A biomecânica em Educação Física Escolar
Prof. Dr. Luiz Alberto Batista
Doutor em Ciências do Desporto
Instituto de Educação Física e Desportos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Perspectivas em Educação Física Escolar, 2(1): 36-49, 2001.
RESUMO: O professor de Educação Física recebe durante sua educação profissional, uma
grande quantidade de distintos conhecimentos. É fato conhecido que este conhecimento deve ser
utilizado no momento em que ele está diante de seus alunos. Contudo, nem sempre essa aplicação
ocorre. Em muitos casos o que acontece não é uma inabilidade do professor, mas sim, as
características do conhecimento produzido. Diante dessa realidade, o principal objetivo desse
artigo é discutir a possibilidade de aplicar conhecimentos de Biomecânica em aulas de Educação
Física Escolar. Para isso, procuramos demonstrar os reais propósitos da Biomecânica utilizada
nos cursos de formação de professores e, finalmente, mostramos as estratégias para trabalhar com
esse conhecimento.
Palavras-chave: Educação Física, Escola, Biomecânica, Conhecimento aplicado.
ABSTRACT: The Physical Education teacher achieves during his professional education a great
amount of distinct knowledge. Its known that this knowledge has to be used right in the moment
that he is 'in front his classes'. However, not always this application occurs. In most cases what
happens it is not an inability's teacher, but the characteristics of the main purpose of this paper is
to discuss the possibility to apply Biomechanics knowledge in elementary Physical Education
classes. For this, we tried to demonstrate the real Biomechanics purposes, the kind of
biomechanics used in undergraduate courses, and finally showed the strategy for working with
this knowledge.
Keywords: Physical Education, School, Biomechanics, Applied knowledge.
1. Introdução
Atuando profissionalmente como professor de Biomecânica em Licenciaturas de Educação
Física e coordenador de estágios profissionais, sempre sou confrontado por um questionamento,
expresso por meus alunos e estagiários, que procuram saber “Para que serve o conhecimento
científico recebido durante a graduação na prática profissional?” A resposta parece obvia,
porém se analisarmos detidamente a questão veremos que não é.
Para alguns casos, em contextos determinados, é possível, com relativa facilidade, responder a
essa pergunta e até fazer demonstrações. Já para outros, por mais que se tente, estabelecer a
relação entre conhecimento produzido e prática profissional efetiva é uma tarefa difícil. Tal
dificuldade leva as pessoas a concluírem simplesmente que muitas das informações científicas
provenientes desses setores não apresentam utilidade prática. Pode ser que algumas realmente não
sejam tão importante como se julga, mas com certeza isso não deve ser regra geral.
O fato de acreditar que a Biomecânica pode ser extremamente útil ao professor de Educação
Física e que isso poderia não estar sendo visto com clareza em decorrência do valor do campo de
conhecimento em foco estar sendo questionado a partir de algumas pistas falsas, passou a ser uma
de nossas principais preocupações. Muito embora acreditemos que esse campo de conhecimento
tenha um papel a ser cumprido no contexto da Educação Física, estamos convictos de que a
simples manifestação pública dessa crença não é o suficiente para provar que haja uma verdade
científica contida nessa perspectiva.
Diante dessa motivação desenvolvemos uma série de investigações com o propósito de
examinar a aplicabilidade dos conhecimentos produzidos em decorrência de pesquisas em
Biomecânica no universo de exercício profissional da Educação Física.
Nesse artigo introduzimos a discussão sobre o uso da Biomecânica em Educação Física
Escolar. Questionamos se ela realmente possui algum conteúdo que possa ser útil a esse contexto
e apontamos para cuidados metodológicos, fundamentais, a serem considerados nas fases iniciais
de pesquisas que procuram estudar essa possibilidade de aplicação. Assim, o presente texto
constitui uma singela introdução a uma proposta metodológica para o estudo da aplicabilidade do
conhecimento científico no contexto da Educação Física Escolar, com enfoque na Biomecânica
como campo gerador de informações.
Acreditamos que tal abordagem seja importante visto a necessidade que temos, na atualidade,
de melhor utilizar o tempo acadêmico, o que pode envolve, também, trabalhar com
conhecimentos que realmente sejam adequados e ao fazê-lo tomar o cuidado com a qualidade do
processo de transmissão e utilização dos saberes.
2. Biomecânica aplicada à Educação Física
A presença da disciplina acadêmica Biomecânica na formação de professores de Educação
Física é um fato muito recente, o que faz com que a grande maioria dos profissionais que estão
atuando hoje no mercado de trabalho não possuam conhecimentos de tal campo de conhecimento.
Além da recentidade cronológica, e em decorrência da mesma, é preciso que levemos em
conta o fato de um campo de conhecimento científico precisar de um certo tempo para
amadurecer, de forma a melhor cumprir seu papel curricular como disciplina acadêmica. No caso
em foco, os fatos demonstram, o tempo transcorrido ainda não foi suficiente para a consolidação
dessa maturidade. Em outras palavras, não se pode afirmar nos dias de hoje que a Biomecânica
encontra-se organicamente integrada às perspectivas curriculares. Isso agrava a situação
comentada no parágrafo anterior, visto que mesmo aqueles que tiveram contato com essa
disciplina na graduação, receberam informações ainda imaturas e, sendo assim, pouco eficientes
no que diz respeito à sua capacidade de instrumentalizar procedimentos didático pedagógicos.
Como se não bastasse essa sua evidente juventude epistemológica, a Biomecânica adentrou
em Educação Física perpassada por um acentuado conteúdo folclórico, principalmente no que diz
respeito aos seus propósitos. Isso tudo somado a uma boa quantidade de interpretações simplistas.
É comum escutarmos, por exemplo, a afirmação de que ela é um ramo do conhecimento
científico que tem atendido somente ao esporte de alto rendimento e que por isso ela não teria um
papel relevante a ser exercido no contexto da Educação Física Escolar.
Objetamos tal tipo de declaração tendo em vista a noção de incapacidade que ela transmite.
Uma coisa é dizer que a Biomecânica não tem procurado atender a outros setores que não o do
esporte de alto rendimento, outra, completamente diferente, é atribuir-lhe total incapacidade para
fazê-lo, o que não é o caso do campo de conhecimento em foco.
É típico de indivíduos que conhecem muito pouco, quando nada, do ramo científico que
criticam afirmarem que o mesmo só se presta a um determinado fim. Afirmações como essa, se
tomadas como verdade, dificultam sobremaneira uma exata compreensão das reais possibilidades
de aplicação das informações oriundas de qualquer campo de conhecimento científico. Por isso é
de fundamental importância que argumentações simplistas sejam examinadas quanto ao seu grau
de veracidade, antes de serem adotadas como válidas de formas a evitar tanto uma adoção
precoce quanto uma rejeição incondicional.
Podemos começar o exercício de um exame crítico esclarecendo o que é esse ramo da
Ciência, que competências lhe são atribuídas e o que ele tem feito efetivamente no contexto
prático real. No universo científico como um todo a Biomecânica é considerada "...o estudo da
mecânica de coisas vivas...” i[i]. Porém, quando nos inserimos no contexto específico dessa
disciplina científica, percebemos que esse conceito é, no sentido operacional, muito pobre. Ele
não nós informa, sequer aproximadamente, acerca das reais características do campo de
conhecimento.
Não há dúvida de que a situação sinaliza à prudência, sendo necessário desenvolver um
exame mais apurado. Façamos isso iniciando por compilar a posição de alguns pesquisadores
e/ou usuários confessos de Biomecânica pois que, tendo em vista o ponto de vista de uma
epistemologia histórica, forma eles que estabeleceram os consensos que efetivaram a estruturação
dessa região do saberii[ii].
3. O que é a Biomecânica e para o que serve?
Gerhard Hochmuth esclarece que "...a Biomecânica estuda os movimentos do homem e do
animal a partir do ponto de vista das leis mecânicas...". Complementa dizendo que, por
conseguinte, o objeto de sua investigação "...é o movimento mecânico (mudança de lugar de uma
parte da massa) do homem e do animal, considerando as propriedades e pressupostos mecânicos
do aparato do movimento os quais, por sua vez, dependem funcionalmente das condições
biológicas do organismo” iii[iii].
Hochmuth leva-nos a inferir, motivados por suas declarações, que esse campo de
conhecimentos faz parte de um "... complexo científico de investigação do movimento...", que tem
como objetivo fornecer informações que devem ajudar na compreensão de certos elementos do
ato motor, tais como: detalhes acerca do ciclo de movimentos mais eficientes; detalhes acerca de
resultado obtidos a partir do exercício motriz, transformado em parâmetros mensurável e o
esclarecimento dos pressupostos físicos e psíquicos do indivíduo assim como de sua capacidade
de aprender e de assimilar.
Doris I. Miller e Richard C. Nelson conceituam Biomecânica como sendo "...a ciência que
investiga os efeitos de forças internas e externas sobre os corpos vivos...” iv[iv]. Os autores
defendem a idéia de que esta disciplina deve possibilitar, através das estratégias metodológicas
que congrega, a realização de "...precisas avaliações quantitativas do desempenho humano...”
v[v].
Para Wolfang Baumann a "...Biomecânica é uma matéria das ciências naturais que se
preocupa com a análise física dos sistemas biológicos, examinando, entre outros, os efeitos de
forças mecânicas sobre o corpo humano em movimentos cotidianos, de trabalho e de esporte...".
Para o autor estando revestida deste arcabouço conceptual, essa ciência deve preocupar-se
com a "...medição técnica e de descrição quantitativa do desenrolar de movimentos por meio de
grandezas mecânicas, a explicação mecânica dos movimentos assim como, baseado nisso, a
perfeição da técnica do movimento com vistas à performance motora e à solicitação mecânica do
aparelho locomotor...".vi[vi]
Assim conceituada, a Biomecânica, na visão do autor, deve cumprir diversas tarefas, dentre as
quais ele destaca a "...descrição quantitativa dos movimentos...", a "...modelagem da estrutura e
função do aparelho locomotor..." e a "...modelagem da estrutura do movimento..." vii[vii]
Apesar de não apresentarem uma conceituação explícita, os escritos de José Luiz Fraccaroli
nos levam a acreditar que a Biomecânica é uma disciplina voltada ao estudo da "...máquina
humana..." através da utilização das "...leis da física..." viii[viii].
Jorge de Hegedus ao apresentar as considerações acerca da técnica desportiva destaca que ela
está "...baseada em leis Biomecânicas e que estas se aproveitam em maior ou menor proporção
da capacidade do desportista...” ix[ix]. Ele admite, para o desenvolvimento do seu trabalho, que
a "...a Biomecânica pode ser definida, então, como a aplicação das leis físicas ao estudo dos
seres vivos...” x[x].
James G. Hay, em uma dissertação de nove parágrafos os quais precedem a uma discussão
sobre a tarefa da Biomecânica, aborda o tema melhor técnica do movimento desportivo
estabelecendo relações com o processo pedagógicoxi[xi].
Está contida nos escritos de Rolf Wirhed a crença de que as informações procedentes de uma
descrição biomecânica permitem ao professor entender melhor "...como e porque um exercício
deve ser executado de uma determinada maneira...". xii[xii]
Jürgen Weineck faz uso de uma proposta de D. Martin na qual é defendida a idéia de que o
"...o primeiro passo para estabelecer um modelo técnico ideal-típico é uma análise científica da
estrutura física do desenvolvimento motor de conjunto....". Após essa consideração inicial o
autor defende a competência da Biomecânica para cumprir tal tarefa argumentando que tal ramo
científico “...contribui bastante para captar objetivamente os aspectos, sobretudo quantitativos,
dos caracteres do movimento...". Diz ainda que ela "...permite a objetivação da técnica, a
descrição dos caracteres cinemáticos e dinâmicos..." do movimento corporalxiii[xiii].
Luiz Irineu Cibilis Settineri esclarece que a Biomecânica pode ser considerada como uma
disciplina preocupada com o "...estudo anatomofisiológico e mecânico do movimento do homem e
dos seus segmentos corporais...” xiv[xiv].
Harold M. Barrow e Janie P. Brown procuram, com o objetivo de esclarecer a terminologia
utilizada em seu livro, traçar o perfil das relações existentes entre cinesiologia mecânica e
Biomecânica. Na consecução de tal tarefa eles conceituam essa última como "...a ciência de
movimento humano que descreve o movimento do corpo humano utilizando os métodos da
Mecânica...” xv[xv].
Fernando Vizcaíno argumenta que "...a Biomecânica joga um papel fundamental na busca da
melhor solução: a tarefa motora..." e que ela "...se ocupa do estudo dos movimentos humanos a
partir do ponto de vista das leis da física...".xvi[xvi]
Jaune A. Mirallas Sariola traz-nos a interessante visão de um especialista no desporto judo.
Em seu modo de entender a "...importância das ciências de suporte ao treinamento dos
desportos de elite é indiscutível...". Esclarece que a "... Biomecânica ocupa, nesse sentido, um
nível destacado, como ajuda ao ensino da técnica desportiva” xvii[xvii].
Essa seqüência de declarações permite-nos tirar algumas ilações acerca do que seja
Biomecânica e para que ela serve.
Como se pode concluir, a partir do que é dito por esses autores, pesquisadores ou usuários,
considerar que o conhecimento produzido por essa ciência está relacionado, única e
exclusivamente com o esporte de alto rendimento é um ato que carreia consigo, no mínimo, dois
grandes equívocos que devem ser, de imediato, esclarecidos.
Em primeiro lugar a Biomecânica não serve apenas para a discussão do movimento corporal
esportivo, como é comum alguns afirmarem, e o segundo é que, mesmo quando ela está voltada
para o esporte, o alto rendimento não é a única possibilidade, não obstante o fato de ser esse o
universo mais explorado.
De saída podemos constatar que, em verdade, estamos lidando com uma ciência voltada ao
estudo dos comportamentos Físico-mecânicos de corpo humano, dentre os quais o movimento
corporal, segundo um ponto de vista claramente definido. No caso do movimento, por exemplo,
não é examinado um tipo específico e sim de qualquer comportamento motor. Quem irá definir o
tipo de motricidade a ser estudada será o investigador. O fato de se ter investigado massivamente
o desporto de alto rendimento está fundado em razões históricas e não significa, de forma alguma,
que essa seja a única ou mesmo a principal aplicação. Voltaremos a isso mais adiante.
O outro ponto importante diz respeito a inexistência de um enunciado que defina o que seja a
Biomecânica. Pelo que é dito por especialistas e usuários, ainda hoje, não é possível apresentar
uma definição clara e inequívoca deste campo de conhecimento. O desvelamento de tal fato vem
reforçar a veracidade da proposição de que estamos lidando com uma ciência ainda em intenso
processo de retificação, em outras palavras, uma ciência que ainda não atingiu seu melhor estágio
de desenvolvimento epistemológico ou, como referimos anteriormente, sua maturidade final.
De certa forma isso é extremamente saudável pois é no decurso de construção de sua estrutura
epistemológica que uma ciência vai sendo moldada, dentre outras coisas, para apresentar uma
determinado nível de aplicabilidade a setores específicos.
Porém, se por um lado não é possível defini-la, por outro abundam-lhe conceitos. Isso
também é muito importante pois que a presença de diferentes conceitos nos indica a grande gama
de possibilidades operacionais de um ramo da ciência.
No caso da Biomecânica pode ser que seja possível delinear um conceito, a partir de suas
características particulares, que denote a pertinência de sua efetiva utilização como instrumento
pedagógico. Essa possibilidade, por si só, demonstra uma certa qualidade imanente, a qual denota
alguma possibilidade de que ela venha a ser utilizada dentro da Educação Física Escolar com
resultados positivos.
O fato de podermos admitir uma grande quantidade de conceitos para Biomecânica significa
que ela provavelmente trabalha com diferentes objetos, além de abordá-los orientada por,
também, distintos objetivos. Sendo assim não há como considerar a possibilidade de aplicação
concreta desse ramo do conhecimento a um universo qualquer sem, a prior, esclarecer, com
precisão científica, os objetos sobre os quais ela deverá se debruçar e com que propósito deve
fazê-lo.
Alias essa não é uma prática exclusiva desse caso. Sempre que pretendemos examinar a
aplicabilidade de conhecimento científico a um contexto qualquer, o desvelamento dos detalhes
das estruturas epistemológicas envolvidas deve ser admitido como ação primordial do fluxo
investigatórioxviii[xviii]. Dentro dessa ação a identificação dos elementos acerca dos quais se
conheceu ou se deseja conhecer algo é um passo fundamental. Visto como princípio fundamental
essa tarefa virá cumprir o que denominamos de “Princípio da Identificação dos Objetos de
Conhecimento”.
Tal comportamento metodológico não deve ser desprezado em nenhuma situação na qual é
discutida a possibilidade de efetiva aplicação de saberes. Por isso essa orientação vale também
para o estudo acerca da utilização da Biomecânica no contexto da Educação Física Escolar, que é
claramente uma questão de aplicabilidade de conhecimento científico.
Infelizmente, temos percebido que o não cumprimento dessa etapa constitui um dos erros
mais freqüentes na obtenção das informações que posteriormente são utilizadas na
fundamentação de argumentações ponderativas acerca da efetiva utilização da Biomecânica na
Educação Física, seja no sentido de defendê-la ou rejeitá-la. A conseqüência disso é o que já
sabemos. Uma série de críticas, positivas ou negativas, fundadas em folclore e senso-comum, as
quais só contribuem com a construção de uma estrutura de conhecimento mais velada e
inconsistente.
Por tudo isso, reafirmamos, que do ponto de vista metodológico a implementação desse
primeiro procedimento é de fundamental importância. Ele não pode ser negligenciado quando
examinamos a aplicabilidade de conhecimentos científicos. Se a estratégia é corretamente
implementada e executada, os resultados obtidos permitiram, com uma boa margem de certeza
científica, dizer por quê e para que um determinado acervo de conhecimento foi construído.
Temos demonstrado que “...é epistemologicamente contraproducente cobrar de um campo de
conhecimento científico mais do que aquilo que sua história gênica lhe deu condições de
oferecer...” xix[xix] , em outras palavras, não adianta esperar que a Biomecânica proporcione
mais do aquilo para o quê ela tem sido epistemologicamente estruturada para fazer. Qualquer
aplicação de conhecimento que não leve em consideração esse compromisso, estará tendendo ao
insucesso, ou, no melhor dos resultados, ao sucesso casual, para o que não é preciso utilizar
ciência sendo suficiente, e menos trabalhoso, o uso do senso-comum.
4. Biomecânica e Educação Física Escolar: o objeto de conhecimento
Com base no exposto anteriormente façamos algumas reflexões acerca da aplicabilidade da
Biomecânica à Educação Física, considerando essa última a parte do currículo escolar que ajuda
a educar pessoas.
Veja-se a complexidade da situação. Mesmo com as delimitações estabelecidas no parágrafo
acima, havemos de considerar que o ato educativo, admitido como principal ação da Educação
Física dentro do contexto escolar, determina um ainda amplo universo de possibilidades. O ser
humano congrega em si uma série de necessidades educacionais dos mais diferentes tipos. Isso
nos remete a tarefa de identificar as necessidades educativas para as quais o campo de
conhecimento em questão pode gerar respostas culturaisxx[xx]. Para que conjunto delas estamos
preconizando a utilização de conhecimentos de Biomecânica, quando falamos de sua
aplicabilidade.
De imediato deparamo-nos com uma situação digna de nota. Os cursos de licenciatura
adotaram a denominada “Biomecânica do Desporto” como sendo a disciplina a ser implementada
na formação do professor de Educação Física.
Este setor da Biomecânica, segundo dados obtidos em nossas pesquisasxxi[xxi], gera
conhecimento a partir de questões do tipo: Como obter o melhor rendimento técnico? Como
examinar determinada técnica esportiva? Como avaliar biomecanicamente a execução dessa ou
daquela técnica esportiva? Quanto mede essa ou aquela técnica desportiva? Como realizar esta ou
aquela técnica desportiva de forma mais eficiente e com menor gasto energético? Porque uma
determinada técnica desportiva possui uma determinada forma?
Diante de tal problemática podemos inferir quais são os compromissos do setor de
conhecimento utilizado, cumprindo um primeiro passo no sentido de examinarmos se eles estão
de acordo com as necessidades em foco ou não, tendo em vista o fato do nível de compatibilidade
entre as necessidades da Educação Física Escolar e as questões a partir das quais as investigações
têm se desenvolvido, ser uma importante variável interveniente no estabelecimento do nível de
aplicabilidade.
Como se pode perceber, no raciocínio conduzido nos parágrafos anteriores realizamos uma
análise perfazendo um caminho no sentido de fora para dentro do universo de aplicação, ou seja,
primeiro identificamos o que a Biomecânica do Esporte tem feito, para depois, de posse dessa
informação, propormos o questionamento de sua aplicabilidade à Educação Física Escolar.
Façamos agora o fluxo contrário. Tomemos um objeto da Educação Física Escolar e
consideremos o que a Biomecânica tem produzido para tal.
Para tal façamos uma análise da situação assumindo o ensino de habilidade motoras
esportivas pode ser “um dos” propósitos educativos da Educação Física escolar. A primeira vista
tudo estaria perfeito, dado que estaríamos lidando com uma competência da Educação Física
escolar e com um fenômeno ligado ao universo do esporte, adequado ao campo da Biomecânica
do Esporte. Infelizmente essa primeira impressão não resistiria ao menor exercício de crítica,
como veremos logo a seguir.
Tendo como base nossas argumentações anteriores, sabemos que a Biomecânica do Esporte,
para fornecer informações a serem utilizadas em processos de ensino de habilidade motoras,
precisa, necessariamente, ter promovido investigações tendo como objetos de estudo fenômenos
pertinentes a esse contexto. Com o objetivo de qualificar o conhecimento, quanto ao seu nível de
aplicabilidade nessa situação, examinamos a produção relativa à criança e ao ensino, investigando
os títulos pertinentes ao campo de estudo da Biomecânica do Esporte veiculados entre 1893 até
1980.
No período estudado a produção de conhecimentos voltados à discussão da criança e/ou do
aprendizado básico de habilidades esportivas foi encontrada em 17 dos 1731 títulos examinados,
constituindo, como se vê, 0,98% da amostra. Em termos quantitativos tal produção é
insignificante dada a quantidade de diferentes questões que permeiam o universo e o considerável
intervalo de tempo, 87 anos, durante o qual se deu a produção. Há muito tempo de estudos para
tão poucos problemas científicos resolvidos.
No entanto a superficialidade não para por ai, estendo-se também aos aspectos quantitativos.
Levando-se em conta os interesses, que moveram os autores destes 17 artigos, vemos que o
conhecimento veiculado foi estruturado a partir da exploração de três temas diferentes, a saber: O
aprendizado de habilidades motoras esportivas; O iniciante na prática esportiva e A Criança. Em
alguns casos estas três temáticas foram combinadas em único estudo.
No item “aprendizado de habilidades motoras esportivas” os autores se preocuparam
especificamente com o fato do indivíduo ter que aprender uma determinada habilidade motora
esportiva. Discutiram, baseados em conhecimentos da Física, formas de movimentos corporais
catalisadores, ou seja, movimentos que levassem a um aprendizado mais rápido(xxii[xxii])(xxiii[xxiii]);
procuraram verificar em que medida as diferenças antropométricasxxiv[xxiv] ou a capacidade de
flutuação em meio líquidoxxv[xxv] dos indivíduos influenciam no sucesso do aprendizado de
habilidades motoras da natação. Também aparece a preocupação em desenvolver tecnologia que
permitisse ao professor realizar uma melhor observação dos gestos e, consequentemente, ajudasse
a melhorar a qualidade do ensinoxxvi[xxvi].
No que diz respeito ao iniciante começamos por apontar os casos nos quais o binômio
iniciante ⇔ aprendizado é textualmente referido pelos autores. Nesses procurou-se estudar a
correlação entre o quadro antropométrico do iniciante na natação com a velocidade de seu
aprendizadoxxvii[xxvii] ou o das mudanças na mecânica do comportamento motor de crianças
iniciantes no waterpolo, induzidas pela introdução de uma bola com características físicas
diferentes das que normalmente são utilizadas naquela práticaxxviii[xxviii].
Outros trabalhos preocuparam-se em apresentar as melhores técnicas motoras a serem
utilizadas por iniciantes na prática do esquixxix[xxix] e do atletismoxxx[xxx] ou mesmo a
descrição do quadro Biomecânico que se apresenta quando um iniciante executa uma
habilidadexxxi[xxxi].
Em outro caso o autor procurou examinar as diferenças entre a expressão de uma mesma
técnica motora quando executada por um iniciante e um atleta de alto rendimentoxxxii[xxxii].
Note-se que muito embora o enfoque desses estudos tenha sido sobre o aprendizado nenhum
deles preocupou-se em estudar o processo. Quando muito mensurou variação no estado motor
comparando os resultados de um pré-teste com aqueles obtidos após o desenvolvimento do
programa de ensino. Assim sendo as mudanças comportamentais motoras inerentes ao decurso do
processo de aprendizagem não foram enfaticamente examinadas.
Os trabalhos que tiveram a criança como seu principal objeto de conhecimento voltaram-se à
descrição. Seja a descrição de características extrínsecas, como a flutuabilidade em meio
líquidoxxxiii[xxxiii], as características cinemáticas da corridaxxxiv[xxxiv], ou características
intrínsecas como o comportamento cinematográfico e/ou eletromiográfico na execução de
habilidades motoras da natação(xxxv[xxxv]) (xxxvi[xxxvi]).
Dois estudos nos chamaram a atenção pelo fato de neles o autor ter procurado trabalhar com a
perspectiva de lidar com a complexidade típica do mundo real do ensino do desporto. Não
procurou fugir dela e nem mesmo utilizou como argumento para justificar a delimitação de seu
estudo.
Nestes dois casos o investigador buscou descrever não só as características dos movimentos
de corridas de crianças em idade pré-escolarxxxvii[xxxvii] e escolarxxxviii[xxxviii], como
também, para além disso, procurou demonstrar as variações que denotam a evolução destes
indivíduos ao final de um determinado período. Desta forma o autor realiza um tipo de trabalho
que se aproxima da investigação voltada para o processo de desenvolvimento da criança e não
simplesmente a um momento deste processo.
Nesse ponto de nossas apreciações é preciso deixar claro que ao admitirmos como verdadeiro
o fato da Biomecânica não estar, em termos quantitativos e qualitativos, atendendo as
necessidades do universo do ensino de habilidades motoras esportivas, de forma alguma
pretendemos estabelecer um juízo de valor. Queremos demonstrar que os interesses norteadores
das investigações estão fincados muito mais na Biomecânica do que no universo do ensino.
Nossa proposta é que esse fluxo seja invertido no sentido de que as problemáticas imanentes ao
processo de ensino desencadeiem as investigações.
Voltando ao fato de ter sido escolhida a Biomecânica do Esporte para compor os currículos
das Escolas de Educação Física, cabe fazer uma ressalva. Fazendo a devida contextualização essa
escolha não era de todo injustificável. Durante um certo período histórico-temporal os cursos de
formação de professores foram intensa e extensamente carregados com elementos do universo
esportivo, pois entendia-se que esse era o principal objeto de trabalho do profissional do setor.
Sendo assim durante aquela fase a escolha não foi tão descabida.
Por outro lado é preciso ter claro que ao escolhermos um setor específico de conhecimento
restringimos o universo de informações disponíveis. A Biomecânica, nessas condições, só teria a
obrigação de fornecer informações, ou instrumentalizar o exercício profissional, em questões
relativas à prática esportiva e, ainda mais, dentro desse universo somente acerca dos fenômenos
que estavam sendo investigados.
Promovendo um outro enquadramento histórico verificamos, também, que a Educação Física
contemporânea transcende setores específicos do universo esportivo, como por exemplo o alto
rendimento. Ela vai além disso e transcende o fenômeno esporte como um todo. Em virtude dessa
neo-amplitude muitas outras problemáticas possíveis de também serem examinadas pela ótica
mecânico-biológica, ainda não o foram.
Isso tudo tem feito com que o quadro geral se altere. Hoje temos claro que ao exercermos
nossa prática pedagógica precisamos utilizar conhecimentos Biomecânicos, assim como os de
outros ramos instrumentalizadores, que transcendam à mera abordagem do fenômeno esportivo.
No entanto os novos objetos de estudo que viabilizarão essa transcendência ainda não estão
plenamente identificados. Assim sendo o momento é de cumprirmos, na prática, o princípio da
identificação dos objetos de conhecimento.
Diante de tais fatos, adotar a Biomecânica do Esporte como campo de conhecimento absoluto
naquele momento histórico não pode, sequer, ser considerada uma atitude incoerente. Por outro
lado, diante do atual estado da arte no campo da Educação Física, não evoluir para uma
Biomecânica mais abrangente constitui, no mínimo, assumir um total desconhecimento das
necessidades atuais que demandam do setor de aplicação.
5. Possibilidade concreta
Entrementes, como já assumimos anteriormente, não estamos aqui pregando a tese da
impossibilidade plena. Muito embora não seja perceptível em uma abordagem superficial, em
verdade já há espaço aberto para a criação de condições que favorecem a efetiva aplicação da
Biomecânica à Educação Física Escolar.
No decorrer da busca por soluções constatamos que um certo número de objetos inerentes ao
universo da Educação Física, para além daqueles típicos do ambiente esportivo, têm sido
investigados pela Biomecânica, o que denota, já, um certo grau de transcendência.
Dentre esses objetos materiais o “Movimento Corporal” é um dos mais presentes nas
investigações xxxix[xxxix]. Isto de certa forma é um ponto positivo no sentido de estabelecermos
uma conexão coerente com o universo da Educação Física escolar. Não há dúvidas de que, de um
ponto de vista genérico, o movimento corporal do ser humano faz parte do universo fenomenal da
Educação Física como um todo.
Porém, antes de desencadearmos um entusiasmo desenfreado e prosseguirmos em nossas
argumentações defensivas, cabe apresentar algumas noções fundamentais acerca do conceito de
“Objeto” adotadas por nos de forma a deixarmos claro os limites de nossas considerações.
Estamos partindo, nesse caso em particular, da possibilidade de existência de diferentes tipos de
Objetos, dentre os quais dois serão utilizados por nos, a saber: os materiais e os formais.
“O objeto material é como objeto indeterminado; a sua determinação opera-se por meio do
objeto formal. A diferença entre objeto formal e objeto material funda-se na diferença entre o
conhecido e o objeto do conhecimento.” xl[xl]
Diante de tal premissa dizer que a Biomecânica estuda o “Movimento corporal” não é
delimitação suficiente, visto ser esse um objeto material. Como tal ele tem a capacidade de gerar
uma grande quantidade de diferenciados objetos formais, o que alias tem constituído uma
ocorrência concreta.xli[xli] O problema aqui é que muitos dos objetos formalizados a partir do
“Movimento Corporal” podem não fazer parte do universo da Educação Física Escolar, e é com
base no objeto já formalizado que se determina a especificidade do campo de conhecimento e,
consequentemente seu nível de aplicabilidade a outros setores.
Em decorrência de tais características não basta defendermos a pertinência da aplicação de
conhecimentos oriundos da Biomecânica no contexto da Educação Física Escolar dizendo que ela
investiga o movimento corporal. É de fundamental importância que ela investigue movimentos
corporais pertinentes ao contexto ao qual pretende-se ela seja aplicada.
6. Conclusão
É certo que a Biomecânica constitui uma ciência de reconhecido valor em muitos setores de
atividade profissionais. No entanto ela pode criar uma série de embaraços para aqueles que,
acriticamente, fazem uso, ou recomendam a utilização, de tudo o que dela provém, sem
considerar o real valor do quê estão aplicando e para o quê estão aplicando. Também podem cair
no ridículo os que defendem a tese de que esse ramo da ciência não apresenta nenhum tipo de
conhecimento que possa ser utilizado em uma determinado campo de trabalho.
Um fato interessante é que, a medida em que vamos ampliando o leque de atuação
profissional e adentramos em diferentes campos de trabalho, percebemos que muitos dos
conhecimentos da Biomecânica, os quais acreditávamos inúteis a princípio, se mostram,
extremamente adequados ao entendimento de fenômenos que ali se apresentam.
Nesse sentido, é nossa posição que a investigação acerca da possibilidade de efetiva utilização
do conteúdo epistêmico da Biomecânica nos processos educativos deve, obrigatoriamente,
avançar para além do que hoje é ratificado com base no senso-comum e de forma folclórica.
Dizer que várias partes do conteúdo de um livro de Biomecânica Básica “...serão eficazes no
aprendizado e na aplicação dos conceitos...” xlii[xlii] é fácil. O difícil é demonstrar
cientificamente, e na prática, que essa proposição é verdadeira.
No presente estágio de desenvolvimento de nossos estudos e, principalmente, dado ao
presente estado da arte do campo da Biomecânica, estamos convictos de que esse ramo do
conhecimento reúne muitas das condições necessárias à geração de informações que podem
efetivamente ser aplicadas nos processos educativos. Porém a precisa determinação de como isso
pode ser efetivado carece ainda de exame científico mais aprofundado.
Todo esse quadro não deve ser visto de maneira diferente quando tratamos do caso específico
da Educação Física Escolar. Como já aludimos, não temos dúvidas de que a Biomecânica pode
contribuir com a efetivação de processos educativos, que envolvam comportamentos corporais
motores, mais conscientes, críticos e, consequentemente, marcados por concretas
responsabilidade e intencionalidade pedagógica por parte de que conduz o processo.
Nesse ensaio partimos da premissa básica de que a preocupação do professor com a qualidade
do movimento corporal constitui um elemento crítico no processo educativo influenciando,
consequentemente, no tipo de resultado a ser produzido em decorrência do mesmoxliii[xliii].
Explicamos que, do ponto de vista da Biomecânica, entender e aceitar que o movimento
corporal faz parte do universo educativo da Educação Física Escolar, não delimita, de forma
suficiente, um objeto claro a partir do qual possamos examinar, de uma maneira cientificamente
correta e precisa, se as informações fornecidas por aquele campo de conhecimento podem ser
aplicadas de forma proveitosa nesse contexto.
Antes de qualquer coisa, é preciso identificar os objetos formais gerados a partir do objeto
material “movimento corporal”, de forma que possamos verificar se a Biomecânica os tem
investigado e, se o tem feito, com que propósitos. Esse é o primeiro grande passo para que
possamos comparar o tipo de produção com o tipo de demanda, aquilatar o grau de
compatibilidade entre os dois e emitir um parecer acerca da aplicabilidade do conhecimento
científico nesse caso.
Com base nas pesquisas realizadas até o momento conhecemos muito do que tem sido
produzido pela Biomecânica do esporte, sendo esse o setor da Biomecânica que mais espaço
ocupa dentro do contexto epistêmico da Educação Física. Sabemos que esse conteúdo
provavelmente não aponta no sentido de um razoável grau de aplicabilidade ao universo escolar.
De qualquer forma, apesar do tema ainda merecer um maior aprofundamento, temos uma
idéia razoável do que a Biomecânica tem produzido, e, mais importante ainda, sabemos que ela
está habilitada para investigar o movimento corporal.
Ao contrário, no que diz respeito às informações necessárias ao processo crítica proposto,
muito pouco, ou quase nada sabemos acerca do contexto da Educação Física Escolar, mais
especificamente, não sabemos nem mesmo quais são as formas de movimento corporal que ela
congrega.
Como se vê, não está sendo defendida aqui a idéia de que a Biomecânica já tenha produzido o
suficiente. Muito ao contrário, parafraseando conceitos da mecânica clássica, aqui identificamos
uma situação de equilíbrio instável. O campo fornecedor de informações já possui,
reconhecidamente, algum conteúdo com o qual contribuir, seja sobre a forma de informação, ou
de acervo metodológico para promover investigações adequadas. É preciso agora equilibrar a
balança aumentando o lastro do lado da Educação Física Escolar, a qual deve ser examinada afim
de que sejam desvelados os objetos formais passíveis se serem estudados pela Biomecânica.
Diante desses fatos, se queremos, examinar os conhecimentos existentes ou mesmo
estabelecer, através de investigações Biomecânicas, uma produção de conhecimentos que sejam
efetivamente aplicáveis ao contexto da Educação Física Escolar, a melhor orientação
metodológica para o momento é promover estudos que busquem descrever o contexto da
Educação Física Escolar com o propósito de identificar, de forma científica, os objetos formais
gerados a partir do movimento corporal.
Se já há conhecimento adequado passaremos a trabalhar na operacionalização de seu uso prático.
Se, por outro lado, não existirem ainda as informações, utilizaremos os objetos desvelados para
que, a partir deles, desencadeemos uma produção de conhecimento através de investigações de
Biomecânicas.
7. Notas
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A biomecânica em Educação Física Escolar Prof. Dr. Luiz Alberto