa,
mantém o movimento pendular entre polaridades. Ele ama e odeia, mistura violência e
doçura. A linguagem é tensa o tempo inteiro; talvez, para alcançar tal efeito, o autor
tenha optado por uma construção sintática pouco convencional, que não se atém ao
sujeito-verbo-predicado. Com efeito, no texto, predominam as inversões, os diálogos
são usados sem as suas características próprias, dois pontos, travessão ou aspas, enfim,
sem a indicação de turnos da fala. A forma elíptica da frase aparece reiteradamente
rompendo a sintaxe, como também a elipse semântica, ao suprimir-se palavra de
importância decisiva. Em relação à semântica – “cus” – e outras escatologias se veem
8
Disponível no site http:/diariodigital.sapo.pt. Acesso em 5 de dezembro 2011.
20
lado a lado com formas pudicas de referência a “partes da natureza”, para designar os
órgãos sexuais. O trabalho com a expressividade supera questões gramaticais. O autor
faz habitualmente transgressões que provocam logo de início certo estranhamento que,
mais tarde, se transforma em fruição.
Passaremos a seguir ao levantamento dos recursos que ajudam a conferir
poeticidade à obra. Destacaremos o perfil estilístico de Valter Hugo Mãe dentro da obra
do escritor que se distingue como o trabalho mais radical de experimentação com a
língua. Necessário esclarecer que consideramos estilo a forma pessoal de expressão de
certo autor, em certa obra de certa época. Elegemos o conceito da teórica Norma Discini
(2009), que nos acompanha na pesquisa:
[...] estilo é efeito de sentido e, portanto, uma construção do discurso.
Acreditamos que esse efeito emerge de uma norma, determinada por
recorrências de procedimentos na construção do sentido, desde os
níveis mais profundos até os mais superficiais do percurso gerativo do
sentido. (DISCINI, 2009, 36-37)
Esclarecemos, também, que ao nos referir à escrita de Valter Hugo Mãe de
poética, destacamos a força com que a linguagem é elaborada, próxima à metáfora
empregada por Guimarães Rosa, epígrafe do presente trabalho: “as palavras têm canto e
plumagem”9. O poético visto não de maneira redutora a um gênero literário, mas a uma
relação da linguagem com a dimensão artística.
Para abordar a ars poética de Valter Hugo Mãe, no romance em análise,
dividimos em tópicos os recursos linguísticos encontrados. No primeiro nível,
trataremos da fonética, a seguir o morfológico e, por último o sintático.
1.1
Aliterações e outros sons
Saussure, em seu Curso de Linguística Geral (2006), revela que o signo
linguístico é arbitrário, isto é, não há nenhuma correspondência entre o significante e o
significado, vale dizer que os sons e a articulação da palavra têm expressividade zero.
Quando existe alguma correspondência, há a “motivação sonora”, uma das propriedades
da linguagem poética de que iremos tratar aqui.
9
ROSA, J. G. São Marcos. In ROSA, J.G. Sagarana. 54ª Impressão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
2001, p. 261-292.
21
Os fonemas, além de permitir a oposição entre duas palavras, (mala/mapa) a
função distintiva, desempenham uma função expressiva que se deve a particularidades
da sua articulação e às suas qualidades de timbre, duração, intensidade. Eles constituem
um complexo sonoro de extraordinária importância na função emotiva e poética. Os
sons da língua podem provocar-nos uma sensação de agrado ou de desagrado e ainda
sugerir ideias e impressões. Esses valores expressivos de natureza sonora são
observáveis nas palavras e enunciados, justamente a matéria-prima com que trabalham
os artistas. Por isso, eles são os que melhor apreendem o potencial de expressividade
dos sons e que deles extraem um uso refinado.
No seu empenho pela motivação, os poetas acumulam em seus versos os
fonemas mais próprios a expressar a ideia a exprimir. É um dos recursos para que a
mensagem valha por si mesma, não apenas pelo seu valor referencial, conforme
Jakobson (2007).
A musicalidade é um elemento identificador do estilo de Valter Hugo Mãe,
o que dá um caráter diferencial à sua prosa. Entre os muitos recursos poéticos do
romance (vocabulário, repetições, jogos de sonoridade), ressaltamos a aliteração que
consiste, segundo Nilce Sant’Anna Martins, numa “repetição insistente dos mesmos
sons consonantais, podendo ser eles iniciais, ou integrantes da sílaba tônica, ou
distribuídos mais irregularmente em vocábulos próximos”. (2008, p. 59)
Tal repetição chama a atenção para a sua correspondência com o que exprime ou
realça determinadas palavras, intensifica o ritmo, conferindo-lhe expressiva harmonia
imitativa, como é o caso dos exemplos que se seguem.10
10
sem saber o sucedido, a sarga estava fugida. (p. 144); para pegar poucos pertences (p. 175);nada fiz
que me pusesse às avessas dessa paz, (p. 54); estúpida não pares de me limpar os pés. (p. 73); trabalho de
braço a cavar cova em que coubesse alma grande de diabo. (p. 87); estropiada do pé, pouco capaz de ver
(p. 17); de pé seguido de pé, a mulher queimada nunca nos haveria de alcançar. (p. 127); [a sarga]
assustada quisesse fugir conhecesse mais seguro. (p. 14); dona catarina, cabrona, cabeça pesada osso
corno que lhe arrebitava (p. 73); e nosso espanto foi, sala dentro de el-rei imponente, vista à luz do dia
com tapume de túnica a toldar-lhe toda a pele, estava ela, a mulher queimada, gertrudes, autora da nossa
pena, e por mão de majestade ali se chegou a nós vitoriosa e quase sorridente. (p. 137); a sarga calou-se
de sossego e sonos especada na noite. (p. 15); algo ou alguém em volta (p.64); para uma nova realidade,
apartados pelas opções e papéis que nos eram destinados desde sempre (p. 48); mas eu demorei a decidir
ideia valida de fazer (p.193); compreensão com meus companheiros (p. 193); mais marido tivesse mais
enterrava (p. 109); fomos por pé próprio embora (p. 147); para se prenderem por uma perna (p. 19); e ele
acudiu-me de abraços, aflito por minha aflição, correndo como eu à casa de outros para problema meu.
(p. 79); “e fomos juntos, enfim, enrolá-la cuidadosamente em linho que tínhamos, (p. 79); desempenasse
peito e pernas que me tapasse feridas (p. 31). (MÃE, 2011, grifos nossos).
22
[...] a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas
onde só diabo e gente a arder tinham destino, a voz das mulheres,
perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a
sarga, como lhe chamávamos. (MÃE, 2011, p. 11. Grifos nossos).
Os exemplos acima tratam das consoantes constritivas que, por possuírem
caráter contínuo, sugerem sons de certa duração, as labiodentais [f], [v], imitam sopros
que têm valor expressivo em vocábulos como voz.
À disposição do artista, existem, na língua, consoantes que possuem traço
explosivo, que se prestam, assim, a reproduzir ruídos duros, secos, de batidas, pancadas,
passos pesados. São as consoantes oclusivas. Salientamos que as surdas [p], [t], [k] dão
uma impressão mais forte, mais violenta, do que as sonoras [b], [d], [g]. Nos trechos a
seguir é explorado o valor do som oclusivo surdo, enfatizando a relação entre
significante e sentido das palavras.
fomos por pé próprio embora, povo atrás olhando e gritando, são
animais, àquela, de tão bela, haviam de a estropiar até parecer gado
sem raça precisa, meio cabra, meio cadela. (MÃE, 2011, p. 147
Grifos nossos)11
entrássemos ali, morreríamos de espada golpada em nosso pescoço,
dias a fio não morreríamos para provar limpeza de maleitas pegadas,
e tão longe me impunham os pés, fechado de trabalho que nem vacas
me davam para mugir. (p. 87. Grifos nossos)
a sarga está perto daqui, e o dagoberto pôs-se num pulo perto da porta
e ouvimo-lo a fazer ruídos para que, se a vaca estivesse real do lado de
lá, nos sentisse. ( p. 177. Grifos nossos)
A repetição de sons no final das palavras é designada por nomes diversos:
homeoteleuto (final igual), rima, eco, sem que seja bem precisa a distinção entre os
termos. Basear-nos-emos na nomenclatura adotada pela professora Nilce Sant’Anna
Martins (2008), que esclarece que o homeoteleuto é o aparecimento de uma terminação
igual em palavras próximas, sem obedecer a um esquema regular, ocorrendo
ocasionalmente numa frase ou verso. O efeito estilístico que oferece é realçar a
correlação entre as palavras em que se dá, podendo também contribuir para a harmonia
imitativa. Seguem alguns exemplos.
11
A partir daqui, as demais citações sobre a obra analisada serão referidas apenas pelo número da página.
23
o aldegundes, fraco, um repolho de gente quase a querer ser homem,
era descarnado e enfezado de altura e largura, que haveria de poder
ele quando a sarga estava mais assustada e escutava menos as suas
palavras. (p. 14. Grifos nossos)
tudo era silêncio em redor das suas ordens, nada diferia do que a vida
devia ser. por isso nada fiz que me pusesse às avessas dessa paz,
senão puxar as rédeas da minha mulher. (p. 54. Grifos nossos)
O segundo fragmento traz, além da terminação igual, -esse em “pusesse”, “às
avessas” e “dessa”,
comentada, a aliteração do [d], que confere valorização ao
significado. As antíteses “tudo”, “nada”, “nada” destacam o raro momento de paz de
Baltazar. Com o silêncio de Dom Afonso, Ermesinda era só dele, marido, o pronome
possessivo em“minha mulher” marca a posse.
Há muitos casos de palavras derivadas do mesmo radical em uma mesma frase,
ou mais ou menos próximas. A recorrência dos cognatos12 no romance pode sugerir a
repetição de ideia, além de dar cadência à narrativa. Alguns exemplos na obra analisada.
o dagoberto estava tão mirrado, na verdade, que entre as árvores podia
parecer um ramo descarnado de folhas, desfolhado de flores ou fruto.
(p. 182. Grifos nossos)
a dona catarina estava de mal com as pinturas do aldegundes, mandou
juntá-las todas para vista pormenorizada, não fossem sinalar alteração,
deturpação, pioramento que os piorasse a eles, dona catarina e dom
afonso. (p. 162. Grifos nossos)
Martins (2008) chama esse recurso de anominação. Valter Hugo Mãe aproveita
ludicamente a anonimação em três momentos muito especiais: no primeiro, ao descrever
a atitude do bom Teodolindo, que demonstra sua grande amizade por Baltazar quando a
mãe do protagonista morre. Teodolindo o socorre ao pedir aos vizinhos roupas para
enterrar a mãe do amigo:
12
muito nos honra vossa comoção, e nos comove pedido que fazeis (p. 106); agarrar em garra o
trabalho (p. 37); e se a partisse mais ainda, partida de outro pé (p. 87); amo-a eu como um desesperado.
desesperava pelo amor (p. 137); tenho bruxa ainda maior que curará de remendo que vos fizeram, e
remendados (p. 137); que mais puxem dele, que puxado, como eu vi, já ele está (p. 62); e que sina tão
maldosa, fazer de um homem casado o proprietário mal recebido da sua própria esposa (p. 63). Outras
repetições: mais cedo aprendesse a fazer-se de homem e mulher, mais cedo aprenderia o ofício da viuvez
(p. 158); e é como estou, assim estou pela minha ermesinda (p. 135); compensado de talento natural,
compensa que nos poderia favorecer (p. 106); as coisas padeciam e pareciam implorar que nos
fôssemos (p. 155); separação uns dos outros para, uns e outros, sermos felizes (p. 155); nossas carnes
neste sol a abrasar. começava a abrasar o sol (p. 114); o meu pai desesperou de esperar que filhos seus
lhe caíssem ao chão, e assim ficamos suados e sujos (p. 161). (Grifos nossos)
24
e ele acudiu-me de abraços, aflito por minha aflição, correndo como
eu à casa de outros para problema meu. (p. 79. Grifos nossos)
O segundo momento ocorre na cativante prece de Baltazar, longe de Ermesina e
angustiado por acreditar que a amada o trai com dom Afonso:
deus meu, leva-me daqui para casa, que braços da minha mulher se
abraçam de homem que não sou eu. (p. 136. Grifos nossos)
Aparece, ainda, quando o narrador associa Ermesinda à luz, à pureza.
dirigir-me a palavra e, enfim iluminar-me como iluminava a
escuridão e envergonhava todas as sombras. (p. 36. Grifos nossos)
Em algumas ocasiões, o autor alitera palavras próximas que constituem uma
rima sutil, quase equívoca (de palavras iguais)
as coisas padeciam e pareciam implorar que nos fôssemos (p. 155.
Grifos nossos)
a cada deslize, reposta no respeito (p. 17. Grifos nossos)
A seguir trechos cujos jogos sonoros são explorados para realçar palavras,
reforçar o liame entre os termos ou contribuir para criar expressividade e harmonia no
texto.
de pé seguido de pé, a mulher queimada nunca nos haveria de
alcançar. (p. 127. Grifos nossos)
precisados de quebras de enganamento que nos desenganasse
a vida (p. 154. Grifos nossos)
A maior característica de Valter Hugo Mãe no romance é seu trabalho com a
linguagem. Tal trabalho, sempre atento e esmerado, tem como principal inimigo o
lugar-comum. Em vez de o narrador dizer “eu sofri muito”, diz:
eu sofri para mim tão sozinho. (p. 186)
Em vez de dizer que a mulher queimada era viúva, diz:
25
era mulher velha e matreira, enfiada em casa, sozinha de maridos,
postos em terra cedo de mais. (p. 74. Grifos nossos)
Para dizer que Ermesinda era discreta:
dizia-me a minha bela e calada esposa, olhos não abertos dos pés,
delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me
impressionava. (p. 46. Grifos nossos)
quantas vezes eu a ia ver de propósito a descer rua abaixo sem olhar
para os lados, já os homens coçados dela, a ganirem alfabetos porcos
para a encostarem de sexo às paredes e ao chão. mas ela descia e subia
trajecto abaixo e acima sem abrir os olhos dos pés, calada sem nada,
à espera de sobreviver virgem a uma beleza que se tornava famosa (p.
22. Grifos nossos).
É assim que Valter Hugo Mãe evita fórmulas feitas e procura sempre inovar.
Isso se traduz em frases nas quais informações simples são transmitidas num nível
diferencial de linguagem e com expressões originais. No exemplo a seguir, no auge da
paixão, Baltazar associa “puta” com “pura” e “segura”, o que expõe a confusão de
sentimentos opostos e conflitantes que se passam em sua cabeça.
puta, [...] satisfeita com ser refeição de um velho tão feio [...] seguia
sem ver senão os pés, como eu a sabia de sempre na rua, discreta e
segura como recatada mulher, pura. (p. 64. Grifos nossos)
Notamos que os vocábulos apresentam sons comuns. Entre puta/pura/segura/rua
temos a coincidência de consoantes (rima consonântica) e alternância da consoante r/t.
Além da oposição de sentido, há identidade de sons, resultando num efeito ampliado
que valoriza o oxímoro. O trecho acima expõe o principal conflito de Baltazar diante de
sua esposa, voltaremos a ele no próximo capítulo.
Os sons sibilantes podem ser imitados pelas alveolares [s ] e [z ], para contribuir
e criar expressividade como a seguir.
a sarga calou-se de sossego e sonos especada na noite.( p. 15. Grifos
nossos)
deixei-me consigo como se nada me revoltasse nas suas opções. (p.
143. Grifos nossos)
nada fiz que me pusesse às avessas dessa paz. (p. 54. Grifos nossos)
26
Observamos que tudo significa, como no trecho a seguir, em que Baltazar e
Aldegundes veem pela primeira vez a causadora da maldição que os atormenta, e que os
levará à morte. A narrativa corre com sons escolhidos de forma a significar o susto que
os irmãos tomaram quando estão frente a frente com a bruxa Gertrudes, mais conhecida
pela antonomásia13, mulher queimada. Os sons oclusivos dentais surdos [t], por vezes,
combinados com a homorgânica sonora [d], podem sugerir o susto e tremor das duas
personagens, Baltazar e o irmão, Aldegundes.
e nosso espanto foi, sala dentro de el-rei imponente, vista à luz do dia
com tapume de túnica a toldar-lhe toda a pele, estava ela, a mulher
queimada, gertrudes, autora da nossa pena, (p. 137. Grifos nossos)
A interrupção brusca da frase depois do verbo de ligação, a elipse do predicado e
a inversão (“sala dentro de el-rei imponente”) são recursos que sugerem o susto dos
irmãos, uma maneira de o significante motivar o significado.
Na sequência, há falta de pontuação e repetição da conjunção e, marcas visíveis do
discurso oral:
e eu recuei e amedrontei o aldegundes que recuou e percebeu e nada
dissemos. (p. 137. Grifos nossos)
Notamos a significativa relação entre som e sentido no emprego do fonema [g]
transmitindo ou sugerindo o engasgo, “garganta engasgada” por meio da repetição do
som, em mais um dos casos do fenômeno conhecido por aliteração.
não lhe parecia ser real que alguém se tivesse de sexo para lá daquela
porta, que mesmo em modos meigos um dia haveria em que se
soltaria um gemido revelador, um soluço de garganta engasgada, (p.
47. Grifos nossos)
As aliterações podem ocorrer também para destacar o fato narrado, caso do
exemplo abaixo, com a repetição dos fonemas [t] e [d], a antecipação do desfecho da
narrativa ganha destaque, vislumbrada pela repetição da palavra “nada” em “tardava
nada” e “não existisse nada”.
13
Antonomásia é uma figura de linguagem caracterizada pela substituição de um nome por outro nome
ou expressão que lembre uma qualidade, característica ou um fato que de alguma forma identifique-o.
(SANTANA, 2008).
27
tardava nada [...] estaríamos destinados a desaparecer dali e de
todos os lugares, [...] para onde não existisse nada. (p. 158.
Grifos nossos)
Já no trecho a seguir, a aliteração do fonema [m] sugere o sentimento que toma
conta do narrador antes de se encontrar com Dom Afonso, medo, que o faz tremer:
e medo, medo aterrador fosse ele rachar-me ao meio, apoderarse do meu desvalor e mandar que me terminassem. (p. 63.
Grifos nossos)
Ficaram assim demonstradas algumas das possibilidades estéticas dos fonemas,
tão bem exploradas pelos poetas e muito caras ao escritor analisado.
Vimos os recursos que conferem ao texto ritmo e musicalidade nas mais
variadas formas: rimas, ecos, aliterações, emprego de consoantes homográficas
(pronunciadas na mesma área de articulação), repetições de palavras e ainda duplas de
palavras formadas com mesmo radical.
1.2 Figuras de linguagem
Sabemos que as figuras de linguagem são estratégias que o escritor pode aplicar
no texto para conseguir um efeito expressivo determinado. Elas constituem um desvio
linguístico para que a palavra assuma, assim, um novo aspecto. Entre as mais
recorrentes no romance, destacamos: metáfora, metonímia, antítese, oximoro, hipérbole,
silepse, personificação, animalização, polissíndeto, ironia.
1.2.1 Metáfora
É o emprego de um significante com um significado secundário ou a
aproximação de dois ou mais significantes, estando, nos dois casos, os significados
associados por semelhança, contiguidade, inclusão. Ela é um desvio em relação à
linguagem comum, transferência ou mudança de sentido. (MARTINS, 2008)
dias calados se fizeram, muito mais porque dom afonso, assustado
com escândalo que lhe aumentasse, abdicara das visitas, a desoras14 de
dona catarina, por parte da minha ermesinda. (p. 54. Grifos nossos)
14
Desoras ou falta de horário.
28
Ao atribuir o adjetivo “calados” aos dias, o narrador lhe confere grande
expressividade, pois desloca uma palavra, normalmente, empregada para pessoas, para
um ser inanimado. Os referidos “dias calados” são muito importantes para Baltazar,
porque representam os dias em que Ermesinda não frequenta a casa de dom Afonso.
Os encontros entre Ermesinda e Dom Afonso transformam Baltazar em um
homem extremamente ciumento e violento com a esposa. Para o protagonista, Dom
Afonso “levou de casa a ermesinda para as suas manhãs muito cedo em conversas sem
tradução” (p. 63. Grifos nossos). Uma maneira metafórica de exprimir a sua falta de
entendimento com o que ocorria nos encontros.
O adjetivo “calado”15 também marca a transformação da formosa personagem.
Após o casamento, pouco a pouco, emudecia16:
dizia-me a minha bela e calada mulher”. (p. 46. Grifos nossos).
dá-me uma palavra só, uma palavra que te comprometa comigo e com
a educação que te devo dar. e só te quero dar amor, ermesinda. e ela
nada, calada de mudez. (p. 189. Grifos nossos).
havia de lho entortar e arrancar se lhe descobrisse uma prova, puta,
calada de segredos fundos. (p. 64. Grifos nossos).
e a ermesinda nada disse, calada a sair para encontrar dom afonso,
como sempre. (p. 96. Grifos nossos).
O segundo exemplo traz o verbo “sarar” em “sarar ao menos os olhos de nossas
pessoas e paisagem”. Este emprego revela uma grande expressividade poética porque os
irmãos Serapião vinham de intenso sofrimento. Partiram para o palácio de el-rei Dom
Dinis com a esperança de conseguir mudar a condição miserável em que a família vivia,
por meio do reconhecimento público da arte de Aldegundes. Estavam certos de que
retornariam glorificados. Mas voltaram em condição ainda pior, porque vieram
amaldiçoados. Os irmãos ficaram afastados da família durante longo tempo.
Fragilizados e tristes, precisavam “sarar os olhos de nossas pessoas e paisagem”, ou
seja, rever a família, as pessoas queridas e o lugar onde moravam para se sentirem mais
15
Ser calada corresponde ao que se espera da mulher. A fala do pai de Baltazar, endossada por ele, é
clara: “uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada
nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus
erros, também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há coisas do decoro da
casa que se devem confinar aos nossos. (p. 17, grifos nossos)
16
Lembremos sempre da epígrafe do romance: “ há a boca pisada de pedras”.
29
fortes.
se continuámos, foi por sentimento de tristeza que nos dava
necessidade de pôr pé em casa a sarar ao menos os olhos de nossas
pessoas e paisagem. (p. 142. Grifos nossos)
Ainda em relação à metáfora, há o emprego da figura com intensa significação
na história. O tratamento oferecido à Ermesinda, a “bela e calada mulher” (p. 46.
Grifos nossos) de Baltazar, está configurado no que chamamos a luz de Ermesinda.
Passaremos a mostrá-lo.
Muitas vezes, ao se referir à Ermesinda, o narrador seleciona palavras ou
expressões que remetem à luz. Ao todo, são oito fragmentos do romance, que indicamos
a seguir. Observamos que é necessário citar os trechos inteiros porque a linguagem
elíptica e a falta de pontuação, muitas vezes, dificultam o entendimento.
No primeiro, Baltazar segue a futura noiva e percebe que o pai de Ermesinda a
geria. Ela só saía quando autorizada por ele. Aparecem algumas das características de
Ermesinda: obediência, discrição. E a luz, a significar a pureza de Emesinda: como
“essa coisa branca que me impressionava”, “luzia no sol”, “muito clara”.
naquela tarde desci à terra, fugido dos animais por um breve tempo,
apontei-me ao trajecto de ermesinda entre casa e fonte, saía pela porta
lateral e encostava-se às paredes como essa coisa branca que me
impressionava, e dava as boas-tardes ao pai que a geria com os olhos
rua abaixo, ele ali, agarrado ao percurso com distância, a cargo do
ferreiro da terra a amolar e a limar pesados instrumentos, e ela seguia
assim permitida, a fazer discretamente o que lhe era pedido, voltava
lavada na fonte do rosto, mãos e braços e luzia no sol assim molhada,
como folha verde muito clara, dada de orvalho pela manhã. (p. 35.
Grifos nossos)
O segundo fragmento traz Baltazar descrevendo a amada como “uma rapariga
feliz” e também “muito rosada como as flores”. Volta a referência à claridade: “uma
coisa branca” O adjetivo “feliz” é importante de ser ressaltado, porque será transitória a
felicidade.
era uma rapariga feliz, mostrava, muito rosada como as flores e,
quando passava nas ruas a buscar coisas que os pais mandavam, era
muito parecida com uma coisa branca que impressionasse a
escuridão das casas e das outras pessoas.
(p. 22. Grifos nossos)
30
Os valores que caracterizam a rapariga são apresentados no terceiro fragmento.
Baltazar sonha em falar com ela ou que esta “pudesse até dirigir-lhe palavra”; mostra
insegurança, tão própria dos apaixonados: “que teriam contado à pobre rapariga sobre
mim” e, sempre, a a recorrente metáfora da luz: “iluminar-me como iluminava a
escuridão e envergonhava todas as sombras”.
e eu suspirava, como tanto queria que ela soubesse ser eu o candidato,
ter-lhe-iam dito os seus pais, perguntava, que teriam contado à pobre
rapariga sobre mim, se teriam, nada que eu visse, estava como
recatada de sempre sem querer que se notasse ir prometida, e entre a
discrição do mando dos seus pais não acusava mais vida que lhe fosse
própria, foi como fiquei desiludido com a esperança de lhe ter dado
sinal suficiente para que se amigasse de mim com o olhar e, quem
sabe, num dia não vigiada, pudesse até dirigir-me palavra, dirigir-me
palavra e, enfim, iluminar-me como iluminava a escuridão e
envergonhava todas as sombras. (p. 36. Grifos nossos)
O quarto excerto corresponde ao pedido da mão de Ermesinda, a narrativa
poeticamente elaborada lembra a vassalagem amorosa. Baltazar, finalmente, lhe diz que
mesmo “sem condição ou honraria” que o levassem até ela, o que ele faria seria deixar
emergir o seu sentimento amoroso “há tanto fulgurado para o interior de mim e intenso
para sair à brancura do seu ser” (p. 39. Grifos nossos).
era grande, e cada vez maior, o intuito de me exceder e lhe dirigir
palavra, mas como seria perigoso fazê-lo, arriscar a desonra de
desobedecer aos intentos dos meus futuros sogros e procurar a
rapariga antes que me fosse devidamente concedida, por isso, esperei
pela voz dela que veio no momento em que fui levado a sua casa a
pedir-lhe a mão. sem condição nem honrarias que me levassem ali
refinado ou melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se
notasse, há tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair
à brancura do seu ser. (p. 39. Grifos nossos)
Os quatro excertos acima referem-se à situação do casal antes do casamento.
Depois do enlace, o protagonista é assaltado por desconfianças de adultério e a vida dos
dois jovens se transforma, mas, mesmo com as agressões à esposa, a metáfora da luz
não se apaga. Baltazar sempre verá um brilho em Ermesinda que a distingue de todas as
pessoas.
O trecho abaixo, o quinto, corresponde à resposta de Ermesinda quando Baltazar
a interroga a respeito dos encontros dela com Dom Afonso:
31
não acontecia mais nada, dizia-me a minha bela e calada mulher,
olhos não abertos dos pés, delicadeza à minha mesa e na minha cama,
como coisa branca que me impressionava; (p. 46. Grifos nossos)
O narrador mesmo sofrendo com o ciúme reafirma os valores da esposa: discreta
(“olhos não abertos dos pés”), delicada (“delicadeza à minha mesa e na minha cama”),
“calada” e iluminada, “coisa branca que me impressionava”.
Seguem os comentários dos vizinhos quando percebem que Baltazar desfigurou
quem era linda. Mesmo assim, para ele, Ermesinda mantém o brilho, agora, interno, no
sétimo trecho:
fomos por pé próprio embora, povo atrás olhando e gritando, são
animais, àquela, de tão bela, haviam de a estropiar até parecer gado
sem raça precisa, meio cabra, meio cadela ou monstro até. também era
o que diziam da minha ermesinda. fomos esperá-la à porta de dom
afonso, escondidos em arbustos e tufos de ervas grandes, pus-lhe
braço em cima para lhe mostrar que era minha, levei-a para casa como
a guardar uma preciosidade e ela brilhou por dentro. (p. 147. Grifos
nossos)
Por fim, a oitava metáfora da luz. Trata do gesto de Ermesinda em oferecer
solidariedade e esperança ao marido em um momento difícil. Ele procurara uma bruxa
para desfazer a maldição e não obteve sucesso. Ela acena que nova procura deve ser
feita, porque nem tudo estava perdido e lhe transmite esperança.
e ela sorriu de ternura, tinha coisas preparadas na mesa e afirmou,
amanhã melhor sorte teremos, amanhã, muito me iluminou o seu
rosto esperançado, sorriso que me ofereceu, já tão limpo de ter sido
mulher de outro, comemos com pressa e, com alma ou sem alma, fui
feliz uns instantes, pus-lhe mão no joelho e disse-lhe, és o amor da
minha vida, a única mulher que eu amo. (p. 160, Grifos nossos)
Os exemplos vistos acima tiveram por objetivo mostrar o tratamento especial e
peculiar dado à Ermesinda pelo narrador. Sua apresentação é lírica, tomada por puro
enlevo romântico. As qualidades da personagem são reafirmadas e a distinguem,
sugerem em muitos momentos a concepção feminina da cantiga de amor e a vassalagem
amorosa.
1.2.2 Metonímia
É a figura que designa uma coisa pelo nome de outra que lhe está habitualmente
associada. (Reboul, 1998, p.121)
32
eles já lá tinham a brunilde a fazer-lhes serviços de interior, como nos
contava ao descer aos legumes e ao leite17. (p. 17. Grifos nossos)
eu retirava-me [...] para regressar às vacas18, ao leite, às leveduras e
ao tempo do queijo. [Equivale a cuidar do gado, da horta.] (p. 28-29.
Grifos nossos)
se a dona catarina me der licença, eu vou aos pratos para o almoço (p.
72. Grifos nossos).
quando a brunilde nos disse das águas, tão absurdamente antes do
tempo devido, tanto se parecia a morrer de dor que lhe dava (p. 168,
Grifos nossos)
A metonímia por sua natureza concisa tem uma força expressiva nas frases. Nos
três primeiros trechos, se o escritor tivesse dito “como nos contava ao descer para as
plantações de cenouras, batatas e aos gados”, ficaria o fato, mas a linguagem em nada o
sublinharia, o mesmo raciocínio para os pratos, em vez de preparar o almoço.
No último trecho, outro exemplo de metonímia, as “águas” representam a bolsa
que contém o líquido amniótico, que protege o bebê dentro do útero de Brunilde.
1.2.3 Antítese
Para Fiorin19, o fundamento lexical da antítese é a antonímia. Com efeito,
Saussure (2006) diz que na língua só há diferenças. Isso quer dizer que só se
compreende o sentido quando se apreende uma oposição, que, normalmente, fica
implícita. A figura serve para mostrar as sutilezas da análise da realidade, em que se
acotovelam incongruências e oposições.
Verificamos, na narrativa analisada, que a antítese ultrapassa as dimensões das
palavras, dos sintagmas e dos períodos.
a) Palavras: “pais envergonhados de velhice e o aldegundes
acordado de juventude. (p. 34. Grifos nossos)
b) Sintagmas: “furioso sem respostas, adormecido cada vez
menos e acordado cada vez mais. (p. 47. Grifos nossos)
17
Vocábulos usados nas acepções de plantação, horta, gados.
Vocábulos usados nas acepções de gado, de horta.
19
Fiorin, José Luiz. A ênfase nas oposições. In Revista Língua Portuguesa, São Paulo, edição de abril de
2012.
18
33
c) Orações: “tão igual que nada a tivesse mudado, nada me
parecia o mesmo.” (p.59. Grifos nossos)
Parece-nos estar no domínio da figura ora estudada, o masculino, representado
por Dom Afonso, Baltazar, seu pai, Afonso, em oposição ao feminino, representado por
Ermesinda, a mãe de Baltazar, que não é nomeada, Dona Catarina, Brunildes. As
relações homem/mulher estão fundadas na oposição superioridade e inferioridade;
arrogância e sujeição.
Envolve também a figura citada a composição de algumas personagens, caso de
Baltazar e Ermezinda. Ambos podem ser comparados a dois focos: um, o sol brilhante e
o outro, o sombrio. Trevas vs Luz parece distinguir o casal.
Passa-se da antítese à sua variante, o oxímoro, quando se consideram as
características das personagens Ermesinda e Teresa Diaba.
Teresa
Ermesinda
“Pura”
“bela” “virgem”
“clareza”
“brancura” “luz”
“anjo”
sublime
Antíteses
“Puta”
X
Oxímoro
“feia” “estropiada”
“torta” “animal”
“diaba”
profana
Ermesinda
Bela/feia
Puta/pura
No gráfico acima, procuramos demonstrar de que maneira o texto trabalha as
antíteses entre Ermesinda e Teresa Diaba resultando na fusão dos opostos em
Ermesinda. O oxímoro consigna a fusão dos opostos, tem a finalidade de “apreender as
aporias, os paradoxos, as incoerências de uma dada realidade”20. Ao provocar um
estranhamento, torna o sentido mais profundo, mais intenso. Normalmente, esta figura é
20
Fiorin, José Luiz. A graça do contraste. In Revista Língua Portuguesa. São Paulo, março de 2012.
34
construída estabelecendo uma relação entre duas qualidades conflitantes, para expressar
a complexidade da realidade.
Já tivemos ocasião de comentar que o narrador apresenta Ermesinda liricamente,
ela é etérea, a moça “de lá”, com valores que a dignificam. Já Teresa Diaba tem uma
apresentação escatológica, vulgar, moça “de cá”, da terra.
Quando na apresentação de Ermesinda a Dom Afonso, os contrários se
aproximam. Como se o sagrado e o profano pudessem conviver na mulher amada. Esta
nova perspectiva em que vê Ermesinda desestabiliza o apaixonado protagonista que até
o final da narrativa vai carregar a certeza da dúvida.
São norteadores do sentimento amoroso de Baltazar por Ermesinda a antítese e o
oximoro. Uma relação em que convivem os contrários: a agressão revela o carinho; o
ódio revela o amor; as ofensas morais e xingamentos convivem com a declaração
apaixonada.
1.2.4
Hipérbole
A hipérbole (do grego hyperbolé, que significa "ação de lançar por cima ou
além"; depois, "ação de ultrapassar ou passar por cima"; daí, "excesso", "amplificação
crescente") é o tropo em que há um aumento da intensidade semântica. É a expressão
intencionalmente exagerada com o intuito de realçar uma ideia21.
nem manjerona suficiente haveria em todas as terras para untar tanta
ferida aberta que te fizesse. (p. 146. Grifos nossos)
fosse a ermesinda meter-se debaixo de dom afonso e que faria eu
corno, apaixonado, morto de loucura por ela. (p. 45. Grifos nossos)
a mulher queimada [...] tinha domínios desnaturais a permitirem-lhe
capacidades de mais proveito que a força de mil homens, (p. 114.
Grifos nossos)
Ainda citando Fiorin22, o uso da hipérbole no discurso amplia a intensidade do
sentido dado a uma realidade. Ao dizer de maneira mais forte alguma coisa, chama-se a
atenção para aquilo que está sendo exposto. Quando se afirma, por exemplo, que a
21
Material pesquisado em http:www.controversia.com.br/index.php?act=textos&=10456, assinado por
José Luiz Fiorin, acesso em 13.06.2012.
22
Material pesquisado em http:www.controversia.com.br/index.php?act=textos&=10456, assinado por
José Luiz Fiorin, acesso em 13.06.2012.
35
mulher queimada tem a força de mil homens, o que se pretende é destacar o grau de
poder dessa pessoa. Da mesma forma, a intensidade do amor de Baltazar por Ermesinda
é revelada na expressão “morto de loucura por ela” (p. 45). É o tropo em que se diz mais
para significar menos, mas, por isso mesmo, enfatiza-se o que está sendo expresso.
Verificamos que a hipérbole é erigida em princípio de composição do texto em
ocasiões especiais do romance. Quando o pai mata a mãe:
o meu pai rebentou braço dentro o ventre da minha mãe e
arrancou mão própria o que alguém ali deixara, e gritou, serás
amaldiçoado para sempre, depois estalou-o no chão e pôs-lhe pé
nu em cima, sentindo-lhe carnes e sangues esguicharem de morte tão
esmagada, e, como se gritava e mais se fazia confusão, mais se
apagava a minha mãe, rápida e vazia a fechar olhos e corpo todo, não
mais era ali o caminho para a sua alma, não mais a ela acederíamos
por aquele infeliz animal que, morto, seria só deitado à terra para que
desaparecesse. (p. 75. Grifos nossos)
Quando Baltazar se imagina traído e planeja vingança contra Ermesinda, ele
hiperboliza seu incorfomismo no discurso:
nessa altura, a minha ermesinda comida dia a dia pelo nosso senhor,
entre dilemas me via eu. partir-lhe tronco, deixá-la a rastejar, inútil,
e depois largá-la no centro das casas a vê-la solteira, esquecida a
esmolar-se para nacos de pão seco. partir-lhe pescoço e matá-la de
mais nada, isso sim, cornadura enterrada de vez por todas (p. 94.
Grifos nossos )
se te apanho um só sinal, um só sinal que me garanta que o avias,
abro-te meio a meio, e enterro-te meio a meio tão longe de parte a
parte que seguirás incompleta para o inferno para eternamente
agoniares de desencontro, (p. 96. Grifos nossos)
Considerando-se corno, o narrador premedita matar o suposto rival:
dom afonso morto, como ficaríamos entregues à sorte pouco risonha
de contar com dona catarina, burra de tanta coisa, estúpida de
acordar, parva de comer, feia de parecer, chata de aturar, má de
vestir, disparatada de falar, inebriante de aliviar as tripas,
impossível arriscar tanto, dom afonso, entre tudo, havia de ficar vivo,
(p. 94. Grifos nossos)
Conforme demonstrado nos textos acima, o emprego da hipérbole vai num
36
crescendo das expressões “morto de loucura por ela”, “a força de mil homens” a todo o
discurso.
Importante dizer que o discurso a que chamamos aqui hiperbólico fica no plano da
imaginação do protagonista. Contudo, Baltazar passará da imaginação à ação. Ele irá
materializar nas violentas agressões à Ermesinda suas ameaças, que serão analisadas no capítulo
seguinte.
1.2.5 Animalização / personificação
Em o remorso de baltazar serapião, um animal é personagem de destaque, a
vaca, cujo nome é Sarga. Ao processo de humanização por que passa a vaca, há um
contraponto no processo de animalização da família. A animalização tem início desde o
primeiro capítulo, quando o narrador declara “nós éramos os sargas23, [...] nada éramos
os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso” (p. 12).
e a pobre vaca, talvez percebida de estar velha e pronta a morrer,
deixava-se mais quieta e deitada fora, talvez temendo que as tábuas
lhe partissem os ossos, se caídas com um coice que lhes desse (p. 48.
Grifos nossos)
um acompanhamento de carpideiras que, desimportadas com a morte
da minha mãe, queriam mais verificar nossas patas de animal, nossos
focinhos de boi, jeito horizontal de lombo, nada natural em
homens de parto normal, e nada era normal, o que se enterrava tão
aberto de vísceras, a pedra no chão da igreja que se levantara e parecia
não querer caber na volta, a luz que se intensificou menos a partir do
sol, como um dia de verão impressionado, arrependido. (p. 80. Grifos
nossos)
O primeiro excerto confere atitudes e sentimentos humanos à vaca, enquanto o
segundo, por ocasião da morte da mãe de Baltazar, mostra o interesse dos vizinhos em
acompanhar o enterro somente para apontar as características que julgam aproximar a
família Serapião à vaca.
A narrativa, muitas vezes, atinge o grotesco ou escatológico, com a consideração
que a família tem pelo animal. A vaca dorme dentro da casa dos Serapião. Nas noites de
23
Quando do lançamento do seu último romance no Brasil (São Paulo, 5 de maio de 2012), Valter Hugo
Mãe contou que foi a partir da declaração de Almada Negreiros que surgiu a ideia de a família Serapião
ser conhecida pelo nome da vaca. Almada dizia que os animais deveriam ser conhecidos pelo nome da
família a qual pertenciam. Assim não se perderiam. Já com a ideia do romance sobre uma família de
tendência bestial, Valter Hugo Mãe resolveu subverter a ideia do escritor português. A família é que seria
conhecida pelo nome do animal de estimação.
37
tempestade, ela sempre se assusta e a família não dorme porque “a sarga mugia noite
inteira quando havia tempestade, dava-lhe frio e aflição de barulhos”. (p. 11) Com a
chuva o “vento a bater nos tapumes da janela mal coberta, água a inundar esterco no
chão”. (p. 11). O irmão mais novo, Aldegundes, “vinha dizer-nos que ela tinha água nas
patas e que em pressas se devia varrer dali inundação”. Aldegundes “não reparava que
também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de tormento
sem mais sono.” (p. 12).
1.2.6
Silepse
Silepse é a concordância que se faz com o termo que não está expresso no texto,
mas sim com a ideia que ele representa. É uma concordância anormal, psicológica,
espiritual, latente, porque se faz com um termo oculto, facilmente subentendido. Há três
tipos de silepse: de gênero, número e pessoa. Os exemplos a seguir referem-se ao
terceiro tipo (pessoa)
[dom afonso] estou seguro de que seu corpo se estenderá ao trabalho
em grande rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer
(p. 45. Grifos nossos)
sem emprego ninguém dos cinco, íamos para morrermos em poucos
dias. (p. 67. Grifos nossos)
os três seguimos dali com nosso pai à distância e todo o fim da
esperança. (p. 162. Grifos nossos)
Em todas as frases acima o verbo poderia estar na terceira pessoa do plural, mas,
o narrador optou pela concordância com o sentido, e não com a gramatical. Houve a
opção pela primeira pessoa do plural. Na primeira, tal emprego deixa claro que o sujeito
do discurso, Dom Afonso, se aproveitará do que Ermesinda souber fazer. A
concordância poderia ter sido com "todos", então a forma seria "aproveitarão" ("Todos
aproveitarão do que souber fazer."), no entanto, o enfoque mudaria completamente. A
opção pela silepse de pessoa é significativa e será objeto de estudo do próximo capítulo.
Nas outras frases, Baltazar se inclui nas ações.
1.2.7
Pleonasmo
38
Consiste na repetição da mesma ideia, causando redundância. Na linguagem
literária porém seu emprego cria efeito de sentido, conforme a seguir.
metida com quem lhe entrasse dentro (p. 55. Grifos nossos)
entrei dedo dentro de ermesinda olho arrancado (p. 107. Grifos
nossos)
Nos dois exemplos acima, o pleonasmo é empregado para dar ênfase à
expressão. No primeiro, para reforçar a alusão ao sexo. Reproduzimos o contexto para
melhor compreensão:
não queria imaginar, minha mãe tão velha, cega e estropiada e feia,
metida com quem lhe entrasse dentro, que prazer mórbido seria o
das coisas no sexo com velhas mulheres casadas, já prontas a entregar
tudo à terra para poupança do nojo comum. (p. 55. Grifos nossos)
No segundo, o pleonasmo colabora para enfatizar a ação violenta de Baltazar,
destacado ainda pela aliteração (“entrei dedo dentro”). A figura sublinha a violência de
que Ermesinda é vítima.
Além dos exemplos acima, há uma construção pleonástica recorrente no
romance, formada pelo objeto indireto que se repete.
urgente acudíssemos à existência de dona catarina e nos voltássemos a
aninhar sem falta, porque a ela lhe dava fúria suficiente para nos
abater em pouco tempo (p. 162. Grifos nossos)
a ela [mãe] a surpresa não lhe trazia som à boca nem contorção
maior. (p. 25. Grifos nossos)
se ermesinda se perde em puta a mim manda-me deus que. nada
quero saber que te diz deus no que pensas, ( p. 107. Grifos nossos)
à minha mãe, pasmada, não lhe vinha maleita da natureza.
(p. 55. Grifos nossos)
Na primeira frase, os termos a ela e lhe exercem a mesma função sintática:
objeto indireto. Assim, temos um pleonasmo do objeto indireto, sendo o pronome “lhe”
classificado como objeto indireto pleonástico. O mesmo raciocínio vale para as três
frases. A repetição do termo chama a atenção para ele. A finalidade do pleonasmo seria
39
realçar os termos repetidos. No primeiro, o destaque é para a violência de Dona
Catarina; no segundo, para a reação de submissão da mãe, ao ser usada no ato sexual; no
terceiro a importância que Baltazar julga ter na educação de Ermesinda; no quarto, a
repetição expressa a preocupação com a mãe diante de uma possível gravidez.
1.2.8 Elipse
Consiste a elipse na brevidade da expressão resultante de alguma coisa que se
deixou de dizer, ou por se ter dito em outra frase, oração ou sintagma, ou por outra
razão de ordem afetiva ou estética. A frase elíptica escapa à estrutura da frase lógica,
explícita, sendo que os elementos omitidos podem ser recuperáveis no contexto ou
supridos pelo raciocínio, pela suposição, com base no confronto com a estrutura frásica
normal e também no sentido geral do enunciado. (MARTINS, p. 189)
Em o remorso de baltazar serapião, a linguagem é marcada por elipses. Estes
recursos abrangem desde palavras gramaticais, de casos comuns, sem inovação pessoal,
a outras mais surpreendentes, como demonstram os exemplos a seguir:
e a minha ermesinda não abria boca, não dizia nada (p. 188) [omissão
do artigo]
tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família
como pecadores de uma mesma praga. (p. 11) [omissão de verbo]
já seco se deixava aquele lugar. entramos em casa. seca. em pouco
tempo, disse o aldegundes, vai ruir sobre nossas cabeças. (p. 154.
Grifo nosso) [omissão do sujeito e verbo]
Por vezes, as elipses são facilmente identificadas, ou subentendidas, conforme os
trechos acima; outras vezes, porém, exigem grande trabalho do leitor, que deve ler e
reler, conhecer o contexto para identificar o que falta. No trecho a seguir, do capítulo
dezenove, falta a palavra “pai”. Só é possível tal identificação se nos remetermos ao
capítulo dez em que Afonso, pai de Baltazar, desconfiado de que a mulher o traíra,
arrancou com a mão o feto que ela carregava no ventre.
arrancarei do peito o coração se for preciso. e nem pai de filhos com
ar dele serei, farei como o meu, rebento-os no chão puxados ainda do
ventre com uma mão que os encontre onde se esconderem dentro dela.
(p. 136. Grifos nossos)
40
o aldegundes e o dagoberto colando-se a mim a falarem-se de mudez
sem que eu tivesse conhecimento do conteúdo, e eu perguntei, que
passais os dois (p. 144)
Assim, apesar de a narrativa ser baseada na sucessividade, com a ação
constituída por um número variável de sequências cujos segmentos narrativos têm
princípio, meio e fim, sua linearidade é uma facilidade apenas aparente. Há um fio
narrativo que sustenta a história, mas existe a liberdade que tomou o narrador para fazer
suas derivas. Estas se mostram na configuração de um texto marcado por rupturas no
nível da escrita, na qual a elipse se mostra muito presente e a exigir atenção do leitor.
Ao mesmo tempo em que o ritmo do texto é acelerado, as quebras o fazem desacelerar
para preencher as incompletudes.
Outra opção que também colabora para marcar a linguagem elíptica do texto e,
portanto, deve ser trazida para análise, é o uso da pontuação. Esta se restringe ao
emprego de apenas dois sinais, entre tantos que a língua oferece, a vírgula e o ponto
final. Ressaltamos que, muitas vezes, um é trocado pelo outro, ou empregado de
maneira que a expressividade prepondere, isto é, a estética não se submete a regras
gramaticais; a rigidez sintática pode ser quebrada para tornar a linguagem livre e
expressiva.
Nos excertos que transcrevemos a seguir, observamos que o ponto não só opera
sintática, mas, sobretudo, semanticamente, colocando em destaque o significante
“minha ermesinda” como se a aparição da personagem desarticulasse a narrativa:
o nosso pobre pai, tão sensato e ajuizado, depois de tantas aflições e
mudanças, não se reconhecia a um palmo de distância, ajeitou-se ali
nas tábuas partidas e não via mais nada. nem esperava, sabia eu, o
nosso inteligente pai, sem a nossa mãe e sem a sarga, fora enganado
para sempre pela voz das mulheres, e nem queria mais nada. junteime ao seu silêncio de longe. vi a minha ermesinda. e a minha
ermesinda acendeu a custo a sua mesma rotina com o sol dessa
manhã, ajeitou-se de modos e, afectada de dores, partiu para a casa de
dom afonso. (p. 45. Grifos nossos)
Dissemos que o emprego absoluto de letras minúsculas colabora na aceleração
do texto. A elipse e o emprego abundante de orações participiais, aquelas que aparecem
nas orações reduzidas de particípio, intensificam ainda mais o ritmo da narrativa. Há
uma opção clara por esta forma nominal do verbo (particípio passado), que traz a marca
41
da redução linguística, por ser mais sintética. A seguir alguns trechos onde também
aparece a elipse interfrasal:
e confio em si, compadre, não poria em cima da minha filha um rapaz
que fosse possante por ter sangue de boi. e eu entreolhava-me com
meu pai, descortinado da conversa às abertas na minha presença, e
sabia eu que tinha de ser verdade que se pusera na sarga, se dava ao
aldegundes burrice igual, e por costume tão perto ficava a língua do
povo da verdade mais escondida. (p. 40. Grifo nosso)
ele, olhos abertos de parvo, sentiu dificuldades de fôlego e iniciou a
contagem, partido eu para os animais, a ver meu pai que coisas me
guardaria em espera, já o aldegundes saíra a ver onde parava a
rapariga estropiada para a cobrir como pudesse, garrido de tão corado,
partes da natureza em chamas. (p. 37. Grifo nosso).
refaladas todas as coisas, era comigo que a ermesinda se casaria,
duvidado de ascendência mas bom de aspecto, muito largo e viril,
como aos melhores homens se pede que sejam. (p. 41. Grifos nossos)
Além de aparecer introduzindo as chamadas orações reduzidas, o particípio
também é empregado em sua função própria de adjetivo. Surpreende a opção do escritor
por usar a forma nominal participial para certos verbos como“brincado”, “abdicado”,
“causado”. E também pela quantidade24 de verbos empregados na referida forma
nominal. O efeito estilístico está ligado ao aligeiramento da linguagem, já que há mais
concisão, enxugamento do texto.
o aldegundes já nada dizia, mais trabalhador e menos brincado. (p.
48. Grifos nossos)
24
o meu pai infinitamente paciente, abdicado de descanso pela vaca (p. 14); como devia ser um pai de
família, servido de esposa (p. 22); quem lhe rondava o destino, tido ali em sorte pelo facto de os nossos
pais se identificarem (p. 23); naquela tarde desci à terra, fugido dos animais (p. 35); partido eu para os
animais (p. 37); eu avisei-o dos perigos, acusado a dom afonso ou, quem sabe, até a el-rei (p. 37); meu
pai decidirá pelo melhor, informado por deus e experiência como está (p. 39); e eu entreolhava-me com
meu pai, descortinado da conversa às abertas na minha presença (p. 40); refaladas todas as coisas, era
comigo que a ermesinda se casaria, duvidado de ascendência mas bom de aspecto, reiterado na valentia
e astuto nos recursos (p. 41); descabido com ela num tempo em que eu era muito novo (p. 47) ;uma nova
realidade, apartados pelas opções e papéis que nos eram destinados (p. 48); aninhados todos um tempo
depois, esquartejado de um fôlego (p. 49); espantados com a obediência ao meu pai, discernido
superiormente sobre todas as coisas da nossa vida. (p.15); ficava muito tempo chorado de femininas
fraquezas. (p. 84); por parte da família dos acabados de morrer. (p.167); incansado a redimir-me do
acto (p. 60); dona catarina veio e desprezou-nos, sem palavras chegada e ida, garantida de que uma puta
menos se teria debaixo do seu marido (p.169); dizia-me o teodolindo, encarado dos meus olhos, sincero
(p. 155); descabidos para sempre da beleza ilusória que meu irmão lhes oferecera. (p.175); e ela foi,
arriscada de vida por minha reflexão e precisão que eu tivesse de decidir ( p.176); e a correr nos fomos,
os dois, no primeiro desmedo que tive de arranjar (p. 44). (Grifos nossos)
42
o meu pai infinitamente paciente, abdicado de descanso pela vaca, e
eu sempre fazendo conta à atenção que lhe era dada, uma permissão
desmedida no prejuízo das nossas noites. (p. 14. Grifos nossos)
dom afonso não saía de lá a arfar, causado de rosadas faces, abafado
de qualquer modo, trôpego, aflito de calores, odores, feridas tocadas,
cabeça pesada, nada. (p. 46. Grifos nossos).
1.2.9
Inversões
A ordem dos termos na frase é um aspecto relevante para determinar o ritmo e a
valorização de ideias e sentimentos, propiciando efeitos variados. A colocação
predominante, conhecida por ordem “direta”, é: sujeito, verbo, objeto direto, objeto
indireto ou sujeito, verbo de ligação, predicativo. As alterações a essa ordem receberam
as denominações de hipérbato, anástrofe, sínquese, prolepse. Como a distinção entre
umas e outras não coincide entre os autores nem costuma ser satisfatoriamente clara,
ficaremos apenas com a denominação genérica de inversão, pois o que mais interessa
não é a nomenclatura, mas as possibilidades do arranjo das palavras e o seu teor
expressivo. (MARTINS, 2008)
A inversão, processo de colocar em evidência um termo que se deseja
privilegiar, rompe a monotonia da ordem usual, podendo favorecer um ritmo mais
adequado para aquilo que se quer ressaltar. Muitas vezes, no romance, a quebra da
ordem “direta” aponta a desordem interior da personagem.
São exemplos de inversão própria da linguagem elaborada as seguintes frases.
[teodolindo] que se movimentasse por todo o lado em boca a boca à
procura de bruxa mais esperta, que fosse, como parte de nós,
preocupado com o nosso bem a ver se nos arranjava devolução de
alma vendida e separação uns dos outros para, uns e outros,
sermos felizes ao modo discernido de cada qual. (p. 155. Grifos
nossos)
deixa-me ver-te de pé direito, minha ermesinda. deixa-me ver-te hirta
para te apreciar dano e beleza que repartes, a minha amada nem se
levantava por seus próprios apoios, havia que eu lhe deitar mãos
por braço debaixo, tronco a subi-la para, numa posição breve, se
deixar momentos segura, e não muito mais, porque caía cansada a
condoer-se. minha bela ermesinda, como estás. (p. 189. Grifos
nossos)
43
O primeiro trecho se refere à tentativa de Baltazar, Aldegundes e Dagoberto de
se livrarem da maldição que Gertrudes lançou sobre eles. Assim, pedem ao amigo
Teodolindo para ajudá-los a procurar uma bruxa que desfaça o feitiço. A maldição
obriga a que os três fiquem juntos, não podem afastar-se sob pena de morrerem
queimados. Eles acreditam que a bruxa entregou suas almas ao diabo. O fato, na
linguagem criativa de Valter Hugo Mãe, transforma-se. A inversão rompe a ordem
usual, principalmente na última parte, para enfatizar que eles querem a separação entre
eles com a finalidade de que cada um possa ficar autônomo como antes da bruxaria e
buscar a felicidade. A inversão deu relevo maior ao termo destacado e propiciou, além
do efeito de estranheza, um ritmo impressivo.
No segundo trecho, Ermesinda se reencontra com o marido e este avalia os maus
tratos que lhe impingira. A personagem não consegue sequer se erguer sem ajuda. A
inversão enfatiza a dificuldade para mantê-la hirta e a desordem interior de Baltazar.
A ordem comum praticamente desaparece do texto. A construção sintática não
se atém ao convencional. Tal uso exige do leitor uma leitura mais atenta para que o
texto seja entendido.
1.2.10 Polissíndeto
No nível tratado anteriormente, o fonético25, o falante não tem liberdade de criar
porque os fonemas existem em número determinado na língua, cabe ao criador arrumálos de modo especial no jogo de palavras para que possam produzir os efeitos sonoros
pretendidos. Já na escolha do léxico, há liberdade um pouco maior, porém, para que se
formem novas palavras há necessidade de se valer de elementos da língua, combinandoos segundo determinados processos, também próprios da língua. É no nível sintático,
que trata da relação, da combinação das palavras na frase, que o grau de liberdade é
mais amplo. Quem escreve deve obedecer, sim, a um número mais ou menos restrito de
regras rígidas, mas há a possibilidade de produzir, por exemplo, um número infinito de
frases novas e compreensíveis, por isso mesmo a atividade criadora tem espaço
garantido.
25
Temos na língua portuguesa 19 fonemas consonantais (alguns deles são representados por mais de uma
letra) e 12 fonemas vocálicos (7 são orais e 5 são nasais).
44
Muitas frases do livro de Valter Hugo Mãe apresentam orações com maior grau
de independência de construção, ligando-se, portanto, ao processo de coordenação.
No romance, a conjunção mais frequente é e, que possui o valor fundamental de
reunir fatos que se acrescentam (daí a classificação de aditiva). Porém, a conjunção e
pode estabelecer outras relações que se apreendem pela própria significação das
orações. Em “dom afonso estava de acordo, e temia eu que estivesse também curioso
por se ter perto de nova rapariga e assim exercer o seu domínio sobre nós, ultrapassando
os mandamentos”, (p. 24), o primeiro e tem valor de mas, visto que há ideia de oposição
entre as orações. Já no segundo, há valor de adição. Conforme já assinalamos, a
conjunção coordenativa aditiva aparece com frequência na narrativa pesquisada.
No caso de se sucederem mais de duas orações coordenadas, o mais comum é o
aparecimento da conjunção apenas antes da última. Mas no romance, há preferência de
cunho estilístico na repetição a partir da segunda oração, fazendo aparecer o
polissíndeto (poli, que vem do grego, significa vários, muitos; síndeto, que também vem
do
grego,
prende-se
à
idéia
de
união,
de
ligação).
Esta construção é essencialmente enfática, visto que destaca cada uma das
orações. Sua força expressiva é plenamente explorada na narrativa, conforme os
excertos a seguir comprovam:
.
e ele foi assim a abanar afirmativamente a cabeça e esperançado. o
que não faltam são bruxas, dizia. e o aldegundes sorriu e esperançounos mais ainda. e o dagoberto também. e eu também. e depois
mudámos de lugar, que ali sob aquelas árvores, já as coisas padeciam
e pareciam implorar que nos fôssemos. e tempo todo ficámos assim
sentando três cus em lugares diferentes, por piedade das plantas e dos
animais, mesmo muito pequenos, que ali, por azar, quisessem viver.
(p. 155. Grifos nossos)
Conforme trecho acima, um dos efeitos da repetição da conjunção e é o da
sensação de que a oração por ele iniciada encerrará o período, o que não ocorre. Com
isso, prolonga-se a expectativa do fim e, consequentemente, consegue-se ênfase para
cada uma das orações introduzidas pelo e.
O polissíndeto é construção apreciada pelo escritor, haja vista a repetição de
conjunções que aparece na narrativa. É oportuno observar que, em alguns casos, o
polissíndeto é associado a um tipo de repetição encadeada, cujo nome retórico é
anadiplose, para obter o máximo de ênfase:
45
um conjunto de olhos e bocas e cães e gatos e peixes a nadar, e tanta
coisa, e até ervas que, enfiado o tronco nas ervas, não se viam
diferentes das verdadeiras e pareciam brincadeiras de enganar os
olhos. e o nosso pai olhava para tudo e não melhorava de razão
alguma. prostrava-se e era tudo o que significava a sua vida. e nem lhe
pedíamos ajuda de mais nada. esperávamos ouvir do teodolindo coisa
que ele ouvisse melhor para nós. e fazíamos segredo, controlando a
ansiedade. (p. 155/156. Grifos nossos)
A estrutura de oração comum no romance é a coordenação (justaposição de
elementos de igual natureza). Cabe ressaltar que a conjunção aditiva e aparece
empregada não só unindo orações de um período, mas também frases do discurso e
termos equivalentes da oração26. Nos exemplos acima vimos a coesão interfrasal
assinalada pelo conectivo e; no passo seguinte, Valter Hugo Mãe usa a conjunção entre
períodos e, a seguir, entre dois substantivos ou adjetivos.
uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada,
explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa
com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros,
(p. 17. Grifos nossos).
assim lho previ na altura, ainda acabas viciada nessas sabedorias, que
servir um senhor de grande inteligência e linhagem há-de ser como
criar vício de comer as melhores coisas da mesa (p. 27. Grifos
nossos)
26
Existem numerosas passagens que exploram a coordenação entre termos equivalentes da oração:
parideira e calada (p. 17); torpe e falacioso (p. 17); semelhantes e porcas (p. 19); doloridas e acossadas (p.
19); pele clara e mãos ágeis (p. 20); corajosas e impensáveis (p .21); possante e trabalhador (p. 24); linda
e donzelada (p. 27); inteligência e linhagem (p. 27); fúria e vontade ( p. 27), velha e magra (p. 29);
sabedoria e conselhos (p. 31); cor e odores (p. 31); força e aspecto (p. 33); atitudes e responsabilidade (p.
33); ansiedade e fascínio (p. 33); corpo e cabeça (p. 33); casa e fonte (p. 35); susto e preocupação ( p. 38);
solidão e beleza (p. 38); largo e viril (p. 41); valentia e assusto (p. 41); passivo e desimportado (p. 42);
esperado e remedido (p. 43); estropiada e feia (p. 55); aérea e inválida (p. 60); pobre e fiel (p. 60); calada
e resignada (p. 61); corrida e susto (p. 61); sobreaviso e lucidez (p. 62); indignações e protestos (p. 62);
ama e respeita (p. 72); silêncio e ternura (p. 71); madrugador e disposto (p. 72); amizade e interesse (p.
97); fragilidades e ilusões (p. 97); recato e obediência (p. 100); assustadas e entusiasmadas (p. 101); poder
e seleção divina (p. 103); alta e valiosa (p. 105); escuro e silencioso (p. 106); liberdade e recolhimento
(p.1 08); funções e trabalho (p.108); voltar e recomeçar (p.109);benção e experiência (p.109); satisfeitos e
céleres (p. 111); surpresa e perigo (p. 111); memória e adoração (p. 111); folhas e raízes (p. 112); gratidão
e amizade (p. 112); alma e corpo (p. 114); cabeça e coração (p. 115); rosto e mãos (p. 115); olhos e boca
(p. 107); histeria e medo (p. 121); enfiados e esquecidos (p. 141); pouco e triste (p .143); recados e
comentários (p. 143); sacrifícios e maleitas (p. 145); sensato e ajuizado (p. 145); aflições e mudanças (p.
145); cínico e furioso (p. 145); descomposto e feio (p. 146); falando e andando (p. 146); entrando e saindo
(p. 146); estúpido e inútil (p. 150); medo e urgência (p. 147); sonoro e definitivo (p. 148); tonturas e
gastos (p. 148); vaca velha e tonta (p. 148); velho e destratado (p. 148); desarrumado e perigoso (p. 148);
sobreaviso e lucidez (p .62). (Grifos nossos)
46
Conforme vimos, foram explorados no romance todos os empregos possíveis do
conectivo aditivo e. Ele liga palavras, orações e frases.
1.2.11 Ironia
Tradicionalmente, há uma forte tendência em se considerar ironia o contraste
semântico entre o que é afirmado e o que é significado. A investigação do nosso
trabalho mostra que o estudo deste recurso é bem mais complexo, isto é, não se atém à
antífrase, exige o reconhecimento de um sentido literal e de outro figurado, uma vez que
a ironia se constitui de um significante para dois significados contraditórios ou
incompatíveis. Em outras palavras, a ironia assenta sempre uma tensão entre o que foi
dito e o não-dito.
Entre os estudiosos que pesquisamos, destaca-se Linda Hutcheon (1985). A teórica
assinala que sem a ação cognitiva do leitor, o discurso irônico perde a supremacia, desce
à categoria do discurso simples, objetivo e inofensivo. Assim, se a ironia carrega em sua
essência um embate de vozes, uma tensão implícita, e estes não são descobertos pelo
leitor, tais discursos não são sequer inofensivos, simplesmente porque é como se não
existissem. Desse modo, ironia apresenta uma “voz” explícita, superficial, e outra
implícita, que aparece como pano de fundo. Em relação a essa segunda voz implícita, o
sentido provém do contexto. No entender de Hutcheon, “O sentido final da ironia [...]
reside no reconhecimento da sobreposição desses níveis” (2000, p.51).
Vale ressaltar que a teórica remete aos significados de ironia fornecidos pelo Oxford
English Dictionary, onde se encontram as seguintes definições:
um ato deliberadamente enganador que sugere uma conclusão oposta
à real. (apud Hutcheon, 2000, p.81).
ironia significa enganar pessoas comuns que entendem de maneira
comum. (apud Hutcheon, 2000, p.81).
Parece pertinente dizer, considerando as acepções colhidas acima pela estudiosa,
que a ironia é uma modalidade bastante exigente e controladora. Se o leitor não a
desvenda, ou como diz
Hutcheon não a “pega” debaixo de seus olhos, não pode
compreender que se encontra diante de um texto irônico. O receptor deve estar atento a
todos os sinais para perceber a dissonância subjacente ao texto que lê.
47
O estudo de Hutcheon nos torna leitor menos ingênuo, para ler o texto de Valter
Hugo Mãe. A pesquisa nos dá um amparo eficaz para perceber muitos sinais e “pegar”
outros sentidos que subjazagem à superfície do texto, não todos, evidentemente.
A narrativa analisada apresenta desde a ironia da forma mais simples, do senso
comum, sem que haja desafio de interpretação, até a mais elaborada, a literária,
assentada na tensão entre o dito e o não-dito, chegando mesmo a estruturar o texto,
entrelaçar-se com o trágico e o hiperbólico. Para esta última modalidade, reservamos o
terceiro capítulo.
Para o caso mais simples, destacamos uma personagem a quem o narrador elege
para marcar o deboche. Trata-se de Dona Catarina, mulher de Dom Afonso.
Catarina, nome importante, de rainha, dá nome a uma personagem que de nobre
nada tem. É a vilã da história, caracterizada como cruel, de aspecto ridículo e até
criminosa. Com efeito, a personagem chega a impor que suas servas se relacionem
sexualmente com el-rei quando este os visita.
servi-lo-eis se vos pedir, que a rei não se recusa putice, ouviram
bem. se se oferecem a meu marido, não vos custará montada de rei”
(p. 100. Grifos nossos).
Verificamos no texto a insistente importância atribuída aos horários em que
Dona Catarina dorme, o aparente “zelar “ pelo sono da personagem, tem um propósito.
atazanado de silêncios para não acordar dona catarina”. “há-de
bufar-te tanto sem acordar dona catarina.(p. 61. Grifos nossos)
Inferimos que todo o empenho de Dom Afonso em cuidar para que não se
acordasse sua esposa tem por causa a traição dele com as servas da casa grande durante
o sono da mulher.
se gritasse era em surdina, que dona catarina, antes dos seus horários
abertos, estava a dormir e ai de quem a acordasse. (p. 62. Grifos
nossos)
Com relação a seu porte físico, o narrador não a poupa:
uma mulher gorda, grande de mamas descaídas, jeitos de porca
aberta de pernas e membros como convidando à entrada (p. 172.
Grifos nossos).
48
Descrita sem qualquer atrativo físico ou valor que a enalteça, Dona Catarina
servia de escárnio das empregadas. Destacamos a seguir, o emprego do adjetivo
“distinta” para qualificá-la e atentar para a ironia em sua forma simples, de ambiguidade
da palavra.
ela sempre tão distinta e preservada dos escândalos do marido. (p.
62).
A mulher de Dom Afonso age sempre desconfiando da fidelidade do marido.
Seu vocabulário não é de uma grande dama:
tenho a certeza de que buraco aberto entrou aqui dentro para se
fechar de meu marido” (p. 72. Grifos nossos).
O capítulo dez do livro quase inteiramente coloca em cena Dona Catarina e seu
relacionamento com as servas, dentre as quais está Brunilde, uma das amantes de Dom
Afonso e irmã do narrador. Brunilde debochadamente enaltece o amor que Dom Afonso
(não) sente pela esposa:
dona catarina, não se exalte, tanto sei que dom afonso a ama e
respeita como deus previu nas escrituras grande amor de homem por
mulher, ficai feliz, senhora, vosso marido pensa em vós dia cedo até
dia acabado. dona catarina, deixai-vos de desconfiança, nobre
senhora, vosso marido muito vos ama, e nenhuma de nós vo-lo
cobiça, tão belo casal fazeis. (p. 72. Grifos nossos)
Afonso, nome de tradição em Portugal, foi escolhido para nomear o senhor
feudal, corresponde também ao nome do pai de Baltazar. Consideramos que a
homonímia possui caráter irônico.
dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias
de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua
linhagem, nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos
poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os
mundos vedados (p. 13)
Um Afonso vinha de reis, o outro “um verdadeiro familiar da vaca” (p. 13). Com
efeito, era um Sarga chamado Afonso. Na aldeia, a homonímia era motivo para
ridicularizar a família de Baltazar. Quem não tinha do que se honrar, “que diabo
honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida”. (p.
49
13)
1.3 Discursos
o remorso de baltazar serapião é narrado em primeira pessoa, Baltazar assume
o ponto de vista, a narração assume suas certezas e também suas incertezas.
Há o emprego do discurso indireto e discurso indireto livre. Porém,
predominantemente, a técnica narrativa é a do discurso indireto, constituída por
monólogos-pensamentos do narrador-protagonista. Tudo parece se passar no interior do
narrador, filtrado pelo seu ponto de vista.
As conversas entre as personagens são quase sempre reconstituídas por meio do
discurso indireto. Contudo, há em muitas passagens, predominantemente, a inserção do
discurso direto sem nenhuma indicação de que personagem se trata. Os chamados
verbos dicendi “dizer”, “perguntar”, “responder” etc. não são comuns. Trata-se de uma
organização prosódica peculiar, causam estranhezas tais inserções repentinas do
discurso direto porque o leitor pode ficar sem saber a quem pertence aquele discurso.
Por outro lado, a constituição do diálogo caracteriza a oralidade e torna mais naturais as
falas. O excerto abaixo é representativo do ponto de vista usado pelo narrador:
[ermesinda] ela a encolher os ombros e a jurar, não fazemos mais que
conversar, dom afonso sente amizade e interesse por coisas que digo,
porque vejo belezas nas coisas que lhe digo como melodias, assim se
entretém e fascina, coisas como, perguntei, assim como palavras belas
tiradas à mudez das coisas que vejo ou acontecem, palavras
preparadas na sensibilidade do coração, como palavras dos sonhos
mais bonitos, se se gasta em conversas de mulher, que homem
menos natural será ele. que me estás a dizer, mulher, que dom
afonso se entretém com fragilidades e ilusões femininas, que se basta
do que uma ignorante como tu lhe leva boca a boca. estarás louca de
acreditar que tal pretexto me convencesse. (p. 97. Grifos coloridos
nossos)
O narrador transmite a reação de Ermesinda, quando ele, o marido, a ameaça de
morte se conseguir comprovar o suposto adultério. [ermesinda] “ela a encolher os
ombros e a jurar” (discurso indireto). Imediatamente, entra a voz de Ermesinda, sem
verbo de elocução e sem a pontuação convencional (cor azul). O discurso direto de
Baltazar, sem qualquer marcação dos turnos (na cor vermelha). Mais uma vez o
discurso direto da esposa de Baltazar (em azul). Segue-se o fluxo de pensamento do
50
protagonista (cor verde). O pensamento de Baltazar evidencia que a explicação de
Ermesinda não surtiu efeito. Logo em seguida, ele deixa claro que não acreditou nas
palavras da mulher, por meio do discurso direto (em vermelho).
Com o fragmento acima mostramos a técnica narrativa e todos os discursos
tratados na obra. As cores procuraram evidenciar o dono da voz e a dificuldade do leitor
em identificar o discurso.
1.4 A “estrutura musical” da frase
Um aspecto importante do romance o remorso de baltazar serapião
é a
extensão dos parágrafos. Por vezes, um parágrafo toma toda a página. Os períodos se
alternam entre longos e curtos. Nota-se o predomínio da coordenação e dos segmentos
muito longos, em meio aos quais algumas orações breves adquirem relevo. Estas
combinações de segmentos mais longos e breves produzem uma certa cadência ao texto.
A professora Nilce Sant’Anna Martins (2008) observa que, no estudo das
estruturas rítmicas de Eça de Queirós, Guerra da Cal salienta que “a frase não era
apenas um agrupamento verbal significativo, mas também, e muito principalmente, uma
estrutura musical” (p. 177). Talvez o fato seja mais sensível em Eça, mas todo escritorartista está no mesmo caso, variando a preferência rítmica.
Assim, acreditamos que o mesmo comentário possa valer para Valter Hugo
Mãe. Seu texto é marcado por ritmo porque apresenta os mais variados tipos de frases,
muitas chegam a ser incompletas, nem podem ser submetidas à análise sintática, já que
não se estruturam em sujeito e predicado. O entendimento dessas estruturas exige certos
dados contidos na situação de enunciação ou no contexto linguístico.
No excerto que destacamos abaixo, mostramos frases brevíssimas, de apenas
uma palavra, que se alternam com outras longas. A pausa inesperada revela a
manipulação que o autor atribui à pontuação. Inspirados na conclusão de Guerra da Gal,
podemos dizer que as frases de Valter Hugo Mãe são muito mais que um simples
agrupamento verbal significativo, elas ganham o status de uma estrutura musical,
responsáveis que são para tornar poética a prosa.
o nosso pobre pai, tão sensato e ajuizado, depois de tantas aflições e
mudanças, não se reconhecia a um palmo de distância, ajeitou-se ali
nas tábuas partidas e não via mais nada. nem esperava, sabia eu, o
nosso inteligente pai, sem a nossa mãe e sem a sarga, fora enganado
para sempre pela voz das mulheres, e nem queria mais nada. juntei51
me ao seu silêncio de longe. vi a minha ermesinda. (p. 145. Grifos
nossos)
fomos andando, já seco se deixava aquele lugar, entrámos em casa.
seca. em pouco tempo, disse o aldegundes, vai ruir sobre as nossas
cabeças, (p. 154. Grifos nossos)
e é como estou, assim estou pela minha ermesinda. é bela. a mais bela
que há. (p.135. Grifos nossos)
sob mim a receber os meus jeitos em paz de proveito, muito delicada
sem dizer palavra que me quisesse pedir maior cuidado ou carinho.
nada. e o lençol sujou-se de sangue e assim o apresentámos aos meus
pais, (p. 43. Grifos nossos)
não teríamos condição nenhuma de vida se não chovesse por piedade
divina. e cocei. (p. 133. Grifos nossos)
se el-rei vos quer,coisa grande levareis, carroça que seja, não é, coisa
que esteja na carroça, não vejo. que é, perguntou, meu irmão que
pinta, artes que tem de mostrar até o que não se vê. sério,
insistiu.mesmo. não vos agastais de esforços de palavras, tentarei a
cada vez ter-vos um a um na carroça a suportar eu próprio o que
puder, a ver que nos diz a orlandina. (p. 123. Grifos nossos)
se te descobrem queimada imaginam-te os feitiços, acreditas que sou
bruxa. talvez. e o que te convenceria do contrário, respondi, nada.
(p. 115. Grifos nossos)
Os exemplos evidenciam o tipo de frase eleito pelo escritor, frases mais
extensas, com segmentos mais numerosos, uns mais curtos e outros mais longos, dando
a sensação de movimento. O fato estilístico ocorre em virtude do grande destaque que o
termo isolado ganha, além da quebra no ritmo.
1.5 Antropônimos
A respeito da seleção dos antropônimos, há curiosas observações. Os nomes das
personagens são Teodolindo, Aldegundes, Ermesinda, Brunilde, Afonso, Catarina,
Baltazar, Gertrudes, Teresa Diaba, Dagoberto, Sarga.
A mãe de Baltazar não é nomeada na narrativa, quando há referência à
personagem aparece “mãe”. Abaixo, Teodolindo se refere a ela:
52
a tua mãe, por exemplo, a idade pode ter-lhe dado sabedoria de muita
coisa (p. 68, grifos nossos).
À vaca, criada pela família, foi atribuído um nome, chama-se Sarga. Afonso
Serapião e os seus não são chamados pelo sobrenome, mas pelo apelido de "os sargas",
mesmo nome da vaca já velha e alquebrada que dorme em um dos quartos dentro da
casa
e que a maledicência dos vizinhos transformou em amante do pai e provável
mãe de Baltazar e de seu irmão Aldegundes.
Quanto à destituição do nome, o narrador diz “nós éramos os sargas [...] nada
éramos os serapião, nome da família” (p. 12). Baltazar, o primogênito, e sua família
buscarão a restituição do nome de família. Esta é também a história da saga dos Sargas
para serem reconhecidos como Serapião. Neste sentido, o nome os elevaria da condição
em que são reconhecidos, bichos.
Existem nomes incomuns: Teodolindo: o próprio nome já o distingue. Teo:
divindade. A personagem é diferenciada. Observamos que é a única que sobrevive à
catástrofe que ocorre com a família Serapião, mesmo sendo o melhor amigo de
Baltazar. Parece que a família é vetor do trágico e atinge quem dela se aproxima.
Ermesinda e Dagoberto sucumbem, Teodolindo fica imune. Sempre generoso e
solidário, amigo que acolhe Baltazar nos infortúnios e o orienta para o bem. A ele, um
capítulo do livro é dedicado, capítulo 9.
Nossas pesquisas, em dicionários de nomes, não trouxeram algum acréscimo
significativo, porém queremos registrá-las. Ermesinda, etimologicamente, é de origem
germânica e significa aquela que está sob a guarda do deus Irmin. Poderíamos apontar
algum humor, porque a formosa Ermesinda do livro está sob a guarda autoritária do
marido Baltazar.
Brunilde era uma das Valquírias, na mitologia germano-escandinava.
Como já sabemos, o pai de Baltazar chama-se Afonso, nome conhecido e
famoso em Portugal. O pai é um homem submisso diante do senhor das terras, que
também se chama Afonso. Este domina a aldeia em que a família vive, com autoridade
feudal. A coincidência dos nomes parece um artifício para denunciar o quanto o homem
reproduz em seu lar a estrutura feudal perversa em que vive, impondo-se como senhor
absoluto da casa: "e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu
pai, discernido superiormente sobre todas as coisas da nossa vida." (p. 15). A
homonímia diverte os vizinhos e entristece a família.
53
Verficamos uma construção, marcadamente social, do nome. Pode-se sentir a
estrutura social fechada por meio dele. Catarina, Afonso, Dinis, de um lado, com
referências. Do outro, Aldegundes, Brunilde, Dagoberto, Ermesinda, Baltazar. Mas, o
mais contundente é a destituição do nome da mãe. Ao não nomear uma personagem
feminina pode haver o sentido já tão presente no texto de rebaixar a mulher. Voltaremos
ao tema no capítulo 3, quando nos reportaremos ao trágico. Acrescentamos que
sobrenome só é conferido a Dom Afonso “a propriedade é de dom afonso de castro,
senhor de nossa terra e gentes” (p. 122, grifos nossos)
1.6 Antecipação
O narrador pode instalar-se na narrativa quando, jogando com a temporalidade
da narração e do narrado, preenche os “vazios” da história com explicações, como se a
narração fosse concomitante aos acontecimentos. (FIORIN, 2008)
pobre brunilde, mal sabida naquela altura do que lhe chegava por
dentro do corpo, a pedir atenção para acabar com a sua vida. e
ignorante foi a buscar-nos e levou-nos em pressas, (p. 162. Grifos
nossos)
mal tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos,
batíamos os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados,
sem saber, para desgraças absolutas ao tamanho de bichos
desumanos, tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos
em família como pecadores de uma mesma praga, maleita nossa, nós,
reunidos em família, haveríamos de nos destituir lentamente de
toda a pouca normalidade. (p. 11. Grifos nossos)
talvez nada tivesse importância que nosso pai nos duvidasse em suas
preferências, talvez nada fosse esperado que ele tivesse força para
algo. morria de minha mãe, levava a sarga para longe de nós e voltava
sem pio. seguia como se preparado para ser um homem só. um
homem e uma vaca. (p. 157. Grifos nossos)
éramos insuportáveis e tardava nada teríamos de andar nus, sem
meio de obter mais tecido que nos vestisse, teríamos de andar nus ou,
melhor dito, não poderíamos mais andar entre os lugares das outras
pessoas, estaríamos destinados a desaparecer dali e de todos os
lugares, para onde não existisse ninguém e, o mais certo, onde não
existisse nada. (p. 158. Grifos nossos)
Conforme os excertos acima, verificamos que, durante a narrativa, em muitas
situações, o narrador fornece pistas de fatos que só ocorrerão bem mais tarde. As
54
antecipações (prolepses) servem para conferir mais suspense ao romance, prender o
leitor e também marcar a inexorabilidade do destino; o livre arbítrio está longe de ser
considerado na obra. No primeiro enunciado, antecipa-se a gravidez de Brunilde, que
resultará em sua morte. Já no segundo, aborda-se o trágico destino dos membros da
família. Baltazar e Aldegundes serão vítimas de uma maldição que os levará à morte. O
terceiro enunciado antecipa que só o pai do narrador e a vaca sobreviverão. O quarto
enunciado trata da maldição de que foram vítimas os irmãos Serapião e Dagoberto. A
maldição queimava as vestimentas das personagens.
1.7 Neologismos
A grande recorrência de neologismos constitui uma das características da prosa
de Valter Hugo Mãe, especialmente em o remorso de baltazar serapião. Trata-se de
uma forma de inventar palavras a partir da colocação de afixos (prefixos ou sufixos,
sobretudo prefixos, na obra). Com isso, amplia-se o conjunto de vocábulos
normatizados, e prende o leitor pelo caráter imaginativo da construção e o inusitado dos
resultados da significação. O autor também atribui uma nova roupagem ao léxico gasto
pelo uso, com a reiterada troca de prefixos. Nesse caso, a função do neologismo é
descondicionar e possibilitar novas experimentações. A maioria dos neologismos,
sobretudo os derivados de afixação, já existe na língua em estado latente.
O prefixo des- é indicativo de múltiplas ideias – negação, oposição, separação,
afastamento, divisão, supressão. Ele é, com certeza, o prefixo mais produtivo na
formação de neologismos explorados pelo escritor. Abaixo exemplificamos a ocorrência
do prefixo des-, entre muitos outros:
não fosse o meu pai, passivo e desimportado, notar algum sinal da
sua ainda burra masculinidade. (p.42. Grifos nossos)
e um cão desfaleceu de se distrair estupidamente à roda da carroça e
pássaros caíam assim desvoados como burros a esquecerem-se de
bater as asas ... era o que fazíamos a tudo quanto viesse em redor, se
nos separássemos um pouco que fosse de cada outro. (p.141. Grifos
nossos)
Seguem alguns neologismos formados por sufixos, entre outros:
a nossa brunilde estava uma rapariga linda e donzelada de modos,
cheia de vontade e com o corpo habituado, não haveria de ser nada de
55
insólito que se pusesse de gabaritos, ensinada para o serviço dos
homens com requintes que lhe vinham de altos convívios. (p.27.
Grifos nossos)
urgia que nos ocorressem métodos de acabar com o feitiço,
quem se desse por bruxa, publicamente ou em segredo, seria
nosso objetivo com grande ansiedade, precisados de quebras de
enganamento que nos desenganasse a vida. (p.154. Grifos nossos)
e assim o dizia à brunilde, dizia que eu conhecera rapariga desta cor
clara ou ruiva, ou morena, ou mamuda ou lisa, dentro ou fora das ruas,
mas nunca que nome teria. dizia que eu conhecera rapariga [...] desta
cor clara ou mamuda. (p.21. Grifos nossos)
Interessante notar a criação de “mamuda” como novo processo de superlativo
de mama.
Como vimos, a troca de prefixos, sufixos e desinências dá maior flexibilidade
aos vocábulos e maior expressividade linguística. Além disso, certas imagens insólitas
causam um efeito de estranhamento ou surpresa. O prefixo “des” muitas vezes foi usado
com função criadora de antônimos.
1.8
Neologismo semântico
A criação neológica estilística enfeixa a criatividade lexical e a neologia
semântica. Esta neologia de sentido consiste no emprego de um significante já existente
na língua com um conteúdo que ele não possuía. No texto literário, uma criação
resultante desse tipo de procedimento tende a não se repetir. É o que se chama de
neologia semântica estilística27. Estas construções chamam a atenção pela alta voltagem
de poesia que possuem. Assim, além dos neologismos sintáticos, que aparecem
fartamente, encontramos o neologismo semântico:
construímos um pequeno abrigo entre as árvores, meio escondido de
quem azaradamente passasse no largo aberto da paisagem, ali
ninguém nos existia. (p. 184. Grifos nossos)
e o meu pai ordenou que nos recolhêssemos mais ainda, que dados de
confiança nos teríamos criadores de maiores invejas, importante seria
anular efeitos de existência, existir menos para que menos se
lembrassem de nós. (p. 106. Grifos nossos)
27
LEONEL, Maria Célia. Grande Sertão: Veredas: alguns neologismos semânticos. Revista Alfa. São
Paulo, n. 41, 1997, p. 79-89.
56
No contexto do romance, Baltazar, Aldegundes e Dagoberto estão amaldiçoados
e não podem se aproximar por muito tempo de outras pessoas, sem que as prejudique.
Eles podem até mesmo, involuntariamente, matá-las. Assim, tiveram que fugir para
lugar ermo, onde ninguém pudesse vê-los. A partir daí, vem o comentário: “ali ninguém
nos existia.”
A palavra existir, que ocorre na passagem citada, apresenta, no dicionário, os
seguintes significados:
1 ter existência real, ter presença viva; 2 int. e pred. ter existência em determinado
período de tempo; durar, permanecer; 3 int. haver; ( Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa)
No enunciado do romance, o verbo existir carrega um objeto direto – nos.
Considerado verbo intransitivo, na frase de Valter Hugo Mãe em questão, o significado
do verbo existir contamina-se com o significado do verbo ver, perceber. A ligação
inovadora verbo-objeto cria a neologia no texto.
“ali ninguém nos existia” pode
significar: ali ninguém nos via ou ali ninguém nos percebia.
“Existir menos” (p. 106)
No contexto do romance, Aldegundes, irmão de Baltazar, revelou-se um artista.
El-rei, Dom Dinis, convida-o a morar em seu castelo. Surge aí excelente oportunidade
para a família Serapião melhorar de vida. Os vizinhos ficam enciumados, tentam fazer
chegar ao rei notícias difamatórias sobre a família. O patrono, Afonso Serapião, ordena
aos filhos que se recolham, numa discrição que evite serem lembrados pelos aldeões.
“importante seria anular efeitos de existência, existir menos para que menos se
lembrassem de nós.” (p. 106)
“Existir menos” pode significar: ser menos notado.
1. 9 Categorias gramaticais
Na linguagem de Valter Hugo Mãe, substantivos, adjetivos, preposições, verbos
e pronomes não podem ser previamente classificados, pois dependem sempre do
contexto em que são empregados. Sua prosa singular difere notadamente dos padrões
tradicionais por ser eminentemente flexível e expressiva. Conforme sabemos, na língua
existem dez classes gramaticais. Na narrativa de o remorso de baltazar serapião, muitas
57
vezes somos surpreendidos com empregos inusitados das categorias gramaticais.
Abaixo alguns casos do deslocamento a que aludimos.
e o barulho aumentou até que se visse um castelo maior do que vinte
homens empilhados, pronto para esconder um rei de qualquer ideia
humana.grunhimos no nosso jeito o que era ao que íamos, e os
guardas passaram olhos abertos por todos nós e nossa carroça. antes
de decidir que fariam foram a buscar um bartolomeu. era um
bartolomeu que nos veria com competência de substituir uma
primeira decisão de el-rei. [...] e talvez porque muita recomendação o
supremo senhor lhe tivesse feito, o bartolomeu nos deixou passar
primeira passagem com custo e refilos vários.
(p. 127- 128. Grifos nossos)
Bartolomeu é um substantivo próprio, nome de pessoa. No trecho acima, ao
colocar o artigo indefinido diante do nome, do substantivo próprio, Bartolomeu passa a
substantivo comum. Ao aproximar no mesmo parágrafo o mesmo significante com duas
classes gramaticais: “foram a buscar um bartolomeu” e “o bartolomeu nos deixou
passar primeira passagem com custo”, o escritor imprime um interessante efeito de
sentido. “um bartolomeu” é indefinido, qualquer servo de el-rei. Ao mudar o artigo,
aparece o substantivo próprio, não se tratra mais de qualquer “bartolomeu”.
No próximo trecho, “amigo” que normalmente é um substantivo comum, passa a
advérbio:
e haveríamos de aceitar que estarmos juntos seria como estabelecer
uma amizade falante com um braço ou uma perna, se de facto éramos
todos colados um emaranhado de braços e pernas de um ser maior, e
assim falávamos amigos e aligeirávamos nosso fardo com sorrisos
muito ténues, mas sorrisos. (p. 153. Grifos nossos)
A mudança de categoria gramatical, além de comprovar que a palavra não pode
ser classificada previamente, depende do contexto em que é inserida, causa
estranhamento e chama a atenção sobre ela.
1.
10
Eruditismo
Notamos, em certos trechos do romance, o esmero com a linguagem. Há um
evidente registro culto. Em outros momentos, porém, além de elementos coloquiais,
aparecem transgressões às regras gramaticais, como também registros chulos.
A seguir, mostramos exemplos, entre outros, em que o discurso de Baltazar
atinge um alto grau de elaboração e de requinte:
58
[…] na cabeça das mulheres muita coisa se incompleta de raciocínio,
como se a sua inteligência fosse apenas uma reminiscência da
inteligência verdadeira, assim como se lembrassem de algum dia
terem sabido o que isso é, mas sem o saberem realmente. (p. 84)
e o teodolindo era um dos calmeirões que o aldegundes pintava, e
jurava que assim acontecia, nem o curativo na cabeça se lhe via nas
tábuas, apenas uma reminiscência de uma beleza que poderia ter num
desejo de vaidade, sim, era mesmo o teodolindo quem aparecia nas
tábuas entre os outros, mas havia nele uma pureza como se, ao pintálo, o nosso aldegundes o curasse de tudo, até das imperfeições e
fealdade, e ali ficava, um anjo nu e perfeito como, dizia, poderia ser o
retrato da alma, o retrato de dentro. (p. 94)
era eu, por sorte ali distinguido, um moço como outro qualquer, mas
dos sargas, sem estropios do corpo nem maleitas de cabeça, escorreito
nos trabalhos e incumbências, ao serviço de um grande senhor,
protegido assim por deferência divina, como garantido no tempo que
me restasse de vida, e assim ela se teria. guardada em asa de grande
senhor, para cumprir vezes de mulher pobre mas digna de carnes e
direcção. (p. 23)
O pedido de casamento do protagonista:
[...] sem condição nem honrarias que me levassem ali refinado ou
melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se notasse, há
tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair à brancura
do seu ser. e lho disse assim, depender de mim será só digna sua
pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e
deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a
partir de nós para retribuir aos outros. casai comigo formosa, tanto
quanto meus olhos algum dia poderiam ver. (p. 39)
Abaixo os registros chulos e transgressões às regras gramaticais que ressaltam o
movimento entre as polaridades do romance, já comentadas. Há um jogo tenso entre
oralidade e erudição:
dom afonso disponibilizava dois cavalos e carroça para cus que se
sentassem e bagagem nenhuma se levasse. (p. 107)
carroça dispensada por dom afonso estava instruída para assento de
dois cus, nenhum de ninguém mais. (p. 114)
eu rondava-a aos pertos, caminhos seguidos muito próximo sem
que me visse, (p. 64. Grifos nossos)
Íamos para morrermos ( p. 62. Grifos nossos)
se fosse a ti entrava e sentava-me quietinho sem mugir nem
tossir. (p. 63. Grifos nossos)
59
caminhos seguidos muito próximo. (p. 64. Grifos nossos)
vai-te com sorte por tanto viveres, coiso burro, (p. 107. Grifos
nossos)
satisfeita com ser refeição de um velho tão feio. (p. 64. Grifos
nossos)
Mostramos acima que interagem no romance as transgressões gramaticais, como
a variação do advérbio “perto”; a flexão indevida do infinitivo “morrermos”; o emprego
indevido da forma oblíqua do pronome pessoal “ti”; a ausência de concordância do
adjetivo “próximo” com o substantivo a que se refere “caminhos”; a variação de gênero
“coiso”; a regência nominal em desacordo com a normas gramaticais de “satisfeita
com”, com os registros culto, chulo e coloquial.
1.
11 Provérbios
Conforme já destacado acima, ao lado do eruditismo convive o coloquial, do
qual ainda destacamos o emprego de máximas:
ficas calado no cumprimento desta ordem tão importante, a mais
importante que algum dia terás, sem pio nem desvio, (p. 107. Grifos
nossos)
se fosse a ti entrava e sentava-me quietinho, sem mugir nem tossir
(p. 62. Grifos nossos)
se volta a acontecer que a casa se desequilibre [...] teu fim será feito,
sem retorno nem avesso (p. 63. Grifos nossos)
encontrei a ermesinda sobre a cama sem pasto nem alento28 (p. 60.
Grifos nossos)
28
sem folias nem tentativas (p.72); sem alento nem consciência (p.84); sem ócios nem maneiras (p.84);
sem fé nem respeito (p.87); sem pressas nem sinais (p.95); sem pio nem desvio (p.107); sem trabalho
nem amizades (p.110); sem manha nem paciência (p.120); sem conselho nem arrogância p.142); sem
préstimo, nem inteligência nem beleza (p.170); sem confiança nem resposta (p.181); sem proximidades
nem exigências de irrequietude (p.184).
60
De modo geral, a utilização dessas expressões que contêm a sabedoria popular,
permite ao narrador apoiar sua fala sobre a de um outro que possui credibilidade, o que,
no caso dos provérbios, permite conferir maior autoridade e veracidade ao discurso. No
romance, os provérbios aparecem em estrutura binária, em forma de dístico, realçada
pelo ritmo, pela rima, pela aliteração e até pela repetição do mesmo elemento lexical.
Sem ... nem ... . “Sem pio nem desvio”.
1.
12 Palavras e expressões
Algumas palavras e expressões que aparecem no romance trazem um significado
novo ou pouco conhecido, ou em desuso.
[o curandeiro] aconselhou-me dos chatos e dos preparos para a noite
de conhecimento. (p. 33) [lua de mel, núpcias] (Grifos nossos)
como eu deveria estar sem ameaças dessas pragas, para não imprimir
uma dor logo no tempo de ensino de como se dormia com um
homem. (p. 33) [começo do casamento] (Grifos nossos)
tempo suficiente para que o dagoberto enfiasse a parte da natureza
na dela e soubesse a que sabe, (p. 154) [órgãos genitais] (Grifos
nossos)
à minha mãe, pasmada, não lhe vinha a maleita de natureza há
muito, ( p. 55) [menstruação] (Grifos nossos)
corpo belo mas condenado que carregavam [...] aflitas com ciclos de
maleitas que lhes eram naturais. (p. 19) [menstruação] (Grifos
nossos)
depois, ela perguntou se teria de ganhar barriga por cada vez que eu a
conhecesse, e eu sorri com sua burrice, e até a amei mais ainda, por
corresponder perfeita à estupidez que se espera numa mulher.
(p. 44) ( ter relações sexuais) (Grifos nossos)
O emprego de palavras incomuns desperta a curiosidade do leitor. Há uma
tendência a associá-las ao tempo em que a narrativa sugere que a ação se passa.
1. 13 Repetição, reiterações
61
Na língua escrita, a repetição29 pode ser um índice de estilo descuidado e as
regras estilísticas recomendam que se use a sinonímia, para refletir um texto mais
elaborado. Todavia, a repetição pode ser um recurso de estilo. O texto de Valter Hugo
Mãe é rico em repetição, não apenas de vocábulos, mas também de expressões e
estruturas sintáticas. Em princípio, ela é marca inconfundível da oralidade. Entre os
numerosos exemplos, o excerto abaixo:
a teresa diaba já não era filha de ninguém(1), por muito tempo que
se defendeu de bicho e instinto(2), a diaba era só bicho e instinto(2),
como(3) coisa que veio do mato para se amigar da vida das pessoas,
era assim(5) um animal selvagem com muita vontade de ser
doméstico, presa às atitudes dos homens(4) viciara-se em homens(4),
e nada do que fizesse seria honra para qualquer pai que a tivesse,
assim(5) era como(3) se dizia, já não era filha de ninguém, (1)
(p. 57. Grifos nossos).
As reiterações envolvem vários sentidos. Acima a construção parece elaborada
para se tornar coloquial. O negrito foi usado para assinalar as repetições. Os números
nos parênteses marcam o número de vezes em que a palavra, frase ou expressão foram
repetidas.
Encontramos a repetição30 obsessiva da palavra “não”, 601 vezes, para um livro
pequeno, de 190 páginas; de “nem”, 202 vezes; de “nada”, 280 vezes; de “coisa”, 298
vezes; de buraco, 37 vezes.
Estas insistências são significativas. Podem revelar, em relação ao “não”, “nem”,
“nada”, a negatividade da visão de mundo do escritor. Ou a falta de perspectiva, da
ausência de livre arbítrio e do destino inexorável da família Serapião, tocada pelo
trágico. Na verdade, há, na trama, elementos da tragédia, com seus heróis movidos por
forças que não conseguem controlar. Esta reflexão será retomada mais tarde.
A palavra "coisa” é aquele tipo de “coringa” ao qual recorremos sempre que nos
faltam palavras para exprimir uma ideia. Sem dúvida alguma seu uso indiscriminado
caracteriza pobreza vocabular e torna a frase muito imprecisa. Por tudo isso, é
inadequado seu emprego em textos mais cuidados e formais.
A palavra “buraco”, de acordo com Dicionário Houaiss, tem, entre outras, as
seguintes acepções: cavidade ou depressão, natural ou artificial, num corpo, numa
29
Consideramos como repetição a ocorrência duas ou mais vezes de um mesmo segmento, - palavra,
sintagma, oração, frase etc.
30
No anexo está o levantamento referente às repetições a que nos referimos.
62
superfície; espaço vazio no interior de um corpo sólido, comunicando ou não com o
exterior; cova, toca; ânus.
A repetição tanto de “coisa” quanto de “buraco31”no romance pode remeter à
ideia de que a limitação vocabular reflete a estreiteza de mundo do protagonista.
Alguns exemplos a seguir, entre muitos. O levantamento completo está no
Anexo.
o aldegundes, vez em quando, abria os olhos e perguntava, o que vai
ser de nós. e eu dizia, nada. (p. 143. Grifos nossos)
[ermesinda] deixou-me entregue a um choro miúdo e nada masculino,
e o dagoberto disse-me, que vai ser de ti. e eu respondi, nada. (p. 144.
Grifos nossos)
estaríamos destinados a desaparecer dali e de todos os lugares , para
onde não existisse ninguém e, o mais certo, onde não existisse nada.
(p. 158. Grifos nossos)
gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos
vedados. (p. 13, grifos nossos)
por vezes, eu podia perguntar coisas, em noites de maior paz. (p.
13, grifos nossos)
entre a porta e a janela os buracos ventavam o mais que se
imaginasse, arrefecidos de interior, (p. 29. Grifos nossos)
o aldegundes e o dagoberto queimavam os buracos da minha
ermesinda, (p. 191. Grifos nossos)
31
ela só servia de mamas, pernas e buracos, (p. 27); escarafunchava buracos todos, descobria-nos coisas
nunca vistas na pele mais escondida, (p. 31); a nossa igreja estava repleta, não havia muito mais buracos
a abrir onde enfiar mortos (p. 41); e ela ali ficou paciente a encontrar-se pelo interior dos buracos sem
grande surpresa. (p. 44); tantas lhe daria que até espírito mau dentro dela saltaria de buraco algum para
fugir de quantos pés tivesse. (p. 53); a imaginar nuvens e mais nuvens a entrar por aquele buraco adentro
(p. 60); tenho a certeza de que buraco aberto entrou aqui dentro para se fechar de meu marido (p. 72);
buraco que desse para tanto do que nos vinha à cabeça, mais do que certamente víamos, e buraco assim
fizemos, tantos, vinte homens a mando de dom afonso, (p. 87); terei de fazer alguma coisa por ti uma hora
destas, coisa que te ponha buraco fora de badalo (p. 101); fiz eu coisa que me ocorreu, trocar olho por
terra, buraco onde o deitei trouxe um punhado para dentro e lhe enchi cara com ela, (p. 108); vem
destorcer ou tapar buraco (p. 146); para uma vaca tinha de ser algo robusto, não podia ser buraco
qualquer, (p. 168); prazer de sexo é só esfrega de carne, e que forma de buraco, cor ou cheiro, é distinção
da cabeça, (p. 183); todo o dia passámos a montar buraco onde se enfiasse a vaca. buraco mal tapado,
importava pouco, (p. 185); porque lhe deste pernas abertas a cheirar maldade que te sujeitou deus no
buraco, (p. 188); olho só buraco e cabeça descarecada às peladas, altos e baixos a faltar redondez de
cabeça comum, (p. 189. Grifos nossos).
63
A repetição, nos exemplos abaixo, confere outro tipo de efeito, motiva o
significante. A reiteração da palavra “medo” aliada à aliteração do fonema [m]
intensificam e prolongam o sentimento do temor e tremor. No segundo exemplo,
“minha” intensifica o sentimento de possessão do protagonista:
e medo, medo aterrador fosse ele rachar-me ao meio, apoderar- se do
meu desvalor e mandar que me terminassem. (p. 63. Grifos nossos)
dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés,
delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que
me impressionava. (p. 46. Grifos nossos)
Ainda dentro das reiterações que ocorrem no romance, há também numeroso
emprego da mesma palavra no final de uma frase e começo da frase seguinte.
Assemelha-se ao processo estilístico em que um verso se estende no outro, sintática e
semanticamente, conhecido como encavalgamento, cavalgamento ou, muitas vezes,
pelo termo francês enjambement. Esse recurso é frequente na estrutura do texto
poemático.
As velhas, mijadas e paradas e nos bancos, até pareciam acorrer ali
para nada mais. mais era o que se devia, acertar-lhes com um pé na
nuca, para as abater de vez. ( p. 41-42. Grifos nossos)
teria uma cama de novas palhas e uma arca seca feita de madeiras
decentes para conservações essenciais. essencial seria corrigir as
portadas da janela, completas nos lugares onde se puseram tecidos
velhos sem cuidado para o vento. (p. 37-38. Grifos nossos).
para que ele despache a tua sentença sem esforços que mais
puxem dele, que puxado, como eu vi, já ele está. está como
maçã rosada a explodir de calor. (p. 63. Grifos nossos)
As repetições tão próximas32 também causam um efeito de prolongamento da
palavra, como se fosse um eco.
32
se algo nos faltasse a correr, a correr deveríamos acudir-nos de pais (p.38); a mulher queimada
acordou. acordou disse o aldegundes (p. 121); mais perto estaria da minha ermesinda e muito mais da
felicidade. da felicidade última do amor. (p. 133); como um desesperado. desesperava pelo amor (p.
136); aperfeiçoamos o modo de viver a três. três homens juntos sem separação possível. (p. 153); deve
ser aborrecido. aborrecido é quando lhe dá, (p. 27); mas era por começo. por começo a idade maior
traria responsabilidade (p.25); respondendo ao apelo que eu fizera para sua educação. para educação do
seu coração, (p.61); madeiras mal seguras.mal seguras, como à pressa, ainda tive a alojá-la (p.42); no
centro da sala, a sala onde minha ermesinda entrava ( p.63). (Grifos nossos)
64
Além de palavras, expressões, estruturas sintáticas, há repetição do
pensamento de Baltazar quando tomado pelo ciúme, pela incerteza na fidelidade de
Ermesinda. O próximo capítulo tratará de tal sentimento e do comportamento repetitivo
ou obsessivo do protagonista que afeta a narrativa.
1. 14
Humor
Há poucos momentos de felicidade ou mesmo de descontração no romance,
mas mesmo com total predomínio de tom mais denso, podem-se destacar algumas
passagens em que o humor está presente.
Em uma das incontáveis ameaças de Baltazar, o protagonista diz a Ermesinda
que a maldição que ele carrega, que lhe faz arder, é perigosa. E se ele for tomado por
fúria, será fatal para ela. Dentro do discurso hiperbólico que o caracteriza, Baltazar a
previne. Enquanto ele a ameaça, Ermesinda se prepara para a visita diária a Dom
Afonso. A reação dela é inesperada, por isso mesmo, fica engraçada. Ele a terroriza, ela
acena que sim e vai ao encontro de Dom Afonso.
atenta bem nos teus actos, fúria que me dê novamente, nem endireita
nem curandeiro te vem destorcer ou tapar buraco, nem manjerona
suficiente haveria em todas as terras para untar tanta ferida aberta que
te fizesse, ouves, ermesinda, ouves o que te digo, pecadora, acenou
que sim e foi. (p. 146, grifos nossos)
Há um trecho também significativo, quando D. Catarina recebe Baltazar,
Aldegundes, Dagoberto e Ermesinda na casa grande.
O grupo fora encontrar Dom Afonso, mas quem aparece é a mulher dele, para
surpresa e estranhamento de todos. Ela quer convencer Baltazar a matar Ermesinda.
Esta, sempre tão calada e passiva, tem uma reação incomum:
honreis vosso nome de família pondo fim à esposa que tens. é osso de
corno, toda ela, a passear frente aos olhos dos outros com destaque de
coscuvilhos. a minha ermesinda, atrás e mais atrás, apavorou-se
muito e desatou em fuga. (p. 172, grifos nossos)
Ao ser acusada, surpreedentemente, por dona Catarina de trair o marido,
Ermesinda, consciente da iminente violência de Baltazar, foge. A reação de fugir, de
tomar alguma iniciativa, não é uma caracterítica da personagem. Por isso, a cena revela
65
o humor, configurado na própria escolha do verbo “desatou em fuga”.
O próximo texto está na página 147:
entreolhei o aldegundes, metido atrás de mim ali à porta da igreja, o
teodolindo e o dagoberto espanaram braços no ar e afastaram alguns
que nos mal olhavam de perto, mal olhados vimo-nos mais largos,
deitámos corrida e jurámos servidão a deus até ao fim, a ver se em
desespero nos atendia, mesmo que partíssemos para casa alheia,
casa do diabo, ao morrermos, louvaríamos seus mandamentos,
jurei (Grifos nossos)
Baltazar, Aldegundes e Dagoberto estão amaldiçoados por Gertrudes, assim
acreditam que suas almas estão prometidas ao diabo. Nesta cena, eles se dirigem à igreja
e despertam a atenção de um grupo de aldeões, que os rodeia. Baltazar e seus amigos
fogem e durante a fuga Baltazar faz uma jura inusitada a Deus ao prometer que mesmo
condenados ao inferno, chamado por ele “casa alheia”, sempre louvariam os
mandamentos divinos.
O próximo capítulo, ao tratar da dialética do trágico, retomará a reflexão sobre o
humor.
1. 15 Ambiguidade
Ocorre a ambiguidade quando há, intencionalmente, duplicidade de sentido no
discurso. É o caso do fragmento abaixo que permite inferir duas leituras. Tanto pode
remeter ao que está na superfície do texto, ou seja, ao fato de que a vaca rendia assunto
nas conversas da comunidade ou indicar a maior importância da vaca em relação à
história da própria família que a criava. Desse modo, a história da vaca era superior à
história da família.
dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós vêem-nos com a vaca e
lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos
identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como
haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando
perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia,
tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. (p. 12. Grifos
nossos)
Outra ocorrência muito significativa relaciona-se ao discurso de D. Afonso,
marcado pela ambiguidade, quando Ermesinda lhe é apresentada. Há uma articulação
66
para lançar dúvida no leitor sobre as intenções do dono das terras e gente, na linda
moça. A finalidade dos encontros nunca é revelada, podem-se analisar os implícitos,
desde o seu começo, aqui, com a proposta dos encontros. Se resultou em adultério, não
foi provado, tampouco confessado por Ermesinda. Esta questão, central do romance, é
desencadeadora do conflito. Neste caso a ambiguidade não é de palavra ou expressão,
ela constitui o discurso.
[...] a tua é uma bela mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos,
aberta nos membros, é muito bela,[...] sim, bem vejo, rapaz, que
tudo nela está aberto e pronto para a vida. [...] estou seguro de que
seu corpo se estenderá ao trabalho em grande rendimento e todos
aproveitaremosdo que souber fazer (p. 45. Grifos nossos)
O excerto acima, pela importância na narrativa, será retomado para uma análise
mais detida.
Propusemo-nos neste capítulo a verificar de que maneira se materializa a
poeticidade da escrita do romance o remorso de baltazar serapião.
Vimos que os recursos de pontuação, a organização sintática das frases, o
predomínio de orações coordenadas e as construções elípticas, bem como as rimas e
aliterações, ocupam papel de destaque do discurso de Valter Hugo Mãe, ajudando a
potencializar o sentido e criando, para o texto escrito, um estilo típico da linguagem
oral.
A estranheza das construções discursivas, conforme demonstramos, fere a
percepção de seu leitor e, ao quebrar a fluidez discursiva, força-o a refletir sobre o
significado delas, conduzindo-o a enxergar além do que é dito, além do sentido
veiculado pelo plano do conteúdo. Explorando as possibilidades latentes dentro do
sistema da língua, com a criação de neologismos gramaticais e neologismos semânticos,
Valter Hugo Mãe faz com que cada palavra de seu discurso seja em si mesma um
enunciado, como pontuamos.
A forma do conteúdo e a forma da expressão fundem-se em um movimento de
condensação e expansão do sentido, de modo que uma invade e amplia a substância
produzida pela outra para gerar um sentido unificado.
Este capítulo pretendeu também mostrar que existe um patrimônio poético que
não foi perdido, mas transferido quando o escritor passou do gênero poético ao
romance. Conforme ressaltamos no começo deste trabalho, o escritor, antes de escrever
romance, a partir de 2004, publicou mais de dez livros de poesia, possuindo obra
67
consolidada, premiada e objeto de estudo acadêmico33. Essa origem ajuda a perceber
que a linguagem em sua narrativa é usada muito além da sua função utilitária; ela não se
coloca como meio para transmissão do conteúdo, e sim como forma de enfatizar o
sentido que o enunciador lhe quis atribuir.
O capítulo a seguir tratará a dimensão do passional na linguagem, ao examinar a
paixão do ciúme. Nele o conteúdo semântico de cada palavra, de cada expressão,
aparecerá potencializado pelo significante, de modo que a paixão vivida se configure na
maneira de expressá-la. As construções linguístico literárias criadas no texto serão
examinadas, bem como a cumplicidade que o trabalho artístico estabelece entre escritor
e leitor.
33
O jogo de forças na lírica portuguesa contemporânea, tese de doutorado, apresentada em 2008,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,
Programa de Pós-Graduação da Usp. Autor Nélson Oliveira.
68
Capítulo II
A paixão do ciúme
Amar é o tributo que o enamorado deve pagar à
vida para poder se reconciliar com ela.
Roland Barthes
O revés compreende sempre um acontecimento
imprevisto que reverte uma situação. Todo fato
imprevisto traz como coeficiente tensivo a alta
velocidade, que rompe a ordenação do nosso
tempo interno e nos deixa desnorteado.
Tatit
O primeiro capítulo mostrou que na escrita de Valter Hugo Mãe predomina a
função poética e que esta resulta na ruptura do plano de expressão que, em lugar de
apenas exprimir o conteúdo, chama a atenção para si mesmo, ao reiterar sonoridade,
ritmo, entoação. Seu discurso se distingue, então, como poético na medida em que a
linguagem se amolda àquilo que está sendo descrito, conforme o levantamento que
expusemos no capítulo anterior.
Vista a maneira de trabalhar a linguagem, passaremos aqui a tratar de como esta
linguagem se articula ao tratar da questão central do romance que é a paixão do ciúme.
O levantamento dos fatos linguísticos realizados no primeiro capítulo serão aqui
interpretados. Assim, o que nos interessa na análise do ciúme é entender a configuração
linguística subjacente à sua produção no texto. Quais seriam os procedimentos e as
estratégias de linguagem que o escritor utilizou para engendrar no seu texto a paixão?
Nossa investigação se interessa em examinar a forma pela qual se configura a
dimensão passional e a maneira como ela afeta o narrador, o leitor e a narrativa. O
filósofo húngaro Peter Szondi contribuirá na compreensão da dialética do ciúme, teoria
desenvolvida em seu Ensaio sobre o Trágico (2004), que articula o trágico e o cômico.
O modelo de interpretação proposto por Olivier Reboul, em sua obra Introdução
à Retórica – Teoria e Prática (1998) norteará nossa reflexão neste capítulo.
Reboul dispõe que sempre há interesse em perguntar se um texto possui um
motivo central. O teórico entende por motivo central um procedimento retórico, figura
ou argumento que serve de princípio organizador para o texto, que permite dizer se é
ironia, alegoria, argumento de autoridade etc. É certo que não se pode distinguir um
69
motivo central em todos os textos, mas é útil procurar um, porque encontrando-o,
encontramos logo a unidade viva do discurso. (REBOUL, 1998, p. 158).
Para a interpretação que se deseja ora apresentar, serão examinados dois
excertos do romance. Embora em uma escolha haja sempre um caráter subjetivo, a
seleção que fizemos obedeceu ao critério da grande importância que cada um desses
conteúdos significativos representa para a totalidade do romance. Nomeamos o primeiro
excerto “encontro-apresentação” (E1). Ao excerto número dois (E2), chamamos “as
agressões apaixonadas”.
Passamos a examiná-los.
E1.
“Encontro - apresentação”
parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer, esperámos
atentos que dom afonso viesse chamado pela brunilde. esperámos,
sem mais olhar que a porta por onde viria, e foi com um salto por
dentro que o recebemos. sorrindo, bigode puxado pela mão para
fremir os lábios e, que se visse, era claro que a ermesinda lhe agradava
de beleza e frescura. e eu abençoei-me por ele de joelhos e agradeci
infinitamente a oferta dos dois tornéis, como gabei os aposentos em
que tornámos o lugar da sarga. sim, essa vaca, dizia ele, quantos anos
terá. talvez uns trinta, dom afonso. trinta anos que o teu pai a tem,
parece impossível que não a tivesse desfeito em postas quando era de
comer. meu pai tem apreço pela bicha, dom afonso. um apreço que lhe
deu fama, rapaz. dom afonso saberá. uma mulher é melhor do que
uma vaca, disso estou certo, do que o povo diz pouco me interessa, e a
tua é uma bela mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos, aberta nos
membros. é muito bela, sim, como se regozija o meu amor por ela e
mais ainda por se ter sem empecilhos ou maleitas. sim, bem vejo,
rapaz, que tudo nela está aberto e pronto para a vida. se dom afonso o
diz. digo mais, estou seguro de que seu corpo se estenderá ao trabalho
em grande rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer.
por isso, sou capaz de jurar que fará da sua vinda para a nossa casa
uma grande surpresa, como surpreso ficarei só de vê-la a cada dia e
confirmar que existe tal beleza. assim, quero que passe todas as
manhãs aqui a ver-me, deverá fazê-lo bem cedo antes dos horários de
dona catarina, para que eu possa gerir o seu dia nos animais com
atenção e especial cuidado. ouviste, rapaz, farei tudo para que seja
feliz nos trabalhos e destino que lhe competem. se dom afonso o pede.
agora vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa desimpedida
para os seus confortos.
naquele tempo o meu martírio começou, (p. 44/45. Grifos nossos)
Entre as várias situações e aventuras vividas por Baltazar, o narrador
protagonista, interessa em especial o momento em que ele é mordido pelo ciúme. Ao
longo da narrativa, vamos percebendo a paixão do narrador por sua jovem esposa,
Ermesinda, tendo-a como “a mais bela das raparigas que existiam” (p. 22). A
70
apresentação de Ermesinda a Dom Afonso com a consequente ordem de a bela esposa
de Baltazar passar a visitá-lo todos os dias é momento chave na trajetória existencial do
protagonista, e, consequentemente, de toda a história.
De acordo com o que fora combinado com Dom Afonso, Baltazar, no dia
seguinte ao seu casamento, leva a esposa para ser apresentada ao proprietário das terras
em que a família Serapião habita. Assim, dentro da casa grande, bastante inseguro,
nervoso, tremendo, “como objectos a tremer” (p. 45), o casal aguarda a chegada do
chefe. A atenção dos dois se concentra apenas por onde ele apareceria. Quando,
finalmente ele chega, o casal estremece. Dom Afonso aparece sorrindo, única ocasião
em que sorri para os empregados em todo o romance. Baltazar nota o cuidado do senhor
com a aparência, Dom Afonso tinha o “bigode puxado pela mão para fremir os lábios”
(p. 45). Pela disposição de simpatia inusitada e pelo cuidado com a aparência, o
protagonista conclui: “era claro que a ermesinda lhe agradava de beleza e frescura” (p.
45). O emprego do adjetivo “claro” responde e ratifica a preocupação que Baltazar já
manifestara anteriormente, no capítulo três: temor da intenção de Dom Afonso com
relação ao seu casamento, precisamente quanto à jovem esposa.
dom afonso estava de acordo [com o casamento], e temia eu que
estivesse também curioso por se ter perto de nova rapariga e
assim exercer o seu domínio sobre todos nós, ultrapassando os
mandamentos, mas nada era explícito, só a sua autorização que fora
dada para que nos casássemos e tivéssemos guarida a meias na casa de
meu pai (p. 24. Grifos nossos)
A dúvida de Baltazar pode ter origem na história da própria irmã, Brunilde. Esta,
ainda menina, com onze anos, foi chamada a trabalhar na casa grande.
assim a queria o senhor para as sevícias que lhe davam a ele, a
esfregar-se e a meter-se nela pelos cantos da casa, a tentar retribuirse de tudo o que dona catarina, velha de carnes, descaída e dada às
maleitas, já não lhe oferecia (p. 18. Grifos nossos)
O “trabalho” de Brunilde consistia, portanto, conforme trecho supracitado, em
ser amante de Dom Afonso, assim como o de todas as criadas da casa, “dom afonso
achava que a minha irmã brunilde podia aprender a criar trajes, agora já tão velha,
catorze anos montados em cima dela,” (p. 27. Grifos nossos); “e dom afonso poderia
estar regressado à brunilde, à ricardina, às outras todas [criadas]” (p. 148). Baltazar
71
conhece, portanto, o perfil de Dom Afonso. A configuração da personagem remete a um
“comedor de criadas”.
Do excerto, verificamos que o protagonista tem uma postura de extrema
submissão ao chefe, fato comprovado em vários momentos do encontro, denunciado
pela posição física, “eu abençoei-me por ele de joelhos” (grifos nossos) e o efusivo
agradecimento:
agradeci infinitamente a oferta dos dois torneis, como gabei os
aposentos em que tornámos o lugar da sarga. (p. 45. Grifos nossos)
Porém, a memória do capítulo 3 do romance, anterior, portanto, à apresentação,
traz a afirmação do Baltazar:
a sarga teria um coberto pequeno, feito por nós com umas madeiras
velhas dispensadas das necessidades dos senhores” (p. 24. Grifos
nossos)
Agradecer de forma tão efusiva por umas madeiras velhas que os senhores
sequer queriam mais soa estranho. Da mesma maneira, a vaca ter “aposentos” é
inusitado. Assim, tanto o agradecimento infinito pelas madeiras velhas quanto chamar
“aposentos” o coberto da vaca, têm a marca da ironia. Consideremos também que a
Sarga morava no interior da casa, e foi deslocada para fora, com o casamento de
Baltazar e Ermesinda. Estes passam a ocupar um espaço que era destinado à vaca.
Após o agradecimento, Baltazar e Dom Afonso falam sobre a Sarga e o estranho
tratamento que a família Serapião lhe dedica, o que sempre gerou comentários
maledicentes da população, que considera o animal amante de Afonso pai. O assunto
muda repentinamente da vaca para Ermesinda.
dom afonso saberá. uma mulher é melhor do que uma vaca,
estou certo” (p. 45. Grifo nosso)
disso
Em “uma mulher é melhor do que uma vaca” existe uma avaliação. O emprego
da forma "melhor" envolve comparação. Mais precisamente, é um "grau" do adjetivo
bom, grau comparativo de superioridade sintético. Admite-se que ambas são boas, a
mulher e a vaca, mas uma é "mais boa" que a outra. Melhor em que sentido? A
expressão “melhor” indica que ao menos uma é boa, está na média ou acima dela em
72
termos de qualidade. O contexto em que é empregada a comparação, (“meu pai tem
apreço pela bicha, dom afonso. um apreço que lhe deu fama, rapaz.” ( p. 44. Grifos
nossos) remete aos comentários do povo, “fama” de que a vaca era parceira sexual do
pai de Baltazar. Então, o contexto autoriza afirmar que a qualidade comparada entre
Ermesinda e a vaca tem relação com sexo. Num primeiro momento, poder-se-ia pensar
na ambiguidade do “melhor”. No trabalho que a jovem esposa executará junto às
criações (“nos animais”) de Dom Afonso, ela seria melhor que a vaca, que é útil para
fornecer leite? Não, a alusão se refere aos comentários dos aldeões que renderam a
“fama” de a vaca ser amante do pai de Baltazar e mãe de Aldegundes e Baltazar. Ao
comparar vaca a mulher, é da condição de fêmea de ambas que os dois personagens
tratam.
Os dois homens, no encontro, compartilham a opinião de que uma mulher seja
melhor que uma vaca na relação sexual. Baltazar e Dom Afonso estão na condição de
“machos” avaliando a fêmea. Da fêmea no geral, repentinamente, Dom Afonso passa a
uma específica, que está bem próxima a ele, um “zoom” capta Ermesinda: “e a tua é
uma bela mulher.” Por que o substantivo “mulher” e não rapariga, moça, jovem? Afinal,
Ermesinda tem 15 anos, seria natural aplicar outro substantivo, até menina. É o olhar do
macho que vê na rapariga a “bela mulher”. “Mulher” contém outra conotação que
rapariga, moça, jovem, não possuem.
Os adjetivos contundentes de Dom Afonso para descrever a esposa de Baltazar,
além de “bela”, são “viçosa”, “clara”, “aberta”. Interessa ressaltar a correspondência
entre o adjetivo “viçosa” atribuído por Dom Afonso à Ermesinda com a primeira
desconfiança de Baltazar, logo no começo do encontro: “era claro que a ermesinda lhe
agradava de beleza e frescura”. Ao “viçosa”, de dom Afonso corresponde a “frescura”,
de Baltazar. Com efeito, de acordo com o Dicionário Houaiss (2009), “viçosa”, tem a
acepção de aspecto fresco e verde. Dom Afonso comprova com suas próprias palavras a
primeira desconfiança do marido de Ermesinda em relação a ele. Se Dom Afonso diz
que Ermesinda é “viçosa”, está claro que a moça lhe agradou de “frescura” como
imaginara anteriormente o marido.
Quanto ao “aberta” e “aberto” em “aberta nos membros, tudo nela está aberto e
pronto para a vida”, existe uma tensão nos citados adjetivos proferidos e repetidos por
Dom Afonso que originam ambiguidade. “Aberto” pode ser entendido para ser
penetrado. E “pronto” pode referir-se que mesmo em tenra idade, 15 anos, fisicamente,
ela está completa para a vida sexual.
73
Sabemos que a literatura é um fato de linguagem e que a linguagem humana é
polissêmica, pois os signos, tendo um caráter arbitrário e ganhando seu valor nas
relações com os outros signos, sofrem alterações de significado em cada contexto.
(FIORIN, 2010). A polissemia é fartamente elaborada no “encontro-apresentação”,
principalmente nos comentários de Dom Afonso em relação à Ermesinda.
O E1 articula-se pela ambiguidade o que autoriza que desconfiemos da intenção
do chefe de Baltazar. O que pode significar “seu corpo se estenderá ao trabalho”? De
acordo com o dicionário “estender” significa expandir-se, esticar. Dentre as várias
acepções, a número 11, do Dicionário Houaiss (2009), traz: quando pronominal tem a
acepção de pôr-se deitado, estirar-se. E “trabalho”? A que “trabalho” dom Afonso se
refere? Ao mesmo que ele convidou Brunilde a executar na casa grande? Conforme
vimos acima, Brunilde deixou a casa dos pais “para as sevícias que lhe davam a ele, a
esfregar-se e a meter-se nela pelos cantos da casa” (p. 18. Grifos nossos). O mesmo
“trabalho” ele reserva para a bela esposa do protagonista?
E1 traz ainda um recurso linguístico especial que torna o texto ainda mais
instigante. Falamos da silepse de pessoa.
estou seguro de que seu corpo se estenderá ao trabalho em grande
rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer. (Grifos
nossos)
Em “todos aproveitaremos do que souber fazer”, evidencia-se a opção pela
concordância ideológica, em vez da gramatical. Todos aproveitarão do que souber fazer
seria uma escolha perfeitamente cabível, à disposição na língua. Porém, “todos
aproveitaremos” trai uma intenção. Dom Afonso se inclui no aproveitamento da moça.
O verbo aproveitar tem, entre outras, a acepção de tornar algo proveitoso, útil, gozar,
utilizar, tirar proveito, lucro de alguma coisa (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009).
Assim, a seleção do léxico: “se estenderá”, “seu corpo” “trabalho”, “mulher”,
“aberto”, “aberta”, “aproveitaremos”, torna o sentido difuso, gera um texto
intencionalmente polissêmico e ambiguo.
Dentro deste contexto de ambiguidades, a narrativa se encaminha para o
momento-chave da apresentação que se concentra na determinação de Dom Afonso a
Baltazar:
quero que [ermesinda] passe todas as manhãs aqui a ver-me, deverá
fazê-lo bem cedo antes dos horários de dona catarina. (p. 45)
74
Parece que a apresentação só teve este fim. Completamente unilateral, só
interessa a uma pessoa: Dom Afonso. À apresentada não se oferece qualquer
manifestação, a ela só cabe a exposição física para ser avaliada, como uma mercadoria.
Aprovada pela fulgurante beleza, nem a ordem lhe é dada diretamente, nem seu nome
proferido. A determinação é feita diretamente ao marido, seguida de expressão para
saber se a ordem foi plenamente entendida: “ouviste, rapaz.” A pergunta de Dom
Afonso coloca em relevância a função fática da linguagem, recurso da fala para manter
o contato físico e/ou psicológico entre os interlocutores para verificar se há ou não
contato. (FIORIN, 2011, p. 36). A expressão lança luz no interesse de Dom Afonso de
se certificar de que sua ordem foi bem entendida por seu interlocutor, interessado que
está em ver Ermesinda todos os dias. O cumprimento da ordem passa por seu bom
entendimento.
Não se trata, evidentemente, de aceitar ou não, tampouco de discutir a
determinação de Dom Afonso, só cumprir. Os verbos não deixam dúvida de que se trata
de ordem, eles são marcados por tom imperativo: “quero” “deverá”
Neste sentido torna-se importante destacar a maneira com que Baltazar
responde a Dom Afonso: “se dom afonso o pede”. À pergunta feita somente para
confirmar se a ordem foi bem entendida, Baltazar responde como se fosse um pedido.
Há um estranhamento semântico entre os verbos utilizados por Dom Afonso e Baltazar
que não pode passar despercebido: “quero”, “deverá” e “pede’. Dom Afonso é
autoridade, não pede nada, pelo contrário, ele é dono de propriedades e dos empregados
que o servem. Baltazar relativiza a ordem, responde-lhe com o verbo pedir. Não
podendo negar, ironiza a resposta.
Logo após a decretação da ordem e a certificação de que foi entendida, o casal
é mandado embora.
agora vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa
desimpedida para os seus confortos. (p. 45. Grifos nossos)
O ponto final é brusco e o advérbio de tempo “agora” é ambíguo. Pode ser lido
como “agora” que conheço a bela esposa ou “mulher” e determinei como será seu
futuro não há mais nada a tratar. “agora vão”.
Para Baltazar, ficou entendido desde o início da apresentação que, ao ver sua
jovem e bela esposa, seu chefe desejou tê-la como amante. Certeza que ele manifestou
75
em seu discurso: “era claro que ermesinda lhe agradava de beleza e frescura” (p. 45). O
adjetivo “claro” é bem sugestivo para desfazer uma dúvida ou um temor, já que antes do
casamento, embora Dom Afonso estivesse de acordo com o enlace, o noivo temia um
interesse escuso do patrão “temia que estivesse também curioso por se ter perto de nova
rapariga e assim exercer o seu domínio” (p. 24).
Na apresentação, “claro” soa como uma resposta para Baltazar de que a intenção
era sim a de estender o domínio também sobre Ermesinda. Não havia mais dúvida. A
frase que fecha a apresentação estabelece a certeza e marca um novo tempo no romance.
“naquele tempo o meu martírio começou”.
O E1 - “encontro-apresentação” - é uma peça primorosa de trabalho linguístico
literário, eivada de segundas intenções. O estilo está a serviço da obtenção de força e
adequação da cena dramática. O texto é amplificado por figura fortíssima: a
ambiguidade. A figura se destaca como o motivo central, um grande meio
argumentativo, que visa a levar a crer na potencialidade do adultério.
Três atores que encenam um improvável triângulo amoroso, num espaço cenário
que desfavorece o jovem casal. A casa grande, signo do poder, habitat do grande senhor
feudal, escolhida para o encontro, intimida tão fortemente Ermesinda e Baltazar, que os
dois se põem a tremer, “parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer,
esperámos.” (p. 45). Enquanto esperam Dom Afonso sentem que “ali dentro da casa
tudo era passível de ser inteligente, era da figura e preciosidade das coisas, pareciam
guardar vida incrível que se accionasse por poderoso feitiço à voz do proprietário”.
(p. 44. Grifos nossos).
O intranquilo casal espera, porque Dom Afonso se faz esperar, enquanto isso,
sente o peso do ambiente “era como nos sentíamos na casa de dom afonso,
enterrados por preciosas peças que ornavam a casa, como eu imaginava um castelo de
el-rei. dom dinis.” (p. 44. Grifos nossos).
O cenário para a apresentação de Ermesinda marca a exclusão, e torna a figura
de Dom Afonso ainda maior, esmagadora, com forte repercussão na insegurança do
casal.
parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer, esperámos
atentos que dom afonso viesse chamado pela brunilde.
76
esperámos, sem mais olhar que a porta por onde viria, e foi com
um salto por dentro que o recebemos. (p. 45. Grifos nossos)
O primeiro “esperámos” indica um fato, já o segundo ressalta o caráter aflitivo
desse fato para o casal protagonista. A agonia dos dois com o olhar voltado para a porta,
o susto manifestado com o “salto por dentro” com a chegada do dono da casa, que os
fazia esperar e com isso intensificava o momento de sua aparição e apresentação.
A apresentação assemelha-se a uma dramatização cuja enunciação é fortemente
marcada: de um lado, dom Afonso e, do outro, Baltazar. O diálogo se passa só entre as
duas personagens, com predomínio da voz de Dom Afonso sobre a de Baltazar,
conforme podemos verificar com o auxílio das cores:
Legenda:
Azul – voz. de Dom Afonso
Vermelho – voz de Baltazar
Preto – narrador.
E1 “Encontro-apresentação”
parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer, esperámos atentos que dom
afonso viesse chamado pela brunilde. esperámos, sem mais olhar que a porta por onde
viria, e foi com um salto por dentro que o recebemos. sorrindo, bigode puxado pela
mão para fremir os lábios e, que se visse, era claro que a ermesinda lhe agradava de
beleza e frescura. e eu abençoei-me por ele de joelhos e agradeci infinitamente a
oferta dos dois tornéis, como gabei os aposentos em que tornámos o lugar da sarga.
sim, essa vaca, dizia ele, quantos anos terá. talvez uns trinta, dom afonso. trinta
anos que o teu pai a tem, parece impossível que não a tivesse desfeito em postas
quando era de comer. meu pai tem apreço pela bicha, dom afonso. um apreço que
lhe deu fama, rapaz. dom afonso saberá. uma mulher é melhor do que uma vaca,
disso estou certo, do que o povo diz pouco me interessa, e a tua é uma bela
mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos, aberta nos membros. é muito bela, sim,
como se regozija o meu amor por ela e mais ainda por se ter sem empecilhos ou
maleitas. sim, bem vejo, rapaz, que tudo nela está aberto e pronto para a vida. se
dom afonso o diz. digo mais, estou seguro de que seu corpo se estenderá ao
trabalho em grande rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer.
por isso, sou capaz de jurar que fará da sua vinda para a nossa casa uma grande
surpresa, como surpreso ficarei só de vê-la a cada dia e confirmar que existe tal
beleza. assim, quero que passe todas as manhãs aqui a ver-me, deverá fazê-lo
bem cedo antes dos horários de dona catarina, para que eu possa gerir o seu dia
nos animais com atenção e especial cuidado. ouviste, rapaz, farei tudo para que
seja feliz nos trabalhos e destino que lhe competem. se dom afonso o pede. agora
vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa desimpedida para os seus
confortos.
naquele tempo o meu martírio começou, (p. 44-45)
Neste jogo de força, ganhou o mais forte, Dom Afonso, não poderia ser
diferente. A presença de Ermesinda não é marcada no enunciado, mas na enunciação.
Embora ela esteja presente e seja o motivo do encontro “escuta-se a sua mudez” (p.
77
188). Ela está entre os dois sujeitos: deve cumprir a ordem de Dom Afonso e deve ser
fiel a Baltazar. A pressão que a personagem sofre na sua apresentação não pode deixar
de ser mencionada.
Vale a pena ressaltar que este é o único diálogo do romance, no qual ficam mais
bem delineados os sujeitos, os interlocutores e as falas de cada um. Este fato é oportuno
de ser comentado porque, constantemente, como já ressaltamos, na narrativa de Valter
Hugo Mãe, há inserções repentinas do discurso direto que confundem o leitor quanto à
autoria e turnos da fala. Na apresentação, há clareza de quem fala e também daquilo que
é determinado. Há um efeito de sentido nesse fato, o de revestir de total clareza o
cumprimento da ordem que desencadeará o conflito.
Destacamos ainda que este “encontro-apresentação” será paradigmático. Ao
longo da narrativa outras determinações de Dom Afonso para Ermesinda virão, caberá
sempre a Baltazar retransmitir à sua mulher as ordens de Dom Afonso34.
Seguem dois exemplos:
agora vai e morre, por favor, e avisa a tua mulher que a quero cedo
como sempre, a entrar com as ordens que lhe dei. já sabe do caminho
pela porta que se abre, sabe dos passos leves a dar no corredor e onde
esperar quieta por que a venha ver. (p. 63. Grifos nossos)
[sua mulher] poderá voltar para instruções de companhia como
sempre, e não quero conversa mais contigo, se não fosse sorte de teu
irmão, ter-te-ia acabado há muito, vai-te com sorte por tanto viveres,
coiso35 burro (p. 107. Grifos nossos)
O comportamento de Baltazar em relação a Dom Afonso em muitos momentos
da apresentação: ao se ajoelhar, ao agradecer exageradamente, ao repetir por tantas
vezes o nome do seu senhor. “meu pai tem apreço pela bicha, dom afonso”, “dom
afonso saberá”, “se dom afonso o diz”, “se dom afonso o pede”, “talvez uns trinta,
dom afonso” (grifos nossos), reveste-se de uma falsa submissão, há um fina ironia do
protagonista ao manifestar tais repetições.
Ao tratar da ironia, Reboul (1998) explica que tal figura pode ser amena ou
cruel, sutil ou grosseira, amarga ou engraçada. O que a torna provavelmente fina é o
afastamento entre os dois sentidos, a letra e o espírito. Se clara demais, passa a ser fácil.
A ironia pesada é a esperada, a que sucumbe ao peso do sentido. Ela é fina quando seu
verdadeiro sentido se deixa esperar, quando sua vítima é a última pessoa a percebê-la;
34
35
Invertendo a máxima popular de que o marido é o último a saber. No caso, é o primeiro.
“Coiso”, transgressão.
78
indo mais longe, pode-se dizer que é aquela cujo sentido nunca ficará completamente
claro, que sempre deixará alguma dúvida.
A polissemia contribui para gerar a ambiguidade no discurso de Dom Afonso
em relação à Ermesinda. Não há nada de neutro ou ingênuo na fala do chefe de Baltazar.
Os desdobramentos deste E1, que marcam a constituição da paixão do ciúme,
serão detalhados no próximo excerto. Por ora, o sujeito ciumento, Baltazar, encontra-se
em uma situação de profunda inquietação (a sensação de desconfiança). Numa fase em
que se constitui como sujeito apaixonado caracterizado pelo abalo.
A subtração diária da presença de Ermesinda para os encontros com Dom
Afonso compreende o revés, o acontecimento imprevisto da vida de Baltazar. Todo fato
imprevisto, conforme Tatit (2004), “traz como coeficiente tensivo a alta velocidade, que
rompe a ordenação do nosso tempo interno e nos deixa desnorteado”.
O desnorteamento do protagonista está configurado no seu próprio desabafo:
“e era como me enlouquecia, nada saber (p. 46, grifos nossos).
Muitos fatores conferem a E1 força e vivacidade, desde o espaço escolhido
como cenário, a casa grande, que intimida e desfavorece o casal protagonista, por isso
Ermesinda e Baltazar esperam por dom Afonso “como objetos a tremer”.
O casal não está em terreno neutro. Em um espaço de exclusão é colocada em
cena a organização triangular que constitui a base da relação ciumenta
ciumento, objeto do ciúme e sujeito rival
sujeito
pela primeira e única vez no romance.
Ermesinda motivou o encontro. Ela representa o grande investimento afetivo de
Baltazar, o modelo de mulher que ele idealiza. Porque vive no seio de uma conhecida
família, “era filha de um pobre homem que o meu pai conhecia da vida toda”, (p. 22), é
possuidora de valores caros ao protagonista: discrição, obediência, virgindade,
educação, recato, é reconte a expressão que ela caminha “sem abrir os olhos dos pés.”
(p. 22). Antes do casamento, pertencia aos pais e era gerida por eles.
A experiência que Baltazar tem com a irmã, “puta de Dom Afonso” (p. 96 ) e
com a prostituta Teresa Diaba o leva a querer para si alguém diferente das duas.
Alguém como Ermesinda: “a minha mulher haveria de ser a ermesinda” (p. 22 ).
Conhecer as pistas que o narrador dispõe sobre sua esposa, nos ajudará a
conhecer a mulher por quem Baltazar é apaixonado e traçar mais tarde o perfil de
Ermesinda e procurar montar seu enigma. Assim, ao longo da narrativa, verificamos que
ela é mais nova do que o marido apenas dois anos, ( p. 22), o protagonista conta com
dezessete anos (p. 25). A beleza da personagem se tornou famosa na localidade.
79
Baltazar a descreve com cabelos longos e claros, lábios cheios, olhos claros, “uma
rapariga feliz, mostrava, muito rosada como as flores” (p. 22).
O protagonista sempre a seguia, sem ser notado, e se certificava da retidão do
caráter da moça. Entre as muitas ocasiões em que isto acontece, o trecho abaixo.
apontei-me ao trajecto de ermesinda entre casa e fonte, saía pela porta
lateral e encostava-se às paredes [...] dava as boas-tardes ao pai que a
geria com os olhos rua abaixo, ele ali, agarrado ao percurso com
distância, [...] e ela seguia assim permitida, a fazer discretamente o
que lhe era pedido [...] ao que entrava em casa, revista por seu pai,
correcta na volta, no tempo e no recado, nada mais lhe seria
autorizado, e a nada mais se candidatava, (p. 35. Grifos nossos)
Com a realização do sonhado casamento, Ermesinda passaria a pertencer só a
ele, Baltazar. Diante deste contexto, podemos avaliar sua frase: “naquele tempo o meu
martírio começou” (p. 45. Grifos nossos).
A frase de Baltazar tem o estatuto de dividir o narrado; representa, na verdade,
um antes e um depois na narrativa:
antes: valores eufóricos: amor, casamento, filhos, vida.
depois: valores disfóricos: ciúme, violência, crime, morte.
Ermesinda possui muitas qualidades, apresenta, contudo, um forte complicador
para Baltazar, a extrema beleza que porta. Tal atributo, já descrito anteriormente, era
reconhecido por todos da comunidade36, a formosura de Ermesinda era uma
unanimidade. A que se devem tais observações? Talvez tal fato, na ótica do ciumento,
seja agravante porque exacerba a desconfiança.
Ao longo da obra, além da beleza física, o leitor segue coletando informações
sobre o caráter de Ermesinda. Uma mulher linda e jovem que gostava de Baltazar. O seu
perfil traçado não era só externo, parece haver a comunhão de corpo e alma. Era
obediente aos pais e os respeitava; foi solidária com Brunilde quando a cunhada
engravidou de Dom Afonso; ajudou Baltazar, Aldegundes e Dagoberto arranjando
roupas para eles não andarem nus, quando foram amaldiçoados; acolheu o marido cada
vez que retornava entristecido dos encontros com bruxas; tentou convencer o sogro a
não expulsar de casa Baltazar. Por fim, dispôs-se até a pedir ajuda a Dom Afonso para
36
“azar o teu foi sorte que te saiu em te haveres aceite por mulher tão bela” (p. 118). Declaração de
Gertrudes, a mulher queimada.
80
que o marido tivesse onde morar e trabalhar, quando o sogro incontinenti expulsou os
filhos de casa.
Não era só beleza, era abundância, enfim ela era um signo de vida. Este ser, que
a própria narrativa atribuiu à luz, apaixonou-se por seu oposto. Era a abundância versus
a precariedade, a luz versus a sombra, o altruísmo versus o egoísmo. Era natural que,
diante dela, Baltazar tremesse, se sentisse inseguro e ciumento. A imposição de Dom
Afonso desordenou a vida de Baltazar, todo o seu investimento afetivo ruiu e trouxe à
tona toda a sua precariedade, tudo o que ele tinha de pior.
A beleza e “frescura” (p. 45) de Ermesinda eram atributos que Dona Catarina,
mulher de Dom Afonso, há muito tempo deixara de ter, quem sabe se tivera algum dia.
Para Baltazar, Dom Afonso tenta com as criadas “retribuir-se de tudo o que dona
catarina, velha de carnes, descaída e dada às maleitas, não lhe oferecia” (p. 20)
A partir da ordem de Dom Afonso, progressivamente, a dúvida sobre o que
ocorre nos encontros diários entre sua mulher e Dom Afonso deixa Baltazar
transtornado e cego pelo ciúme, fazendo com que ele passe a enxergar a esposa como
uma vil adúltera. Diante da infelicidade que sente, mesmo casado há poucos dias, ele
procura a prostituta, Teresa Diaba. Este encontro é revelador. Antes do casamento,
Baltazar pensava que “coisas do sexo eram muito importantes, por isso parecia muito
difícil conciliar uma fidelidade amorosa com a vontade tão desenfreada de entrar numa
rapariga” (p. 21).
Depois do casamento, o protagonista não consegue mais deixar de ser fiel. O
corpo da Teresa Diaba não parecia o mesmo. Embora ele saiba que nada mudara em
Teresa, tudo na prostituta o incomoda e o repele. O que mudara? Ele mesmo. O excerto
abaixo trata do forte sentimento de Baltazar e é significativo por derramar sua
infelicidade na narrativa, no exato momento em que tem relação sexual com uma
mulher querendo a sua, Ermesinda:
[...] voltei ao corpo da teresa diaba [...] tão poucos dias se passavam
a partir do casamento, [...] e sabia que era muito do que queria
esquecer que me punha em cima dela. cada vez mais odiando o seu
repelente corpo e esquecido de como, quando solteiro, me era fácil
saciar a fome através dos seus atributos remanescentes, é uma
mulher ainda, como pensava, e que assim o fosse, tão igual que nada a
tivesse mudado, nada me parecia o mesmo [...] se entre o céu e a terra
houver informação, que se ensurdeça o céu do que fiz, quero a minha
ermesinda, só a minha ermesinda. (p. 59. Grifos nossos)
81
Ermesinda o que fez na vida de Baltazar, entre outras mudanças, foi tirá-lo do
exílio meramente animal para a humanização37, no sentido de que fez Baltazar amar e
não somente relacionar-se sexualmente. Por isso, quando procura Teresa Diaba, depois
de ter passado pela experiência de fazer amor com Ermesinda, ele sente a diferença, o
que outrora nem sabia que existia: sexo com amor.
O modo de dizer, como vimos destacando desde o primeiro capítulo, é
responsável pelos efeitos de sentido que atingem e convocam o leitor, e sobrepõe-se ao
que é dito.
Destacamos, em E1, o trabalho com o significante. A repetição de sons no
excerto destaca a matéria sonora de que tratam as “figuras de palavra”. São elas:
[o] “sem mais olhar que a porta por onde viria”/ “com um salto por [e] dentro
que o recebemos” / [m-p-b]” meu pai tem apreço pela bicha” / [m] “uma mulher é
melhor do que uma vaca” / [e] “é uma bela mulher, aberta nos membros [o] viçosa nos
modos, clara nos olhos,” / [s] “estou seguro de que seu corpo se estenderá” / [t]
“quantos anos terá. talvez uns trinta, dom afonso. trinta anos que o teu pai a tem, parece
impossível que não a tivesse desfeito em postas” / [m] “meu martírio começou”. (Grifos
nossos)
Tais figuras contribuem para agradar (delectare) ou comover (movere) o leitor,
mas também são argumentativas no sentido de chamar atenção para o conteúdo ao
valorizar o significante. Assim, os fonemas abertos [e], [o] e [a] em:
é uma bela mulher, aberta nos membros viçosa nos modos, clara
nos olhos.
Produzem com a repetição sonora das vogais efeitos de sentido de ruptura da
“normalidade”, relacionam expressão e conteúdo, principal característica da função
poética. O “aberta” está fortemenete intensificado pelos sons abertos.
Em E1, composto por trinta e três linhas, a repetição da palavra “que” (vinte e
uma vezes) registra a oralidade no excerto, o que torna mais espontânea a fala, mais
próxima do leitor.
esperámos atentos que dom afonso viesse chamado pela brunilde.
esperámos, sem mais olhar que a porta por onde viria, e foi com um
salto por dentro que o recebemos. sorrindo, bigode puxado pela mão
para fremir os lábios e, que se visse, era claro que a ermesinda lhe
agradava de beleza e frescura. (grifos nossos)
37
Luís Felipe Pondé, Politicamente incorreto. 2012.
82
Neste E1, “encontro-apresentação”, estão em cena as personagens chave do
romance, aquelas que compõem o triângulo amoroso imaginário ou real. O espaço foi a
casa grande, morada de dom Afonso, local de opressão para Ermesinda e Baltazar. Os
valores que estiveram na base do encontro foram falsidade versus verdade, poder versus
opressão, fidelidade versus infidelidade, vida versus morte. Após a inusitada
apresentação, na qual a apresentada não tem fala, é referida apenas com “e a sua é uma
bela mulher” (p. 45), decidiu-se o seu futuro: Ermesinda deve encontrar-se todas as
manhãs com Dom Afonso, bem cedo, antes que a mulher dele, Dona Catarina, desperte.
Pela importância que acarreta na história, por ser um divisor de águas na
narrativa, o excerto foi escolhido. Nele, ressaltamos a ambiguidade, a ironia, a
concordância ideológica, por meio da silepse de pessoa, o emprego peculiar dos
discursos direto e indireto, a função fática da linguagem, o tratamento dispensado à
matéria sonora para intensificar o significado e a pontuação peculiar que caracteriza os
textos de Valter Hugo Mãe, além de evidenciarmos o jogo retórico.
Tal excerto faz parte do capítulo seis do livro e até o capítulo vinte e oito, o
último, o que ficou estabelecido por Dom Afonso não parou de ecoar. Marco na
narrativa, o “encontro-apresentação” será responsável pela virada na trajetória do
protagonista, que repercutirá não só nas “agressões apaixonadas”, que analisaremos a
seguir, como também no despertar para o trágico da existência, assunto do capítulo três
desta pesquisa.
E2. “As agressões apaixonadas”
No dia seguinte ao casamento, quando Dom Afonso determina que Ermesinda
passe a visitá-lo todos os dias pela manhã, Baltazar, o narrador protagonista, declara
“naquele tempo o meu martírio começou”(p. 45 ). Esta declaração fundamenta a ruptura
da narrativa e a divide em dois tempos. O seu martírio, seu caos pessoal se derrama na
narrativa. Baltazar é assaltado por dúvidas que o levam à conclusão de que Ermesinda o
trai com Dom Afonso. Não podendo enfrentar seu senhor, ele desconta na mulher toda a
sua frustração. A sua imaginação e os comentários da irmã Brunilde o levam à certeza
do adultério. E, consequentemente, às brutalidades contra a mulher, que nunca admite o
ter traído. Os excertos a seguir representam o auge de intensidade máxima de toda a
história.
83
Primeira agressão.
se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não
a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, está nas minhas mãos
completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás
respeitar-me para que sejas respeitada, nada do que te disser deve ser
posto em causa, ( p. 48. Grifos nossos)
Esta agressão ocorre como iminente reação de Baltazar ao primeiro encontro
entre Ermesinda e Dom Afonso, conforme ordem dada pelo senhor no encontro
apresentação, excerto um. Para o protagonista, a violência contra a esposa significa um
correctivo. Segundo o nosso dicionário de referência, o Houaiss (2009), “correctivo”
tem a acepção de “que ou o que corrige, endireita; que ou o que tem a propriedade de
corrigir”; “castigo que se aplica àquele que, por algum motivo, deve ser repreendido”.
“Primeiro”, numeral cardinal, tem a acepção de o “que precede outros em
número.” O emprego do numeral deixa vislumbrar que outros “correctivos” estariam
por vir. E vieram, as agressões que se seguiram à primeira eram previsíveis ou faziam
parte da “educação” que caberia ao marido administrar na esposa.
Na linguagem deste primeiro excerto, destacam-se os cognatos “amasse”,
“amor”; “completar”, “incompleto”; “respeitar”, “respeitadas”; a reiteração do som [aw]
“mão” “não” “não”, “mãos”; a aliteração “nada do que te disser deve ser posto em causa”.
Há uma progressão da violência nas agressões, da “mão na cara”, a primeira,
até a quinta e última, “tanta pancada na cabeça que lhe saltaram pedaços” (p. 178)
confomer veremos a seguir.
Segunda agressão.
Baltazar busca uma prova da traição de Ermesinda. Ao tentar espioná-la na
janela da casa de dom Afonso, ele sofre uma queda e é descoberto pelo seu senhor. Mais
tarde, em casa, Baltazar a agride pela frustração de sua empreitada e pela vergonha por
que passou.
quando a ermesinda veio, entrou no nosso lado da casa, solta das
demoras de dom afonso, preparada para se explicar, sabia eu, e
surpresa com a minha aparição gaguejou algo que não ouvi, tão
grande foi o ruído de minha mão na sua cara, e tão rápido lhe
entortei o corpo ao contrário e lhe dobrei o pé esquerdo em todos
84
os sentidos que te saiam os peidos pela boca se me voltas a
encornar, definharás sempre mais a cada crime, até que sejas
massa disforme e sem diferença das pedras ou das merdas
acumuladas, e coisa que te entre pelas partes há-de cair e
cozinhar-se para jantar, que em verdade, se filho algum lhe saísse
de um homem que não eu, haveria de servi-lo ao jantar para a sua
própria boca. e assim ficou revirada no chão, esfregada de dores
corpo todo, a respeitar-me infinitamente para se salvar de morrer, mas
poupá-la da morte era o único que me permitia, tão louco de paixão
estava, tão grande amor lhe tinha, não poderia matá-la. ( p. 53. Grifos
nossos)
A agressão acima é caracterizada pela hipérbole, figura central de todas elas.
Nesta segunda agressão destacam-se: “entortei o corpo ao contrário e lhe dobrei o pé
esquerdo em todos os sentidos.” “se filho algum lhe saísse de um homem que não eu,
haveria de servi-lo ao jantar para a sua própria boca.” Amplificada ainda pelo
intensificador “tão”: “tão grande”, “tão rápido”, “tão louco de paixão”, “tão grande
amor lhe tinha” e pela elipse. (Grifos nossos)
Algumas construções inusuais como: “solta das demoras de dom afonso”,
“esfregada de dores corpo todo” atribuem um criativo diferencial à narrativa. A
reiteração da conjunção coordenativa aditiva e conferem oralidade ao excerto: “e
surpresa com a minha aparição”; “e tão rápido lhe entortei o corpo ao contrário”; “e lhe
dobrei o pé esquerdo em todos os sentidos”; “e sem diferença das pedras”; “e coisa que
te entre pelas partes”,“e cozinhar-se para jantar”; “e assim ficou revirada no chão”. A
aliteração gaguejou algo sugere a gagueira de Ermesinda tomada pelo medo da surra. Os
recursos descrevem o ritmo e a oralidade da fala. A ação desmedida se vale da
hipérbole para materializá-la.
Terceira agressão.
Após frustrada e barulhenta espionagem de Baltazar, Dom Afonso suspende as
visitas de Ermesinda, por temer que comentários cheguem aos ouvidos de dona
Catarina. O protagonista pensa que seu senhor não voltaria a restabelecer os encontros
com sua bela mulher, porém foi só por um curto período. Dom Afonso o chama e
determina que as visitas sejam retomadas. A reação do protagonista foi de uma
crueldade espantosa, mas produz pouco ou nenhum drama à sua consciência de marido
apaixonado.
85
foi como lhe procurei pé que viesse à mão e lho torci, e gritei que puta
em minha casa era coisa de rastejar, e ao invés de conseguir estragar
novo pé, virei-lhe braço que agarrei e aproveitei de o escolher. se lhe
arranquei uns cabelos, nada se notaria na manhã seguinte. posta na
vertical em tremelicos, era o braço direito que não lhe descia a metade
para baixo, para qualquer coisa que pegasse haveria de se agachar
muito, ou trazer com a outra mão àquela, quase ao nível da cara. foi
como ficou, nada desfeada, apenas mais confusa no arrumo do corpo,
a minha pobre mulher mal educada e não preparada para o
casamento. o anjo mais belo que eu já vira, por sorte tão incrível,
minha esposa, amor meu. (p. 65. Grifos nossos)
Nesta agressão física, Baltazar sadicamente explica que não torceu o pé38 de
Ermesinda, como da agressão anterior, nem quis estragar “novo pé”. Na vez anterior,
ele já estragara o pé esquerdo dela, desta vez, preservou o pé direito e preferiu estragar o
braço ao pé: “ao invés de conseguir estragar novo pé, virei-lhe braço que agarrei e
aproveitei de o escolher.” O protagonista, além de descrever as agressões, expõe o
resultado delas no corpo de Ermesinda. Ficamos sabendo que o braço direito não descia,
ficara quase ao nível do rosto da personagem: “era o braço direito que não lhe descia a
metade para baixo, para qualquer coisa que pegasse haveria de se agachar muito, ou
trazer com a outra mão àquela, quase ao nível da cara.”
Observamos também que Ermesinda é motivo de comiseração e, ao mesmo
tempo, de violência: “a minha pobre mulher mal educada e não preparada para o
casamento. o anjo mais belo que eu já vira, por sorte tão incrível, minha esposa, amor
meu.”
Na linguagem, além da hipérbole, a “plumagem” do significante: aliteração: foi
como ficou, nada desfeada, apenas mais confusa no arrumo do corpo”, “minha pobre mulher
mal educada e não preparada para o casamento”. Aliteração e coincidência de
terminação –ada conferem ritmo e melodia à narrativa.
Quarta agressão.
38
Baltazar reproduz a violência que vira seu pai praticar na mãe: “e a minha mãe como pediria que não
fosse bruto com ela. era porque lhe entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo em que eu era
muito novo, e assim a ensinou de modos para sempre, tomada de respeitos por ele para o resto da vida,
não quisesse que ele lhe entortasse também o outro, e eu acho que ela se escudava como vítima de quando
em vez para que nos apiedássemos da sua condição de fêmea” (p. 47)
86
Ocorre um dia antes da viagem de Baltazar e Aldegundes ao palácio de Dom
Dinis. El-rei estava hospedado na casa de Dom Afonso. Com tal hóspede em casa, ele
suspendeu, mais uma vez, os encontros com Ermesinda. Porém, ao fim da visita real,
Dom Afonso chama Baltazar para determinar que sua jovem esposa volte a procurá-lo
todas as manhãs. Segue-se a reação de Baltazar, a mais violenta.
entrei em casa e, noite coberta, escuro e silencioso o momento, entrei
dedo dentro de ermesinda olho arrancado. como te disse,
ermesinda, prometido de coração é devido, ficarás a ver por sorte
ainda, ficarás a ver melhor do que te devia deixar, mas deixo-te o
outro para vez que me pareça. ou por piedade, deixo-to por piedade, e
a este deito-o à terra e cubro-o para ser comido. não te preocupes
agora, se dormires de mão aí tapada acordarás ainda e ainda também
quando eu for e voltar. e ela pôs mão e gritos no olho arrancado e
deitou-se em desmaio para o chão. (p. 107, grifos nossos)
A quarta agressão mantém o caráter hiperbólico, mas não é só isso, se
observarmos a frase “entrei dedo dentro de ermesinda olho arrancado”, além da figura
do exagero, o enunciado é revestido por: aliteração [d], por elipses que o deixam com o
grau máximo de condensação para sugerir a rapidez da ação de arrancar o olho de
Ermesinda. O verbo entrar, aliado ao pleonasmo “entrei dedo dentro”, parece
aprofundar o gesto na órbita ocular. Em vez de dizer: Enfiei o dedo no olho de
Ermesinda e o arranquei, que teria expressividade zero, o narrador prefere dizer: “entrei
dedo dentro de ermesinda olho arrancado”. Todos esses recursos poéticos amplificam a
expressividade dessa pequena grande frase que diz tanto apenas com sete palavras.
Encontramos no excerto: repetição da conjunção “e” que marca a sucessão de
violência e a impressão de que ela não terá fim: “entrei em casa e, noite coberta, escuro
e silencioso”; “e a este deito-o à terra”,“e cubro-o para ser comido”,“acordarás ainda e
ainda”, “quando eu for e voltar”,“e ela pôs mão e gritos no olho arrancado e deitou-se
em desmaio para o chão”; além do conectivo, há repetição de palavras e grupos de
palavras: “ficarás a ver por sorte ainda”, “ficarás a ver melhor do que te devia
deixar”; “mas deixo-te o outro para vez que me pareça ou por piedade, deixo-to por
piedade; “acordarás ainda e ainda também”.
87
Destacamos, também,
o comportamento paradoxal de Baltazar se
compararmos: “por piedade, deixo-to por piedade” e “deixo-te o outro para vez que me
pareça.” Ou seja, não há qualquer “piedade”, mas intimidação, ameaça.
Deve ser destacada a profusão de sons linguodentais [d]: devido/ devia/
deixar/deixo-te/ deixo-to/deito-o/ dormires/ deitou-se/ desmaio. Em [Ermesinda]
“deitou-se em desmaio para o chão.”
A aliteração descreve o movimento da
personagem em cair desmaiada.
Duas belíssimas figuras marcam esta agressão: “escuro e silencioso o
momento” em “entrei em casa e, noite coberta, escuro e silencioso o momento”, a outra
é “e ela pôs mão e gritos no olho arrancado.” A união de dois substantivos, um
concreto, “mão”, e outro abstrato, “gritos”, é inesperada: pôr mão no olho arrancado e
pôr gritos no olho arrancado quebram o paralelismo semântico e alcança grande
expressividade na repercussão do desespero de Ermesinda ao ter o olho arrancado pelo
marido. Naquele, o narrador reveste de poeticidade a cena ao atribuir ao “momento” os
adjetivos “escuro” e “silencioso”; na verdade, ele descreve o tempo em que o ciúme e a
paixão se materializarão na violência. O momento que antecede a crueldade da ação
contra a indefesa menina. A sinestesia, mistura dos sentidos visuais e auditivos,
embeleza a narração e valoriza o significado. Além de arrancar-lhe um olho, Baltazar
ameaça dar o mesmo destino ao que ficou: “deixo-te o outro para vez que me pareça”. A
elipse ressalta a violência do ato, o assédio psicológico de que a personagem é vítima, o
marido deixa-lhe um olho só, mas que lhe poderá ser tirado a qualquer momento
dependendo da avaliação a que está sempre sendo submetida a esposa.
Após esta agressão, Baltazar viaja, quando volta, Ermesinda o espera carinhosa e
ele constata que “a minha ermesinda já tinha pé torto virado para dentro, braço que não
baixava com mão apontada para céu, outro braço flácido e sem mão a partir de pulso,
mais olho esquerdo nenhum, só direito, era como estava, e só bela me parecia. (p.150).
Quinta e última agressão.
Ocorre porque dona Catarina, esposa de dom Afonso, aconselha Baltazar a
matar Ermesinda. A grande senhora acusa a esposa de Baltazar de traí-lo com muitos
homens da aldeia. Baltazar sabe que a senhora calunia Ermesinda, mas o encontro com
dona Catarina reacende nele a lembrança da suposta traição da personagem com Dom
88
Afonso. As calúnias de Dona Catarina causam mais uma cruel violência contra
Ermesinda.
foi num instante que nos vimos em casa e, noite fechada,
iluminássemos a cara de ermesinda só de medo. abriu mais os olhos
que olhos tinha, e ficou como coisa burra a arrepender-se de ter
nascido, maldizendo suas sortes com espasmos de aflição que a
punham de inspiração e expiração acelerada, a faltar-lhe tudo de
discernimento e a tremer mais, muito mais, do que a chama da vela
que eu acendera. nem me disse nada, e eu perguntei por nosso pai.
que coisa lhe fizeste, grande puta. e ela encorrilhou-se muito e nem
disse nada outra vez. e eu perguntei, que amizade te tem dona
catarina para lhe ofereceres assim a morte de todos nós os três. e ela
nem disse nada outra vez. nem eu lhe disse mais. tão simples era
minha conclusão, dei-lhe de mão fechada tanta pancada na cabeça
que lhe saltaram pedaços, até tombar chão batido como pedra a
escorrer sangue, desfeita em desonra e mais nada. (p. 178. Grifos
nossos)
Como vimos destacando nos comentário dos excertos, as agressões são
hiperbólicas, começam com palavras e expressões e espraiam-se para todo o discurso,
conforme os exemplos do excerto acima, do qual destacamos:
[Ermesinda] “a tremer mais, muito mais, do que a chama da vela
que eu acendera. (grifos nossos)
dei-lhe de mão fechada tanta pancada na cabeça que lhe saltaram
pedaços.” (grifos nossos)
A repetição do advérbio de intensidade mais (5 vezes) e de conjunções
presentes no excerto, nem (4 vezes), que (8 vezes) e (10 vezes), descrevem o ritmo e
intensificação da violência. A aliteração do [m] sugere o tremor: “tremer mais, muito
mais”. Destacamos a frase hiperbólica que sugere o terror de Ermesinda: “abriu mais os
olhos que olhos tinha”. (Grifos nossos)
Destacamos do excerto a construção abaixo que assume o hiperbólico de
forma inusual:
foi num instante que nos vimos em casa e, noite fechada,
iluminássemos a cara de ermesinda só de medo.
Para dizer do sentimento de medo que tomou Ermesinda quando chegaram a
casa, a imagem usada foi da noite fechada. Embora escuro, com a luz da vela, a cara
dela clareou e foi notada pelo intenso pavor que irradiava.
89
A plasticidade da cena não pode deixar de ser ressaltada. Assemelha-se a uma
pintura: o narrador descreve o ambiente que mostra fundo escuro (“noite fechada”),
iluminado apenas no foco do interesse: o rosto de Ermesinda. A chama da vela ilumina
apenas o rosto, que desvela todo o desespero, o terror.
A certeza da violência iminente provoca uma transfiguração em Ermesinda: nos
olhos, no corpo, na respiração. O horror personificado: “abriu mais os olhos que olhos
tinha”, “espasmos de aflição que a punham de inspiração e expiração acelerada” e a
tremedeira que se apossou dela era “mais, muito mais, do que a chama da vela que eu
acendera.”
Conforme visto, Ermesinda sofre cinco violentas agressões39 físicas ao longo da
narrativa, além das agressões morais, xingamentos, ameaças, amedrontamentos e
assédio psicológico, por parte de seu marido, Baltazar. As agressões imprimem o
andamento da narrativa. Nas suspensões das visitas a Dom Afonso, a vida do casal
protagonista era sem violência, a convivência era amorosa, um ritmo mais lento,
atenuado caracteriza a narrativa. No entanto, imprime-se um ritmo acelerado nas
retomadas das visitas, com recrudescimento das agressões.
Violência e amor fazem parte da vida do casal. A mesma mão que afaga entorta
os braços e pernas da amada, tira-lhe o olho e esbofeteia. A mesma boca que confessa a
paixão é capaz de denegrir: “estás de puta todos os dias, terei de fazer alguma coisa por
ti uma hora destas, coisa que te ponha buraco fora de badalo alheio ou, quem sabe,
badalo nenhum” (p. 106, grifos nossos).
Por isso, destacamos a antítese e suas variações como representativas do estado
patêmico40 do atormentado protagonista. Parece-nos que a causa que origina ou
fundamenta as violentas agressões em Ermesinda tem um texto como matriz. Há um
momento de grande reflexão do protagonista no qual ele expõe de forma lancinante a
sua dor de marido traído. Emerge da sua consciência tudo que vem ocorrendo desde que
conhecera Ermesinda. A reflexão importantíssima, fundamental mesmo para que se
entenda o drama de Baltazar, está articulada em mais um primor de construção
linguístico literária. Eis o monólogo interior, longo, mas necessário.
eu rondava-a aos pertos, caminhos seguidos muito próximo sem que
me visse, mas assim frustrado por se passar tudo tão dentro da sala
39
Consideramos que Baltazar praticou cinco agressões. Os estupros finais tiveram por agentes
Aldegundes e Dagoberto. Nestes houve omissão de Baltazar.
40
O patêmico aponta para o apaixonamento do sujeito, fazendo-o ir em busca daquilo que lhe falta e que
vai lhe complementar como sujeito euforicamente realizado.
90
fechada da casa grande, dom afonso prevenido a encerrar tudo e todos
à volta deles. eu rondava-a e imaginava-lhe o pé torto a entortar o
outro por simpatia, a fazê-la como pata de andar aberto para nadar nas
águas de um lago. havia de lho entortar e arrancar se lhe descobrisse
uma prova. puta, calada de segredos fundos, satisfeita com ser
refeição de um velho tão feio. ela arreada de escadas na volta, posta
de pés na erva em direcção aos queijos, sem levantar cabeça ou
denunciar que procurava algo ou alguém em volta, nem cerca nem na
paisagem, seguia sem ver senão os pés, como eu a sabia de sempre na
rua, discreta e segura como recatada mulher, pura. mas era pelo de
onde vinha, impossível que não para traições, que lhe cortava o
destino a vida tão cedo, a cada momento proposta para morrer. pois
que morresse. se eu não a amasse, se pudesse lavar o nome de meu pai
sem saudade, de vez por todas a fazia desaparecer víbora para dentro
da terra. (p. 64. Grifos coloridos nossos).
Reiteramos que consideramos e denominamos o excerto acima como textomatriz, configurador do desnorteamento de Baltazar e das agressões impostas à
Ermesinda. Os elementos constantes dele já adiantam associações sugestivas do que
ocorreu e ocorrerá.
A proposta de Dom Afonso representou um revés na vida de Baltazar, já
dissemos. O estado passional do narrador protagonista retratado no excerto acima revela
a intensidade do vínculo afetivo que o prende à Ermesinda. Seu intenso ciúme vem por
imagens:
imaginava-lhe o pé torto a entortar o outro por simpatia, a fazê-la
como pata de andar aberto para nadar nas águas de um lago.
(grifos nossos).
Vem pelo medo de que a amada prefira o rival:
satisfeita com ser refeição de um velho tão feio. (grifo nosso).
Vem com a sensação de que Dom Afonso havia “blindado” Ermesinda:
frustrado por se passar tudo tão dentro da sala fechada da casa
grande, dom afonso prevenido a encerrar tudo e todos à volta deles.
(grifos nossos)
Como Baltazar não tinha acesso ao local do encontro, pois além de ser na casa
grande, espaço completamente vedado a ele,
ainda se dava em uma sala
hermeticamente fechada da casa grande, “tão dentro da sala fechada da casa grande”, o
espaço tornou-se inacessível. O emprego da vogal [a] tônica em “sala”, “fechada”,
“casa”, “grande” imprime um belo ritmo à frase e a destaca. O local é valorizado pelas
figuras de palavra. Local misterioso que pode guardar a traição. “Tão dentro” que a
prova por que ele busca torna-se impossível de conseguir. Por isso, a Baltazar só
91
restava imaginar, e ele imaginava tão fertilmente que até o pé entortado por ele servia de
fetiche para o suposto amante:
imaginava-lhe o pé torto a entortar o outro por simpatia, a fazê-la
como pata de andar aberto para nadar nas águas de um lago. (p. 64).
No excerto que consideramos matriz, a linguagem explode a intensidade do
revés por meio:
1- das transgressões: “aos pertos”, com variação de número. / “caminhos seguidos
muito próximo”, sem concordar com o substantivo a que se refere/ “satisfeita
com ser refeição”, sem obediência à regência nominal;
2- das repetições: “sem que me visse”/”sem levantar cabeça”/”seguia sem ver
senão os pés”/”sem saudade”; “nem cerca”/ “nem na paisagem”; “tão
dentro”/”tão feio”/”tão cedo”;
3- das ameaças: “havia de lho entortar [o outro pé] e arrancar se lhe descobrisse
uma prova”.
4- do oxímoro: “puta” e “pura”, há sugestão de mudança de comportamento de
Ermesinda quando dentro ou fora da casa grande.
5- da reiteração de movimentos circulares sugeridos pela repetição dos vocábulos
“rondava-a” “rondava”, à volta, “na volta”, “em volta”. “eu rondava-a aos
pertos”. Digna de nota, a imagem sugerida por esse movimento circular.
Baltazar anda em círculo, pode representar que são em vão as tentativas por uma
prova. Irão dar em nada porque era impossível: “por se passar tudo tão dentro da
sala fechada da casa grande”. Registramos a potencialização do significado pelos
fonemas vocálicos [i]: caminho seguido muito próximo; assonância do [a]: “a
fazê-la como pata de andar aberto para nadar nas águas de um lago”.
6- nas rimas que intensificam o significado : puta ... rua, discreta e segura como
recatada mulher, pura. Além da força das figuras de pensamento (puta/pura), as
figuras de palavras, responsáveis pela matéria sonora, dão grande voltagem de
intensidade aos termos. Fonema [u] e rima toante.
7- “pelo de onde vinha”: transgressão da construção, em vez de “por onde vinha”.
92
8- na inversão da frase: “que lhe cortava o destino a vida tão cedo, a cada momento
proposta para morrer”. A inversão nesse trecho é significativa porque, ao
quebrar a ordem “direta”, o narrador revela seu caos interior, pela incapacidade
de formular a oração com clareza. A ordem direta seria: o destino lhe cortava a
vida tão cedo porque a cada momento estava proposta para morrer. Mas a oração
perderia toda pujança.
Conhecedor do caráter de Ermesinda, Baltazar a reconhece como honesta. Não é a
outra conclusão que o texto remete com a expressão “eu a sabia”. Ainda solteiro ele a
segue muitas vezes e testemunha sua discrição e recato. Quando no excerto matriz, ele
faz a reflexão “como eu a sabia de sempre na rua”, (grifos nossos), Baltazar faz alusão
ao tempo de solteiro quando vigiava encantado os passos da amada, sem ser notado por
ela.
A solução a que o protagonista chega é matar Ermesinda: “pois que morresse”.
Mas refuta o ato extremo por meio de duas orações subordinadas adverbiais
condicionais: “se eu não a amasse, se pudesse lavar o nome de meu pai sem saudade”.
Sempre trabalhados os significantes, aqui há repetição do fonema [s] que potencializa
o conteúdo e o emprego da palavra “saudade”, que também tem [s], mas além do
fonema, consegue agregar
um grande valor expressivo. A acepção contida no
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa ( 2009 ) para saudade é: “sentimento mais
ou menos melancólico de incompletude”. Assim, Baltazar não consegue matar
Ermesinda não só porque a ama, mas, sobretudo, não estaria completo se ela lhe
faltasse.
O final da profunda reflexão “se eu não a amasse, se pudesse lavar o nome de
meu pai [...] de vez por todas a fazia desaparecer víbora para dentro da terra.” A forma
“fazia” traz uma transgressão, a correlação de tempos verbais prescreve o emprego do
futuro do pretérito, antigo condicional41. Neste sentido o tempo verbal empregado
deveria ser “faria”. O registro oral, conforme já tivemos oportunidade de comentar, está
muito presente na narrativa, ao lado do registro culto.
Por fim, “víbora” pode remeter à recorrente imagem no romance de associar à
41
No caso, os verbos “amar” e “poder” estão no pretérito imperfeito do subjuntivo. Sabemos que o
subjuntivo expressa dúvida, incerteza, possibilidade que não temos certeza se ocorrerá, eventualidade.
Assim, o tempo do verbo “fazer” deve estar, no futuro do pretérito (faria), um tempo que expressa, dentre
outras ideias, uma afirmação condicionada (que depende de algo), quando esta se refere a fatos que não se
realizaram e que, provavelmente, não se realizarão.
93
mulher a responsabilidade pela queda. Aparece na obra: “ou tivessem sido envenenadas
por cobra má”. (p. 17), “as mulheres são frutos podres, como maçãs podres, raios hãode partir eternamente a eva por ter sido mal lavada nas intenções.” (p. 52).
O sentido do texto-matriz indica a indissolubilidade do conflito: Baltazar não
pode provar a traição, não suporta a ideia de dividir Ermesinda, tampouco consegue se
separar da “traidora”. Ele reflete: “era como me enlouquecia”: entre matar/não matar;
separar/não se separar; amar/odiar; aceitar/não aceitar; viver/morrer.
Neste ponto situa-se a figura mais representativa de como Baltazar passa a ver
Ermesinda. No momento em que aprofunda sua reflexão, o protagonista une termos
semanticamente absolutamente incompatíveis na mesma pessoa: Ermesinda é puta e
pura. A figura que conjuga contrários é o oxímoro. Fundamento das agressões que
pouco a pouco levam sua esposa à morte. Baltazar agride violentamente a “puta” e
reafirma sempre seu amor pela “pura”.
As agressões violentas e apaixonadas espelham o auge do conflito no qual
Baltazar não consegue decidir se mata ou não Ermesinda. E, também, desvela o modo
de narrar de Valter Hugo Mãe que combina vários timbres entre o popular e o clássico,
entre o primitivo e o moderno e, principalmente, o descompasso entre o físico e o
metafísico em uma linguagem também diluída entre prosa e verso42, conforme
demonstrado.
Em E1 “encontro-apresentação”, consideramos a ambiguidade como motivo
central, definidora da apresentação de Ermesinda a Dom Afonso. Neste E2, o qual
denominamos “as agressões apaixonadas”, a “unidade viva do discurso” (Reboul, 1998,
p. 158 ) é a hipérbole irônica, além da “plumagem” estar sempre presente motivando os
significados.
O oximoro “puta/pura” pode ser considerado o desencadeador das agressões,
porque o protagonista se desestabiliza ao não poder ter certeza da fidelidade da esposa.
Desde a ordem de Dom Afonso até o final, Baltazar só tem certeza da dúvida, para não
sairmos do campo da “mais estranha das figuras”, conforme Reboul denomina o
oxímoro. (Reboul, 1998, p. 125)
O texto em análise, como sabemos, reporta-se à paixão do ciúme. O verbete,
segundo o Dictionnaire des Passions Littéraire (FONTANILLE, 2005), revela que esta
paixão é constituída por um triângulo que compreende o sujeito ciumento, o objeto do
42
Comunicação apresentada na UNESP/Assis, em 25 de outubro de 2011. Íntimo Espaço de Inexistência,
sobre o moderno romance português. Autor: Márcio Roberto Pereira.
94
ciúme e o sujeito rival. O semioticista francês, que assina a definição, apresenta uma
distinção entre o ciúme amoroso e o ciúme social; este não se manifesta no texto em
análise, porém, parece interessante observá-lo. Segundo o autor, o que distingue cada
um dos dois tipos de ciúme é o fato que, para o ciúme amoroso, o objeto amado (ou
objeto do ciúme) é o mais importante, na medida em que é movido por um desejo de
possessão (querer-ter), já para o ciúme social o foco de atenção é o sujeito rival,
manifesta-se nele o desejo de emulação (querer-ser).
De fato, Baltazar ama Ermesinda como propriedade dele. O casamento trouxe o
“direito de propriedade”, para lembrar o imaginário jurídico. O “querer-ter”, a presença
do traço da posse está marcada no uso do pronome possessivo na interpelação de sua
esposa: “minha ermesinda”. Antes do nome de Ermesinda é aposto, invariavelmente,
“minha”, conforme dezenas de exemplos que coletamos a seguir. Vale ressaltar que a
referida marca é passada do pai, Sr. Pedro, diretamente a Baltazar. Com efeito, quando
o Sr. Pedro concede a mão de Ermesinda a Baltazar, ele diz ao pretendente: “será
marido da minha ermesinda e fará os meus netos” (p. 39). O enlace matrimonial
transmitiu ao marido a possessão. Este lembra que é o dono, ao repetir mais de setenta
vezes43 no romance “minha ermesinda”.
43
era sem dúvida a minha ermesinda, a minha doce mulher. (p. 54); reparar nos seus males e ajudar a
minha ermesinda a melhorar (p. 57); quero a minha ermesinda, só a minha ermesinda. (p. 59);haveria
a minha ermesinda de lá voltar para que ele a cuidasse de atenções (p. 62);é que o amor me cega e a
beleza da minha ermesinda é sem semelhança (p. 62);a minha ermesinda estava como filha dele (p.
62); a sala onde a minha ermesinda entrava (p. 63); a minha ermesinda haveria de se tornar filha de
dom afonso (p. 63); nada que garantisse a presença dos dois, a minha ermesinda e dom afonso (p. 73);e
eu perguntei-lhe, minha ermesinda, meu anjo, se me amasses de verdade (p. 79); a minha ermesinda,
pé torto, braço para o céu (p.87); a pôr-se na minha ermesinda sem sequer temer (p. 87); em gasto a
minha ermesinda chegar (p. 88); nessa altura, a minha ermesinda comida dia a dia pelo nosso senhor
(p. 94); era a minha ermesinda, escorreita no cumprimento das ordens (p. 96); dom afonso em cima da
minha ermesinda (p. 97);a minha ermesinda, impedida de visitas para todo o tempo que el-rei (p.
101);como estaria a minha ermesinda a fazê-lo (p. 117);e cocei a cabeça de lonjura tão grande da minha
ermesinda. (p. 133); assim estou pela minha ermesinda. é bela. a mais bela que há. (p. 135); a minha
ermesinda, puta de tanta vocação (p. 136); a minha ermesinda foi atenta de amores comigo (p. 143);
assim me encolhi no colo da minha ermesinda por uns instantes tão breves (p. 143); minha ermesinda
que me foi acordar com um beijo (p. 144); juntei-me ao seu silêncio de longe. vi a minha ermesinda. (p.
145); e a minha ermesinda acendeu a custo a sua mesma rotina (p. 145); até parecer gado. também era o
que diziam da minha ermesinda. (p. 147); a minha ermesinda já tinha pé torto, braço que não baixava
(p. 150); cara da minha ermesinda me dizia acabamento que estava no coração (p. 150); largue a minha
ermesinda de mão (p. 151); a minha ermesinda sem meus tratos (p. 153); sem a minha ermesinda
havia tanto tempo (p. 154); por ansiedade tomei a minha ermesinda em pressas (p. 156); só me dá
ganas de estar com a minha ermesinda (p. 157); a minha ermesinda replicou (p. 157); a minha
ermesinda cosia e remendava coisas (p. 158); nenhuma dúvida tinha eu de que fizera o mesmo à minha
ermesinda (p. 164); a minha ermesinda veio a nós os três (p. 169); a minha ermesinda falou (p. 170);
a minha ermesinda, atrás e mais atrás, apavorou-se muito (p. 172); a minha ermesinda só saída de
manha tão iniciada (p. 172); honra para devastar vez por todas a minha ermesinda (p. 172); olhei para o
rosto da minha ermesinda (p. 173); administrar com engenho cristão a educação da minha ermesinda
95
disse à minha ermesinda que se estendesse nua na cama. (p. 43. Grifo
nosso)
era sem dúvida a minha ermesinda, a minha doce mulher. (p. 54.
Grifo nosso)
Depois do casamento do jovem casal, e à medida que a narrativa avança, com o
desnorteamento de Baltazar confessado: “e era como me enlouquecia, nada saber” (p.
46) o leitor percebe, com certa surpresa, que aquele jovem rapaz puro e apaixonado do
início da narrativa é tão moldado pelo ambiente que o cerca quanto todas as demais
personagens e que o pai constitui a sua principal referência. Assim o afeto por sua
mulher implica, naturalmente, uma ideia de posse44 – posse que ele julga ameaçada
pelo interesse do senhor das terras na beleza de Ermesinda.
O narrador parece nos ter convidado a conhecer a sua história de amor, quase
um conto de fadas, porque emerge em um ambiente inóspito a qualquer manifestação de
delicadeza. O fato que leva Baltazar a converter-se em um marido ciumento e agressivo
está situado no capítulo 6, na apresentação de Ermesinda a Dom Afonso. Em
Ermesinda, o protagonista encontra sua identidade e a possibilidade de ser sujeito de
seus atos. A descoberta do amor e a realização do casamento conferem esperança de
redenção e chance de ser feliz ao assumir o próprio destino. A inesperada ordem de
Dom Afonso inverte o que foi planejado por Baltazar e o abala.
Lembramos aqui uma frase muito pertinente de Eurípides:
Os deuses criam-nos surpresas: o inesperado não se realiza e ao
inesperado um deus abre a vida. (MORIN, 2000).
Este pensamento de Eurípides pode ser traduzido como nossa falta por não
incorporamos o inesperado, por não compreendermos a incerteza irremediável da
história humana. Esta é uma aventura desconhecida, devemos nos desembaraçar da
ilusão de predizer o destino. O futuro é aberto e impredizível. Tudo é incerto. O futuro
chama-se incerteza.
Baltazar não consegue incorporar o inesperado. Já seu amigo Teodolindo tem
outra visão da vida:
sobre as minhas atitudes em relação à ermesinda, mostrava-se muito
oposto, dizia, pois a mim só me interessava ter uma, se tivesse,
(p. 176); falada connosco na presença da minha ermesinda (p. 176); porque se haveria de amigar a
minha ermesinda de intentos nefastos (p. 177).
44
Posse do senhor feudal sobre os homens, dos homens sobre as mulheres.
96
agarrava-me a ela sem mais dor. dizia que queria uma mulher que o
acompanhasse e a companhia seria mágica para apagar qualquer dor.
(p. 67)
Abalado pelo inesperado, o mesmo narrador que encanta o leitor dizendo para
Ermesinda:
depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços
como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de
ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos
outros, casai comigo formosa, tanto quanto meus olhos algum dia
poderiam ver. ( p. 39, grifos nossos)
Mistura encantamento, posse e violência:
que coisa lhe fizeste, grande puta. e ela encorrilhou-se muito e nem
disse nada outra vez (p. 178, grifo nosso).
O protagonista sempre revelou discriminação pelas mulheres, transmitida pelos
ensinamentos do pai, numa corrente de preconceito passado de geração a geração, como
uma herança sombria. Até na torção do pé de Ermesinda, Baltazar copiou a agressão do
seu pai. Recordemos que, ao entortar o pé da esposa, Baltazar compara com o pé que
seu pai entortara de sua mãe45: “ficou-lhe o pé para dentro, ao invés do de minha mãe
que lhe tinha ficado para fora, ficou-lhe para dentro e até um pouco para trás”.
As palavras do pai de Baltazar ressoam na voz do filho em muitas ocasiões.
Esse fenômeno, que os teóricos chamam de delegação de vozes no discurso, nos
interessa para entender o perfil do nosso protagonista.
Para Discini (2005), as concepções teóricas sobre a categoria de pessoa
fazem parte da tradição dos estudos da língua e do discurso. A estudiosa elege As
astúcias da enunciação, de José Fiorin, (2010), como obra não só formalizadora, mas
também necessária para que se entenda a delegação de vozes no discurso. Recorremos à
obra citada para entender a sobreposição de vozes no discurso do narrador.
Sabemos, com Bakhtin46, que todo enunciado se constitui como resposta a
outros enunciados. Segundo o teórico russo, sob a palavra de um enunciador ressoam as
45
“era porque lhe entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo em que eu era muito novo, e
assim a ensinou de modos para sempre, tomada de respeitos por ele para o resto da vida, não quisesse que
ele lhe entortasse também o outro” (p. 47).
46
Citado por Discini in O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2004.
97
palavras de outrem. Assim, por existir o entrecruzamento inevitável de vozes do eu e do
outro em todo e qualquer discurso, a heterogeneidade o caracteriza e o constitui. Além e
diferentemente da característica constitutiva, existe a heterogeneidade intencional que
revela o outro no “fio do discurso”. A presença do outro é delimitada por marcas e,
nesse caso, temos o confronto entre duas enunciações: a citante e a citada.
A voz delegada pode ser reproduzida em discurso direto ou em discurso
indireto. Neste a enunciação citada mantém-se absorvida pela voz do narrador que a
reformula. A presença do outro citado fica subordinada à voz do narrador que cita.
Nesse caso, temos apenas uma enunciação, a do narrador, à qual fica subsumido o
discurso citado. Assim, só o narrador diz eu.
Para a reformulação indicada no começo, o narrador dilui marcas enunciativas
do discurso citado, tais como o uso de interrogação e de exclamação. Elos
subordinativos, que marcam o discurso indireto, são realizados, também inserem uma
enunciação em outra: conjunções subordinativas (que, se); advérbio (onde); pronome
interrogativo (por que) entre outros. Justapostas a verbos que denunciam um dizer, os
conhecidos verbos “dicendi”: (afirmou que... disse que ... revelou onde..., indagou por
que...), contribuem para mostrar e marcar a heterogeneidade discursiva. No trecho a
seguir podemos observar a delegação de voz.
meu pai dizia que, a ele [aldegundes], a sarga o confundia mais
na ideia de família, se nascera com ela ali e, já eu um irmão
muito mais velho, (p. 12. Grifos nossos )
No próximo excerto a voz delegada é reproduzida em discurso direto, nesta há
o estatuto da enunciação própria. A depreensão da presença do outro é mais
contundente:
dizia o meu pai, a voz das mulheres só sabe ignorâncias e erros,
cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam.
mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao
mundo mudas. só para entenderem o que fazer na preparação da
comida e debaixo de um homem e nada mais. (p. 190. Grifos
nossos)
98
Como vemos, o discurso direto mantém a presença de duas enunciações
separadas, a do narrador, Baltazar, e a do outro sujeito, aquele que, no enunciado,
parece que fala “com a própria boca”.
Na materialidade textual, essa heterogeneidade pode ser marcada por meio do
emprego de recursos gráficos como as aspas, o itálico, o travessão, que assim separam
na manifestação do texto a voz do narrador e a do interlocutor. Mas, como já sabemos,
no texto de Valter Hugo Mãe não há pontuação convencional, apenas utilização de
vírgula e ponto.
Excerto significativo, agora tomado para entender a maneira como Baltazar
trata a esposa, como reprodução absoluta dos ensinamentos do pai:
uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada,
explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa
com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros.
também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família,
que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos. (p.
17) (grifos nossos)
O narrador, ao delegar a voz ao pai, faz com que o discurso citado integre seu
próprio discurso, citante. No caso há uma concordância de vozes masculinas. Na obra
de Valter Hugo Mãe, o poder instituído do sexo masculino transforma-se em um círculo
interminável reproduzido socialmente47. Da mesma forma que o pai, Afonso, copia o
comportamento de Dom Afonso, intencionalmente homônimos, Baltazar imita o poder
do pai.
Conforme visto, os ensinamentos do pai são reafirmados pelo protagonista,
recurso criativo para revelar o espelhamento do modelo de Afonso Serapião em
Baltazar. E ao espelhar o pai, o protagonista converte-se em um marido violento e
incontrolável, guiado pelo ciúme. A mistura de paixão, ciúme, posse e poder resulta na
explosão dos maus tratos que culminará na trágica morte de Ermesinda. O romance não
é mais uma história clichê de amor e ciúme, mas a estranha maneira de dizer o
sentimento amoroso. É por meio da violência que o sentimento amoroso vai sendo
ressaltado e reafirmado. Por isso denominamos este segundo excerto de “agressões
apaixonadas”. Baltazar mesmo reconhecendo em Ermesinda a mulher da vida dele e
47
Comunicação apresentada na UCC - Universidade Caxias do Sul, em 25 de outubro de 2011. I
Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais, por Tiago Vinícius Cidade. A
condição da Mulher em O Remorso de Baltazar Serapião.
99
enaltecendo o caráter íntegro da esposa, reservada, discreta, amorosa, não consegue
vencer seus preconceitos, nem mudar a maneira de se relacionar com ela.
Para Baltazar, conforme lhe foi ensinado, cabe ao marido a “educação” da
esposa, a violência está inserida no ato de educar, portanto ele exerce o papel do
homem, sem qualquer sentimento de culpa ou remorso. Daí não enxerga a própria
brutalidade, e ao final de cada espancamento, ele “vê” uma beleza que não existe mais
na vítima, ou que ia se perdendo. Só quando, à sua frente, o irmão Aldegundes e o
amigo Dagoberto estupram Ermesinda e esta morre em decorrência de tantos maus
tratos, ele percebe a falha do seu espírito e é atravessado pelo remorso. Sentimento
também estranhamente sentido conforme se verá no próximo capítulo.
O amor, sentimento comumente ligado à ascese, ou como quer Barthes, na
epígrafe que abre este capítulo, à reconciliação com a vida, no romance não salva,
torna-se perdição, porque o protagonista é atravessado pelo sentimento inimigo do
amor, o ciúme.
Em seus Fragmentos de um discurso amoroso (1989), Barthes cita Freud:
“quando amo, torno-me muito exclusivista”. Barthes
atribui a esta declaração do
psiquiatra um parâmetro de “normalidade” (1989, p.47). Acontece que esse
exclusivismo do amante, que pode fazer parte de qualquer relação amorosa, foi
deslocado para uma época medieval, de completo atraso e miséria, em que as
desigualdades triunfam. Esses elementos mais as premonições sombrias do protagonista
sobre o próprio destino e a atração por forças que não consegue controlar são
constitutivos da tragédia em que redundará a narrativa.
Neste mesmo sentido Peter Szondi (2004), em seu estudo sobre a teoria do
trágico, afirma que o ciúme comporta em si mesmo a tragicidade como possibilidade.
Baltazar é arrebatado por esse devastador sentimento a partir do primeiro dia de
casamento. Segundo o teórico húngaro, o ciúme é amor que destrói querendo proteger.
São suas palavras:
Em oposição às outras paixões, o ciúme comporta em si mesmo a
tragicidade como possibilidade. Mesmo antes de colidir com outra
força, aquele que é arrebatado pelo ciúme é rotulado como herói
trágico. A essência do ciúme reside na dialética – que permite quase
de imediato a mudança para o cômico. O ciúme é amor que destrói
querendo proteger. (SZONDI, 2004, p. 103. Grifos nossos).
Há uma passagem do romance em que Baltazar, no afã de comprovar sua
100
suspeita, a traição de sua mulher, procura nas “partes da natureza” de Ermesinda algum
indício de que algo ali possa ter entrado. Nesta inusitada pesquisa, conta com a boa
claridade da luz do sol, como também de toques de seus próprios dedos que pudessem
evidenciar uma relação sexual entre Ermesinda e Dom Afonso.
mas nada da boca da ermesinda me confirmava, nem os olhos que lhe
deitava às partes da natureza, abertas em bom sol, me diziam o que ali
poderia ter entrado, e mesmo ao toque dos dedos nada parecia
diferenciar os seus dias das nossas noites, e era como me enlouquecia,
nada saber e saber apenas o que me queria confirmar dos bons intentos
de dom afonso. (p. 46)
A demonstração da paixão hiperbólica está configurada na criação de um
protagonista apaixonado, ciumento, violento, covarde e, consequentemente, trágico, que
chega ao paroxismo de uma averiguação sui generis, conforme acima.
Outra cena em que o trágico beira o cômico e, também, o lírico, envolve
Baltazar, Ermesinda, Aldegundes e Dagoberto. No trecho abaixo, no afã do momento
amoroso, os gemidos do casal se fazem ouvir e provoca comentários hilariantes de
Dagoberto e a explicação poética de Aldegundes:
tomei a minha ermesinda em pressas, o aldegundes e o dagoberto
atrás de uma pedra, e eu e ela sobre, à fúria toda, a ver se lhe
alcançava a alma por dentro da natureza toda e ela gemia de tantas
dores e prazer que nos fizemos ouvir em muito espaço e continuámos
sem detenção, incapazes de conter tanto desejo, e até o dagoberto se
levantou uma vez e, vendo estúpido o que via e era tão normal,
perguntou, que coisa passa, que coisa passa, repetindo à espera de
resposta, e o aldegundes puxou-o para baixo e chamou-lhe burro e
segurou-lhe nas orelhas para não ouvir, é assim mesmo, não passa
nada, é da vontade de recuperar o tempo perdido, e o dagoberto
perguntou, mais tempo esperei eu, mas não gritei assim, e o meu
irmão disse, é um tempo de coração afastado, junto com o corpo,
tem força de pôr homens e mulheres à semelhança das
tempestades, mas significa primaveras por dentro, e nenhum
inverno. (p. 156. Grifos nossos)
Ermesinda
e
Baltazar
mantêm
um
ativo
relacionamento
sexual.
Surpreendentemente, ela nunca se nega ao marido, mesmo com ferimentos no corpo
causados pelos espancamentos. A personagem trabalha para Dom Afonso, além de
realizar todos os afazeres domésticos da casa em que mora com o marido. Este apenas
considera que ela está “melhor importada com não menosprezar a minha autoridade”, e
que os serviços que lhe cabiam fazer “eram, sem dúvida, mais difíceis de executar [...],
101
pé torto e braço apontado para o ar, mas nada que lhe fosse impossível se resignada se
mantivesse, como estava, trazida ao pé de mim”, trabalhava de dia para o patrão e “cada
noite, aberta de todos os trapos, calava-se em espera o tempo que eu lhe levasse em
cima e era como adormecia, desarrumada de suores e satisfações.” (p. 74).
Dialética da dúvida
havia de lho entortar [o pé] e arrancar se lhe descobrisse uma prova.
(p. 64, grifo nosso)
Essa exigência penosa, “uma prova”, para Szondi, faz parte da dialética da
dúvida. Assim, a dúvida a respeito da fidelidade de Ermesinda, nascida do medo de sua
infidelidade, não quer a prova da fidelidade, mas da infidelidade: “nada saber e saber
apenas o que me queria confirmar dos bons intentos de dom afonso”(p. 46); “nada
parecia acusá-lo de comer a rapariga” (p. 46). Apenas a prova que lhe dá razão, e não
aquela que demonstra sua mentira, é capaz de acabar com a dúvida. Esse é seu único
desejo: uma prova da infidelidade: “minha puta, se te apanho um só sinal, um só sinal
que me garanta que o avias, abro-te meio a meio”, (p. 96-97. Grifos nossos).
Baltazar busca uma prova da infidelidade de Ermesinda com todos os que estão
à sua volta, principalmente com os que frequentam a casa grande, caso de:
Brunilde, sua irmã:
nem pedido à brunilde o serviço se fazia, mandada embora com
veemência, as portas fechavam-se para que nada visse ou ouvisse, e
dom afonso não saía de lá a arfar, causado de rosadas faces, abafado
de qualquer modo, trôpego, aflito de calores, odores, feridas tocadas,
cabeça pesada, nada. saía por seu pé igual como entrara e, sem análise
maior, nada parecia acusá-lo de comer a rapariga. (p. 46, grifos
nossos)
Teodolindo, seu melhor amigo:
até o teodolindo posto em cuidado nada me dizia, [...] não ouvia nada
para lá da porta fechada da grande sala. [...] não lhe parecia ser real
que alguém se tivesse de sexo para lá daquela porta, [...] nada se
ouvia porque nada devia estar a acontecer. (p. 47, grifos nossos)
102
Aldegundes, seu irmão:
diz-me que coisas vês. [...], hás-de poder ver dom afonso em cima
da minha ermesinda. não ouviste nada, aldegundes, diz-me se não
ouviste nada. e o aldegundes abanava com a cabeça e padecia comigo,
[...] não percebiam nada que acusasse a ermesinda de infidelidade, (p.
97, grifos nossos)
Esses segmentos do romance foram convocados para mostrar a angustiante e
alucinada procura por provas do protagonista, provas que avalizassem a traição de sua
mulher, ressaltamos que se misturam ao discurso de Baltazar o discurso de quem ele
interroga: Brunilde, Teodolindo, Aldegundes.
A seguir, a palavra da própria acusada, Ermesinda, inocentando-se, quando
interrogada pelo marido:
ela dizia que entrava para a sala de grande nobreza para uma
conversa muito rápida, em que o senhor lhe perguntava pelos
queijos, tão apropriada das tarefas logo de início, e depois lhe
desejava bom trabalho em simples continuação de instruções já
dadas, mais nada. era como perder tempo, parecia, não
acontecia mais nada. dizia-me a minha bela e calada mulher,
(p. 46. Grifos nossos)
No trecho acima, há o emprego do discurso indireto, no início e, mais tarde, do
discurso direto de Ermesinda: ela nega envolvimento com Dom Afonso. A ironia de
Baltazar está presente na frase “tão apropriada das tarefas logo de início”. Embora
tenha começado a frequentar Dom Afonso há pouco tempo, ela já se mostra “apropriada
das tarefas”, lembremos que Dom Afonso, na apresentação, fez questão de transmitir
diretamente a ela as tarefas que lhe competiam executar. Baltazar não perde
oportunidade de suspeitar e ironizar. No mesmo sentido a reiteração de “mais nada”,
primeiro de Ermesinda e depois do narrador “não acontecia mais nada” leva a
considerar a ironia, porque para ele acontecia tudo.
A voz de Baltazar em “dizia-me a minha bela e calada mulher” traz ambiguidade
ao adjetivo “calada”. O narrador refere-se à característica de Ermesinda de não falar
muito ou ao fato de, ao interrogá-la, ela calar-se ao que de fato se passa entre ela e Dom
Afonso?
Ainda prosseguindo com a fala de Ermesinda e sua argumentação de que não
acontecia nada nos encontros diários, um fato novo e importante se mostra.
103
[Ermesinda] a encolher os ombros e a jurar, não fazemos mais que
conversar, dom afonso sente amizade e interesse por coisas que
digo, porque vejo belezas nas coisas que lhe digo como melodias,
assim se entretém e fascina, coisas como, perguntei, assim como
palavras belas tiradas à mudez das coisas que vejo ou acontecem,
palavras preparadas na sensibilidade do coração, como palavras
dos sonhos mais bonitos, se se gasta em conversas de mulher, que
homem menos natural será ele. que me estás a dizer, mulher, que dom
afonso se entretém com fragilidades e ilusões femininas, que se basta
do que uma ignorante como tu lhe leva boca a boca. estarás louca de
acreditar que tal pretexto me convencesse. (p. 97. Grifos nossos)
O excerto acima constitui a peça de defesa de Ermesinda contra as acusações do
marido. Momento da narrativa em que a personagem mais se expressa. Ao “falar”
alimenta o enigma. De fato, Ermesinda contradiz um dos adjetivos mais repetidos por
Baltazar em relação a ela “calada’ mulher” (grifo nosso). O “não fazemos mais que
conversar”, alegado por Ermesinda, vai de encontro à imagem que o narrador possui
dela. O que se passa na sala da casa grande todos os dias de manhã, antes que Dona
Catarina acorde, entre Ermesinda
e Dom Afonso? Eles conversam? Como assim,
Ermesinda não é a “bela e calada mulher” de Baltazar? Nos encontros com Dom
Afonso, ela diz “não fazemos mais que conversar”.
Ermesinda revela a Baltazar que: “dom afonso sente interesse por coisas que
digo”; “vejo belezas nas coisas que lhe digo”; “palavras belas tiradas à mudez das
coisas que vejo ou acontecem”;“palavras preparadas na sensibilidade do coração”;
“como palavras dos sonhos mais bonitos”. (grifos nossos).
Mas, Baltazar dizia reiteradamdente: “a minha bela e calada mulher” (p. 46,
grifos nossos); “ermesinda [...] calada de mudez” (p.189, grifos nossos); ela ficou
perto, nós afastados só observando a sua imobilidade e escutando a sua mudez (p. 188,
grifos nossos).
A tensão entre fala e silêncio fica configurada. Relembremos o modelo de
comportamento que o pai passou ao filho é:
uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada,
explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa
com as crianças e calada para não estragar os filhos [...] (p. 17, grifos
nossos)
O argumento de Ermesinda é duramente rechaçado pelo marido: “estarás louca
de acreditar que tal pretexto me convencesse”.
104
A dona da “boca pisada de pedras”, metáfora da epígrafe do romance, pode ser
Ermesinda a quem a “educação”, administrada por Baltazar, determinou o silêncio e o
medo48.
Baltazar até o penúltimo capítulo do livro persegue a comprovação de sua
dúvida (dialética da dúvida do ciúme). O protagonista mantém-se no ardente anseio por
aquilo que mais teme até no último encontro do casal, quando Ermesinda se encontra na
iminência de morrer: “diz-me, ermesinda, diz-me que coisas te fazia dom afonso, como
te fazia e em que diferia, para te merecer todas as manhãs e segredo até de mim.” (p.
188).
Para o ciumento, qualquer detalhe serve como prova (Szondi, 2004), por isso, no
momento em que Brunilde lhe traz a notícia: se Dom Afonso ”se anda posto nela não vi,
agora que me deixou de baixinhos levantados, coçado de mim para rápidos alívios nos
cantos da casa, deixou, nada, não me procura, não me quer” (p. 96).
Para Baltazar, sua irmã lhe traz a confirmação do que queria. Tal informação
ganha um poder funesto sobre ele, um poder que se torna trágico porque Baltazar se
entrega ao que lhe diz Brunilde. A ideia de duvidar da informação da irmã não passa por
sua cabeça. Seu anseio é simplesmente se livrar da dúvida que o atormenta como uma
sede. Para ele, o fato de Brunilde dizer-lhe que Dom Afonso mantém relação sexual
com Ermesinda atribuindo o adultério ao fato de o chefe não a procurar mais, a ela,
Brunilde, serve como prova da infidelidade de Ermesinda. Baltazar sequer considera
dois fatos: Brunilde não viu ou Brunilde pode mentir por se sentir preterida.
Os encontros e a confirmação de Brunilde tornam-se fatores emblemáticos do
destino trágico de Ermesinda. Baltazar despreza os seus protestos e acredita somente no
adultério. Seu casamento se despedaça.
E “a vida inteira que podia ter sido e que não foi49”.
O que poderia ser considerado prova do amor,
porque Ermesinda “não podia
desfeitar dom afonso com paragem de ir vê-lo” (p. 146), converte-se em prova da sua
infidelidade. Assim, o método dialético irônico transforma a pessoa em seu oposto: a
esposa apaixonada aparece como adúltera, o apaixonado torna-se assassino de quem
ama. (Szondi).
Em seu discurso, ao delinear o perfil de Ermesinda, o narrador protagonista
revela o próprio perfil; assim ficam expostos o patriarcalismo e o preconceito que fazem
48
49
“mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas” (p. 190).
Manuel Bandeira, poema Pneumotórax. Acessível em: [email protected]. 27.09.2012.
105
parte da sua formação e do seu caráter. A narrativa evidencia em muitos momentos tais
características:
eu teria espírito para proteger a minha mulher e lhe pôr freios, ela
haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e
viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a
propriedade do corpo, invadirei a sua alma, pensava eu. (p. 23,
grifos nossos)
O dono de Ermesinda era o pai, este a passou a Baltazar. Um terceiro, Dom
Afonso interveio na posse e nos planos de Baltazar de “educar” Ermesinda. Tal como o
pai fizera antes com a mãe, Baltazar leva muito a sério administrar a educação de sua
mulher. “pois mulher minha apanha tanto quanto deve, até que se ensine de tudo o que
lhe digo”. (p. 110).
Da leitura do romance, verificamos muitas referências do narrador a esta
obrigação, atribuída ao marido. É fundamental entender o significado atribuído à
palavra, requisito para entender o remorso final. Em que consiste, afinal, essa educação?
As citações do “educar” são recorrentes na narrativa. Entre muitas, as seguintes:
eu recolhia-me aos animais, a sonhar com a minha noiva, arranjado
para a receber logo que pudesse, casado de igreja, autorizado para a
ter só minha e a educar à maneira das minhas fantasias, como devia
ser (p. 23. Grifo nosso)
só lhe importava desmembramento da minha mulher, da minha
mulher, como reiterei, a que me competia educar de valores
familiares para mãe de filhos que já não haveríamos de ter (p. 151.
Grifo nosso)
Depreendemos das falas de Baltazar que cabe ao marido administrar a educação
da esposa porque a mulher é considerada um ser inferior. A condição feminina
apresentada em o remorso de serapião chega a ser aviltante. A mulher carrega um
fardo não só físico, mas intelectual de submissão perante o sexo masculino. Os dois
sexos estão longe de partilhar o mundo em igualdade de condições. Sabemos que a ação
se passa durante o reinado de Dom Dinis, na Idade Média, o que traz para a
contemporaneidade o atraso de uma época e mostra que não está na época, mas no
homem o desvio. Há uma fala de Baltazar, em que o preconceito contra o feminino
aparece de uma forma absolutamente cáustica.
mais completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo
106
mudas, só para entenderem o que fazer na preparação da comida e
debaixo de um homem e nada mais. (p. 190. Grifos nossos)
A mulher é silenciada por uma sociedade falocêntrica, que atrela sua figura a de
Eva, a pecadora, responsável pela queda do homem no paraíso. Como anuncia o
narrador já na primeira frase do romance, “a voz das mulheres estava sob a terra, vinha
de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino” (p. 11). Assim, não é
de surpreender a maneira como Afonso, pai de Baltazar, trata a mulher:
com um empurrão que se escutava, entrava nela a acordá-la e, já
hábito, a ela a surpresa não lhe trazia som à boca nem contorção maior
[...] para um alívio rápido do meu pai” (p. 26, grifo nosso)
Existe uma relação arbitrária de total controle sobre o corpo feminino, em que a
educação por meio da punição extrema é naturalmente aceita pela própria mulher.
O ato sexual se caracteriza como uma relação de poder. O principal exemplo
acontece com Teresa Diaba. Servia, segundo o narrador, “como melhoria de uma vez
que tivéssemos de fazer com a mão” (p. 28).
Apesar de ser considerada “estropiada da cabeça, torta dos braços, feia, ela só
servia de mamas, pernas e buracos, calada e convicta, era como um animal” (p. 28),
Diaba, a prostituta da aldeia, era procurada pela maioria dos homens como meio de
aliviarem o prazer, pois “abria-se como lençóis estendidos e recebia um homem com
valentia sem queixa nem esmorecimento. era como gostava, total de fúria e vontade” (p.
27).
Em o remorso de baltazar serapião, o poder instituído do sexo masculino
transforma-se em um círculo interminável, reproduzido socialmente. Com o sonho de
contrair matrimônio com Ermesinda, o jovem acredita que, casando na igreja, está
“autorizado para a ter só minha e a educar à maneira das minhas fantasias, como devia
ser” (p. 22). A crença nesse poder é tamanha, que, segundo ele, “dedicaria meus dias a
enchê-los da minha imagem, para que viesse a sua condição de mulher apenas da minha
condição de homem” (p. 25). Condição que a sua mulher acaba por aceitar: “meu bom
marido, casei contigo em honra dos meus pais que te escolheram e, em cada instante
que te conheci, amei-te por graça sem condição” (p. 79).
Mas a educação que os homens impõem às mulheres ultrapassa o verbo: das
palavras, transforma-se em violência física. A mãe de Baltazar, quando acometida, não
se esclarece bem, talvez por alguma doença, a qual nem mesmo o curandeiro consegue
107
identificar, foi morta pelo marido, que a acusava de adultério, devido ao inchaço de sua
barriga:
e o meu pai decidiu tudo nesse momento, que, se o curandeiro já não a
salvaria, nem salvação merecia. [...] meu pai rebentou braço dentro o
ventre da minha mãe e arrancou mão própria o que alguém ali deixara.
[...] e, como se gritava e mais se fazia confusão, mais se apagava a
minha mãe, rápida e vazia a fechar olhos e corpo todo, (p. 75)
O exercício do poder, vinculado à religião, também está presente na narrativa. O
pai de Baltazar explica aos filhos que as mulheres possuíam um corpo belo, mas
condenado. O mundo das mulheres é:
torpe e falacioso, viam coisas e convenciam-se de estupidez por
opção, a suspirarem em segredos inconfessáveis, cheias de vícios de
sonho como delírios de gente acordada, como se bebessem de mais ou
tivessem sido envenenadas por cobra má. (p. 17)
O pensamento inquisidor está representado na obra de Valter Hugo Mãe por
meio da personagem Gertrudes, conhecida por mulher queimada. Ela era:
velha e matreira, enfiada em casa, sozinha de marido, postos em terra
cedo demais, consumidos por pó que lhes cozinhava para os abater.
era mulher de tanto delírio interior como por fora tinha o ar frio das
víboras, olhos fixos a queimar almas, e nada do que dizia queria dizer
o que se ouvia, impregnando tudo e todos de mau-olhado para os
definhar em seu favor (p. 74).
Na verdade, Gertrudes se diferia das outras mulheres do romance por negar-se à
submissão imposta pelo casamento, consequentemente, pelo homem:
porque me deram todos dores de mau grado, coisa de me terem
desrespeito e ódio, postos em mim como bichos a toda a hora [...]
recuso ser de homem, nada quero que homem algum me toque (p.
109-110).
Como punição a seu comportamento feminista “avant la lettre”, ela é incendiada
em praça pública, o que denota ainda mais o poder patriarcal e religioso instituído no
universo da narrativa:
mulher em fogo corria pela praça, se dizia, estava como tocha a ganir
em círculos, e tentada a fugir lhe fechavam os caminhos [...] nós
108
vimos uma mulher em fogo correr campo abaixo em direção à
paisagem, e arrepiámos (p. 77).
A chamada “mulher queimada” encontra um destino diferente ao da mãe de
Baltazar, ressaltamos que no mesmo dia em que a mãe de Baltazar é assassinada pelo
marido, Gertrudes é queimada pelos habitantes. No entanto, Gertrudes sobrevive, com
danos no corpo, daí o apelido. A “mulher queimada” será responsável por uma maldição
que se abate sobre os dois filhos do casal Serapião, que levará ambos à morte.
Em o remorso de baltazar serapião, o protagonista nutre por sua esposa um
forte sentimento amoroso, mas em uma mentalidade oprimida por perversos poderes,
Baltazar ama Ermesinda, mas a destrói, chegando a desfigurá-la. Com os limites da
narração em primeira pessoa, Baltazar não pôde ter certeza da traição.
Mesmo
castigada, mutilada, Ermesinda permanece silenciada e aceita a dominação do marido, o
poder de Baltazar é exercido de acordo com a cumplicidade dela.
meu bom marido, casei contigo em honra dos meus pais que te
escolheram e, em cada instante que te conheci, amei-te por graça sem
condição, não me batas, sou tua até morrer (p. 79).
A declaração acima mostra a combinação de arbítrio, violência e sujeição.
Ambientar a narrativa na Idade Média explicita a condição feminina na
contemporaneidade50, longe de alcançar a igualdade pretendida.
No romance, podemos considerar a figura de Gertrudes, a mulher queimada,
como um signo de libertação das mulheres. A maldição, que a personagem lançou aos
homens da família Serapião, pode ser metafórica e representar a vingança da mulher
por toda a opressão que sofreu no decorrer dos tempos. Por outro lado, ao amaldiçoar,
Gertrudes tem poder conferido às bruxas, estigma que a marginaliza.
Assim, o fim da educação a que frequentemente alude Baltazar configura-se
pela total submissão:
eu teria espírito para proteger a minha mulher e lhe pôr freios, ela
haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e
viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a
propriedade do corpo, invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa
de outro mundo a possuí-la de ideias para que nunca se desvie de
mim por vontade ou instinto, amando-me de completo sem
50
O escritor Valter Hugo Mãe declarou em entrevista ao jornal O Povo que advogou durante alguns anos
e teve oportunidade de defender mulheres vítimas de violências ainda piores do que as personagens
retratadas no seu romance.
109
hesitações nem repugnâncias. e assim me servirá vida toda, feliz e
convencida da verdade. (pág. 23. Grifos nossos)
A partir desta reflexão, consideramos “educar”, tantas vezes repetido, um
neologismo semântico na narrativa, porque o narrador cria o significado negativo para o
significante, um meio de opressão e violência do marido com o objetivo de
impossibilitar que a mulher escape do seu domínio. O “educador” impõe a submissão e
o autoreconhecimento do educando como um ser inferior. Enfim, o que ele almeja é
tornar-se senhor da vida e da morte da educanda.
Para terminar a reflexão, há uma referência que soa cômica. Dom Afonso
ridiculariza Baltazar quando este iria argumentar mais uma vez que se sente responsável
pela educação de Ermesinda. No meio da frase-argumento, Dom Afonso o interrompe.
A frase termina bruscamente no “que”. Baltazar não pode completá-la.
vai-te com sorte por tanto viveres, coiso burro, dom afonso, se
ermesinda se perde em puta a mim manda-me deus que. nada
quero saber que te diz deus no que pensas, nada, vai-te embora daqui e
não te desvies de exactidão nenhuma, resto disto só mais nada,
percebes, rua daqui, cabrão, (p. 107. Grifos nossos)
O trecho resulta cômico porque observamos a sobreposição de vozes. A palavra
de Baltazar é cassada como se já soasse insuportável, por repetitiva, uma choradeira
sem fim: “rua daqui, cabrão”.
O romance de Valter Hugo Mãe desenvolve a estranha maneira de afirmar um
sentimento, o amor, tão caro a todos e à literatura, em especial, por meio de uma ação
que parece destoar do sentimento: a violência. Parece que não há tema que não possa ser
revisitado desde que haja um novo jeito de tratá-lo.
As agressões e estupros sofridos por Ermesinda interessam na medida em que
remetem a um fato importante na ficção, a verdade. Diante do acontecido com a
personagem, o leitor sofre51; não há diferença na emoção que sentimos diante de um
acontecimento, seja ele real ou ficcional. Mesmo sabendo que o sofrimento de
Ermesinda não é efetivamente real, pois se trata de uma narrativa literária, sofremos e
compartilhamos a dor que ela sente, porque nossa interpretação está fundada sobre um
“trato”. Ao adentrarmos o universo discursivo estamos munidos de um crer previamente
51
Valter Hugo, quando do lançamento do seu último romance no Brasil (São Paulo, 5 de maio de 2012)
em entrevista, conta que recebeu cartas e retornos de leitores queixosos. Alguns lhe confessaram que
abandonaram a leitura face ao grande sofrimento de Ermesinda.
110
determinado. Trata-se de um simulacro que indica a relação que passará a haver entre
leitor / narrador, em que “são decididos os valores dos objetos a serem comunicados ou
trocados. (BARROS, 2001, p. 93).
Há em E2, por conta de tanto sofrimento e violência, uma exacerbação emotiva,
o sentir parece convocado de tal maneira que faz com que o leitor deixe seu confortável
lugar e adentre o enunciado e se comova. Oliveira (1995, p. 235) destaca a aliança entre
narrador e leitor na experiência estésica.
A aliança mesmo dos dois actantes, um no texto e o outro fora ou, ao
menos, à margem, é que proporciona ao segundo ser levado pelo
primeiro à significação e nessa embrear-se a tal ponto na rede de
transformações que, como seu participante, sente-a inteiramente. Essa
aliança é alvo máximo de uma escritura estética que, antes de tudo o
mais, objetiva (re-)acordar o maior número possível de sujeitos
através da estetização e da vivência estésica52 do mundo.
Necessário retomar aqui as funções da linguagem53. Enquanto no “encontroapresentação”, destacamos a importância da função fática, configurada na expressão de
Dom Afonso, “ouviste, rapaz”, na análise de E2, parece-nos que o texto privilegia a
função emotiva, graças não só aos procedimentos de primeira pessoa “dei-lhe de mão
fechada tanta pancada na cabeça”, como também à apresentação de sentimentos e
emoções que produzem os efeitos de subjetividade, de emotividade ou de aproximação
do sujeito, próprio da função emotiva.
E2 suscita paixão. Ou conforme explica Aristóteles “obtém-se a persuasão nos
ouvintes, quando o discurso os leva a sentir paixão, [...] é mesmo este o único fim a que
visam os esforços” (s.d., p. 33).
Vale lembrar que os textos não têm apenas uma função, mas várias ou mesmo
todas, hierarquizadas, ou seja, há em cada texto uma função predominante (FIORIN:
2011, p. 39). Assim, não podemos deixar de ressaltar a função poética como função
predominante da obra de Valter Hugo Mãe, contudo, os excertos guardam a presença
significativa da função fática, no primeiro, e emotiva, no segundo.
Explica Diana Luz Pessoa de Barros (2010, p. 39), citando Jakobson, que “a
52
A estese está ligada à estética, no sentido filosófico clássico em que o sujeito é portador de um conjunto
de sentidos pelos quais percebe o mundo que o cerca, seu estado de encantamento e êxtase diante do que
considera belo. Estese, portanto, designa a sensibilidade do sujeito observador, suas sensações diante da
obra de arte, seja esta de caráter musical, literário ou pictórico. (D'ÁVILA, 1998, p. 463)
53
Grande contribuição do linguista russo Roman Jakobson (2007).
111
função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação”. Em outra palavras, segundo a estudiosa, a função poética resulta de duas
rupturas, de duas subversões; a primeira, em relação ao plano da expressão, que, em
lugar de apenas expressar, “transparentemente”, o conteúdo, chama a atenção para a
sonoridade, ritmo, entoação; a segunda ruptura, em relação aos dois eixos de
organização
da
linguagem,
o
paradigmático
e
o
sintagmático,
definidos
respectivamente, como eixo das similaridades, em que se faz a seleção, e como eixo das
contiguidades, em que se opera a combinação, pois o texto com função poética vai
combinar, no sintagma, elementos similares, próprios do paradigmático.
Os efeitos de sentido são, portanto, de coisa extraordinária, de novidade, graças
à ruptura ou subversão da normalidade, o de estesia ou de perfeição, decorrente da
superposição dos dois eixos de função da linguagem e da aproximação entre expressão e
conteúdo. Entre tantos exemplos vistos no capítulo um, o fragmento a seguir é retomado
para ilustrar o que Barros dispôs sobre a função poética, de forma mais detida:
e medo, medo aterrador fosse ele rachar-me ao meio, apoderarse do meu desvalor e mandar que me terminassem. (p. 61.
Grifos coloridos nossos).
No trecho acima, dom Afonso manda Theodolindo chamar Baltazar para avisálo de que voltará a se encontrar com sua mulher, Ermesinda. O protagonista teme
encontrar-se com o chefe. A frase não só explicita o medo que Baltazar sente, mas por
força da repetição e aliteração do [m] reproduz o tremor que se apossa da personagem.
A reiteração da constritiva bilabial sonora [m] e da vogal anterior fechada [e], que varia
o tipo de sílaba e ordem, articula-se com o plano do conteúdo, contribuindo assim para a
significação global. Ao chamar a atenção para o plano da expressão e sua sonoridade,
produzem-se os efeitos de novidade, de estesia e de continuidade decorrentes,
sobretudo, da relação simbólica que se estabelece entre esses traços da expressão e o
conteúdo. Segundo Barros (2010, p. 40), “o mundo é refeito ou lido de outra forma,
graças às novas relações, não previamente codificadas, que se estabelecem entre
expressão e conteúdo”.
Sempre dentro da concepção de valorizar a expressão, as agressões descritas em
E2, de que Ermesinda é vítima, causam um efeito de sentido aterrorizante, investidos
que estão pela hipérbole irônica.
O enigma do romance, os encontros entre Ermesinda e Dom Afonso, pode
112
remeter a muitas leituras. Vejamos o fragmento abaixo e a possível leitura que ele pode
autorizar. Ermesinda se prepara para ir ao encontro de Dom Afonso, como sempre. Pela
primeira vez, Baltazar a vê no real estado em que ela se encontra: “arrancada de um
olho, parecia-lhe tudo definitivamente descomposto e feio”. (p. 146. Grifo nosso). O
sadismo em pensar no que faria com ela, na volta: “mais torta ficaria na volta, como
esfregava já eu as mãos”, contrasta com a seriedade de Ermesinda que, pela primeira
vez, dispõe sobre os encontros com Dom Afonso.
quando partiu, olhou-me e pediu perdão, nada sabia como me fazer
crer na sua pureza, e não podia desfeitar dom afonso com
paragem de ir vê-lo (p. 147. Grifos nossos)
A tensão de Ermesinda diante da pressão do marido e de Dom Afonso fica
exposta aqui. Sabemos que uma narrativa em primeira pessoa não garante ao discurso o
efeito de sentido de distanciamento e objetividade, pelo contrário, opera sobre o modo
da subjetividade. Põe em cena a percepção do protagonista, a sua reflexão e o seu
posicionamento sobre as pessoas, os acontecimentos e sobre a realidade circundante, os
quais acabam por criar a representação de um mundo muito próprio, particular. O leitor
percebe a narrativa pelo olhar de Baltazar. O enigma
de Ermesinda sempre
permanecerá.
Neste segundo capítulo, procuramos realizar a interpretação dos dados coletados
no capítulo um. Para isto, optamos por dividir a interpretação focalizando dois
momentos: o “encontro-apresentação”, momento importante porque desencadeia o
conflito, e “as agressões apaixonadas” das quais Ermesinda é vítima e que resultará em
sua morte. A escolha baseou-se na densidade da carga emocional dos trechos que se
configuram nos momentos centrais do romance.
Vimos como foi instaurada a ambiguidade no primeiro excerto, assim como as
figuras e função da linguagem que o compõem. Examinamos o discurso autoritário de
Dom Afonso e o modo pelo qual o narrador o criou. Destacamos os efeitos de sentido
evidenciados pelo espaço escolhido para a cena da apresentação, a casa grande,
ambiente que ressalta a inferioridade do casal protagonista junto à superioridade do
chefe. Apontamos o espaço da antítese, miséria vs riqueza, da exclusão, no qual o chefe
cresce ainda mais em poder, enquanto Ermesinda e Baltazar o esperam tremendo, ainda
mais inferiorizados. A casa grande também passa a ser o lugar que guarda o mistério.
Ermesinda tinha outro comportamento dentro da casa de Dom Afonso? No “encontro
113
apresentação”, os valores que estão na base de construção do discurso, além da riqueza
vs miséria, ressaltado acima, são: poder vs impotência, fidelidade vs infidelidade,
verdade vs mentira. Procuramos verificar que o sujeito, ao enunciar seu discurso,
estabelece, pela forma como seleciona, organiza e articula o conteúdo e a expressão do
texto, uma imagem de si mesmo que não é declarada, mas percebida, e de seu leitor.
No segundo excerto, “as agressões apaixonadas”, foram selecionadas as cinco
agressões, a totalidade das violências sofridas por Ermesinda, para configurar o auge do
conflito patêmico. Os efeitos de sentido das antíteses, oxímoros, hipérboles e da escrita
elíptica foram tratados. Com Fontanille, semioticista francês, foi pesquisado o verbete
“ciúme”, que faz parte do seu Dictionnaire des Passions Littéraire. O teórico húngaro
Szondi contribuiu com seu estudo sobre a dialética do ciúme, da obra Ensaio sobre o
Trágico (2004). Foram levantados os valores que estão na base das agressões – vida vs
morte, justiça vs injustiça, felicidade vs infelicidade, verdade vs falsidade; violência vs
doçura. Enfim, os excertos basearam-se na densidade da carga emocional que
sensibilizou não só enunciado, mas também, e principalmente, a maneira de o dizer.
O capítulo a seguir, número 3, tratará do trágico e da tragicidade, bem como de o
remorso dentro da visão de mundo de Valter Hugo Mãe.
114
Capítulo III
O trágico e os elementos da tragédia
esta foi exatamente a tragédia à qual fui
conduzido pela própria mão dos deuses.
Édipo
és uma voz de deus neste inferno [ ...]
não és como um irmão, porque não te
desejo família da nossa, és como um anjo
Baltazar Serapião
.
Nos capítulos anteriores, efetuamos um levantamento pormenorizado dos
recursos estilísticos que distinguem o discurso do romance. Por meio deles, vimos que a
linguagem potencializa o tema de que trata, e que há em toda a obra uma grande
evidência da preocupação constante de Valter Hugo Mãe com uma total integração entre
a forma e o conteúdo. De fato, nas passagens do romance temos oportunidade de
destacar os longos parágrafos, a inversão da ordem convencional dos vocábulos, as
construções condensadas ou elípticas, a pontuação não usual, a motivação do signo,
enfim verificamos a exploração das possibilidades latentes dentro do sistema da língua
para conferir à narrativa a expressividade própria de textos em que predomina a função
poética. No capítulo dois, são analisados dois excertos do romance e destacado o
princípio organizador de cada um deles, ou, como quer Reboul (1998), seu motivo
central. Ao primeiro excerto, denominamos “encontro-apresentação” e como princípio
organizador, são analisadas a ambiguidade e a ironia; ao segundo excerto, chamamos
“as agressões apaixonadas”, elegemos a hipérbole, antítese e oxímoro, como motivos
centrais54. Também foram examinadas as principais construções linguístico literárias
cuja motivação sonora se destaca no texto.
No presente capítulo, trataremos de uma questão central do romance, o seu
caráter trágico, mas, particularmente, de que forma a linguagem consegue materializá-
54
No capítulo anterior, ressaltamos a acepção em que Reboul emprega o termo: procedimento retórico
essencial a um texto, que permite qualificá-lo como irônico, hiperbólico, quase lógico (1998).
115
lo. Nesse sentido, investigaremos de perto a ironia55, especialmente a ironia trágica, e a
hipérbole, que, para nós, sobressaem-se na construção da tragicidade na obra.
Nas epígrafes com que abrimos o capítulo, colocamos as palavras de dois heróis
que parecem dialogar, apesar dos mais de 2000 anos que os separam. O grego ensina a
viver mantendo o respeito absoluto a uma característica fundamental da vida humana: o
trágico; o português parece reconhecer, na voz do seu “herói”, a força desse caráter
sobre a família Serapião, na declaração de amizade que faz ao amigo Teodolindo.
Ao afirmarmos que o romance apresenta o trágico como componente decisivo,
aproveitamos para distingui-lo da tragédia.
Quando se fala neste trabalho de o trágico, este termo não se refere
aos que escrevem ou representam tragédias, mas à categoria estética
ou ao princípio filosófico do trágico que encontram a sua expressão
mais pura na tragédia, embora possam manifestar-se também no
romance, na música, nas artes plásticas, às vezes até na comédia, para
não falar da tragicidade de situações da vida real. O conceito
ultrapassa de longe a sua concretização específica na tragédia.
( Rosenfeld, 2010, p. 14, grifos nossos)
Assim, referimo-nos aqui à perspectiva trágica da vida, que se baseia na
afirmação da experiência humana existente em sua grandiosidade e miséria. No
romance analisado descrevem-se determinados tipos de situação a que o homem está
sujeito que podem ser obra do acaso e do destino simultaneamente. Ambos assumem,
em o remorso de baltazar serapião, funções idênticas e cujo objetivo é o mesmo: a
aniquilação ou morte das personagens.
O desfecho da história se anuncia desde as primeiras linhas. Baltazar inunda a
narrativa de premonições sombrias sobre o próprio destino e o de sua família, e as
cumpre à maneira das personagens trágicas:
estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas ao
tamanho de bichos desumanos, tamanho de gado, aparentados de
nossa vaca, reunidos em família como pecadores de uma mesma
praga, maleita nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos
destituir lentamente de toda a pouca normalidade. (p. 11. Grifos
nossos)
55
Pavis observa que a descoberta da ironia no próprio cerne do conflito trágico é relativamente recente na
história da crítica literária, ela data da época romântica, da conscientização do autor dentro da obra e do
irredutível contraste entre a subjetividade do indivíduo e a objetividade do destino implacável e cego.
(Pavis: 1996, p. 216).
116
nós, os sargas, sentidos e furiosos com o destino. (p. 80. Grifo nosso)
não havia maior ensejo, nem uma esperança, ainda fosse vaga, da
possibilidade de voltarmos a ser proprietários dos confins do nosso
ser. (p. 142. Grifos nossos)
o aldegundes, vez em quando, abria os olhos e perguntava, o que vai
ser de nós. e eu dizia, nada. (p. 143. Grifos nossos)
Os fragmentos acima evidenciam os fados que se descortinam nas páginas de o
remorso de Baltazar serapião. Estes, assim como o final, não deixam dúvidas sobre a
cosmovisão trágica representada na obra. Existem, contudo, dois únicos momentos em
que uma voz de esperança ecoa, são eles: quando o amor aparece na vida do
protagonista e quando surge o artista no irmão mais novo de Baltazar.
Mesmo tratando de um ambiente cercado por miséria, brutalidade e violência, a
obra traz uma vertiginosa e acidentada história de amor, ainda mais espantosa porque
nascida em um lugar hostil a qualquer manifestação de delicadeza56. Baltazar se
apaixona por uma bela jovem, com quem consegue se casar, e planeja ter filhos.
Interessante destacar o romantismo do protagonista antes do casamento, até na escolha
da data.
em maio era quando se casavam os noivos de sorte, escolhido o dia
de são pancrácio57, a velar-nos as juras, com as chuvas meio
levantadas, os calores ainda previstos, a claridade dos dias muito
imposta como supremacia do que se via sobre o que se sentia, e era
como se via no ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos
lugares. (p. 41. Grifos nossos)
Acima, Baltazar afirma que escolheu o dia do santo (12 de maio) para trazer
sorte ao casamento. Porém, parece que sorte não combina com Baltazar, que traz a
marca do azar no nome. No dia seguinte ao enlace, o protagonista já declara: “naquele
tempo o meu martírio começou” (p. 45).
À súbita descoberta do caráter trágico da existência, Baltazar chama de
“martírio”. A ordem de Dom Afonso o precipita em um estado melancólico, a partir
dela fica claro que Baltazar passa a ter uma visão negativa da vida e, obcecado pelo
56
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, Marçal Aquino, Cia das Letras, 2005, São Paulo.
Verificamos que o dia de São Pancrácio é realmente em maio, dia 12 de maio. Data de aniversário da
morte de São Pancrácio, jovem mártir decapitado em 304 d.C. em Roma, por ordem do imperador
Diocleciano. www.saopancracio.com.br.
57
117
ciúme, acabará por destruir não só a relação amorosa, como também a vida do casal.
Nesse ambiente bárbaro, a morte parece ser uma espécie de consumação do amor, como
se tal sentimento não pudesse ter sucesso ali.
De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009), adultério
está ligado à ideia de “violação, transgressão da regra de fidelidade conjugal imposta
aos cônjuges pelo contrato matrimonial, cujo princípio consiste em não se manterem
relações carnais com outrem fora do casamento. Já o ciúme está ligado a um “estado
emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado em relação a uma
pessoa de que se pretende um amor exclusivo” (2009).
Para esse “estado emocional complexo”, já tivemos oportunidade de destacar a
afirmação de Szondi (2004), segundo a qual o ciúme comporta em si mesmo a
tragicidade como possibilidade. Aquele que é arrebatado pelo ciúme é rotulado como
herói trágico, conforme reflexão do capítulo anterior.
Dizíamos que existem dois momentos de esperança que fazem contraponto ao
trágico, visto o primeiro, o amor, passamos ao segundo, a arte:
não poderia ter compreendido o que dava ao aldegundes, mas vi. deulhe arte a cabeça sozinha, capaz de pintar sobre madeiras as mais reais
aparições. (p. 84).
Depois da morte da mãe, Aldegundes, irmão mais moço de Baltazar, passa a
pintar tão vivas imagens do céu que recuperam do firmamento a luminosidade. O
objetivo do jovem é reproduzir céu suficiente para, nele, reencontrar sua supostamente
ascendida mãe.
Curioso com os comentários do povo sobre as pinturas do filho do Sarga, D.
Afonso se dirige à casa da família e interessa-se em saber de Aldegundes.
Transcrevemos parte do diálogo do menino artista com Dom Afonso para que
observemos a sutil ironia de Aldegundes. Seu discurso começa inocente e ingênuo e
alcança, no final, a complexidade de quem sabe o que está fazendo:
está esticado para a idade, quanto tempo tem esse rapaz. dom
afonso, uns já invernos largos, treze, nascido para o tempo do
nascimento de cristo também. a ver se cristo partilha com ele algo
mais do que isso. a ver as tuas mãos, rapaz. abre-as de par em boa
vista. estão ainda limpas de calos, não trabalhas muito, pois não.
dom afonso, eu sou apenas o ajudante do meu pai, o mais que faço é
mexer os leites, vejo os queijos com a ermesinda e guardo as coisas
dos bichos e gentes que se aproximem a mau intento. zanzas por aí.
118
fico cá fora com a sarga a ver se vem alguma coisa ou alguém. e que
mais fazes. nada de sinal, apenas desperdícios de tempo, senhor, mas
nada em prejuízo. pois a mim disseram que trazes das mãos o céu
a toda a hora, pintado em tábuas ou pedras com facilidade
impressionante, como se desse para nos distrairmos da realidade e
tombar por ele a voar. como lhe disseram pode não ser verdade.
negas que pintas o que me disseram ver. não, mas que o pinte em
tamanha facilidade, tão grande convicção que desse para voarmos
nele. continua a ser uma tábua onde se vê o céu, e quem nele
quisesse enfiar a cabeça, para voo ou suicídio, grande galo lhe
cantaria. (p. 89-90. Grifos nossos)
A citação é longa, mas necessária. Temos na resposta de Aldegundes a Dom
Afonso a base da discussão da representação na arte, ela aponta para uma explícita
reflexão do fazer artístico.
A pintura de Aldegundes representa o céu, mas não é o céu, a pintura é um
signo. Quando Dom Afonso quer confundi-la com o objeto: “a mim disseram que trazes
das mãos o céu a toda a hora, pintado em tábuas ou pedras com facilidade
impressionante, como se desse para nos distrairmos da realidade e tombar por ele a
voar”, o menino faz uma blague: “como lhe disseram pode não ser verdade”, ao que
Dom Afonso retruca: “negas que pintas o que me disseram ver”, Aldegundes, de forma
simples e irônica, introduz o que os teóricos definem como desconstrução: ele
desconstrói a ilusão do real, remetendo a imagem para o que ela é, imagem: “continua a
ser uma tábua onde se vê o céu, e quem nele quisesse enfiar a cabeça, para voo ou
suicídio, grande galo lhe cantaria.”
O que o menino diz a Dom Afonso, com a simplicidade das palavras que
domina, se assemelha
à provocação de Magritte58, “ceci n’est pas une pipe”.
Aldegundes diz “isto continua a ser uma tábua” e se alguém assim não considerar, isto
é, aquele signo como representação do céu, “grande galo lhe cantaria”.
Depois de conversar com Aldegundes, Dom Afonso se impressiona com a luz
que irradia da casa dos Sargas, e pergunta ao pai da família.
que é esta luz dentro de uma casa como se viesse dali o sol, só
aparição ou fogo impossível daria coisa assim, (p. 91)
58
Se considerarmos a famosa pintura de Magritte, o quadro com o cachimbo e a legenda com a afirmação
“ceci n’est pas une pipe”, “isto não é um cachimbo” é uma imagem, não é uma realidade, é uma
representação da realidade com tudo o que isso encerra de idealização, deformação, reinvenção,
ampliação metafórica ou simbólica de sentido. Ainda que aparentemente fiel ao objeto real, neste caso o
cachimbo, nada há de verdadeiramente comum entre eles: o cachimbo da imagem, por exemplo, não pode
ser fumado. Real, só o objeto em si mesmo.
119
A grande novidade da resposta é que, pela primeira vez e única, a família sorri:
retirámo-nos de frente e sorrimos, é dos untos de pintar que o
aldegundes colou às paredes, fazem a luz entrar ao de leve e sair
incandescente, (p. 91. Grifo nosso)
Este trecho traz o inédito sorriso de todos, revelado pelo emprego da primeira
pessoa do plural do verbo sorrir e aponta a intensidade da esperança que a arte de
Aldegundes representa para todos os Sargas.
Mesmo o rei, Dom Dinis59, durante uma visita às terras de D. Afonso,
maravilha-se com a arte de Aldegundes, a ponto de convocá-lo a ser artista real60.
As seguintes passagens ilustram a comemoração efusiva de toda a família Sarga,
que antevê a oportunidade que se abria social e financeiramente para seus integrantes.
[brunilde] ouvira dom afonso gritar fascinado, este sarga é um artista,
punha-lhe a mão nos ombros como se gostasse mesmo dele, destituído
de qualquer nojo, só apreciado de entusiasmo pelo trabalho que o meu
irmão cumpria. (p. 93. Grifos nossos)
partirás em direcção ao palácio, chegarás para ficar tempos que te
ocupem, e serás recompensado por tão grande talento, foi como
próprio el-rei lhe falou, directamente falado com ele. (p. 105, grifos
nossos)
deus nosso, os sargas eram coisa nunca vista para agrado de rei, os
sargas, nascidos de pai e vaca, capazes de algo que os levasse a reino e
tudo (p. 106. Grifos nossos)
Todas essas citações trazidas do romance sugerem o sentido que o narrador
atribui à arte61. Nela está a porta para a família alcançar a redenção. Os Sargas veem
59
Ao incluir Dom Dinis como personagem, foi atribuído “veracidade” ao talento de Aldegundes. Isto é, o
rei, historicamente, protege os artistas. Ele é uma personagem do romance que faz parte da realidade. Em
outro momento já ressaltamos que Valter Hugo Mãe costuma incluir na sua ficção personagens reais. Em
a máquina de fazer espanhóis (2010), quarto romance do escritor, premiado no Portugal Telecom de
2012, aparece a personagem de um bibliotecário que realmente existe em Portugal. Além do Esteves, do
poema Tabacaria de Fernando Pessoa, aquele sem metafísica, transformado em personagem da citada
obra.
60
Aldegundes seria artista exclusivo do rei.
61
Indagado sobre o valor que a arte possui na obra, pelo jornal O povo, Valter Hugo Mãe responde:
“A arte sempre foi uma porta de redenção dos pobres, mas nunca se democratizou, nunca poderá ser
acessível a todos e, por isso, nunca vai redimir todos os pobres. Sendo essa maravilha que faz o artista
virar realeza, contém também uma crueldade porque se ostenta, mas não se torna possível para execução
por qualquer pessoa. Nesse sentido, o livro procura abordar essa esperança, mas o destino dos Serapião
não permitiria que qualquer sonho se efetivasse. A arte vai sempre ser a fuga e a preservação ao
120
claramente a chance de sair para “novo lugar, para nova casa ou novo trabalho,
conseguidos de maior riqueza” (p. 107) e, principalmete, a grande oportunidade “para
sairmos da condenação animal a que estávamos acometidos” (p. 107). Importam-se de,
finalmente, agarrar a chance de passarem de Sarga a Serapião.
Mas o menino pintor62 jamais residirá no palácio, tampouco será artista do rei. Já
na viagem ao palácio, os problemas começam. E a sorte muda. Os irmãos foram
amaldiçoados pela mulher queimada, a antonomásia pela qual a bruxa Gertrudes é
conhecida.
Com efeito, os irmãos Sarga e Dagoberto, este, soldado do palácio de D. Dinis,
são alvo de uma feitiçaria que os condena a permanecer juntos todo o tempo, sem o que
tudo à volta deles queima e se destrói. Nas palavras de Dagoberto: “o que acontece é
que seremos os três como um, a mexer em cada coisa sem distância dos outros,
diferente disso o que houver por perto vira pernas para o ar ou cara para cu esturricando
de calor” (p. 141). Assim, o calor que irradia do corpo deles, caso ficassem separados
por algum tempo, queima o que está por perto, animais, natureza, pessoas, objetos,
vestimentas, tudo. A única espécie de ascensão que se apresenta no romance é impedida
precisamente pela citada maldição.
Abaixo, por meio do discurso das personagens, apresentamos um quadro63 que
resume e demonstra em que condições Baltazar e Aldegundes se dirigem ao castelo de
Dom Dinis e em que situação os irmãos retornam de lá.
Percebemos o estado de euforia quando partem, as palavras selecionadas
refletem fortemente tal estado:
Na ida, a ilusão da felicidade: “trarei do reino bênção”, “serás recompensado
por tão grande talento“, “abençoado sejas também”, “seremos felizes, ermesinda”,
“tenho esperança de ser possível”,“quero voltar para recomeçar tudo”. (Grifos nossos).
Na volta, a desilusão: “nem compensa nem glória trouxemos de el-rei”, “não
trazíamos nada”, “el-rei nos expulsou. desgraça tão grande.” (Grifos nossos)
mesmo tempo. Com ela o sujeito alheia-se e com ela pode captar, num compromisso, o que é a sua
verdade. Gosto desse fator de compromisso, porque a arte não é o relato jornalístico imparcial, muito pelo
contrário, a arte aponta sempre para uma opinião, mesmo que de forma ironizada ou cínica. (Disponível
no site http.www.opovo.com.br) (Grifos nossos).
62
Giotto, conhecido pintor italiano, começou a desenhar ainda menino, com oito anos, quando era um
pastor de ovelhas, fazendo desenhos em rochas. A contrário de Aldegundes, obteve sucesso com sua
pintura. Fonte: wikipédia.pt.org
63
Todos os grifos do gráfico são da pesquisadora.
121
IDA - Euforia
VOLTA - Disforia
este sarga é um artista, deus nosso, os
sargas eram coisa nunca vista para
agrado de rei, os sargas, nascidos de pai e
vaca, capazes de algo que os levasse a reino
e tudo. e dom afonso ordenou, sarga,
prepara teus filhos, que o talento e tempo do
mais novo será oferta para sua majestade,
prepara teus filhos, que um leve o outro a
palácio que el-rei designe, e reza por olhos
de deus postos em ti. e abençoado sejas
também. (p. 106, grifos nossos)
el-rei nos expulsou. desgraça tão grande,
nosso pai, e nada nos consolava. se
continuamos, foi por sentimento de tristeza
que nos dava necessidade de pôr pé em casa a
sarar ao menos os olhos de nossas pessoas e
paisagens. (p. 142, grifos nossos).
trarei do reino bênção e experiência que nos
orgulhará, serás contente por mim.
seremos felizes, ermesinda, quero voltar
para recomeçar tudo, como tenho
esperança de ser possível, volto não tarda
nada. (p. 109, grifos nossos)
emagrecidos, sem moedas de nada para
pagamento de pão que quiséssemos [...]
chegámos quietos de anúncio ... e avistámos
nossa casa e para ela fomos como
sorrateiramente chegando a um lugar que não
era nosso, e não trazíamos nada. (p. 143,
grifos nossos)
partirás em direção ao palácio, chegarás
para ficar tempos que te ocupem, e serás
recompensado por tão grande talento. foi
como próprio el-rei lhe falou, diretamente
falado com ele. (p.105, grifos nossos)
nem compensa nem glória trouxemos de elrei para terra de dom afonso de castro,
confirmei cabisbaixo. verdade, servidos ao
diabo nos escorraçaram a medo e urgência. (p.
147, grifos nossos)
de praga voltamos, nosso pai, piores do que
fomos, abdicados de alma por bruxa traidora,
estamos endereçados ao inferno, coisa que
nos mate sabe que é para lá que nos levará, e
sem esperança nos deve esquecer (p. 144).
o aldegundes prometido para o reino, a ser e agora ide, que maleita que vos entrou pode
compensado de talento natural que deus lhe entrar em mim, rua para longe, seus
dera, compensa que nos poderia favorecer animais. (p. 129, grifos nossos)
sortes de todos os sentidos [...] para
sairmos da condenação animal a que
estávamos acometidos (p. 107, grifos
nossos)
meu filho, ai que não te enganes com
viagem feita em companhia dessa bruxa,
se te cair em desgraça dela em cima, são
meus dois filhos e minhas esperanças todas
que acabam.(p. 109, grifos nossos)
não se aflija, meu pai, vi-lhe olhos bem
vistos, está por nós de agradecimento
grande, não nos atentaria com problema,
tem intento de nos compensar. (p. 109).
estava ela a mulher queimada, gertrudes,
autora da nossa pena [...] feitiço esse dá
calor, sim, são as caldeiras do inferno que se
aproximam, calor em redor tudo se aquece até
que fogo se acenda e nós e alma pendamos
para chama da besta. (p. 137, grifos nossos).
dagoberto disse-me, que vai ser de ti. e eu
respondi, nada (p. 144, grifos nossos).
122
Em suma, ida e volta exprimem situações que se opõem, partiram abençoados e
regressaram
amaldiçoados, “abanados de tristeza para desorgulho de nosso pai e
ermesinda.” (p. 129. Grifos nossos).
Assim, os dois momentos do romance que ecoam esperança, o aparecimento do
amor e da arte frustraram-se. Em ambas, as esperanças de uma possível redenção são
esmagadas. A família não logra o livramento da condição animal, conforme sonha
Baltazar:
a nós conhecem-nos pelos sargas, sabes, assim de nome fácil, mas
somos serapião, e a sarga é a vaca do meu pai. [...] mas não contes a
ninguém da vaca, pedi-lhe, que tão longe estamos nos parece que, por
primeira vez, podemos ser gente sem ser gado. (p. 132. Grifos
nossos)
As palavras acima do protagonista refletem claramente seu mal estar em não ser
conhecido pelo verdadeiro nome de família. Importantíssimo o fragmento supracitado,
ele está inserido em um diálogo de Baltazar com Dagoberto, no palácio de D. Dinis,
portanto longe de onde habita o protagonista. O que Baltazar revela a Dagoberto vai de
encontro ao que ele informa no primeiro capítulo:
nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam, ele é
sarga, é dos sargas cara chapada, nada éramos os serapião, nome da
família, e já nos desimportávamos com isso. (p. 12. Grifos nossos)
Os dois excertos são conflitantes. Na verdade, Baltazar se importa, sim, de não
ser chamado pelo nome de família. Ele não quer ser Sarga, ele quer ser Serapião, e via
na arte de Aldegundes a possibilidade da humanização: “podemos ser gente”. (p. 132).
Sarga e Serapião têm uma relação metafórica e metonímica ao mesmo tempo. Ao ser
conhecida por Sarga, há remissão da família à condição bestial, enquanto o verdadeiro
nome, patronímico, a eleva a humana.
era o que diziam todos, que éramos gado como a vaca com quem nos
familiarizávamos. (p. 28).
Sarga/Serapíão simboliza a demarcação de fronteira entre bicho e humano. É
dessa travessia que o romance trata sob a liderança de Baltazar, o primogênito dos
filhos. Da condição do não ser para ser:
de não ser para Ser apião
123
Baltazar afirma que não se importa em ser sarga, para mais tarde ser pego pela
palavra, mais uma característica do protagonista emerge: a insegurança que o aflige.
nós éramos os sargas [...] já nos desimportávamos com isso”. (p. 12,
grifos nossos).
X
a nós conhecem-nos pelos sargas, sabes, assim de nome fácil, mas
somos serapião mas não contes a ninguém da vaca, pedi-lhe, que tão
longe estamos nos parece que, por primeira vez, podemos ser gente
sem ser gado (p. 132, grifos nossos).
No decorrer deste capítulo, continuaremos pontuando as características de
Baltazar.
Vimos que as possibilidades históricas de redenção, o amor e a arte, atravessam
o caminho de Baltazar, mas não são capazes de transformar o destino da família. As
premonições do protagonista cumprem-se, ele parece movido por forças que não
consegue controlar. Paira também sobre as personagens, desde as primeiras linhas, uma
ameaça “estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas” (p. 11). Ao leitor
são dadas as referidas pistas, a catástrofe, cujo conceito será retomado mais tarde,
anuncia-se. Porém, nas mãos de Valter Hugo Mãe esse caminho nunca é percorrido sem
surpresas, a maneira como é narrada a história afasta qualquer previsibilidade
principalmente porque o escritor estrutura sua narrativa na ironia.
Northrop Frye distingue a ironia exigente da ingênua. Diz o teórico que o
ironista ingênuo chama a atenção para o fato de estar sendo irônico, ao passo que o
exigente apenas afirma, e deixa o próprio leitor acrescentar o tom irônico. (1957, p. 47).
Ao lado do emprego mais facilmente identificável da ironia, conforme já
comentamos, no texto do escritor português, ela também aparece empregada com
sutileza, passando longe da obviedade, a ponto de o leitor, quando consegue desvendála, sentir certo prazer, visto que se sentiu desafiado a ultrapassar o sentido evidente, o
senso comum, e saiu vitorioso da experiência.
Ao comentar o tom irônico, Frye considera a figura de uma vítima típica ou
casual na tragédia, o pharmakós ou bode expiatório. Para o teórico, tudo o que acontece
a essa figura ocorre desproporcional ao que ela pode provocar.
124
Acreditamos que o conceito de pharmakós64 pode ser aplicado no romance. A
ideia de "bode expiatório65" pode adequar-se à Ermesinda, tendo em vista que desaba
sobre a personagem, de forma irracional, toda a culpa da comunidade. E ela padece para
expiá-la, sofre muito mais que merece e leva a culpa por algo que não fez.
A paixão de Ermesinda fica configurada não só pelas agressões do marido, como
também pela sujeição da personagem, que cumpre o papel que aquela sociedade espera
dela.
Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro (1996, p. 216), considera a ironia
trágica (ou ironia do destino) um caso de ironia dramática em que o herói se equivoca
totalmente sobre sua situação e corre para sua perda, enquanto acredita poder safar-se66.
O teórico francês esclarece que, muitas vezes, a ironia trágica beira o humor
negro. Embora não o conceitue, podemos compreender o alcance do referido humor
quando Pavis o remete à famosa tragédia shakeaspeariana Otelo, precisamente nos
momentos em que o mouro evidencia a confiança que deposita em Iago, chegando a
chamá-lo “honesto Iago”67.
64
En antropología hay un término que se llama farmakós, de donde viene nuestra palabra farmacia.
Significaría algo así como remedio. El farmakós es lo mismo que el chivo expiatorio, es decir, aquel ser o
cosa sobre el que se cargan todos los pecados de una colectividad o sociedad. A este ser o cosa se le
destruye y así queda limpia la sociedad de pecados. Jesús en la cruz reconoce que es el cordero que quita
el pecado del mundo. Jesús es el farmakós, el chivo expiatorio, aquello que nos limpia de nuestras faltas,
porque en época helenística hay una obsesión por sentirse limpio, sin mácula. Un ejemplo de farmakós es
lo que se ha dado en llamar la fiesta de los toros, espectáculo denigrante que todavía hoy perdura. En su
origen, las corridas de toros representaban esto mismo: la muerte del toro que cargaba con todos los
pecados del pueblo. Disponível em: www.todoexpertos.com, Libertat humana e religión. Acesso em 19
desembro de 2012.
65
No chamado Dia da Expiação, encontrado no livro bíblico de Levítico, os hebreus organizavam uma
série de rituais que pretendiam purificar a sua nação. Para tanto, organizavam um ato religioso que
contava com a participação de dois bodes. Em sorteio, um deles era sacrificado junto com um touro e seu
sangue marcava as paredes do templo. O outro bode era transformado em “bode expiatório” e, por isso,
tinha a função ritual de carregar todos os pecados da comunidade. Nesse instante, um sacerdote levava as
mãos até a cabeça do animal inocente para que ele carregasse simbolicamente os pecados da
comunidade. Depois disso, era abandonado no deserto para que os males e a influência dos demônios
ficassem bem distantes. Disponível em www.brasilescola.com/curiosidades/bode-expiatorio.htm, em 19
de setembro de 2012.
66
Pavis mostra o exemplo mais célebre, o de Édipo que “conduz a investigação para acabar descobrindo
que ele mesmo é o culpado”. (Pavis,1996).
67
Por muitas vezes, na tragédia de Shakespeare, Otelo chama Iago de “honesto Iago”. Conforme exemplo
abaixo, entre outros, no Ato I, cena III. Iago é alferes de Otelo:
DOGE — Amanhã às nove horas voltaremos a reunir-nos aqui. Deixai, Otelo, um oficial, para que vos
transmita nossas ordens e o mais que diz respeito a vosso posto e às honras inerentes.
OTELO — Se concordais, o alferes* é pessoa honesta e de confiança. A seus cuidados confio minha
esposa e tudo quanto Vossa Graça quiser depois mandar-me.
OTELO — Pela sua lealdade empenho a vida! Honesto Iago, confio-te Desdêmona. Dá-lhe por
companheira tua esposa e, logo que te for possível, leva-a para junto de mim. Vamos, Desdêmona; só
disponho de uma hora para assuntos mundanos e ordens várias, que há de ser-te dedicada também. É
necessário ao tempo nos mostrarmos obedientes. (Shakeaspeare, 2009).
125
O humor negro, finalmente, ganha um conceito no E-Dicionário de Termos
Literários68, que o considera como “manifestação de humor desconcertante e com
carácter libertário em que elementos macabros, absurdos ou violentos se associam ao
cômico”. Ainda segundo o dicionário, o conceito de humor negro69 foi introduzido pelo
surrealista André Breton na primeira edição da sua Anthologie de l’humour noir (1940),
em que se encontram reunidos textos de autores que vão de Swift a Sade, Kafka, Hans
Arp, Salvador Dali e Benjamin Péret. No prefácio da obra citada, Breton perspectiva o
humor negro como uma “revolta superior do espírito” libertador e sinônimo de
denúncia/revolta. Outro aspecto que o escritor ressalta a ter em conta é o príncipio do
prazer, resultante do efeito de surpreender e divertir através da palavra.
Segundo Maria Manuela Pardal Krühler (citada no E_Dicionário de Termos
Literários)70, o humor, e muito particularmente o negro, conduz o leitor “aos efeitos de
sedução que brotam das palavras, sobretudo quando estas jogam com os interditos.”71
Destes, a estudiosa destaca, sobretudo, a temática em torno da morte, da violência
gratuita e, algumas vezes, da mutilação e canibalismo como interditos a que os autores
também recorrem.
Temos por desconcertantes, certos momentos do romance analisado que, se
considerados em uma gradação, a morte de Ermesinda, precedida que foi de extrema
violência gratuita, seria o clímax. Passaremos a examinar as cenas que fazem parte dos
últimos capítulos do romance, vinte e sete e vinte e oito,
páginas 191-194, por
considerarmos fortemente ressaltados a ironia trágica e o humor negro.
Para nos situarmos, completamente desfigurada, cambaleante, a personagem vai
ao encontro do marido. As citações abaixo deixam claras as condições físicas de
Ermesinda:
a minha amada nem se levantava por seus próprios apoios, havia
que eu lhe deitar mãos por braço debaixo, tronco a subi-la para, numa
posição breve, se deixar momentos segura, e não muito mais, porque
caía cansada a condoer-se. (p. 189. Grifos nossos)
68
A bibliografia sobre ironia trágica e humor negro é escassa. O E-Dicionário de Termos Literários é
organizado por Carlos Ceia, professor da Universidade Nova de Lisboa. Site www.edtl.com.pt. Acesso
em 21.09.2012.
69
Breton sintetiza o humor negro da seguinte forma: “L’humour noir est borné par trop de choses, telles
que la bêtise, l’ironie sceptique, la plaisanterie sans gravité […], mais il est par excellence l’ennemi
mortel de la sentimentalité á l’air perpétuellement aux abois […] et d’une certaine fantasie à court terme,
qui se donne trop souvent pour la poesie.” (Anthologie de l’humour noir, ed. por Jean-Jacques Pauvert,
1966, p. 16). E-Dicionário de Termos Literários. www.edtl.com.pt. Acesso em 21de setembro de 2012.
70
Site www.edtl.com.pt. Acesso em 21 de setembro de .2012.
71
Site www.edtl.com.pt. Acesso em 21 de setembro de .2012.
126
Na avaliação de Baltazar, sua esposa tinha:
pé torto, mão para o ar, braço colado ao peito, outra mão nenhuma,
olho só buraco e cabeça descarecada às peladas, altos e baixos a faltar
redondez de cabeça comum, (p. 189).
Conforme os fragmentos supracitados, não exageramos ao considerar medonha a
aparição da outrora bela Ermesinda e surpreendentes os comentários do marido: “e tão
aparecida continuas de beleza” (p. 189) ou “e só bela me parecia”. (p. 150).
Este contraste entre o estado “real” da personagem, descrito pelo narrador, ao
qual chamamos medonho72, e “bela”, da imaginação do mesmo narrador, torna-se
recorrente na narrativa73. Por si sós, tais situações tocam o humor negro. Da mesma
maneira, quando ele manda Ermesinda ficar de pé, com a intenção de avaliar ou
comparar o dano que causou e verificar a beleza remanescente:
deixa-me ver-te de pé direito, minha ermesinda. deixa-me ver-te hirta
para te apreciar dano e beleza que repartes. (p. 189. Grifos nossos)
Verificamos na citação acima que o enunciado é fortemente cruel, enquanto o
tom de Baltazar reflete o contrário. O dano causado em Ermesinda parece ter sido obra
de outra pessoa, não dele, tal a falta de sensibilidade e frieza com que o trata.
Não nos parece, de fato, fácil identificar as marcas obrigatórias e constitutivas da
ironia trágica quando beira o humor negro, contudo, consideramos que a existência de
certos sinais nos alertam para a impossibilidade de uma interpretação literal. O jogo
com os “interditos”, apontados por Maria Manuela Pardal Krühler74, pode adequar-se à
violência gratuita sofrida por Ermesinda. Afinal, seus algozes estão diante de uma moça
sem a mínima condição de defesa, já na iminência de sucumbir às atrozes agressões
72
Adjetivo empregado pela própria Ermesinda: “e assim tão medonha me tenho que nem reconheço
minha antiga vantagem” (p. 150).
73
Em muitas partes da narrativa, Baltazar descreve o estado físico da esposa:
“pé torto e braço apontado para o ar, mas nada que lhe fosse impossível se resignada se mantivesse, como
estava, trazida ao pé de mim a cada momento para se permitir de cada decisão, e cada noite, aberta de
todos os trapos, calava-se em espera o tempo que eu lhe levasse em cima e era como adormecia,
desarrumada de suores e satisfações.” (p. 73-74)
“minha ermesinda, pé torto, braço para o céu, admitida de visitas a dom afonso, horários matutinos.”
(p. 87 )
“filho meu, que mulher crias tu aqui, pé torto, braço no ar, olho nenhum à esquerda, tanto mal lhe pareces
que mal se tem em pé para autonomia de funções e trabalho.” (p. 108)
“a minha ermesinda já tinha pé torto virado para dentro, braço que não baixava com mão apontada para
céu, outro braço flácido e sem mão a partir de pulso, mais olho esquerdo nenhum, só direito, era como
estava.” (p. 150).
74
Site www.edtl.com.pt. Acesso em 21 de setembro de 2012.
127
sofridas pelo marido. A personagem está mutilada, falta-lhe um olho, que fora
arrancado por Baltazar. Logo, o exagero da situação configura-se em uma marca que
aponta para o humor negro.
Passaremos à análise de um dos momentos que consideramos mais tensos da
ironia trágica, para isso, trascrevemos dois excertos longos, mas fundamentais para a
análise comparativa que desejamos efetuar.
Excerto A:
orgulhei o peito, inchei-me de felicidade e vi bem a minha doce
amada, agora tão longe e protegida de homem ou mulher que lhe
desviasse corpo de meus afazeres apaixonados, tão grande o orgulho
de a ter salvo, muito me aconteceu a alegria e, consciente na ideia,
tão grande inteligência com que administrei a minha ermesinda, quase
senti remorsos pela firmeza da minha bondade, eis ermesinda,
salva de tudo o mais, ajoelhei-me a seus pés e confessei que a
amaria até ao fim da vida. (p. 190. Grifos nossos)
Excerto B:
sem perda de tempo, noite tão dentro e numa rapidez de invejar lebres,
o aldegundes e o dagoberto queimavam os buracos da minha
ermesinda, talvez por nos condenarmos àquele lugar, talvez porque ela
não se podia defender de violência ou súplica, talvez porque se
alheassem a mal do sofrimento que me causariam perante descoberta
de tal acto. deixavam-me bem medido no sono, naquele tempo em que
me escapavam todas as forças de vigília, e faziam-no em conluio,
ajeitados um para o outro para melhorarem a maneira de se aliviarem
em pressa e préstimo o suficiente. pude comprová-lo. pude comproválo acordado que me vi, numa noite, desacompanhado dos dois e talvez
alertado por um mugido da sarga que me chamou. e vi, forma como se
revezavam de altos e baixos da minha ermesinda, a furarem-lhe o
corpo com ganas de bicho, devorando-lhe mais e mais o que
restava de beleza. (p. 191. Grifos nossos)
fechei os olhos e fiz o maior escuro da noite. cerrei os ouvidos e
deixei que acontecesse. [...] (p. 191, Grifos nossos)
foi como se repetiu por muitas noites o ritual, ao fim de dias em
que também eu me completava com a minha ermesinda, [...] (p.
191, grifos nossos)
O Excerto B75 contém o estupro de Ermesinda, cujos autores, como sabemos,
são Aldegundes e Dagoberto, irmão e amigo de Baltazar, respectivamente.
Nosso principal objetivo em destacar os dois excertos está em verificar como a
euforia de Baltazar em EA passa por completo desmentido em EB, ou, nas palavras de
75
Passaremos a usar EA, para o excerto A, EB, para o excerto B.
128
Pavis, o protagonista se “equivoca totalmente sobre sua situação e corre para sua perda,
enquanto acredita poder safar-se” resultando na ironia trágica (1996, p. 216). Confrontados
os excertos, as diferenças ficam mais ostensivas, conforme a seguir demonstramos.
O EA é a reflexão, ou melhor, o balanço que Baltazar faz da sua administração
referente à “educação” de Ermesinda, sintetizado pela expressão “eis ermesinda, salva
de tudo o mais”. Baltazar constata: “tão grande inteligência com que administrei a
minha ermesinda”, exorta: a “firmeza da minha bondade”. Enfim, sua amada está
“agora tão longe e protegida de homem ou mulher que lhe desviasse corpo de meus
afazeres apaixonados”, por isso “orgulhei o peito, inchei-me de felicidade” e seu
orgulho realmente é grande “de a ter salvo muito me aconteceu a alegria”.
Baltazar acredita que Ermesinda está “protegida de homem ou mulher que lhe
desviasse corpo” e é neste pico de autorreconhecimento, que o protagonista vê, atônito,
Aldegundes e Dagoberto “furarem-lhe o corpo [de Ermesinda] com ganas de bicho,
devorando-lhe mais e mais o que restava de beleza”, conforme E2.
Não há mudança de parágrafo do EA para EB, o que ressalta mais o susto da
mudança de atitude. A ironia trágica se presentifica no fato de Baltazar pensar pouco
antes que naquele lugar ermo, sem homens e mulheres por perto, sua esposa não corre
perigo nenhum, e ele se orgulha por ser o agente da salvação dela. Baltazar acredita que
ali ela está protegida por ele e, principalmente, Ermesinda é só dele, o que concretiza o
apego de exclusividade por que tanto sonha. Mas o contrário acontece. Sob a sua
exclusiva responsabilidade, Ermesinda sofre a maior violência que ainda poderia lhe
ocorrer: o estupro, ou melhor, os seguidos estupros.
O EB exibe momentos pungentes, mas soa extremamente estranha a maneira de
o narrador descrever o crime de estupro “queimavam os buracos da minha ermesinda”,
(grifo nosso). O acontecimento eminentemente trágico aparece travestido de humor,
como se não fosse mais possível imaginar outra forma de expressão diante da vida.
Ainda em EB, o narrador informa que tudo aconteceu em uma madrugada, ou,
poeticamente, “noite tão dentro” (grifo nosso). Baltazar parece empenhado em não
deixar a menor dúvida daquilo que testemunhou. Por duas vezes, repete que pôde
comprovar o que aconteceu e isola em uma única frase a locução verbal “pude
comprová-lo” e a repete duas vezes. “pude comprová-lo acordado que me vi”. Embora
tenha ocorrido de madrugada, ele ressalta “acordado que me vi”. Mais uma vez o
verbo ver é empregado: “e vi, forma como se revezavam de altos e baixos da minha
ermesinda”.
129
Baltazar que sempre teve dúvida a respeito da fidelidade da esposa e ansiava
ardentemente por uma prova da infidelidade, que nunca apareceu, tem uma reação
supreendente: “fechei os olhos e fiz o maior escuro da noite, cerrei os ouvidos e deixei
que acontecesse”. (grifos nossos). O estupro acontece diante dele, o narrador usa três
termos contundentes: ver, comprovar e acordado. Impossível não compararmos os
estupros, porque são comprovados, com o adultério, nunca visto, sequer comprovado,
portanto na ordem da imaginação ou suposição do marido.
A comparação visa a estabelecer a contradição do protagonista diante do que não
vê e diante daquilo que vê. Mais uma característica de Baltazar: a contradição.
O narrador tenta justificar ou compreender os companheiros estupradores. Mas
nunca compreendeu Ermesinda. Na construção da dúvida, aparece o emprego do
advérbio “talvez” por quatro vezes. O primeiro se refere às quatro personagens
envolvidas na cena: Ermesinda, Baltazar, Aldegundes, Dagoberto; o segundo, à
Ermesinda; o terceiro, aos dois companheiros; o quarto, a Baltazar e à Sarga:
talvez por nos condenarmos àquele lugar. (p. 191).
talvez porque ela não se podia defender de violência ou súplica. (p.
191).
talvez porque se alheassem a mal do sofrimento que me
causariam perante descoberta de tal acto. (p. 191).
talvez alertado por um mugido da sarga que me chamou. (p. 191).
O advérbio sugere a dúvida do narrador quanto à motivação do ato, sem, no
entanto, ter dúvida em relação ao ato, o qual se esmera em detalhar. A descrição do
estupro traz detalhes, como a premeditação, a atuação, a forma, os autores, o crime, a
violência e as circunstâncias agravantes76. Conforme descrevemos abaixo:
A premeditação: “deixavam-me bem medido no sono”
A atuação: “faziam-no em conluio77”.
A forma: “se revezavam de altos e baixos da minha ermesinda, a furarem-lhe o corpo
com ganas de bicho” e “ajeitados um para o outro para melhorarem a maneira de se
aliviarem em pressa e préstimo o suficiente”,“esticada por um e por outro para
corresponder em formas às entradas que eles queriam fazer”.
76
Pode ter colaborado na exatidão dos aspectos da cena do crime e no vocabulário, o fato de o escritor ser
advogado e ter militado na área, conforme entrevista. Aparecem alguns termos mais empregados na área
jurídica, misturados à criativa linguagem.
77
Conivência ou conchavo de duas ou mais pessoas para lesar outrem. (Houaiss).
130
Os autores e o crime: “o aldegundes e o dagoberto queimavam os buracos da minha
ermesinda.”
A violência: “a furarem-lhe o corpo com ganas de bicho, devorando-lhe mais e mais o
que restava de beleza.”
Podemos considerar que os aspectos descritos acima são difíceis de serem
percebidos de madrugada, no meio do mato, com a iluminação precária de uma
fogueira. No entanto, ao ressaltar “foi como se repetiu por muitas noites”, isto é, a
reiteração do estupro ocorreu tantas vezes que o narrador sabia o começo, o meio e o
fim ou todo o “ritual” conforme Baltazar prefere chamar.
As circunstâncias agravantes: Agravam o crime praticado em Ermesinda
alguns fatos: a condição em que ela se encontra, sem a menor possibilidade de defenderse: “a minha amada nem se levantava por seus próprios apoios”; o estupro ser praticado
por dois homens: “suplício era o seu de servir meu próprio irmão e amigo tão grande”; a
repetição do crime: “se repetiu por muitas noites”; o recrudescimento do sofrimento
com a sugestão de sexo anal: queimavam os buracos”.
O andamento da narrativa se acelera no momento em que Baltazar descobre o
crime. Colabora na intensificação do ritmo do EB, não haver parágrafo a separá-lo do
EA. O assunto muda completamente sem, contudo, haver um espaço a separá-los, o que
causa um efeito de susto no leitor, não preparado para a ocorrência do crime. Parece que
narrador e leitor descobrem o fato juntos e comungam assim, a mesma estupefação, uma
passagem da euforia à revolta.
Acentuam a descrição acelerada da descoberta do estupro a construção elíptica e
poética “noite tão dentro”; sete linhas sem usar o ponto final de “sem perda de tempo”
até “descoberta de tal acto”; as palavras e expressões que designam tempo: “sem perda
de tempo”, “rapidez”, “lebre”, animal conhecido pela velocidade.
Para coroar a situação já absurda, além de os estupros perdurarem por muitas
noites, Baltazar procura sexualmente Ermesinda “ao fim de dias”.
foi como se repetiu por muitas noites o ritual, ao fim de dias em que
também eu me completava com a minha ermesinda, (p. 191, grifos
nossos)
Ermesinda, vítima de um crime hediondo, do qual participam o cunhado e o
amigo, com estranha compactuação do próprio marido que, confessadamente, sabe do
“ritual”, que consiste em os autores esperarem a alta madrugada, o marido adormecer
131
pesadamente, para, em conluio, estuprarem uma moça doente. Ao “ritual” deve ser
considerado que o marido finge dormir, portanto sabe o que está acontecendo.
Uma personagem cuja descrição física corresponde a “pé torto, mão para o ar,
braço colado ao peito, outra mão nenhuma, olho só buraco e cabeça descarecada às
peladas, altos e baixos a faltar redondez de cabeça comum” e que mentalmente “pouco
discernia ou ouvia, não falava”, ser estuprada continuamente por dois homens, pode ser
lida pelo humor negro.
A declaração final do EA, “confessei que a amaria até ao fim da vida” (grifos
nossos) tem o sentido metafórico de duração do amor, da eternidade do sentimento,
mas, o que está na iminência de acontecer, o narrador ainda não sabe, é realmente o fim
da vida de Ermesinda. O sentido passa do figurado ao literal, apontando também para o
humor negro.
À constatação do EA, “eis ermesinda, salva de tudo” (grifo nosso) além de
ridicularizada no EB, ela estava era perdida de tudo, revela a imaginação do narrador. O
humor negro constrói-se também na discrepância entre a imaginação de Baltazar e a
situação “real”, na maneira por vezes ampliada ou distorcida com que ele vê ou
interpreta os fatos. A desmedida resulta do conflito mental do protagonista, que tem
início, após ver sua mulher contrariar tudo o que ele lhe tentara “ensinar”. A partir dos
encontros de Ermesinda com D. Afonso, observamos que ela só cumpre a determinação
do chefe de ambos, a única certeza de Baltazar, parece ser a dúvida e “era como me
enlouquecia, nada saber e saber apenas o que me queria confirmar dos bons intentos de
dom afonso”. (p. 46, grifo nosso). A certeza da dúvida78, para empregar a figura cara ao
romance, traduz o sentimento que se apossa do protagonista desde a apresentação de sua
Ermesinda a Dom Afonso até o fim da narrativa.
Reiteramos que consideramos o episódio do estupro o de maior tensão na
configuração da ironia trágica, conforme descrição de Pavis (1996, p. 216). Ermesinda
desperta a compaixão no leitor, por tudo o que sofre inocentemente e por ser tão jovem
e indefesa. Existem, no entanto, outros momentos importantes que passaremos a
comentar, não tão cáusticos como o analisado, mas dignos de serem considerados e
observados, porque por meio deles se torna possível conhecer a estrutura irônica que
permeia o trágico, na obra de Valter Hugo Mãe.
78
Belo oximoro criado pela Profª Lílian para definir Baltazar.
132
Constatamos que está muito presente na narrativa a inversão daquilo que se
enseja. A palavra parece ser posta em questão, conforme os episódios abaixo retirados
do momento do noivado de Baltazar e Ermesinda.
Ao aceitar o pedido de casamento de Baltazar, o pai de Ermesinda, Sr. Pedro,
assim motiva sua concordância:
será um ajuizado chefe de família, reiterado na valentia e astuto nos
recursos, está protegido por um misericordioso senhor, garante a
nossa filha como se precisa, terá a sua mão e a nossa familiaridade.
(p. 41, grifos nossos)
No dia seguinte ao casamento, o “ajuizado chefe de família” se manifesta:
e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a
amasse. (p. 48).
Sabemos que não acontece o que o pai de Ermesinda prevê. O procedimento
violento de Baltazar em relação à esposa desmente peremptoriamente a avaliação do
sogro. Todas as agressões estão transcritas e analisadas no capítulo anterior. A
tragicidade está presente nas descrições minuciosas das agressões à Ermesinda e no
estado enfurecido de Baltazar conforme vimos. Logo, a perspectiva do pai de Ermesinda
tem o sentido irônico porque Baltazar nunca se constituiu em “ajuizado chefe de
família”.
Ainda na mesma cena do noivado, Sr. Pedro, pai de Ermesinda, e Afonso Sarga,
pai de Baltazar, planejam a vinda de netos da união dos filhos.
o seu moço é um moço nosso, será marido da minha ermesinda e fará
os meus netos, se infelizmente deus não me deu mais filhos compete
aos seus a minha linhagem, e assim será, compadre pedro,
encheremos a casa de netos, eu lho garanto pelo meu filho que é
homem de grandes forças. (p. 39, grifos nossos)
O aval ao filho “garanto pelo meu filho que é homem de grandes forças”
(grifos nossos) soa duplamente irônico porque Baltazar usará suas “grandes forças” não
para o que seu pai promete, gerar filhos, mas para espancar a esposa. Porém, quando
Baltazar usa a masculinidade de modo torpe, ele desmente o que o pai promete ao Sr.
133
Pedro e ao mesmo tempo espelha79 o comportamento do pai em relação à mãe. Baltazar
surrou tanto Ermesinda que o plano de ter descendentes não se cumpriu.
a que me competia educar de valores familiares para mãe de filhos que
já não haveríamos de ter. (p. 151)
Os sonhos estiveram nas mãos de Baltazar, mas não se concretizaram. Quando o
protagonista parte rumo ao palácio de Dom Dinis, leva a esperança de transformação da
vida de toda a família, mas ao permitir que a mulher queimada o acompanhasse na
viagem, tornou impossível a realização do que a família esperava. Baltazar confia em
Gertrudes, pensa que ela o recompensará pela ajuda e não atende ao conselho do pai,
que se manifesta contrário à decisão dele.
não se aflija, meu pai, vi-lhe olhos bem vistos, está por nós de
agradecimento grande, não nos atentaria com problema, tem intento
de nos compensar. (p. 109, grifos nossos)
estava ela, a mulher queimada, gertrudes, autora da nossa pena, [...]
(p. 137, grifos nossos)
A ironia trágica ou ironia do destino está configurada nessa oposição: àquela de
quem ele espera a graça, lança-lhe a desgraça.
A maldição se mostra incortornável e, consequentemente, uma das causas do
destino trágico de toda a família. Baltazar buscou reverter o feitiço, mas os bruxos
consultados foram unânimes em afirmar:
mulher que vos vendeu fê-lo sem retorno, está o cornudo convencido
de compra feita, é como estais, os três por definitivo entregues à
desgraça, e agora ide, nada tenho que em verdade vos falte. (p. 161)
A mulher queimada foi agente da bruxaria. Mas a maldição que se abate sobre
Baltazar e Aldegundes, com repercussão para a família, pode resumir o olhar pessimista
de Mãe em sua cosmovisão, que veremos mais tarde.
79
O pai de Baltazar também agride a mulher: “lhe entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo
em que eu era muito novo, e assim a ensinou de modos para sempre, tomada de respeitos por ele para o
resto da vida, não quisesse que ele lhe entortasse também o outro”. (p. 47).
“ficou-lhe [de ermesinda] o pé para dentro, ao invés do de minha mãe que lhe tinha ficado para fora,
ficou-lhe para dentro e até um pouco para trás, e doía-lhe muito”. (p. 54).
134
As inversões demonstradas entre o que se espera e o que ocorre caracterizam a
ironia trágica ou do destino. Tais inversões podem sugerir que o destino é inexorável
para aquela família e que não há qualquer possibilidade de as esperanças se
concretizarem. Este aspecto traz uma relação com a tragédia clássica em que o destino
era conhecido de antemão, anterior mesmo às personagens, portanto ninguém teria
possibilidade de se safar. Por outro lado, podemos pensar que houve oportunidades e
todas estiveram nas mãos de Baltazar, que frustrou as expectativas do sogro, do pai, de
Ermesinda e de Aldegundes.
Pelas reiteradas manifestações de autopiedade e de autocomiseração: “éramos
todos muito iguais em sortes, nenhumas”, (p. 167), “que sina tão maldosa” (p. 63),
verifica-se que Baltazar costuma transferir a responsabilidade ao destino,
Mas Aldegundes lamenta e põe em xeque a atuação do irmão mais velho.
muito me desgosta que por procurar nossa mãe nas nuvens me tenha
trazido para tão longe em aventura desmedida e a ser tão
incumprida. (p. 127, grifos nossos)
Parece haver na fala de Aldegundes o reconhecimento da falha do irmão. A
oportunidade surgiu, mas a travessia ficou incompleta por dificuldade de Baltazar em
conduzi-la.
Vistas as ocasiões em que a euforia transforma-se em disforia, passamos a
enfocar algumas cenas de humor negro protagonizadas pelo menino Aldegundes.
A priori, o escolhido para artista da família, aquele que detém o talento que
pode mudar o futuro de todos, possui um profundo amor espiritual e físico pela vaca.
Não resta dúvida do fato porque o narrador o expõe. Enquanto em relação ao pai,
sabemos por comentários do povo de um suposto relacionamento sexual com a Sarga,
Baltazar testemunha a relação do irmão caçula com o animal:
voltei a casa e pior dia se tornou ao perceber o aldegundes em loucura
apressada [...] empoleirado na sarga [...] coitado do meu pobre e
burro irmão, nem a diaba lhe teria ocorrido, tão novo de corpo e
inteligência era assim ridículo a pôr-se na vaca ( p. 36, grifos
nossos).
A comprovação de que Aldegundes é amante da vaca soa humorística por ele
ser o único a ter sensibilidade que lhe permite captar aquilo que a alma das pessoas tem
de belo, por meio de sua arte como pintor. Eis o retrato do artista:
135
pobre aldegundes assustado, magro, feio, burro de espertezas,
só sabido de palavras caras, coisas estranhas que lhe imaginava a
cabeça, tanto do que me impressionava da influência da minha mãe
sobre ele. (p. 84, grifos nossos).
Em suma, o artista surge no menino que possui reconhecida influência de uma
mulher, a mãe, o que o desabona aos olhos do narrador; tem essa mesma mulher por
inspiração para sua arte, ele pinta para “procurar nossa mãe nas nuvens” (p. 127); ele
“apenas buscava retratar a nossa mãe para memória e adoração” (p. 127) e, ainda, põese na vaca: “tão novo de corpo e inteligência era assim ridículo a pôr-se na vaca”.
(p. 36 ).
Flagrar Aldegundes com a vaca abona o que antes estava no nível de boatos do
povo, isto é, a relação do pai com a Sarga. O boato ganha credibilidade, não fica mais
descabido. O “todo boato tem um fundo de verdade” parece aplicar-se aqui.
sabia eu que tinha de ser verdade que [o pai] se pusera na sarga, se
dava ao aldegundes burrice igual, e por costume tão perto ficava a
língua do povo da verdade mais escondida. (p. 40).
Além do amor físico de Aldegundes pela vaca, há também o “espiritual”. Este
sentimento fica demonstrado no fragmento abaixo, no qual figura a principal cena de
humor negro protagonizada pelo menino artista.
No momento de partir em viagem ao palácio de D. Dinis, Aldegundes se
desespera porque terá de deixar a Sarga por muito tempo.
o aldegundes agarrou meu pai e, choro agudo, pediu-lhe pela sarga.
não a deixe sem liberdade e recolhimento a cada tempo certo, não lhe
esqueça uma palavra ou uma mão, que a solidão é o que mais a afecta,
e rezemos para que o verão continue sem trazer frio demasiado, chuva
e menos ainda temporal barulhento que a assuste de morte,
ermesinda, vê a minha sarga, por favor, vê pela minha sarga
mesmo o que conseguires ver. e ela acenou que sim cabeça mal
erguida. (p. 108, grifos nossos)
Aldegundes pede à Ermesinda que tome conta da Sarga na sua ausência. Ele
emprega o verbo “ver” três vezes: “vê a minha sarga, por favor, vê pela minha sarga
mesmo o que conseguires ver”. Vamos ao fato: na madrugada da viagem, Baltazar
arrancou um olho de Ermesinda: “entrei dedo dentro de ermesinda olho arrancado
136
deixo-te o outro para vez que me pareça.” (p. 107). Aldegundes sabe o que acontecera à
cunhada, por isso, na hora da partida, diz ‘mesmo o que conseguires ver”, isto é, com
o único olho que restou à Ermesinda.
Quando Aldegundes começa a revelar o talento para a pintura, Baltazar teme a
reação de D. Afonso. Talvez aí esteja uma alusão a conhecido comentário popular de
que artista não trabalha.
o nosso aldegundes pintava de ter mandamento de deus para o fazer,
untado de ervas que espremia era como enchia a casa de cores por
dentro, não fosse por fora saltar à vista de dom afonso e cortar-lhe
dedos abaixo por gastar noite de dormir a ansiar pelo céu. (p. 85,
grifos nossos)
A corroborar esta ideia, o narrador aconselha o irmão a se dedicar mais ao
trabalho “fecha a tua cabeça às ilusões e pensa no trabalho, nos animais que tens
para cuidar, antes que dom afonso nos dê rua a todos de tão malfadados estarmos”.
Assim, trabalhar equivale a cuidar do gado, da plantação de Dom Afonso.
Mas ao descobrir a arte do menino, ao contrário do que pensa Baltazar, Dom
Afonso determina que Aldegundes deixe as tarefas que fazia em suas terras, para se
dedicar só à arte.
sairás dos queijos e dos leites [...] afina os dedos e apura as mágicas
capacidades das tuas poções, queremos que lá estejas [na casa grande].
levante-se, sarga, levante-se e ponha-se a caminho do trabalho, não
descure a sorte que ainda tem. [...] sarga, dê graças pelo filho que tem,
que em ócio lhe veio um talento para coisa que só a deus compete, e
se deus lho delegou, abençoado seja o rapaz. (p. 90-91).
A reação de Dom Afonso transcrita acima indica que a arte distingue o artista.
Um gesto do chefe, observado por Brunilde (que sempre levava notícias do que ocorria
na casa grande), em tocar no ombro do menino “destituído de nojo” aponta para a
mudança de tratamento.
era um artista, como ouvira dom afonso gritar fascinado, este sarga é
um artista, punha-lhe a mão nos ombros como se gostasse mesmo
dele, destituído de qualquer nojo, só apreciado de entusiasmo pelo
trabalho que o meu irmão cumpria. (p. 93, grifos nossos)
137
A ordem para Aldegundes passar a morar na casa grande, além do gesto descrito
acima, são reveladores da mudança do tratamento em relação à família. A revelação do
artista em um Sarga eleva-o aos olhos do dono do poder, tornando-o mais próximo, ou à
altura do poderoso Dom Afonso.
A seguir, com o objetivo de mostrar as raras manifestações contrárias à violência
cometida por Baltazar em Ermesinda, destacamos as observações de Teodolindo,
Dagoberto e Dom Afonso.
Sabemos da recorrente avaliação que Baltazar faz de
Ermesinda, ela está sempre bela em sua imaginação, apesar de a beleza não existir mais.
Relembremos, entre muitas, a seguinte:
minha bela ermesinda, como estás, pé torto, mão para o ar, braço
colado ao peito, outra mão nenhuma, olho só buraco e cabeça
descarecada às peladas, altos e baixos a faltar redondez de cabeça
comum, e tão aparecida continuas de beleza, pele lisa de tratamento
cuidado, tão jovem, a minha amada ermesinda. (p. 189, grifos nossos)
A “negritude” do humor está configurada no despropósito entre a descrição do
estado “real” de Ermesinda e a recorrente avaliação do narrador, que a vê sempre como
a conheceu, formosa. Parece que há dois olhares. Um que a vê no “real” estado em que
se encontra e outro que manteve a memória da beleza que existiu. Via-a agora não qual
era, mas qual fora.
Teodolindo, na condição de melhor amigo, de acordo com a franqueza e
bondade de caráter que o narrador lhe confere, adverte o amigo, não só do estado de
Ermesinda, como também da responsabilidade de Baltazar.
deste-lhe grande mal, ninguém terá lembrança de excitação por vê-la
passar, se recatada é, e nem posta em boca de povo, ninguém forçará
prazer com ela, dizia-me o teodolindo, encarado dos meus olhos,
sincero, a garantir-me por ele mesmo, baltazar, meu amigo, a vista que
lhe ponha nada me dá ganas de a tomar. (p. 155).
A resposta do protagonista demonstra que ele está longe de ver a destruição
física de sua mulher como consequência de seus atos violentos contra ela.
assim te conserves, meu amigo, sem entender a magnitude da
sensualidade da minha mulher, criada para mim, trazida a mim
pelos desígnios de deus. (p. 155, grifos nossos)
A posse que julga ter da mulher confere a Baltazar agir como bem entender. Ela
138
lhe pertence: “criada para mim, trazida a mim”. O protagonista se reconhece senhor da
vida e morte da esposa.
Estranhamente80, vêm de Dom Afonso duas manifestações. O poderoso senhor
parece se sensibilizar com o estado de Ermesinda, a ponto de dispensá-la dos encontros
para preservá-la. Não é outra a notícia que ela traz ao marido:
porque me deixou de conversas dom afonso, para que me mantenhas o
corpo, mais que me estragues nem viver poderei, e assim tão
medonha me tenho que nem reconheço minha antiga vantagem. (p.
150, grifos nossos)
O fragmento acima nos interessa porque, além de Ermesinda falar, momento
raro da narrativa, pois a personagem caracteriza-se pela mudez, externa sua
autoavaliação, considera-se “medonha”, sem sua antiga vantagem, isto é, sua beleza.
Diretamente a ela, Dom Afonso comunica o fim dos encontros, ao contrário do que
aconteceu quando ele os determinou, a ordem foi dada diretamente ao marido. A causa
da decisão de Dom Afonso surpreende porque foi para resguardar a personagem.
De Dom Afonso vem a segunda manifestação, ele questiona o protagonista: “e
terás tu amor real pela rapariga”. (p. 151). A resposta de Baltazar vai nos auxiliar na
constituição de seu perfil. “sim, d. Afonso, sim, e peço-lhe, largue-ma de mão, largue a
minha ermesinda de mão que eu juro não lhe arrancar mais nem cabelo ou grito”. (p.
151, grifos nossos)
Um capítulo depois da jura acima, Baltazar volta a surrar a esposa, isto porque,
embora os encontros não mais aconteçam e ainda que façam parte do passado, Dona
Catarina descobre que ocorreram e acusa Ermesinda de adultério, o que faz emergir
todo o velho tormento de Baltazar, a dúvida. Anotemos aqui que o protagonista quebra
a palavra empenhada e comete a última agressão, em que a crueldade se destaca: “deilhe de mão fechada tanta pancada na cabeça que lhe saltaram pedaços, até tombar chão
batido como pedra a escorrer sangue, desfeita em desonra e mais nada”. (p. 178).
Além de Teodolindo, conforme vimos, outra personagem se manifesta sobre a
mulher de Baltazar, é Dagoberto: “a essa tiraste o dom da fala. é uma mulher sem voz.
mas, se veio até aqui, muito te deve querer”. (p. 189 )
Dagoberto se refere à vinda de Ermesinda, voluntária e inusitada, até onde está o
80
Estranhamente porque ele representa o vilão da história e responsável pela pena da personagem, ao
determinar os encontros que despertarão o ciúme em Baltazar.
139
marido. Ela surge na cena final, atendendo um pedido de Baltazar à Sarga para trazê-la
até ele, pois não pode viver sem Ermesinda. Portanto, ela vai até o marido sem ser
obrigada a encontrá-lo, sem pressão ou ameaça, ela, espontaneamente, aparece para
confirmar o “sou tua até morrer”. Cumpre a antecipação:
meu bom marido, casei contigo em honra dos meus pais que te
escolheram e, em cada instante que te conheci, amei-te por graça sem
condição, não me batas, sou tua até morrer. (p. 79, grifos nossos)
A sujeição de Ermesinda ocorre, assim, até o fim, como já anunciava sua
confissão a Baltazar. Nessa mesma cena, em que Dagoberto faz uma perfeita
interpretação da vinda de Ermesinda, acontece a inversão do perdão. Mesmo diante dos
grandes sofrimentos por que faz passar Ermesinda, mesmo diante do estado
extremamente debilitado de sua mulher, por várias vezes descrito nesta pesquisa,
Baltazar manifesta a possibilidade de, ele, Baltazar, talvez, perdoá-la.
diz-me, ermesinda, diz-me que coisas te fazia dom afonso, como te
fazia e em que diferia, para te merecer todas as manhãs e segredo até
de mim.[...] e se deus assistir minha paciência, talvez me convença
de perdão e menor importância para segredos que me guardas,
porque quero perdoar-te. (p. 188-190, grifos nossos)
A inversão do perdão marca a ironia do fragmento. Quem deve ser perdoada é a
vítima, não o algoz.
Talvez para quebrar a excessiva violência e tragicidade que envolvem certos
atos, o escritor os revista de ironia ou humor negro. Neste sentido, destacamos o acordo
entre Brunilde e Baltazar para matar o descendente que viria do relacionamento dela
com D. Afonso. Brunilde queria que seu filho já morresse ao nascer e Baltazar concorda
com ela, a motivação para o crime é a ascendência da criança, que faria misturar sangue
de vaca e sangue real.
a brunilde queria que filho seu se matasse à nascença, eu explicava-lhe
que sim, seria pelo melhor que um sarga não tivesse mundo vindo
real da linhagem de dom afonso. (p. 165, grifos nossos)
Um crime, matar o bebê, é resolvido em comum acordo pela mãe e tio porque
“um verdadeiro familiar da vaca” não poderia ter sangue “como se viesse de rei”. A
140
premeditação da morte do bebê, fato bárbaro, resulta camuflado pelo humor.
A irmã de Baltazar é a segunda da família a morrer, a primeira fora a mãe. Tal
fato provocou o comentário do irmão mais moço de Baltazar: “o aldegundes abraçou-se
a mim repetido de mais dor e disse, acabaram-se as nossas mulheres”. (p. 168, grifos
nossos).
Com efeito, as mulheres morreram antes dos homens. A mãe, Brunilde e, por
último, Ermesinda. Dentro da ironia, sempre presente no romance, podemos ver uma
vingança feminina simbólica, a sobrevivência de Sarga: ela é fêmea, vaca, e quem
nomeia os homens da família, conhecidos que são como “os sargas”.
A referência que Baltazar faz à vaca, logo no início da narrativa fica
comprovada, “a vaca era a nossa grande história” (p. 12). Realmente, Sarga participa
dos mais importantes momentos da narrativa e conseguiu sobreviver juntamente com o
pai, Afonso Sarga. A sobrevivência do “casal” não pode passar despercebida, uma vez
que a voz do povo considerava o pai amante da vaca81.
Afirmamos anteriormente que o trágico se organiza por meio da ironia. Além
dos fragmentos já citados, resta considerar a maldição sofrida pelos irmãos. Não há
dúvida de que se reveste de tragicidade, principalmente pelas consequências que
trouxeram: a morte. Mas, nem um fato tão funesto para a família fica isento do tom
irônico. Abaixo a maneira de Dagoberto definir o que lhes ocorreu:
e o dagoberto apontou, de verdadeiro o que acontece é que seremos os
três como um, a mexer em cada coisa sem distância dos outros,
diferente disso o que houver por perto vira pernas para o ar ou cara
para cu esturricando de calor (p. 141, grifos nossos).
Dagoberto sintetiza a maldição de uma maneira que quebra a tragicidade que lhe
é inerente. O “cu esturricado de calor” traduz o calor insuportável e fatal que emana dos
três condenados. O feitiço os faz arder e os condena à morte. O arder se aproxima do
fogo, a que a população condenou Gertrudes, que sobreviveu e passou a ser conhecida
por mulher queimada. Gertrudes estende o mal a que foi condenada aos irmãos homens
da família Sarga. A maldição pode ser metafórica, a vingança da única mulher a se
insubordinar naquele grupo de mulheres que se sujeitam. A insubordinada tem nome de
rainha e poderes sobrenaturais. Por não seguir o paradigma da época, se sujeitar ao
81
“enquanto me apressava nas tarefas de dom afonso e olhava para a nossa casa e a minha mãe parando
perto da sarga, a velha vaca. eu via-as como as duas estranhas e loucas mulheres do meu pai”.(p. 18).
141
marido, não é considerada mulher, mas bruxa.
Em o remorso de baltazar serapião, verificamos referências explícitas ou
implícitas à Tragédia Clássica, acreditamos, por isso, não ser descabido apontar e
analisar os elementos próprios do supracitado gênero que entram no discurso do
romance. Para este estudo, interessam-nos a hybris, a hamartia, a peripécia, o
reconhecimento, a catarse, o pathos, a catástrofe e o coro.
Antes, porém, a definição de tragédia, peça que representa, para Pavis, uma ação
humana funesta muitas vezes terminada em morte. ( 1996, p. 417).
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, no estilo
tornado agradável pelo emprego de cada uma de suas formas, ação
apresentada não com a ajuda de uma narrativa, é ação apresentada por
atores e que suscitando a compaixão e o temor, a tragédia tem como
efeito obter a purgação dessas emoções. (BRUNA, 2005, p. 24).
Importante observar que até nossos dias a definição de Aristóteles continua a ser
a referência para tratar de qualquer estudo do gênero que o Estagirita sistematizou.
Teremos oportunidade de comentar a definição à medida em que desenvolvermos os
elementos que nos interessam tratar do romance.
Comecemos pela hybris, palavra grega para desmedida, excesso, por vezes
assimilado à soberba, arrogância e insolência do herói. (1996). A ordem de Dom
Afonso, para que Ermesinda o encontre todos os dias, gera a hybris em Baltazar. O
protagonista passa a agir sem observar limites e tampouco ninguém a sua volta. A
desmedida no romance funciona como se fosse um motor que move cada vez mais o
protagonista a ir em frente cegamente, sem parar por si. A aludida ordem provoca,
enfim, em Baltazar, uma ação que se mostra um erro trágico, a hamartía (1996), que
desestabiliza não só seu universo físico e psicológico, como também o das personagens
que vivem em torno dele.
Podemos considerar arrogante e desmedido o ato de “educar” que Baltazar
impõe à Ermesinda, intensificado pela violência com que ele quer conformar um ser
humano segundo à sua vontade e ao seu desejo, aí se configura a hamartía, no erro de
julgamento de Baltazar. Para Aristóteles (2005), o herói comete uma falha e cai em
desgraça não em razão de sua má sorte ou de sua perversão, mas na sequência de um ou
outro erro que cometeu. A falta varia de acordo com os conflitos trágicos.
142
Baltazar julga fazer tudo pelo bem, não tem consciência do seu ato nem do
prejuízo que ocasiona à sua esposa. Age convicto de que dá o melhor de si na formação
de Ermesinda e que ela está amparada a seu lado.
Somente em momento específico da narrativa, quando ele descobre que
Aldegundes e Dagoberto estupram sua esposa, há uma reviravolta82 no romance. Nas
palavras de Aristóteles, à “mudança dos acontecimentos no seu contrário”83, configurase a peripécia. O clímax de toda a história está nesta descoberta, Baltazar nunca poderia
imaginar que seu irmão e seu amigo pudessem agir de maneira tão cruel. Na verdade
quem poderia imaginar? Segundo o teórico da Poética, a peripécia sempre está
relacionada a um elemento inesperado e espantoso84 (2005).
Em consequência dela, há o reconhecimento, com o sentido técnico do termo, tal
qual definido no capítulo 11 da Poética: “mudança da ignorância para o conhecimento,
levando ou à amizade ou à inimizade, que se dá entre os que tinham um status definido
em relação à fortuna ou ao infortúnio.” (2005)
Enquanto na tragédia clássica, o herói reconhece onde falhou e toma consciência
de si, de quem é e o que é para si mesmo, marcando a passagem da ignorância para o
conhecimento existencial, no romance, esse elemento é limitado, Baltazar não tem essas
respostas. O quem sou eu, o desvendamento de sua identidade não ocorre, ou não se
completa. Segundo fomos pontuando, o protagonista tem por característica a
insegurança, a incerteza, a dúvida, a ambiguidade, a contradição. Ele é complexo, na
acepção de Edgar Morin (2000), explicitado mais adiante. A limitação de seu
reconhecimento lhe permite apenas a consciência de que a educação que impôs à
esposa fora mal sucedida. Este momento do romance traz um intenso sofrimento ao
protagonista. O plano da expressão denuncia esse aspecto por meio de significativas
repetições e do ritmo mais cadenciado, conforme podemos notar no fragmento a seguir:
eu sentiria até ali o remorso dos bons homens. como havia pensado,
remorso duro de tão dignamente administrar a educação da minha
82
Como, por exemplo, no Édipo: o mensageiro, tendo vindo para tranquilizar Édipo e afastá-lo do temor
em relação a sua mãe, ao ter revelado quem Édipo era, fez o contrário.
83
Definição completa: “A peripécia é a mudança dos acontecimentos no seu contrário da maneira que
dissemos, e isso, como preceituamos, segundo o provável ou o necessário.” A Poética Clássica (2005)
84
Se olharmos os enredos das tragédias: quem poderia imaginar algo como um filho que, sem saber, mata
o pai e casa com a mãe, como no Édipo Rei? Quem pode imaginar uma irmã que, sem saber, está
encarregada do sacrifício do irmão, como em Ifigênia em Áulis? No entanto, aceitamos esses enredos
improváveis porque não só é provável que haja fatos improváveis como também há uma lógica que os
ordena. Se há algo que é fora do comum da tragédia, não é a peripécia, é o extraordinário dos eventos
trágicos.
143
ermesinda. mas até ali, pensei, até ali, porque naquele momento,
mais do que a condenação de restarmos os quatro encurralados para
todos os avios, ocorreu-me a falha grave do meu espírito, e tão
amargamente me foi claro que, por piedade ou compreensão com os
meus companheiros, e talvez por ausência da voz da minha mulher,
passara para lá do limite, o remorso dos bons homens já não me
assistia, senão só a burrice e ignorância de quem abdicara da sua
mulher. (p. 193, grifos nossos)
O remorso de Baltazar é peculiar, haja vista que não transcende, nem redime. A
ele voltaremos de maneira mais detida pela importância que adquire no romance. O
sentimento nomeia a obra. Por ora, vimos os dois elementos fundamentais para o
desfecho trágico e que concorrem, segundo Aristóteles, para a complexidade da
tragédia: a peripécia e o reconhecimento. Eles também são inspiradores para as emoções
de pena e terror a que se refere o filósofo, na Poética. (2005).
A catarse aristotélica visa essencialmente a manter em justo equilíbrio os
sentimentos da compaixão e do temor, que são o efeito específico e o prazer próprio da
tragédia. Tais sentimentos, característicos do gênero, devem ser suscitados ao longo do
desenrolar da ação dramática e, particularmente, no desenlace. (2006).
A pena ou compaixão brota no espectador, à vista do herói que sofre
imerecidamente, embora possa ter cometido qualquer erro ou equívoco o qual, contudo,
não constitui falha moral, pois não é fruto de maldade85. Já o temor nasce da
semelhança que a personagem tem conosco. A desgraça, que o vitima, pode também
desabar sobre nós.
E no romance de Valter Hugo, como fica a catarse?
Considerando que, conforme a Poética (2004), a catarse trágica efetiva-se por
meio da compaixão e do medo, compreendemos que o sentimento de compaixão é
provocado pelo intenso sofrimento por que passa a personagem Ermesinda, a esposa de
Baltazar. O terror brota da possibilidade de virmos a ser vítima da mesma desventura da
personagem.
Compreendemos também que a díade “compaixão e medo” parece se fundir num
só termo: amor pelo nosso semelhante. Sabemos que o teórico da Poética refere-se
sempre ao herói, mas no romance, embora Baltazar tenha praticado a falha por erro ou
por ignorância, todo o sentimento de simpatia do leitor se dirige à Ermesinda. As dores
85
Sabemos que Aristóteles tem em vista a tragédia “ideal”, paradigmática, a qual, segundo se depreende
da Poética e do sentir de comentaristas, é o Rei Édipo. Na peça, Édipo sofre, sem dúvida, desgraças
imerecidas – só por infelicidade e equívoco foi possível despenhar-se em tão fundos abismos. A sua
hamartia, falta trágica, não envolve culpa moral.
144
da personagem provocam extrema compaixão naquele que lê o romance. Talvez
intensificado pela idade adolescente, talvez pela violência tão brutal, talvez pela
inocência, o fato é que mesmo reconhecendo que a “cegueira” de Baltazar pode ser
explicada pelo meio hostil em que vive, por sua educação, por sua juventude e,
sobretudo, por seu erro de julgamento, o que o torna também vítima, é na direção de
Ermesinda que se manifesta o amor pelo nosso semelhante, sentimento que nos
humaniza e nos permite exclamar tal qual a personagem de Terêncio:86 “sou homem, e
nada do que é humano me é indiferente”.
Em Ermesinda parece estar simbolizada toda a violência histórica de que a
mulher é vítima. Valter Hugo Mãe, em entrevista, declara que, ao advogar, defendeu
mulheres em situação mais degradante do que a da formosa personagem de seu
romance87.
Queremos ainda registrar a terceira parte da fábula a que Aristóteles alude, o
evento patético. Este, por sua vez, é uma ação destrutiva ou dolorosa, em que estão
presentes as mortes, os intensos sofrimentos e ferimentos. (2005).
Por meio das tensões, cujo núcleo é formado por Baltazar, ocorre uma sequência
brutal de mortes, que incluímos no pathos, com a ressalva de que nenhuma é natural,
conforme a seguir.
Morte de Ermesinda, causada pelos espancamentos de Baltazar e estupro de
Dagoberto e Aldegundes;
Morte de Aldegundes, causada por agressão de Baltazar;
Morte de Dagoberto, causada por agressão de Baltazar;
Morte de Baltazar, um suicídio. Em consequência da maldição de que era vítima,
ele não pode se afastar de Aldegundes e Dagoberto. Ao matá-los, sabia que morreria
também, e assumiu a morte inexorável. Parece-nos que Baltazar não suporta viver após
o grande trauma que o assola, a morte de Ermesinda.
Da família, sobrevive apenas o pai, aniquilado, e a Sarga. Cumprindo, assim,
mais uma premonição sombria de Baltazar, desta vez, referindo-se ao pai.
seguia como se preparado para ser um homem só. um homem e uma
vaca. (p. 157, grifo nosso)
86
”homosum, humani nil a me alienum puto.”
“Não poderei nunca esquecer essas conversas e o desespero dessas mulheres com idade para serem
minhas mães e absolutamente perdidas num preconceito social que não as protege e permite ao homem
toda a devassidão e agressividade.”
87
145
Vemos que existe no romance, a progressão irresistível em direção à catástrofe
final. Esta, conforme Pavis, é o momento em que o herói perece e paga tragicamente sua
falha (2006).
O momento final do romance é fortemente elaborado. Construído como uma
cena teatral, principalmente pelo espaço escolhido, um lugar ermo, achado por Sarga,
em consonância com que Baltazar já antecipara nas suas sempre recorrentes sombrias
premonições, “tardava nada [...], não poderíamos mais andar entre os lugares das outras
pessoas destinados a desaparecer dali e de todos os lugares, para onde não existisse
ninguém e, o mais certo, onde não existisse nada (p.158). Nesse espaço, distante do
convívio com qualquer ser humano, estabelecem-se Baltazar, Aldegundes e Dagoberto.
Para lá, também, por último, se dirige Ermesinda. As quatro personagens convergem
para esse lugar onde tombam mortas perfazendo um final apoteótico.
afastaram-se da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos,
respirou menos, respirou menos, não respirou. a sarga mugiu de modo
lancinante. e eu abati-me sobre os dois abrindo lado a lado os braços
de punhos fechados. um só golpe certeiro sobre as suas cabeças. um só
golpe com a violência da pedra mais furiosa do mundo. sobraram no
chão como mais nada ali estivesse.
depois ergui-me, aqueci, tive a percepção fatal de que o meu corpo
não suportaria nem o caminho até ao pé da sarga. na escuridão
contínua, a sarga talvez tentasse chegar a mim também. (p. 194).
O final do livro, transcrito acima, é de fato uma implosão, como uma solução
sumária para fechar a trágica história. Há uma voracidade que sentencia as personagens,
mas que serve para a plasticidade do romance, tornando o assunto do livro ainda mais
contundente e desarmante. Na verdade, algo mais poético e cruel.
Para completar esta reflexão sobre os elementos da tragédia, falta registrar que a
narrativa é pontuada por comentários dos vizinhos da família Serapião. Não nos parece
impossível de conciliar a concepção do coro com a participação dos habitantes do
lugarejo que se desdobra em variadas funções: ora externam opiniões difamatórias, ora
trazem informações úteis ao desenrolar da trama ou ao entendimento do leitor,
conforme as passagens transcritas a seguir:
e o povo dizendo, foi a mãe dos rapazes, a mulher do sarga, o homem
da vaca. (p. 79, grifos nossos)
146
e quantas vozes se levantavam diziam, os sargas estão vendidos ao
diabo, já mirram de brancuras, palidez lhes dá como o sangue se esvai
para encarnar o diabo, a encher a boca para morte de sedes que o
cornudo tenha, (p. 146, grifos nossos)
povo atrás olhando e gritando, são animais, àquela, de tão bela,
haviam de a estropiar até parecer gado sem raça precisa, meio cabra,
meio cadela ou monstro até. também era o que diziam da minha
ermesinda. (p.147, grifos nossos)
Conforme os fragmentos acima, os comentários do povo servem para apresentar
ao leitor algumas informações que circulam na comunidade sobre a família situando a
ação geral. As vozes maledicentes funcionam como um grupo de vizinhos fofoqueiros.
Aristóteles considera o coro88 como verdadeiro ator, na tragédia (2005). Já
alguns teóricos o veem como um espectador, já que, muitas vezes, o coro89 interpreta os
sentimentos da plateia. Talvez os dois aspectos não se excluam, pelo contrário, se
complementem. No romance, os fragmentos supracitados confirmam que a relação de
Baltazar com o coro dos vizinhos caracteriza-se pela revolta e irritação. O protagonista
reconhece nele a perseguição implacável à sua família. Fica, assim, configurada uma
possível função do coro no romance, a de refletir a opinião da população em relação à
família Serapião.
Tivemos a oportunidade de refletir sobre o trágico aliado à ironia. Nossa
investigação se direcionará agora a outro aspecto caro ao romance, a dimensão
hiperbólica do trágico.
Na medida em que avançamos na narrativa, percebemos que a violência vai
tomando proporções cada vez maiores até atingir um pico só explicável por meio do
significado figurado, no qual a hipérbole, conhecida figura do exagero, participa de
maneira efetiva ao amplificar aquilo que a linguagem não pode exprimir. Não há dúvida
de que as agressões à Ermesinda são levadas ao paroxismo. Unem-se na construção do
trágico ou entrelaçam-se a ele a hipérbole e a ironia.
A agressão em que Baltazar arranca um olho de sua mulher e faz um “curativo”
enchendo a órbita ocular (ou buraco, conforme prefere o narrador), com terra, ou a
retratada morte da mesma Ermesinda que sucumbe aos maus tratos do marido e
seguidos estupros, efetuados ao mesmo tempo por dois homens, o cunhado e um amigo
88
“O coro também deve ser contado como uma das personagens, integrada no conjunto e participando da
ação, não à maneira de Eurípedes, mas à de Sófocles.” (2005).
89
A mais recente peça de teatro de José Celso Matinez atribui aos espectadores a função do coro. (Folha
de São Paulo)
147
do marido, a condição física da estuprada (pé aleijado, braço torto, sem uma das mãos,
com um dos olhos arrancados e muda), atestam o que vimos destacando desde o
primeiro capítulo, a importância das figuras e tropos90 na elaboração da linguagem do
romance. Citamos apenas dois, entre muitos outros momentos já vistos, para não
incorrer em repetições desnecessárias.
As definições de hipérbole pesquisadas, geralmente, estão ligadas à etimologia
do termo em grego (hipperbolé – ação de lançar sobre), e referem-se às noções de
“excesso” e “exagero”, ou “mentira”. Mas são, de maneira geral, insuficientes para a
narrativa do romance. Há um propósito no hiperbólico que nossa investigação buscou e
não encontrou em uma só das definições pesquisadas. Criamos um conceito, com base
na leitura de gramáticas e de alguns linguistas, que pudesse alcançar a maneira com que
a figura é tratada no romance, ou, pelo menos, como acreditamos que o escritor quer
evidenciá-la.
Aprendemos com a pesquisa que, em primeiro lugar, há uma dualidade na
figura, ela pode ser empregada para diminuir ou aumentar por excesso. Segundo, a
hipérbole exagera mantendo o significado. Sendo assim, ela é um exagero que tem
como base a verdade, o sentido original é mantido, mas expresso de uma maneira
desproporcional, exagerada. Por quê? Para levar àquilo em que é preciso realmente crer.
Para Fiorin (1998, p. 52), “o ato de comunicação é um complexo jogo de
manipulação”, consideramos que as hipérboles funcionam como peças importantes
deste jogo, principalmente porque elas ostentam o discurso retórico do escritor. Isto leva
à terceira característica, ela é uma figura argumentativa de que lança mão o produtor do
texto em seu diálogo com o leitor, com a intenção de convencê-lo.
Segundo Baccega (2000, p. 32), “toda palavra dirige-se a um interlocutor
presente ou ausente (o outro): ou seja, há sempre um auditório estabelecido (...), e
procura persuadir, convencer...”. A escolha léxica, a ordem dos termos no enunciado, a
preferência por determinados períodos e figuras são fatores que devemos considerar
para desvelar as ideias envolvidas e o fim a que visam.
Concluímos que a hipérbole transgride semanticamente os limites da
verossimilhança, exagera intencionalmente, com duplo propósito: lançar luz para o fato
de que trata e, enquanto tropo retórico, buscar a adesão de seu auditório/leitor.
90
Figuras são as palavras tomadas no seu sentido próprio e de maneira expressiva quanto ao som, à
estrutura, à função, à ordem e ao sentido. Tropos são as palavras tomadas em outro sentido, o figurado.
(REBOUL, 1998, p. 66).
148
No romance analisado, preferimos dizer que existe o discurso hiperbólico. As
agressões e a violência que levam ao trágico não se restringem a palavras ou locuções. E
embora elas existam, estão para além, espraiam-se pelo texto e lhe conferem o sentido
hiperbólico, como uma possível forma inovadora e criativa de marcar a violência do ser
humano.
Entrelaça-se, também, conforme começamos a comentar acima, ao hiperbólico, a
ironia, como maneira de olhar o trágico. Ou seja, o fato é tão sério, assombroso e cruel,
que a única forma de retratá-lo é pelo viés irônico. Consideramos que na obra a ironia
ganha o estatuto de elemento constitutivo da narrativa. Interessam-nos sobremaneira,
portanto, as palavras de Nestrovski que respaldam nossa reflexão:
A ironia é o movimento que suspende a linguagem fazendo-a negar-se
a si mesma. Essa suspensão e esse autocancelamento da linguagem
repetem-se, na modernidade, com força de obrigatoriedade, como se
não fosse mais possível imaginar outra forma de expressão.
(NESTROVSKI,1996, p. 7)
Nestrovski considera, assim, que a ironia passou a ser elemento fundamental da
modernidade, condição mesmo sine qua non para a expressão da consciência do
indivíduo diante de um mundo que ele sabe ser impossível representar na sua totalidade.
(1996). Retomaremos oportunamente essa reflexão, qual seja, das características do
contemporâneo na obra de Valter Hugo Mãe.
Voltando à violência, cabe dizer que ela está, invariavelmente, ligada à mulher,
por meio de assassinatos, pedofilia e outros crimes. As mulheres são descritas como
seres inferiores que existem para servir aos homens e por eles são aviltadas, brutalizadas
e estupradas sem que haja qualquer questionamento.
Ermesinda, conforme já vimos, é a mais violentada, talvez por ser a principal
personagem feminina, mulher de Baltazar. As agressões à personagem duram até sua
morte, no final do romance. Contudo, todas as mulheres participam como vítimas de
crimes. Os textos podem parecer imaginosos demais, mentirosos demais. Mas, aqui,
pode ser que a figuração da linguagem exprima que a língua não consegue representar
o que acontece, isto é, a brutalidade é inexprimível.
A morte de Brunilde se assemelha à morte da mãe em brutalidade, agravada,
porém, pela gravidez da personagem.
149
Pontuam a narrativa, já hiperbolicamente assombrosa91, a volúpia carnal, a
violência escatológica, por meio da prostituta Teresa Diaba, tratada como porca e com
instinto animalesco, a tirania insensível do homem em relação à mulher agravada pela
extrema subserviência feminina. O escritor torna mais expressiva a tragicidade do
enredo com os recursos estilísticos que emprega, Valter Hugo Mãe, reiteradamente em
entrevistas, costuma declarar que em o remorso de baltazar serapião estragou92 a
linguagem.
O primeiro “estrago” consiste em não respeitar um dos maiores rastros indiciais
da hierarquização na língua, a letra maiúscula. Segundo, sua construção sintática não se
atém ao tradicional sujeito, verbo, predicado. Seus diálogos entram direto, sem
indicação de voz ou separação do texto discursivo. A narrativa trabalha com repetições
e redundâncias, entre as quais, já ressaltamos, a reiteração das palavras “nada”, “não”,
“nem”, “coisa” e “buraco” repetidas à exaustão. O estudo das violações é tratado como
marcas subjetivas do escritor configurando seu estilo, explorados no primeiro capítulo.
Com relação à técnica narrativa, o ataque é circunscrito à ironia que permeia
todo o romance. Não há fragmentação da narrativa, acreditamos que as marcas
contemporâneas estejam na construção do protagonista, conforme comentamos, um ser
complexo, trágico, ambíguo, cindido, contraditório. Humano.
A diluição entre as fronteiras de gêneros torna-se um diferencial no romance.
Vemos traços líricos, principalmente na apresentação de Ermesinda e elementos da
tragédia, conforme pensamos ter demonstrado.
Sabemos que Baltazar, narrador do romance em primeira pessoa do singular,
vale-se, muitas vezes, da primeira pessoa do plural para abarcar a família. Parece, em
muitos momentos, que a família é a personagem, e o narrador, coletivo. Não há dúvida
de que ela se constitui como vetor fundamental do trágico, o que o início do romance já
evidencia e prepara:
reunidos em família como pecadores de uma mesma praga, maleita
nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos destituir
91
O escritor, sem pudor, alude fortemente a cenas de relações sexuais entre as personagens, de
personagens com animais, de forma concreta ou apenas alusiva. Talvez o efeito seja ressaltar
características bestiais da família.
92
Valter Hugo Mãe: Esse trabalho de linguagem, e, sobretudo, se calhar, levado ao extremo com o livro o
remorso de baltazar serapião, foi algo que veio ter comigo quase sem esforço. Subitamente, a partir da
ideia de escrever um livro, passada a Idade Média, e acerca de uma família com alguma tendência bestial,
eu achei que a linguagem devia de se estragar. E eu estraguei a linguagem e o estrago foi feito logo de
arranque. Entrevista de Valter Hugo Mãe. Disponível em www.valterhugomae.com.br. (grifos nossos).
150
lentamente de toda a pouca normalidade. (p. 11, grifos nossos)
O “nós” reflete a família, é dela que trataremos a seguir, inspirados em resenhas
críticas que veem o percurso de Baltazar como saga. A saga dos Sargas93, bela
combinação fonética que pode indicar a utopia da transfiguração em Serapião. Baltazar,
em nome dos seus, afirma timidamente “podemos ser gente sem ser gado” (p. 132).
FAMÍLIA SERAPIÃO
Mãe
FAMÍLIA SARGA
Afonso Serapião
Sarga
Ermesinda Baltazar Brunilde Aldegundes
Baltazar
Aldegundes
Faixa etária da 2ª geração:
Baltazar - 17/ 19 anos (17 anos – p. 25)
Ermesinda - 15/ 17 anos (mais nova que Baltazar 2 anos, p. 22)
Brunilde - 15/ 17 anos ( tinha 11 anos quando foi trabalhar para Dom Afonso)
Aldegundes – 12/ 14 anos ( 12 anos, p. 26).
O gráfico acima tem o objetivo de mostrar a “árvore genealógica” da família
Serapião, mais conhecida como “os sargas”, para melhor elucidar nossa investigação.
Não nos parece casual94 a semelhança fônica entre saga e Sarga. Na resenha
crítica do romance, publicada pelo jornal O Globo, feita por Luís Maffei, e também na
comunicação efetuada pelo professor Márcio Roberto Pereira, da Unesp/Assis, sobre o
romance, o termo saga é amplamente empregado pelos professores95.
93
Professor Luís Maffei, da Universida Federal Fluminense do Rio de Janeiro. Jornal O Globo.
Inspirado na resenha crítica do romance o remorso de baltazar serapião, de Luís Maffei, professor de
Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense, publicada no jornal O globo, cópia anexa.
95
“o narrador delineia a saga de seres à margem do tempo e do espaço mas que dialogam com um
contexto atual de miséria e opressão”.
94
151
“Saga”, no Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009), possui quatro
acepções: 1 qualquer das antigas narrativas e lendas escandinavas, redigidas
principalmente nos séculos XIII e XIV; 2 canção popular que tem como tema alguma
dessas lendas; 3 p.ext. canção lendária ou heróica; 4 p. ext. narrativa fecunda em
incidentes. No sentido etimológico, o substantivo saga deriva do vocábulo da língua
gótica saega, que significa "o que se diz"96. Modernamente, também séries de livros
com um argumento comum podem ser chamados sagas.
Após a pesquisa em dicionários, o primeiro caminho para a designação de um
termo, procuramos um entendimento técnico, sobre saga. Encontramo-lo em Formas
Simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste, de André
Jolles. Este autor explica a origem da saga e define sua natureza:
Trata-se de narrativas em prosa e língua vulgar que encontramos em
manuscritos desde o século XIII ao século XV. Informações de
natureza muito diversa permitem concluir que esses relatos em prosa
remontam a tradições orais e que a sua forma se constitui a partir de
relatos orais [...] Seu palco é a Islândia, o litoral norueguês, a
Groelândia, as Ilhas Feroé e aquelas regiões do mundo que os reis
vikings (sic) abordaram em suas expedições. Cessaram após a
introdução do Cristianismo. (1976, p. 63-64)
Segundo Jolles, a construção da saga assenta na noção de família. As relações
entre os diversos personagens são entre pai e filho, entre avô e neto, entre irmãos, entre
irmão e irmã, entre marido e mulher ( p. 68), tais indivíduos estão vinculados entre si
por laços de sangue e suas relações mútuas são produzidas pelo clã, a raça, a origem. Se
a família entra em contato com estranhos formam, por sua vez uma família, ou então
são indivíduos que a família admitirá ou rejeitará. Todo subalterno que ingressa na
família fica sob sua responsabilidade.
Para interpretar a forma de saga, ele expõe que as palavras chave, além de haver
disposição mental, são: Família, Clã, Vínculos de Sangue.
É esse universo que ele quer designar quando emprega a palavra saga. O escritor
admite a dificuldade de se apreender tal forma e que a acepção considerada por ele
encontrará dificuldade, visto o grande número de obras correntemente chamadas sagas
nas antologias, assim como em estudos mais ou menos científicos. Nesses casos, o
teórico não falará de saga e prefere designá-las por “gestas”. Exemplifica apontando as
96
www.wikipédia.pt.org.
152
tradições compiladas por Grimm sob o título de Deutsche Sagen, tal como as
Natursagen de Dähnhardt, que só em parte ínfima correspondem ao que chama saga.
Jolles está convicto de que uma das mais importantes tarefas da Morfologia
consiste, justamente, em combater, no interesse das formas e para defini-las, as
liberdades e negligências do uso.
Assim, no sentido estrito, o romance de Valter Hugo Mãe não corresponderia ao
universo descrito pelo teórico alemão. De qualquer forma há, mesmo sem o aval de
Jolles, modernamente, a tendência em considerar saga à narrativa familiar, fecunda em
incidentes97, como a opção apontada pelos professores citados.
Não se pode negar que existe na trajetória de Baltazar um fundo de saga98, na
medida que o romance narra a história da luta pela humanidade plena travada por uma
família, construída numa prosa cuja linguagem se baseia na oralidade. Assistimos ao
fracasso da luta e ao declínio da segunda geração da família Serapião/Sarga.
Intensifica o trágico a faixa etária da segunda geração dos Serapião. Todos são
adolescentes, conforme o gráfico comprova, e sucumbem.
No caminho miserável de Baltazar Serapião, o Sarga que conta a história,
atravessaram certas possibilidades clássicas de redenção – amor, arte e poder. O amor
correspondido pela bela Ermesinda, a arte genial que jorra dos dedos de seu irmão
Aldegundes, a promessa de uma nova vida sob os favores de el-rei. Mas no transcurso
da sua trajetória para alcançar a humanidade, de gado para gente, ou de Sarga para
Serapião, sobrevieram acontecimentos imprevisíveis que modificaram o desenrolar
esperado pelo protagonista fazendo com que seu sonho desse em – “nada” -, palavra
das mais ditas por Baltazar.
O primogênito dos filhos representa a família numa relação metonímica. A
trajetória dele se confunde com a do clã.
nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam, ele é
sarga, é dos sargas cara chapada, nada éramos os serapião, nome da
família, e já nos desimportávamos com isso. (p. 12, grifos nossos)
abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga
mugia noite inteira quando havia tempestade. (p. 11, grifos nossos)
97
O tempo e o vento, de Érico Veríssimo.
Questionado sobre o significado de Sagarana, Guimarães Rosa respondeu: « Sagarana: coisa que
parece saga’’
98
153
tínhamos refeição da noite, jantar quente com vantagens sobre o
desamparo da nossa condição social, e escutávamos as impressões do
dia. (p. 13)
“nós éramos os sargas” significa a filiação da família à vaca. O trágico, como
componente decisivo do romance, começa por esta filiação, que desestabiliza uma
lógica de pertencimento e acentua a construção, marcadamente social, do nome, que o
romance ressalta.
Com efeito, na ponta do fracasso da luta empreendida pelo protagonista, está a
estratificação social fechada da época que não admite (quer) mudanças. A começar
precisamente pelo nome.
dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias
de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua
linhagem, nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos
poderosos (p. 13)
Em reforço a esta hipótese, podemos citar os nomes das personagens sem
referência: Dagoberto, Aldegundes, Baltazar. Já tivemos oportunidade de nos referir à
homonímia entre os Afonso.
o meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso
segundo um rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a
que servíamos, uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso,
um verdadeiro familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha
do que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome,
perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. (p. 13 ).
Da mesma maneira, a mulher de D. Afonso, cujo nome é Catarina, nome de
rainha, opõe-se à mulher do Afonso Sarga, sem nome.
O conceito da família, junto aos habitantes da comunidade, se revela no dia da
morte da mãe de Baltazar, poeticamente definido pelo narrador como “um dia de verão
impressionado, arrependido.”
um acompanhamento de carpideiras que, desimportadas com a morte
da minha mãe, queriam mais verificar nossas patas de animal, nossos
focinhos de boi, jeito horizontal de lombo, nada natural em
homens de parto normal, e nada era normal, [...]. (p. 80, grifos
nossos)
O desprezo e o nojo que a família desperta, fazem Baltazar sofrer. A família é
154
hostilizada tanto pela classe dos poderosos quanto pela classe social a que pertence.
e chorei, cobrindo os olhos enquanto cobriam o corpo, e ninguém se
compadeceu mais por coisa nossa, ninguém me quis melhor ou me
perdoou os cascos no chão, o compromisso maligno de nossa
condição de bichos, porque me queixei e padeci como homem e
quanto tinha de bicho me deixou no momento em que expliquei que
amor é esse que se tem por uma mãe. (p. 82, grifos nossos)
Os comentários dos vizinhos “um nojo”, “os sargas, a merda dos sargas, a
cruzarem-se com bichos hora toda. [...] “agora que os filhos estão crescidos mais
bicharada hão-de produzir”, (p. 84) comprovam a rejeição.
Nem do representante religioso recebem alguma humanidade: “e o padre torceu
o nariz [...] nada aqui me parece natural, não se cansava de dizer, nada parece natural.
(p. 78)
Dom Afonso, o proprietário dos Sargas, ratifica o sentimento de asco e repulsa
que o povo sente pelos Sargas. Uma vez, convidado a entrar na casa da família,
responde que “entrar em vossa casa seria sujeitar-me às bichezas que lá existem” (p.
90).
Baltazar, demasiado humano, não logrou livrar-se juntamente com os seus da
condição de gado. Experimentam, assim, uma triste saga os Sargas.
Vimos, neste terceiro capítulo que, para representar um mundo marcado pela
exclusão, miséria e violência, a
voz do narrador adquire um contorno social ao
combinar em seu discurso hiperbólico a tragicidade e a ironia como forma de negar
qualquer tentativa de humanização a personagens à margem do tempo e do espaço.
O protagonista não logra o desvendamento de sua identidade, tampouco na
narrativa há síntese. O terror nunca é expiado, ele não tem fim. Só com a morte.
155
Considerações Finais
Iniciamos esta pesquisa com a intenção de investigar o que torna o romance o
remorso de baltazar serapião uma obra poética. Sob esta perspectiva, dedicamos todo o
primeiro capítulo ao levantamento dos recursos estilísticos contidos na obra. Encaramos
este capítulo como um trabalho de campo teórico, no sentido do contato direto e estreito
com o texto que incluiu identificar, enumerar, classificar e conceituar as figuras
encontradas, bem como recolher as palavras e expressões mais recorrentes e contá-las,
obviamente, para entender os efeitos de sentido que o escritor reservou para todas elas.
A partir do retorno do levantamento e do exame efetuado foi possível perceber a
força da linguagem criada pelo romancista para configurar o ciúme, a violência e a
tragicidade em sua obra. O que antes estava no nível da incerteza, da hipótese se o
romance pouco conhecido, portanto sem fortuna crítica, poderia ser corpus da
dissertação, transformou-se em certeza de que estávamos trabalhando com um material
rico, uma fonte inesgotável de sentidos, como pudemos ver nos elementos explorados
no primeiro capítulo e outras possibilidades de leitura que ainda aguardam por outros
trabalhos. Importante para nós observar que, no enfrentamento do texto, os caminhos
se mostraram ao caminhar. Não havia previamente uma escolha, existia somente o
encantamento da leitora diante da linguagem exuberante, o resto era mistério. Neste
momento de fechar algumas ideias (na verdade, nunca se fecham), nestas considerações
finais, não poderíamos deixar de confessar como tudo começou.
O presente trabalho, estruturado em três capítulos, discutiu três questões básicas:
no capítulo 1, a escrita poética do romance e o estilo de Valter Hugo Mãe; no capítulo
2, o modelo de análise proposto por Reboul em sua Introduction à la Retorique Théorie et Pratique (1998) . Uma vez conhecidas a particularidade do estilo e as figuras
do romance, selecionamos dois excertos, por nós intitulados,
E1, “encontro-
apresentação” que desencadeia o conflito e E2, “as agressões apaixonadas”, e aplicamos
a teoria do pensador francês. Na análise do motivo central de cada excerto, percebemos
a presença da ironia, a ambiguidade, a hipérbole e o oximoro, além das figuras de
palavras que provocam o “estranhamento”, produtor de sentidos vários e de poeticidade
alcançada na tessitura verbal; no capítulo 3, a construção da tragicidade e seu
entrelaçamento com a hipérbole, ironia e humor negro, como a possibilidade de associar
elementos da tragédia antiga à narrativa do romance.
156
Nesta conclusão, cabe à pesquisadora proceder à recolha das principais noções
apresentadas ao longo do estudo. A principal questão, por nós desenvolvida, foi
privilegiar o estudo das figuras no romance. Por que falamos em figuras? Reboul
responde:
É como perguntar: por que falar? Sempre que queremos
expressar sentimentos ou ideias abstratas, recorremos às figuras.
E o filósofo, o jurista, o teólogo não escapam dela tanto quanto
o homem comum. Falar sem figuras, sim, seria o verdadeiro
desvio, provavelmente mortal.
O problema não é livrar-se das figuras – o que equivale a livrarse da linguagem; o problema é conhecê-las e compreender seu
perigoso poder, para não ser vítima dele; para tirar proveito
dele.” (REBOUL,1998, p. 137)
Fizemos eco às palavras do pesquisador, procuramos conhecer esse modo de
expressar-se para, sabedores do poder que elas possuem, termos subsídios para
interpretar o romance de Valter Hugo Mãe, escritor que soube explorar as figuras com
arte e engenho para conferir ao seu texto poeticidade e persuasão. (REBOULl, 1998)
No contexto desta pesquisa, elas foram vistas sob à luz retórico-argumentativa,
isto é, com a finalidade de convencer de algo, e também como ferramentas criativas de
prender a atenção e de intensificar, hiperbolizar o interesse do leitor pelo assunto
abordado. Entre todas as figuras vistas, o estudo nos levou a concluir que a narrativa
tem por estrutura central a ironia, muitas vezes ressaltada pela hipérbole. Esta se
constitui em forte argumento, porque dialoga com o leitor, à medida que o impacta, que
chama a atenção para o que está tratando. Lembremos que, de acordo com Fiorin, “na
hipérbole, diz-se mais para significar menos, mas, por isso mesmo, enfatiza-se o que
está sendo expresso”. Quem poderá esquecer a violência contra Ermesinda? Todas as
agressões foram construídas por meio desta figura, mais conhecida somente por
exagerar. Contudo o que ela faz é romper com a anestesia do olhar. Ao narrar de
maneira absurdamente forte a violência, o escritor chamou atenção para o fato exposto e
lançou o máximo de visibilidade e pungência na retórica do seu discurso.
A descoberta da ironia, “esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios,
inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e
Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados99”, consistiu no principal resultado
99
Machado de Assis, Teoria do Medalhão.
157
de nosso trabalho de análise, conforme dizíamos acima, passamos a considerá-la como
elemento característico de toda a obra pesquisada.
A modernidade de o remorso de baltazar serapião deve-se, em grande parte,
para nós, principalmente ao fato de Valter Hugo Mãe ter empregado, em toda a extensão
de sua obra, o procedimento irônico, para estruturar e estilizar sua obra de maneira tão
inovadora e original. Para exprimir a revolta contra a ordem social, a violência contra a
mulher, o escritor se serviu do carácter anticonformista e libertário da ironia, que
chegou, em muitos momentos, ao humor negro. Tais recursos tornaram-se um poderoso
antídoto contra os excessos e o conformismo, contra as arbitrariedades do poder
constituído que, na obra tem como representante Dom Afonso. A ironia foi o meio de
realizar um julgamento negativo diante da barbárie.
Coube-nos uma tarefa árdua para decodificá-la. Muitas vezes, tivemos de
proceder a diversas releituras para perceber, na estrutura do texto em análise, os
discursos dissonantes, isto é, reconhecer a tensão entre aparência e “realidade”.
Removemos a certeza de que o discurso pudesse significar apenas o que dizia e
colocamos em seu lugar a dúvida. Consideramos a escrita por meio da oposição,
contradição, contrariedade, incongruência ou, ainda, a incompatibilidade. O leitor de o
remorso de baltazar serapião é convocado a participar ativamente para decifrar a
narrativa que subjaz, conforme toda verdadeira literatura.
Vimos com Rosenfeld (2010, p. 14) que o trágico está ligado à categoria estética
ou ao princípio filosófico que encontram a sua expressão mais pura na tragédia. O
pensador, contudo, nos revela que o conceito ultrapassa de longe a sua concretização
específica na tragédia e pode manifestar-se também no romance, na música, nas artes
plásticas.
Sem dúvida, o trágico está presente no romance de Valter Hugo, por meio do
ciúme, que já carrega a tragicidade como possibilidade, segundo a teoria de Szondi
(2004). Consideramos Baltazar personagem trágica, seu ciúme é mais forte do que sua
razão. Seus atos tornaram-se um tormento para ele e para todos a sua volta. O trágico
em o remorso de baltazar serapião está diretamente ligado às ações100 e reações do
protagonista, principiado pelo apego excessivo em relação a Ermesinda, e a violência de
suas ações ao se imaginar traído. Baltazar está ligado ao trágico porque é movido pelo
100
Aristóteles determina que sem ação não há tragédia.(2005, p. 25).
158
ciúme, por esta paixão que o destruiu e inviabilizou os próprios sonhos como também
os de toda a família: sair da condição animal em que os colocaram.
Também como resultado da pesquisa, apontamos possíveis elementos da
tragédia clássica no romance. A começar do principal elo entre os dois: tratar de
problemas de ordem universal, referentes a todo e qualquer ser humano. Vimos que a
hybris em Baltazar foi gerada pelo contexto de insatisfação propiciado pela ordem de
dom Afonso para que Ermesinda o encontrasse todos os dias. A realização do
casamento, que concretizou o sonho de Baltazar, dá início, na verdade, a seu pesadelo,
sintetizado na sua fala: “naquele tempo o meu martírio começou” (p. 45). O clássico “e
foram felizes para sempre” não resistiu ao dia seguinte às bodas.
Em consequência da referida ordem, o protagonista passou a agir sem observar
limites e tampouco ninguém à sua volta. Neste contexto, a maldição que lhe foi lançada
pode ser metafórica, uma força tão violenta quanto a que tomou conta de Baltazar, e
única capaz de fazê-lo parar e, ao final, matá-lo. Vimos que, de fato, o protagonista
incorreu em várias falhas101, porém a que ocasionou a mais contundente reviravolta dos
acontecimentos e repercutiu diretamente no reconhecimento foi o erro de julgamento ao
pensar que poderia assumir a “educação” de Ermesinda: “autorizado para a ter só minha
e a educar à maneira das minhas fantasias”. ( p. 22)
Sabemos que a hamartia varia de acordo com os conflitos trágicos e que tais
conflitos têm em comum a inexistência de dolo no erro. Assim, em o remorso de
baltazar serapião, o erro não foi intencional, constituiu-se em, reiteramos, "erro de
julgamento" ou "erro por ignorância", e teve por consequência a desestabilização do
universo físico e psicológico, tanto de Baltazar quanto das personagens que viviam em
torno dele.
Compreendemos que a viagem empreendida por Baltazar pode ser considerada
metaforicamente como a busca do autoconhecimento: “voltar e recomeçar tanta coisa de
novo viço. seremos felizes ermesinda, trarei do reino bênção e experiência que nos
orgulhará, serás contente por mim”. (p. 109) Porém, como sabemos, a viagem foi mal
sucedida. O insucesso do autoconhecimento aproxima Baltazar do “herói”
101
Pensamos que Baltazar comete várias falhas: o desafio à mulher queimada, o relacionamento da
família com a vaca, as agressões que vitimam fatalmente Ermesinda. Podemos pensar também que o ato
original que provoca a vingança dos deuses começa com o pai Afonso Serapião, Baltazar herda uma
situação de animosidade, uma violação à ordem moral estabelecida, o relacionamento do pai com Sarga
apontada pelo povo e acreditada por Baltazar: “sabia eu que tinha de ser verdade que se pusera na sarga”
(p. 40). A duvidada ascendência de Baltazar é herança do pai que o protagonista tem que pagar qual
Édipo cuja maldição era sobre o pai, Laio.
159
contemporâneo, ser que não encontra sua identidade. Embora a narrativa se passe na
época medieval, os problemas são do homem de hoje e de sempre.
Foi possível verificar, até onde os limites desta pesquisa nos possibilitou, que há
mais chances de cometer um ato desmedido aquele que está numa situação propícia. No
caso da obra, Baltazar faz parte de uma sociedade patriarcal, na qual as mulheres são
subjugadas e se sujeitam às violências praticadas contra elas. Um ambiente medieval,
extremamente hostil que intensifica, portanto, a desmedida.
Edgar Morin, na obra Os sete saberes necessários à educação do futuro (2000),
apresenta uma interessante análise sobre a condição humana. O pensador parte da
etimologia da palavra complexo para explicar sua concepção da complexidade do
gênero humano. Diz ele que complexo vem do Latim “complexus”, que significa
“aquilo que é tecido em conjunto” (2000, p. 63). Para ele, a visão unilateral que define o
ser humano só pela racionalidade (homo sapiens) deve ser abandonada.
O ser humano é complexo e traz em si de forma bipolarizada caracteres
antagônicos. Assim, somos seres infantis, delirantes, sendo também racionais. Tudo isso
constitui o tecido propriamente humano. O homem é um ser racional e irracional, capaz
de mesura e desmesura; sujeito de uma afetividade intensa e instável, sorri, chora; é um
ser sério e calculador, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um
ser de violência e ternura, de amor e ódio. Alimenta-se de conhecimentos, mas também
de ilusões e de quimeras.
O homem não é isso ou aquilo; mas isso e aquilo. A humanização das relações
humanas é preconizada pelo grande pensador francês.
As palavras de Morin são: “Eu sujeito da complexidade humana, tenho
consciência de ter em mim, as contradições e antagonismos que existem no mundo”. (p.
55). Assim, em certas circunstâncias, determinados seres tornam-se pessoas ruins,
pessoas que torturam, pessoas que cometem crimes; mas essas mesmas pessoas, em
outras circunstâncias, não teriam desenvolvido essas potencialidades e sim outras
diferentes. O pensamento do filósofo aponta que ser consciente da complexidade
existencial é extremamente importante porque possibilita a compreensão.
Quando se julga outrem pretendendo vê-lo de uma maneira simples, na verdade,
se está mutilando tal sujeito. Ao chamar criminoso alguém que cometeu um crime,
reduz-se o agente ao crime que cometeu e desconhecem-se todos os outros aspectos de
sua pessoa.
160
Uma vez consciente dessa multiplicidade, uma vez que se saiba que, em
potencial, o homem tem em si as coisas mais nobres, as mais belas, os sacrifícios, as
devoções, e também, ao mesmo tempo, as coisas mais mesquinhas, as mais maldosas, a
capacidade de torturar, até psicologicamente, ou desejos de morte que se podem
realizar, passa-se então a compreender a complexidade humana.
Com estas considerações de Morin, queremos dizer que Baltazar é uma
personagem complexa, na acepção do pensador francês (apontado na págima 143 desta
dissertação), humano e trágico.
Os homens são destinados a errar, envelhecer, morrer. A hamartía é marca
demasiado humana. O divino nunca conhecerá o erro, o fracasso, a dor ou o sofrimento
porque jamais cometerá uma hamartía.
Há ainda uma última questão referente ao romance, que gostaríamos de levantar
nestas considerações finais. Trata-se do seu título, especificamente o termo remorso.
Muito nos intrigou a escolha do sentimento conferido ao protagonista no título - o
remorso de baltazar serapião - e o que realmente vem a acontecer no conflito trágico de
que trata a obra. Como sempre fazemos, iniciamos a investigação por meio do
dicionário.
A palavra remorso102 tem origem latina, vem de remorsus, particípio passado de
remordere, que significa morder de novo, remorder. Liga-se, portanto, a afligir,
atormentar. A própria etimologia da palavra já nos dá a ideia de como esse sentimento é
doloroso e da angústia que o acompanha. Isso vem da consciência de se ter agido mal.
Remorso é a reprovação da consciência que sente haver cometido uma falta. conforme
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Remorso chega a ser repetido em diversas ocasiões ao longo da narrativa: “tão
louco de paixão estava tão grande amor lhe tinha, não poderia matá-la, de outro modo
acabaria também de remorsos. (p. 53, cap. sete); “quase senti remorsos pela firmeza
da minha bondade,” (p.190, cap. vinte e sete); “sim, poderia sentir remorso pela
competência tão apurada usada na educação da minha mulher,” (p. 190, cap. vinte sete);
“por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno, poderia sentir remorso”
(p. 190, cap. vinte e sete); “poderia sentir remorso naquele instante, (p. 190, cap. vinte
e sete); talvez magoados de remorso mas profundamente satisfeitos de meias pernas
(p.191, cap. vinte e sete); eu sentiria até ali o remorso dos bons homens (p.193, cap.
102
De acordo com Dicionário de Latim – Português, Porto Editora, 3ª Edição, SP.
161
vinte oito); “remorso duro de tão dignamente administrar a educação da minha
ermesinda. ( p. 193, cap. vinte e oito); o remorso dos bons homens já não me assistia,
senão só a burrice e ignorância de quem abdicara da sua mulher. ( p. 193, cap. vinte e
oito).
Podemos considerar o remorso como um tipo de sanção ao descumprimento de
uma norma. Se o desrespeito afeta o ordenamento jurídico, ao qual todos os membros
da sociedade estão subordinados, existe a coação. Por exemplo, o Código Penal
prescreve em seu artigo 121: Matar alguém, pena: reclusão de 6 a 20 anos. Descumprido
este ordenamento jurídico, o indivíduo está sujeito à sanção que é garantida pela força,
pela coação do Estado.
De outra ordem, porém, é a norma moral, a que nos interessa aqui, ela se
constitui em um conjunto de preceitos que o homem descobre na sua consciência e que
o fazem distinguir o bem do mal, o certo do errado, o justo do injusto e o impelem a
praticar o bem e a evitar o mal. Não há coercitividade, isto é, ninguém é privado da
liberdade ao desobedecê-la. Obriga a todos os homens tal qual a lei jurídica, por
exemplo, prescreve-lhes o respeito à vida e à propriedade alheia, proíbe o assassinato e
o roubo. Mas obriga em consciência, isto é, quando o indivíduo a cumpre, sente a
satisfação do dever cumprido; quando a transgride, mesmo que às ocultas, sente
remorsos.
A lei moral pode supor um legislador que atenda às seguintes três condições: que
seja superior ao homem, que possa obrigar a todos e que lhes possa ler na consciência.
A este legislador, muitos chamam Deus. (MONTEIRO, 2009)
Não entendemos aqui consciência no sentido de consciência psicológica,
entendemo-la em seu sentido explícitamente moral: consciência é um juízo ou ditame
do entendimento prático, que qualifica a bondade ou a malícia de um ato praticado ou
por praticar.103 O julgamento é pela consciência do homem, e a sanção é traduzida pelo
remorso, porém sem coerção.
À sanção que no direito é imposta pelo Poder Público para constranger os
indivíduos à observância da norma, corresponde, no direito natural ou moral, à
consciência de cada um. Como se houvesse um tribunal interno, diante do qual não se
pode escapar, não se pode mentir, não há testemunha, nem circunstâncias atenuantes,
103
In PÉREZ, Rafael Gómez. Deontología Jurídica. Pamplona: EUNSA, 1999, p.42.
162
nem advogado de defesa. Talvez esta seja a primeira punição do culpado: não poder
absolver-se em seu próprio tribunal104.
Com o objetivo de alargar o entendimento sobre o remorso, trouxemos o ponto
de vista científico, a partir das explicações do jurista Washington de Barros Monteiro.
(2009). Da pesquisa, depreende-se que o remorso é um sentimento cáustico, uma
punição imposta pela consciência a quem pratica um ato reprovável segundo um código
caro ao sujeito.
De volta ao romance, o protagonista, no final do capítulo vinte e sete e capítulo
vinte e oito, levanta a possibilidade de sentir remorso, mas não a efetivação do
sentimento. Sua esposa está sendo vítima, diante dele, de sucessivos estupros praticados
pelo irmão, Aldegundes, e pelo amigo, Dagoberto. Este momento torna-se epifânico
para Baltazar. Até ali ele pensara que tinha conduzido com perfeição a educação de sua
esposa “tão grande o orgulho de a ter salvo” e “tão grande inteligência com que
administrei a minha ermesinda”.
Mas, a partir do que vê, percebe que falhara:
eu sentiria até ali o remorso dos bons homens. como havia
pensado, remorso duro de tão dignamente administrar a
educação da minha ermesinda. (p. 193, grifos nossos).
Somos, como leitores, surpreendidos: não houve o remorso de Baltazar
Serapião! Ele “sentiria”, mas não sentiu. Parece-nos que o tempo verbal é bastante
elucidativo: o futuro do pretérito: “acabaria”, “poderia”,“poderia”,“poderia” (três
repetições) e “sentiria”. O remorso, na acepção da palavra, conforme analisado, está
alicerçado em um valor humano, de solidariedade, ética, amor, paz etc. O sentimento de
Baltazar não é dessa ordem. A conscientização apontada por ele se refere à educação da
esposa. Ele falhou no “adestramento” de Ermesinda, tarefa pela qual se sentia
responsável, e não, em reconhecer a brutalidade ou os erros que cometeu. Não há busca
de qualquer forma de remissão ou de redenção de seus atos.
Não pode passar despercebida, no final do último capítulo, a inversão de papéis:
reafirma-se105 a animalização dos homens, inclusive de Baltazar, e a humanização da
Sarga. “ talvez alertado por um mugido da sarga que me chamou” (p. 191), “apercebi104
“A primeira punição do culpado é não poder absolver-se do seu próprio tribunal.”Juvenal. Disponível
em site www.pensador.uol.com.br, 23 de abril de 2012.
105
Conforme afirmamos no capítulo I, item 1.2.5, p. 36/37.
163
me do mugido súbito da sarga por coisa que na noite rondou a sua calma” (p. 193), “e
mais a sarga se inquietava, mais a ermesinda se bulia debaixo deles” (p. 193), “a sarga
estava diferente”, (p. 194), “a sarga mugiu de modo lancinante” (p. 194), “coisa que
dava à sarga era proporcional à coisa que lhe dava também” (à Ermesinda) (p. 194).
Quando falávamos acima que o remorso é uma punição imposta pela consciência
a quem infringe um código caro ao sujeito, lembramos que ser violento resulta em uma
condição normal ao mundo-cão retratado no romance. Daí a violência produzir
resultados diferentes dos que esperamos na dimensão humana e sociológica em que nos
pautamos. Relembremos uma passagem do romance que comprova nossa perspectiva.
Em mais uma agressão apaixonada à mulher, após arrancar-lhe um olho, Baltazar, sem
nenhuma nota de culpa, sem remorso, propõe-lhe um curativo:
fiz eu coisa que me ocorreu, trocar olho por terra, buraco onde o deitei
trouxe punhado para dentro e lhe enchi cara com ela, que lhe
absorvesse sangue e porcaria saindo, e secasse tanto quanto pudesse a
abertura tão grande. (p. 108).
Em mais um momento de extrema violência como este da narrativa supracitada,
Baltazar não a reconhece como um ato cruel. Ele se sente legitimado, por um lado, pelos
seus iguais e, por outro, pelo amor que reafirma a todo o momento, daí oprime tão
amorosamente Ermesinda.
Aceitando que remorso é sentido por quem ganha consciência de algo, que
resulta em um exercício de lucidez que leva à observação dos próprios atos, para que
entenda quem é, como ser, o que faz e, sobretudo, o que pode fazer melhor, o título da
obra causa estranhamento. Por outro lado, ao ser destacado no título, o escritor jogou
luz sobre o sentimento. Surpreso, ao terminar de ler o romance, o leitor percebe que a
expectativa que criou ao iniciar a leitura não foi validada. Com certeza, até a maneira de
pronunciar o título fica alterada ao conhecer a narrativa. Um romance que surpreende do
começo a depois do fim, isto porque obriga o leitor a voltar ao título para ressignificálo: não houve remorso, o tom irônico começa pelo título. Este reflete e sintetiza o
retratado na história: para um mundo sem perspectiva, carente de sentido e de
esperança, resta ao sujeito olhá-lo de viés “com a pena da galhofa e a tinta do
inconformismo”. (ASSIS, 1992).
164
Além de ser o título do romance, o remorso está na epígrafe da obra.
Ressaltamos que todos os cinco romances escritos por Valter Hugo Mãe trazem
epígrafes106 e, invariavelmente, são versos.
Consideramos a epígrafe, do grego graphein, inscrição, um pré-texto que serve
de bandeira ao texto principal, por resumir de forma exemplar o pensamento do autor.
Ela tem, pois, a função de um lema ou de uma divisa. O autor pode optar por colocá-la
em página isolada, antes do corpo principal do texto, servindo de abertura solene do
livro, também pode ocorrer logo abaixo do título de um livro, ou ainda à entrada de um
discurso, capítulo de obra extensa ou composição poética. A epígrafe pode ser assumida
como parte ativa do texto, sendo um ponto de partida de discussão.
No romance analisado, ela aparece em página isolada, antes do corpo principal
do texto, servindo de abertura solene do livro, logo após o título e remete ao poema de
Jorge Melícias, retirado do livro Iniciação ao Remorso, publicado em 1998. Conforme
transcrição abaixo:
há boca pisada de pedras,
e o remorso
é uma parede mordida pelo eco.
Observamos que, especificamente, os três primeiros versos do poema107 de Jorge
Melícias, relacionam-se com a obra de Valter Hugo Mãe. Ambos tratam do remorso. O
poema, de maneira metafórica, condensada, associa boca pisada de pedras a uma boca
que foi silenciada, duramente silenciada; "pisada" acentua o sentido de algo que foi
calado com o uso da força, intensificado mais ainda com o complemento “de pedras",
estas emprestam mais dureza ao ato de calar. A metáfora "o remorso é uma parede"
indica o sentido de divisão provocado pelo remorso108; uma parede é sempre um
106
Epígrafes dos romances de Valter Hugo Mãe: Primeiro romance: o nosso reino: Tu és o herdeiro.
Filhos são herdeiros, pois que os pais morrem. Filhos estão e florescem. Tu és o herdeiro. Rainer Maria
Rilke, O Livro de Horas. Segundo romance: o remorso de baltazar serapião: há a boca pisada de pedras,
e o remorso/ é uma parede mordida pelo eco. Jorge melícias, Iniciação ao remorso. Terceiro romance:
Apocalipse dos Trabalhadores: Deus é a nossa mulher-a-dias. Adília Lopes. Quarto romance: a máquina
de fazer espanhóis. Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em
mim todos os sonhos do mundo. Álvaro de Campos, Tabacaria. Quinto romance: O Filho de Mil Homens.
The pact Sharon Olds.
107
Poema completo: Há a boca pisada de pedras, /e o remorso/é uma parede mordida pelo eco. A mulher
fechou-se no quarto/com a noite entre as mãos./Está funda na casa./Mas partidas todas as lâmpadas/a
cegueira é ainda uma forma de ver. Acessível em: poesiaseprosas.no.sapo.pt
165
obstáculo, mas também é algo que contém alguma coisa - contém no sentido de conter,
de represar. Essa parede, porém, está "mordida pelo eco" - o verbo morder remete
novamente à boca (aquela, pisada de pedras e silenciada); apesar de calada, essa boca
"morde" a consciência do agressor fazendo com que a lembrança do ato cometido seja
"revivido", ou seja, ressoe, ecoe na consciência.
A epígrafe relaciona-se estreitamente com a obra, assim “a boca pisada de
pedras” sugere o que aconteceu a Ermesinda. Antes do casamento era uma moça feliz,
linda, comunicativa. Durante o casamento com Baltazar, ela foi vítima de assombrosas
violências físicas e morais. À medida que as agressões aconteciam, a voz de Ermesinda
ia se calando até chegar, nos últimos capítulos, ao completo silêncio, à mudez. Esse
recurso serve de metáfora à condição da mulher na narrativa, um ser sem voz. Mas
interessante também se pensar que há dois sentidos para voz no romance: literal e
figurado, “uma mulher sem voz”, refere-se à manifestação que lhe é negada como
cidadã, sentido figurado; o sentido denotativo é empregado quando realmente
Ermesinda fica sem a voz: muda.
dá-me uma palavra só, uma palavra que te comprometa comigo e com
a educação que te devo dar. e só te quero dar amor, ermesinda. e ela
nada, calada de mudez tal que foi o dagoberto quem disse, a essa
tiraste o dom da fala. é uma mulher sem voz. (p. 189, grifos nossos)
dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés,
delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me
impressionava. (p. 46, grifos nossos)
e ela ficou perto, nós afastados só observando a sua imobilidade e
escutando a sua mudez, (p. 188, grifos nossos)
A boca da esposa de Baltazar foi “pisada”, o verso sugere o uso da força. “De
pedra”, o complemento escolhido para pisada, ressalta ao máximo a violência
empregada para silenciá-la que no final, conforme trecho acima, emudece
completamente.
Os dois versos ficam ainda mais expressivos pelo ritmo marcado com o emprego
das consoantes oclusivas, bilabiais, sonora e, sua homorgânica, surda: boca pisada de
pedra. A consoante p, repetida, marca a aliteração, sugerindo a pisada. Este recurso
estilístico foi frequentemente empregado por Valter Hugo Mãe no seu romance.
166
Conforme demonstramos, no capítulo um, o escritor buscou os efeitos de musicalidade
para sua prosa, característica que a aproxima da poesia da epígrafe que escolheu.
A sequência do verso de Melícias diz:
e o remorso / é uma parede mordida pelo eco.
A boca de Ermesinda foi calada brutalmente, porém, apesar de silenciada, esta
boca “morde” a consciência do autor da agressão, Baltazar. Em “e o remorso é uma
parede mordida pelo eco”, há uma metáfora, figura cara ao romance; no poema, pode
ser equivalente a reverberar, a lembrança reverbera.
A epígrafe da obra é um poema, a obra, um romance. Existe entre os dois uma
consonância não só de tema, mas também de elaboração linguística. Os recursos
estilísticos empregados no poema de Jorge Melícias, tais como aliteração, metáforas,
sonoridades, são amplamente usados no romance. A fronteira entre os gêneros se dilui e
os dois textos dialogam e se complementam.
O remorso de baltazar serapião expressa o absurdo com o absurdo, verificamos
da leitura do romance que a negatividade o perpassa em toda a sua extensão e
interioridade. A negatividade registrada pelo uso abundante dos prefixos des-,
associados a palavras que usualmente não apresentam essa prefixação (despalavrada,
desnatural, desfeitar, desvoados, desajeito); ou pelo prefixo in-, associados a palavras
para marcar a negação (incumprida, incerteza, incapaz, incompleto, infeliz, inválida,
infortúnio,
infidelidade,
incompreendido,
insatisfação,
inútil,
insuportável,
indelicadeza), pelo emprego reiterado do advérbio “não” (601 vezes), da conjunção
“nem” (202 vezes), do pronome “nada” (280 vezes) e, fundamentalmente dos densos
pensamentos de Baltazar “estaríamos destinados a desaparecer dali e de todos os
lugares, para onde não existisse ninguém e, o mais certo, onde não existisse nada” (p.
7).
A desesperança permeia a obra. É possível pensar que o pessimismo na visão de
mundo do escritor esteja ligado à questão central do texto, a violência, que não se
restringe à época, tampouco à cultura. A visão dura sobre a humanidade faz parte do
perfil de Valter Hugo Mãe, considerada toda sua obra. Uma cosmovisão pessimista,
aliada a uma admirável competência técnica. Não por acaso, ele tornou-se um dos
escritores portugueses mais prestigiados109 da atualidade, consegue prender a atenção e
o interesse do leitor mesmo tratando de tema denso e extremamente violento.
109
Valter Hugo Mãe foi descrito pelo júri do Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura, do qual foi
o grande vencedor em 2012, como o autor que contribui para a compreensão de “ser português na
167
Valter Hugo Mãe, por meio de uma linguagem poética, proverbial, carregada de
neologismos, oralidade, termos eruditos e inversões frasais, recriou literariamente um
universo marcado pela hostilidade e violência. A obra é de grande expressividade e
originalidade porque o escritor a elaborou por meio de um forte processo de
revitalização da linguagem em que as marcas de uso praticamente desaparecem, o que
causa um grande estranhamento no leitor que, encantado, é “fisgado” do começo ao fim
da narrativa, tanto por lhe parecer que as palavras estão nascendo no momento em que
estão sendo lidas, tão limpas do uso se apresentam, quanto por participar da tensa
reflexão sobre a angústia da penosa caminhada da existência humana.
Por fim, ressaltamos que o remorso de baltazar serapião fornece elementos para
pesquisa sobre muitos temas e em diversas áreas do conhecimento: na psicologia,
sociologia, antropologia, na área jurídica, jornalística, para citar algumas. No âmbito
literário, podemos apontar um estudo comparativo entre a obra Otelo, de Shakespeare e
Dom Casmurro, de Machado de Assis, já que o ciúme é uma questão central do
romance analisado.
Com o desejo de que esta pesquisa, sempre inacabada, colabore para outras
reflexões e se constitua num elo, por mais singelo que seja, na grande cadeia da
pesquisa acadêmica, colocamos o sempre adiado ponto final.
contemporaneidade”. O escritor representou Portugal com a obra a máquina de fazer espanhóis
(Cosac&Naif). Fonte (Jornal O Globo, 29 de novembro de 2012).
168
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172
ANEXOS
_____________________________________________________________________________
173
São Pancrácio
O santo é citado no romance por Baltazar ao escolher o dia do casamento.
Na pesquisa, verificamos que 12 de maio é data de aniversário da morte de
São Pancrácio, jovem mártir decapitado em 304 d. C. em Roma, por ordem
do imperador Diocleciano.
Site www.saopancracio.com.br.
O casamento de Ermesinda e Baltazar foi realizado, portanto e 12 de maio.
Repetição
NADA: 280 (duzentas e oitentas vezes)
a fazer nada senão comer erva. (p. 11) nada éramos os serapião, (p. 12)
174
e mais do que isso, nada. (p. 15) não se ouviu mais nada. (p.15)
sem serventia nem mais nada. (p.15) vinham as mamas tardava nada. (p. 18)
mas às raparigas nada lhes dava o ócio (p. 18) tão parecidas com estarem a fazer nada,
(p. 18)
mas nada para que eu contribuísse,(p. 21) saía ligeiro a pensar em mais nada. (p. 22)
sem abrir os olhos dos pés, calada sem nada, (p. 22) mas nada era explícito, (p. 24)
mas nada mais podíamos (p. 24) nada mais faltava fazer (p. 25)
já não me parece nada (p. 27) não haveria de ser nada de insólito (p. 27)
não queria mais nada senão esses ocasionais momentos (p. 27)
aflita só com instintos e mais nada. (p. 28) mas nada de ter uma vaca (p. 29)
nada para que nos aquecesse a casa (p. 29) mais nada se intrometeria na administração
tão correcta de um casamento. (p. 32) solteira de noivos e maridos mas nada de
castidades. (p. 32) ele não me contava nada (p. 33)
nada mais lhe seria autorizado, (p. 35) e a nada mais se candidatava (p. 35)
mas nada lhe alterou o sobrolho (p. 35) nada que o senhor santiago lhe dissera (p. 35)
nada que eu visse, estava como recatada de sempre (p. 35) a consolar-se de quase nada
(p. 36) para quase nada poder comprar (p. 38) nada mais pediríamos (p. 38)
não pode vir nada, gritava o senhor santiago, (p. 40) nada, como arranjou estes filhos
(p. 40) acorrer ali para nada mais. (p. 41) nada se apoquentava com nosso acto (p. 42)
nada do que temos esta noite (p. 43) pedir maior cuidado ou carinho. nada. e o lençol
sujou-se de sangue (p. 43) não percas nada. (p. 43) mas nada da boca da ermesinda (p.
46). nada parecia diferenciar (p. 46) nada saber e saber apenas (p. 46)
continuação de instruções já dadas. mais nada. (p. 46) não acontecia mais nada. (p. 46)
para que nada avisse ou ouvisse (p. 46) cabeça pesada, nada. (p. 46)
nada parecia acusá-lo de comer a rapariga. (p. 46) teodolindo posto em cuidado nada
me dizia (p. 47) mas não ouvia nada (p. 47)
um tropeço no chão ou arrastar de uma cadeira. mas nada. (p. 47) nada se ouvia
porque nada devia estar a acontecer (p. 47) coisas inclusive nada complicadas (p. 48)
nada do que te disser deve ser posto em causa (p. 48) o aldegundes já nada dizia (p. 48)
mas vinha sem nada. (p. 48) não sentia nada lá dentro (p. 48)
por dentro nada se sente (p. 49) como se nada tivesse lá dentro (p. 49)
e nada soube, que o marido tão ligeiro calou empregadagem (p. 53) nada mandando a
conhecimento meu, (p. 54) nada diferia do que a vida devia ser. (p. 54)
por isso nada fiz que (p. 54) e nada mais era som de sua boca (p. 54)
e nada do que fizesse seria honra (p. 57) sem andar direito, sem nada (p. 58)
nada de costas, como assim lhe dava prazer (p. 58) mas nada tinha importância (p.
58) tão igual que nada a tivesse mudado, (p. 59) nada me parecia o mesmo,(p. 59)
nada de inteligências, dizia eu (p. 60) recolhíamos a casa para nada (p. 64)
nada do que o movesse era fruto da comida, (p. 65) ela não disse nada (p. 65)
nada se notaria na manhã seguinte (p. 65) nada desfeada, apenas mais confusa (p. 65)
me deixava furioso que nada houvesse para fazer (p. 67) não é nada, só corei (p. 71)
mas nada sei, (p. 71) eu endireito não tarda nada (p. 71)
que lhe diga eu que nada sei (p. 72) nada me parece fugir aos seus mandos, (p.72)
nada que me solicite segredo (p.72) nada se passaria (p. 73) mas nada parecia dizer
(p.73) nada que garantisse, (p.73) nada, não se via (p.73) nada queria daquela história,
(p.73) nada, não sabia de nada, (p.73) nada que fosse impossível (p.73)
nada a salvaria (p.74) nada do que dizia, (p.74)
nada surgiria, (p.74) nada se fizesse seria decisão deles, (p.74)
nada conseguida de alcançá-lo, (p.75) nada importado (p.75) nada lhe recuou (p.75)
175
nada lhe importava (p.77) apenas nada (p. 78) não vimos nada, (p.78)
e mais nada (p. 78) nada aqui me parece natural (p.78)
nada me parece natural (p.78) não ver mais nada (p.78) não peças nada (p.78)
nada sei que te possa ajudar (p.79) nada do que quisesse (p. 79)
dizendo nada (p. 79) nada natural (p. 80) nada era normal (p. 80)
nada quiseram (p.80) nada para expurgar (p.81) nada do que sofrêssemos, (p.81)
nada do que façamos (p.82) bulia-se pouco ou nada (p.83) nada será reconvertido
(p.86) mas não era nada disso, (p. 86) mata nada (p. 86) nada me libertava (p. 87)
nada me dizia a minha amada, (p.87) nada de sinal tempo, (p. 89) mas nada em
prejuízo (p. 89) nada de entradas, (p.90) nada de vacas (p.90)
nada mais surpreendente (p.93) matá-la de mais nada (p.94)
nada tenho que vos caiba (p.94) nada, só a autorização para vir perto, estar perto (p.94)
valia nenhuma, nada (p.95) nada baixou (p.96) nada de flor alguma (p.96)
ermesinda nada disse (p.96) nada, não me procura (p.96) ouviste nada, (p.97)
não ouviste nada (p.97) percebiam nada (p.97) nada te reconhecerás (p.97)
quase nada vinha (p. 99) não quero nada disto (p. 99) que tem a sarga consigo,
perguntei, nada, (p. 101) el-rei nada nos traria (p. 102) tardaria nada (p. 103)
nada podemos descurar (p.105) tinha nada connosco (p.105)
nada de mais ninguém (p. 107) para nada de morrer (p. 107)
nada mais que te interesse (p.107) nada quero saber (p.107)
nada, vai-te embora daqui (p.107) resto disto só mais nada, (p.107)
nada o deixei ver (p. 108) volto não tarda nada. (p.108)
nada pode fazer (p. 109) nada normal (p. 110) nada quero (p.110) resto disso nada (p.
110) nada que não fosse só ervas (p.112) nada tenho com o diabo (p. 112)
agora nada te será fácil (p. 112) nada tenho para trás (p. 112)
nada que seja tão seguro (p. 113) nada que te interesse (p.113)
nada dissemos (p.113) nada discreta (p.115)
respondi, nada.( p. 115) nada de caminho mais longo (p.115)
nada senão sono (p. 115) nada de maior suspeita (p.115)
me disse nada (p.117) nada de bonito (p.118)
nada abalado (p.119) não tarda nada, (p.119)
nada, é um disparate (p. 119) nada que não tivesse (p.120)
nada de ninguém (p.120) tarda nada (p.120)
para mais nada (p.120) só lua a ver quase nada (p.121)
e nos sinta nada (p.121) nada de ficar (p.121)
calor nada parado (p.122) nada possível (p. 122)
nada disso (p.122) nada se escurece (p.125)
moeda de prata ou nada (p.126) água da chuva, nada mais (p.128)
nada vos quer el-rei (p.128) nada do que aconteça (p.128)
tarda nada (p.129) nada de toda a verdade (p. 129)
inferno não tarda nada (p.131) ao orgasmo, nada mais (p. 131)
nada que me magoe (p. 131) nada dissemos (p. 137)
nada compreendo (p. 137) ela nada fez (p. 138)
não fez mais nada (p. 138) nada nos consolava (p. 141)
nada nos restar senão morrer (p. 142) o aldegundes, vez em quando, abria os olhos e
perguntava, o que vai ser de nós. e eu dizia, nada. (p.143)
nada novo se deu (p. 143) nada para pagamento (p. 143)
trazíamos nada (p. 143) como se nada me revoltasse (p. 143)
nada masculino (p. 144) e o dagoberto disse-me, que vai ser de ti. e eu respondi, nada.
(p.144) nada me pareceu bem (p. 144) nem nada se ouvira (p. 144)
176
nada podíamos (p. 145) nada do que soubesse (p. 145)
não via mais nada (p. 145) queria mais nada (p. 145)
nada sabia (p. 146) não escutámos nada (p. 146)
mais nada (p. 148) tarda nada (p. 149)
nada deveis temer (p. 149)m as nada (p. 149)
nada arredado de casa (p. 149) nada de sair de casa (p. 149)
nada se passa (p. 149) mas nada verdade (p.150)
ali nos pusemos, calados, à espera de nada. p. 154
nada me dá ganas (p. 155) não fazia nada (p. 155)
ajuda de mais nada (p. 156) não passa nada (p. 156)
mais nada (p. 157) nada se magoava (p. 157)
nada mais fará (p. 157) nada tivesse importância (p.157)
nada fosse esperado (p. 157) nada se viam (p.158)
tardava nada (p. 158) estaríamos destinados a desaparecer dali e de todos os lugares ,
para onde não existisse ninguém e, o mais certo, onde não existisse nada. p. 158
nada de outro feitiço (p. 159) à partida, nada (p. 159)
nada convencido (p. 159) nada poderia salvar-nos (p. 160)
nada os vai matar (p. 160) nada feito (p. 160)
nada lhe impressionava (p.161) nada parecia abalá-lo (p.161)
nada estivesse (p. 161) maldição e mais nada (p. 161)
recomendou nada mais (p.161) nada tenho (p. 161)
sem nada (p. 162) nada podido de evitar (p. 163)
nada se via (p. 163) nada mais entenderia (p. 163)
devia poder nada (p. 164) esperar e mais nada (p. 167)
para mais nada (p. 169) sem mais nada (p. 169)
nada mais parecia interessar (p. 169) sem mais nada (p. 170)
nada do que esperávamos (p. 171) aconteceu, nada (p. 171)
e nada disso (p. 171) não tínhamos nada (p.171)
mas nada (p. 172) mas nada do que te diga (p. 173)
se mais nada nos dissesse (p. 176) nem me disse nada (p. 178)
nem disse nada (p. 178) nem disse nada (p. 178)
desonra e mais nada (p. 178) nada que desaparecesse (p. 181)
nada mais senão ervas (p. 181) normalidade e mais nada (p.182)
que não queria nada (p. 182) de nada querer (p. 183)
nada de bichos lhe viriam à satisfação (p. 183) atitudes bestiais, mais nada, (p. 183)
nada penses (p. 183) fazer nada (p. 184)
nada dias inteiros (p. 184) sarga nada (p. 184)
nada de braços (p. 185) nada de bufar (p. 185)
sem chuva ou vento, nada (p.185) nada fora à luz de lua (p. 186)
por semelhança, e mais nada (p. 187) escutando nada (p. 187)
se nada me contas (p. 188) dizes mais nada (p. 188)
não dizia nada (p. 188) e ela nada, calada de mudez (p. 189)
meio de nada (p. 189) nada que se mude (p. 189)
um homem e nada mais (p. 190) mais nada ali estivesse (p. 194).
NÃO: 601 (seiscentas e uma vezes)
nós não dormíamos,(p.12);só algumas é que não (p.12); e não entendiam muito bem
(p.12); não fazia mal (p. 12); e ele não reparava (p.12); quem não tinha do que se
honrar (p. 13); não tinha nem uma (p.14); queria muito não demorar (p.15) e não se
177
ouviu mais nada (p.15); a minha mãe não discernia (p. 17); para não estragar os filhos
(p.17); também para não espalhar (p.17); para se vingarem de não terem razão (p.18); e
não quisesse acatar (p.18); obrigava que não ouvíssemos (p.19); o tronco não se
fortalecesse (p.20); já não lhe oferecia (p.20); para que não se desapercebessem (p.21);
sem notícia que não a do segredo (p.21); lhe diríamos que não (p.21); não fosse ver à
janela (p.23); não se abeirassem para deitar (p.23); e tão cedo não se acusaria (p.23);
algo que não se encontrava (p.23); não me era permitido (p.25); não ia eu embora
(p.25); não lhe trazia som à boca (p.25); não eram muito iguais (p.26); talvez não fosse
estranho (p.26 ); não menos do que eu (p.26); não lhe permitiam estratégias (p.26); não
te faças burro (p.26); não sejas parvo, (p.27);aquilo não é amor (p.27); não me parece
nada (p.27); não haveria de ser nada (p.27); não queria mais nada (p.27); não era
mentira nem conversa (p.); não dava para grandes pensamentos (p.28); não podia
deixar de pensar (p.29); não saísse com água (p.31); pena não poder fazê-lo (p.31); não
haveria de ser mal obediente (p.32); se o senhor sarga não ficar quieto (p.32); não lhe
valeria corrida alguma(p.32); ele não estava pelos animais(p.32); suficiente que não
morresse,(p.32); mais do que isso ele não fazia (p.32); , não se apanham chatos (p.32);
para que não fossem uma gravidez (p.32); e não era (p.32);e não quis falar com
ninguém(p.33); se não nos batíamos por que engordasse (p.33); não fosse perpetuar
(p.33); ele não me contava nada (p.33); para não imprimir uma dor logo (p.33); e não
quisesse que a rapariga soubesse (p.34); a discrição do mando dos seus pais não
acusava (p.35); num dia não vigiada (p.36); nas coisas do coração não entravam
substituições (p.36); não seria algo de mais vê-lo (p.36) quase nada que não lhe viesse
(p.36); não haveria sentido nenhum (p.36); jurou-me que não o fizera(p.36); só porque
já não era tão criança (p.37); não vá enxotar-te sem paciência(p.37); já não era isso
(p.37); não fosse ele saber (p.37);mas da vaca eu não imaginaria(p.37); não fosse
abater-se a qualquer momento(p.38); não refilarmos do que viesse(p.38); não acusava
mais vida (p.38); não lhe daria problemas a solidão(p.38); já não acudiria meu espírito
(p.38); não ser notado na observação(p.39); não foi por conhecê-lo (p.39); deus não me
deu mais filhos (p.39); não fosse estragar o mundo(p.40); não pode vir nada, gritava
(p.40); não acredito nessas coisas (p.40); não poria em cima da minha filha (p.40); não
dá filhos ter prazer (p.40); não serve de paulada alguma (p.40); não havia muito não
que fosse destituído de prazer mais buracos (p.41); não tinham disposição de
entender(p.);não tinham disposição de entender(p.42); a cerimónia não teve grande
ciência(p.42); não estivesse a disfarçar o espaço(p.42);não fosse viver um amor
estouvado(p.42); não fosse o meu pai (p. 42); não sejas burro aldegundes(p.42); meu
pai não foi a vê-la (p.43); não se inteirou do coberto (p.43); não queria nem fogo
(p.43); não é feita mulher pelas dores(p.43); não que fosse destituído de prazer(p.43);
não percas nada(p.43); não voltas a ter tamanha felicidade(p.44); não a tivesse desfeito
em postas(p.45); não acontecia mais nada (p.46);olhos não abertos dos pés(p.46); não
era suficiente(p.46); não saía de lá a arfar(p.46); não conhecia as regras(p.47); não
ouvia nada para lá da porta(p.47); não lhe parecia ser real(p.47); não fosse bruto com
ela(p.47); não quisesse que ele lhe entortasse(p.47);como não pretender(p.48);não me
encomar nunca (p.48);não foi porque não a amasse(p.48); não se levantava para
acalmar a sarga(p.48); não sentia nada(p.48);não fosse de lá estar(p.48); mas não podia
ser(p.49); não podia emprenhar com ele(p.49); não sabias conter essa
vontade(p.51);não me iludas(p.51);não era coisa de aguentar(p.52); para não se
esquecer(p.52); não é boi (p.52);todo o dia ela não veio(p.52); não pareceriam
naturais(p.52); ainda não encontrámos(p.52); algo que não ouvi(p.53); um homem que
não eu(p.53); não poderia matá-la(p.53); não o tivesses feito(p.53);não percebera
(p.54);se não morrera(p.54);não lhe vinha a maleita de natureza(p.55); não encontrou
178
caminho(p.55); não queria imaginar(p.55); não tardaria muito(p.55);que não o meu
pai(p.55); comudo ou não(p.57); não abaixo da terra(p.57); a teresa diaba já não era
filha de ninguém(p.57); já não era filha de ninguém(p.57);como vingou não se
imagina(p.58); não levas uma pedrada(p.58); não lhe tivesse crescido(p.58); mas não
por deus mas não por deus(p.58); que não deveria nunca parecer-lhe bela (p.59);e não
estava(p.59);mas não era (p.59);por não ser possível(p.59);por não ser possível(p.59); ,
não fosse morrer de tripas(p.60); não podes chamar vaca à minha mãe(p.60);eu não
queria(p.60); não mostrar ao ar(p.60); não nos chamava(p.61); para não acordar dona
catarina(p.61); não tens mais do que lhe pedir misericórdia(p.62); não sei,
baltazar(p.62); não pode gritar pulmões livres(p.62); não era para grandes
proezas(p.62); honrado como é não o merece(p.63); que não queria conhecer(p.62); não
te bateu(p.63);e eu respondi, não(p.63); não se tratava de instruções(p.63); eu não lhe
ensinara(p.64); não a minha esposa(p.64); não para traições(p.64); se eu não a
amasse(p.64); se não tivesse de viver(p.64); homem que não se alimente(p.65);
estômago não se adia(p.64); boca não se falta(p.64); ela não disse nada(p.64); braço
direito que não lhe descia(p.64); mal educada e não preparada para o casamento(p.64);
as ideias se baralhassem e não tivessem(p.67); não é fácil assim(p.67); teodolindo não
crescera a tempo de herdar(p.68); não ter alguém(p.68); não verterem dali(p.68); não
se perderem de asseio(p.69);não precisava de mais correcção(p.69); não pode ser
prevenido(p.69);achas que isso não pode ser prevenido(p.69);eu respondi, não(p.69);
não me obrigue(p.71); não lhe consigo massajar(p.71); não é nada (p.71); já não é
normalidade(p.71); se não falas perdes(p.71); não insista da minha ignorância(p.71);
não tarda (p.72);não arredas daqui tão cedo(p.72); não tarda nada(p.72);não, tu
ficas(p.72);não me bata (p.72); não, dona catarina(p.72);eu não queria (p.72);a
conversa não é contigo(p.72);não sei(p.72);não há(p.72);não sei(p.72); não me
venham(p.72);não se exalte(p.72);não me tenhas dito(p.73); não pares de me limpar os
pés(p.73); não sabia(p.73);não era ouvido(p.73); não se via nem ouvia nada(p.73); não
sabia de nada(p.73); não menosprezar a minha autoridade(p.73); o padre que não
soubesse(p.74); não a salvaria, nem salvação merecia(p.75); não mais era ali(p.75); não
mais a ela(p.75); o meu pai não falou(p.77); podíamos acreditar que fosse culpada ou
não(p.77); que estivesse o povo errado e a pobre velha não(p.77); não vimos passar
qualquer mulher em fogo(p.78); não, senhor padre(p.78);não vimos mulher(p.78);
mulher em chamas não vimos nada(p.78); não se cansava de dizer(p.78); não ver mais
nada(p.78); não peças nada(p.78);não está em teu tempo(p.78); não nos pudesse
mostrar(p.79); não quero entrar sozinha(p.79); não me batas(p.79); meu pai não
voltara(p.79); não lavados do que ali acontecera(p.79); não veria enterro(p.80); parecia
não querer(p.80); não foram ver(p.80);não quer coisa boa(p.80); não foi o padre que
veio(p.81); não há mãe alguma que não mereça o céu(p.81); não podia ser tal
vítima)p.83); qualquer promessa de ajuda, mas não(p.83); não fossem de fome o meu
pai e o meu irmão(p.84); não poderias ter dado ouvidos(p.84); mas não são(p.84);mas
não são (p.84);deus não o quis(p.84); não poderia ter compreendido(p.84); não fosse
por fora saltar(p.85); não me lembro da cara dela(p.85); lá não estavam(p.85);não
podiam sair(p.85); por não terem impedido(p.85); se não levanta o sol(p.86);não
sobrará vivalma(p.86); se não levanta o sol e o verão se ameniza, não sobrará
vivalma(p.86);não se tapam(p.86); não era nada disso(p.86); não era nada
disso(p.86);não fortalecer a posição(p.86); não nasce porque(p.86);não tivéssemos
vendido a alma(p.86); não tivéssemos vendido a alma(p.86);não viria uma
terra(p.86);não viria el-rei(p.86); não venham perto e nunca dentro(p.87); enquanto não
morrêssemos(p.87); dias a fio não morreríamos(p.87); ele não aceitaria(p.88); não sei,
depois de tanta expiação(p.88); não digas isso(p.88); parido de uma vaca ou não(p.89);
179
não, sarga(p.89);não é esse, é o aldegundes(p.89); não com o espanto que trago(p.89);
não trabalhas muito(p.89);pois não(p.89); pode não ser verdade(p.89); não, mas que o
pinte(p.89); não descure a sorte(p.90); na verdade não existe(p.91); não eram aqueles
calmeirões(p.93); não esperara vida inteira(p.94); nos não favorecesse(p.94); não é a
sarga(p.95); para não chegar(p.95); não me peças mais(p.95);não me rogues mais
praga(p.95); não vás em conversas(p.96); a mulher queimada não viera(p.96); não fosse
surgir monstro(p.96); se anda posto nela não vi(p.96); não me procura(p.96); não me
quer(p.96); não fazemos mais que conversar(p.97); não ouviste nada(p.97); diz-me se
não ouviste nada(p.97); não percebiam nada(p.97); não tão livre te terás(p.98); não
queiras saber(p.98); não quero nada disto(p.99); esqueci-me de te dizer que não(p.99);
aldegundes não parava(p.99); não está precisado(p.99); a rei não se recusa
putice(p.100); não vos custará montada de rei(100); não me enfureças(p.100); não
saiba eu de el-rei solitário(p.100); não me pareça noites inteiras(p.100); a mim não me
escolheu(p.101); não tenhas dúvidas(p.101);a tua ermesinda não lhe deu manhã(p.101);
só não a acabei ali(p.101); parece não querer morrer(p.101); não dissemos outra
coisa(p.101); já não disse(p.101); meu pai não se queixava(p.101); homens que não te
competem(p.101); já não tivéssemos(p.102); não o contradizíamos(p.102); não tardaria
nada(p.103); para não entristecer(p.103); com bichezas ou não(p.106); não visse tal
sentimento(p.106); não quero conversa mais contigo(p. 107);não fosse sorte de teu
irmão(p.107); não te desvies de exactidão(p.107); não te preocupes agora(p.108); meio
tonta de não saber(p.108); não a deixe sem liberdade(p.108);não lhe esqueça uma
palavra(p.108); volto não tarda nada(p.108); ai que não te enganes com viagem(p.109);
não se aflija, meu pai(p.109); não nos atentaria com problema(p.109); não quero deixar
o meu pai(p.109); não, peço perdão(p.110); amanhã não sabem(p.110); não nos
tivéssemos perdido(p.111); coitado se não pára(p.111);não recompõe postura(p.111);
não o entendíamos para coisa alguma(p.111); nada que não fosse só ervas(p.112); ou
não nunca o poderia saber(p.112); espero que venda de alma não nos aconteça(p.112);
não acho que sejas pior do que outras mulheres(p.112); o que não existe(p.113); nunca
ao que não inventou(p.113); algo que não dá aos homens(p.113); os homens não
conseguem ver(p.113); bruxa ou não(p.113); acusada de não parir os seus filhos(p.113);
só não consigo entender(p.113); não te souberam fazer(p.113); o aldegundes não se
convencia(p.113); que não nos possa roubar(p.114); não há como arrepender(p.114);
resta não sermos mais burros ainda(p.114); não havia como ir à larga(p.114); amigos
não se deixam(p.115); ela não poderia ler pensamentos(p.115); não te assustam
medos(p.115);não viria de fugida(p.115); não fosse alar-se à escuridão(p.115); não
sabias, perguntou-me(p.117); não me disse nada(p.117); não te conta da missa
metade(p.117); não melhora realmente(p.118); mulher mais bela não há(p.118); que
homem não ta pediria(p.118); não te escondo minha alma(p.118); não haveria de te dar
medo(p.118); pelo facto de não ser bruxa se explica(p.118); não vás ficar a
julgar(p.119); vão crescer-te orelhas não tarda nada(p.119); não tivesse de ser(p.120);
não nos penalizes por tuas opções(p.120); não nos enganes mais(p.120); não terá
pernas para percurso(p.121); não nos vai alcançar(p.120); não solicites má sorte nem
imagines(p.120); não te enerves de mim(p.120); não podíamos parar(p.120); outro não
fosse também(p.121); parado só não aumentava mais(p.122); não o podia
abraçar(p.122); carroça que seja, não é(p.123); coisa que esteja na carroça, não
vejo(p.123); que não se vê(p.123); não vos agastais de esforços(p.123); não te exaltes,
olha para teu irmão(p.125); não seca desse calor(p.125); não estás burro(p.125); dessas
coisas não sei(p.125); não estarias aqui(p.126); não me pisem os canteiros(p.126);
cuidados de não caírem(p.126); porque não desvias o olhar(p.127); não consigo ver
com os olhos(p.127); não seja do corpo(p.127); se não estiverdes saudáveis(p.128);
180
disso não sei(p.128); do que vos designe não conheço(p.128); não chove há tanto
tempo(p.129); não é que se pegue ou perigue alguém(p.129); não lhe trouxemos
devolvida a moeda(p.129); não vos quero à cautela(p.129); não sou visto nem
sentido(p.129); não acredito em filiação(p.131); não tarda nada(p.131); não deve
aproveitar ou desaproveitar(p.129); não nos escangalhes planos(p.130); não lhe voltei a
tocar(p.131); não era casado nem prometido(p.131); não era casado nem
prometido(p.131); não o viam nem o procurariam(p.131); não contes a ninguém da
vaca(p.132); não este, dizia em alto som(p.132); não perdem olhar(p.133); não teríamos
condição(p.133); não chovesse por piedade divina(p.133); não é heresia(p.135); não há
pressa de a prenhar(p.135); não dêem doidas(p.136); não diziam coisa de coisa(p.136);
se abraçam de homem que não sou eu(p.136); não me ama e amo-a eu(p.136); não te
deixes nessa tristeza(p.136); não me serve, arrancarei do peito o coração(p.136); vi-vos
ontem e não duvido(p.137); não sobe ao céu(p.137); não se encontram almas(p.137);
não vos soltardes de tamanha(p.138); fogo não germina(p.137); mulher queimada não
fugiu(p.138);não fez mais nada(p.138); não sabemos se nos convém(p.142); não fosse
perceber o círculo(p.142); não havia maior ensejo(p.142); que não era
nosso(p.143);não trazíamos nada(p.143); para isso não ser(p.145); não posso morrer
assim(p.145);não sem antes recuperar(p.145); não se reconhecia(p.145); não via mais
nada(p.145); não se inibe(p.145); não podia desfeitar(p.146); não concordei
imediato(p.146); não entrámos(p.146); não escutámos nada(p.146); não
calavam(p.146); não podia ser pior(p.146); não estrebuchámos coisa alguma(p.147);
não continuareis de pé(p.147); não pôde ainda(p.148); não nos falte vossa
excelência(p.149); não vos posso confirmar(p.149); não há-de ser(p.149); não entra em
vossa casa faz muito(p.149); não, baltazar, só te amo a ti(p.150); não baixava com mão
apontada não baixava com mão apontada(p.150); não haveríamos de ter(p.151); não se
vá a ermesinda(p.151); juro não lhe arrancar mais nem cabelo(p.151); não queríamos
que se finasse(p.154); não tínhamos viabilidade(p.154); não fosse tombar de
vez(p.155); não faltam são bruxas(p.155); não fazia nada(p.155); não se viam
diferentes(p.155); não melhorava de razão(p.155); para não ouvir(p.156);não passa
nada(p.156); mas não gritei assim(p.156); não somos o mal(p.156); não entendíamos
bem(p.155); não lhe ocupa a si(p.157); não sei que me dá(p.157); não comentámos o
ouvido(p.157); não dava trabalhos de refeições(p.156); não enfrentarmos a nossa
fealdade(p.158);não acendíamos velas(p.158); não poderíamos mais andar entre os
lugares(p.158); não era antipática(p.159); não respondia(p.159); não têm
coração(p.160); meu pai não sorriu(p.161); não espereis facilidades(p.161); não era
difícil saber(p.162); não irá para lado algum(p.162); não têm para onde ir(p.162); não
fossem sinalar alteração(p.162); não a conseguiu esquecer(p.163); não se deixou de
aumentar sobre ele(p.163); não me enganam(p.163); não desrespeitar pedido(p.163);
não vos entendemos(p.163); não vedes como se deitam(p.163); não vedes,
senhora(p.163); não lhe mataria a cria(p.164); não imaginara o que fosse(p.164); não
lhe daria desgosto(p.164); não me respondeu(p.164); não voltou(p.164); não
soubemos(p.164); não se lhe deitasse corpo(p.165); não tivesse mundo vindo(p.165);
não, éramos todos muito iguais(p.167); não cicatrizar correctamente(p.167); não havia
que fazer(p.167); não podia ser buraco(p.168); não haveria de ser do nosso pai(p.169);
dom afonso não acudiu(p.169); não aceitou(p.170); não queremos sair daqui(p.170);
não nos queria a falar ali(p.171); não tivesse horários tão cedo(p.171); não poderia ter
surpresa(p.171); não tínhamos nada(p.171); não queres ver(p.172); coração não
tem(p.172); não aceitou(p.172); não era possívenão era possíve(p.173); não se viam os
dois(p.173); não o seriam(p.173);não podia dizer-lhe isso(p.173); não se deitem em
barulhos(p.176); e não víamos(p.176); resposta não havia(p.176); não se teria em pé
181
tão madrugada(p.177); não hesitou(p.177); não és como um irmão(p.179); não te
desejo família da nossa(p.179); pedi que não falássemos(p.179);não morreu(p.179);
não a consegui matar(p.179); não distinguíamos(p.179); não me trazes a minha
ermesinda (p.179); não choveu(p.179); não queria nada(p.182); não dava
comparação(p.182); não lhe ouvíramos(p.182); não que ele se tenha(p.183); não se
tiver de almas(183); não sucumbirmos não sucumbirmos(p.184);não fosse
eterno(p.184); não reagiu(p.185); não falámos mais(p.185); não fosse
conhecido(p.185); não matei a ermesinda(p.186); não se vê já grande coisa(p.186); não
aconteceu(p.187); não acreditei(p.187); não escutando nada(p.187); não se abdica
assim(p.187); não fosse a minha amada acordar(p.188); não me dizes mais nada(p.188);
não abria boca(p.188);não dizia nada(p.188); não pude facilitar(p.188); não querer ver
os defeitos(p.189); não teriam sucesso(p.189); não é seu marido(p.189); não
falava(p.189); não muito mais não muito mais(p.190); não deixar que se
perdesse(p.190); não cozinhasse no nosso calor(p.190); não encontrava(p.191); não se
podia
defender(p.191);
lobo
não
a
comesse(p.192);mas
não
ma
levaria(p.192);seguramente, não ma levaria(p.192); já não me assistia(p.193); não eram
o seu marido(p.194); que não fosse(p.194); não respirou(p.194); não suportaria nem o
caminho até ao pé da sarga (p.194).
COISA: 298 (duzentas e noventa e oito vezes).
gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. (p. 13).
por vezes, eu podia perguntar coisas, em noites de maior paz (p. 13).
e deixaríamos coisas ditas no ar (p. 13).
eram coisas que se suspendiam sobre nós (p. 13).
a sarga calou-se de sossego e sono, especada na noite como uma coisa que só parecesse
ser ela sem o ser. (p. 15).
e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu pai, discernido
superiormente sobre todas as coisas da nossa vida. (p. 15).
ficara inutilizada para as coisas dos senhores (p. 17)
porque lhe saíam coisas de mulher boca fora (p. 17)
que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos (p. 17)
liberta das intenções de nos educar coisas inúteis ou falsas (p. 17)
o mundo que as mulheres imaginavam era torpe e falacioso, viam coisas e convenciamse de estupidez por opção (p. 17)
se pudesse ser dado maior ócio alguma coisa boa ainda podia vir (p. 18)
a minha mãe passou muito tempo a ensinar à brunilde essas coisas que competiam às
mulheres (p. 19) e explicou-lhe coisas que o meu pai obrigava que não ouvíssemos, nós
os rapazes, coisas da vida delas (p. 19).
por isso eram instáveis, temperamentais, aflitas de coisas secretas e imaginárias (p. 19).
essas coisas do sexo eram muito importantes (p. 21).
quando passava nas ruas a buscar coisas que os pais mandavam, era muito parecida com
uma coisa branca que impressionasse a escuridão das casas (p. 22).
invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo (p. 23).
entretido a conversar com a sarga como se lhe perguntasse coisas de adultos (p. 26).
como criar vício de comer as melhores coisas da mesa (p. 27).
amigo, com quem aprendi muito sobre essas coisas de capturar raparigas (p. 28).
descobria-nos coisas nunca vistas na pele mais escondida (p. 31).
182
que nos descobrisse parasitas ou outras coisas esquecidas no corpo, e ele lá nos
mandava ao o a tirar da cabeça coisas para beber e comer de necessidade para a saúde
(p. 31).
o meu pai perdia muitas vezes a paciência, dizia que merda para aquelas coisas e,
furioso (p. 32)
e encostava-se às paredes como essa coisa branca que me impressionava (p. 35).
naquela tarde eu esperaria qualquer coisa que me dissesse da entrega da notícia (p. 35)
nas coisas do coração não entravam substituições (p. 36)
apenas uma coisa parva de pensar e querer fazer (p. 36)
a ver meu pai que coisas me guardaria em espera (p. 37).
eu continuaria o mesmo jovem possante a ajudar o pai nas coisas dos animais (p. 38)
o meu pai sorriu sem saber que coisas tinham vindo à minha cabeça (p. 39)
esperam do futuro tudo o que sonham, mas que fazer, são coisas que se aprendem (p.
39).
impossível vir dali alguma criança, bicho ou coisa, não pode vir nada, gritava o senhor
santiago
não acredito nessas coisas, é só o que povo diz (p. 40).
refaladas todas as coisas, era comigo que a ermesinda se casaria. (p. 41).
se lhes perguntássemos alguma coisa, não tinham disposição de entender (p. 42).
tal fosse coisa de partir da casa de dom afonso. (p. 44).
no primeiro desmedo que tive de arranjar, liberto de meu pai para as coisas assim. (p.
44).
era da figura e preciosidade das coisas (p. 44)
como coisa branca que me impressionava. (p. 46).
coisas inclusive nada complicadas. (p. 48)
dom afonso a correr e a descobrir que o espiava, era coisa de merda (p. 51).
impossível que aconteça tal coisa, espiado em minha casa (p. 51)
trabalhar de corno à mostra não era coisa de aguentar (p. 52).
descansai mulher minha, estivemos em arrumos de coisas perdidas (p. 52).
coisa que te entre pelas partes há-de cair e cozinhar-se para jantar (p. 53).
que o amor era coisa de muito ensinamento (p. 53).
se fosse verdade coisa que a igreja dizia (p. 53).
dom afonso pretende ensinar-me coisas de rapariga nobre (p. 54).
perdera a língua de dizer coisas. (p. 57).
coisa que a mim me parecia significar que outra maleita maior se sobrepunha (p. 57).
estava convicto de que, se coisa ficara ali ou ali crescia, (p. 57).
que prazer mórbido seria o das coisas no sexo com velhas mulheres casadas (p. 57).
até as coisas tortas se endireitariam (p. 57)
como coisa que veio do mato para se amigar da vida das pessoas (p. 57)
era das coisas que ouvia na igreja (p. 58).
e eu disse alguma coisa (p. 59).
como coisa que se soltasse pelo cu mais esperto do mundo, nada de inteligências, dizia
eu, de ti só merdas e coisas ainda menores, e ele disse-me, um dia deus virá e entrará
em nós como coisa de nos ver com violências. (p. 60).
para lhe humedecer a ferida com coisas que a secassem (p. 60)
em sacrifício reiterado pelas coisas do nosso lar. (p. 61).
deus viria e entraria em nós a remexer cada coisa, (p. 61)
que fosse em corrida e susto, coisa grave me queria dom afonso (p. 61).
desautorizado das coisas dela como se simples enamorado fosse (p. 63).
como se enfeitasse a cabeça com coisas e mais coisas (p. 63).
183
como subtilezas de sabedoria por coisas porcas que eu não lhe ensinara (p. 64).
sem coisa para cagar, e nada do que o movesse era fruto da comida (p. 65).
puta em minha casa era coisa de rastejar (p. 65).
para qualquer coisa que pegasse haveria de se agachar muito (p.65).
deixa que trato eu disso, és feito para outras coisas (p. 68).
a tua mãe, por exemplo, a idade pode ter-lhe dado sabedoria de muita coisa (p. 68).
achas que faria tal coisa, perguntou o teodolindo. (p. 69).
nessas coisas de marido e mulher sou ignorante, como muito bem sabe. (p.71).
qualquer coisa hás-de ter escutado que me escondes (p. 71).
minha senhora, tão poucas coisas sei de certeza (p. 71).
que coisa anda meu marido a tramar (p. 72).
há tempos para cá se tem tão alterado, coisa o anda a chamar (p. 72)
ver coisas que me interessem (p. 72).
se alguma coisa destapar palavra que não me tenhas dito (p. 73)
mais correcta no serviço e tempo de cada coisa (p. 73).
na conversa da brunilde vinha também recado de coisa medonha (p. 74).
só lhe apetecia que fôssemos ao boticário comprar coisa (p. 74).
a nossa mãe faleceu de coisas que a atacaram por dentro (p. 78)
coisa de diabo era mandada a nossa casa, fora daqui que deus manda em ti. (p. 79).
monstro assim existe, meio boi meio homem, anda à solta e não quer coisa boa. (p. 81).
deixavam-se a apreciar qualquer coisa em que diferíssemos (p. 81).
veio metido em nojo e incompetência para as coisas de gravidade maior (p. 81).
uma coisa muito leve sob o peso da pedra (p. 82).
ninguém se compadeceu mais por coisa nossa (p. 82)
coisa virá que lhes rebente barriga (p. 83)
coisas estranhas que lhe imaginava a cabeça (p. 84)
não poderias ter dado ouvidos a coisas que ela dissesse (p. 84).
na cabeça das mulheres muita coisa se incompleta de raciocínio (p. 84).
coisas que lá não estavam, a mudar tudo de função e a rever almas e coisas (p. 85)
por não terem impedido que tal coisa afrontasse a vontade divina (p. 85).
bichos que os comessem coisas porcas levariam (p. 87)
nada me libertava para saber que coisa se passava (p. 87)
sem sequer temer que de mim lhe levasse maleita, coisa, ainda que escondida (p. 87)
qualquer coisa que a mandasse a dom afonso em desmazelo (p. 88)
como se fossem coisas descidas do céu. se o senhor padre ouve tal coisa (p. 88)
se levantar de premonição às coisas da noite (p. 89)
quero saber dele coisas que me andaram a contar (p. 89)
guardo as coisas dos bichos e gentes (p. 89)
fico cá fora com a sarga a ver se vem alguma coisa (p. 89)
em ócio lhe veio um talento para coisa que só a deus compete (p. 90)
rodeámos dom afonso, como coisa de comer (p. 90)
só aparição ou fogo impossível daria coisa assim ( p. 91)
fazer de uns untos coisa de ver anjos (p. 93)
ninguém esquecia coisa que se repetia tanto (p. 94)
burra de tanta coisa (p. 94)
fosse coisa de ganhar, mas era o mais que fazia (p. 95)
rondava a casa a buscar coisa outra (p. 95)
coisa a suspirar sobretudo. (p. 95).
coisa mais feia que pesadelo (p. 96).
não vás em conversas com coisa tão ruim (p. 96).
184
dom afonso sente amizade e interesse por coisas que digo (p. 97).
belezas nas coisas p. 97 coisas como p. 97 tiradas à mudez das coisas (p. 97)
diz-me que coisas vês. (p. 97)
o meu irmão tentava acalmar-me, contra todas as coisas (p. 97)
como se normalmente coisa assim mulher de homem fizesse (p. 98)
eram coisas vagas, a dizer (p. 99)
de ser anjo, ou que coisa devia ter na cabeça para contrastar (p. 99)
comprovar que ali estivesse coisa tão perfeita (p. 99)
falou coisas que só dom afonso ouviu. (p. 100)
dona catarina, que coisas diz. (p. 100)
preparar coisas que se comam (p. 100)
talvez fosse coisa de pasmar só de ver. (p. 101)
terei de fazer alguma coisa por ti uma hora destas, coisa que te ponha buraco fora de
badalo alheio (p. 101).
não dissemos outra coisa. (p. 102)
desistia de mais e mais coisas (p. 102)
nem desculpa de coisa que fizéramos (p. 102)
era concreto que coisa diária o gastaria (p. 103).
como se nenhuma mulher cozinhasse ali coisas más (p. 103)
até dizia coisas, como se as coisas que dissesse fossem importantes (p. 103)
aldegundes arranjaria coisa que nos mudaria todo o tempo futuro. (p. 105)
palácio de rei, ouvia-se dizer, coisa alta e valiosa (p. 105)
lá poderia ser que um sarga valesse coisa de jeito (p. 105)
deus nosso, os sargas eram coisa nunca vista para agrado de rei (p. 106)
fiz eu coisa que me ocorreu (p.108)
recomeçar tanta coisa de novo viço (p.109)
a sonhar por ti coisas magníficas que te aconteçam de verdade (p. 109).
coisa de me terem desrespeito e ódio (p. 109)
mulher é coisa de pouca sabedoria e nenhuma estabilidade (p. 110)
é perigoso que se ouça coisa que digam (p. 110)
coisas grandes que viriam para nosso encontro em surpresa e perigo (p.111)
não o entendíamos para coisa alguma (p. 111).
passava ninguém nem ninguém ou coisa se ouvia (p. 111)
só as coisas da terra o podem abdicar (p. 112)
nada que não fosse só ervas e raízes como viste, coisa que boticário tem. (p. 112).
nosso pai ficará feliz com tal coisa. (p 112)
sabes coisas de bruxa, disse eu à mulher queimada (p. 112)
sítios reconhecidos onde encontrava as minhas coisas (p. 112).
mulher alguma precisa de feitiço para saber coisas que só a ela compete (p. 112).
tua mãe saberia coisas impressionantes (p. 113)
a sarga tem coisas também (p. 113)
só parar e comer coisa que houvesse (p. 115)
coisa que me disse a brunilde (p. 117)
que mais sugeres que eu faça, coisas em concreto (p. 118)
o dia se tornou insuportável por coisas que dizia (p. 119)
que coisa tonta de se acusar (p. 119)
pinta coisas da cabeça dele (p. 119)
muitas coisas pinta (p. 119)
nem imagines coisas para que o diabo ouça (p. 121)
és burro de avisares coisas que o diabo escute (p. 121)
185
coisa de muito pouco tempo, aquece (p. 122)
coisa de voltarmos agora seria assumirmos (p. 123)
coisa grande levareis, carroça que seja, não é (p. 123)
coisa que esteja na carroça, não vejo (p. 123)
vontade do inferno só se freia com coisa do céu
(p. 125)
onde buscaria eu tal coisa (p. 125)
que coisa lhe dá aquela mão enfiada em cântaro (p. 125)
dessas coisas não sei (p. 125)
qualquer coisa que nos desse (p. 126)
como se de coisa importante se tratasse (p. 126)
pisar leve entre as coisas do chão (p.126)
quem mais guardaria coisa estapafúrdia (p. 126)
coisa de início nos parecia tão boa (p. 127)
às coisas más devemos fazer pouca espera (p. 127)
chamarás por mim para cada coisa (p. 129)
coisa de passagem, que tarda nada estamos bons (p. 129)
que coisa essa é para gente a partir de mim (p. 131)
certas coisas de sentir que têm empatia com as vossas (p. 132)
assim seguimos falando até tombar de tanta coisa dita (p. 132)
muitos homens serão necessários para coisas várias (p. 132)
alegarei coisas de intuição (p. 132)
coisa que espelha a alma (p. 133)
coisa daquela arte seria adequada de novidade e esperteza (p. 133)
coisas mais que o disfarçassem de outro anjo. (p. 133)
deu-nos a natureza esta coisa do coração. (p. 135)
pessoas que não diziam coisa de coisa. (p. 136)
pescadores ou coisas sem ar (p. 137)
só pode ser coisa do diabo (p. 138)
havíamos percorrido as coisas naturais (p. 139)
a mexer em cada coisa sem distância (p. 141)
alguma coisa se há-de arranjar (p. 143)
sem querer coisa com as gentes da terra (p. 143)
coisa que nos mate (p. 144)
nossas coisas estavam secas (p. 144)
recuperar coisa que a deus vos encomendei (p. 145)
nem aprende quais coisas (p. 145)
atenta nas coisas todas agora em dobro (p. 146)
o inferno era coisa de maior monta (p. 146)
não estrebuchámos coisa alguma (p. 147)
se alguma coisa vos pode pertencer (p. 148)
ainda assim, de ser coisa rápida (p. 154)
coisas simples que se complicavam (p. 154)
somos uma coisa do mal (p. 154)
já as coisas padeciam (p. 155)
pintava-lhes coisas rápidas (p. 155)
peixes a nadar, e tanta coisa (p. 155)
ouvir do teodolindo coisa que ele ouvisse (p. 156)
perguntou, que coisa passa (p. 156)
que coisa passa, repetindo (p. 156)
ela dizia coisa que não entendíamos (p. 157)
186
esquecendo coisas de família (p. 157)
preparava ele próprio coisas estranhas (p. 157)
ermesinda coisa e remendava coisas (p. 158)
que podeis contra tal coisa (p. 159)
alguma coisa quer explicar-se (p. 160)
tinha coisas preparadas na mesa (p. 160)
um bruxo era coisa muito mais difícil (p. 161)
mal nos disse coisa (p. 161)
silêncio para que escute coisa (p. 161)
em muitas coisas que lhe sugeriu (p. 162)
morrer todas as coisas em redor (p. 163)
coisas que nos queria imediato fazer (p. 164)
viam que coisa lhes saía já morta (p. 165)
mesmo se nascesse coisa de gente (p.165)
nenhuma coisa que nos animasse (p. 167)
pinotes pela água e coisas mais (p. 168)
debaixo de coisa mal tapada (p. 168)
uma só coisa da nossa família (p. 170)
porque nos dizeis tal coisa (p. 172)
uma coisa tão disparatada (p. 172)
ver que coisa me diz a cabeça (p. 175)
coisa deveríamos comunicar a dona catarina (p. 175)
coisa favorável (p. 175)
sem entender grande coisa (p. 176)
como coisa parva dizes isso (p. 177)
coisa tão boa de entender (p. 178)
alguma coisa lhe rodava (p. 178)
que coisa lhe fizeste (p. 178)
ficou como coisa burra (p. 178)
qualquer coisa como a desviar olhar (p. 181)
esquecer-se de tal coisa um dia (p. 182)
satisfação com coisa alguma (p. 182)
coisas que por ali estivessem plantadas (p. 183)
cabeça se intua de outras coisas (p. 183)
como gostar de coisas (p. 183)
coisa por donde passasse (p. 183)
só ver que coisa pôr à boca (p. 184)
intuir que coisa boa significava (p. 184)
cada coisa bulindo (p. 184)
ali fizemos tal coisa (p. 185)
que seria tal coisa (p. 185)
me ocorreu tal coisa sem demora (p. 185)
coisa má que passe nem perceberá (p. 186)
procurar coisas com que fazer untos (p. 186)
não se vê já grande coisa. (p. 186)
coisa breve, assim com um pé posto (p. 186)
que outra coisa se ouviria (p. 187)
garantir coisa uma ou coisa outra (p.187)
coisa do meu coração, não se abdica assim de coisa tal (p. 188)
diz-me que coisas te fazia dom afonso (p. 188)
187
como coisas mortas (p. 189)
coisa sem a qual não teriam sucesso (p. 189)
as coisas mais correctas da criação (p. 190)
cada coisa de que se lembrem (p. 190)
mantivemos como coisa de bem (p. 191)
mugido súbito da sarga por coisa (p. 193)
coisa que dava à sarga era proporcional (p. 193)
à coisa que lhe dava também (p. 193)
NEM: 202 (duzentas e duas vezes).
não tinha nem uma (p. 14).
sem voz nem movimento (p. 15).
sem serventia nem mais nada (p. 15).
eu já nem lho perguntava (p. 20).
sem estropios de corpo nem maleitas de cabeça (p. 23).
sem hesitações nem repugnâncias (p. 23).
a ela a surpresa não lhe trazia som à boca nem contorção maior (p. 26).
mas instrução nem uma seria a dele metido entre animais e plantas (p. 26).
não lhe permitiam estratégias plausíveis nem esperanças muito animadoras (p. 26).
recebia um homem com valentia sem queixa nem esmorecimento (p. 27).
não era mentira nem conversa das pessoas (p. 28).
já nem sabíamos como nos aleijáramos (p. 31)
sem sacrifício nem mereceria tão perfeita moça (p. 34)
nem a diaba lhe teria ocorrido (p. 36).
nem assim me aumentava o estatuto de responsabilidade (p. 38).
sem condição nem honrarias (p. 39).
porque da sua mulher nem adianta pensar nisso (p. 40).
o meu pai nem perguntara que fora da vaca (p. 43).
todos a dormir que não queria nem fogo nem barulho acesos (p. 43).
nem por um só momento imaginei (p. 43).
nem meu pai me convencia (p. 46).
nem os olhos que lhe deitava às partes da natureza (p. 46).
nem pedido à brunilde o serviço se fazia (p. 46).
marido comudo nem assim se justificava (p. 51)
nem te bato nem te mato (p. 51).
nem assim se justificava (p. 51).
meti-me em casa sem ânimo nem brio (p. 52).
todo o dia nem veio nem dom afonso se sentiu (p.52).
ela não veio, nem aos queijos foi vista (p. 52).
ela, nem descansada nem inteligente (p. 52).
ele olhou-me sem felicidade nem amargura (p. 58).
ermesinda sobre a cama sem pasto nem alento, recuada para o sono sem espera nem
aviso (p. 61).
já nem no coberto se escondia à noite (p. 61).
sentava-me quietinho sem mugir nem tossir (p. 61).
sem retorno nem avesso (p. 62).
nem prometido ou avisado. (p. 63).
nem cerca nem na paisagem, seguia sem ver senão os pé (p. 64).
nem me atrevia a mexer (p. 67).
188
nem tu de olhos arregalados vês (p. 68).
todas as noites deitado sem folias nem tentativas (p. 72).
nem fruta de cu te deixaria (p. 73).
nem de corpo nem de objecto (p. 73).
não se via nem ouvia nada (p. 73).
nem por confiança de dom afonso ou seu pedido de ajuda, nem por descoberta (p. 73).
nem salvação merecia (p. 75).
nem vestida de roupa nem de chamas que a consumissem (p. 78).
acertou no padre que nem seta lhe fosse mandada (p. 78).
nem sequer nos víamos ou sabíamos onde estávamos (p. 82).
sem alento nem consciência (p. 84).
sem ócios nem maneiras (p. 85).
com muitos sóis, cima e baixo, nem noite vai chegar (p. 86).
sem fé nem respeito (p. 87).
fechado de trabalho que nem vacas me davam para mugir (p. 87).
como se nem dormisse comigo (p. 87).
ainda nem em pé se terá ainda nem em pé se terá (p. 88).
nem voz, nem aquela sabedoria (p. 88).
nem veio ainda (p. 89).
nem o curativo na cabeça se lhe via nas tábuas (p. 93).
ficar a vê-la sair sem pressas nem sinais (p. 95).
ainda nem medo nenhum afastado (p. 97).
nem a mão no rabo, nem um palavrão dito em fugida (p. 99).
nem desculpa de coisa que fizéramos (p. 102).
já nem zangada por ser desprezada (p. 105).
já nem tinha nada connosco, já nem mulher queimada seria (p. 105)
sem pio nem desvio (p. 107).
mas nada o deixei ver, nem entrar (p. 108).
saímos tão cedo assim, manhã nem clara ainda (p. 109).
fica sem trabalho nem amizades (p. 110).
passava ninguém nem ninguém (p. 111).
és uma criança ainda, nem juízo tens formado (p. 117).
nem te ouço de nada abalado (p. 119).
sem manha nem mais paciência (p. 120).
não solicites má sorte nem imagines coisas (p. 121).
ela nem lado para onde fomos vai saber (p. 121)
não podíamos parar nem nos afastar (p. 121)
nem sombra de carroça dava para os dois (p. 122).
nem sozinho nem acompanhado (p. 122).
nem nos apetecia mais ir a el-rei (p. 127)
nem sei se havemos de morrer deveras nesta visita (p. 127).
não sou visto nem sentido, és desgraçado de tanto que nem pareces filho de deus, disselho eu. nem sou, estou certo. (p. 131).
não nos escangalhes planos nem apetites (p. 131).
o dagoberto não era casado nem prometido, estava velho de muitos natais, eu achava
que nem usado de sexo (p. 131).
entendia sempre que não o viam nem o procurariam (p. 131).
nem natureza para nós teriam (p. 135).
nem pai de filhos com ar dele serei (p. 136).
nem que a mulher queimada nos desdenhasse (p. 141).
189
nem que o dagoberto nos acompanhasse como irmão (p. 141).
se à volta nem nos lembrávamos de onde tínhamos vindo (p. 142).
nem uma esperança, ainda fosse vaga (p. 142).
nem arrogância de espécie alguma (p. 142).
certinhos de nem querer esperar o tempo (p. 143).
ontem nem o vimos (p. 144).
mas nem barulho nem nada se ouvira (p. 144).
nem esperava, sabia eu, o nosso inteligente pai (p. 145).
nem queria mais nada (p. 145).
ter uma mulher que não se inibe nem aprende quais coisas mais certas tem o casamento
(p.145).
nem endireita nem curandeiro te vem destorcer ou tapar buraco, nem manjerona
suficiente haveria em todas as terras para untar (p. 146).
não concordei imediato nem total (p. 146).
nem compensa nem glória trouxemos de el-rei (p. 147).
nem mostrava tanto (p. 149).
na cara nem vergonha de confissão (p. 149).
tu nem penses, antes que me contes a verdade nem à vaca velha tens direito (p. 148).
mais que me estragues nem viver poderei, e assim tão medonha me tenho que nem
reconheço minha antiga vantagem (p. 150).
eu juro não lhe arrancar mais nem cabelo ou grito. (p. 151).
nem lho tivemos de tirar, em tão breve tempo estava destituído de rigidez (p. 154).
o chão servia nem de areia (p. 154).
nem posta em boca de povo, ninguém forçará prazer com ela (p. 155).
nem lhe pedíamos ajuda de mais nada (p. 156).
nem lhe dava sequer tempo de se dedicar a pensar nisso (p. 157).
não acendíamos velas nem muito fogo (p. 158).
nem nosso pai, que aumentava desaparecimentos (p. 167).
nem a mando muito reclamado (p. 168).
nem lembrados de nome ou alcunha de vosso pai (p. 170)
nem inteligência nem beleza lhe dá. (p. 170)
eu e o aldegundes não queremos sair daqui, nem menos poderíamos dizer, nem mais,
momento exacto (p. 170).
nem meu marido ainda acordou (p. 172).
a minha ermesinda só saída de manhã tão iniciada, para casa de dom afonso ele próprio,
nem outros homens conheceria (p. 172).
nem lhe dissesse que havia manhãs já que não se viam os dois (p. 173)
ela nem precisada estava (p. 173).
nem alma terás vendida ao diabo que ta compro em volta (p. 173)
marido que vinga comadura matando a mulher nem merece repreensão (p. 173)
nem ninguém nos visitava para alimento ou libertação (p. 176)
nem existiríamos naquela altura (p. 176).
a sarga nem demorou a desaparecer (p. 177).
nem me disse nada, e eu perguntei por nosso pai (p. 178).
e ela encorrilhou-se muito e nem disse nada outra vez (p. 178).
e ela nem disse nada outra vez. nem eu lhe disse mais (p. 178).
já nem voltaríamos a casa por desconhecimento de como. (p. 181).
nem casa ou outro abrigo encontrávamos (p. 181).
fiquei sem confiança nem resposta (p. 181).
nem que lhe sobre só um dedo, só um cabelo, só uma palavra para me dizer. (p. 181).
190
nem simples burrice ou distracção (p. 183).
sem proximidades nem exigências de irrequietude ou que fosse, estava de bem com
estadia escolhida e nem desconhecimento de local, nem desabrigo das suas velhas
madeiras lhe parecia ocorrer (p. 184).
nem perceberá que para cá da barreira gente de bem dorme (p. 186).
não escutando nada, nem a vaca se mexendo (p. 187).
nem que mais nos custe ou nos queira impor o correcto de se fazer, nem dormi, nem
fechei os olhos (p. 188).
nem que te cales te perdoo (p. 188).
nem se levantava por seus próprios apoios (p. 189).
nem vale a pena que a digam (p. 190).
nem permiti que ela me dissesse (p. 191).
eu nem me levantava, nem me acusava de atitude alguma (p. 193).
nem por manter a sensatez da educação da minha mulher (p. 193).
meu corpo não suportaria nem o caminho até ao pé da sarga (p. 194).
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Sonia Maria Rodrigues - início