Luis Eduardo Ponciano Aragon O Impensável na Clínica Tese de Doutorado Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade PUC-SP São Paulo – 2005 ii Luis Eduardo Ponciano Aragon O Impensável na Clínica Tese apresentada examinadora da à Banca Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica, Estudos da Subjetividade, sob a orientação da Profa. Dra. Suely Belinha Rolnik. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade PUC-SP São Paulo – 2005 iii Banca Examinadora _____________________________________ Dra. Suely Belinha Rolnik – Orientadora _____________________________________ Dra. Regina Néri _____________________________________ Dra. Miriam S. Chnaiderman Suplentes _____________________________________ _____________________________ Dr. Luis B. Lacerda Orlandi Dra. Ângela Capozzolo _____________________________________ _____________________________ Dr. Gilberto Safra Dra. Maria Cristina G. Vicentin iv Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura:__________________ São Paulo, março de 2005 v Agradecimentos À Suely B. Rolnik, mais do que orientadora, incentivou-me a fazer a opção pelo doutoramento e acolheu ternamente minhas dificuldades e impasses. Ainda além, a força e a vitalidade de seu pensamento apresentaram um caminho - intenso e feliz - de trabalho e experiência, até então desconhecido. Ao Peter Pál Pelbart, pelo interesse sincero em meu desenvolvimento acadêmico e pela oportunidade de participação em seus enriquecedores Grupos de Orientação. Ao Luiz B. L. Orlandi, por tudo que aprendi e aprendo com ele desde a entrevista para a minha inclusão no processo de doutoramento. Mas especialmente pela dedicação e generosidade na Banca de Qualificação. À Regina Néri, pelo estímulo e pela interlocução durante todo o percurso, mas, sobretudo pela amizade. À Miriam S. Chnaiderman, por sua participação atenta e delicada no processo de Qualificação. Ao meu amigo Paulo Sergio de Carvalho, pela cumplicidade durante todo o caminho, e por sua incansável e carinhosa dedicação à leitura e revisão da tese. Aos meus amigos e colegas dos Grupos de Orientação: Abrahão de Oliveira Santos, Maurício Lourenção Garcia, Vera Lucia F. Mendes, Bruno Vasconcelos, Tania Maia Barcelos, Maria Cecília Galetti, Ana Cristina Lopérgulo, Rosane Preciosa Sequeira, Paulo Buenoz, Elizabeth Lima, Edson Olivari de Castro, Maria Cristina G. Vicentin, Cristiane F. Mesquita, Alexandre Henz, Érica Inforsaro, Damian Krauss, Patrícia Rochael, Felícia Knobloch, Ângela A. Donini, Giovanna di Marco, Margaret M. Chillemi, vi Roberta C. Romagnoli, Valéria F. de Andrade, Walter Muller e Ricardo W. M. da Silveira. Com seus comentários, críticas, parcerias... enriqueceram não só meu trabalho, mas minha vida. À Regina Benevides de Barros, Eduardo Passos e colegas da “Clínica Trans”, que indicaram – com suas idéias e amizade – diversas trilhas para esta pesquisa. Aos pacientes e analisandos que, com seus sofreres e dedicação, me deram a oportunidade de desenvolver-me profissionalmente e realizar este trabalho. Aos meus mestres e colegas, médicos e psicanalistas, os quais participaram e participam da tecedura do meu percurso. Às amigas do consultório, pelo apoio e afeto. À Elza Nicolino, Berenice Néri Blanes e Ignácio Gerber, pela presença sincera e por saberem naturalmente o que são os “afetos de vitalidade”. Aos meus pais: Nadir e José, pelo amor, interesse, incentivo, vida, ou seja, por tudo. Aos meus familiares por sua atenção amorosa. À PUC-SP – através do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade - por acolher meus anseios de pesquisa e tornar possível a realização desta tese. Ao CAPES, pelo apoio financeiro. vii Para Anne e Antônia com amor viii Resumo ix Fruto de experiência clínica que imbricou os campos da medicina e da psicanálise, esta pesquisa circunscreve uma forma de sofrer particularmente atual, decorrente da distância entre a alta produtividade de objetos formais (técnicos, estatísticos, arquitetônicos, conceituais, ideativos, etc.) que são oferecidos aos sentidos, e a restrição do poder de apreender a realidade de forma intensiva, intuitiva ou pática. Para isso, combina o método cartográfico – pelo qual se explicitam as sensações vividas nesta clínica, nômade, por deslizar em devires de corpos sempre defasados em relação a si – com a construção de inúmeras alianças teóricas com pensadores vinculados principalmente à Filosofia da Diferença e à Psicanálise. Com inspiração em Winnicott e Illich, o conceito de esquizoalgia é usado para falar da agonia que “habita” este território, que não pode ser determinado como corpóreo ou mental, consciente ou inconsciente, objetivo ou subjetivo. A contribuição de autores como Lyotard, Deleuze, Simondon, Uexküll e Stern, ajuda a delimitar a idéia de “corpo-acontecimento”, um corpo não apenas empírico, mas também sustentado por uma realidade pré-individual, virtual. O deslocamento de uma perspectiva de análise que visa as formas individuadas (sujeito, nomes de patologias, modelos teóricos), para a processualidade impessoal, inédita e imprevisível dos acontecimentos, dá condição para pensar um sofrer relacionado à própria emergência do processo de subjetivação. E, desta forma, também uma clínica que lide com este sofrer. A concepção deste corpo intensivo, pulsante e rítmico põe as bases para uma clínica que lide com os aspectos afetivos e virtuais do ser; que instaura um processo de errância quanto ao que se pretende fixo e estruturado, penetrando o terreno brumoso das sensações, afetos de vitalidade, intuições e “memórias intensivas”. Neste ponto, são usadas contribuições de Bion (os proto- pensamentos e a intuição). Por fim, é ressaltada a perspectiva ética da opção clínica desenvolvida, apresentando-se alguns pontos que foram se afirmando como conseqüência da experiência. Palavras-chaves: Medicina, Psicanálise, Clínica, Ética, Corpo, Sofrimento. x Abstract xi This research circumscribes a particularly current form of suffering as the result from a clinical practice that overlapped the medical and psychoanalytical fields. This specific suffering is seen as the consequence from the distance between the great productictivity of formal objects (technical, statistical, architectural, conceptual, etc) being offered to the senses and the restriction of the power to apprehend reality in a intensive and intuitive way. For that purpose, it combines the cartographic method – through which are cleared out the sensations lived in this nomadic clinical practice, sliding in becoming-bodies always out of step with one self – with the assembling of several theoretical alliances with thinkers linked primarily to the Philosophy of Difference and to Psychoanalysis. Inspired by Winnicott and Illich, the concept of schizoalgy is used to address the anguish that “dwells” in this territory and cannot be determined as corporeal or mental, conscious or unconscious, objective or subjective. The contribution of authors like Lyotard, Deleuze, Simondon, Uexküll and Stern, helps to set the limits of a “body-occurrence”, a body not only empirical, but also held up by a pre-individual and virtual reality. The displacement from an analytical perspective that aims at singled out forms (subject, pathological classification, theoretical standards) to a impersonal process-action of events, unique and unpredictable, is what sets the conditions to thinking a form of suffering related to the emergence of the subjectivity-act process. And therefore, to also think a clinical practice that deals with that suffering. The genesis of such intensive body, pulsing and rhythmical, lay the basis for a clinical practice that deals with the affective and virtual aspects of being. Such practice establishes an erratic process regarding what is intended to be structured and permanent to get into the misty ground of sensations, affections of vitality, intuitions and “intensive memories.” At this point, it’s used the contributions by Bion (the proto-thoughts and intuition.) Key words: Medicine, Psychoanalysis, Clinical Practice, Ethics, Body, Suffering xii Sumário 01 Apresentação 08 • Primeira cartografia clínica: Um grito, muitos sopros 29 Capítulo 1 – Corpo Objetificado 37 Capítulo 2 – Perspectivas para um corpo-acontecimento 37 2.1. Corpo-passagem 40 2.2. Corpo-estranho 44 2.3. Corpo-melodia 56 • Segunda cartografia clínica: Violetas e sons 60 2.4. Corpo-devir 62 2.4.1. O virtual 66 2.4.2. Comunicação e In-formação 67 2.4.3. O coletivo 70 2.4.4 Morre-se 76 2.4.5. Afetos 84 • Terceira cartografia clínica: Moça e a notícia que vem das sombras 92 Capítulo 3 – Fragmentos críticos de corpos atuais 92 3.1. Imanência 96 3.2. Invenção e captura 103 3.3. Controle, antecipação e risco 108 Capítulo 4 – Apontamentos para uma clínica “do” impensável 108 4.1. Os proto-pensamentos 114 4.2. Intuição – por uma “memória intensiva” 119 4.3. Imaginação, subjetivação e devir 126 Capítulo 5 – Agonias Impensáveis 135 Capítulo 6 – Uma ação ético/clínica 135 6.1. Agenciamento teórico 146 • Quarta cartografia clínica: Uma ação 150 Referências Bibliográficas 158 Créditos das Imagens xiii Índice das Imagens 07 Imagem 1 - Francis Bacon - Fragment of a crucifixion (1950) 12 Imagem 2 - Anomalia cardíaca fetal à ecocardiografia e à necropsia 28 Imagem 3 - Juan Valverde – Anatomia del corpo humano (1560) 36 Imagem 4 - Kazuo Ohno - Butô 55 Imagem 5 - Francis Bacon – Pintura de triptic (1970) 83 Imagem 6 - Adriaan Van den Spiegel – De formato foetu líber singularis (1631) 91 Imagem 7 – Ultra-som fetal tridimensional 107 Imagem 8 - Sir Samuel Luke Fields – O médico (1891) 125 Imagem 9 - Nazareth Pacheco – Sem título (1998) 134 Imagem 10 - Bebê prematuro 145 Imagem 11 - Vaso de Phintias (VI a. c.) O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 1 Apresentação São as marcas que escrevem. Suely B. Rolnik A porta fechada não contém o grito. Do fundo de um corredor de hospital chega o som, rude e insistente, que transtorna os que passam. Parece não caber na paisagem e, talvez por isto mesmo, faz tremer as estruturas da tecnologia médica e as convicções dos profissionais da saúde. O choque entre a impossível dor e a pletora de objetos que lhe tentam dar forma, conter, nomear, parece multiplicar o impensável da sensação fugidia. Outro local, outro momento, outra atmosfera. Moça, tolhida do poder de ser mãe, vaga insone, qual zumbi em frangalhos, pelo consultório de psicanálise, pela casa sem vida, pelas páginas do caderno repleto de conversas lançadas aos ouvidos do filho ausente. A notícia da morte chegou meses antes do acontecimento, enquanto ainda gestava a condenada criança. Viu, com pavor, seu corpo tornar-se território estranho e ameaçador. As sensações que a possuíam e se exprimiam de forma inescapável e involuntária não respondiam aos diagnósticos e remédios, ou à “segurança” de saber – a cada momento – o que está “realmente” acontecendo com o feto ou com seu corpo (através do reiterado diagnóstico de crises de pânico). As formas de um câncer disseminado ou de um feto doente, de uma psicopatologia ou do nome de um sofrimento são oferecidas aos sentidos. Escutar, cheirar, sentir, mas principalmente olhar, são ações perceptivas O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 2 que vêm passando por uma multiplicação de variações em suas associações com objetos tecnológicos. Os equipamentos que esquadrinham o corpo produzem cada vez mais um número maior de informações, e estas abarrotam as relações, enquanto tentam ser – pobremente – contidas, em diversas imagens e palavras ou discursos. Mas esta produção não se restringe ao corpo, estando disseminada por todos os recantos do cotidiano, através dos meios de comunicação de massa. Produz-se e difunde-se uma enormidade de “seres” imagéticos, narrativos, conceituais, arquitetônicos, classificatórios, identitários. Não apenas por uma aceleração da capacidade de desenvolvimento técnico, mas também por uma tentativa de captura pela sedução do poder de consumo de cada um. Só se pode vender o que existe enquanto objeto individuado, e este objeto tem se tornado progressivamente imaterial. Ou seja, para tentar capturar o impalpável do desejo ou do medo, são oferecidas as possibilidades de “ver o rostinho do bebê” ao ultra-som ou de vestir-se de uma forma que assegura – provisoriamente – a pessoa em um status qualquer 1 . Caminhando por entre a selva de “objetos-sujeitos” está o ser do grito, da errância atormentada, da agonia. Ao contrário da matéria perceptiva, as sensações não permitem formalização. Só concedem exprimir-se enquanto passam para “outro destino”, são transitivas, singulares, intempestivas. As sensações abrem o campo do intensivo, préindividual, rítmico. Território obscuro e vital, esquizo por fugir e fazer fugir tudo o que é fixo e determinado. Uma perspectiva desta questão é a proposta por Pelbart, quando diz que “se antes o acesso às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos estava baseado sobretudo em critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade, pertinência religiosa, sexual, cada vez mais esse acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis por uma grande maioria. O que se vê então é uma expropriação das redes de vida pelo capital” (Pelbart, 2002, p. 253). Nestes “pedágios” são vendidas “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir”, ou seja, “a promessa de um modo de vida invejável” (idem, p. 252). 1 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 3 Proponho, com este trabalho, uma aproximação a este plano não empírico do corpo para, assim, esboçar a idéia de que, neste tempo que é o nosso, vem ocorrendo um sufocamento da potência intensiva. Nesta ecologia particular do que se apresenta atual e do que se mantém em virtualidade, concebo o que será chamado de agonia impensável ou esquizoalgia. Sensação de um sofrer difuso e intenso, que emerge justamente no limiar do processo de subjetivação, de seu abafamento e produção. Neste caminho tentarei encontrar a potência de uma clínica que lide com o campo de forças imateriais e, com isto, o viés ético e político que toma esta aposta. Com o objetivo de mergulhar o leitor no terreno das sensações, criei esta Tese com a mesma imprevisibilidade e participação com que nos colocamos na situação clínica, através de “cartografias clínicas”. Com isto intencionei abrir espaços livres de sentido teórico, para que se possa criar, entre o trabalho e o leitor formas inéditas de pensar e sentir. Desta forma, procurei me manter fiel à trajetória clínica que me interessa. Sobre o percurso Pareceu-me importante apresentar um roteiro do percurso trilhado. Começo pelo item chamado “Corpo objetificado” (Capítulo 1), como contraponto ao corpo que transcende a experiência empírica e representacional, o qual irá capturar nossa atenção. Em seguida, para aproximar-me da complexidade da temática, foi necessária a “construção” de um corpo-acontecimento (Capítulo 2). Ou seja, procuro mergulhar em uma perspectiva que tem o corpo em processo como foco maior. Para tal projeto – tendo em vista a dificuldade de realizálo – multiplico perspectivas teóricas que, cada uma a seu modo, se O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 4 agenciam com a proposta geral. Neste caminho tomam forma várias imagens do pensamento, nomeadas como “corpo-passagem”, “corpoestranho”, “corpo-melodia” e “corpo-devir”. Por esta estratégia, busco criar uma alternativa à lógica clínica – e ética – que lida unicamente com seres constituídos e conciliados em uma identidade fechada, como é o caso das abordagens habituais que visam à relação médico-paciente enquanto conjunto de regras de convívio 2 . Para, assim, produzir de forma mais determinada a aproximação àquelas agonias surgidas no próprio limite processual do ser. Este corpo-acontecimento inclui o corpo empírico, bem como a virtualidade potencial que lhe subsiste, atravessa e sustenta. O que permite pensar em uma ecologia de atualização e virtualização dos seres, sejam eles idéias, máquinas, palavras ou indivíduos. Em seqüência a este ponto, apresento alguns poucos “fragmentos críticos” (Capítulo 3) sobre situações atuais, coletados no decorrer da pesquisa, para explorar algumas situações cotidianas sob o viés da mutação contínua, a partir de um plano de imanência imaterial. Também avanço na idéia de um fomento atual à invenção (e, em contrapartida, de obstaculização desta) e, em seguida, trago algumas concepções sobre a dinâmica atual de controle, antecipação e risco, completando o panorama – fragmentário – do contemporâneo. Uma particularidade característica do nosso tempo – a qual procuro defender – é o fomento à produção de corpos extensivos ou formais, ou seja, a capacidade de pôr em série, estabelecer contato e promover novas sínteses a partir de diversos fluxos (conceituais, técnicos, imagéticos ...) 3 . Mesmo as clínicas com enfoque intersubjetivo, respeitam um pressuposto de relação entre individualidades. Esta pesquisa está mais alinhada a uma perspectiva de relação trans-subjetiva. 3 Incluí aqui também os corpos mais etéreos, mas não menos atualizados, da publicidade em todas as suas formas (comercial, acadêmica, institucional). Esta trabalha na 2 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 5 A isto vem aliar-se uma tendência à restrição dos planos de sentido potenciais (intensivos). Quero dizer que há também uma potência de esvaziamento da apreensão pática – a qual chamarei de intuição – da multiplicidade ou complexidade que acompanha o surgimento destas sínteses. A velocidade de substituição de objetos, e de exposição a estes, por exemplo, convoca à metamorfose dos corpos, mas a condição de apropriação da experiência intensiva – do gostando, distraindo, intoxicando – com freqüência não é acolhida. O que dá condição a uma asfixia do que, na experiência sensível, a excede, e exige das formas e representações, o seu ultrapassar. Após reunir o instrumental que nos permite pensar um “corpoacontecimento” e transitar por algumas reflexões acerca dos nossos tempos, empreendo a tarefa de apontar alguns caminhos teóricos para o que chamo de “clínica do impensável” (Capítulo 4). São idéias e associações para a clínica, decorrentes do trajeto percorrido. O esforço, do qual esta tese é resultado, foi vivido no Programa de Psicologia Clínica (PUC-SP), por um clínico (médico e psicanalista). Obviamente o interesse maior vem das sensações experimentadas – além de no próprio corpo do “pesquisador/cartógrafo” – neste território. E, destas experiências, surgiu a necessidade de propor que temos experimentado agonias singulares, difusas e intensas, que se relacionam mais com o como viver e como morrer (a processualidade da ecologia virtual/atual) do que com a clássica oposição dialética vida/morte. Agonias impensáveis (Capítulo 5), por estarem no limite do que se pode experimentar e pensar. Entre corpo e mente, ser e ambiente, objetivo e subjetivo, atual e virtual, mas escapando sempre da captura (mesmo da localização em um entre formalizado ou espacializado). multiplicação de mundos possíveis, para tentar capturar o imprevisível, e assim estipular um preço ou hierarquia de propriedade (Lazzarato, 2004). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 6 O trabalho não poderia se encerrar sem postular que encaro o próprio projeto de considerar um corpo “acontecendo no infinitivo”, uma atitude clínica, bem como ética e política. Apresento, então, no Capítulo 6 – “Uma ação clínica” – a delimitação de algumas características da ação sob este viés. A ação não se restringe a um campo específico do saber – médico ou psicanalítico – instalando-se nas bordas. Como das bordas é fruto este mesmo esforço. Deste território brumoso deve surgir a ação que interfira no “impensável”. Ainda resta destacar que a estratégia metodológica da Tese comportou dois planos de ação que se atravessam. O primeiro plano, o cartográfico, que se dá no mergulho em situações contemporâneas, sem uma pretensa neutralidade científica, mas ao contrário, tendo como objeto o que se produz no encontro/choque do “cartógrafo” com o “território”. Assim sou fiel ao projeto de conviver com o corpo em processo e não com objetividades já formadas. Devemos perceber os trajetos, o evolver dos encontros, mais do que as individualidades. Faz parte da cartografia uma aproximação crítica da experiência. A qual, nesta pesquisa, terá como foco o processo de individuação e constituição de “mundos próprios” (mutantes e mutagênicos). O segundo plano é o que tange a forma de apresentação. Foram incluídos pequenos ensaios e histórias chamados cartografias clínicas (“Um grito, muitos sopros”; “Violetas e sons”; “Moça e a notícia que vem das sombras” e “Uma ação”), entremeados de capítulos onde procedo a desenvolvimentos teóricos. Com isto espero situar o leitor no movimento cartográfico e na opção crítica, a qual – insisto – é também um posicionamento ético e político frente ao sofrer atual. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 1 – Fragment of a crucifixion - Francis Bacon (1950) 7 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 8 Primeira cartografia clínica Um grito, muitos sopros Gritos. Mais gritos. Não quaisquer. São gritos de raiva. Mas não só. Difícil dizer o que se pode traduzir a partir daquele grave som que enche os espaços. Certo é que ninguém que está por perto consegue furtar-se ao impacto da situação. É um grito que demanda, exige. Queixa, raiva, medo, alguma emoção outra, ou uma mistura de várias destas, complexas, parciais, transbordam do já volumoso corpo. Corpo extenso, pesando aproximadamente cento e cinqüenta quilos, não se contém, e se alonga. Passa inadvertidamente a ocupar todo o quarto, os corredores, os outros quartos, o corpo de todos os vizinhos. Atletismo louco, faz com que seu corpo in-corpore outros em contágio. Surpreende ainda, o fato de esta ocupação militar partir de um corpo quase imóvel. As pernas, órgãos habitualmente dóceis e obedientes, abdicaram faz um tempo de suas atividades. Paraplegia, dizem os médicos. Como seria bom parar de ouvir aquele clamor, que parece agressão pura e simples! Por que ele não se conforma com sua situação infeliz, e aceita seu destino? São alguns dos pensamentos, desesperados, que surgem nas pessoas responsáveis por cuidar daquele espaçoso ser. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 9 Não é um ser qualquer. É um paciente. Ser paciente, hoje, traz em si uma complexidade própria. Compõe uma paisagem arquitetônica particular. Um hospital, quase um hotel (Sant’anna, 2001, p. 30). Corredores amplos, suítes de bom tamanho, televisão, rádio, ar condicionado. Difícil encontrar uma explicação lógica para aquele grito. “Olha só o conforto que é oferecido!” Certamente a paisagem é muito diferente dos templos de Esculápio, na Grécia antiga. Pavilhões com belos jardins, onde os doentes acorriam para curar-se pelo contato com a beleza, e através dos sonhos visitados pela divindade (Lyons & Petrucelli, 1987, p. 176). Diferente também dos leprosários da Idade Média, e de muitos hospitais da Renascença. Depósitos de “sub-humanos”, destinados unicamente à morte (Foucault, 2001, pp.101-2). Não são parecidos – os hospitais modernos – nem mesmo com os hospitais dos séculos dezessete e dezoito, época de opulência econômica, e da necessidade de a nova burguesia distanciar os pobres e doentes de suas casas e cidades. Naquela época, os cuidados propriamente médicos deveriam ser procedidos na casa do próprio doente. O convívio com os familiares era fundamental para a recuperação deste. Havia também uma filosofia médica por detrás desta atitude. Tirar o paciente do seu ambiente habitual poderia interferir na evolução natural da doença. Assim, a classificação da doença e a terapêutica que ocorre em seqüência, poderiam ser prejudicadas (Foucault, 2001, pp. 102-3). Não é descabido este sobrevôo por sobre as épocas. Não há um universal que se chama paciente, e atravessa os séculos, imutável. Cada tempo carrega em seu bojo a condição de “criar” seus próprios pacientes (e seus cuidadores), e assim é com nosso próprio tempo. Portanto, aquele transbordante corpo, que enche os ouvidos e a mente da equipe encarregada de sua saúde, já participa de um conjunto O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 10 de fluxos que, estes também, se con-formam e excedem as formas. Fluxos arquitetônicos, conceituais, médicos, tecnológicos... Coloquemos mais alguns destes fluxos em evidência. Doenças mais graves são “vividas” em um hospital. Isto denota que o tratamento independe do local, e mesmo é beneficiado por um deslocamento da pessoa do que podemos chamar de seu lar. A doença tem um estatuto mais independente do entorno. É praticamente um indivíduo a ser eliminado, uma “entidade” nosológica (ou identidade). Há, então, um esvaziamento das ligações afetivas que aproximam a pessoa “dos seus”. Familiares, objetos, lugares, memórias sensoriais não são mais importantes para a determinação da patologia e, menos ainda, para o ataque às suas habitualmente bases por anátomo-patológicas estudos (táticas “multicêntricos”, determinadas “duplo-cegos” e “randomizados”). E, junto a isto, há uma virtualização do ser, confrontado com uma população de encontros inéditos, os quais produzem sensações que “insistem” por conquistar vias de expressão, formas de subjetivação. No hospital, a família se desincumbe do doente. Em um mundo onde homens, mulheres e mesmo crianças são atarefadas; no qual todos portam a responsabilidade de prover sua própria felicidade, em meio a uma profusão de objetos e identidades a serem consumidos; e onde a morte tornou-se um “não-sei-quê” aterrador, sempre afastado e presente; neste mundo, a doença e a morte dificilmente comunicam ou questionam alguma coisa para os saudáveis e vivos 4 . Ao contrário, contingência infeliz, tem seu (não-?) lugar para ser vivida. Longe do cotidiano dos sãos, que ficam protegidos do contágio da proximidade com o adoecer e o morrer. Bertrand Vergely ao dizer que não há mais lugar para os mortos na sociedade moderna, quer dizer que “não é mais um morto que se enterra, é o enterro ele mesmo que se enterra” (Vergely, 2001, p. 26). Podemos parodiá-lo dizendo que não é mais o doente que é negado, mas o próprio fato do adoecer/envelhecer. 4 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 11 As instalações contemporâneas favorecem também a concentração, em um só local, dos equipamentos médicos. Nos últimos dois séculos, desenvolveu-se uma forma de produção de saber em íntima relação com o sentido da visão. Um léxico, que liga as imagens do corpo, diretas ou mediadas tecnologicamente, foi criado e elevado à forma principal com que se diz a verdade sobre o doente/doença. Vê-se o aumento ou diminuição dos órgãos. A consistência do fígado, rim, baço. A inflamação da pleura, pericárdio, meninge. A função excretora dos rins, digestiva dos intestinos, bombeadora do coração. Corpo massa. Passivo ao esquadrinhamento do olhar clínico contemporâneo. Olho erotizado e voraz, que articula uma palavra para cada recôndito que recebe sua atenção. Tradução simultânea, parece não comportar distância entre o que se apresenta e o que se fala. “As imagens falam por si”! 5 Um exemplo é minha própria dissertação de mestrado (Aragon, 1996) – realizada no âmbito tradicional da medicina atual – na qual os “cortes” anátomo-patológicos do coração de fetos mortos acompanhavam os “cortes” que se obtêm ao ultra-som (Figura 2). Cria-se uma sensação de “aprendizado imediato”. Ver ao ultra-som passa a ser ver o coração anatomizado. Este é identificado, num esforço redutor, à doença e em última instância ao doente. Nas palavras de Foucault: “o olhar clínico tem esta paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo” (Foucault, 2001, p. 122). 5 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 12 Imagem 2 – Defeito do septo atrioventricular à ecocardiografia fetal e à necropsia. A anamnese, a percussão, a ausculta são capturadas por esta linguagem baseada no olhar. São apenas formas diferentes de o olhar passear por dentro do corpo, compondo imagens para o médico. Som de galope “é igual” a coração enfraquecido. Depressão “é” uma falta de serotonina. Uma pedagogia do olhar, baseada na correlação de todas as informações obtidas do vivo, com aquelas observadas no cadáver. Assim, tudo deve ser passível de ser recolhido por este “olho que fala”. Aquilo que não se deixa iluminar, que escapa, é gerador de angústia, sinal de incompetência, interferência, e estímulo para uma nova investida desta forma de conhecer. A própria estatística busca obliterar o espaço entre a representação visível e o “espetáculo” complexo de sensações. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 13 Esta clínica, uma clínica, não se pode deixar de dizer, é fascinante. Fascinante porque seduz o olhar. Fascinante porque permitiu um acúmulo fantástico de saber. Fantástico, pois este saber resultou em possibilidades de tratamento e na efetiva abolição de dores e doenças físicas e funcionais. E, tudo isto, em curto lapso de tempo. Conhecimento enciclopédico, pobremente contido em infindáveis volumes, mas sempre tidos como defasados, insuficientes. Tecnologia clínica que, no encontro com as tecnologias fabril e informática, pariu uma extensa prole de objetos. Estes não mais são frutos do labutar cotidiano do profissional-artesão, debruçado sobre seu objeto. O freqüente e intenso encontro do homem com o objeto, transformando suas mãos em instrumentos hábeis pela resistência do encontro, toma hoje uma outra dimensão. O objeto, antigamente, como que escolhia o profissional. Deixava-se (ou não) manipular, esculpir, e agora perdeu muito de sua voz. Ele era o próprio encontro humano: povoado de um sem número de fatores, não determinados e não passíveis de serem transmitidos em livros; autoridade, presença de espírito, envolvimento com a família, forma de tocar, intensidade da voz, ritmo das visitas. Como uma torneira aberta, que vai inundando de água os cômodos, o saber do olho vai ocupando a cena clínica. Esta vai recebendo em sua companhia tantos novos observadores, testemunhas, que o encontro se transforma radicalmente, para além ou aquém da consciência dos parceiros (ou da vontade destes). São exames de urina e sangue. São tomografias e ultra-sonografias. São fonoaudiólogos, psicólogos, especialistas médicos. É toda uma pletora de seres de saber que fragmentam o encontro, fragmentando os sujeitos e objetos. Sabe-se tanto, que inevitavelmente se sabe pouco. Assiste-se, então, à procissão: oncologista, enfermeiro, cardiologista, ecocardiografista, radiologista, O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 14 fisioterapeuta. Profissionais mergulhados em um mundo esquizóide, no sentido de partido, em pedaços. Na verdade, este movimento está para além deles. Não há qualquer voluntarismo. Os novos equipamentos (técnicos e conceituais) atravessam o corpo, dissecando-o em pequenas fatias, sem, no entanto, esgotar sua vida, e sem sentir os obstáculos que antes ele oferecia, e modelava a relação médicopaciente. Os obstáculos serão de outra natureza, mais etérea. O sopro de um grito, uma palpitação que não se dá ao olhar, um humor que resiste a se aliar à anatomia das circunvoluções cerebrais, às organelas ou às proteínas celulares. O mal-estar se apresenta, mas traz consigo muito mais de sombra do que luz 6 . Inunda de virtual o encontro clínico, e pega os personagens desprevenidos. Acostumados que estão, por décadas, a lidar com imagens totais e nomes próprios. A submissão da natureza à geometria, ao mecanicismo, ao desejo de manipulação abriu caminho para a produção de uma forma de conhecer mais distante do objeto em si. Da superfície de contato, da pele. Paradoxalmente, a interioridade do saber, o que ignora a pele, estende o corpo em múltiplas direções, produzindo uma outra forma de superfície. Como se a pele “desse o troco” por ser ignorada, multiplicandose. Os enciclopedistas são ponto privilegiado de passagem de uma forma de saber ilustrado, indireto, intelectual, interpretativo 7 . Parece que algo deste movimento foi se instalando no corpo das pessoas em geral. O corpo vai progressivamente se tornando matéria de saber e de manipulação. Como se cada verbete, cada campo do saber, pudesse dirigir-se para o Como diz Pontalis (1991, p. 15): “uma doença que entra em sua fase ‘crítica’ pode conhecer um desfecho fatal ou um desenlace feliz; de qualquer modo será decisiva, produzirá a decisão. Um ‘simples mal-estar’ não permite nem um diagnóstico seguro nem um prognóstico provável; desarma nosso saber, escapa a qualquer apreensão”. 7 “Pensado por adultos”, como diria Simondon (2001, pp. 88-94). 6 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 15 outro “de fora”. O corpo é vivido muitas vezes como um estorvo. Diz-se que o “físico” não acompanha a “idade mental”. Mas também o mental ou psicológico deve poder ser “trabalhado” com psicoterapias, antidepressivos, meditações. Grito. O paciente que acompanhamos, e que nos acompanha, grita. Faz reclamações, aparentemente sem sentido. As enfermeiras e auxiliares não são habilidosas em aplicar as injeções. Alguns remédios não estão lhe fazendo bem e por isto recusa-se a tomá-los. Nada do que é feito ou proposto é recebido sem resistência. O corpo mesmo da comunidade hospitalar vai sendo capturado por um movimento, ao qual, ele também, corpo-comunidade, resiste (e se transforma). Uma dor, aguda e difusa, vai transformando o corpocomunidade em medo, desespero, ódio. Os médicos procuram ser breves e técnicos, a equipe de enfermagem começa a recusar-se a tratar o paciente, as funcionárias administrativas sentem-se acuadas pelas exigências dos familiares – estes também transtornados com a situação. “Corps morcelé”. Corpo fragmentado. Desintegrado. Corpo difuso e real, agônico. Dissolvendo-se e refazendo-se entre o grito e o que lhe subsiste, o sopro. Este corpo traz à lembrança as ansiedades impensáveis ou agonias primitivas de Winnicott (1994, p.72). Agonias no limite do pensável, pois relacionadas à própria tensão do que emerge como um eu, um corpo sentido como único e próprio. A desintegração já é uma defesa, uma organização, a tentativa de recolher um ser da explosão potencial. Ser, arrancado de suas referências minimamente asseguradoras. À procura inconsciente de um plano possível de existência singular. Mesmo que “em pedaços”. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 16 “Corps morcelé”. Aqui, a expressão ganha uma dimensão imprevista. Como que um “Corpo sem Órgãos” 8 , ou de mil órgãos, se apresenta. Uma desconstrução do organismo, dentro do hospital-hotel. Exames, os mais diversos, vasculham partes e substâncias de um corpo que já perdeu os limites, pois prescindem da organização em um só corpo. E também porque em seu vasculhar, promovem um recorte, que atinge paciente, cuidadores, arquitetura, saber. Os profissionais com várias especialidades, com vários pacientes para tratar, com vários locais de trabalho para freqüentar... são parte integrante deste plano que abdicou de um pretendido corpo com limites precisos. Grito. “Todo o corpo escapa pela boca que grita” (Deleuze, 1996, p. 23). Corpo que expande, toca e recria suas dimensões, lançando as relações em novas dimensões. Uma nova processualidade retira, a fórceps, o automatismo das relações, de seus trilhos habituais. Um novo corpo é exigido a partir deste acontecimento. Ele não se recusou a ir ao hospital. Como de costume, as pessoas não se recusam a procurar um médico – esperando uma cura – quando uma doença se apresenta. Porém, aquele deslocamento de ar, aquele som, parece tornar todos os livros de medicina obsoletos. Mais que isso, faz parecer que todos contêm apenas páginas em branco. Câncer, paraplegia, quimioterapia, infusão contínua. Os livros estão cheios de palavras e imagens. O grito, a rabugice, apaga todas. Aí, neste “impossível lugar”, afirma-se uma nova existência. O Corpo sem Órgãos, é um conceito extremamente complexo, desenvolvido por Deleuze e Guattari, a partir do livro O anti-Édipo. Faço neste ponto uma apropriação particular, com o sentido de ser um ponto de apoio e passagem para o pensamento. Uma das definições dada pelos autores é a que segue: “O Corpo sem Órgãos é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 12). 8 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 17 O adoecer como um processo. Um processo paradoxal, positivo e negativo, de produção de novas existências. Trata-se de adoecer e não de portar uma doença. Pois, nesta concepção que estou delimitando, esta última é apenas uma fotografia. Um momento capturado em cena ou palavra. Com Canguilhem aprendemos que a saúde é um processo dinâmico, que só pode ser concebido a partir do adoecer 9 . Estamos à frente de um corpo sempre em revolta. Longe do equilíbrio, constituindo o que é doença e saúde a cada instante, no limite das marcas que carrega em si e dos encontros que se apresentam. O que é o adoecer na situação que tratamos? O câncer do corpo cadaverizado? A projeção maciça de um ser psicológico, mergulhado em desamparo e intolerante à castração ou à frustração? Sim. O exame físico, a tomografia e a biópsia, não deixam dúvidas quanto à presença de uma galopante neoplasia. Sim. O desespero, o medo, a sensação de desamparo, a raiva, são sinais que marcam os corpos e as mentes dos atores. Transferência 10 e contratransferência 11 compõem a cena de uma clássica psicanálise. Mas também sim. Sim para o corpo vivo que não cabe na patologia e nem na comunicação de representações subjetivas. Não cabe na estrutura 12 orgânica ou psicológica. Nem mesmo no recorte “A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio” (Canguilhem, 2000, p. 20). 10 A transferência “designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida entre eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 668). 11 Contratransferência é definida como “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais particularmente à transferência deste” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 146). 12 Estrutura pensada aqui como: “a posição de uma ordem simbólica irredutível à ordem do real, à ordem do imaginário e mais profunda do que ambas” (Deleuze, 1995, p. 260). E 9 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 18 fenomenológico. Isto pois, “segundo a tese fenomenológica da Unidade intencional do ser no mundo, ‘toda multiplicidade implica necessariamente uma unidade teleológica que a ordena. Esta ordenação é a garantia de sua racionalidade (...) e assim a explicação da subjetividade transcendental é o tema da filosofia primeira’ ” (A. de Mulrat, apud Aliez, 1996, pp. 93-4). Mas com seu adoecer, o ser problematiza. Faz emergir, produz. Não supõe uma teleologia, e não se reduz à unidade sem carregar consigo toda a penumbra de virtualidade potencial. Homem surgindo do não-humano no homem. Acompanho Aliez (1996, p. 94) quando ele define que, em oposição à tese fenomenológica, “a tese ontológica da dobra acontecimental do ser do mundo (...), o devir e a multiplicidade sendo um só e mesmo ser, o múltiplo não tem mais unidade à qual todo ser é relativo; o devir não tem mais sujeito distinto de si mesmo; e se o sujeito se iguala ao mundo, do qual é um ponto de vista constituinte, o mundo leva consigo o pensamento da heterogênese da natureza.” As identidades – médico, psicanalista, doente, doença, o que projeta 13 ou transfere, o que introjeta 14 ou contra-transfere –, a descrição do “ser no mundo”, são insuficientes para capturar o que está “vindo a ser”. O acontecer do encontro, por sua própria característica de complexidade, não permite captura. A não ser uma delimitação parcial. Afetação e cartografia. ainda: “os elementos simbólicos não têm designação extrínseca nem significação intrínseca mas apenas um sentido de posição, é necessário estabelecer em princípio que o sentido resulta sempre da combinação de elementos que não são eles próprios significantes” (idem, p. 263, grifos do autor). 13 A projeção é “operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, e mesmo ‘objetos’, que ele desdenha ou recusa em si.” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 478). 14 Introjeção é o “processo evidenciado pela investigação analítica: o indivíduo faz passar, de um modo fantasmático, de ‘fora’ para ‘dentro’, objetos e qualidades inerentes a esses objetos.” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 323). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 19 O sofrer que atravessa o encontro clínico, longe de ser uma falta ou uma deficiência é, ao contrário, sempre excesso, produção. Para usar a metáfora de Deleuze, uma “dobra do Fora” (Deleuze, 1991, pp. 101 e ss). Um dobrar que recolhe, em seu movente limite, uma série do que estamos chamando de fluxos. Sofrer que é superfície de dobra. Frêmito, ondulação, porosidade da pele que recolhe o passado, o condensado, no interior e abre-se para o futuro de um exterior em constante movimento. Sofrer é presente vivo, que serpenteia exprimindo novas conformações. Expressão que se apresenta em nosso horizonte e interroga os corpos. Assim, sempre há um sofrer. O sofrer, o exprimir, o dobrar dos acontecimentos que não se resumem à historicidade cronológica 15 . Uma certa dor de movimento, de crescimento. Doer que inquire a forma como o tempo e o espaço se enovelam e produzem os seres. Não se trata de enaltecer o sofrimento 16 , mas de escutá-lo, não recusá-lo, perceber quais rumores pedem passagem, para permitir dobras que recolham o que se apresenta. Com isso quero dizer que a experimentação e o acontecimento nunca se resumem à história. Nas palavras de Deleuze: “a história não é a experimentação, ela é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história.” (Deleuze, 1992, p. 210). E, em um desdobramento que considero importante, o mesmo autor, referindo-se ao livro Clio de Péguy, aponta que “há duas maneiras de considerar o acontecimento, uma consiste em passar ao longo do acontecimento, recolher dele sua efetuação na história, o condicionamento e o apodrecimento na história, mas outra consiste em remontar o acontecimento, em instalar-se nele como num devir, em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo, em passar por todos os seus componentes ou singularidades.” (idem, p. 211). 16 As palavras sofrer e sofrimento são expressões, neste trabalho, do que excede as formas e da abertura para o radicalmente novo. Não pretendo, em nenhuma hipótese, enaltecer a dor ou a doença. Ao contrário, as dores que despertam a atenção de médicos e psicanalistas devem ser devidamente acolhidas por estes, para que o problemático da vida, o que pede expressão e produz metamorfose, o que estamos tratando como sofrer, possa ser vivido em sua plenitude. Não coloco em questão a necessidade de acolhimento, mas o modo como este está podendo ser agido. 15 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 20 Recolher em seu bojo a complexidade movente do apagamento das identidades estáveis. E, com este mover, poder perceber a emergência das agonias esquizo, impensáveis. O rude som que invade a enfermaria não demanda um analgésico. Não é dor física, o que dá origem ao som. Os antidepressivos ou neurolépticos também não cabem na situação. Uma angústia se instala em todos os que estão à volta. Algo precisa ser feito, os cuidadores também se sentem adoecendo. Eczemas, gripes freqüentes, dores de cabeça, obesidade, irritabilidade. Por este viés do acontecimento é que fui chamado. Talvez, algumas reuniões com um psicanalista ajudem a minimizar os efeitos que a tarefa de cuidar estava trazendo em seu bojo, pensaram. Todos gostam da profissão pela qual optaram. No entanto estão adoecendo. E nesta situação específica, chegaram ao limite de pedir que o paciente fosse transferido para outro hospital. Nos encontros com os cuidadores, uma série de outras linhas de força vai se revelando. A necessidade de rapidez, a identidade do doente com a doença, o estereótipo de bondade como identificação do profissional que cuida, o esvaziamento do que singulariza a pessoa adoecida em prol de um cuidar tornado automático e tido como suficiente. Através de uma pergunta, toda uma série destas questões se revela. E aqui, podemos dizer que, inadvertidamente, houve uma intervenção clínica. “Qual a profissão do paciente?” – perguntei. Nenhuma, das cerca de oito pessoas que estavam presentes na reunião, sabia responder. Apesar da sensação de culpa, de falha, que iluminou o rosto de muitos, o que importa não é a resposta que falta, mas aquilo que sua ausência traz à baila. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 21 “Acho que trabalhava no porto. Devia ser uma pessoa muito ativa!” Com estas palavras, a enfermeira desencadeia no grupo um conjunto de elaborações acerca do paciente e deles próprios. O que nos interessa é o que se apresenta neste “entre-corpos”. Aquilo que não se dá a ver como sujeito e objeto, cuidador e paciente – com sua possível psicologização – mas o que os con-forma, hoje. E foi o que apareceu naquele momento. Movimento. Alteração da percepção, junto com alteração do que percebe. Visão que muda com o olho. Identidade-doença, fragmentação e serialização dos encontros, corpo-igual-a-massa. Foram alguns dos planos problemáticos que surgiram. O objetivo não é o de esgotar, ou mesmo mapear exaustivamente estas forças em jogo. Fundamental é acompanhar o movimento que se produz quando o habitual, o instituído, se rompe. Há a emergência de novos sentidos, há produção de novas realidades. Lançar perguntas. Quebrar pretendidas essências imutáveis e universais transcendentes. Atualizar o que é real na sustentação da cena, mas em estado de virtualidade. Aspecto analítico do que chamo de clínico. Falamos de uma disposição que atenta para o ser-sendo (paciente, médico, psicanalista, grupo...). É preciso não negar o sofrer. É preciso não se culpabilizar, estancando o devir por uma identificação com a falta ou o pecado. É preciso resistir à captura do novo por “palavras-tampão”. Atitude que não tem como meta caber no limite do visível/invisível. Os novos sentidos são produções, e não um saber à espera de uma lente ou luz que o tornasse acessível. Não são também parte da dialética consciente/inconsciente (recalcado - verdrängung), pois não se trata de reminiscências. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 22 Produções como expressão que emerge do encontro. Revelando algumas destas que estou chamando de linhas de forças. Formando outras, por composição de vários fatores, virtuais ou não. Uma atitude clínico-política. Atitude de escuta. Escuta no sentido de abertura para ser afetado pelo que se produz no encontro. Escuta que comporta a delicadeza de aceitar os vários planos de sentido que sustentam o acontecimento, sem por isso querer esgotá-los. É o que concebo como uma clínica que considera o que está em estado de virtualidade. Pois é justamente esta profusão de planos, de linhas de força, este excesso, que permite a emergência de novos sentidos. Com isto tornase possível escapar aos grilhões de uma dor re-apresentada, para o ineditismo de uma apresentação. De uma alteração daquele sofrer. Mesmo estando implícito que não há espaço para um ideal teleológico, de cura, apaziguamento total, ou parada. Muitos serão os visitantes deste paciente. Médicos, enfermeiros, auxiliares, fisioterapeutas, técnicos. Vários deles têm outros trabalhos e cuidam de um grande número de pessoas. Colocá-las em um só local facilita as coisas. Chegamos a outro relevo da cartografia que estamos realizando. Que reúne em sua espessura como que vários estratos geológicos. Resistência, obstáculo, mau humor. Paciente difícil, dirá a equipe de saúde. Este paciente, impertinente por certo, teimava em perguntar a cada médico que o visitava pela manhã, informações sobre seu estado de saúde e o tratamento em curso. Digo impertinente pois, segundo dados das enfermeiras e médicos, ele só fazia isto para confrontar a opinião de uns com a dos outros, assim descobrindo as distâncias entre elas. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 23 Foi aí que descobri haver um médico diferente para cada dia da semana, designado para vê-lo. Isto apesar de um só deles ser o responsável pelo enfermo. É tamanho o nosso costume de pensar em termos de sujeito/objeto; de concentrarmos as singularidades de cada época e situação em identidades (nosológicas, anátomo-patológicas, ...); que facilmente acreditamos que o inferno no qual a equipe de saúde está mergulhada deve-se ao temperamento daquele paciente. Esquecendo que aquele corpo é a forma e o que resiste a ela, o que se diferencia, dos fluxos que nos atravessam. Esta pessoa tem um câncer em estágio adiantado. Tem um diagnóstico que parece permitir a liberdade dos profissionais. Um revezamento possível, pelo fato de que o bastão que cada um carrega é o mesmo: o câncer. Mas porque não ver o paciente todos os dias, já que tratar pacientes foi a profissão eleita? Pergunta ingênua para quem habita o século XXI. Os trabalhadores continuam ocupados com pacientes. Só que eles são muitos, distribuídos por vários lugares diferentes. Diminuiu a relação do médico com o paciente, e aumentou destes com a doença e com as instituições. E talvez ainda mais com compromissos menos palpáveis, como sustentar a existência reduzida à unidade de consumidor. Tentativa de pagar a recalcitrante dívida de uma sociedade na qual “o homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” 17 . (Deleuze, 1992, p.224) A idéia de “homem endividado” se revela, aqui, pelo espalhamento e fragmentação da movimentação dos profissionais. Eles não estão mais “presos” a um hospital ou instituição, mas des-integrados. Estão acelerados, talvez na tentativa de recuperar a unidade perdida já na origem do viver contemporâneo. Dívida impossível de ser paga, difusa e sutil, apesar de intensamente experimentada. Mais ainda, exclui-se do jogo quem não tem condições de assumir as dividas incessantes de um cotidiano constantemente em processo de obsolescência. 17 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 24 Ter um diagnóstico dá condição de ser tratado por vários profissionais, é uma senha. O diagnóstico e o tratamento devem ser feitos em hospitais conveniados, públicos, universitários. Esquemas de rodízio em ambulatórios ou visitas matinais. Esquemas de plantão. São conseqüências das mudanças nas concepções de doença, de doente, de médico, de pessoa. O paciente que ocupa nossa atenção, estranhamente, apesar de estar totalmente mergulhado neste sistema de saúde, resiste a ele. Põe em xeque a alternância de profissionais. Resiste também à forma como o cuidado se dá. Freqüentemente se observa uma enfermeira saindo daquele quarto a chorar. Acusada de não ser atenciosa, ou de ser incompetente para administrar os medicamentos e outros cuidados. Cada enfermeira não consegue deixar de considerar como uma crítica à sua pessoa, mesmo sabendo que todas elas estão sofrendo o mesmo tipo de injúria. Psicanaliticamente, há vários modelos teóricos, melhores ou piores, que poderiam se aproximar da situação em questão. Aquela pessoa, em estado de profundo desamparo, em meio ao estigma da doença, ao malestar geral, à imobilidade, poderia estar transferindo para aqueles profissionais a responsabilidade de suas dores. Talvez reagindo “como se” fossem pessoas agressivas ou frustradoras de sua história pregressa 18 . Estaria, em sádica fruição, fazendo uma identificação projetiva (Klein, 1991, pp. 20-43)? Seria, a angústia sentida por enfermeiras e médicos uma forma inconsciente de comunicação da angústia sentida pelo doente (Bion, 1994, pp.119-20)? Num processo de re-presentação teatral de desejos inconscientes. Este modelo teórico, como veremos, será posto em questão. 18 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 25 No entanto, todas as chaves explicativas – neste momento é isto que importa destacar – têm que se render à precariedade de sua condição, frente ao acontecimento que evolve. O próprio ato de cuidar também é posto em questão. Justamente uma das ações que mais toca a equipe encarregada de zelar pela saúde. Com isto, há uma certa desconstrução do que estava em jogo na escolha inconsciente da profissão. E da proteção que a hierarquia dá: “eu sou o sujeito que cuida, você é o objeto do cuidado”. Uma desconstrução da instituição, da “tecnologia de diagnosticar e tratar”, da arquitetura e, por que não?, das próprias pessoas. Desmembradas em cabeça latejante, em ódio incontido, em garganta inflamada (talvez último recurso de conter um ... grito). O grito-catástrofe lança os corpos em queda livre, e faz ressoar os mais íntimos recônditos dos seres. E, para além de uma passagem ou intrusão do que há de interior no paciente, no exterior dos cuidadores, há a constituição de um “plano de sofrer”. O conceito de dobra subjetiva nos dá ferramentas para “pensar diferentemente”. Pois o que forma o interior não é diferente do que está fora, a não ser pelo fato de, momentaneamente, estar na face interna. No entanto, há uma contigüidade, um ponto de passagem, que preserva a potência mutante das figuras, ansiosamente asseguradas em estabilidade 19 . O modo como Deleuze concebe a questão do duplo em Foucault esclarece esta questão. O duplo “nunca é uma projeção do interior, é, ao contrário, uma interiorização do lado de fora. Não é o desdobramento do Um, é uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução do Mesmo, é uma repetição do Diferente. Não é a emanação de um Eu, é a instauração da imanência de um sempre-outro ou de um Não-eu. Não é nunca o outro que é um duplo, na reduplicação, sou eu que me vejo como o duplo do outro: eu não me encontro no exterior, eu encontro o outro em mim (‘trata-se de mostrar como o Outro, o Longínquo, é também o mais Próximo e o Mesmo’)” (Deleuze, 1991, p.105). 19 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 26 Os cuidadores foram, inadvertidamente, eles também, expostos à concretude de intensas e moleculares forças. A asfixia de uma imobilidade produtiva, que o grito compartilha, faz vibrar as angústias e a precariedade das identidades. Aproxima a certeza de que as senhas/códigos (como “aquele que cuida”) só se sustentam por um labor constante e fatigante. Abala a servidão a um tecno-logos que subsume seus corpos para um propósito ao qual, doentes, resistem. Agonias de um corpo que, em velocidade infinita, atinge e ressoa os corpos impensáveis de nosso tempo. Sem tempo. Para percorrer os trajetos entre uma paragem e outra. Para ligar e ligar-se. Colorir com suas cores uma realidade proliferante em objetos e potências. Potências de descoberta. Mundos novos, novas alegrias e inquietudes. Tempo esquizo, que exige habilidade e flexibilidade imensa. Tempo que ameaça com uma queda sem fim, com o desmembramento do organismo pela revolta dos órgãos, seduzidos e arrastados para distâncias enormes, com exclusão e morte. Tempo que, da mesma forma, também abre mil perspectivas de encontros e alegrias. Possível ainda uma clínica? Sei que não é possível ficar passivo ante o grito. Mil sopros a convocam. E eles partem também do que acostumei chamar “mim”. Aspiro uma ação possível. Encontro... uma. “Colocar o grito sonoro com as forças que o suscitam.” (Deleuze, 1996, p. 41). Dar forma aos sopros que sustentam e exigem o grito, Pois este não pode ser suprimido. Ao contrário, é caminho de “cura” para aquilo que ainda “não foi experienciado” (Winnicott, 1994, p. 73), apesar de vivamente O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 27 real e presente. Virtual (real e inatual) aspirando a maturação em acontecimento. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 3 – Anatomia del corpo humano - Juan Valverde (1560) 28 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 29 Capítulo 1 Corpo-objetificado Ó tu que estudas esta máquina, o corpo, não deves te sentir ressentido por receber o conhecimento que resulta da morte de um semelhante; alegra-te que nosso Criador tenha te dado acesso a um instrumento tão perfeito. Mesmo, porém, que sejas movido pelo amor, é possível que te vença a náusea; e ainda que não te vença tal náusea, talvez sejas derrotado pelo medo de passar longas horas noturnas junto a corpos esquartejados. Leonardo da Vinci Ando pelas ruas do bairro, cumprimento João, cumprimento Maria. Reparo que têm formas próprias, volumes. Têm curvas, que delimitam o corpo, e fazem sugerir conteúdos. Eu – reparo – também os tenho: formas, volumes e conteúdos. Participamos todos de uma comunidade de indivíduos. Como também aquele “volumoso corpo”, colhido em um leito de hospital. Mas podemos nos perguntar: o que fez com que, para além dos indivíduos, nos preocupássemos com os seus órgãos, a vertigem do desconhecido de seus interiores? Acostumamos a nos pensar – não é um privilégio dos médicos – enquanto um “conjunto de órgãos”, e isto está marcado nas falas e nos medos. “Estou com uma dor no coração”, alguém diz. E outro responde: “deve ser entupimento das coronárias!” O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 30 Antes do famoso médico anatomista de Bruxelas, Andréas Vesalius, e de seu tempo, o fascinante século XVI, o interior dos corpos não era objeto de atenção específica 20 . No entanto, um fervor humanista que atravessou a arte e a medicina naquele tempo fez com que o corpo humano ganhasse uma atenção enorme (Lyons & Petrucelli, 1987, p. 369). Retratos dos corpos e suas expressões. Volumes que traíam músculos e órgãos sob a pele. Cadáveres que, sem pudores, escancaravam os seus “dentros”. Entre os anatomistas daquele século, há mesmo os que conceberam desenhos nos quais dissecam a si próprios, ou homens dissecados que seguram a sua própria pele (Vène, 2001, pp. 58-9). Percebe-se que houve um deslizamento – sutil, mas contínuo e seguro – na forma de conceber o corpo próprio, cotidiano. Toda uma tecnologia do saber começa a banhar os espíritos que, não só se lançam aos mares em busca do desconhecido, como atravessam um limite ainda mais assustador (e sedutor), a pele. “O corpo passa a ter um dentro!” E dentro, há um conjunto de estruturas regulares da espécie humana. O homem vai tendo seu corpo objetivado através da descoberta de novas formas. Estas, também, reservatórios de interiores. Com o tempo, vai tomando conta deste corpo uma filosofia que enxerga a natureza como uma mecânica. Vê o corpo como uma máquina composta de peças que possuem funções diferentes, mas que se compõem para dar vida ao ser. 21 . “Contra o olhar medieval, Vesálio vai instaurar os direitos da observação” (Gil, 1980, p.124). 21 O corpo morto é o eleito para servir de complemento à concepção emergente de ciência. Pois esta ciência crê na possibilidade da razão, da elaboração intelectual, compreender o todo da natureza. O corpo reduzido às partes, manipulado, reconstruído, esposa amavelmente as regras do entendimento. O qual, aliás, terá por princípio que a própria 20 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 O corpo emergiu da profundidade 31 abissal de um interior desconhecido, para um complexo estrutural, capaz de dar condições à apreensão deste enquanto massa viva, biológica e fisiológica. O interior – dessacralizado e fonte de interesse – passou a guiar os passos da ciência médica, que desenvolveu técnicas para penetrar, de muitas formas, nesta “boneca russa”, a fim de “conhecer o corpo”, e quem sabe, a origem da vida. O corpo sempre é acompanhado por um conjunto de idéias, historicamente determinadas, que também o ajudam a ganhar forma. Por exemplo: um corpo com um fígado duro e cirrótico é muito diferente (inclusive com expressões e tratamentos diversos) daquele que, no início da era cristã, apresentava um desequilíbrio dos humores. É fácil pensarmos que houve apenas um aperfeiçoamento da medicina (e da sociedade como um todo), linear e certo, para uma maneira cada vez mais adequada de apreender o corpo. No entanto, não é bem assim. O corpo toma a forma do fluxo ideativo, da complexidade do jogo de saberes e de poderes em questão. Ele comporta também uma série de planos de interpretação possíveis, que convivem em maior ou menor proximidade. Ainda além, existe um campo potencial que abre este corpo para uma conformação imprevista. Como imprevista, e talvez impensável até então (apesar de não ser mística ou transcendental), a ligação do corpo vivo com o corpo morto. Segundo Foucault, foi no início do século dezenove que o famoso patologista Xavier Bichat começou a correlacionar os achados patológicos após a morte, com o que deveria estar ocorrendo no corpo vivo, antes percepção estará – como na Dióptrica de Descartes – subordinada ao conceito (Muricy, 1988, p. 481). Ou seja, já que a natureza respeita as leis da ciência, há que aperfeiçoar os domínios da razão para apreender melhor aquela. Como é o caso do uso do microscópio de Leeuenhook ou do telescópio de Galileu. Os quais superaram as limitações dos sentidos humanos na conquista da verdade. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 32 daquela 22 (Foucault, 1998, p.167). Quem poderia imaginar que um corpo – que já não é mais propriamente humano; que já foi abandonado pela centelha divina, pela alma; que é constituído de matéria pútrida, cadavérica – poderia ter “algo a dizer” para os vivos? Sim. Num jogo de fluxos conceituais e materiais, a meninge inflamada do cadáver é o que há naquela criança de nuca contraída, febre e manchas na pele. A medicina, como a vida, está cheia de criações, nas quais não é possível discernir se foi a natureza ou a cultura que mudou primeiro. Um conjunto de fatores, os mais diversos, concorreu para a “descoberta” do “cadáver-professor”. Inúmeras conseqüências se darão, sem podermos negar que elas mesmas não começaram aí, mas estavam “em gestação”. Alguns desdobramentos deste evolver serão: o interesse da medicina pela anátomo-patologia; a redução da importância do vivo da pessoa para pensar a saúde; a adaptação dos corpos vivos ao que se deseja evitar no morto (como não comer comida gordurosa, para não ter entupimento das coronárias); a predominância do olhar. O corpo do qual trata a medicina é um corpo vivo, mutante, no sentido de que é aberto a um campo potencial que o pensa e o age de forma diversa a cada momento. O corpo-estrutura tem dentro e fora. O corpo-máquina funciona, ou não. O corpo biológico é massa viva, tendo uma espessura que permite a Para além do que se poderia considerar como uma simples correlação da vida com os achados post-mortem, há toda uma mudança na concepção de vida e, concomitantemente, em como as pessoas a experimentam. “É preciso, portanto, substituir a idéia de uma doença que atacaria a vida pela noção muito mais densa de vida patológica” (Foucault, 1998, 174). Como vimos desenvolvendo, é o próprio viver que está em questão, cada vez mais – produção intensa de novos corpos-mundos, e captura em modelos e imagens surdas. Deleuze (1991, p. 102), ao comentar este trabalho de Foucault, assinala que “a vida consiste apenas em tomar seu lugar, todos os seus lugares, no cortejo de um ‘Morre-se’ ”. O poder toma a vida como objeto, fazendo com que a morte deixe de ser “o instante decisivo ou acontecimento indivisível” (que tornava a vida destino), passando a ser coextensiva àquela e “como feita de uma multiplicidade de mortes parciais e singulares” (idem). 22 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 33 observação (das mais diversas formas) e a manipulação. O corpo-cadáver é um duplo do corpo vivo, sendo que ambos fazem um só, vivo-e-morto. Todos estes corpos – biológico, estruturado em organismo, maquinal ou cadáver – se atravessam, para compor a concepção hegemônica da medicina contemporânea. Uma característica que os atravessa, a todos, é o distanciamento do que o corpo tem de obscuridade e vertigem. O interior do corpo, com seus órgãos e funções, e mesmo o corpo visitado pela morte, tornou-se superfície iluminada pelo sol do conhecimento. Mas de qual conhecimento estamos tratando? De um conhecimento que cria uma discursividade para tudo do corpo. Traduz a presença complexa daquele em fórmulas matemáticas, geométricas, ou descritivas. E o desconhecido é apenas o ainda não conhecido. É um conhecimento que asfixia a multiplicidade de planos de virtualidade, que estão presentes nos momentos de encontro 23 . Isto conduz ao que estou chamando de corpo objetificado. Fechado em modelizações que encarnam a crença de poder mapeá-lo completamente. Ou indefinidamente, criando um movimento próprio à ciência contemporânea, de captura e nomeação do virtual, e não tensão e convivência. Estes fluxos e capturas já apontados não são uma propriedade privada da medicina, ou de qualquer outra ciência. São movimentos no mais das vezes sutis, que se dão a ver, de forma insidiosa, “de dentro” das pessoas. Como por exemplo, quando uma pessoa chega para fazer um ecocardiograma, e eu pergunto: “como o senhor tem passado?” E recebo a resposta: “não sei doutor, o senhor agora é que vai poder me dizer!” 23 Este tema será desenvolvido em maiores detalhes no decorrer do trabalho. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 34 Com esta pequena troca de palavras, fica claro que o paciente se sente despossuído da condição de conhecer a verdade de seu corpo 24 . Esta verdade foi deslocada para a capacidade de invasão de um equipamento, que irá vasculhar seu interior, eviscerando-o. Através de um “médico tecnológico”, que não conhecia o paciente até aquele momento. Portanto vê-se que um valor, relativamente recente, ganha espaço com relação ao encontro da dupla clínica médico-paciente (com a possível passagem de histórias, toques, intuições etc.). O que interessa aqui não é desenvolver o tema (muito interessante) das transformações da relação médico-paciente, mas falar de algo que lhes subsiste. O corpo-concebido-como-cadáver entra, hoje, voluntariamente no consultório, para fazer exames de toda sorte, e se assegurar – de maneira parcialmente infrutífera – de sua saúde, ou do seu pouco risco de morrer. O paradoxo é que, quanto mais o corpo é colonizado pelas idéias que o con-formam em uma imagem fixa, mais ele se abre em desconhecido. Quanto mais se reproduzem concepções sobre o corpo, sem considerar a coletividade de fatores, atuais ou potenciais – que estão em presença – mais fragmentos formam-se, e com eles mais angústia. Não se trata de tentar recusar os conhecimentos científicos, mas de pôr em relevo que a produtividade de “descobrimentos” sobre o corpo tem respeitado um plano de acúmulo e fragmentação, plano este que atravessa a todos nós, e traz conseqüências. É o que chamamos de conhecimento enciclopédico, extenso e particularizado, que se reproduz veloz e ansiosamente, para que o conjunto forme um corpo. 24 Há, no entanto, um ganho paradoxal para o paciente em questão. Apesar de alijado do processo de produção de saber sobre si neste acontecimento específico, enfrenta a particularidade deste jogo singular de saber/poder, com o reconhecimento de sua capacidade limitada de ter consciência sobre a complexidade de seu ser. Podendo assim se beneficiar do que esta forma de investigação pode lhe oferecer (como o tratamento de uma enfermidade – orgânica ou funcional – assintomática). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 35 Como plano, ele se apresentará, conforme já apontado, não só na medicina, mas em todo o tipo de clínica. Também a psicanálise, como veremos, ver-se-á obrigada a enfrentar a questão da proliferação de psicopatologias e de teorias metapsicológicas. A partir do momento em que podemos conceber o corpo como o resultado do cruzamento de múltiplos fatores, e vivendo em múltiplas fases, estamos nos preparando para encarar um “outro corpo”, que é o mesmo, mas paradoxalmente também difere deste (objetificado). O corpo que nos interessa propor e pensar, não é fechado em si, mas passagem, estranhamento, ritmo... O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 4 – Butô por Kazuo Ohno 36 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 37 Capítulo 2 Perspectivas para um corpo-acontecimento Tudo o que sobrará de mim é papel impresso. Com um pouco de manhã engastado nas sílabas, é certo, mas que é isso em comparação com meu corpo real? meu corpo onde a alegria é possível se mãos lhe tocam os pêlos se uma boca o beija o saliva o chupa com dois olhos brilhantes? Ferreira Gullar 2.1. Corpo-passagem Os trajetos não são reais, assim como os devires não são imaginários, na sua reunião existe algo de único que só pertence à arte. Gilles Deleuze Eu passo por Maria, passo por João. Os nomes próprios revelam que se trata de pessoas, indivíduos, e como tais mutuamente excludentes. João não é Maria, e nenhum dos dois sou Eu. Casamentos, assassinatos, trocas, todo tipo de situação entre nossas individualidades pode ocorrer. Da mesma forma que o paciente que grita, pode recusar-se a tomar uma injeção, deprimir-se ignorando todo o movimento ou morrer. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 38 No entanto, interessa-me enfrentar a obviedade desta interpretação, que de tão familiar, nem parece ser apenas uma. O interesse comporta justificativa. A principal é o próprio movimento de deslocamento interpretativo. Tendo em conta a proposta de que o pulsar que habita os encontros lança os corpos em um processo de transformação contínua. Isto por serem atravessados por singularidades pré-individuais, virtuais, não integradas nas formas. E, justamente o excesso ou a desmedida, a precariedade dos seres, é que não cabe na dialética 25 , instaurando um corpo que é sempre passagem, em vias de desaparecimento. Corpo aberto a um plano que interroga constantemente seus limites, por exposição à alteridade radical que é este plano potencial. O grito que explode nos corredores de um hospital me atinge, e eu já não sou o mesmo de minutos atrás, embora talvez necessitasse me iludir que sim. Enquanto me exponho, o ritmo do som, a intensidade, as expressões faciais que se somam, os gestos... tudo muda comigo. E agora então, quem eu sou? Sempre é possível pensar que sou o mesmo de sempre ao longo do tempo; como individualidade constituída buscar encontrar palavras simples, para explicar uma doença ao “paciente leigo”; ou me compadecer de sua dor, procurando ser compreensivo e gentil. Observe-se que existe, desta forma, uma separação e um voluntarismo. Eu posso ser desta ou daquela forma. Toda a questão do terceiro excluído 26 está presente neste plano da relação entre indivíduos. Da mesma forma que a ilusão de reversibilidade encarnada no ou. Ser ou não ser, desta ou daquela forma. 25 Dialética entendida como forma de pensamento baseado na contradição ou oposição dos termos, comportando os três momentos sucessivos desenvolvidos por Hegel: tese, antítese e síntese. Ao contrário, procuro trabalhar com a idéia de uma concomitância paradoxal da negação e da afirmação. 26 Terceiro excluído tido como terceiro termo excluído, ou seja, a contradição entre termos se resolve sempre com a aceitação da veracidade de um e a falsidade do outro. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 39 Mas, desta forma, o paradoxo de um adoecer que não se localiza em um indivíduo, não estaria contemplado. Pensemos diferentemente que “algo” se passa, mas não de um para outro. Não se trata aqui, de uma transferência de representações e nem da constituição de um terceiro objeto que seria uma forma de intersubjetividade. Guattari traz aqui sua contribuição, falando na passagem de um “ímpeto rítmico mutante de uma temporalização capaz de fazer unir os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial” (1992, p. 32). Ritmicidade que não tem proprietário, mas é o próprio acontecer. “Nosso” paciente não dá trégua aos “nomes próprios que vão visitálo”. Todos os padrões de conduta pessoais – laboriosamente confeccionados e automática, mas talvez angustiadamente, representados – tremem. Cada profissional é colhido por um estranhamento que parece brotar de si (é verdade que na presença do paciente), abrindo espaço para o encontro com a precariedade do ser. Um médico que evita o seu paciente? Uma enfermeira que não pára de chorar após desempenhar o seu trabalho? A lógica do terceiro excluído pode realmente funcionar, como prova a vontade manifesta de transferir o paciente para outro hospital. Ou o fato de todos da equipe se “reconciliarem” consigo mesmos, após a morte dele. Funciona mas não resolve. Aquele grito não mais preenche os corredores e ouvidos, mas a vibração (multiplicidade pré-individual virtual) que o sustentava, já havia confrontado os circundantes com aquilo que ultrapassa a geometria de suas certezas. Não será possível esquecer – pois marcada na pele viva – a experiência do encontro, que disparou um devir. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 40 Algo de um sofrer intenso se passou. E ainda passa, mesmo após a morte. Pois isso que passa, por não passar de um para o outro, não pode acabar com o afastamento ou com a morte. Aquilo que sustentava o grito, ou seja, o aspecto potencial do encontro singular – as paredes de um hospital, a pressa de todos, a asfixia de um nome (“câncer”), a tradução de si nas imagens (de tomografia, mas poderiam ser quaisquer outras), e uma infinidade de outras séries – conserva o ímpeto, apesar de diferir sempre. O próximo paciente já não ocupará o mesmo quarto, pois não há mais como alinhá-lo na série de pacientes com câncer, e nem como reproduzir a complexidade do instante, a atmosfera. A equipe já mudou, e tudo o mais com ela. Desta forma, descubro que não sou o mesmo enquanto devenho, ninguém é, passo de fase. E a passagem é o contato com a eternidade do instante. Corpos são atualizações transitivas, resultado de um pulsar que recolhe e expulsa singularidades impessoais e pré-individuais. 2.2. Corpo-estranho ...não há experiência, em senso estrito, que lá, onde alguma coisa de radicalmente estranho está em jogo. Maurice Blanchot Aquele grito (mas poderia ser um sorriso ou um tapa) estranha, pelo fato de que “algo” da multiplicidade agida no grito produz ressonância nos circundantes, disparando estados inéditos do viver. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 41 O estranho é o abalo, mínimo que seja, na repetição de si. É a instauração do diferir no que se acredita próprio, especular e estável. Implica uma abertura potencial. A cada instante o ser se faz, um novo “mundo ambiente” se apresenta. Há apenas a eternidade da pulsação que atualiza e virtualiza aspectos do ser-mundo. Este último, quando se abre para o momento seguinte, “esperando” encontrar-se lá, surpreende-se de não poder atravessar os momentos, sem participar do pulsar que é acontecimento irredutível a unidades de medida de tempo. Assim, estranho é – para nós – a potência demoníaca do repetir que nunca encontra a si mesmo, estando para além. Não há algo pronto, que só faz emergir da virtualidade. Se assim o fosse, seria apenas a realização de um possível. Ou seja, este algo seria já uma re-apresentação do passado, que se coloca no futuro como uma possibilidade. A enfermeira pode chorar, o médico pode auscultar ou o paciente pode gritar. Há sempre um leque de possíveis, que desliza do passado e abarrota o futuro com suas ramificações, realizando-se, ou não. Mas mesmo o possível sofre influência do potencial. Aquilo que força o atual para se diferir. Quando uma possibilidade vai se realizar como, por exemplo, o bebê retornar ao seio, talvez buscando encontrar algumas das lembranças vividas (outra possibilidade), um campo de indeterminação se abre. O bebê encontrará um “outro seio”, pois este já mudou desde a última mamada, e o bebê também. Seu cheiro, humor, sabor, são novos. A enfermeira chora – ou não – mas por qual motivo? Em qual momento? Em relação a quem? O relacionamento entre pessoas totais, fechadas em si através do tempo, com sua lógica estrutural de posições ocupadas num jogo O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 42 relacional de exclusão mútua, é, no mínimo, uma forma interpretativa 27 . Forma que reduz o contato com a produtividade potencial – que abre os seres ao radicalmente novo – à idéia (em certa medida necessária) de oposição entre o ser e o mundo. No entanto, ao considerarmos a questão da produtividade virtual, somos convidados a considerar a questão da própria “passagem” dos corpos de um estado a outro, da potência para um experimentar o que se dá nas fissuras da percepção/memória linear ou determinada. Para além do possível. Pensamos em uma percepção/memória do que não foi inscrito, no sentido de que jamais fez parte de um sistema de registros de memória. O radicalmente estranho surgiu na equipe de cuidadores. Surgiu, porque a complexidade dos seres – com suas profissões, hábitos, tecnologias, formas de produzir tempo e espaço – incluía a potência para serem afetados por aquele grito. Para entrar em contato com algo inominável do encontro, que produziu uma passagem para outra fase, para outra realidade subjetiva/objetiva, com suas sensações e necessidades de expressão próprias. Aquele acontecimento entornou o estabelecido para formar uma angústia difusa, uma irritação, uma disposição para a doença física. Estranho não é amigo, nem inimigo, tem um estatuto-limite, impreciso. Não pode ser afastado como “não-eu”, e nem ser assumido enquanto eu, familiar. Na radicalidade deste estranho, que não mais pode ser afastado, encontramos a questão que Lyotard (1997, p. 62) – ao trabalhar a E, no máximo, é um modo de subjetivação que “é o terror ao outro e, portanto, ao devir e à morte, e a instauração de uma utopia da unidade, uma ilusão de completude, mantida pela tutela que este terror exerce sobre a subjetividade e que tende a sabotar todo e qualquer movimento de criação da existência.(...) Ou seja, um racismo contra o estranho-em-nós” (Rolnik, 1996a, p. 38-9). 27 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 43 perlaboração 28 freudiana (durcharbeitung ou working through) – propõe: será possível lembrar-se de algo que não pôde ser esquecido, porque não foi inscrito? O estranho, neste contexto, seria o contato com algo que possui uma realidade transitiva, virtual, esquizo, em potência. Corresponderia ao tangenciar de uma memória que não surge de um suprimido da atenção, ou de um recalcado do consciente, mas que passa “ao lado”. Uma “memória inédita”, agida pela abertura à desmedida dos instantes, não sendo repetições habituais, ou rememoração de algo já vivido. Nada deste plano esquizo está no plano das formas, apesar de ser real. Não há um fechamento ou uma totalidade, ali, onde o “entre fluxos” gesta o atual. Penso em uma “memória-presença”, no limite do tempo e do espaço. Pois a potência é memória de um corpo que a sustenta e é sustentado por ela. É presença real, mas invisível, pulsante. É uma presença que não tem lugar nem momento no suporte de inscrições, por ter quebrado o suporte inscritível ou memorável (Lyotard, 1997, pp. 62-3). O som que fere os tímpanos e atiça o corpo desaba em atualidade e lança o instante em contato com uma dor sem tempo, por contê-los todos. Neste cristal do tempo vem se instaurar o estranho, o absolutamente novo, aquilo que não se mistura com o suporte de outras marcas, pois dilacera e produz a própria pele do momento. Assim que é afetado pelo incontido do som não pode mais continuar o mesmo, impassível. Será, ao contrário, irremediavelmente lançado ao mar dos afetos em aventura necessária. Palavra cunhada por Laplanche e Pontalis (1988, p. 429) para traduzir o termo utilizado por Freud “durcharbeitung”, elevando-o à categoria de conceito. Acompanhando a perspectiva de Lyotard, parlaborar é “passar ao lado da síntese”, é uma “técnica sem regra ou com uma regra negativa, desregulada, uma generatividade sem outro dispositivo do que a ausência de dispositivo” (1997, p.62). 28 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 44 2.3. Corpo-melodia Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o chão que é terra. O resto é ar e o resto é lento fogo em perpétua mutação. A palavra “perpétua” não existe porque não existe o tempo? Mas existe o ribombo. E a existência minha começa a existir. Começa então o tempo? Clarice Lispector Buscando uma outra forma de aproximação deste plano de virtualidade, que constitui um certo modo de apreendermos os seres, enquanto expressão de uma processualidade que os atravessa, explorarei nesta parte as intuições conceituais de Jacob von Uexküll. Uexküll foi um etólogo, do início do século vinte, que publicou sua obra maior chamada Dos animais e dos homens – digressões pelos seus próprios mundos – doutrina do significado (Streifzuge durch die umwelt von tieren und menschen) (Uexküll, s/d). Logo no primeiro parágrafo do prefácio, escreve que seu livro limitase “a incluir o que podia chamar-se a descrição de um passeio por mundos desconhecidos”. E além: “estes mundos não são apenas desconhecidos, são também invisíveis; mais do que isso: o seu direito de existir é-lhes, em geral, contestado por muitos fisiólogos e zoólogos” (idem, p. 23). Quais seriam, então, estes “mundos desconhecidos e invisíveis”? Seriam mundos gestados em um plano “supra-individual” 29 . E apenas esta concepção já nos coloca diante da dificuldade de pensá-lo, 29 Preferi utilizar o termo “supra-individual”, apesar da tradução portuguesa usar “superindividual”, por considerar mais adequado ao pensamento do autor. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 45 uma vez que a forma ocidental de pensar, habitualmente, parte dos indivíduos constituídos. A resistência que nosso pensamento impõe, revela-se, quando Uexküll determina que dele “[plano supra-individual] não se pode formar qualquer idéia adequada, pois não é uma substância nem uma força” (idem, p. 88). Por isto, encontraremos, ao longo do livro, a potência de palavras que habitualmente passam apenas tangencialmente nos livros científicos, como: esboços, teores, protótipos ou “melodias iniciais”. Veremos que a forma mais profícua de penetrar neste terreno brumoso será o da música. A idéia fundamental que é lançada é a do umwelt (mundo ambiente). Este é, propriamente, o mundo que está aquém ou além das formas sujeito e objeto. Que os inclui, atravessa e con-forma. Assim, é criado um termo que procura resistir ao que, no “meio ambiente”, é já separado a priori. Este mundo ambiente não é homogêneo. É povoado por singularidades intensivas, que surgem dos encontros, os mais diversos, os quais mobilizam o “arranjo” entre o que é atual e a multiplicidade invisível do plano supra-individual 30 . Complexos destas singularidades que acontecem no mundo ambiente são chamados pelo autor de “mundospróprios”. Para cada ser vivo, há uma melodia que lhe subsiste, e que se estende, enquanto potência, pelo entorno. Um plano de “melodias iniciais” está oculto sob uma “cortina das aparências”. Ou seja, a flor e a abelha são compostas uma para a outra, em contraponto 31 . As “cortinas” são expressões diversas de planos melódicos que se dão a ver, deixando na Penso em um mundo que transcende o empiricamente experimentado, o qual “não é certamente redutível a algum estrato físico ou biológico, social ou cognitivo, ou qualquer outro. (...) Trata-se de um mundo como reserva infinita, transmundo, sem hierarquia de complexidade, sempre e por toda parte diferente e complicado” (Lévy, 2003, p. 27). 31 “Como modelo, podem servir-nos as regras da composição musical, que parte do princípio de que são necessários, pelo menos, dois sons para formar uma harmonia. Na composição de um dueto, as duas partes que se devem fundir numa harmonia são compostas nota por nota, ponto por ponto, uma para a outra. Nisso se baseia a teoria do contraponto, na música” (Uexküll, s/d, pp. 180-1). 30 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 46 sombra um processo molecular de mutação contínua, o qual implica a abertura para o plano virtual (não formal e não dialético). Da mesma forma que há “uma partitura inicial para a mosca, tal como existe uma partitura inicial para a aranha. Ora eu afirmo que a partitura inicial da mosca (que também podemos designar por protótipo) atua na partitura inicial da aranha, de modo que a teia tecida por esta resulta ‘própria para capturar moscas’” (Uexküll, s/d, p. 166). Poderíamos argumentar que estas são determinações hereditárias, e não possuem relação com a processualidade supra-individual que aqui tratamos. No entanto, por uma série de exemplos, Uexküll esclarece que os impulsos instintivos são apenas uma expressão, resultado da perplexidade de quem não apreende a dinâmica da constituição imanente, em contraponto, da natureza (idem, p.88). Poderíamos, então, conceber: aquele paciente que grita... ou, melhor, os planos de sentido, que concorrem para a emergência daquele grito, entram em ressonância com os planos que “harmonizam” os indivíduos que entram em contato com ele. Desta maneira, um corpo melódico vai ganhando consistência entre os indivíduos (na verdade “para além”, pois não se trata de um entre espacializado). Ligando-os visceralmente e, ao mesmo tempo, iluminando as resistências que os diferenciam. Um mundopróprio se conforma a partir do encontro. Não como uma mistura de individualidades ou como uma unidade de conjunto, mas como o surgimento de uma partitura inédita que ultrapassa o constituído – num movimento paradoxal de virtualização e atualização. Assim é que se tornou possível a comunicação da própria gênese dos mundos próprios abertos O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 47 em devir (pelo evolver 32 do mundo ambiente), re-configurando suas potências para afetar e serem afetados por outras melodias. Este “corpo-mundo-ambiente” sempre escapa à apreensão, porque se dá no limite do encontro de sons. “Só as ondas de ar não podem produzir uma melodia ou uma harmonia, nem constituir uma partitura. Apenas o encontro destas com o ouvido humano as pode forjar” (idem, p. 200). Neste entre, neste dueto, aquém do humano, a potência rítmica sempre se conserva em virtualidade; o que permite o evolver do “corpopartitura”, e a formação de novos. No limite do próprio corpo que se forma, o ímpeto rítmico se conserva, agora engendrando a porção nova daquele, expressa na atualidade, em sua singularidade vibrátil (potencial, residual, que não se esgota). Não há reversão do tempo, ou constância estática deste corpo melódico, mas apenas uma conservação ativa de alguns aspectos de si. Esta é uma característica que percorre desde o nível intracelular, até a parte mais abstrata da subjetividade. Para conservar a integridade das formas, é necessária a abertura, a troca, a comunicação, que é invenção de ritmos. O “ser-paciente em processo”, deitado em uma cama de hospital, atravessado por instrumentos tecnológicos, traduzido por códigos os mais diversos, afastado do “seu mundo próprio” habitual, será impelido a produzir uma nova partitura. Seria esta uma doença? O encontro de todos estes – e muitos mais – “fluxos melódicos” darão origem a um novo corpo. Um corpo contemporâneo, que surgirá do encontro e do devir de potências virtuais. Território permeado também pelo Utilizo a palavra evolver com o sentido de transformação (transformar-se ou tornar-se), a qual dá a ver, por sua própria existência, a ação pré-individual da qual os indivíduos são resultado. Esta palavra é utilizada por Bion (que será uma referência para este trabalho), assim como evolução. Optei pelo verbo evolver por entender que evolução passa, mais fortemente, a idéia de aperfeiçoamento. Em inglês diz-se evolve: “desenvolvimento de um estado ou estágio do ser para outro” (Webster, 1987, p. 107). 32 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 48 “hábito de si” – por uma ritmicidade tornada fundo, através da repetição – mas, como vimos, sempre mutante. Seria, então, o caso de tentar extirpar o corpo-grito com palavras de repulsa ou com medicações sedativas? Talvez sim. Se a música que se compõe no encontro dos seres faz surgir algo de tão insuportável, que os ameaça profundamente. Estamos diante da questão proposta por Espinosa: o que pode o corpo? Sabemos que cada corpo-partitura conserva em suas notas a desconstrução de outros. Assim, não podemos nos iludir, achando que em qualquer situação, devamos acolher a violência do salto que afoga o nosso corpo empírico, neste corpo em processo. Para manter e aumentar a perspectiva de sentido do ser (o ímpeto rítmico) é necessária a conservação do vínculo que produz seu “teor melódico”. Mesmo assim, não é possível dar as costas à produtividade que nos consome e aviva; à urgência do corpo-invenção que pede passagem, apesar da inércia musical de nossa constituição. Inércia que é como que um “ritmo de base”, mesmo não sendo essência ou identidade imutável. Até porque o corpo está cada vez mais exposto à pressão de estabelecer sínteses baseadas no encontro de séries aparentemente incompossíveis. A resistência, a desaceleração dos fluxos-grito ou dos fluxosrabugice, se estabeleceu na confluência do que nos temporaliza, e exigirá um re-arranjo dos corpos em seus aspectos visíveis e invisíveis, atuais e potenciais. Neste ponto preciso, é que procurarei pensar a ação clínica. Ação banhada de uma ética e uma política específicas. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 49 Não nos deteremos neste tema, aqui. Mas importa convidar alguns elementos da teoria de Uexküll, que implicam um atravessamento da ética, da política e da perspectiva de ação. O mundo próprio do sujeito se constitui em uma dinâmica de sínteses de fluxos heterogêneos em devir, o que estabelece um plano. Este plano pode ser chamado de “ciclo-de-função” (Uexküll, s/d, pp. 34-6). O ciclo, ou um conjunto deles, vai se tornando apreensível por sinaisperceptivos e marcas-de-ação. Os primeiros estão fora dos órgãos de percepção, e estabelecem uma ligação entre os participantes do ciclo. Já as marcas-de-ação imprimem uma alteração no objeto do impulso, sendo estas também o resultado deste plano, que em última instância, consiste numa interdependência da percepção e da ação. Não há propriamente uma relação de causalidade. A ação é uma potência convocada pela percepção. E esta última está, já, implicada naquela. Enquanto se age, vai ocorrendo um reforço e uma modificação na percepção, ou seja, no plano como um todo, reforçando ou virtualizando determinados teores em questão. Sendo o impulso efetor e o poder de ser afetado, aspectos constituintes do ciclo, é necessário buscar “de dentro” (ou seja, de modo não transcendente), o que determina e influi nesta partitura espaçotemporal singular. Os signos de percepção “entram como perguntas no sujeito-animal” (idem, p. 34), situando-o em um campo problemático no qual está mergulhado. Portanto, para cada situação, deve-se procurar uma delimitação do que está em jogo no ciclo emergente, com seus sinais perceptivos e suas marcas-de-ação, suas perguntas e esboços de resposta. Uexküll exemplifica este campo problemático, observando o que se dá entre o carrapato e o mamífero. Escreve: “não é o estímulo químico do ácido butírico que se debate, nem tão pouco o estímulo mecânico (desencadeado pelos pêlos), nem ainda o estímulo térmico da pele, mas apenas o fato de saber porquê, entre as centenas de ações que resultam das O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 50 propriedades do corpo do mamífero, só três se tornam portadoras de sinais característicos relativamente à carraça [carrapato], e porquê essas e não outras” (idem, p. 37, grifo meu). Fica claro que, ao concebermos um corpo como expressão singular de um plano de sentidos, já estamos procedendo a uma política: encarando o ser como visceralmente ligado ao entorno. Convergência de outros tantos planos, que não lhe são contemporâneos, mas criam a sua própria temporalidade, na determinação de seu mutante mundo próprio. Com sua característica própria de abertura para a afetação e impulso, a gênese do tempo no mundo do carrapato diverge muito de qualquer outra. Este pode ficar em um estado de latência de dias ou anos, até que o encontro com o mamífero produza um evento, que marcará o seu mundo. Obviamente, se olharmos “de fora”, podemos impor a nossa cronologia à situação. No entanto, “só por excessiva leviandade alimentamos a ilusão de as correlações do sujeito, outro que não nós, com as coisas do seu mundopróprio existirem no mesmo espaço e no mesmo tempo que as que nos ligam às coisas do nosso próprio mundo humano. Esta ilusão é alimentada pela suposição da existência de um mundo único em que todos os seres vivos estão encerrados” (idem, p. 42). Podemos, a partir destes desenvolvimentos da pesquisa etológica, estender esta perspectiva ético-política, de considerar cada ser como resultante de uma produtividade temporal e espacial próprias, para os seres humanos. Isto porque, “toda a Natureza participa, como motivo, na formação da minha personalidade, no que respeita ao meu corpo e ao meu espírito – pois se não fosse assim, faltar-me-iam os órgãos para reconhecer a Natureza” (idem, p. 215). No entanto, existe entre os animais e o homem, a diferença de que este último pode ampliar “os limites da natureza inata” (idem, p. 215), por uma ampliação da capacidade de afetação (e portanto O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 51 uma transformação com limites mais amplos da musicalidade de seu mundo próprio). Justamente na capacidade humana de ampliar sua exposição à afetação, reside seu diferencial e sua fragilidade. As tecnologias discursivas e técnicas fazem nossa época ganhar um colorido inigualável, bem como um sofrer característico. Desenvolverei mais adiante este argumento – de que esta diferença de mundos entre os homens, de tempo e espaço, não é puramente abstrata – também, através da observação de bebês. E do impacto tecnológico em nosso sofrer, por outra cartografia clínica. Por ora vamos reter que existe uma diferença de mundos entre os seres. É necessário que ela seja preservada, e não encarcerada em um modelo aplicado a priori a todos. Daí se tira como conseqüência, que os modelos interpretativos de reconhecimento do sofrer singular de cada um, em cada situação e em cada época, devem ser sempre tidos como insuficientes, precários, em processo de dissolução. Faço a opção pela cartografia (Aragon, 2003, p. 16). Que busca “entrar” – incluindo o pesquisador ou clínico no processo – no mundo próprio do corpo que está ganhando visibilidade. Não há como prescindir totalmente das teorias, modelos e formas. Não seria desejável, e nem mesmo possível. Isto porque, como já apontado, importa a perpetuação de um constituído, um hábito, um vínculo – musical – entre as partes que formam um complexo (teoria, ser, imagem). Mas devemos fazer um esforço de limpeza, de silêncio, de espaçamento, das nossas próprias pré-concepções, para permitir um novo “ritmar entre” (mesmo porque a exigência do plano potencial não cessa). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 52 Não há homogeneidade na “mistura clínica”, mas encontro e condição de afetação, em contraponto, das singularidades. Ainda um desdobramento ético-político – que terá conseqüências clínicas – é a crítica que Uexküll faz, à perspectiva de Herbert Spencer 33 de sobrevivência do mais apto. Em várias passagens de sua obra, o autor demonstra o engodo de pensar que há a evolução de um ser menos para um mais perfeito (idem, p.210). Cada ser é perfeito em si, e tem os melhores meios para o evolver de suas necessidades potenciais. Eles formam suas partituras entre seus mundos próprios, na imanência de seus campos problemáticos, e não estão “preocupados” com qualquer finalismo ou aperfeiçoamento. Não há uma hierarquia de formas, seres ou mundos próprios. O ser em condição de perpetuar não é aquele que habita os extremos, mas o que corresponde à expressão suficiente dos potenciais melódicos de seu mundo próprio. Com isto quero dizer que a alteridade radical, o diferente, o estranho, o próprio diferir é abertura para o devir do ser e para a geração de novos potenciais. As relações ocorrem em um plano extensivo – como o contato das ondas sonoras do grito com o tímpano – mas também em um plano intensivo – como o que atravessa as questões “Por que este grito?”, “Por que agora?”, “Por que aqui?”, “Por que me afeta desta maneira?” Estes planos devêm, estabelecendo transferência com uma “potência do entre”. Potência que é a condição de ampliar o circuito de afetação/produção de sensações. Isto, mesmo que a espécie e o ser mudem radicalmente. Não há qualquer “preocupação” com uma estética da harmonia ou de sustentar uma ética do aperfeiçoamento e do equilíbrio. Spencer foi um filósofo contemporâneo a Darwin, tendo influenciado este último em suas elaborações teóricas. No entanto há diferenças entre ambos. Uexküll se opõe especificamente ao primeiro, na medida em que ele defende uma teoria evolutiva na qual o vivo caminha “sempre mais em direção a um ideal de equilíbrio e de harmonia” (Stiegler, 2001, p. 95). 33 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 53 A expressão plena dos potenciais em um acontecimento pode ser a doença, a rabugice, o desespero, a dor, o grito. O mundo ambiente avança produzindo fissuras nas formas, mutações nos seres, e estas “anormalidades” buscarão perseverar, enquanto expressão da ecologia atual/virtual. Há uma inversão de perspectiva quanto à filosofia spenceriana, pois o menos diferenciado (o menos determinado em uma forma ou padrão rígido de normalidade) é o que melhor permite a expressão do que se encontra em estado de potência. Em outras palavras, da precariedade é que se gesta a vida, ou da doença a saúde. O “pobre”, aquele que não está encarcerado na repetição de suas pré-concepções, o mais despojado de clichês é o que tem maior poder de participar dos devires, ser passagem para a atualização da virtualidade (e vice-versa) apresentada nos encontros. Assim, podemos nos reportar àquele corredor de hospital, com aberturas para quartos separados; enfermeiras passando de um em um, com a complexidade de sua existência; médicos especialistas, capturados na fragmentação célere de seu tempo. Planos, fluxos, melodias, compondo partituras. Sopros que se atravessam, compõem e decompõem harmonias, e surgem em um grito. Perfeito por sua própria presença. Nada de diferente poderia atualizar de forma melhor o jogo de corpos, empíricos e potenciais, recortados por um olhar – o nosso, mutante e aberto – da cena. E, então, do observatório imanente deste acontecimento poderíamos nos perguntar: e agora? O que virá? Como intervir neste processo? Como não ser afogado por ele? A clínica, ainda que precária em sua função, se destinará a mergulhar neste mundo ambiente. Carregará toda a densidade éticopolítica da sua – agora valorada – precariedade. Irá cartografar as marcasde-ação e os signos perceptivos, intuirá o plano no qual o ciclo-de-função O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 54 se dá, e buscará uma negociação possível entre as formas e as potências virtuais. Neste plano, a cura seria apenas um deslizamento de sonoridades, que se singularizam em outras melodias. Tendo em mente a multidão de fluxos em ação, não podemos almejar extirpar a doença, ou extinguir a dor, sem nos colocarmos em um plano analítico por um lado e potencial por outro. Não se trata de sair ao encalço da saúde perfeita ou do indivíduo mais apto, e nem de tolerar a dor, mas de abrir espaços que permitam o inédito do encontro, para intuir e melodiar as “proto-sonoridades” que pedem passagem. Neste ponto do trabalho, um outro ensaio virá intrometer-se, criar problema. No corpo-melodia que se pretende esta tese, o ritmo compassado da teoria sobrenadante, cede espaço à harmonia condensada da cartografia de uma sessão analítica. Estratégia que almeja tocar naquilo que a mim mesmo escapa. E assim, ser fiel à perspectiva ético-política de legitimar as zonas de indiscernimento. Nuvens de sentido, abertas por entre as palavras e conceitos. Abertas entre eu, o leitor, e mais. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 5 – Pintura de tríptico - Francis Bacon (1970) 55 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 56 Segunda cartografia clínica Violetas e sons Por automatismo do pensamento, ou ignorância do vivo da vida, esperava-se o encontro costumeiro, das pessoas habituais. Não foi, no entanto, o que ocorreu naquele dia. A mulher, alta, de passos seguros, e por vezes alegre, avançava com dificuldade. Todo o mundo parecia ser cruel demais, intenso demais, para aquele ser. Não uma crueldade agressiva, de ataque, belicosa. A violência que se apresentava era do próprio encontro das cores na retina, do ar que não parava de tocar o rosto a cada passo. A voz, o som que tece a voz, a vibração que se lança ao espaço, parecia trazer consigo o gume afiado da navalha, pronto a dilacerar qualquer expressão, qualquer relevo. Assim, o corpo se encolhia na poltrona, afundando num úteroabismo. Furo, buraco, escuro. Tudo o que havia e assegurava a existência costumeira foi perdendo a realidade. Os apoios invisíveis do cotidiano – estante, parede, chão – ficaram evidentes por sua ausência. A fala lenta, escandida, amorfa, esposava o corpo em despedida, quase sem vida. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 57 Não se falava de morte. Não era preciso, e nem mesmo possível. Hoje, parece que falar de morte teria sido rude ao extremo para com a ditadura do momento que seguia, insano. Violetas. Falava-se de violetas, as plantas. Os pequenos vasos dispostos em fileira no cordão da janela. Tudo o mais perdeu o sentido, apenas aquelas folhas verdes com flores ocasionais, resistiam na espessura sideral do breu. Vazio que se tornava mais presente do que a luz indireta das imóveis violetas. Elas precisam ser molhadas, pelo menos. Tornaram-se o único fio, tênue, de sustentação. Cordão umbilical, fio-mãe. Como se as frágeis plantinhas segurassem – com dificuldade – a visceral genitora que desabava exangue. De repente, ou não, as pétalas, o caule, as imperfeições das folhas... não precisavam mais de água. Não precisavam mais, como ela, de nada mais. Eram apenas objeto de descrição. Momento de despedida da mãe que, despossuída do poder de dar a vida, recolhe na memória as feições da criança morta. Ação desesperada e sem vida, que se equilibra e se nutre de impossível resgate. O diário repleto de palavras trocadas com o filho ausente, já não servia de amparo para aquela mulher. Fantasma que vagava pelas noites indormidas, assombrando e assombrada, em instante eterno, as páginas rabiscadas do caderno. A família, a casa, os amigos, a igreja, e ... o diário, perderam a razão de ser. Ficou a imagem, debilmente traduzida, das violetas. Não se sabe de onde, pois não havia mais nada. Talvez vindas do pouco de seiva que restava, improvável. Explodiram palavras. Palavras palavras mais palavras Pode ser que não fossem palavras eram mais propriamente sons Sons em galope fortes incontroláveis Vibração bruta sem origem ou destino Diziam da vida das cores dos O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 58 encontros desencontros Contavam aventuras de heróicos cotidianos Encarnavam os tempos de todos os mitos e se diziam e desdobravam se moviam davam voltas preenchiam. Emergiu do nada, ou assim parecia, tamanha a força do ruído em contraste ao silêncio infinito que preenchia o espaço entre as sílabas dementes. Quanto tempo durou esse jorro, que usava minha boca, língua, voz? Momentos, segundos, minutos. Quero dizer, o tempo todo. O tempo todo contraído em sístole infinita, após a diástole tornada assistolia. Após? Ou antes? Ou durante? Como saber o que poderia ser causa ou efeito? O que já estava, o que esperava, o que se seguia? Parecia vir de mim aquela multidão, enfurecida de vida. Mas eu, eu mesmo, estava pequeno ... e grande também. Estava ausente de mim, mas presente, tão presente, de algo que não sei o quê. Erupção, cascata, explosão... são imagens que me ocorrem hoje, distanciado que estou do acontecimento. Imagens de uma natureza que não é – e é – minha. É nossa, é dali, é além de nós. É. Mas certamente não é qualquer coisa. Está para além, no mesmo movimento que nos inclui necessariamente. A correnteza diminuiu a velocidade. A maré baixando, como que num esgotamento lunar. Sem planos, imprevisto, o ritmo encarnou outro compasso. Os olhos vivos, surpresos, foram os testemunhos da mágica aparição. Surgiram assim, saltados, em alguma hora, e se deram a reconhecer que algo havia se passado. Estávamos salvos. Algo nos redimiu. Como num sonho, éramos personagens jogados com violência em outro local, outra dimensão. Apenas um certo ar de surpresa e fadiga fazia lembrar, com dificuldade, a O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 59 paisagem anterior. As paredes retornaram em asseguradora consistência. O armário, os livros, cortinas riam-se da peraltice de terem se ausentado, sem sair do lugar. A voz e as palavras voltaram correndo, fazendo-se submissas, à atitude que se espera delas. Bronca. Foi uma bronca que se deu. Pelo menos foi esta a palavra que surgiu d’Isso tudo. Mais do que uma palavra, bronca tornou-se um signo, uma chave. Um código secreto que passou a nos ligar em incrível intensidade. A própria ligação. Bronca e pronto. Proferida, montava toda uma atmosfera singular, plena de vitalidade, feliz. “Lembra aquela bronca?” E só isso já fazia valer a pena viver a vida, ali, juntos. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 60 2.4. Corpo-devir Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Fernando Pessoa Diminuindo a velocidade do texto, inspirar-me-ei principalmente na filosofia de Gilbert Simondon, para desdobrar alguns pontos que já vêm sendo tratados desde o início. Interessa-me especialmente, neste autor, o deslocamento capital que ele faz, do lidar com indivíduos para o lidar com processos de individuação. Ou seja, no momento em que se dá o encontro de dois sujeitos, na sala psicanalítica – como em qualquer outro local – apenas por uma redução lógica (poderíamos dizer alucinatória?) é que os inúmeros planos potenciais são subtraídos. Assim, há o rebatimento da multiplicidade de fluxos na imagem da “forma-sujeito”, fazendo com que aqueles coincidam – por projeção – neste. O ser individual – de cada um, e o que se forma a partir do encontro – “não é todo o ser”, mas “resolução parcial e relativa que se manifesta dentro de um sistema cheio de potenciais e contendo uma certa incompatibilidade em relação a si mesmo, ...” (Simondon, 1995, p.23). Nesta perspectiva, o ser não pode ser concebido “como substância, ou matéria, ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado, abaixo do nível da unidade, não consistindo somente em si mesmo, e não podendo ser adequadamente pensado ao modo do terceiro excluído; ...” (idem, p.23). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 61 O indivíduo ou o individual passa a ser, mais do que resultado, passagem, meio, através do qual a realidade potencial se exprime. Orlandi — tomando como referência Deleuze (em Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 315-7) — esclarece que “o processo pelo qual as intensidades determinam diferenciações e, assim, se explicam, sem, contudo, perderem sua própria ‘independência’, recebe o nome de ‘individuação’. Assim, diz-se que ‘toda individualidade é intensiva’ justamente porque ‘a intensidade é individuante’, isto é, as ‘quantidades intensivas são fatores individuantes’. Em outras palavras, a individualidade ‘afirma em si a diferença nas intensidades que a constituem’” (Orlandi, 2000, p. 60) 34 . Caminhemos com mais vagar, pois, como Uexküll lembrava, não é fácil desfazer as armadilhas do pensamento, tornadas automáticas e habituais – inquestionadas por parecerem óbvias – como é o caso de ter sempre o indivíduo como origem do pensar. Mas, como conseqüência deste desencadear teórico, somos lançados ao terreno do virtual, do préindividual, do intensivo. 34 Os trechos entre aspas são de Deleuze, em Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 315-7. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 62 2.4.1. O virtual Mas na Obscuridade tudo se contém: as formas e as chamas, os animais e eu também, nela que consorcia existências e energias – Pode bem ser que uma força sombria se mova em minhas cercanias. É às noites que minha alma se confia. Rainer Maria Rilke O pré-individual não é uma substância, nem tem forma, pois ele emerge por entre as formas e as substâncias. É real, enquanto potência, mas não é atual. Ao contrário, está no limiar de metamorfosear-se em corpo atualizado, permitindo assim o transformar deste. Não é uma “realidade falsa”, ilusória ou imaginária. Mas “um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença imediata” (Lévy, 1996, p. 12). Trata-se de um plano de potência poética, necessário para a formação/deformação dos indivíduos (seres ou imagens). Desabituados que estamos em olhar para a profundidade processual das formas, faz-se necessário “diminuir a luminosidade até reencontrar um limiar de revelação. Para aprender a ver” (Dentin, 1993, p. 133). A relevância deste método não era estranha a Freud, o qual em carta a Lou Andréas-Salomé de 25/5/1916, escreve: “Sei que ao escrever tenho O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 63 de cegar-me artificialmente a fim de focalizar a luz sobre um ponto escuro, renunciando à coesão, à harmonia, à retórica e a tudo o que a senhora chama de simbólico, temendo como temo a experiência de que qualquer pretensão ou esperança neste sentido implique o perigo de distorcer a matéria sob investigação, ainda que pudesse embelezá-la,...” e mais adiante: “... meus olhos, adaptados como estão à escuridão, provavelmente não suportam a luz forte ou um campo amplo de visão” (Freud, 1975, pp. 65-6). A realidade não se esgota em mim, nem na moça, sentada à minha frente. Ao contrário, nós somos parte de uma realidade maior, aberta e informe – poética. Somos como que cicatrizes, tentativas de cura, de uma ferida que nos engloba. Ferida que é o perguntar que nossas individualidades tentam responder, mas que sempre lhes escapa, ao menos em parte 35 . Por este viés do pensamento, devemos considerar o ser como um complexo formado por duas dimensões da realidade, uma individuada e outra pré-individual (Simondon, 1995, p. 229). No encontro, os indivíduos enquanto tais são apenas uma resolução parcial de elementos atuais (extensivos) e da multiplicidade virtual (inextensa ou intensiva – não capturável pelos sentidos). Apesar de nutrirmos uma ilusão ao imaginarmos que o encontro se daria com as “pessoas habituais” 36 , a cada encontro, os indivíduos em Assim, “é preciso conceituar a individuação como complexa operação ativada no indivíduo tomado como meio de individuação, um meio que implica uma realidade préindividual, um campo de singularidades pré-individuais” (Orlandi, 2003, p. 90). 36 Espinosa – segundo a leitura de Deleuze – afirma que a consciência é puramente transitiva, sendo um sentimento contínuo da passagem ou variação do ser no encontro com outros. Ela acalma a angústia de sua ignorância através de uma tripla ilusão: da finalidade (tomando os efeitos como causas), da liberdade (tomando-se a si própria como causa primeira) e teológica (tomando um Deus ou ser transcendente como causa final, 35 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 64 processo e as circunstâncias já mudaram. Plenos de potência, ou seja, de imprevisto, de ineditismo, o encontro dará continuidade à processualidade, formando novas individuações. Só assim poderemos dizer que houve um encontro, no sentido forte do termo. Este é o terreno do trágico, da violência e da crueldade, pois não há calmaria no encontro. Este, não sendo pura reprodução, traz o sofrer do diferir de tudo o que é habitual, conhecido, pessoal e provoca um estranhamento que fulgura por entre os corpos. Moraes – acompanhando Bataille – traz uma imagem forte para pensar a violência da poiésis, implicada na transcendência das formas orgânicas. Conta da multidão asteca ao pé das pirâmides onde se arrancava o coração das vítimas, momento no qual “é sempre uma fulguração, que consome, que é esperada”... [e]...“essa fulguração ocorre precisamente no momento em que as formas sólidas são destruídas, isto é, quando os objetos disponíveis do qual o mundo é feito se consomem como num braseiro de luz.” (Moraes, 2002, p. 164). O fulgurar do instante de excesso e consumo das formas violenta, ao mesmo tempo em que excita e cura o homem de sua humanidade. Penso em uma erótica impessoal que impulsiona o ser – estabelece uma ligação ou continuidade – no próprio transbordar de sua duração individual, ordenada e pensável. Convergência de “sentimentos involuntários com instante revolucionário” – instaurando a imprevisibilidade que – “transgride o tempo homogêneo, irrompe no que se repete” (Chnaiderman, 2004). Pulsão que insiste em lançar o homem à descontinuidade de si 37 . quando a ilusão de liberdade não é suficiente). Em verdade, a consciência é inseparável desta tripla ilusão que a constitui (Deleuze, 2002, p. 26). 37 “O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do ser dos parceiros? Uma violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de matar” (Bataille, 2004, p. 28). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 65 A realidade virtual que se apresenta nos encontros não é uma realidade acessória, mas plena em sua “tarefa” de ser “um problema a ser resolvido” (Deleuze, 1988, p. 341) e que só se resolve à medida que inventa novos. Não há descanso em uma totalidade, ou em uma atualização total das potências. “O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do virtual, é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: ‘reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos’, e simbólicos sem serem fictícios” (idem, p. 335). Eu e Moça (como chamarei a “mulher alta, de passos seguros”) fomos inventados naquele dia, através de potências virtuais, em acontecimento. Planos virtuais, confrontados à vertigem do abismo aberto entre nossa alteridade radical, estabeleceram uma “démarche”, na qual nossas individualidades se encontraram – no “demais” de nós. As singularidades que estão aquém e além de nossa sujeição em formas, como memórias da espécie, relações com o sofrer e com a morte, continuidade de uma confiança impensada, e um sem-número de outros fluxos criaram – apesar de nós – um corpo novo. Corpo surgido da expressão que o encontro pôde conquistar, de uma problemática mais vasta que nós. “Explicação” do que não é consciente ou reprimido (pois nunca experimentado). Este é um dos paradoxos do virtual. É radicalmente novo, mas a partir do que já está. Não vem de longe, como uma emanação divina. Está longe e perto, dentro e fora, no passado e no futuro. Talvez por isto, vi surgir na escrita, expressões aparentemente confusas como: “estava pequeno... e grande também”, ou “estava ausente de mim, mas presente, tão presente, de algo que não sei o quê.” O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 66 2.4.2. Comunicação e In-formação O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. (Fernando Pessoa) Quando digo que “as individualidades se encontraram”, quero dizer que o resíduo não comportado na redução que as apresenta, estabeleceu um plano. O qual, heterogenético, é tensão entre multidões de singularidades em trânsito. Não se trata de uma transferência inter-individual, mas da invenção de um corpo-melodia, a partir da resolução de potenciais em processo de ascensão e queda. Para Simondon, só desta forma é que podemos dizer que ocorreu uma comunicação. Para ele – e para nós – comunicação envolve sempre uma in-formação (Simondon, 1995, pp. 26-7 e 240). Não como uma troca de conjuntos de dados, mas como o contato com o plano virtual, que não permite a manutenção das formas, mas as marca de forma indelével e única. Não nos esqueçamos, que este plano virtual não é uma outra forma de totalidade. Mas um plano em estado de potência, impalpável mas não irreal, que pode ou não se resolver numa forma atual. Eu e Moça – em uma atmosfera que tenta não entupir o encontro com pré-concepções – vamos seguindo o evolver não voluntário de uma “ressonância interna” (que sob determinado aspecto, sempre existe, apesar de poder ser “sufocada”). Esta expressão faz retornar à memória a musicalidade em contraponto, e quer exprimir uma comunicação primitiva (sem ser inferior), instantânea, em permanente estado de exigência (idem, O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 67 p. 25). Ela sempre envolve uma nova individuação, a formação de “um novo corpo” (in-formação), uma mutação. Então, o que consideramos comunicação é o ressoar subterrâneo de fluxos intensivos – os quais consideraremos esquizos – estendendo uma zona de sombra que transforma o estabelecido, unindo as individualidades pelo processo de diferir-se. O poder para ressoar de virtualidades que singularizam palavras como tristeza, perda, filho, parede, sonho, delírio, e tantas outras coisas que as palavras buscam significar, tomou a forma de jorro de palavras, bronca, medo... Um encontro aconteceu! 2.4.3. O coletivo O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vemlhe de fora. Fernando Pessoa Para reforçar a noção de abertura e de multiplicidade de dimensões espaciotemporais que se interpenetram, implicadas no virtual, trabalharei um aspecto do conceito de coletivo. Já foi apontado que o coletivo não é o socius, nem um conjunto de pessoas ou indivíduos. Também não é uma realidade inter-individual. Agora, é possível precisar mais este conceito. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 68 É esclarecedora a crítica de Simondon. Tanto o social puro, quanto o interindividual puro, não implicam necessariamente “uma nova individuação dos indivíduos entre os quais ele [o coletivo] se institui, mas somente um certo regime de reciprocidade e de trocas que supõem analogias entre as estruturas intra-individuais e não um colocar em questão das problemáticas individuais” (Simondon, 1995, p. 165). 38 Vemos que há dois modos de fazer um recorte da situação. Um que se banha no sistema hilemórfico 39 , das formas constituídas como fechadas ou completas em si, implicando uma apreensão do coletivo como elementos mutuamente excludentes – em relação dialética. O outro modo de recortar a situação – e é neste campo que me situo – é uma outra apropriação do conceito de coletivo, considerado então como multiplicidade singular, pré-individual, em devir. A unidade, o mais essencial ou originário, já é uma multidão, uma rede. Toda uma série de desdobramentos decorre desta diferença, que pode parecer sem importância. Como por exemplo, uma relação clínica se dar exclusivamente em um âmbito, em que a informação é algo que cria uma hierarquia, um jogo de poder, no qual um sabe e o outro aprende. Um campo no qual a autoria e a propriedade de conteúdos e representações Creio ser importante ressaltar – acompanhando a leitura de Orlandi – que, apesar de nesta citação Simondon fazer uma crítica às trocas e à reciprocidade que supõem analogias, este autor ainda mantém a idéia de que a ressonância interna pressupõe “a exigência de alguma semelhança entre as séries ou de que sejam pequenas as diferenças postas em jogo”. Esta posição é rejeitada por Deleuze, o qual defende que a comunicação entre as séries é resultado de um “diferenciador” que “se desloca perpetuamente em si mesmo e se disfarça perpetuamente nas séries, resposta que remete de modo permanente ao estatuto do problemático.” (Orlandi, 2003, p. 95). Isto leva Deleuze a destacar – nas próprias palavras de Simondon – que a ressonância interna é “o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordem diferente.” (Deleuze, 2003, 122). 39 Hilemorfismo: doutrina aristotélico-escolástica segundo a qual os seres corpóreos resultam de dois princípios distintos e complementares, um deles indeterminado e comum a todos, que é a matéria, e o outro determinante e que faz que uma coisa seja tal como é e distinta de todas as outras, que é a forma; hilemorfismo (Ferreira, 1994). 38 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 69 têm papel fundamental. Assim o coletivo estaria esboçado como conjuntos de objetos já constituídos, após o processo de individuação. Na segunda abordagem, a informação é vivida como trans-formação, ou seja, potência de mutação disparada dos afetos surgidos no ineditismo do acontecer. O sujeito e o ambiente são apenas meios, resultados, de uma coletividade, que comporta o mundo como o percebemos, mas também as nuvens de virtualidade potenciais que subsistem a todas as formas. Estas “nuvens” não são objetos ou imagens minúsculas e imperceptíveis, mas a complexidade que pulula nos encontros e produz uma “queda livre” das formas fixas de ser/perceber, exigindo um movimento para além. É justamente o coletivo de singularidades impessoais e préindividuais que permite com que haja a “ressonância interna”, e que dá condição de vida aos seres. Explico. Os seres, enquanto presos entre a espera de um futuro e o abandono do passado, não estão totalmente vivos. A sinergia dos planos do coletivo resolve a dualidade temporal em uma tridimensionalidade que sustenta o ser em presença. Isto pois a virtualidade retém o passado e intui o futuro, fazendo-os coincidir com o presente. A ação/percepção do ser é já a emergência de sentido, o acontecer, do coletivo (Simondon, 1995, p. 217). Este coletivo, portanto, é “transindividual” (Deleuze, 2003, p. 123), uma categoria do problemático, o qual é “um momento do ser, o primeiro momento pré-individual” (idem, p. 122). Só a experiência de enlace do que somos com o que nos vive é que encarna, faz carne. Acontece. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 70 2.4.4. Morre-se Ilusão já ter acreditado que as forças da morte constituem a “morte fenomenal”. Ilusão ter tido medo do desmoronamento necessário, incontornável. Lá era a morada do sopro de vida que não pôde ventar. Laymert G. dos Santos Falar da morte é sempre difícil, pois parece ter várias faces. No entanto, dizer do paradoxo que é morrer parece inevitável. Dizer que o morrer é necessário para o viver, ou que viver deve possibilitar o morrer, soa como um repetir de frases antigas e sem sentido. Mas quero, mesmo assim, insistir na importância de nos determos alguns instantes nesta questão. Uma figura da morte é a da moça que vaga na noite eterna, conversando com um filho ausente. Morte em vida. Repetição infinita de um instante profundamente pessoal, autoral. Vaidade de uma dor insuportável, que só vê e quer a si mesma, especular. Há, no entanto, a morte deste instante, desta imagem incessantemente refletida no espelho da memória. Esquecimento. Esta é a morte dos monumentos, das certezas, a mutação das imagens e das lembranças, o mergulho, sem volta, no abismo impessoal, onde nenhum momento é igual a outro. Só da experiência de um “morre-se” não autoral, é que se pode conquistar uma certa tranqüilidade de “transformação encarnada”. Caso contrário, há a agonia de um vagar, que é a morte presa em seu último e infindável momento de quase-vida, ainda propriedade da vida. Morte agarrada a imagens-clichê, estagnada, moribunda. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 71 A morte pode ser a resolução adequada de um coletivo de fluxos. Ela pode estar à altura do seu acontecer. Por ser o que faz perpetuar um ser na coletividade, não o indivíduo. Não se trata de uma morte ou de pequenas mortes sucessivas, mas do mergulho na noite de um coletivo pré-pessoal e pré-identitário. Coletivo que comporta resíduos imateriais, multiplicando a dimensionalidade do instante, elevando-o à estatura de acontecimento. A concretude da história de Moça revela que as identidades, imagens ou conceitos são necessários, e “buscam” perseverar em um conjunto, um organismo. São rebatimentos, representações. No entanto, importa notar que “a representação deve compreender uma expressão que ela não representa, mas sem a qual ela não seria ela mesma ‘compreensiva’, e não teria verdade senão por acaso e de fora. Saber que somos mortais é um saber apodítico, mas vazio e abstrato, que as mortes efetivas e sucessivas não bastam certamente para preencher adequadamente, enquanto não aprendermos o morrer como acontecimento impessoal provido de uma estrutura problemática sempre aberta (onde e quando?)” (Deleuze, 2000, p. 148). Pensar a vida como evolver do coletivo que ganha forma através de nós, arranca a esperança de autoria e mesmo de “calmaria” (em palavras como morte ou pânico, identidades como “mãe que perdeu filho”). A “invenção” – de um filho, por exemplo – não é uma propriedade ou iluminação, mas a ação do corpo ao encontro do coletivo, no qual está imerso. A morte também pode ser uma invenção, que está sempre se atualizando, mas conservando seu estado de potência. Nesta forma de abordagem, a invenção não “corresponde à aparição do negativo como segunda etapa, mas à uma imanência do negativo na condição primeira sob forma ambivalente de tensão e de O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 72 incompatibilidade; é o que há de mais positivo no estado de ser préindividual, a saber a existência de potenciais, que são também a causa de incompatibilidade e da não-estabilidade deste estado; o negativo é primeiro como incompatibilidade ontogenética, mas ele é o outro face à riqueza de potenciais; ele não é um negativo substancial; ele não é jamais etapa ou fase, e a individuação não é síntese, retorno à unidade, mas defasagem do ser a partir de seu centro pré-individual de incompatibilidade potencializada” (Simondon, 1995, p. 32). Então, o morrer – ou a forma singular do sofrer – pode ser o caminho próprio de algo que pede passagem para continuar, e desta forma se exprimir – por defasagem sob ação pré-individual. E é a isto que – com Espinosa – chamamos “alegria”: o aumentar do potencial de abertura para o viver 40 , neste caso, através da defasagem/caducidade no encontro clínico, das certezas asseguradoras, dos modelos teóricos, das imagensclichê e, em um plano de ressonância, da autoria das sensações. Ao contrário, há a morte que não exprime os potenciais do ser que evolve, mas resulta de um fechamento a estes. Esta é verdadeiramente uma morte triste, humilhante, a qual Simondon (1995, p. 213) chama de passiva ou – numa perspectiva ética – um ato louco (idem, p. 247). Ato egoísta, pois tende a reinar sobre todo o devir, no lugar de se articular à rede de outros atos. Ato exaurido de sua realidade pré-individual, e associado ao ser individuado, não sendo continuidade mas fim em si. Ato capturado pela “vertigem de sua existência iterativa” (idem, p. 247). Não sendo comunicação. Destacado do mundo. 40 Nas palavras de Espinosa: “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil quanto o corpo se torna por essa coisa mais apto a ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros corpos; e, pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto.” (Ética IV, prop. XXXVIII) O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 73 Eu e Moça “vivemos” a impessoalidade de um morre-se. Ele – o morre-se – estava lá, em seus dois aspectos, de desapego e potenciação. O acontecimento que foi tocar o tênue limite vida/morte tornou o que havia em corpo. E esta encarnação do instante de virada, foi o que “nos redimiu”. O empuxo vertiginoso da queda livre do ser em clausura, explodiu em força intempestiva de um coletivo insuspeito. Não se trata, obviamente, de uma expiação dos pecados. Não havia pecadores, mas atos loucos. A loucura de viver a vida de um filho, morto ao nascer. De repetir conversas intermináveis com um fantasma que era a imagem fechada de si. De se horrorizar ao sentir seu corpo sendo o palco involuntário de uma repetição insana. Esta era a sua dor, o seu vazio. No entanto, Moça estava ali na minha frente, envolta na singularidade atmosférica do momento. E justamente ali – naquele condensado de marcas e virtualidades – sem qualquer plano, foi que a alegria surgiu por entre o solo da morte. Aceitamos – sem saber bem o risco que corríamos – a “morte-emvida” no seio do “nosso ser”, complexo e potencial. Assim a morte surda comunicou. Não havia plano voluntário para que isto acontecesse ali, naquela hora. Já dissemos, não há teleologia ou voluntarismo. A morte ressoou, em um momento em que nos largávamos à sua influência. Instalou-se no novo corpo, e não “queria” mais nada de nós. Da noite de nossos seres houve o despertar de algo desconhecido de nós. A memória do que nunca foi vivido agiu, e tornou presente tudo aquilo que só o esquecimento poderia trazer. E que eu não poderia nomear. Talvez ... “bronca”! Entrando em um território mais conceitual e psicanalítico, importame ressaltar que o desdobramento teórico já percorrido implica uma positivação do conceito freudiano de pulsão de morte. Mas não será O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 74 possível desenvolver esta temática neste trabalho mais do que já está implícito. No entanto, recorro a uma observação de Gôndar, a respeito da “pulsão por excelência”, de morte, que acredito aproximar-se do meu pensamento. A autora afirma que “se a própria pulsão se relaciona com a morte, é apenas na medida em que promove a morte de tudo o que é uno, possibilitando o surgimento do diverso; ela é antes uma potência disjuntiva do que um retorno ao inanimado. Ela não se define como uma tendência ao limite último e certo da vida, mas é em si mesma, o próprio limite do princípio do prazer e do campo subjetivo que ele ordena” (Gôndar, 1995, p. 121). Perspectivando a pulsão como impulso de diferir, podemos perceber que estão muito distantes, a Moça que vive a eternidade de uma mãe perdida, daquela que vive o ser mãe – com a dor que isto traz consigo – no acontecer atual de um coletivo que a implica. Poder se desagarrar daquela dor e fazer vibrar a sensação. Sonhar as dores de outros mundos, percorrer o sofrimento de pais, filhos, fábulas, e tantas outras mães. Podemos pinçar da fenomenologia do cotidiano um desejo de “viver para sempre” ou de desfrutar de uma juventude eterna 41 . A possível beleza estética e bem-estar físico, envolvidos neste projeto, pode desconsiderar a processualidade de um plano de imanência que é contínuo evolver coletivo impessoal. Projeto tornado louco por esvaziar a imagem do imaginar, a vida do “morre-se”. A experiência-limite de perder um filho coloca em xeque o desejo de eternidade, pois violenta o instituído em todas as suas dimensões. É irrupção catastrófica do potencial pré-individual, que nem mesmo dá a 41 “Em nossos dias, nada é mais desolador do que constatar que o pavor dos seres descartáveis pode dar lugar à construção de seres que queiram durar eternamente” (Sant’anna, 2001, p. 97). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 75 proteção de uma palavra (como há para aquele que perde um pai ou cônjuge). Moça foi confrontada com a necessidade de sobreviver a seu filho. A dimensão e qualidade de sua dor; a forma “louca” de agir ante a violência da vida/morte que esquarteja todo o sentido; o envolvimento intimamente corporal de sua expressão... talvez possa apontar um caminho de aproximação de algo das agonias de nosso tempo. Proponho que o aparente medo da morte, tão propalado em inúmeras narrativas – e tantas vezes repetido por Moça aos médicos do pronto-socorro em suas crises de pânico – é na verdade medo do viver. Daquilo que na vida comporta o sofrer do coletivo potencial. Há uma “agonia esquizo”, difusa, sem lugar e intensa, que emerge da tensão entre viver em um mundo de imagens e representações, sedutoras em sua promessa implícita de eternidade feliz ou pelo menos estável e habitual; e experimentar o dissolver das mesmas na multiplicidade inumana do devir, do “morre-se”. Para esclarecer o que entendo por experiência cito algumas palavras de Rilke, comentadas por Blanchot – tendo o que chama de versos como o resultado precário e transitivo do processo de individuação – escreve: “ ‘os versos não são sentimentos, são experiências. Para escrever um único verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e coisas...’ Rilke não quer dizer, entretanto, que o verso seria a expressão de uma personalidade rica, capaz de viver e de ter vivido. As lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso” (Blanchot, 1987, p. 83). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 76 2.4.5. Afetos ...quando tenho uma sensação, todo o campo da consciência com os seus conteúdos se impregna da qualidade subjetiva ou tonalidade afetiva da sensação. A angústia transforma o mundo em angustiado; a tristeza de uma melodia faz surgir um mundo triste; uma determinada dor invade toda a nossa consciência das coisas. José Gil Nosso corpo vive, pois, confrontado com a positividade do morre-se. Neste limite está a pele. Pele da experiência que é resultado de um potencial de forças em relação metaestável; aquilo que se estrutura e o que se conserva em órbita virtual. Superfície é o que conserva as marcas do que é, e da potência do que foi e virá. É invenção de espaço/tempo entre a res extens e o u-topos intensivo. O ser enquanto eterna resolução potencial tem no que lhe afeta e na sensação que lhe surge, o centro de seu ser-pele no mundo ambiente. Podemos dizer que afetos são a constante turbulência, a violência, a dor, do ser... vindo a. Retornemos à etologia, agora pelas mãos de Daniel Stern, para esclarecer pontos fundamentais deste ser em devir no mundo dos afetos. Observando bebês, e fazendo convergir dados da experiência psicanalítica e da psicologia experimental, este autor nos oferece um extenso material de trabalho, para pensarmos o corpo em processo de subjetivação, em um mundo de afetos. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 77 Diversamente dos afetos enquanto emoções com causas morais, categorias distintas de padrões expressivos inatos e sociais ou energia psíquica sujeita a descarga, há, segundo Stern, os afetos de vitalidade. “Como a dança para o adulto, o mundo social do bebê é primariamente um mundo de afetos de vitalidade antes de ser um mundo de atos formais” (Stern, 1992, p. 50, grifo meu). Os afetos de vitalidade “têm a ver” com a dança, e esta com a música, o ritmo. Esta é uma importante intuição de Stern. Em nosso trajeto, a musicalidade do ser-mundo é produto de uma “síntese aberta”. Um fio de metamorfose com múltiplas linhas de fuga. A dança se dá propriamente no limite produtivo entre eu e o coletivo, mundo próprio e mundo ambiente, expressões diferenciais de uma partitura sempre renovada, em serpentear contínuo, que não remete à dialética ou à autoria. Encarna a forma deste encontro que não se decide entre percepção e ação. Ritma. Esta introdução à conceituação dos afetos de vitalidade é-nos fundamental. Pois não deixa escapar que sua realidade emerge do entre, da virtualidade ou potência, e não da combinação de formas tidas como existentes a priori. A melodia em contraponto não é a resposta de uma totalidade à outra, mas o surgimento de singularidades que são expressões diversas de um plano potencial que comunica diferindo. Afetos de vitalidade são “qualidades de sensação existentes que não se ajustam ao nosso léxico ou taxionomia de afetos existentes. Essas qualidades indefiníveis são mais bem capturadas por termos dinâmicos, cinéticos, tais como ‘surgindo’, ‘desaparecendo’, ‘passando rapidamente’, ‘explosivo’, ‘crescendo’, ‘decrescendo’, ‘explodindo’, ‘prolongado’ e assim por diante” (idem, p. 47). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 78 Não se trata de afetos categóricos, como felicidade, tristeza, medo, raiva, desgosto, surpresa e interesse 42 , ou suas combinações. Os quais, apesar de uma expressão particular para cada um, em cada situação, se prestam mais ao re-conhecimento, à rotulação. Já os afetos de vitalidade buscam exprimir a processualidade que subjaz às categorias. É a fome aumentando, a luz se despedindo, a árvore verdejando, o medo transbordando, o prazer surgindo. Afetos grávidos de potência, por serem a expressão única do instante desta fome, desta luz, desta árvore, deste medo e deste prazer. Terreno poético, por ser o da emergência do sentido 43 . Sentido que é a paradoxal convivência da atualização expressiva (agenciamento coletivo de enunciação) com a ação nômade de devir. Onde o que se transmite não é a forma, mas o movimento impessoal de eternidade do formar-se – através da singularidade radical do acontecimento. “A dança abstrata e a música são exemplos, por excelência, da expressividade dos afetos de vitalidade. A dança revela ao espectadorouvinte múltiplos afetos de vitalidade e suas variações, sem recorrer à trama ou aos sinais de afeto categórico dos quais os afetos de vitalidade podem ser derivados. O coreógrafo, na maior parte das vezes, está tentando expressar uma maneira de sentir, não um conteúdo específico de sentimento” (idem, p. 49, grifo meu). Aqui, refiro-me ao repertório limitado e inato de expressões faciais humanas, no qual se baseia a apropriação social como sinais compreensíveis ou de reconhecimento (Stern, 1992, pp. 48 e 59). Isto para estabelecer uma tensão com o plano intensivo e singular da sensação que tem apresentação qualitativa ilimitada. Importa ainda fazer uma ressalva de que nesta frase a tristeza não é utilizada para referir o conceito espinosano – já que aparecem em várias passagens do trabalho. Tristeza, para o filósofo, denota a passagem do ser para um estado de menor potência para afetar e ser afetado, enquanto alegria, sinaliza o oposto. 43 E, poeticamente, Lyotard define o sentido como “uma flor inesperada, um suplemento de tensão que brota num encontro, inapreensível para os hermeneutas e outros semióticos. A flor se abre sem barulho, é um acento, um tom, um modo estranho da voz, uma voz que não é minha, nem das coisas...” (Lyotard, 1996, p. 46). 42 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 79 Assim, eu e Moça, também nos “encontramos” em um “mundo subjetivo global da organização emergente”, o qual é “o domínio fundamental da subjetividade humana. Ele opera fora da consciência como a matriz experiencial a partir da qual os pensamentos, e formas percebidas, e atos identificáveis e sentimentos verbalizados surgirão, mais tarde. Finalmente, ele é o reservatório básico em que podemos mergulhar para todas as experiências criativas” (idem, p. 58). Antes de podermos falar do medo, da morte, do delírio, somos lançados num comunicar que nos in-forma sobre como se sente aquele medo, como se vive aquela morte, como se produz aquele delírio. E, sem nos misturarmos, nos encontramos fora de nós mesmos, no não-lugar poético do devir. É revelador quando, logo às primeiras páginas, Stern coloca que: “eu estou sugerindo que o bebê pode experienciar o processo da organização emergente assim como o resultado, e é essa experiência de organização emergente que eu chamo de senso emergente de eu 44 . É a experiência de um processo, assim como de um produto” (idem, p. 40). Este senso de eu é um – o primeiro – entre outros mais organizados. Mas não devemos nos apressar em dar um valor comparativo a cada um. Não há uma hierarquia entre eles, e nem um processo de desenvolvimento progressivo. A palavra senso foi cunhada justamente no sentido de mudar o foco, das tarefas do desenvolvimento, para o estabelecimento de padrões de organização (idem, p. 168). Note-se que Stern utiliza a expressão em inglês “sense of self”. Senso é uma palavra com muitas acepções, mas entendo que o autor procura deslocar, com esta palavra, o enfoque do sujeito para processos de subjetivação. Assim, senso estaria alinhado à singularidade dos planos de sentido que se exprimem em um acontecimento impessoal. Vejo, acompanhando a concepção de Safra (1999, p. 135), o self não como “organização mental, ou como uma representação de si mesmo, mas como o indivíduo organiza-se no tempo, no espaço, no gesto, a partir da corporeidade”. 44 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 80 Mais do que um aperfeiçoamento, vive-se uma processualidade de subjetivação, que envolve palavras, afetos categóricos ou de vitalidade, uns “chamando” os outros, formando mosaicos em movimento, através das idades. Isto indica que mesmo após o surgimento do recurso às palavras, ou do estabelecimento da diferença eu/outro, os afetos de vitalidade estão sempre sendo experimentados. E estes encarnam o como do sentir, porque é a própria emergência do novo enquanto marca “secretada do entre”. Eu e Moça “sonhamos” um sonho maior que nós. E o que importava não era propriamente seu conteúdo, mas a ação mesma de sonhar. Ritmar o resolver de uma problemática que habitava um mundo para além de nossas re-conhecidas subjetividades. Não se trata de “folie-a-deux”, que seria uma unidade imaginária. Os paradoxos reinam por entre as palavras. Nomes que deixam escorrer, por entre os dedos, o que lhes deu vida. Os afetos de vitalidade surgem em um movimento que é presença, mas invoca o desaparecimento, não está em mim nem fora, é real, mas não capturável em formas, é memória que surge, inédita. Importante notar que não se trata de uma abstração ou representação, mas que no centro da realidade destes afetos, o paradoxo vem instalar-se. Eles sofrem a ação do que se chama “percepção amodal”. Ou seja, um afeto percebido por uma modalidade sensorial, é “traduzido” para as outras automaticamente (idem, p. 45). Por exemplo, o bebê reconhece visualmente uma chupeta com a qual só teve contato tátil. Ou, reconhece a complexidade interessante de afetos de vitalidade que podemos dizer ser sua mãe, por perceber imediatamente (e não necessariamente por repetição), que a modulação da intensidade dos seus gestos são similares aos da sua voz. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 81 Para nós, mesmo os órgãos sensoriais são a expressão de harmonias do mundo ambiente. E os afetos de vitalidade, apreendidos por estes, possuem uma realidade que lhes é contemporânea, interferindo na própria maneira como se dá forma sensível às experiências efetivas que a transcendem. Não se pode, portanto, neste plano de subjetivação, localizar o afeto como apenas no limite do contato do som com o tímpano, ou da pele com o objeto. Há, sim, uma “topologia louca”, na qual os afetos vão surgindo ao mesmo tempo em muitos locais, como que animados por uma velocidade infinita, dando origem a um tempo/espaço singular 45 . Esta “utopia” permite a Stern fazer a afirmação de que “cognições, ações e percepções, como tal, não existem” (idem, p. 58). Isto, porque todos são experimentados diretamente em um complexo indiscernível de intensidades, padrões temporais, tons hedônicos. A bela passagem de um livro de Stern – Diário de um bebê – nos dá a dimensão concreta desta ontologia intensiva dos afetos. O autor descreve, poeticamente, a experiência de um bebê de aproximadamente seis semanas de vida, olhando um reflexo de luz contra a parede branca: “Um espaço brilha, ali, Um imã gentil atrai para capturá-lo. O espaço está tornando-se mais quente e tomando vida. Dentro dele, forças começam a girar uma em torno da outra em uma lenta dança. A dança aproxima-se mais e mais. O que poderíamos aproximar, com proveito para a clínica, da noção de atmosfera – elaborada pelo filósofo José Gil – como uma porta para intuir a “memória do não vivido”. Em suas palavras, atmosfera “é um certo regime de forças, um campo de tensões que emerge da paisagem e cria certos desenhos, ou cartografias subjetivas. Uma atmosfera é aquele não sei quê que dá qualidade aos sentidos” (Gil, 1996, pp. 50-51). 45 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 82 Tudo corre ao seu encontro. Ela continua vindo. Mais jamais chega. A excitação se desvanece” (Stern, 1991, p. 25). Desta forma Stern procura aproximar o leitor da complexidade da vida dos afetos emergentes. O que é interno e externo não está bem determinado, tendo um limite fluido e movente; a duração não se dá como seqüências fotográficas, mas como produção singular de “sentimentos-emmovimento”; os momentos são preenchidos destes sentimentos e de percepções, os quais modificam-se juntos (idem, p. 24). 46 Há ainda – nesta situação, mas que pode ser estendida a outras formas de percepção/afetação – uma tensão entre o foco de visão fixo e o de atenção que começa a desviar-se, o que faz com que o reflexo de luz comece a “ganhar vida”, a “dançar”, mudando de cor e de forma. Assim, o bebê “entra em um relacionamento dinâmico com o reflexo de sol, cada um agindo sobre o outro. (...) Não existem objetos ‘mortos’, inanimados, ali. Existem apenas diferentes forças em jogo” (idem, p. 28). 47 Daqui podemos fazer uma ponte para a intrigante idéia de um excelente texto de Gil: “as pequenas percepções supõem uma zona de percepções de movimentos ínfimos e de forças poderosas. A percepção dos movimentos visíveis do corpo desencadeia outras percepções, de outro gênero: ‘percepções’ de movimentos virtuais” (Gil, 2002, p. 143). 47 Esta passagem me foi destacada pelo interessante trabalho de Reis acerca do autoerotismo, tido como “virtualidade problemática que se atualiza em diversos regimes de eroticidade sem jamais ser preenchido por eles” (2003). 46 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 6 – De formato foetu líber singularis - Adriaan Van den Spiegel (1631) 83 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 84 Terceira cartografia clínica Moça e a notícia que vem das sombras O mundo no qual vivemos nos surpreende em situações radicalmente novas e extremamente complexas. Uma delas é a realização da ecocardiografia fetal, o exame ultra-sonográfico do coração do feto. Perspectiva recente de proporcionar uma “visão” do coração fetal. Procedida por um médico altamente especializado; muito distanciado do que foi a maneira consagrada da atividade profissional de “estar ao lado” do paciente. Ele está, certamente, ao lado. Mas o conjunto de planos de sentido que dá forma à cena mudou muito, em pouco tempo, como se pode imaginar. Contarei uma história vivida neste complexo espaço-tempo. Sem a pretensão, como foi dito, de uma improvável neutralidade científica. Busco assim envolver também o leitor, numa experiência que tem se tornado cada vez mais freqüente. Nem boa, nem má, muito sofrida, com freqüência. O que pode permitir uma forma de apropriação singular, e não só um entendimento, aceitação ou recusa. Neste novo ensaio, vamos entrar em um mundo tecnico-científico. Mas também composto de mundos ambientes e afetos de vitalidade. De fluxos esquizo e processos de individuação. De agonias impensáveis e terrores sem nome. De ritmos fetais. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 85 Moça negra, alta, bonita. Logo às primeiras palavras, percebe-se que é uma pessoa inteligente e alegre. Não esconde, no entanto, a apreensão natural de quem se encontra em um hospital, para fazer exames. Neste caso, exame de seu bebê 48 , ainda em gestação. O local era destinado a pesquisar problemas cardíacos fetais. Assim, comportava equipamentos de alta tecnologia e profissionais especializados. Estamos no setor de ecocardiografia. A imaginação do leitor talvez o conduza a um ambiente sofisticado, tranqüilo, confortável, e quem sabe, até mesmo acolhedor. Se assim foi concebida a cena, o foi apenas com o auxílio de uma benfazeja e protetora traição do desejo, que manipula os sentidos. Estamos, eu e a paciente, em um hospital universitário. Ali, em pequenos espaços, com poucos requintes estéticos, algumas minguadas plantas tentavam quebrar a atmosfera densa e fria. Em um hospital universitário vive-se uma vida muito singular, onde transborda trabalho. Pacientes surgem aos borbotões, vindos de todas as partes do país, e mesmo de outros países. Sotaques diversos tentam dar contorno a queixas por vezes incompreensíveis, por se apresentarem em uma língua extremamente regional. A demanda pelo saber médico além de chegar em quantidade elevada carrega também uma intensidade extrema. Para a refeição, para o estudo, para o lazer, o tempo dos profissionais falta. E os pacientes gritam, não só com palavras, mas com todo o seu ser, pela certeza de um diagnóstico, de um tratamento e da Utilizo a palavra mais popular, bebê, no lugar da que seria cientificamente mais apropriada, a saber: feto. Faço esta opção para enfatizar o aspecto psicológico complexo que se apresenta como mãe-bebê-em-processo-de-gestação, e para me afastar da concepção mais científica do ser. A palavra feto será utilizada quando o contexto for predominantemente científico. 48 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 86 cura daquilo que os consome em sofrimento. Parece óbvio, mas as pessoas só vão ao hospital porque estão sofrendo, e com esta atitude deixam implícito que será ali que o alívio se apresentará. Mesmo que este anseio visceral não esteja, a todo o momento, na mente da equipe de atendimento, a tensão se revela em cada olhar, gesto ou solicitação, por menor que seja. É nesta micro-comunidade, de alta complexidade, que se dá o encontro. Em instantes põe-se a funcionar o maquinismo tecnológico – que em apenas um de seus aspectos tenta dar conta da tensão revelada acima. A moça deitada, barriga para cima, expondo para um desconhecido, a parte do seu corpo que encerra o seu maior mistério. Mistério da criação, do ser si própria e ser outra, de ser entranha e ex(es)tranho. Eu, sentado ao seu lado, era o pólo da dupla (ou do trio) destinado a manejar o instrumento do progresso da medicina. Meus olhos treinados não se opunham à captura das imagens que trazem as profundezas do corpo à superfície. Não se poderia dizer que esta penetração consentida fosse fruto de uma relação de amor. O interesse de ambos foi colhido pela curiosidade científica que não se detém em intimidades, e põe a descoberto o que antes era privado. Quando a atenção da paciente desviava-se da tela para mim, era na intenção desesperada de interpretar, na minha fisionomia, algo que pudesse ser bom ou ruim. As palavras nervosas claramente buscam dissimular – sem conseguir – a preocupação acerca do que o meu conhecimento poderia depreender daquele estranho jogo de luz e sombra. Este “clima” traz, em seu bojo, a lembrança de que o ultra-som aplicado à medicina foi uma técnica que surgiu a partir da situação de O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 87 guerra 49 . Os tripulantes dos submarinos necessitavam "ver" os relevos do fundo do mar e os possíveis obstáculos ao seu progresso. Mais ainda, era preciso ante-ver. Antecipar a possibilidade de colisões e também a identificação de possíveis inimigos a atacar. Provavelmente a similitude das duas situações, tão distanciadas no tempo, não deva ser considerada mero acaso. Em ambas, a angústia apreensiva domina o ambiente escuro. A vontade de saber se tornou necessidade. Antecipar o acontecimento sinistro atacando o objeto ameaçador. Em nossa história, o acontecimento só se realiza plenamente com o nascimento, e o objeto a ser atacado com a propedêutica médica é o bebê doente. O costume me faz escorregar em armadilhas do pensamento. O bebê em questão é potencialmente doente. A gestante nada sente, o bebê se movimenta, e é parte ativa na comunicação com ela. Ambos já constroem uma história de sensações, fabulações e afetos. Mas, neste caso específico, a imagem que emerge na tela, apresenta diferenças quanto ao que se poderia esperar de um coração normal. A necessidade de concentração faz com que os silêncios sejam maiores. A atmosfera ganha densidade. Eu, médico, vou sendo confrontado, cada vez mais, com os medos que habitam a sala, e antes eram sentidos como mais distantes. O acaso de um desenvolvimento embrionário anormal é a figura concretizada do descontrole, que se procura afastar a todo o momento. Doença, sofrimento, morte. São perspectivas do viver que não são propriedade de um indivíduo ou de outro, afetando também a mim, enquanto o exame prosseguia. Assim, a necessidade de se assegurar sobre Não só de guerra, mas também de tragédia. O desenvolvimento do ecobatímetro ocorreu fundamentalmente para evitar um outro acidente como o do transatlântico Titanic. 49 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 88 o que está se descortinando na tela. A perspectiva de prognóstico. A forma de construir uma fala possível. Tudo isso faz com que o encontro seja visitado por forças que há pouco eram virtualidades improváveis. “O senhor está vendo algum problema aí, doutor?” “Ainda há algumas partes para ver. Mas se houver algum problema, eu lhe falarei”. Angústia da responsabilidade de pensar sobre uma série de coisas, antes de enfrentar a dolorosa situação de compartilhar uma notícia que está no limite do pensável. Como conceber uma anormalidade do coração fetal, sem os anos de aprendizagem médica? Como explicar uma malformação específica de um órgão, sendo que nem mesmo a criança pode ser vista, não está em seus braços? Enquanto os pais se esforçam para constituir um lugar para este “ser em potência”, vendo as fotos dos familiares para tentar imaginar um rosto, enfrentando a complexidade da escolha de um nome, ou preparando um quarto, de súbito, passa-se a pensar em aborto, possibilidades de tratamento, esforço para conceber uma doença dentro do corpo que está dentro de outro corpo. O momento chegou, de falar sobre o meu veredicto. “Sim. Seu bebê tem um problema no coração”. Um misto de terror e alívio marca o ar daquela sala. Está lançado um enigma, impossível de ser resolvido. Ao mesmo tempo, encontra-se um caminho para a já insuportável espera, pesada e lenta, que se seguia. Esta ponta de alívio talvez seja o motivo da necessidade, tanto de médicos quanto de pacientes, de produzir tantos nomes para o sofrer. No O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 89 entanto, creio que esta é uma forma de aportar no que aparenta ser um porto seguro, enquanto tudo à volta desaba. Estranhamente, esta gestante não era uma gestante “normal”. Ela não demonstrou as angústias que se espera nestas horas. Mantinha uma tranqüilidade inabalável, aceitando o cuidado e as explicações que eu considerava importantes, mas sem esboçar qualquer tensão. Não faltava aos encontros quinzenais. E foi se estabelecendo uma característica própria aos nossos encontros, os quais pensava – erradamente – que eram mais propriamente desencontros. Eu me esforçava por encontrar um meio de prepará-la, para o que sabia, iria acontecer. A morte de seu bebê assim que nascesse. Aguardava uma “deixa” que permitisse uma aproximação do assunto, fazia desenhos do coração. Mas o futuro parecia ser muito distante para ela, e assim seguia vivenciando as transformações de seu corpo, sem recuar ante ao que se queria dizer sobre seus interiores. No dia do parto eu estava ao seu lado. Era a sua família, como viria saber depois. Não havia mais ninguém para apoiá-la. Como esperado, seu bebê morreu logo após o nascimento. Uma menina. Acreditava estar o meu trabalho como médico encerrado. Despedime, após uma breve conversa, e não acreditava que ainda iria encontrá-la no futuro. Termina aqui esta parte do relato. Mais à frente, no tratamento das questões éticas, clínicas e políticas, ele será retomado. Neste momento – após a “construção” de um corpo mergulhado em um plano de imanência com vários níveis problemáticos – vamos encarar O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 90 alguns desdobramentos desta cena contemporânea. Espero, com isso, caracterizar um pouco da complexidade específica deste nosso tempo, que guarda em si dores tão profundas e singulares. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 7 – Ultra-som tridimensional de feto com cinco meses de gestação 91 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 92 Capítulo 3 Fragmentos críticos de corpos atuais A nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos à risco, que de modo algum demonstra um processo em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de matéria “dividual” a ser controlada. Gilles Deleuze 3.1. Imanência As máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio das suas memórias, de sua inteligência, mas também de sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes, Felix Guattari Na perspectiva teórica que adotei, o próprio objeto técnico já é o resultado do avanço – encontro e desencontro de planos de sentido – do acontecer. Ele também evolve no mundo ambiente, tomando a forma e desenvolvendo funções, a partir da musicalidade em contraponto de seu tempo. Por isto é que ocorre um comunicar entre o ecocardiógrafo,o médico, o paciente, a arquitetura hospitalar... Obviamente, o comunicar de que O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 93 falo, refere-se à transformação que os vários campos problemáticos promovem, por ressonância interna. Este objeto “nasce” para o uso em um momento histórico específico, de tragédia, medo e guerra. Tem rodas, para deslocar-se facilmente por entre espaços nosocomiais, mas não por jardins gregos, por exemplo. Tem um olho que nunca pisca, ao contrário, está sempre alerta para “enxergar” os interiores, produzi-los de certa maneira. Tem fibras óticas que prolongam os nervos, e teclas que imantam os dedos. O ecocardiógrafo, visto desta maneira, não é uma invenção que vem do abstrato, como uma emanação divina, ou o resultado da iluminação de um cientista especial. Faz parte de um ciclo de função, com suas próprias marcas de ação e signos de percepção. Está “vivo”, no sentido de que convida para um encontro específico, e muda com seu meio, respeitando a potência da virtualidade em questão. Um dos fluxos ou séries que destaco é o da vontade de ver. Já trilhamos o caminho por entre a anatomia da Vesálio, a patologia de Bichat, a filosofia de Foucault, até chegar a este médico, que busca na visão dos interiores, uma das maiores verdades sobre o ser e seu sofrimento. Na verdade, para garantir coerência com o pensamento que vem sendo desenvolvido neste trabalho, afirmo que esta forma tomada pelo evolver histórico engloba o campo médico, mas enquanto uma de suas expressões. Os pacientes, cientistas, artistas, todos contribuem e são colhidos, em alguma medida, nesta trajetória. Seria uma ilusão imaginar que o paciente apenas se submete ao exame por pedido do médico. Ele – o paciente – está profundamente engajado na necessidade (muitas vezes persecutória e sentida como vital) – O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 94 de vasculhar o abismo de seus interiores 50 . O que dá consistência às histórias contemporâneas das pessoas que trocam de médico porque este não pediu exames, ou das gestantes que se submetem a um número enorme de ultra-sons gestacionais, numa ansiedade crescente por “ver o bebê” 51 . Atitudes que traem, nas entrelinhas, a profunda transformação da relação entre as complexidades que nos acostumamos a chamar de médico e paciente. Pois a produção de códigos e imagens que buscam traduzir o sombrio do corpo vai passando a ocupar mais e mais a atenção da dupla (antes, durante e depois do encontro), a qual vai ficando “desatenta” ao plano mais impalpável, qualitativo e intensivo do tempo em que estão juntos. É verdadeiramente um mundo ambiente, com suas melodias em choque e ressonância, individuando os sujeitos e objetos, compondo harmonias diversas e moventes. Outra linha que emerge do plano de imanência é o do acúmulo de saber, com a conseqüente especialização e fragmentação, já referida – enquanto ponto de convergência e passagem – quando comentei o enciclopedismo. Este particular objeto técnico, disposto na sala, é resultado de um acúmulo fantástico de saber. O que exige, para a sua manipulação e manutenção, uma série de profissionais especializados. São engenheiros de software e outros de hardware. São especialistas em usar e programar todos os recursos contidos no aparelho. São médicos, já especializados em cardiologia, ainda mais especializados em ecocardiografia. E dentro desta, em subgrupos como: ecocardiografia de adultos, de crianças, fetal, trasesofágica, com estresse farmacológico, com contraste. Aqui também se A partir de 1945 “o paciente é levado a olhar para si em escala médica, é obrigado a se submeter a uma autópsia (no sentido literal da palavra): olhar para si com seus próprios olhos. Ao se auto-visualizar, ele renuncia a se sentir” (Illich, 1999). 51 “À impossibilidade de ver sucedeu a impossibilidade de não ver, de não prever” (Virilio, 2000, p. 95). 50 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 95 estabelece ressonância e in-formação com tudo que está ao redor, inclusive o corpo e o pensar do médico e paciente. O profissional acumula um conhecimento muito grande, que se aplica a uma parte pequena do corpo. É confrontado – paradoxalmente – com o não saber, pois a produção de dados e estatísticas é exponencial. O esquartejamento é vivido no médico e no paciente, que se pensam em partes. Se o paciente perguntar – como efetivamente o faz – se o pulmão está bom, ou se as coronárias estão entupidas, receberá a resposta de que não é possível saber com este exame. Existe, então, um assombro de “como a medicina está avançada” (e é verdade!), acompanhado de uma incompreensão quanto à incapacidade de tanta tecnologia captar apenas uma perspectiva de um órgão. E isto para não falar no verdadeiro desencontro que a pergunta revela: “pelo que está vendo aí doutor, ainda tenho mais um tempo de vida?” Na verdade, ali se pratica uma estranha medicina, que visa as estruturas do corpo morto, ou a função dos modelos experimentais. Não tem quase nada a ver com a vida, e tem. O que fica de fora é o “experimentar o viver/morrer”. O que está implicado é o acúmulo, ou não, de desvios do normal, sinais patológicos, “partículas inertes de morte” em vida. Há a produção, a cada novo exame, de objetos que transformam o sentido do encontro e do viver. Estes objetos com facilidade entram em um regime de autonomia e certeza metonímica (a parte diz da complexidade do todo), tornando-se clichês que abarrotam os encontros e asfixiam o imponderável do instante. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 96 3.2. Invenção e captura Com a tecno-ciência no seu estado contemporâneo, é uma potência para “pôr em série”, uma capacidade de síntese que está em curso no planeta Terra e de que a espécie humana é mais seu veículo do que seu beneficiário. Jean François Lyotard O aparelho do qual tratamos é a expressão dos encontros entre a informática, a física das ondas sonoras e a medicina, entre outros. Da aproximação de saberes diversos, vê-se a constituição de um diagrama de forças que tem grande mobilidade, e se espraia de forma molecular. Os conhecimentos se aprofundam, mas guardam a condição de choque, ressonância, mutação por contato e afetação. Neste sentido, parece lembrar a capacidade dos intelectuais dos séculos XV e XVI, de transitarem por muitos territórios do saber, como física, astronomia, artes, medicina. No entanto, hoje, são os campos que se encontram, quase que à revelia das pessoas. Ninguém sabe muito, e cada um contribui apenas com uma gota, para este mar de objetos, de potencial e de invenção. Isto resulta em um deslocamento fundamental de apresentação da tecnologia. Antigamente, havia uma interdependência entre objeto e homem, que os ligava visceralmente. O objeto como que escolhia o profissional, no contato com a matéria. O formão se deixava ou não manejar, e a madeira denunciava isto. O paciente sentia em seu ser – qual madeira – a experiência e a capacidade de um profissional médico específico. Isto, certamente ocorre hoje, mas quanto à tecnologia médica, este envolvimento entre médico e paciente, entre médico e objeto, muda bastante. A complexidade do aparelho faz com que ele “já venha pronto” (a programação – contribuição cibernética, de um “ser que já vem pensado”), O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 97 exigindo sempre o “mesmo médico” para manejá-lo. Este profissional contribui muito pouco, ou nada, para a forma, ação e progresso daquele. Talvez apenas na escolha do modelo a comprar, e manuseio do software. Percebemos que são “escolhas” que respeitam o campo do possível, e não do potencial 52 . Estamos, paradoxalmente, em um mundo intensamente inventivo, mas no qual nossa contribuição parece ser praticamente nula. Isto nos leva a pensar que vamos deslizando – sutil e firmemente – para uma situação na qual somos um fragmento de um grande plano de invenção, e temos pouca condição de ter consciência e resistir às mensagens e imagens clichês que nos con-formam 53 . De resistir, no sentido de abrir espaços de vazio, vacúolos de significação. É patente, então, que não é só a máquina que é fruto do jogo de forças, mas também o homem, com suas formas, habilidades, gestos e pensamentos. Sua própria subjetividade se forma pelo encontro, iteração 54 de códigos, discursos, e do entre planos de sentido ao qual se expõe. Passemos a mais algumas “conseqüências imanentes” deste homem. Ele se expõe a um oceano de mensagens e planos de sentido. Afetos categóricos e de vitalidade, impressões fugidias ou totalizadas. Sensações complexas ou simples e lineares. No entanto tende a concentrar-se em um foco. No exemplo aqui trabalhado, o coração fetal. Existe uma explosão de campos de virtualidade, de incorporais tensionando para a expressão. Mas, ao mesmo tempo, uma exigência de restrição, negação ou recusa destes, para a produção de uma rota única Lembremos que possível é o leque de ações que se pode projetar no futuro, tendo em vista os acontecimentos passados. Já potencial é o poder de diferir radicalmente. 53 Rolnik (2005) detalha, com clareza, o processo de “hiperativação do exercício empírico” concomitante à “anestesia do exercício intensivo do sensível”, ao longo do século XX. Isto, a partir da diferenciação entre percepção e sensação. A primeira lida com aspectos formais obtidos pelos sentidos, já a segunda, resulta da presença viva do outro, não podendo ser representada, mas apenas expressa através de um processo de invenção. 54 Palavra muito utilizada por Simondon, com o significado de repetição. 52 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 98 (ou bem concentrada) de conhecimento. Todos os personagens sentem a profusão potencial, mas se dirigem para um encontro com foco de atenção muito específico. Ali, na sala de ecocardiografia, terá lugar apenas o “dar à luz” de formas do interior do coração fetal. Isto faz parte de um mundo ambiente que “naturalmente” vai delimitando a doença em um órgão. E mais, em um órgão independente dos afetos de vitalidade presentes no momento. E mais, independente da subjetividade individuada e característica do indivíduo. E mais, independente dos outros órgãos do corpo. E mais, independente da vida deste órgão (pois, como trabalhamos, o modelo de doença é a alteração do corpo morto ou experimental). Tudo isto, e provavelmente muito mais, faz com que o encontro possa ser rápido. O descarte das “nuvens de virtualidade” não só permite, como exige, uma aceleração. Há uma “adicção acontecimental”, ou seja, uma necessidade compulsiva de se expor à produção de eventos, numa tentativa de dar expressão aos incorporais “seqüestrados”. A cada produção de conhecimento, a cada formação de superfície (aqui, de dados sobre o feto) uma nuvem de potência se forma (ter problemas, variações anatômicas, regiões não “vistas” e portanto exigindo novos exames, ...), dáse, então, a procissão adictiva por profissionais e exames os mais diversos, conversas, técnicas de relaxamento, manuais de auto-ajuda. A focalização se relaciona com a equivalência. Uma miríade de corações fetais passa pelos olhos treinados. E mais treinados estarão, quanto mais corações passarem. O que leva a um aprendizado muito específico, e uma estranha ignorância quanto a uma série de outras coisas. Estranha, pois é comum ver médicos (mas não só) com uma carreira que exigiu uma vida de estudos (mestrado, doutorado, pós- O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 99 doutorado), desconhecendo coisas muito simples, fora de seu campo de aprofundamento 55 . Não considero “culpa” do médico. Para existir culpa, seria necessário habitar um outro plano de reflexão, que não o escolhido nesta pesquisa. Do “observatório” adotado, a idéia de culpa é vista como um resquício do passado. Talvez confortador. Seria um conflito de disciplinas, de indivíduos individuados, ou de instâncias do saber. Mas vem se desenvolvendo o pensamento de que existe um maquinismo subterrâneo, um evolver ecológico, que “obriga” as pessoas a acumular, focalizar, fragmentar e alienar uma multidão do que chamamos coletivo 56 . O que não nos impede de poder pensar uma ética. No entanto, não será uma ética que atenderá o registro (cristão?) da culpa. Outra conseqüência deste panorama é a importância conquistada pela estatística. Esta foi passando, de uma forma de detectar linhas de invenção, para uma forma de generalização de dados e aplicação de ações que visam um “individuo da população” 57 . No “caso” aqui estudado, o indivíduo é mais o coração fetal do que o feto mesmo, ou a gestante. Como foi o caso de uma paciente que atendi. Antes de ser encaminhada para mim, submeteu-se a um ultra-som obstétrico (tétrico), feito por um profissional com uma competência extrema em seu “métier”. O mesmo conseguiu, o que é incomum, diagnosticar particularidades de uma doença do coração fetal, sem ser cardiologista. A partir daí informou, com correção, à paciente que o feto provavelmente não sobreviveria até o final da gravidez, e marcou um novo exame, para controle, no mês seguinte. Obviamente a mulher passou a viver um sofrimento impensável, sem condições sequer de sair dali, sendo ajudada pela secretária a telefonar para o marido, que foi buscá-la. Alguma sensibilidade para o adoecer, para o morrer, para o sofrer da passagem do tempo, estava simplesmente excluída do campo de atenção daquele profissional. E não é questão (ou talvez seja justamente esta) de pensarmos que ele não é psicólogo para saber destas coisas. 56 Penso não em um voluntarismo ou em uma imposição de alguma força abstrata, mas na processualidade de uma estratégia de subjetivação. 57 Foucault (2001, pp. 79-98) apresenta uma perspectiva do surgimento do conceito de população junto com uma forma de medicina coletiva. Uma apropriação do corpo pela sociedade capitalista, através de uma “estratégia bio-política”. 55 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 100 Seguindo uma indicação de Virilio, estaríamos vivendo um tempo onde o modelo seria o do “inválido equipado” 58 . O homem tem os sentidos acoplados a instrumentos que permitem a ele ser um “super-homem”. Atravessando os corpos (vivos!) com seu olhar. No entanto, cada vez mais incapaz para uma série de outras ações. E mais dependente dos instrumentos, que não produziu por si próprio. O que antes era distante ou impossível (ver o que se passa no interior do corpo vivo) torna-se possível. Mas também o que era próximo torna-se distante. Como o contato físico, o observar da história natural da doença (às vezes nos perguntamos “o que é isto?”, tão distanciados ideativamente que estamos, da importância que teve, em um passado não tão distante), o conversar. Há uma mutação do “trajeto clínico” percorrido nos dias do hoje, o qual se detém menos na “paisagem” afetiva e singular do encontro. Os caminhos são curtos e céleres entre objetos que proliferam na cena clínica. Este é um território no qual a chamada “performance” tem um lugar privilegiado. Já que tem um objetivo definido, uma finalidade, recolhida em meio à selva potencial. Atender muitas “pessoas”, com precisão diagnóstica. Território que se presta às certificações de qualidade e à conformidade em produto de consumo de massa. A expressão aparece quando ele diz: “Com o sedentário contemporâneo da grande metrópole, a contração no lugar não atinge apenas a área de deslocamento e de atividade produtora de outrora, ela atinge em primeiro lugar o corpo dessa pessoa válida sobreequipada de próteses interativas cujo modelo se tornou o inválido equipado para controlar o seu meio ambiente sem se deslocar fisicamente” (Virilio, 2000, p. 60). “A poluição dromosférica é, pois, aquela que atinge a vivacidade do sujeito e a mobilidade do objeto ao atrofiar o trajeto, a ponto de o tornar inútil. Invalidez maior, resultante simultaneamente da perda do aparelho locomotor do passageiro, do telespectador, e da terra firme, desse grande solo, terreno de aventura da identidade de estar no mundo” (Virilio, 2000, p. 60). Aqui, o nosso “telespectador” é a paciente que retira os pés do chão e se apassiva em horizontal oferenda. 58 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 101 A conformação da relação à finalidade é, em certa medida, surpreendente. proliferação de Já que estamos encontros e dizendo novos que objetos e há igualmente corpos uma (telemáticos, informáticos, arquitetônicos, artísticos), o que torna a invenção, o “momento fetal” de produção de espaço/tempo, especialmente intenso. Descobrimos uma inércia soberana, uma escravidão involuntária. O que revela um apassivamento a alguns “fluxos dominantes”, que justamente tem sido o do encontro como objeto de consumo, a necessidade de rapidez, a focalização, o finalismo, a matematização do corpo e do espaço. Considero que este apassivamento cobra um preço, trazendo para perto dos atores uma sensação estranha de desencontro, um vazio oceânico, uma tristeza sem lugar. Sensações que fazem par com “doenças” muito recentes em nossa história, como “fadiga crônica”, dores com pouco ou nenhum substrato anatômico-fisiológico (como a fibromialgia), a distimia, ou mesmo o pânico. Uma última associação nesta etapa da jornada é a da tradução. Observe-se que o paciente deve tirar os pés do chão, perder a sua base, e entregar os “seus escuros”, para a tradução em códigos de som, de luz e binários. Após isto, haverá outra transcrição que será a das palavras médicas, que preencherão o laudo. O virtual, o que tratamos de incorporais ou esquizo, escapa sempre à captura em formas, apesar de tender para elas. O contato possível com este plano ocorre pela intuição, exige um tempo próprio, e “espaços de vazio”. O encontro ecocardiográfico se encaminha para um processo de leitura e tradução. E mais, os vários “textos” se prestam utilitariamente à reprodução, o que não ocorre com os encontros que enfocam mais a intuição. Todas estas questões não pretendem ser um lançar caótico de observações sobre um campo específico da medicina. Bem ao contrário, buscam produzir visibilidade sobre o sem-número de fluxos em jogo e que O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 102 muitas vezes passam ao largo da consciência (e do inconsciente recalcado). Cada encontro está mergulhado em uma problemática maior, que o antecede e o excede. Isto para tentarmos escapar das soluções em bases dialéticas, que freqüentemente negativam, ou mesmo demonizam, um ou outro personagem. Além de desembocar em propostas simplistas, que desconsideram a complexidade do que está em jogo; ou que lidam como se todos os fatores fossem conscientes e manipuláveis, recusando a importância de considerar atitudes clínicas que considerem as “zonas de sombra”, aquilo que se desconhece, mas está lá. Tudo isto e muito mais estava presente naquela pequena sala de exames. Eu e Moça poderíamos não querer ou não poder perceber, mas uma produtividade intensa estava ocorrendo. Bem além do fato de “ver o coração do feto”. E isto ficará cada vez mais claro nos encontros posteriores. Faz-se necessário um esclarecimento. A moça “negra e alta” que nos acompanha aqui é a mesma que viveu comigo aquela “situação psicanalítica”. Sem saber que eu era psicanalista, seis meses após a morte da filha, ela me procurou pedindo alguma ajuda, já que desde então vinha tendo o que os médicos chamavam de crises de pânico. Creio que o motivo da procura foi o fato de que nossos “encontros cardiológicos fetais”, foram palco de um pequeno deslocamento, quanto aos encontros habituais deste tipo. Este deslocamento foi a nossa forma de produzir um espaço/tempo de resistência. O que será trabalhado mais à frente como uma atitude clínica, ética e política, que leva em conta o plano de imanência que vem sendo elaborado. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 103 3.3. Controle, antecipação e risco Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança de minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio que não sentirei morde o coração actual. Fernando Pessoa O ponto específico que quero abordar é – no limite do objetivo e do subjetivo – o da produção de formas de afetar/perceber o momento fetal. A exposição do corpo aos encontros com estas inúmeras produções “exige” a produção de um novo corpo com seu complexo singular de tempo/espaço 59 . Em um sentido mais amplo, cada momento histórico comporta determinadas modulações ou estratégias de diagramas de força e de distribuição de formas (figurativas, narrativas e mesmo físicas). “Sociedade de controle” foi o nome dado por Deleuze (1992, p. 224), para determinar a particularidade de uma “ecologia virtual/atual” de nosso tempo. Para o autor, acompanhando o pensamento de Foucault, a sociedade disciplinar – com seus espaços fechados – estaria dando lugar a uma nova forma de temporalização e espacialização do vivido, num processo de antecipação e molecularização, que denominou controle. “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O Lyotard (2001, p. 261) ressalta a importância de se abordar esta perspectiva quando propõe que “a primeira coisa a ser atingida, e que reclama, em nossa modernidade, ou nossa pós-modernidade, talvez seja o espaço e o tempo”. 59 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 104 homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (Deleuze, 1992, p. 224). Antigamente havia o tempo da gravidez, do nascimento, de lidar com a doença ou com a morte neonatal. Tempos relativamente longos, descontínuos e bem marcados. Hoje, no entanto – apesar de, logicamente, haver sobrevivências de todas as formas de temporalização anteriores – sempre há algo a fazer. Mais exames, técnicas experimentais, atitudes inéditas. Circuito acelerado que “acolhe” aqueles que podem se endividar, comprando a geração de imagens e códigos que procuram afastar riscos projetados no futuro 60 . Rabinow esclarece bem como, na atualidade, os dados da presença imediata vão cedendo lugar à necessidade de antecipação de riscos impessoais projetados no futuro quando diz que “a prevenção moderna é antes de tudo mapeamento de riscos. O risco não é o resultado de perigos específicos colocados pela presença imediata de uma pessoa ou um grupo de pessoas, mas sim a fusão de ‘fatores’ impessoais que tornam um risco provável. Assim, a prevenção é a vigilância, não do indivíduo, mas sim de prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados, e de comportamentos saudáveis a serem maximizados. Estamos aos poucos abandonando a antiga vigilância facea-face de indivíduos e grupos já conhecidos como perigosos ou doentes, com finalidades disciplinares ou terapêuticas, e passando a projetar fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou grupal, ao antecipar possíveis loci de irrupções de perigos, através da identificação de lugares estatisticamente localizáveis em relação a normas e médias” (Rabinow, 1999, p. 145). O que parece estabelecer um movimento paradoxal, no qual “quanto maior a oferta de ‘saúde’, mais as pessoas respondem que têm problemas, necessidades e doenças, exigindo garantias contra os riscos” (Illich,1999). 60 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 105 Cria-se uma situação curiosa. Na tentativa de atualização de potenciais, antecipando possíveis (como uma anomalia fetal ou um infarto) produz-se idiossincraticamente uma dívida eterna com o virtual, obrigando a uma tarefa de Sísifo, e uma aflição difusa, constante e imperiosa. A cada “nascimento ultra-sônico” do feto, a cada garfada de carne, somos confrontados com exércitos ameaçadores de possíveis, que nos obrigam a atitudes re-inventadas, a cada nova informação, a cada novo exame. No afã de controlar o virtual, desenvolvem-se técnicas que realizam este desejo tornado necessidade, as quais são ofertadas como produtos para consumo (geral, tanto de médicos como pacientes). Nas palavras de Pelbart (2000, p. 31), “o regime universal e omniinclusivo do mercado globalizado, ao mesmo tempo em que tende a engolir toda exterioridade, também secreta, no seu seio, contingentes crescentes de exterioridade potencial”. Talvez, o exemplo mais extremo do que estamos tratando possa ser o de ter um bebê morto – ou que se sabe irá morrer – na barriga, e ter que esperar dias ou meses para o aborto ou nascimento 61 . A diferença é que há pouco tempo esta resolução natural ocorria na ignorância da morte fetal. O medo se relacionava ao processo de sangramento e à “perda do bebê”. Hoje ocorre uma convivência com a morte durante a gestação. E mesmo nas gestações normais, a sombra da “morte em vida” vai se tornando difusa e constante, em meio aos inúmeros “encontros” com o feto. Como lidar com a morte apenas anunciada para o futuro? Como lidar com a morte de um bebê que nunca esteve nos braços? Esclareço que a conduta de muitos obstetras após um óbito fetal é de esperar a resolução natural ou aborto espontâneo, o que pode demorar semanas. Existem dificuldades técnicas de abortar um feto já grande, o que pode colocar em risco a vida da gestante. 61 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 106 Não se trata de uma morte imaginária, projetada no futuro. Apesar de podermos considerar que um esforço imaginário de elaboração de luto precisará ser feito. Nestes casos, a morte está lá, concretamente, mas dentro da virtualidade que deveria atualizar-se em criança, ao final da gestação. Esta última frase soa muito estranha. Isto pois, como o inconsciente freudiano, a esfera virtual não “reconhece” a morte. É um campo de pura produção, sendo a morte uma propriedade dos indivíduos. Mas então, como pensar a morte no limite virtual/atual? Ao antecipar o acontecimento do nascer, a conjunção de fluxos, que deu origem ao encontro na sala de ecocardiografia, criou um indivíduo. Este, destacado do engendrar que o mantinha em potencialidade 62 , pode morrer. Esclarecer a situação, não nos afasta da necessidade de ter que lidar com a realidade que Moça teve que enfrentar, após inúmeros exames e uma biópsia da placenta. “Seu bebê tem uma alteração genética incompatível com a vida. Se viver até o parto, morrerá logo em seguida.” Em sua idade gestacional, o aborto não era mais aconselhável. Então este era o enigma da Esfinge. Como experimentar a morte no limite do virtual? Em potência para ela, a não ser, por um discurso que antecipa um destino inexorável. O contemporâneo mergulha no virtual, e traz a morte como recado. Simondon (1995, p. 166), ao tratar da morte, segue um caminho semelhante, afirmando que a colônia (que tem seus indivíduos sempre substituídos) nunca morre. Mas, ao contrário, quando o indivíduo se separa da colônia, aí sim, estará sujeito a morrer (sendo a própria condição de morrer que o define como indivíduo). 62 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 8 – O médico - Sir Samuel Luke Fildes (1891) 107 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 108 Capítulo 4 Apontamentos para uma clínica “do” impensável Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Clarice Lispector 4.1. Os proto-pensamentos O pensamento deve lançar-se acima dos ‘fatos’ para interrogar-se, não apenas sobre suas causas mecânicas, mas também sobre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciação dos quais eles são os enunciados, sobre os mundos de vida e de significação do magma dos quais eles surgem. Pierre Lévy “Nascidos vivos, queriam viver.” Com estas palavras, Pirandello (1978, p. 327) exprime o seu assombro, quanto ao surgimento de seis personagens, para os quais não se considerava autor. Seis personagens à procura de um autor é o nome da peça, que desliza em algum limite impreciso entre os personagens e o inadvertido autor. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 109 Interessa-nos, justamente o que a peça traz como questão. Nas palavras de Pirandello: “acaso existe um autor capaz de indicar ‘como’ e ‘por que’ uma personagem lhe nasceu na fantasia? O mistério da criação artística é idêntico ao do nascimento natural. Uma mulher que ama poderá desejar muito ser mãe, porém, o desejo apenas, embora profundo e intenso, não é suficiente. Entretanto um dia ela se tornará mãe, sem contudo ter-se apercebido do momento em que isso se deu. O mesmo acontece com o artista: vivendo, ele reúne em si um sem-número de germes de vida e nunca poderá afirmar ‘como’ e ‘por que’, num determinado momento, um desses germes vitais penetrou a sua fantasia para tornar-se, também ele, uma criatura viva...” (Pirandello, 1978, p. 326, grifo meu). Um sem-número de “germes de vida” estão sempre repondo o potencial de in-formação e trans-formação dos mundos próprios. Tensionando os corpos que resistem a eles. Melhor, os corpos materiais são a resultante expressiva daqueles, imateriais e impessoais. Ainda aqui, continua a busca por uma forma de aproximação do corpo-melodia, vindo-a-ser, pulsante, limite entre o potencial e o estabelecido. E, neste sentido, é possível dizer que o autor é, na verdade, um “autômato espiritual”, ou seja, agenciamento de “germes de toda sorte, sensoriais, cinéticos, intensivos, afetivos, rítmicos, etc.” (Martin, 1993, p. 224). O “choque” da virtualidade com o estabelecido produz uma “dança”, um ritornelo 63 . A potência deste último “nos leva ao coração do Ritornelo é um termo de origem italiana que determina uma “forma de retorno ou volta, notadamente musical, ligada à territorialidade e à desterritorialização, e produtora de tempo” (Sasso & Villani, 2003, p. 304). “Trata-se de fazer retornar, em uma troca de códigos e em uma mais-valia de passagem, em um ritmo como entre-dois que desorienta todas as medidas, o universal-singular contra as particularidades da memória e as generalidades do hábito. No ritornelo, há esta invenção de vibrações, de rotações, de gravitações e turbilhonamentos, de danças e saltos que ‘atingem diretamente o espírito’ ” (Martin, 1993, pp. 304-5). 63 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 110 pensamento, em direção do que no pensamento não se deixa pensar, o impensado do pensamento” (idem, p. 224). Esse caminho parece importante para a compreensão da maneira pela qual será feita a apropriação de uma intuição bioniana 64 . E esta, tem função neste trabalho, pelos desdobramentos que seguirão. Bion, inspirado na peça de Pirandello, conceitua os pensamentos não-pensados, sem pensador ou proto-pensamentos (1991, pp. 114-6). Estes dispensam enunciado e pensador (idem, p.116). “Ninguém pensa o pensamento verdadeiro: este aguarda o advento do pensador que se personifica através do pensar verdadeiro” (Bion, idem, 114). Por verdadeiro, Bion não propõe nenhuma conotação moral. Mas o evolver da “realidade última” – um tornar-se não acessível pelo saber/conhecer – por oposição à compulsão. Para ele, a não-verdade é uma face da verdade. O seu oposto é o círculo vicioso inaugurado pela compulsão (idem, p.108). Proto-pensamento não é uma idéia, forma ou propriedade. Mas aquilo que impele, age, pulsa, aquém e além do pensador, sendo-lhe contemporâneo, sem esgotar-se nele. Não é – a meu ver – partícula ou signo, mas a própria potência desejante, impessoal e inumana. Estamos lidando com o que busca se repetir, se manter intacto e inteiro, e o que difere, evolve. Desta forma, Bion nos lança em um campo trágico, no qual a vida é a própria violência, o sofrer, a exigência, do que chamou de proto- 64 Adjetivo para a teoria desenvolvida por Wilfred Ruprech Bion (1897-1979): Psicanalista nascido na Índia, mudou-se para a Inglaterra aos oito anos, onde estudou medicina e psicanálise. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 111 pensamentos 65 . A tragicidade deste sofrer trouxe para o léxico bioniano expressões como “tumulto emocional” e “mudança catastrófica” 66 . Progredimos um pouco, quando esclarecemos que o incorporal, os proto-pensamentos, não têm uma relação pacífica com o instituído. É um território de tormentas, intensivo. Os proto-pensamentos é que se afirmam em nós. E nós nascemos para carregar a ferida que nos supõe. Assim, Bion pode afirmar que os pensadores são resultado de uma compulsão. De uma diminuição da velocidade do que estou chamando de virtual. Ou uma repetição do mesmo, uma manutenção do que emerge do pensar 67 que nos pensa. Ocorre um deslocamento do que poderia se afigurar como uma dialética pensamento/pensador (e não apenas uma inversão da proposta cartesiana cogito ergo sum) para uma modulação da produção de subjetividade a partir do instante do encontro. Apresenta-se, a cada momento, um campo de estratégias do pensar, que exprime a resolução parcial do perpétuo dissenso entre a forma pensador e a virtualidade de um pensamento-em-devir. É verdade que para existirmos, nós pensadores, faz-se necessário um movimento de repetição, hábito ou compulsão. No entanto, o excessivo apego à forma ou representação atual de si, produz o que poderíamos Na maioria das vezes Bion utiliza unicamente a palavra pensamento para referir-se ao pensamento sem pensador. Utilizo o termo proto-pensamento, por acreditar representar melhor o viés do conceito que desejo abordar, ou seja, de singularidade potencial não formal ou extensiva. 66 “... em contextos diferentes (na mente, nos grupos, na sociedade, na sessão psicanalítica, etc.) sempre há uma conjunção constante de fatos específicos. Sempre que esta conjunção estável enfrenta uma situação de mudança e de crescimento, a situação se altera e se instala um clima de catástrofe. Esta mudança catastrófica abriga três características, às quais Bion denomina: violência, invariância e subversão do sistema” (Zimerman, 2001, p. 373). 67 “Pensar é justamente a força que, no homem, explora e expõe o virtual ‘até o fundo de suas repetições’ ” (Orlandi, 2000, p. 58). Repetições que, em seu fundo, encontram a diferença. Então, pensar é diferir. 65 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 112 chamar de uma doença que atinge o instante da imanência imprevisível do pensar, que é o choque do pensador com o impensável do pensamento. Neste sentido Bion afirma: “o ímpeto do indivíduo que admite único e indispensável seu contribuir para o pensamento diverge do clima emocional em que a imanência do pensamento dispensando o pensador para pensá-lo não lhe lisonjeia o narcisismo (...)” (Bion, 1991, p.116). Da mesma forma que o autor é já um produto, determinadas emoções também o são, como a inveja, o ciúme ou a possessividade. Pois estes resultam do conflito entre pensadores que se julgam essenciais aos pensamentos que lhes acorrem (idem, p.116). Como sentir inveja ou ciúme, se não nos colocarmos na posição de indivíduos, com propriedade sobre aquilo que advém do plano de imanência? Neste verdadeiro campo de batalha, os proto-pensamentos não têm qualquer necessidade de um pensador para pensá-los. Já, o contrário, não é possível. O que nos lança no paradoxo de que, para o pensador existir enquanto tal, deve assimilar e apropriar-se dos proto-pensamentos. Ao mesmo tempo em que não pode abrir mão de sofrer a ação dos mesmos que não lhe permitem a autoria. Para ser não compulsivo, o indivíduo deve poder ser aquilo que não é, em si. Participar do “tornar-se” que advém da ação potencial do mundo ambiente, do que lhe é estranho. Pode ser antecipado, então, que o que vai ser tratado como doença, vem instalar-se neste limite. Será a produção de estratégia do pensar, que ocorre “entre” os pensadores e os proto-pensamentos. Isto nos cabe, pois permite uma diferenciação capital entre o que chamamos de esquizo e uma patologia qualquer. A doença, nessa O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 113 perspectiva, será abordada a partir do choque/expressão entre o que emerge como estabelecido e o que se conserva incorporal. Dos pensadores – obrigados ao narcisismo de acreditarem seus os pensamentos – com o que lhes escapa e constitui. Conceber um impensado do pensamento conduz Bion a uma interessante concepção de transferência, quando afirma que esta é “uma experiência transitória (...) é um pensamento, um sentimento, ou idéia que você tem, em seu caminho para outro lugar” (Bion, 1992, p. 82). Diz ainda, que, “a relação com o analista é importante apenas como uma tarefa transicional – seria útil caso a palavra ‘transferência’ fosse usada neste sentido mais polivalente” (idem, p. 52). É num perambular para além do que nos assujeita às préconcepções e pré-conceitos, que se abre a ação do impensável. Desta forma, o encontro com o analista importa na medida que é passagem para “outro lugar”. Um “lugar” por se formar, desconhecido, pois inédito, sem ser a reprodução de identidades ou rememoração de fantasmas. É possível ser fiel, assim, à forma como foi interpretado o perlaborar freudiano, como passagem. Encerro esta parte do desenvolvimento com mais uma citação, que nos auxiliará a apontar percursos freudianos que suportam nosso argumento. É uma outra forma de colocação de Bion quanto aos protopensamentos. Propõe que: “alguma palavra diferente de ‘recalcado’ ou ‘suprimido’ se faz necessária, para descrever os elementos mentais que jamais foram conscientes – e isto também significa que jamais foram inconscientes” (Bion, 1992, p. 130). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 114 4.2. Intuição – por uma “memória intensiva” - pois não quereis sentir e seguir um fio com mão covarde; e, onde podeis intuir, detestais deduzir... Friedrich Nietzsche Falar de “elementos mentais” que jamais foram conscientes ou inconscientes, faz-nos retomar a questão de Lyotard, de como lembrar algo que não pôde ser esquecido, já que não foi inscrito (1997, p. 62). Lyotard convoca esta questão, a partir da afirmação de que a perlaboração (working through ou passagem) é uma técnica proposta por Freud, com a intenção de “passar ao lado da síntese”. Uma “técnica sem regra ou com regra negativa, desregulada”, para atingir não propriamente as inscrições, mas o seu suporte. Neste terreno movediço, trazemos à lembrança, uma das primeiras teorias de “mecanismo psíquico” do jovem Freud. Escreve ao seu amigo Fliess: “Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias – a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações” (Freud, 1986, p.208). Freud concebe, então, um processo de subjetivação que dobra e desdobra signos, em uma polifonia de estratos e temporalidades. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 115 Nesta mesma carta, refere que o primeiro traço de memória não pertenceria nem ao inconsciente enquanto “lembranças conceituais” (com conteúdo formal), nem ao consciente (que não conserva qualquer traço), e o chama de signo (indicação) de percepção (idem, p. 209). Tomemos estes primeiros traços não formais, como um esforço conceitual de Freud para atingir o plano do suporte inscritível. Ou seja, a apreensão pática – não propriamente consciente ou inconsciente – da atmosfera afetiva dos encontros. Indicação de percepção seria a potência de experienciar o próprio deslizar das percepções e dos registros para outra qualidade intensiva. Freud mesmo – em texto bem mais tardio – ao questionar a validade em relacionar o prazer unicamente à diminuição das tensões, refere-se à existência de algo não quantitativo (formal, mensurável ou extensivo) na experiência afetiva. Escreve: “Parece que eles [o prazer e o desprazer] dependem, não desse fator [aumento ou diminuição] quantitativo, mas de alguma característica dele que só podemos descrever como qualitativa.” [...] “Talvez seja o ritmo, a seqüência temporal de mudanças, elevações e quedas na quantidade de estímulo. Não sabemos.” (Freud, 1980b, p. 200). Já tendo tratado dos afetos, é possível alinhar a indicação de percepção e os “rearranjos” dos traços de memória, com a emergência intensiva dos afetos de vitalidade, e a modulação contínua da subjetivação através dos “sensos de eu” (emergente, nuclear, subjetivo, verbal e talvez uma infinidade de outros mais). No caminho de apresentar uma memória intensiva, pática, que se apresenta – inédita – nos encontros, lanço uma ponte entre os signos de percepção e os “traços a-significantes”. Expressão usada por Deleuze ao tratar da pintura de Francis Bacon: “... marcas livres involuntárias riscando a tela, traços a-significantes desnudos de função ilustrativa ou O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 116 narrativa...” (1996, p. 11). Desta forma se quer dizer que no limite do virtual, queda ou ascensão em atualidade, há um território que dá qualidade ao acontecer, para além da medida sensorial, mas que escapa também das redes significantes (pois sempre mantém seu estado potencial). Já a intuição será a ação de permitir um comunicar-se com esta memória. A porosidade para deixar vibrar as repetições em um banhar-se no virtual. Ir diferindo por passagem de sensação não sensorial. Ação de atingir, sem cercear, a fugacidade de traços esquizo que deslizam pelo abismo dos encontros. Na obra de Bion (1991, p. 17), a intuição é tida como uma experiência supra-sensível, que, de forma análoga ao olhar, apalpar ou auscultar do médico, é o que permite ao analista experimentar realizações como a angústia. Portanto não se pode saber ou compreender aquela sensação, mas apenas intuí-la, experimentá-la, comunicar-se nela. Assim, concebemos um “território” outro, que não é propriedade (consciente ou inconsciente) do pensador, mas ao qual tem acesso pela intuição. Região em perpétua precariedade, podendo ser, em parte, atualizada em representações. Intuição, então, é o contato que se estabelece, a cada instante, com aquilo que não respeita a cronologia da consciência, e nem tampouco a do processo primário (inconsciente); com a apresentação de uma multiplicidade singular que não significa, mas produz sensações. Percebemos um impasse, eternamente resolvido e por resolver, quanto à intuição. O de manter-se inexpressa, ou de tornar-se uma representação. Como as representações são sempre restritivas, há também um impulso de não produzi-las. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 117 O pensar “libera” algo da intuição. E como esta última age sob um regime de tensão/exigência, o processo do pensar alivia enquanto frustra (Bion, 1991, pp.21-2). De qualquer forma, entramos em contato com os proto- pensamentos, não através do pensar, que os esgota em matéria onírica, mas pela intuição. Da maneira de lidar (estratégias do pensar) com a memória intensiva, dependerá a compreensão – esta é minha aposta – das formas do sofrer contemporâneo. Retornemos àquela sala, na qual eu e Moça sofremos a violência da memória intensiva. Estávamos mergulhados em uma atmosfera – com seus afetos de vitalidade e proto-pensamentos – que nos pensava. Algo da sensação surgia como familiar. A uma continuidade rítmica – surgida em nossa presença – musicada ao longo de muitos encontros, poderíamos chamar confiança. É uma marca, cicatriz, surgida de uma regularidade espontânea. No entanto, a sensação guardava em seu seio o estranho pulsar de uma harmonia errante. Atmosfera caótica que nublava a segurança territorial do hábito. Então, sem planos, o coletivo incorporal que nos conduzia em uma rede de estabilidade confortável, foi desertando do nosso mundo ambiente. A catástrofe se anunciava com inércia imperiosa à intuição, sem que nos fosse possível contê-la. Um pensar impessoal se avolumava, trazendo consigo o perigo e a necessidade de sofrer um “para além”; de abrir mão dos mundos próprios, dos roteiros afetivos costumeiros, das significações restritivas e mudar com ele. Deixar passar o sentido em devir, abrindo vazios de saber e liberar a intuição para a possível criação de um som, uma imagem, uma palavra. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 118 Aliás, a técnica psicanalítica, pelo viés que venho abordando, implica o cultivo de espaços de abertura para o avanço da força potencial. Assim considero a radicalidade da associação livre e da atenção flutuante na práxis freudiana. Da pletora de clichês que povoam os encontros, abrem-se vazios de saber, sejam eles desejos, reminiscências ou necessidade de compreensão (Bion, 1991, p. 40-2). Isto pois estes últimos apóiam-se na experiência sensorial, são saturados (fechados em uma significação narrativa ou figurativa) e evocam sentimentos de prazer ou desprazer (com conteúdo), não abrindo espaço para o experimentar do devir. Abrir-se para a violência do acontecer – inédito e impessoal – mesmo sendo expressão da técnica, não impede que o experimentar do encontro clínico seja mortífero ou enlouquecedor. E foi este perigo com o qual nos confrontamos. Será que a confiança, o “ritmo de base” que nos musicava, “sabia” da nossa condição de resistir à explosão da memória que nos pensava cristalizados, defasados e mortos? Não é possível fazer esta afirmação. O fato é que, da noite dos nossos seres em despedida, uma força, impossível até então, surgiu. Impossível até então, porque não se pode lembrar do que não foi integrado no pensar que constitui o nosso mundo próprio e que surge como apresentação desmedida, fazendo mover o próprio suporte de inscrições, ou seja, a forma de perceber e sentir. Lançar-se ao mar com garantias ínfimas. Prescindir da segurança de um cais-clichê-de-si não é apenas uma opção clínica, mas uma necessidade. Necessidade de experimentar a inumanidade da individuação em um novo corpo, através da eternidade que há no instante de um doer, angustiar, alegrar, desesperar, aliviar... O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 119 Pode ser extremamente penoso não poder esquecer algo, por não poder ter sido experimentada a memória intensiva de um esgarçar infinito, de um escoar (amniótico?) incessante. É preciso ensaiar exprimir essa memória atmosférica, para poder liberar a intuição, muitas vezes carregada de sensações terríveis. 4.3. Imaginação, subjetivação e devir Não cabe, obviamente, perguntar se são trajetos reais ou imaginários, concretos ou oníricos, objetivos ou subjetivos (...) pois todo objeto, pessoa, grupo, singularidade com a qual ela cruza [a criança] já carrega consigo um meio em constante germinação, já está rodeado de uma névoa de virtualidade que o acompanha, já habita uma espécie de inconsciência que o povoa, já pode ser a ponta de um cristal de inconsciente. Peter Pál Pelbart Dos apontamentos que venho fazendo, importa ainda destacar a positividade do subjetivar. Na medicina, esta perspectiva pôde ser pensada com Canguilhem ao conceber a doença como errância normativa, para além das categorias de normal e patológico (estas são fixações da processualidade produtora de normas). Agora serão usados alguns instantes na defesa desta perspectiva no terreno psicanalítico. Sendo fiel ao desdobrar de nosso trabalho, consideramos a subjetivação como um processo. A emergência de uma musicalidade do ser, a partir do encontro com outras melodias. O que implica uma condição de abertura e mutação na afetação por novos ritmos. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 120 Neste sentido, alguns teóricos do campo psicanalítico (Cavalcanti, 1998; Néri, 2003; Reis, 2003) têm proposto uma alternativa à perspectiva dominante, de que a falta (o negativo, a castração) é o que leva o sujeito a pensar e desenvolver o contato com a realidade. Obviamente, a falta pode levar o sujeito a conquistar alternativas, mas esta forma de subjetivação não pode ser primeira, pois a própria constituição do sujeito faltante já é um resultado de um encontro de fluxos, sensações ou proto-pensamentos; da constituição de um mundo próprio, a partir de um mundo ambiente (aquém da divisão sujeito/objeto), nas palavras de Uexküll; ou da comunicação, no sentido de in-formação de realidades pré-individuais, na visão de Simondon. Na obra de Freud, a tese da castração, como se sabe, é largamente majoritária. Como exemplo, podemos nos reportar ao capítulo sete de A interpretação dos sonhos, no qual desenvolve a chamada “teoria do apoio”. O bebê busca o seio por instinto, no entanto encontra muito mais do que o leite que sacia sua fome. Cheiro, sabor, luminosidade, calor... constroem um cenário rico em afetos. Em um segundo momento de fome, o bebê procura reviver a mesma experiência, alucinando a “vivência de satisfação”. Como a alucinação não sacia, ele é obrigado a pensar (encontrar uma estratégia que no caso seria chorar), adiar o prazer imediato – alucinatório – para a obtenção de prazer mais adiante (Freud, 1980a, pp. 515-6). Entretanto, é possível uma outra interpretação dos fatos. Creio que a criança tem uma predisposição para estabelecer “linhas de coerência” entre as experiências, mesmo quando não repetidas com freqüência (Stern, 1992, p. 46). Isto acarreta o fato de que a criança pequena não vive um déficit na realidade, que a obrigaria a alucinar, apenas experimenta complexos de sensações mais ou menos novas (idem, p. 228). As idéias de O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 121 falta ou conflito surgirão bem mais tarde, quando o senso de eu conceber totalidades. Passarei a palavra a Néri que, de dentro da própria obra freudiana – principalmente no Projeto para uma psicologia científica e na Carta 52 à Fliess – encontra o caminho de um “circuito pulsional de processamento de intensidades” que realiza o potencial: “Estamos diante de um psiquismo que se constitui como um circuito pulsional de processamento de intensidades, visando a obtenção do prazer que só se dá num encontro com o outro, que vai deixar marcas eróticas singulares das experiências de dor e satisfação. A subjetivação apresentase como uma produção imprevisível, indeterminada, no sentido de produções singulares e abertas. Na experiência de alucinação do seio, os traços das experiências de satisfação que a criança inscreve já são diferenciados: é a maneira como ela cheirou, tocou, degustou, que vai marcá-la de forma singular, abrindoa para novas experiências que produzirão novas marcas, a subjetivação podendo ser vista como uma proliferação de experiências singulares” (Néri, 2003, p. 29). Desta forma, a alucinação se desprenderia das amarras da categoria do falso ou do erro. Para, assim, ganhar a condição de errância. Quando se faz o movimento de recuperar o prazer passado, esta memória já se envolve de tantos outros signos – que estavam antes, depois, através – que o que era pra ser o mesmo, já é outro. Foucault afirma que “o imaginário não é um modo de irrealidade, mas um modo de atualidade, uma maneira de pegar em diagonal a presença para daí fazer surgir as dimensões primitivas.” (1994, p. 142). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 122 Já Winnicott, em sua obra, “constrói” um “espaço potencial” 68 , paradoxal e “indecidível”, “entre” o objetivo e o subjetivo. Espaço nãogeográfico que “secreta” objetividades e subjetividades, no mesmo movimento. Portanto compreende a ilusão ou alucinação como passagem necessária ao viver, à “produção/descoberta de mundo”. Ao comentar o texto “On not being able to painting”, de Marion Milner, no qual a autora defende a existência de um “transe humano primário”, como fundamental à criatividade, Winnicott escreve que: “este transe [humano primário] surge da não-identidade daquilo que se concebe e do que há para perceber. Para a mente objetiva de outra pessoa que esteja vendo de fora, aquilo que é externo a um indivíduo, nunca é idêntico ao que está dentro desse indivíduo. Mas pode haver, e tem de haver, para a saúde (assim implica a autora), um ponto de encontro, uma sobreposição parcial, um estágio de ilusão, intoxicação, transfiguração” (Winnicott, 1994, p. 300). E, a seguir: “Os psicanalistas estão acostumados a pensar nas artes como fugas realizadoras de desejos quanto ao conhecimento desta discrepância existente entre o interno e o externo, o desejo e a realidade. Para alguns deles, pode ser um choque encontrar uma psicanalista que tira a conclusão, após um estudo cuidadoso, que esta ilusão realizadora de desejos pode ser a base essencial de toda a verdadeira objetividade” (idem, p. 300). 68 “Esta terceira área foi contrastada com a realidade psíquica interna, ou pessoal, e com o mundo real em que o indivíduo vive, que pode ser objetivamente percebido. Localizei esta importante área da experiência no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê e a mãe (...)”. (Winnicott, 1975, p. 142). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 123 A subjetividade ou objetividade não capturam o sentido do acontecer. A ilusão ou realidade não nos ensinam sobre os signos de percepção, os pensamentos sem pensador, os afetos de vitalidade, o imaginar da imagem. Daí decorre pensar em um “momento fetal”. Espaço/tempo de produção de um acontecer que emerge – imprevisível – do impessoal. Não eu, não ele. Intensidades, fluxos, em plano de imanência. Encontro de sons sanguíneos, de temperos e temperamentos. Trago de Zygouris algumas idéias que, a meu ver, tratam deste “momento”, no limite do virtual com o estabelecido. Emergência de ritmo: “Os sons, o ritmo, mas também o silêncio, que é sempre um silêncio ritmado e singular, que une a criança na barriga da mãe ao mundo, são os precursores da música e o substrato do vínculo em geral. Mesmo antes de seu nascimento, a criança está mergulhada no tonal e no rítmico de uma pessoa específica que a une ao mundo. Quando alguém fala, seu corpo toca aquele que ouve. O vínculo ‘musical’ supõe uma continuidade que se opõe à descontinuidade das palavras da língua. Assim, através da voz os corpos se tocam, se sincronizam ou não, se ritmam” (Zygouris, 2002, p. 27). Os incorporais estabelecem um plano de ressonância entre as multiplicidades qualitativas que são os seres. Assim, eles se tocam e comunicam, evolvem. Incorporais que fazem as memórias conceituais “imaginar”, sob a ação da memória intensiva, da proliferação de singularidades. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 124 As estratégias ontológicas de surgimento de mundos próprios, e as agonias características, estão mais intensamente relacionadas a este momento, a cada momento, em que algo de fetal é exigido de nós 69 . Criação e experimentação que atacam e fazem tremer a estanqueidade das imagens pétreas e reificadas de si, que Rolnik chamou de “figuras prêt-à-porter”: “a vigência no mundo contemporâneo de uma hierarquia mais impalpável do que aquela que se exerce entre classes, etnias, raças, sexos, gêneros ou ideologias, mas talvez por isso mesmo mais implacável; é uma hierarquia imaginária que oprime todos os modos de existência. Montam-se imagens de figuras humanas que parecem pairar inabaláveis sobre as turbulências do vivo. Tais figuras prêt-à-porter servem como modelo identificatório, referência universal a partir da qual avalia-se todas as figuras existentes, criando a ilusão de que é possível permanecer em equilíbrio, imune à finitude, o que reitera a exploração do transhumano como negativo da forma” (Rolnik, 1995, p. 100). Agora é possível a aproximação a estas palavras de Rolnik, dizendo que a “hierarquia imaginária”, referida por ela, só pode se constituir, na condição de ignorar a imaginação das imagens, a ação da memória intensiva e da intuição, da ressonância que lança os seres em errância não formal. Insisto, neste ponto é que reside a captura e a resistência, a dor e a alegria das produções mais intensas da atualidade. Em uma perspectiva surgida da prática psicanalítica, Safra (1999. p. 48) escreve que “quando áreas da experiência humana não se constituíram na situação de ilusão como parte dos aspectos do self, temos buracos, que ameaçam o indivíduo com a dispersão de si e com as ansiedades impensáveis.” 69 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 9 – Sem título - Nazareth Pacheco (1998) 125 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 126 Capítulo 5 Agonias Impensáveis Esta sensação é insuportável. Se tivesse pelos, eu os sentiria eriçarem-se por todo meu corpo. Mas, em meu estado, não tenho nem mesmo os meios de experimentar o medo que sinto. Thomas (Maurice Blanchot) Moça reagiu ao impacto do anúncio de morte de seu bebê recolhendo-se para um mundo de fantasias, compulsivamente repetido. Respondeu com delírios e alucinações ao também fantástico mundo que expõe sua intimidade e lhe oferece um corpo, tão distante de sua realidade afetiva. Este corpo não se pode tocar, mas vem com a força de uma certeza ao mesmo tempo imperiosa e sem remetente. Como tornar suportável essa dor que parece impossível de viver? Quais redes culturais ou de produção de sentido poderiam minimizar a dor inominável? Foi no território necessário para a construção/apreensão da realidade, o da ilusão, que Moça se refugiou durante toda a gravidez. Porém, no momento em que a bolsa amniótica rompeu, a ditadura da verdade (intensiva) mantida distante começa a se impor em seu mundo, a “ilusão criadora de mundos” assume tons tenebrosos, e sobrevém o pânico. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 127 O terror se instalou em sua vida, e as crises de pânico eram a sua saúde. Destinou aos mesmos profissionais que lhe propuseram a “questão impossível” – os médicos – os seus medos mais intensos. Estava vagando em um pesadelo de morte em vida, no qual o único sentido era o terror do desabamento de si com suas águas e seu bebê sem vida. Neste pesadelo as crises eram a expressão mais sincera de uma vontade de viver – impessoal e ainda possível. Levava seu corpo compósito em convulsão, palco de uma batalha sem ideologia ou moral, para aqueles profissionais acostumados a lidar com as dores e doenças do homem. Exame físico, eletrocardiograma, e em seguida: “você não tem nada! É psicológico”. Talvez só queiram dizer que não é biológico. Mas que psicológico é este que faz o suor frio brotar dos poros e o coração acelerar até não mais poder? Penso que há a atualização de um coletivo incorporal de fluxos esquizo, os quais tendem a se exprimir no limite do psicológico e do orgânico 70 , escapando aos dois, o que confronta os profissionais com as bordas dos seus saberes 71 . Uma sensação violenta e real, mas sem forma Uma maneira interessante de pensar esta questão em psicanálise nos foi apresentada por Cavalcanti, quando trata o “fort” (o encenar repetido da experiência dolorosa de separação da mãe) como “o estabelecimento de signos de percepção e de um real originário, funcionando além do princípio do prazer” (1998, p. 278). A repetição da “experiência fort” sem o “da” (aí está) “é uma experiência de ligação” (idem). A autora relaciona esta experiência com a emergência da angústia automática, proposta por Freud em Inibição, sintoma e angústia como “a primeira forma que a quantidade em excesso toma, ligando-se às imagens cenestésicas simultâneas ao nascimento. Estabelecem-se ali trilhamentos que dão à quantidade a forma de taquicardia, de dispnéia, de atividade muscular desordenada, de gritos” (idem, 279). Pensando desta forma, poderíamos considerar que no que chamo “momento fetal” estão envolvidas tanto imagens cenestésicas, quanto afetos de vitalidade ou a origem de um pensar. 71 Pelbart delimita o que seria uma “maneira de ser esquizo”, que parece traduzir a idéia que gostaria de imprimir ao que chamamos esquizo, tomando o cuidado de não personificar ou naturalizar este movimento. Escreve que “a maneira de ser do esquizo, semelhante ao do nômade, que está presente e ausente simultaneamente, que está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da família, da cidade, da cultura, da linguagem. Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente entra em confronto direto com aquilo que recusa pois não aceita a dialética 70 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 128 física ou mental, age. Daí o pânico, o caderno cheio de conversas escritas, as palavras que preenchiam as madrugadas insones, são a síntese própria de incompossíveis fluxos em choque e ressonância. Mundos de sonho (de ser mãe, ter família, ser aceita, ...) encontram mundos tecnológicos; afetos cotidianos encontram outros desconhecidos; a temporalidade do hábito se rompe no anúncio de uma morte futura. Os encontros carregam a potência do diferir e, da mesma forma que podem anunciar a alegria de um tempo novo, podem disseminar a terrível presença de uma agonia. Agonia difusa e dolorosa por estar no limite da individuação/indivíduo, da comunicação/informação, dos sons caóticos para a emergência de um ritmar. Agonia que toma forma – sem esgotar-se – no infinitivo de um “panicar”, um adoecer, um morrer. Agonias que estão antes da atualização dos proto-pensamentos por um pensar, impensáveis. Estas agonias – da forma como as apreendo – foram formuladas por Winnicott (1994, pp. 71-3) 72 , como angústias reais, primitivas, que remetem a um viver que não pôde ser experimentado ou perlaborado. Como conceber um viver que não foi possível de ser experimentado? Já temos instrumentos teóricos para tentar uma compreensão do que seriam agonias impensáveis. Uma abordagem possível seria a de fazer um uso metafórico da palavra impensável, tomando-a por muito forte. No entanto, considero mais profícuo incluir o impensável como parte do território limítrofe entre da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo” (Pelbart, 2002, p. 252). 72 Winnicott, ao tratar deste tema, concebe o que chama inicialmente de ansiedades impensáveis passando, em um segundo momento, a nomeá-las agonias primitivas, por considerar esta última expressão mais forte e adequada às suas observações. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 129 o que é matéria de pensar, e o que ainda não o é. Para mim, o que não é matéria para o pensar está longe de ser abstrato ou imaginário, sendo, ao contrário, real. Aqui, é possível sugerir que existe uma agonia relacionada a uma memória que não pode ser recordada por não ter sido esquecida. Não tem como objeto “exatamente o inconsciente recalcado” (idem, p. 73). Impensável, por existir enquanto tensão no limite de passagem dos proto-pensamentos que exigem um pensador, mas não lhe permitem apropriação. O bebê morto, doente ou condenado, é virtual e atual ao mesmo tempo. Há uma exigência de pensar imagens e narrativas, as quais, além de chegarem prontas, trazem uma mensagem de fim irremediável. Até aquele momento não se prestaram à experiência do in-formar, do comunicar, em temporalidade singular. Morte que chega afastada dos afetos de vitalidade que lhe poderiam dar sentido. Os proto-pensamentos insistem, mas o pensador necessário está paralisado em um grito sem som. É desta forma que me aproximo da intuição de Winnicott. Para ele, estas agonias têm um caráter “mais psicótico” de relação com a provisão ambiental. E considero que esta “provisão” – que no exemplo deste estudo é a notícia da morte de um acontecer – no contemporâneo, exige mais e mais uma forma de subjetivação que se dá na fronteira do pensar. Temos esta fronteira como o limiar esquizo da existência. Não para patologizar, mas para criar a idéia de que existe uma positividade produtiva que se localiza aquém do confronto de totalidades, agindo no limite das formas, na caducidade do instituído 73 . E é esta esfera esquizo de invenção de estratégias do pensar e do existir, que coloco em foco. Esfera que carrega 73 Winnicott (1994, p. 71) fala de uma “organização ameaçada”. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 130 consigo agonias singulares. E que não podem ser tratadas como conseqüência de castração, por não terem um limite definido a ser respeitado ou transgredido. Também não é um limite denegado. É simplesmente impensável, por ter rompido o suporte inscritível. Por constituir uma memória intensiva, não reprimida nem recusada. Esta concepção abre uma forma de compreensão acerca do desconforto da clínica contemporânea ao se confrontar com produções que escapam às tentativas de classificação, como apresentado extensamente por Ehrenberg (2000). Constitui-se uma sociedade sobre um terreno movediço e rico, onde o ter ou não ter uma doença dá lugar a modulações expressivas infinitas. Ocorrendo que a profusão de nomes, ao contrário de delimitar mais precisamente o que se pretende patológico, oculta o adoecer. Quando propus que as crises de pânico eram a saúde de Moça, quis dizer que esta era a forma dela viver a agonia impensável. Forma de afetar e de ser afetada, de interferir ou modular sua ilusão/realidade ante a penetrações, discursos, diagnósticos e destinos pétreos, encarnados em imagens irremovíveis. Forma intempestiva de fazer os mundos recémapresentados dançarem e assim decompor a formalidade rija de seus gestos estranhos. A agonia é pensada aqui como o passaporte possível para o experimentar. Sendo o contato intuitivo com o que está pré-pensado. Não é o caso de considerar estas agonias como sintomas de uma patologia a ser abolida. Também não se situam em um terreno de conflito de instâncias, como formação de compromisso. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 131 Não se trata de fazer uma apologia da agonia. Apenas é preciso dizer que não é possível eliminá-la. E, em certa medida, ela é o guia que permite pensar uma clínica que visa a capacidade de afetação 74 . Como agonias impensáveis poderiam ter alguma valia para a clínica? Na medida em que são testemunhas de um sofrer difuso e intenso, resultado do encontro de mundos atuais e virtuais diversos, os quais tendem a uma expressão possível. Neste caminho podemos acompanhar a proposta de Illich (1975, p. 141) ao sugerir o termo esquizoalgia para o horror que surge da expropriação do sofrimento, “pesadelo acordado diante de um real tão penoso quanto fora de alcance” 75 . Dor que é resultado da sobrevivência em um meio que “escapa à escala humana” (idem). Não apenas em um meio devastado por catástrofes (já que o autor cita os campos de concentração nazistas e a devastação causada pela bomba atômica), mas também em um meio cotidiano como o consultório médico. Meio que é palco de confrontos de mundos heterogêneos e em grande parte impessoais, incorporais e inumanos. Illich também aponta a importância de como lidar com o sofrer, e o faz em dois aspectos. O primeiro se refere ao poder que o sofrimento tem de produzir sentido, pois todo sofrer possui uma interrogação que lhe é inerente (idem, p. 135). Isto faz com que possa haver uma apropriação Numa perspectiva espinosana, os encontros que aumentam a alegria, o conatus, ou a capacidade de perseverar no seu ser, são aqueles que aumentam o poder de afetar e ser afetado. Ao contrário, os tristes são aqueles que diminuem este poder. 75 Ivan Illich, filósofo, envolvido no clima revolucionário de 1968, escreve o livro “A expropriação da saúde: nêmesis da medicina” com inúmeras críticas à alienação da dor e à expropriação do sofrimento por parte dos profissionais médicos. Neste sentido que utiliza o termo esquizoalgia. No âmbito deste trabalho aproveitamos a intuição do autor, retirando um aspecto mais ideológico, para aplicá-la ao território mais geral de emergência de um experimentar intensivo ou, ao contrário, da alienação deste. 74 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 132 íntima da realidade, e permite o resistir à exposição de forças que restringem a potência de agir, afetar e criar sua singularidade de mundo. Em segundo lugar, a ferida que não é possível assumir no sofrimento, instala-se como “estado patológico crônico” (idem, p. 141). Ferida que não toma forma e se repete na sensação insistente da esquizoalgia. Illich não desconhece nem nega os avanços e a utilidade das técnicas de controle da dor, mas faz uma ressalva que me parece crucial, diz que “o progresso da técnica fisiológica e biomédica só favorece a saúde na medida em que alarga a responsabilidade dos que sofrem” (idem, p. 142). Qual é o limite de analgesia e de apresentação de mundos que favorece a potência criativa, a alegria, e qual o que a restringe? Destas questões surge uma diferença ética fundamental, fugir à dor é diferente de lhe fazer frente. Penso que a agonia impensável surgiu como resposta à questão à qual Moça foi confrontada. O limite da impossibilidade de experimentar aquela complexidade, e a forma (esquizo) de sua dor. Mas ao mesmo tempo aquilo que a liga com o mundo potencial, a manifestação da força do viver que alberga em si. A questão que repõe à cultura que a forjou na fronteira do pensável. Uma pergunta se impõe. Como agir uma clínica que engendre o experimentar? Qual ação ético-política tocaria as bordas do pensar? Qual atitude transformaria a agonia, sem aliená-la? Aponto acima alguns caminhos para esta “clínica do impensável”. Cito – e grifo – uma fala de Bion para retomar a perspectiva clínica, e passar para o esboço de uma práxis: O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 133 “Acho que o aspecto central é que você precisa ousar ser disponível a algo que queira expressar; ousar permitir que um pensamento sem um pensador se aloje em algum lugar, dentro dos limites de sua capacidade” (Bion, 1992, p. 146). O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 Imagem 10 – Bebê prematuro. 134 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 135 Capítulo 6 Uma ação ético/clínica Entre os gritos da dor física e os cantos do sofrimento metafísico, como traçar seu estreito caminho estóico, que consiste em ser digno do que acontece, em extrair alguma coisa alegre e apaixonante no que acontece, um clarão, um encontro, um acontecimento, uma velocidade, um devir? Gilles Deleuze 6.1. Agenciamento teórico Fomentar golpes a serem dados nas obras, arrombá-las para fugir com elas em direção àquilo que não vimos, que não ouvimos. Jean-François Lyotard No momento em que a tarefa a que me propus vai se encaminhando para o final, faz-se necessário indicar algumas linhas para uma ação clínica. O fato de tecer, ao longo do trabalho, a trama de um corpo em constante processo de individuação; um corpo singular e sempre remetido a um plano de imanência; um corpo que se erige no próprio evolver de seu inacabamento; já destaca uma posição ética particular. Ética de considerar O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 136 o próprio “corpo” das ações clínicas como eternamente aberto, em questão, invenção e devir. Desta perspectiva, o posicionamento clínico se alinha ao ético, desde que o interrogar (como? por quê? em que momento?...) é a ação que pode permitir o experimentar intensivo nos encontros. Ação esta que se restringe ante o embrutecimento de repetições compulsivas de modelos, narrativas e significações. A atenção para o experimentar inédito das sensações promove um campo inventivo e mutagênico que é por si próprio também uma opção política. Isto, pois, implica uma alternativa ao relacionamento dialético e à concepção de poder como coerção de uma força sobre outra, para uma outra que toma aquele como a contínua invenção de novas complexidades singulares. Cada invenção é uma dobra subjetiva diversa, e, enquanto tal, uma nova forma de perceber e agir, de experimentar o tempo e o espaço. Mas não basta fazer recuar o plano subjetivo/objetivo (individuado) para o plano de processos de subjetivação, estratégia que permeia todo o trabalho. Importa igualmente direcionar a ação ético-clínica para a alegria. Alegria esta que é potência em expansão (Espinosa, IV, prop. XLI, demonstração), ou seja, aumento do poder de agir, afetar e ser afetado, “imaginar e encontrar o que é causa de alegria, o que mantém e favorece essa causa; mas também o esforço para exorcizar a tristeza, imaginar e encontrar o que destrói a causa de tristeza” (Deleuze, 2002, p. 107). Assumindo como tristeza a potência imobilizada, só podendo reagir e investir a marca dolorosa (idem, p. 106). O grito de João que enche os corredores e faz ressoar agonias impensáveis em todos à volta, comunica o evolver intensivo que o convoca e concebe. O delírio de Moça é expressão da tristeza, por ser produção de O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 137 afeto insistentemente investido, fechado sobre si, empobrecido do poder de imaginação. Frente à dor é preciso – sempre – interrogar. Mas vale precisar melhor o que isto quer dizer. No território das corporeidades orgânicas e funcionais, instituídas ou extensas, é necessária uma abordagem que reduza ou alivie a dor. Isto para que no território intensivo, virtual, préindividual, possa haver a liberação do alegrar-se. Esta diferenciação é fundamental, mas seus limites têm sofrido abalos como, por exemplo, com o desenvolvimento de medicamentos que alteram o humor. Até que ponto uma medicação está a serviço do controle do sofrimento físico (permitindo a abertura para o experimentar intensivo) ou da alienação do poder de agir e produzir estratégias singulares do pensar no choque com as sensações incorporais? A importância desta perspectiva do pensamento é imensa, quando observamos o desenvolvimento desenfreado e irrefletido das tecnologias na área da saúde. Perscrutar e criar interpretações e imagens sobre o corpo físico tem possibilitado o alívio de muitas dores. Mas, dependendo de como estas informações são utilizadas, pode haver, ao contrário, um seqüestro da potência expressiva do que chamei em momentos anteriores de memória intensiva. E, com isso, o surgimento de agonias sem forma ou conteúdo, mas intensas e cruéis. Nas sociedades urbanas de cultura ocidental em que vivemos, a intensidade crescente da produção de objetos individuados (nomes, imagens, teorias, aparelhos) submete os corpos a um processo insidioso e molecular de desterritorialização, fragmentação e captura por uma estratégia de equivalência. Em nossa experiência, esta pletora quantitativa se acompanha muitas vezes de uma asfixia da produtividade intensiva. Há O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 138 um aviltamento do poder de apropriação da realidade pelo imaginar. Um abarrotamento de interpretações e clichês que atropelam a temporalização própria de um acontecer, fruto da participação em um movimento de informação, ou seja, um movimento de ocupação por pensamentos já prontos, que ignoram a multiplicidade aberta de planos de sentido, os quais determinam a imprevisibilidade do ser e a sua liberdade de criar ritmo com o mundo. Não entendo os objetos como possuidores de valor positivo ou negativo em si. São resultado do movimento constante de forças imateriais. A forma de utilização e apropriação destes mesmos objetos é que importa. E importa porque há uma luta feroz – apesar de muitas vezes ignorada – entre o manipular formas totalizadas de agir/perceber (impor, consumir, vender) e a possibilidade de resistir a elas, criando espaços de subjetivação. Lazzarato (2004, p.230) chamou de “guerra estética” o choque entre mundos e subjetividades surgidas da atualização do sensível, o que dá uma dimensão forte para a ação do capitalismo no plano imaterial. Neste regime – capitalista contemporâneo – criam-se não mais os objetos apenas, mas o próprio mundo onde eles existem. Onde consumir um objeto é pertencer a um mundo com sua maneira de viver, de comer, de ter um corpo, de se vestir, etc. As transformações incorporais – neste sistema – criando por sedução uma nova sensibilidade, que é mais um mandamento autoritário, do que uma apropriação singular. Esta última é sempre inédita, já a sedução multiplica o mundo com uma série de “possíveis” já disponíveis para consumo, tentando “envelopar” a virtualidade (Lazzarato, 2004, pp.229-33). Este sistema de produção e consumo de mundos atravessa todo o campo social havendo, obviamente, mundos médicos e psicanalíticos a serem consumidos. Ressalte-se que além de poder ocorrer a restrição da experiência intensiva, uma enormidade de pessoas não tem O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 139 como consumir ou se endividar na tentativa de “habitar” os mundos que lhe são ofertados, mas a que elas não têm acesso e sentem como imprescindíveis. Destas “nuvens de afeto”, intuídas a partir das cartografias clínicas, parece-me imprescindível delimitar um terreno de ação clínica que leve em conta a virtualidade do ser. Sua inatualidade e potência. Que interfira no como ocorrerá a efetuação do sensível, e que conseqüentemente acolha as agonias impensáveis. Foi justamente da necessidade de acolher e fazer frente a estas agonias que surgiu este esforço acadêmico. Este acolhimento tomou a forma de um “criar casa” em meio a um ressoar mutante e mutagênico com a multiplicidade intensiva. Com os instrumentos de que agora dispomos, é possível explorar o que quis dizer com isto, finalizando com um rápido exemplo. Entrar em contato com este corpo, que se constitui no experimentar de qualidades imateriais, tem como conseqüência várias perspectivas da ação clínica. Destacarei as que considero principais: ♦ A ação tende a aumentar o poder de afetar e de ser afetado. Considerando que a vitalidade do ser está em sua condição de perseverar no seu ser (o conatus de Espinosa 76 ), mas não por um isolamento. Este último aniquila o ser enquanto parte de um coletivo impessoal e imaterial que constitui uma problemática maior que o indivíduo. Portanto, há necessidade de um afetar-se pelo mundo ambiente “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é útil ao homem” (Espinosa, Ética, IV, prop. 38). 76 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 140 que o inclui. O que ocorre, pari passu, com o afetar, produzir marcas e ciclos de função. Os afetos de vitalidade, enquanto produções que vão sendo apresentadas por um entre (não dialético mas desmedido), são a via régia de in-formação dos seres em encontro. Abrem um campo de experiência potencial onde agir e perceber, afetar e ser afetado, são parte do mesmo movimento. Bion sugere que haja uma capacitação para “nos tornar um pouquinho mais sensíveis àquilo que vemos no momento que entramos em contato com os pacientes. Requer um treinamento que capacita o médico, o cirurgião, o psiquiatra, a se desnudarem a si próprios de suas préconcepções, e ficarem vulneráveis aos fatos” (1992, p. 45, grifo meu). Esta vulnerabilidade não se dá de forma abstrata ou transcendental, mas através de “variações ardilosas, como as operações de um sub/sentir, de um entre/sentir, de um intra/sentir, extra/sentir, trans/sentir etc.” (Orlandi, 2003, p. 93). ♦ A ação é caminho para expressão da singularidade dos planos de sentido. Como vimos, os encontros comportam uma ecologia virtual, real mas inatual, que “vibra” no limite das formas. A ação que nos interessa é a que permite o acolher deste intensivo incorporal, tanto no movimento de atualização como de virtualização. Pois, para nós, este expressar é o próprio processo de viver do vivo. Por oposição, a ação pode tender a perpetuar as formas idênticas a si. ♦ A ação, desta forma, implica permitir ser vivido pelos pensamentos sem pensador ou proto-pensamentos. Ou seja, abrir espaços para o O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 141 emergir do ressoar que desliza no entre. Devido a esta perspectiva que, em minha opinião, Bion propôs como ação clínica o abdicar de desejo, memória e necessidade de compreensão. Possibilidade de “limpar” os clichês de si, para inventar um pensar não compulsivo. ♦ A ação respeita uma ética de espraiamento lateral. Sempre remodela os campos potenciais, pois age no coletivo. É o que Simondon concebeu como “ato moral”: “aquele que pode se espalhar, se defasar em atos laterais, se ligar a outros atos espalhando-se a partir de seu centro ativo único [imanente].” E a seguir, complementa que “o valor de um ato é a sua largura, sua capacidade de espraiamento transdutivo” (Simondon, 1995, p. 246). Ao contrário, o “ato louco” ou “imoral” é aquele fechado em si, tendendo a “reinar sobre todo o devir no lugar de se articular aos outros atos” (idem, p. 247). Louco porque o esforço de iteração não comporta a relativa inadequação a si mesmo, “tendendo a devir perfeito no interior de seus próprios limites, não podendo senão recomeçar e não continuar” (idem). 77 É desta maneira que entendo e valorizo a idéia de continuidade do ser (going-on-being) 78 de Winnicott, como a conquista de uma continuidade no tempo por ressonância interna. Isto implica “uma política que não consiste simplesmente em reconhecer o outro, respeitá-lo, preocupar-se com as conseqüências que É importante ressaltar que o ato louco “destrói as significações dos atos que existiram ou que podem ser chamados a existir” (Simondon, 1995, p. 246) se inserindo no devir sem fazer parte do devir que compreende o evolver do coletivo. Assim se destaca da temporalidade do acontecer, se entretendo na “vertigem de sua existência iterativa” (idem, p. 247). 78 “O ‘continuar sendo’ (going-on-being) ou a continuidade do ser é o desenvolvimento normal, e o seu oposto é o trauma. Para Winnicott, o senso de continuidade no tempo era uma conquista. E a experiência cultural proporciona a continuidade da espécie humana, que transcende a existência individual” (Newman, 2003, p. 105). 77 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 142 nossa conduta possa ter sobre ele; mais além, trata-se de assumir as conseqüências de sermos permanentemente atravessados pelo outro, uma política indissociável de uma ética de respeito pela vida” (Rolnik, 1996, p. 256). ♦ A ação implica uma amortização. Isto pois, deve envolver uma transformação, ou transdução, nas palavras de Simondon. Aceitar um morrer das formas é diferente de degradação. Ao contrário desta última, a ação que implica o morrer, fertiliza o coletivo. Explorando esta idéia na clínica psicanalítica, Winnicott diz justamente que “não há morte, a não ser de uma totalidade. Posto ao reverso, a inteireza da integração pessoal traz consigo a possibilidade, e mesmo a certeza, da morte – e com a aceitação da morte pode ocorrer um grande alívio, alívio em relação ao medo da alternativa, por exemplo, a desintegração (...)” (apud Newman, 2003, p. 106). A desintegração se relaciona ao que Winnicott concebeu como agonias primitivas. Uma morte em vida, uma fratura na continuidade do ser produzida por atos loucos. O que dá condição aos “seres-agoniados” de hoje, habitados por um medo intenso (sem sentido, ou desligado dos planos do coletivo) da processualidade do morrer e do envelher, que parece acenar com a desintegração. Não tanto pela morte em si, mas porque o próprio passar da vida lança-lhes uma questão impossível de responder. Não podem experimentar o morrer pois, em alguma medida, são colhidos pelo investimento incessante de figuras que alienam o experimentar do viver intensivo. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 143 ♦ A ação busca uma medida que não aniquile o ser. Para que o ser em devir cumpra todo o seu potencial, faz-se necessário – obviamente – que ele sobreviva em sua comunicação lateral. No limite, a morte de sua individualidade pode ser o cumprimento de sua potencialidade, dando lugar ao nascimento de novos seres, herdeiros, em parte, de sua ação moral (aqui está toda a questão da sexualidade como forma de elo com a história da espécie). Excetuando-se este momento singular da conformidade da ecologia virtual, é preciso evitar a dissolução total do ser, bem como a sua fixação em iteração esterilizante, compulsiva ou aditiva. ♦ A ação não visa a anulação do sofrer enquanto pulsar vital de acontecimentos incorporais. Estabelecer rizoma, ou experimentar as agonias no limite do pensar, é o que pode permitir o caminhar do ser com seu mundo, e conseqüentemente o enriquecimento de ambos. A ação não pode pretender esgotar o sofrer pois, assim, ocorreria igualmente a abolição do viver. Se este esgotamento fosse possível, deveríamos imaginar que haveria um momento no qual o virtual ou os proto-pensamentos acabariam. A ação ético/clínica age visando uma re-orientação de fluxos que sustentam o viver. Faço minhas as palavras de Stiegler (2001, p. 124): “todo sofrer deve chamar um agir, mas um agir que não impeça o sofrer; as patologias do vivente reclamam uma medicina, mas uma medicina que respeite as patologias como forma de vida.” Acolher a dor e agir para transformá-la, sustentando um eterno interrogar que diz: esta dor não pode continuar! Como fazer para aliviá-la? Encarar a agonia como expressão plena e insuportável do viver, para trazer à luz um novo ser. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 144 ♦ A ação inclui obrigatoriamente a intuição, por envolver uma memória do que não foi inscrito. Porque ela age no próprio plano de inscrição de memória, no próprio campo potencial que abrange a ilusão como única forma de apropriação objetiva do mundo. Para “deixar passar” a realidade pré-individual, para pensar os proto-pensamentos sem reclamar-se enquanto pensador, é preciso lançar-se do cais. Lançar-se das identidades reasseguradoras, para constituir um experimentar de uma alteridade radical. O que obriga uma certa inconsciência, uma aposta, uma abertura de espaço de indeterminação, um banhar-se num “vazio/pleno” 79 . ♦ A ação respeita uma estratégia cartográfica. Na qual o clínico mantém sua diferença, mas participa da constituição das “cartas moventes”. Expressão de Lygia Clark, retomada por Rolnik (2002, p. 274): “a obra opera uma espécie de iniciação do espectador àquilo que Lygia chama de experiência do ‘vazio/pleno’: vazio de sentido do mapa vigente, provocado por um cheio transbordante de sensações novas que pedem passagem.” 79 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 145 Imagem 11 – Vaso de Phintias (VI a. c.), representando aula de música, a qual era um elemento da terapia médica pitagórica. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 146 Quarta cartografia clínica Uma ação Criar espaços de resistência é buscar uma forma de experimentar as agonias e interferir na constelação de fluxos em jogo. Minha forma de resistência naquele ambiente hospitalar e tecnológico – em grande parte involuntária ou intuitiva – foi de marcar retornos quinzenais após a detecção de alguma anormalidade fetal. Ou seja, aumentar o número de encontros para “ver o bebê”. Mas o bebê não era somente aquele iluminado pelo ultra-som. Não havia grandes expectativas quanto a mudança nos achados do exame. Mas, desta maneira, era possível abrir espaços de encontro, não previamente ocupados por mapas já determinados. Assim, forjou-se um tempo no qual era possível encontrar expressões para as agonias impensáveis, e fazê-las circular. Experimentar que se traduzia em perguntas como: “o bebê sente alguma coisa?” “está sofrendo?” “foi alguma coisa de errado que fizemos?” Tentava-se abrir “espaços de subjetivação”, para além dos saberes que meu conhecimento produzia. Nos bastidores do encontro na sala de exames ocorre inevitavelmente uma intensa e sofrida produtividade subjetiva do casal, o O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 147 que pode uni-los ou separá-los; criar idéias de culpa; inseri-los em uma trajetória delirante ou de desesperada catatonia. Poder criar um ritmo próprio de encontros, que dê conta – na medida do possível – das agonias, desfazer os roteiros culpabilizantes, “trata” e ensina tanto o médico quanto a paciente, pois age na coletividade de planos que os aproxima e separa, e promove um experimentar do processo de abertura para afetação. Ou seja, sair do registro de formação e troca de conteúdos. Tornar mais lento o tempo quotidiano, rendendo reverência ao que se desconhece, tendo na bolsa o que se conhece. Permitir que um “ir acontecendo” ocorra, para além das previsões, que jogam o passado no futuro. Ir chegando, conquistando a mesma estatura isenta de préconceitos. Ou, caso não seja possível desnudar-nos dos pré-conceitos, deixá-los passar. O próprio passar é o que resiste aos espaços de interioridade dos conceitos e identidades. Lança os conceitos em caleidoscópico 80 movimento. Atmosferas sensíveis vão participar da emergência e do destino da complexidade de afetos, o que dá condição de agir através de atitudes que, interferindo neste campo, podem ter efeito clínico. Criando condições de expressão dos afetos, e diminuição do sofrimento. Procuro, com esta palavra, dar o colorido da processualidade inventiva do Isso groddeckiano. “O Isso nos obriga a associar em figuras geométricas que se confundem – em relação às cores – mais ou menos como nesse delicado instrumento de ótica, o caleidoscópio, em que fragmentos de vidro colorido formam o tempo todo novas figuras quando lhe é imprimido um movimento rotativo” (Groddeck, 1991, p. 226). O inconsciente como caleidoscópio cria uma tensão com o modelo telescópico de Freud, em A interpretação dos sonhos. Estas tensões são exploradas por Ávila, que escreve: “A escolha de Freud recaiu sobre o Telescópio que enxerga longe e procura, em imensas distâncias, pelo Homem. O modo pelo qual Groddeck vê a realidade humana é representado pelo Caleidoscópio, o mutante e multicolorido instrumento que re-cria continuamente o que se vê” (Ávila, 1999, p. 157). 80 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 148 Creio que a u-topia onde se deram os encontros foi palco do que concebi como ação ético-político-clínica, pois uma aliança forte e involuntária ia se estabelecendo, a partir dos encontros. A certeza disso ocorreu quando Moça me procurou para falar de suas crises de pânico, apesar de não saber que eu já estudava psicanálise. Desta forma, pude perceber – para além da intensidade dos encontros que tivemos – que a ação intuitiva havia produzido marcas não só em mim, mas nela também, e sinalizado um caminho de constituição de mundo próprio a partir das agonias impensáveis. Mundo que já havia sido “plantado”, no espraiar lateral que foi viver a “realidade impossível”. A construção de um mundo próprio “nosso” e mutante, em uma problemática maior que nós, continuou através de encontros agora no ambiente psicanalítico 81 . Desta etapa pincei apenas um retrato, que foi exposto acima (em Violetas e sons). Sendo possível inferir a ação clínica neste “setting”. Gostaria de inserir aqui um “corpo estranho”, que foi um reencontro, anos após o término da análise. Falo do corpo desta mulher, que morreu de câncer. Mulher pobre, enfrentou uma via crucis após descobrir um nódulo pulmonar. Demorou-se para ser diagnosticado o tipo de neoplasia, e após o diagnóstico, o tratamento não pôde ser iniciado prontamente. Falta de liberação da medicação pelo sistema público de saúde. Fui vê-la, no hospital, após uma ligação telefônica. Os encontros psicanalíticos haviam cessado há três anos. Mesmo assim, de tempos em tempos, ela vinha me ver. Ao chegar, encontrei-a “internada” em uma cadeira, na sala de inalação do prontosocorro. Era o terceiro dia de “internação”. Recebia alimentos e medicação ali, sentada. Não os remédios indicados para o tratamento do câncer. Que esperavam liberação. Nesta situação de espera, duas metástases apareceram. Conhecia alguns médicos, e fui inquiri-los sobre a situação. A resposta: “estamos muito angustiados, mas não temos como pagar, nós mesmos, o tratamento de tantas pessoas que chegam, a cada dia”. O tratamento iniciou com auxílio da igreja que freqüentava. A continuidade se deu pelo serviço público. Mesmo assim, devido ou não ao atraso, ela faleceu em pouco tempo. Corpo estranho ao sistema de tratamento, mas nem um pouco estranho à multidão de excluídos que se acumulam, nesta sociedade de endividados. A morte acena concretamente, para aqueles que não obtêm sucesso em consumir: bens, identidades, saúde. Creio que incluir este corpo, no corpo da tese, é também, de certa forma, estar “à altura do acontecimento”. 81 O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 149 O afastamento da singularidade de cada instante – por adesão a um receituário qualquer de vida – tolhe, abafa, a possibilidade de encontro. Estes campos de resistência se relacionam a um incluir da noite dos afetos no dia das formas, e deve ser buscado a cada momento, em cada encontro. É importante frisar, no entanto, que não é preciso ser psicanalista para abrir campos de resistência. O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 150 Referências Bibliográficas Aragon, L. E. P. (1996). O valor da ecocardiografia no diagnóstico de cardiopatias fetais. Dissertação de mestrado apresentada à Unifesp – Escola Paulista de Medicina. _______. (2003). A espessura do encontro. Interface – Comunic, Saúde, Educ, v. 7, n. 12. [Disponível no site: http://www. interface.org.br/revista12/ensaio1.pdf] Aliez, E. (1996). Da impossibilidade da fenomenologia: sobre a filosofia francesa contemporânea. Trad. Raquel de Almeida Prado e Bento Prado Jr. São Paulo: Ed. 34. Ávila, L. A. (1999). O telescópio e o caleidoscópio: o inconsciente em Freud e Groddeck. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, pp.157-68. Bataille, G. (2004). 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