Repensar a Caridade A linguagem e as práticas ao encontro dos desafios do mundo actual …………………………………………………………………………………………………………… 1 A caridade é o coração da vida cristã. “Se alguém disser: Eu amo a deus e odiar o seu irmão, é um mentiroso” (IJo. 4,21)Jesus foi firme ao dizer: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Nisto conhecerão que sois meus discípulos…(Jo. 12,34) O preceito da caridade recebido do Mestre espelhava-se numa experiência de unidade e comunhão. Todos os que aderiam á fé tinham um só coração e uma só alma (Act. 4,32) 2 A caridade – património da humanidade: Falar de caridade dois mil anos depois de Cristo obriga a reconhecer que o cristianismo deixou marcas indeléveis através dos séculos, não só nas obras de pedra e nas instituições, mas também – e sobretudo – na mentalidade e na cultura dos povos aonde chegou o evangelho. Existe hoje, no plano do direito e da ética, uma cultura da solicitude, do reconhecimento da dignidade humana, da atenção ao outro, em particular ao pobre, que mergulham as suas raízes no cristianismo. A palavra caridade surge no vocabulário contemporâneo corrente muito desqualificada, por duas razões principais. Em primeiro lugar, por um equívoco histórico, que opõe caridade á justiça, como se se tratasse de conceitos antagónicos, conduzindo a práticas e empenhamentos divergentes. Os cristãos, tendo-se muitas vezes colocado à margem das lutas contra as injustiças, se não mesmo em oposição aos movimentos em favor da justiça social, deram azo a este antagonismo aparente. Por outro lado, na medida em que certas formas de organização da caridade revestiram, no passado, carácter provavelmente paliativo, contribuíram para manter o status quo que está na origem da situação de carência e necessidade e, fornecem também argumentos àquelas vozes que desqualificam a palavra caridade. É de lamentar que assim aconteça, porque as palavras sucedâneas não se apresentam muito promissoras. Amor, que seria o vocábulo mais próximo, foi aprisionado pela linguagem corrente para designar a relação amorosa no campo semântico da sexualidade. Por seu turno, o termo solidariedade é um correlativo vulgarizado, mas pobre, na medida em que deixa de lado a dimensão afectiva e de relação ontológica que a palavra caridade comporta. Servirá no entanto como ponte para abordar as gerações mais novas, nomeadamente se for combinado com outras palavras como “solicitude” ou “cuidado”, conceitos gerados no campo semântico da ecologia e que conhecem alguma adesão na mentalidade contemporânea. Não obstante estes escolhos de linguagem, os cristãos não deveriam demitir-se de um esforço para não deixar perder o valor da caridade como património da Humanidade. 3 Num mundo de desamor, que lugar para a caridade evangélica? Ao contrário daquilo que se pode supor. diante de tão notórios progressos económicos e tecnológicos que a humanidade, no seu todo, conheceu no último século, o mundo contemporâneo sofre de doença estrutural grave cujos sintomas mais conspícuos são: - os conflitos armados com o vasto cortejo de vítimas (nos últimos 60 anos: milhões de mortos, milhões de refugiados, milhares de Kms de campos minados ou desflorestados, muitas economias locais destroçadas e sem horizontes de recuperação); - o subdesenvolvimento crónico de muitos países e regiões do mundo, com destaque para os países da África subsahariana, muitos países no continente asiático ou vastas regiões da América latina; - a exclusão social massiva dos países economicamente desenvolvidos, com características de grande pobreza, necessidades básicas não satisfeitas, marginalização, ausência do sentido de vida e projectos de futuro e outros fenómenos de anomia social; - o risco, cada dia mais ameaçador, de sérias rupturas em equilíbrios ecológicos fundamentais à sobrevivência do planeta terra; - o enfraquecimento ou perda de laços afectivos inerentes à desestruturação das famílias e ao modo como a vida está organizada. As sociedades caminham por sendas donde se ausentou a lógica do amor e suas exigências de justiça social e de solidariedade com os mais fracos. O capitalismo liberal, por ora triunfante, impõe a sua ditadura no mundo das relações económicas, na organização e repartição do trabalho humano, na ocupação do espaço geográfico, na direcção da inovação científica e tecnológica e, inclusive, no estilo de vida privada. A lógica do capitalismo liberal tem vindo a reduzir as brechas da economia e da sociedade por onde poderiam nascer modelos alternativos de economia e de convivialidade humana. Ainda assim, aqui e além, irrompem novas práticas e novas experiências no domínio empresarial, na organização da vida colectiva, nos padrões e estilos de vida, que são portadores de futuro. É importante não se deixar ofuscar pelas luzes da riqueza material, do avanço da ciência e da tecnologia ou da comunicação sem fronteiras da sociedade da informação, dos paraísos prometidos graças á competitividade e á eficácia. Também em Portugal, a par de uma notória prosperidade económica em termos médios, tem crescido o fosso entre ricos e pobres e continua a existir um número considerável de concidadãos e concidadãs a quem não chegam os recursos materiais e não só, indispensáveis para uma vida humanamente digna. 4 Acolher os sinais do tempo presentes na cultura e nas práticas de solidariedade contemporâneas. O retrato negro da desigualdade e da pobreza geradas e alimentadas pelo capitalismo liberal e a cultura dominante que ele segrega, não deve impedir que o nosso olhar percepcione os sinais do tempo. O reino de deus está no meio de nós, sempre que a Humanidade, independentemente dos fundamentos da religião ou da fé, caminha no sentido da justiça e da fraternidade. No século que findou, são de destacar como sinais dos tempos novos: . o consenso alcançado em torno da afirmação e da consagração de direitos humanos universais, indiscutíveis e inalienáveis, vinculativos a nível das instâncias políticas nacionais e internacionais; . o reconhecimento do papel dos estados modernos em garantir às suas cidadãs e aos seus cidadãos, através de estruturas adequadas, a satisfação de um conjunto de necessidades básicas incluindo a protecção social; . o florescimento de inúmeras organizações não governamentais de fim não lucrativo, vocacionadas para responder aos múltiplos problemas com que se defrontam as sociedades; . uma tomada de consciência crescente por parte da sociedade civil de muitos países acerca da necessidade de promover uma cultura de solicitude e de maior solidariedade, quer em relação às suas populações residentes, incluindo refugiados e imigrantes, quer relativamente ao resto do Mundo. Para isso muito têm contribuído os chamados Observatórios, em regra formados por investigadores independentes dos governos, cuja função é a de darem a conhecer algumas situações problemáticas e fazerem a avaliação dos impactos das medidas políticas para as resolver ou minimizar. 5 Repensar o ministério e a pastoral da caridade, hoje – Face às considerações feitas, é forçoso concluir que as comunidades cristãs têm de repensar o seu modelo de organização da caridade, num duplo aspecto: aprendendo com a sua própria experiência já acumulada e praticando a indispensável abertura às novas realidades e seus desafios. Na era da globalização, a caridade ganha, forçosamente, dimensão universal. A solidariedade com as grandes causas da Humanidade em busca de justiça e de paz é um traço inequívoco da caridade cristã, que não conhece barreiras de língua, de história, religião, raça ou cultura. As mulheres e os homens cristãos, a título individual ou inseridos em movimentos e organizações eclesiais, deveriam encontrar-se na primeira linha da chamada ajuda humanitária. Mas não basta a generosidade da prestação dos socorros imediatos. Na fase de complexidade e organização alcançadas pelas sociedades modernas, há que intervir, sobretudo, ao nível da prevenção e da superação das causas das injustiças, através do empenhamento em causas comuns. Constata-se que existem, ainda, fortes resistências, por parte de algumas comunidades cristãs, paroquiais ou outras, em perceber o elo estreito entre a sua vivência da fé e o seu respectivo envolvimento no serviço da caridade em organizações não eclesiais. Também há muita coisa a rever na concepção e gestão das organizações da caridade de iniciativa e responsabilidade eclesial. Alguns tópicos de reflexão: : Não deverá existir uma clara preocupação em dirigir os recursos da comunidade eclesial prevalentemente para situações ainda não cobertas pelo Estado ou pela sociedade civil, identificando necessidades novas e procurando os recursos para lhes fazer face? : Não deverão perspectivar-se as instituições já existentes num quadro mais amplo de luta pela justiça? : Não será necessário criar nas instituições caritativas da Igreja melhores condições de promoção da participação responsável dos próprios utentes, de incentivo à criação de comunidades de trabalho que sejam testemunho do espírito evangélico, maior apoio às parcerias e melhor colaboração activa com o Estado e as ONGs actuantes em áreas convergentes? : Não deverá merecer uma atenção particular o esforço de dar visibilidade e voz aos mais carenciados e marginalizados nas nossas sociedades, criando iniciativas e condições favoráveis a que possam exprimir-se em liberdade e responsabilidade e possam assumir-se como sujeitos dos seus próprios percursos de vida? : Não deverá ainda examinar-se em que medida são respeitados os requisitos da qualidade técnica e humana e da eficiência na utilização dos recursos postos à disposição da instituição pelos particulares e pelo próprio estado? No repensar da caridade hoje, há três escolhos que merecem também uma reflexão específica. Em primeiro lugar, refere-se a armadilha do poder que sempre aparece associado às instituições de certo vulto e que resulta do prestígio alcançado pela própria instituição bem como dos elevados recursos humanos e financeiros postos à disposição de quem administra. É muito fácil cair na tentação de abuso de poder e de vir a ser, por essa via, um contra-sinal em termos de testemunho evangélico. São situações infelizmente frequentes em certas obras paroquiais, (diocesanas e nacionais), ou mesmo em instituições pertencentes a congregações religiosas. O segundo desafio prende-se com o incentivo e a viabilização de uma participação responsável por parte das pessoas a quem de pretende levar ajuda, permitindo-lhes que se assumam como sujeitos na medida das suas possibilidades, pois só assim se lhes reconhece a dignidade humana a que têm direito. Nem sempre a prática da caridade para com o próximo faz deste um sujeito com direitos e dotada de capacidade para intervir, procurando antes insinuar e perpetuar a sua condição de dependente. Entre nós, e nos meios católicos em particular, é ainda frequente observar-se um certo receio da participação, preferindo-se ficar por um assistencialismo confortável. Por último, ressalta-se que a caridade é uma exigência da vida cristã, que não isenta ninguém da sua prática. A caridade é um elemento constitutivo da condição de baptizados, não pode por isso ser considerada como uma função especializada delegada em alguns dos membros da comunidade. O sentido e a exigência da caridade não podem andar arredados da catequese, das celebrações, das homilias, das diferentes práticas cristãs pessoais e colectivas. O início do novo milénio, no plano eclesial, diocesano ou nacional, será um bom motivo para uma revisão em profundidade do conjunto das instituições caritativas da igreja e, em geral, da pastoral social. + O que fazem? Onde se encontram? Que necessidades deixam a descoberto? + Como funcionam? Qual a participação dos leigos? Que participação dos utentes? Que estilo de vida e de comunidade de trabalho existe no interior dessas instituições? + Que relação mantêm com o Estado? E com ONGs congéneres? + Que papel desempenham na formação da consciência e da espiritualidade da comunidade cristã? Fonte: Extractos da comunicação de Manuela Silva na XVII SEMANA NACIONAL de PASTORAL SOCIAL