Formação profissional: boa qualidade mas sobram muitos
Claudio de Moura Castro
Esta nota passa em revista e propõe algumas mudanças no ensino técnico-profissional brasileiro.
Em contraste com o ensino acadêmico, a formação profissional no Brasil privilegia a qualidade
mas não consegue atender senão uma fração pequena dos candidatos potenciais a programas de
treinamento.
A. O que se faz está bem, o problema é que sobram muitos sem treinamento
A mais forte característica da formação profissional no Brasil é ter lugar fora da escola
acadêmica, com a exceção das escolas técnicas federais que, por sua parte, operam bastante
isoladas do restante do MEC ao qual pertencem. As agências especializadas em formação
profissional (SENAI e SENAC) têm estado mais preocupadas com os seus mercados e clientes
do que com o tamanho da população que poderia almejar algum tipo de treinamento. Isto em si,
nada tem de errado. O problema é que não há qualquer instância cuidando dos milhões que
sobraram sem um escola séria ou algum trainamento que compense a deficiência escolar.
A paralisia decisória no MEC
A decisão de criar o SENAI no início dos anos quarenta abortou a entrada da formação
profissional no ensino acadêmico. Somente vinte anos depois houve uma tentativa de oferecer
ensino profissional em todas escolas secundárias. Mas o excesso de ambição deste plano e a
inapetência das escolas para estas questões levaram, ao fim dos anos setenta, ao abandono
completo de quaisquer tentativas de oferecer treinamento nas escolas secundárias. Desde então,
nada mais se fez.
Escolas técnicas: quanto melhor, mais preparam para o vestibular?
Completamente isoladas do resto do MEC e mantendo por um longo período equipes sérias, as
escolas técnicas federais constituem um rede de tamanho modesto mas com boa tradição de
competência. Oferecem, já faz tempo, uma formação de nível secundário complementada pela
parte prática e tecnológica. Os técnicos situam-se entre os engenheiros e os operários
qualificados, combinando de alguma forma as qualificações destes dois níveis. Mas o grande
dilema destes programas é que quanto melhores são as escolas, mais atraem as classes médias e
melhor preparam para entrar no ensino superior. Em estados mais pobres, converteram-se mesmo
nas escolas frequentadas pelas elites, distorcendo assim seu objetivo de preparar mão de obra
para o mercado de trabalho técnico.
As elites de colarinho azul do SENAI
O SENAI é a grande estrela da formação profissional no Brasil. Financiada com um tributo sobre
a folha de salário industrial, oferece cursos que ombreiam aqueles oferecidos em países
industriais maduros. O SENAI estabeleceu uma tradição sólida de preparar operários altamente
qualificados para a indústria moderna do país. Com a complexidade crescente da nossa indústria,
o SENAI vêm se expandindo em áreas cada vez mais sofisticadas. Isso implica também em
operar 18 escolas técnicas, cursos superiores (têxtil) e até pós-graduação (solda). Pertencendo às
federações de indústrias, o SENAI vêm sistematicamente optando por oferecer qualidade acima
de tudo e por expandir os seus programas de reciclagem dos que já trabalham. O SENAI tem lá
os seus problemas (algumas áreas como a construção e o transporte se sentem mau atendidas, há
uma certa rigidez institucional e algumas gordurinhas) Mas no todo a folha corrida é excelente.
O seu lado vulnerável é que matriculando menos de dois milhões por ano, em contraste com uma
população escolar por volta de trinta milhões, é um programa para preparar uma elite operária.
Dentro da sua lógica, é uma opção perfeitamente justificável, considerando a necessidade
imperiosa que tem a indústria de mão de obra de alta qualidade. O problema é que não há outros
programas de expressão quantitativa oferecendo algo significativo para os que sobram.
A modernização do SENAC: da cozinha para os computadores
O SENAC tem uma estrutura semelhante à do SENAI, operando no setor de serviços.
Originalmente dirigia-se à preparação de garções, cozinheiros e ocupações simples de escritório.
De fato, a melhoria sensível na hotelaria brasileira deve muito ao seu trabalho. Mas ultimamente,
sobretudo em São Paulo, o SENAC orienta-se para um mercado mais sofisticado. De cozinheiros
passou aos chefes e a cursos de pós-graduação em hotelaria. Mas seu carro chefe nos últimos
anos tem sido os computadores, onde ocuparam um espaço que mais ninguém tentou ocupar.
Sua nova orientação prescreve que progressivamente abandone as áreas onde outros operadores
menos sofisticados possam ocupar e também a geração de receitas próprias pela venda agressiva
de cursos.
O mundo invisível da formação privada: arapuca ou tábua de salvação?
Não há nada de mais desconhecido no país do que o treinamento oferecido pela iniciativa
privada. Levantamentos superficiais revelam que nas grandes capitais o número de escolas e
academias está na casa dos milhares. Na década de setenta, havia dez vezes mais alunos
matriculados cursos por correspondência do que nas escolas técnicas federais. Mas nem estes
dados básicos são conhecidos e nem se sabe separar o joio do trigo. Não há dúvidas que muito
conto do vigário por correspondência está passando por coisa séria e iludindo uma clientela
pobre. Não obstante os "cursos de paquera" anunciados nas revistas em quadrinhos, uma análise
cuidadosa dos cursos oferecidos pelos grandes operadores do ramo (Monitor, Universal
Brasileiro etc.) mostrou resultados extraordinariamente favoráveis para os seus graduados. Com
todos os percalços reais e a antipatia dos educadores ocupando gabinetes em Brasília, este ensino
tem uma função crítica para a força de trabalho mais modesta. Para ilustrar, somente o início do
primário e os cursos por correspondência têm uma proporção de alunos de classe baixa tão
grande quanto a da população brasileira.
Além disto, deve ser lembrado o treinamento que é oferecido nas grandes empresas e em
instituições como o SEBRAE. Os números não são conhecidos e muito menos a qualidade destes
cursos. Mas voltam-se para uma clientela relativamente distanciada do povão.
B. Uma boa faxina no treinamento?
SENAI, SENAC e as escolas técnicas cumprem cada um seu papel razoavelmente bem. Mas não
houve até hoje qualquer estrutura que cuidasse do ensino profissional como um todo. O MEC
jamais se interessou verdadeiramente pelo assunto, a não ser para ter inveja dos orçamentos do
SENAI. O Ministério do Trabalho recebeu a tarefa de coordenar o SENAI e SENAC, por via do
Conselho Federal de Mão de Obra, mas isto se revelou impossível, diante de sua fragilidade
institucional, contrastada com as fortalezas dos seus coordenados. No fundo, o principal
problema é que sobrou fora do sistema, muita gente mais simples que poderia se beneficiar de
treinamentos menos sofisticados. Nos que segue, alinhavamos algumas propostas para aliviar os
principais problemas da formação profissional.
Ensino acadêmico: Prática sim, mas nada de profissionalizar
A experiência internacional confirma a inapetência do ensino acadêmico para a formação
profissional, sobretudo nas áreas industriais. São culturas diferentes e a tentativa de ensinar
profissões manuais nas escolas acadêmicas tem sido uma comédia de erros. O ethos da escola
despreza essas atividades, destruindo a seriedade, convicção e motivação requeridas para a real
profissionalização. Isso já foi tentado aqui e alhures. Não deu certo. Não há porque ignorar as
lições da história.
Nem porisso, há razões para manter a escola tal qual é. O secundário tem que aterrizar no fim do
século vinte. Não pode continuar no estilo beletrista da República Velha. A tecnologia está em
volta de todos nós. Usar os dez dedos para datilografar não é profissionalizar, é cultura geral.
Entender máquinas e aprender a usá-las e consertá-las é tão essencial como era saber andar a
cavalo para os nossos antepassados. Experimentar e explorar o mundo requer usar as mãos.
Medir, ler plantas e usar ferramentas nem é exumar os antigos "trabalhos manuais" e nem
preparar para algum emprego concreto. É simplesmente preparar-se para a sociedade presente.
São estas as habilidades cognitivas básicas exigidas pela sociedade moderna.
O SENAI: subir o morro e também descê-lo
O SENAI não pode abandonar sua vocação cinquentenária de formar para a indústria moderna.
Ninguém poderá substituí-lo neste mister e não podemos por a perder nosso futuro
manufatureiro. Que continue com sua obsessão pela limpeza, capricho e qualidade. E que
continue a subir o morro das altas tecnologias.
Mas sem jamais comprometer estes objetivos, o SENAI deveria também pensar em descer o
morro, pensar nos que sobraram e desenhar programas menos caros e que possam atingir os
números comensuráveis com a nossa demografia. Há algumas gordurinhas a cortar e há
programas onde a participação financeira das empresas beneficiarias poderia ser mais elevada.
Todavia, não se trata de repetir o modelo, tentando aumentar os començais, à custa de deitar
água ao feijão. A nova atuação deverá ser qualitativamente diferente. Há pelo menos tres linhas
promissoras para o SENAI.
A primeira é uma terciarização ou "franchise" de treinamentos mais simples. Quem quiser
oferecer treinamentos, receberia do SENAI materiais de ensino, modelos de organização,
formação de instrutores e apoio no controle de qualidade. O SENAI seria o MacDonald do
treinamento.
A segunda é o uso do ensino aberto, em particular a televisão e o ensino à distância. Com sua
experiência de ensino e preparação de materiais instrucionais, o SENAI poderia oferecer cursos a
baixos custos cursos para números expressivos de brasileiros.
A terceira opção é o ensino das chamadas habilidades cognitivas básicas. Muitos operários foram
capazes de dominar a parte estritamente manual de suas ocupações, mas não conseguem ler
manuais, interpretar plantas, fazer cálculos simples e dominar conteúdos tecnológicos de seu
ofício. Esta é uma área onde há enorme espaço para preparar materiais instrucionais que
poderiam ser usados em escalas muito amplas, até pelas próprias empresas. Uma variante desta
linha seria oferecer estas habilidades básicas em um modelo que poderiamos chamar de sistema
dual "de pobre", isto é um sistema de aprendizagem pouco ambicioso e cujo objetivo seja
complementar com matérias gerais e tecnológicas o aprendizado em serviço que se dá em
centenas de milhares de pequenas oficinas e escritórios espalhados pelo país. A idéia não é
atingir o nível dos cursos regulares do SENAI, mas oferecer em cursos (noturnos, em muitos
casos) conhecimentos tecnológicos e as habilidades básicas úteis para aqueles que estão, mal ou
bem, aprendendo a parte manual de dezenas de profissões.Todas estas áreas o SENAI já tentou
explorar explorar. Mas até hoje, são tentativas relativamente tímidas, diante da magnitude do
problema social e econômico.
SENAC: Fazer ou liderar?
Em contraste com o SENAI, o SENAC lida com áreas menos dependentes de fortes
investimentos em capital físico e materiais de consumo. Desta forma, a "terciarização" ou o
sistema de "franchise" proposto acima poderia ser levado mais longe e mais rapidamente do que
no SENAI. O objetivo do SENAC deveria ser uma ação cada vez mais indireta. De operador de
cursos, o desafio do SENAC é passar a ser produtor e disseminador de tecnologias de ensino
para o setor terciário.
Escolas técnicas: o desquite entre o técnico e o acadêmico
As escolas técnicas são caras por duas razões. A primeira é porque são bastante boas, dentro do
cenário brasileiro. E a segunda é que matérias primas, oficinas, e o pessoal especializado para
operá-las aumenta enormemente os custos do ensino. Assim sendo, é um mau uso de recursos
quando preparam alunos de classe média para fazer o vestibular. Como não se pode impedir o
melhores alunos de passarem nos testes de seleção para entrar nestas escolas e não faz sentido
piorar o ensino para que deixe de atrair alunos que almejam o ensino superior, a única solução é
separar a parte técnico-profissional do curso secundário acadêmico. E a exemplo do que já fazem
algumas instituições deste tipo, o mais prático é transferir a parte profissional para depois de
terminado o secundário. Assim, só entra na tecnologia e nas oficinas quem já se formou e tem
portanto real interesse na parte profissional. Pode-se pensar em eliminar a parte acadêmica e
concentrar estas escolas na sua missão técnica. Mas esta é uma questão de detalhe.
Além disto, a experiência das escolas técnicas federais e do SENAI confirma amplamente a
noção de que estas escolas funcionam bem quando são capazes de estar muito próximas das
indústrias que atendem, quando conhecem bem os seus problemas e quando têm uma liderança
técnica junto às empresas. Têm êxito as escolas com uma clara orientação e competência técnica
nesta direção. Quando a escola de enologia tem novas tecnologias a oferecer às cooperativas de
Bento Gonçalves, quando as indústrias texteis contratam pesquisas do CETIQT, quando as
indústrias do ABC buscam conselhos com a escola técnica de automação, nestes casos, há
mercado de trabalho para os seus graduados e elas estão cumprindo o seu papel. Por estas razões,
as escolas técnicas e as suas versões de nível pós-secundário deverão ter seus orçamentos
condicionados à sua capacidade de interagir com as empresas e preparar graduados que usam os
conhecimentos adquiridos.
Será que o governo consegue ajudar à iniciativa privada?
Segundo alguns, foi sorte o governo não haver tomado conhecimento deste mundo invisível do
treinamento privado. Não fora isso, já o teria regulado e estrangulado. Mas não podemos ser tão
pessimistas quanto a incompetência do estado para ajudar.
Em princípio, há duas formas de ajuda. A primeira é proteger os alunos e os operadores sérios do
abuso dos menos escrupulosos. Mas que Deus nos livre de um CFE do treinamento! Ao invés,
precisamos de uma aplicação correta e escrupulosa de leis de defesa dos consumidores e de
mecanismos públicos ou semi-públicos para tornar mais transparente a informação sobre cursos
de treinamento. As empresas que oferecem treinamento não podem mentir e não devem prometer
o que não podem cumprir. Além disto, cabe ao poder público ou a algum serviço de proteção ao
consumidor mostrar a todos a realidade destes cursos e os seus resultados no mercado de
trabalho.
Mas isto é pouco, considerando que pagam para aprender exatamente aqueles que podem menos
em nossa sociedade. Deveríamos pensar em subsídios para os cursos ou para os alunos. Mas
como a coleção de mecanismos fracassados é maior do que a dos exitosos, é preciso muita
prudência e realismo na sua escolha. Uma solução são as bolsas de estudo que paguem as
anuidades em cursos de boa reputação. Mais fácil é ajudar diretamente o curso, financiando a
preparação de materiais de ensino de boa qualidade ou dando apoio para aperfeiçoar seus
professores. Acesso aos materiais e experiências existentes é também uma alternativa de baixo
risco.
E quem vai oferecer o treinamento para o povão?
Voltamos à nossa preocupação inicial. Quase todos estão cumprindo corretamente os papéis que
definiram como seus, e em boa medida, esses papéis são corretos. O problema é que, ao frigir
dos ovos, sobra o povão. O sistema se esqueceu dos mais pobres, mais frágeis e menos
preparados.
Nos parágrafos acima tentamos sugerir algumas modificações para dar aos grandes atores do
sistema novos papeis no treinamento. Mas restam alguns problemas espinhosos. Em primeiro
lugar, quem vai obrigar estes operadores a seguir estes conselhos? SENAI e SENAC respondem
a seus patrões institucionais e é bom que assim seja. Mas é preciso encontrar formas de
convencê-los de mudar um pouquinho de rumo. Em segundo lugar, falta alguém que pense no
quadro geral da preparação da força de trabalho. O modelo do Conselho Federal de Mão de Obra
não deu certo. Não podemos reeditá-lo com novos nomes ou mudanças cosméticas. Não cabe
tampouco criar uma agência para treinar os pobres. Seria um desastre. O que parece fazer mais
sentido no momento seria a criação de um fundo de treinamento que examinasse o problema dos
que sobraram e financiasse os operadores presentes para que embarquem parte desse pessoal em
seus programas . Mas em todos os momentos é preciso ficar muito claro que formação
profissional e treinamento são uma péssima forma de assistência social. Ou bem existem
mercados suficientemente tangíveis para os graduados, ou melhor será distribuir a eles o dinheiro
do treinamento, ao invés de oferecer cursos que não levam a parte alguma.
Download

Formação profissional: boa qualidade mas sobram muitos Claudio