O saber da cidade (do saber).
Nelson Pretto (*)
Equipamentos urbanos são, por sua própria natureza, equipamentos que educam. Seja pela sua
função social – um teatro, uma praça, um abrigo -, seja pela sua própria arquitetura. Esta segunda
dimensão, que muito me encanta analisar, deixo para os arquitetos. Fico só nos exemplos mais
óbvios, aqueles da formação estética do cidadão ao olhar uma praça, um teatro, um parque; aquela
formação que lhe permite, ao observar (atentamente) uma avenida, verificar a sua urbanização, as
pistas de rolamento que possibilitam a passagem de carros e, quiçá, bicicletas e pedestres, esses com
generosos espaços. Tudo isso, do ponto de vista pedagógico, é muito importante para a formação da
cidadania e essa é uma importante relação da educação com a arquitetura. Se fôssemos aqui avançar
neste aspecto da questão, teríamos que convidar urbanistas, planejadores urbanos, arquitetos,
engenheiros, sociólogos, geógrafos, artistas e tantos outros profissionais que, em conjunto com cada
cidadão, poderiam pensar melhor as nossas cidades e os equipamentos urbanos nelas implantados.
Sem dúvida, para os espaços educacionais e culturais, este é um importante debate que não deveria
ser deixado de lado pelos políticos que adoram a construção destes tipos de equipamentos urbanos,
como se bastasse sair por ai simplesmente reproduzindo projetos desenhados Brasil a fora e a
dentro.
Quero aqui me concentrar no primeiro aspecto que destaquei: a função social de um equipamento
urbano de uso público e coletivo. Mais especificamente, vou escolher alguns desses equipamentos
como as escolas e os centros culturais e equivalentes. Passo, portanto, a focar no projeto da Cidade
do Saber (www.cidadedosaber.org.br), instalado em Camaçari/Bahia, que encantou desde o meu
primeiro olhar, tanto pelo seu conjunto espacial como pela sua função social no município. Não
tenho o privilégio de acompanhar o seu uso cotidiano, mas das poucas vezes que por lá estive, me
impressionou a dinâmica que potencialmente se pode estabelecer com a existência deste rico espaço
de múltiplas funções e finalidades.
Tudo isso representa, para mim, uma rica e deliciosa volta no tempo e a lembrança é a do projeto do
educador Anísio Teixeira e dos arquitetos Diógenes Rebouças e Hélio Duarte para o Centro
Educacional Carneiro Ribeiro, conhecido como Escola Parque, construído no bairro Caixa d'Agua,
em Salvador/Bahia. Um projeto que articulou de forma intensa arquitetura e educação e que
compreendia, na longínqua década de 50 do século passado, que essas duas áreas precisavam se
falar, e muito! Os espaços para a educação devem ser pensados de forma a compreender o que são
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os processos formativos, qual o papel dos conteúdos nesses processos e que outros elementos, além
daqueles formais da escola instituída, precisam estar contemplados em um projeto de educação para
um país, estado ou cidade. Avançando no tempo até os dias de hoje ainda temos que considerar de
forma muito intensa a presença das tecnologias digitais na sociedade e, como não poderia deixar de
ser, nos espaços educativos e nas escolas. Tudo isso tem nos levado a pensar mais profundamente
nesses espaços educacionais como sendo espaços arquitetônicos que, por si só, educam.
Mas, considerando esses aspectos, necessário se faz retornar para o campo específico da educação,
pois não podemos simplesmente pensar a arquitetura de hoje tendo na cabeça uma educação de
anteontem. Ou seja, necessário se faz ter bastante clareza sobre qual a concepção de educação que
temos contemporaneamente e de que forma isso tudo vai contribuir para o desenho dos espaços
(físicos e simbólicos) educacionais.
No específico das escolas, importante compreender e ampliar a visão de currículo para muito além
do simples conjunto de conteúdos. Perceber que muitas das concepções de currículo que temos
centram o seu foco numa preocupação excessiva com conhecimentos, matérias, conteúdos, olhando
mais para o desenvolvimento cognitivo do que para a formação humana ampla, que inclui, claro
tem que ficar, a formação em conteúdos específicos de cada um dos campos do saber, mas que não
pode ser dominado por isso. Em outras palavras, não pode vir a se constituir o centro e razão
máxima de ser da escola.
Se assim compreendemos a contemporaneidade, a escola passa, então, a se constituir em um rico
espaço – que gosto de denominar de ecossistema pedagógico – onde professores, alunos,
administração e comunidade, vivam um rico processo de produção de culturas e conhecimentos.
Para tal, repito, necessário se faz conhecer o já instituído e aqui entra o conhecimento da língua
culta, a leitura dos clássicos e contemporâneos, o exercício da escrita, o conhecimento da ciência
moderna e, tudo isso sempre em um diálogo intenso e permanente com os saberes trazidos pela
comunidade. Esse diálogo, rico pela sua própria natureza, vai ser facilitado pela presença das
tecnologias digitais de comunicação e informação, já que elas possibilitam que um grupo de
estudante em Camaçari, na Bahia, possa, potencialmente, dialogar com outros que estejam no
Benin, na Africa, ou em Seatle, nos Estados Unidos. Quando trago essa potencialidade da rede,
gosto de ir além do diálogo entre os que estão distantes – acho que é importante dizer que
potencializa o diálogo entre os que estão perto fisicamente, mas que não se comunicam (por
exemplo, alunos de diferentes escolas da mesma cidade, alunos de turmas diferentes, dentro da
mesma escola, etc...) Cria-se com isso (importante repetir: potencialmente) uma grande rede de
comunicação, informação e aprendizagem, rica na valorização das culturas locais.
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Alguns outros aspectos precisam ser mais detalhados se pensamos, de fato, nesses espaços como
espaços produtores de culturas e de conhecimentos. Um desses, diz respeito à infraestrtura
tecnológica. Necessário se faz pensar a escola e todos os demais equipamentos urbanos como a
Cidade do Saber, com uma conexão internet que possibilite, efetivamente, que cada usuário possa
navegar na rede de forma plena. Insistimos na necessidade de um Plano Nacional de Banda Larga
(PNBL) que contemple conexões em cabos de fibra ótica (conforme nos alertou Demi Getschko do
Comitê Gestor da Internet – CGI.Br - durante debate na Campus Party em janeiro de 2012),
montando uma rede horizontal, viabilizando que as produções de vídeo, áudio, fotografias, textos,
possam ser postadas na rede e lidas por todos com adequada qualidade de imagem e som. Imaginar,
como estamos vendo hoje, conectar escolas com seis, sete ou muito mais turmas, cada um com 30,
40 ou muito mais alunos, com uma conexão de velocidade máxima de até 1 Mbps (ou mesmo os 2
Mbps prometidos e nunca entregues!), dando a cada aluno um notebook – como estamos
vivenciando nas escolas que integram o projeto Um Computador por Aluno (UCA) – e achar que
eles poderão fazer alguma coisa com esses equipamentos é, nada mais, nada menos, do que sonhar
e, o que é muito pior, iludir os alunos e professores e fazer com que os jovens considerem os
computadores e a internet como algo absolutamente sem sentido (pelo menos na escola!). Aliado a
isso, temos acompanhado com muita frequência a proibição de praticamente todos os tipos de sites
(especialmente as redes sociais) e de recursos que possibilitam a comunicação instantânea entre os
jovens, o que, também, se configura numa verdadeira traição à própria lógica da rede: oferece-se
aparentemente todas as condições para a navegação plena, e, na prática, bloqueia-se tudo.
Obviamente não nos limitamos a apenas esses aspectos da questão. Um outro aspecto, que merece
ser considerado nesta análise, diz respeito ao crescente movimento dos “makers” (fazedores),
movimento que articula de forma intensa o mundo digital com o mundo das coisas físicas, do se
produzir e pôr, literalmente, a mão na massa. Em 2011, em Nova York, num único final de semana
mais de 35 mil vistantes estiveram presentes na Maker Faire (Feira de fazedores/construtores
(//makerfaire.com). A ideia presente nesses movimentos é a de se retomar mais intensamente a
perspectiva de produção de coisas, de se criar e não simplesmente incorporar tudo pronto, de forma
descartável. Construir pequenos objetos, juntar peças velhas e produzir novos equipamentos,
inventar, inventar, inventar. Em última instância, por a imaginação para funcionar e com isso
descobrir e produzir novos artefatos de forma criativa. Me parece que a escola – apesar do esforço
individual de muitos professores - pouco tem percebido e acompanhado esse tipo de movimento. As
aulas de ciências (física, química, biologia, entre outras) terminam sendo, prioritariamente,
associadas ao “consumo” (às vezes de forma totalmente acrítica!) da ciência moderna estabelecida,
como se fosse suficiente para a compreensão do mundo, conhecer meia dúzia de leis da natureza.
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Penso sempre na riqueza que é um abridor de garrafa construído nas praias da Bahia a partir de um
tosco pedaço de madeira e um parafuso na ponta. Quanta ciência temos aí! Quanta tecnologia! Vejo
em casa meu jovem menino de 12 anos inventar/construir um amplificador de som a partir do cone
cortado de uma garrafa pet de refrigerante litro que, colocado no minúsculo alto falante do seu
player de música, lhe possibilita ampliar o som e, com isso, prestar mais atenção na letra da música
em inglês, que ele deseja compreender e traduzir. Pequenas invenções, com muita ciência e arte.
São inovações e criações que motivam a meninada e fazem a diferença na formação científica da
turma mais jovem que, no futuro, serão os nossos cientistas.
Voltemos à cidade, e à Cidade do Saber, para destacar a importância do projeto UNICA – Museu
Interativo de Ciência e Tecnologia – que Camaçari resgatou da antiga Organização do Auxílio
Fraterno (OAF) e que, potencialmente, pode se constituir em importante ação pública para a
experimentação dos fenômenos naturais, científicos e tecnológicos e, com isso, ser um estimulador
da criação e das invenções da turma jovem. Mas isso não basta. Esta experiência não pode ser
“única”! Tem que se multiplicar pelas escolas e pelos bairros, implantando-se no município, no
Estado e no país espécies de garagens digitais, como propõe Sérgio Amadeu, que, se articulada
adequadamente com os Pontos de Cultura e as escolas, criariam, de fato, o que denominei
anteriormente de um ecossistema pedagógico em cada região do país.
Estes não são desafios pequenos. Mas precisam ser enfrentados imediatamente se queremos uma
radical mudança nos nossos processos formativos visando a construção de um planeta sustentável e
justo para todos os cidadãos.
*) Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Secretário Regional da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-Ba). Membro da Academia de Ciências da
Bahia. Doutor em Educação. Bolsista do CNPq. Homepage: www.pretto.info. Email:
[email protected]
Texto escrito para publicação da Cidade do Saber, Camaçari/Bahia e licenciado em Creative
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