TERAPIA
NO TOPO E
EM CRISE
Competição, vaidade, ressentimento, insatisfação
constante, anseio por levar uma vida normal e
medo da morte. O psiquiatra Flávio Gikovate
conta o que passa com os homens e mulheres mais
poderosos do país, que frequentam seu consultório
por adriana nazarian
fotos henk nieman
O
consultório do psiquiatra Flávio Gikovate, nos
Jardins, em São Paulo, tem duas escadas diferentes. Uma delas, meio escondida, não passa pela
recepção e dá acesso direto a sua sala. O motivo
é atender o desejo de pacientes que preferem a discrição. Pudera: dos 9 mil que constam em seu currículo – são 46 anos de
carreira –, cerca de mil, ele calcula, são os homens e mulheres
mais bem-sucedidos do país. Para dar conta da demanda, ele
carrega dois celulares e lembra com nostalgia da época em
que tinha um chalé na montanha sem telefone fixo. “Hoje todos acham que você está disponível 24 horas. A qualidade de
vida piorou para quem está em atividade”, diz.
Aos 70 anos, Gikovate soube reciclar os aprendizados de
sua profissão e mantém ativa a rotina de lidar com dilemas e
inquietações da mente contemporânea. Casado há quase 40
anos e dono de hábitos simples, já publicou 32 livros, participou de uma novela global no papel dele mesmo e tem um
programa semanal na rádio CBN, o No Divã do Gikovate. Para
PODER, ele desvenda o quebra- cabeça que rege o pensamento dos grandes empresários, suas angústias e desejos. “Não é
fácil trabalhar com essa gente, mas ao mesmo tempo é encantador porque são pessoas muito inteligentes. Não são apenas
mais vaidosos, mas também guerreiros e cheios de obstinação”, diz. Nesta entrevista, Gikovate revela alguns dos principais conflitos de seus pacientes.
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“Os poderosos raramente
são serenos, se contentam
com o que têm: estão
sempre querendo
progredir, é sem-fim”
crático em algo democrático. Hoje,
há poucos com esse perfil. Antônio
Ermírio de Moraes é um deles. Mas
faz tempo que as pessoas afortunadas
fazem questão de mostrar riqueza, não
querem se destacar pelo que fazem.
Esse comportamento modifica o perfil
das relações sociais e gera insatisfação
porque no consumo todo mundo é
perdedor, a não ser o número 1. Ativa
um tipo de capitalismo diferente, de
bens e pertences descartáveis.
BRINCAR DE POVO
O homem é insaciável e frustrado
até porque a dinâmica hoje é produzir
cada vez mais coisas novas. Todo mundo tem iPhone 4? Vamos fabricar o 5. A
política da Apple, por exemplo, é transformar o produto que ela mesma criou
em obsoleto, fabricando algo supostamente melhor. Há quem faça fila na
NÃO SÃO SANTOS
O MEU É MAIOR
Os poderosos são pessoas muito focadas, objetivas, competentes, intuitivas e ousadas. Cuidam muito bem
de seus próprios interesses, mas não
obrigatoriamente dos alheios. Não
são santos, o que está certo também.
Muitos deles tiveram frustrações na
infância ou adolescência, cresceram
com algum tipo de ressentimento –
ou porque não eram tão bonitos, não
tiveram tanto sucesso com as meninas nem condição financeira. A motivação não acontece só por causas
nobres. Eles se desenvolvem com alguma frustração e com sede de reverter isso. Muitas vezes, quando bemsucedidos, tornam-se rancorosos,
agressivos e adoram provocar inveja
em outras pessoas.
Nesse grupo, a vaidade é proporcional à inteligência e existe certo prazer
exibicionista. Os vaidosos vivem se
comparando. O homem bem-sucedido
se coloca ao lado de outros com o mesmo perfil e pode se sentir desgostoso
quando alguém tem mais do que ele,
o que gera campeonatos ridículos. Eu
tenho um apartamento de mil metros
quadrados, mas agora lançaram um de
1.200! A disputa se estende também
em relação às mulheres, é preciso casar com meninas jovens e lindas, desfilar com elas como se fossem troféus.
Esse jogo é uma fonte permanente de
angústia. Os poderosos raramente são
serenos, se contentam com o que têm:
estão sempre querendo progredir.
Lembra o vício, quanto mais tem, mais
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se quer. Nada sacia, o copo está sempre meio vazio. É tudo muito efêmero,
as coisas conquistadas duram muito
pouco. Você deseja um relógio caríssimo na vitrine, mas quando o coloca no
pulso nem nota mais. O grau de satisfação que as coisas podem proporcionar
é muito menor do que a impressão que
causa, o que gera decepção e ânsia de
consumo por novidades permanente. A mesma necessidade acontece no
plano sentimental. Então, troca-se de
parceiro sexual o tempo todo. É um
sem-fim que não leva a lugar algum.
SUPERCONSUMO
O capitalismo tem várias propriedades diferentes. Antigamente, o
capitalista morria de orgulho do que
produzia, mas, recentemente, ele se
Conheci um cidadão muito rico que
tinha apartamento na França. Perguntaram para ele: por que ter esse imóvel
se você pode se hospedar no melhor
hotel do mundo? “Para poder acordar
de manhã e ir sozinho a pé na padaria
buscar pãozinho”, disse. Hoje, metade de Miami é brasileira. As pessoas
adoram comprar apartamento lá. Justamente para poder levar a vida de um
americano normal, ou seja: não ter empregada o dia inteiro, ir sozinho ao supermercado. Eles vão para Miami para
poder fazer aquilo que eles renunciam
aqui, isso é o que mais caracteriza essa
frustração. Um amigo tem apartamento em Nova York e diz que lá ele gosta
de “brincar de povo”. Vai à lavanderia,
faz sozinho o café da manhã. Quem
compra apartamento fora não transfere o estilo de vida daqui para lá, mas
se integra ao de fora, mais singelo e democrático, muito menos poderoso – e
eles adoram. Acabo convencido de que
eles gostam mesmo é da vida do povo.
Então, não sei por que montam tanta
estrutura. Aqui, é o local da disputa, lá
é parque de diversões.
ESPELHO, ESPELHO MEU
transformou em alguém que tem orgulho do que consome. Os primeiros
capitalistas eram muito displicentes e
despojados do ponto de vista do consumo. Henry Ford (1863-1947) gostava
do fato de ter construído uma fábrica
que transformava um objeto aristo-
porta para ser o primeiro a conseguir
a novidade, mas nunca o poderoso. Ele
não faz fila, não vai ao cinema – agora
vai um pouco mais porque tem lugar
marcado. Ele quer apenas produtos
exclusivos e acaba perdendo muito. E,
no fundo, sabe disso e até se ressente.
O Brasil é um país dos mais consumistas, onde a elite é muito mais exibicionista. Tenho uma paciente que
mora em Nova York e ela costuma dizer que aqui os ricos se mostram para
o povo, enquanto nos Estados Unidos
eles se exibem para o americano rico.
O sinal de riqueza não está no carro
ou na roupa que eles vestem, mas no
tamanho do cheque que fazem para
festas beneficentes. Lá fora, a cozinha
faz parte da vida dos ricos americanos,
mas os quadros que eles têm na parede
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são muito valiosos. O exibicionismo é
mais restrito.
JOGO DE CENA
O indivíduo exibe felicidade por
usufruir de bens, por frequentar certas
festas e mostra sentimentos que nem
sempre está vivendo. É um jogo de
cena que tem mais a ver com vaidade.
Ele precisa aparecer como poderoso,
bem-sucedido, realizado, pleno, feliz
sentimental e sexualmente, mas nem
sempre é verdadeiro. A impressão é
que as pessoas mais simples, com menos ambição, são mais serenas porque
não fazem parte de um mundo tão
competitivo. Pensadores como Aristóteles mostraram que a qualidade de
vida está veiculada à temperança. Um
pouco de esforço, de trabalho, lazer,
sacrifício, gasto e poupança. Mas isso
não combina com o perfil poderoso,
que é radical e competitivo.
FORA DE COMPETIÇÃO
Um problema comum é quando
alguém muito bem-sucedido tem um
filho não tão brilhante. Ele não está à
altura do pai e se sente frustrado porque tem um referencial muito alto,
que não consegue alcançar. Muitos
jovens acabam estragados porque
os pais dão demais. Não sei quantos
agem involuntariamente e quantos
fazem isso de propósito para não ter
concorrência. Quando o pai dá uma
Mercedes de ultima geração para o filho de 18 anos, o que ele espera? Que
ele seja um “bundão” para nunca vir
a competir com ele. Há problemas
de sucessão nas empresas que geram
conflitos, briga entre irmãos. Onde há
dinheiro, há problema de todo tipo.
NO LIMITE
Todo mundo pensa que, ao se deparar com a proximidade da morte, a vontade do homem é de viajar o mundo,
aproveitar a vida, mas não é nada disso.
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“Conheci um cidadão muito rico que
tinha apartamento na França para
acordar de manhã e ir sozinho a pé
na padaria buscar pãozinho”
Ele prefere ficar em casa, às vezes até se
aproximando mais da religião. Quando se tem prazo de validade, as coisas
terrenas perdem a graça. E são esses os
verdadeiros valores, não adianta. Pode
o mundo espernear o quanto quiser.
MORTE E DOENÇAS
Os ricos têm sempre medo de perder
posição para concorrentes, mas não temem empobrecer. Eles confiam muito
no próprio taco depois que conseguem
um resultado positivo, o que é um
perigo porque estão subestimando o
quanto o mundo muda rapidamente e
ter tido sucesso no passado não garante nada hoje. Eles também têm muito
medo de doenças. Não tem dinheiro
que compre saúde e evite a morte. Muitos gostam de gravitar em torno dos
médicos porque se sentem mais amparados. São grandes consumidores de
check-up e medidas preventivas, mas
nem sempre das medidas mais importantes, como esporte e pouco consumo
de álcool. Eles não gostam de nada que
exija sacrifício, mas não querem morrer. Então, tomam remédio para tudo.
PAPO CABEÇA
Ao contrário do que ocorria há 20
anos, hoje os poderosos estão cada vez
menos entusiasmados com as coisas
do conhecimento e da cultura. E isso
aumenta o tédio. Imaginar que é possível se divertir sem atividade cultural
ou esportiva é quase uma ilusão. O jeito mais legal de gastar o tempo livre é
com cinema, leitura, conversas inteligentes. Interagindo com circunstâncias em que exista algum raciocínio.
VÁLVULA DE ESCAPE
O refúgio acaba sendo na bebida e
em atividades vinculadas à ideia de
prestígio. São pessoas que têm barcos,
casas de campo onde cruzam com não
sei quem, almoçam não sei onde, mas
a maioria acaba não fazendo nada. Bebem, comem, dormem e tramam como
farão para ficar ainda mais ricos, imaginando que isso é a solução. Se eles não
encontram a serenidade que gostariam
com as coisas que já possuem, não é dobrando de tamanho que vão conseguir.
É um caminho que só traz competição.
Existem equívocos grosseiros na ideia
de que o dinheiro é fonte de grande
felicidade. É claro que dinheiro é bom
para viajar, passear – quem disser que
não gosta é mentiroso. Mas não precisa ser com avião particular, no hotel
mais caro do mundo. É possível ser feliz vários degraus abaixo.
ESSA TAL FELICIDADE
A felicidade combina a ausência de
dores e de alguns desprazeres – e para
isso o dinheiro ajuda – com alguns
prazeres. Uma relação afetiva de qualidade, uma vida erótica e física com
disposição, alguns prazeres corpóreos – dança, esporte – e outros da alma,
como música e leitura. Os poderosos
e inteligentes sabem disso. Mas existem regulamentos: todos têm determinadas casas, empregados, a mesma
adega, a mesma bolsa. É tudo caro para
caramba, mas é tudo igual.
REFLEXO
As mulheres bem-sucedidas são
aquelas que copiaram o padrão masculino. Se o modelo unissex está acontecendo no mundo, ele está muito
machista. O bom será quando as meninas jogarem futebol e os meninos
dançarem balé. O padrão masculino
é o que está em vigor e ele é composto por competição e agressividade.
As mulheres copiam, mal, até o sexo
casual. Muitos homens divorciados
saem com moças que, aparentemente, estão a fim de uma vida mais livre,
mas querem mesmo é casar. O ideal
seria se voltássemos um pouco nos
anos 1960, quando os homens aderiram ao padrão feminino, à época do
movimento hippie, ficaram cabeludos, usaram sandália de dedo e bolsa
a tiracolo. Depois vieram os yuppies,
as mulheres ganharam gravata e estão
engravatadas até hoje. O feminismo
inteligente ainda não nasceu.
COPILOTO DO MARIDO
A exigência de performance social
cresceu muito para as mulheres. Antigamente, bastava ser mulher e esposa
do fulano, agora é preciso ser alguma
coisa. No mundo dos poderosos, a
mulher tem muita ocupação no cargo
de copiloto da vida familiar. Então, ela
realmente não trabalha. Tem muito
serviço em casa: fazer ginástica, malas, comprinhas. É uma vida dura e não
estou brincando. Não há cabimento a
mulher trabalhar fora para ganhar R$
10, 15 mil por mês quando o cara ganha
isso por minuto.
RESULTADOS IMEDIATOS
Todo mundo procura mais cirurgia plástica e dermatologia cosmética do que psicoterapia. É um erro.
Estão muito preocupados com a
casca e pouco com miolo e isso vai
dar problema lá na frente. Todo
mundo é muito imediatista e os analistas continuam achando que tem
de demorar cinco anos para tudo.
Ninguém tem paciência. n
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No Topo e eM CrISe - Dr. Flávio Gikovate