Entrevista 11
1 - 14 Julho 2009
Há textos que não têm salvação e que vão para o
lixo. Mas há outros de que o autor gosta e submeteos aos editores. Seleccionámos 14 contos, cujos
temas referem-se ao amor, à morte, à viagem, ao
encontro e desencontro de personagens, e à própria
literatura. São temas literários desde sempre, e não
podemos fugir deles.
Tem muitos contos escritos por publicar? Gosta
do registo do conto? Porquê?
Um conto inédito em português será publicado em
inglês num livro da Amnistia Internacional. Estou
escrevendo outros textos, de tamanho variado. Não
são exactamente contos, e sim relatos de memória e
de uma viagem que fiz com meu pai ao Líbano, em
1992. Os géneros literários são apenas convenções,
mas as convenções resistem ao tempo. Gosto muito
de narrativas breves, e o conto é o mandamento
da brevidade. É um texto que exige concisão e
tensão, um osso sem carne, um pequeno espelho
que só pode reflectir poucas e fortes imagens. Um
grande mestre do conto na nossa língua é Machado
de Assis. Na minha juventude, quando li os contos de Machado, deu-me vontade de ser escritor.
Curiosamente, escrevi três
romances e uma novela antes de publicar um livro de
contos.
Lutar
com as palavras
do Eldorado: o encontro da realidade com a ficção,
da história com o mito. E essa é a minha visão da
literatura, pois o mito é a origem de tudo, é o universo da totalidade, que integra o ser às origens. Ele
estabelece uma relação entre o mundo dos signos
naturais e o da vida humana. Por isso a literatura
parte do mito, que é o lugar onde se explicita a natureza de narrar. Mas há um momento em que o mito
perde sua crença, e aí ele se transforma em ficção,
em prosa ficcional. Por isso a estratégia que usei
foi começar o livro com as lendas que o narrador
escutava quando criança. Na abertura do romance
há vários mitos de origem, lendas indígenas e a
lembrança da imagem de uma mulher, uma índia
que entra no rio Amazonas e desaparece. Depois o
leitor perceberá que esses mitos se reflectem na vida
do narrador. Ou seja, os mitos são despidos de sua
sacralidade e tornam-se dramas humanos.
Construção realista
Há algum possível parentesco entre as suas
histórias e o chamado «realismo mágico», muito
forte na literatura sul-americana, ou é mesmo
a realidade onde radica que tem esse poder
encantatório?
Na América Latina a realidade tem ares de ficção.
Ou de um imenso manicómio. Às vezes a realidade
é tão improvável quanto o
universo ficcional. Escrevo
meus romances com uma
perspectiva realista, que
nada tem a ver com a reprodução do mundo tal como
ele é ou aparenta ser. O realismo que me interessa é o
A casa da infância que inventa um mundo que
pode ser nosso paraíso tem uma coerência interna.
É uma construção artificial,
possível, mas a
que depende do efeito e do
literatura transforma vigor da linguagem.
Em Órfãos do Eldorado,
a narrativa é mais longa.
Como surgiu essa história? Foi pensada especificamente para «glosar»
a ideia de mito fulcral na
colecção, onde saiu, ou
era uma história que já
trazia para contar?
Foi uma encomenda ‘anunciada’. A editora escocesa
Canongate queria incluir um
essa casa num paraíso Está a escrever outro roescritor brasileiro na colecção Mitos e pediu-me um
mance? O que lhe dá o
perdido, talvez para
esboço de narrativa. Cedo
romance em termos de
sempre
ou tarde eu ia escrever esse
escrita?
livro. A história surgiu na
O romance e a literatura me
minha juventude, quando
ajudam a viver. A vida só faz
ouvi um relato muito estranho do meu avô. Esse
sentido se eu tiver energia e desejo de escrever. Mas
admiro também os escritores que pararam de esrelato ficou latejando na minha cabeça e percebi
que era o momento de escrevê-lo. O mais complicrever porque não tem mais nada a dizer. Meu
cado foi escrever uma novela, um género literário
amigo Raduan Nassar é um desses escritores. Ele
difícil de ser definido. Foi um desafio e eu aceiteime disse: «A fonte secou, tudo o que queria dizer
o. Um escritor não escreve para alcançar a glória,
está nos três livros que publiquei». Acho isso admimuito menos para tornar-se célebre, e sim para
rável, porque a coragem de silenciar é infinitamente
enfrentar dificuldades e saber que vale a pena a
maior que a coragem de publicar asneiras. E há
luta com as palavras. Como diz o poema de Carlos
muita bobagem em forma de livro, muitos parvos
Drummond de Andrade: «Lutar com as palavras é
que se dizem escritores, mas que são apenas vena luta mais vã... O inútil duelo jamais se resolve».
dedores de livros, comerciantes de palavras e de
Essa é uma óptima definição da literatura, ou do
toneladas de besteiras.
narrador diante de seu trabalho. Quando se tem
desejo de escrever, sabe-se que essa batalha com
Disse há uns anos que talvez fosse apenas
escrever meia dúzia de histórias: mas isso era
as palavras é insolúvel.
apenas para começar? Ou foi a literatura que
De alguma maneira é outro «regresso às orise impôs?
gens»?
O desejo de escrever se impôs, e escrever é viver.
Em vinte anos escrevi quatro romances e um livro
Como assinalou, as origens são várias, diversas.
Em algum momento nossas origens se confundem,
de contos. Sei que não é muito, mas é o que pude
ou são afins. Isso é muito claro para um latino
fazer com honestidade. Espero não ter decepcioamericano. Nossas línguas são originárias da Eunado meus leitores. Tive a sorte de ser traduzido em
ropa, mas o espanhol e o português desta América
várias línguas, de ter óptimos editores no Brasil, na
são línguas transplantadas que, até certo ponto,
Europa, nos Estados Unidos, Líbano e Argentina.
adquiriram uma outra inflexão, um outro vocaÀs vezes me assusta a quantidade de ensaios e
bulário, ritmo e sonoridade. Não somos europeus
teses sobre o meu trabalho, mas isso é um grande
estímulo, pois o leitor exigente justifica a literatura.
e não sabemos ao certo o que somos. Lembro de
uma passagem da novela Coração das Trevas, de
Isso é o mais importante: ter bons leitores, que são
Joseph Conrad, em que o narrador Marlow diz,
também leitores fiéis.
com perplexidade, que a África e os africanos
são as origens do europeu. O facto de Conrad ter
É hoje considerado um dos autores de referência
da literatura brasileira contemporânea. Mas
escrito isso em 1902 não é pouca coisa. Nos dias
de hoje, quando ainda se constroem muros e cercas
como vê essa literatura?
de separação e segregação, a frase de Conrad tem
Não tenho tempo para acompanhar tudo o que é
um significado muito forte.
publicado. Mas li vários livros de prosa e poesia
consistentes, escritos por autores de todas as reÉ uma história extraordinária onde se cruza
giões do Brasil. Felizmente já não se fala mais de
realidade e ficção, história e mito: esses são
literatura regionalista e de literatura urbana. Essa
oposição foi superada. O que deve prevalecer é a
sempre os fundamentos da própria literatura?
literatura, sem rótulos nem classificações. ●
Foi isso mesmo que pensei antes de escrever Órfãos
“
”
PROGRAMA
entrada livre
NOVAS RESPOSTAS
ÀS FAMÍLIAS
Daniel Sampaio
Guarda, 2 Jul. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DO AMBIENTE
Luísa Schmidt
Évora, 3 Dez. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DA CULTURA
Eduardo Lourenço
Coimbra, 16 Jul. 2009
NOVAS POLÍTICAS
PARA OS OCEANOS
Mário Ruivo
Setúbal, 17 Dez. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DO SINDICALISMO
João Proença
Manuel Carvalho da Silva
Castelo Branco, 10 Set. 2009
NOVAS RELAÇÕES
DA FALA EM PORTUGUÊS
José Eduardo Agualusa
Funchal (Madeira), 7 Jan. 2010
NOVAS RESPOSTAS
DA COMUNICAÇÃO
Mário Mesquita
Viana do Castelo, 24 Set. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DA ENERGIA
Ferreira de Oliveira
Beja, 8 Out. 2009
NOVAS RESPOSTAS
À EXCLUSÃO
Alfredo Bruto da Costa
Viseu, 22 Out. 2009
NOVA ORDEM FINANCEIRA
Silva Lopes
Portalegre, 5 Nov. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DA SOCIEDADE CIVIL
Emílio Rui Vilar
Porto, 19 Nov. 2009
NOVAS RESPOSTAS
DO ENSINO SUPERIOR
Adriano Moreira
Bragança, 4 Fev. 2010*
NOVAS RESPOSTAS
DA CIÊNCIA
Álvaro Sobrinho Simões
Porto, 18 Fev. 2010
NOVAS RESPOSTAS
AOS TEMPOS LIVRES
Vítor Ramalho
Lisboa, 2 Mar. 2010
NOVAS RESPOSTAS
ÀS PROBLEMÁTICAS
DO GÉNERO
(orador a confirmar)
S. Miguel - Açores
Março. 2010* (a confirmar)
* Data a confirmar
informações: tel.210 027 189
[email protected]
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11 Entrevista - Milton Hatoum