UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
KARINA LIMA SALES
AS LETRAS ALÉM DAS GRADES: Representações sobre leitura em
Memórias de um sobrevivente
SALVADOR – BAHIA
2010
KARINA LIMA SALES
AS LETRAS ALÉM DAS GRADES: Representações sobre leitura em
Memórias de um sobrevivente
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Mestrado
em Estudo de Linguagens, como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Estudo de Linguagens.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva
SALVADOR – BAHIA
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaboração: Biblioteca Teixeira de Freitas
UNEB – CAMPUS X
Sales, Karina Lima
As letras além das grades: representações sobre leitura em memórias de um
sobrevivente / Karina Lima Sales.- Salvador, 2010.
96 fl.
Orientadora: Profª Drª Márcia Rios da Silva
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Campus I.
Departamento de Educação.
Inclui referências bibliográficas
1.Leitura. 2. Leitores. 3. Leitura como prática cultural. I. Silva, Márcia
Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia. Campus I. Departamento
de Educação
CDD 410
KARINA LIMA SALES
AS LETRAS ALÉM DAS GRADES: Representações sobre leitura em
Memórias de um sobrevivente
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como
requisito para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de
Linguagens.
Aprovada em 14 de junho de 2010.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva (UNEB) – Orientadora
Prof.ª Dr.ª Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA)
Prof.ª Dr.ª Verbena Maria Rocha Cordeiro (UNEB)
Para Misak e Katherine, principais leitores de minha existência.
Com todo meu amor.
AGRADECIMENTOS
A amizade é um amor que nunca morre.
Mário Quintana
À Profa. Dra. Márcia Rios da Silva, orientadora, pela sapiência, paciência e o zelo durante
todo o processo de orientação;
À Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro, pelo pronto atendimento ao convite para fazer
parte desta Banca, desde o Exame de Qualificação, e pelas valiosas indicações de leitura, pelo
desprendimento no empréstimo dos livros e pelo carinho no acompanhamento;
À Profa. Dra. Evelina de Carvalho Hoisel, pelas sugestões prestimosas, desde o Exame de
Qualificação e pelo apoio;
Aos professores do Mestrado em Estudo de linguagens, pelo estímulo à pesquisa;
Aos colegas do mestrado, obrigada pela partilha dos momentos de estudo, pelo riso, pelo siso,
pela amizade. A todos. Em especial, Jonalva, Sayonara, Esmel, Nerivaldo, Geraldo, Raquel,
Aline, Ângela, Edna, Elisabete, Zoraide, Sandra, Fabíola.
Aos funcionários do PPGEL, Camila e Danilo, sinônimos de dedicação. Vocês sempre
estiveram presentes para qualquer coisa que precisássemos, indo além do cumprimento do
dever;
Aos colegas de trabalho do Colégio Estadual Henrique Brito, do Campus X da UNEB e da
Escola Cooperativa de Teixeira de Freitas, pelo apoio incondicional. Aos amigos dessas
instituições, o meu carinho eterno. Por tantas vezes vocês acreditaram em mim mais do que eu
mesma acreditava;
À minha família, pelo amor constante: mamãe, vovó, irmãos, cunhadas, sobrinhos, meu
marido. Vocês se sabem parte do meu sentido de viver;
A Deus, seja lá que força Ele represente. Por muitas vezes salvou-me e me salva da
desesperança e impele-me a continuar fazendo boas escolhas nos caminhos que a vida
apresenta.
Pois o desejo de ler, como todos os outros desejos que distraem
nossas almas infelizes, é capaz de análise.
Virgínia Woolf – Sir Thomas Browne
RESUMO
Neste estudo, tem-se como objeto a narrativa Memórias de um sobrevivente, do escritor Luiz
Alberto Mendes, um relato autobiográfico que encena a constituição de um sujeito leitor, com
vistas a discutir as representações sobre leitura, buscando-se um entendimento do valor dessa
prática cultural na trajetória de vida contada e organizada por um autor-narrador-personagem.
Para tanto, são eleitas as contribuições teóricas do campo da Sociologia da Leitura,
particularmente os estudos de Jean-Claude Pompougnac e Jean Hébrard, sobre a constituição
do leitor, e de Roger Chartier e Pierre Bourdieu, que compreendem a leitura como prática
cultural. Com vistas ao entendimento das representações sobre leitura, este estudo busca apoio
em Serge Moscovici, com seu conceito de representações sociais.
Palavras-chave
Leitura – Leitor – Biografia – Representações – Literatura brasileira
ABSTRACT
This study aims to analyze the narrative Memórias de um sobrevivente, by Luis Alberto
Mendes, an autobiographical account that enacts the constitution of an individual reader,
aiming to discuss the representations of reading, seeking an understanding of the value of this
cultural practice in the life‟s trajectory counted and organized by an author-narrator-character.
For this purpose, it elects the theoretical contributions of the Reading Sociology theories,
particularly the studies of Jean-Claude Pompougnac and Jean Hébrard about the constitution
of the reader, and of Roger Chartier and Pierre Bourdieu, who understand the reading as
cultural practice. With a view to understanding the reading‟s representations, this study seeks
the support by Serge Moscovici, with his concept of social representations.
Keywords
Reading – Reader – Biography – Representations – Brazilian Literature
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
1 A ESCRITA EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE: UM EU QUE SE
BIOGRAFA PELA VIA DA LEITURA ............................................................................ 22
1.1 MENDES E A ENCENAÇÃO DO EU ................................................................ 22
1.2 MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE: uma escrita marginal ............................ 34
2 OS LIVROS POR TRÁS DAS GRADES: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES
SOBRE LEITURA EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE .................................... 49
2.1 ENTRE ROMANCISTAS E FILÓSOFOS: rastros de leitura em Memórias de um
sobrevivente ................................................................................................................. 49
2.2 A ERRÂNCIA DIDÁTICA DE MENDES .......................................................... 61
2.3
REPRESENTAÇÕES
SOBRE
LEITURA
EM
MEMÓRIAS
DE
UM
SOBREVIVENTE ........................................................................................................ 68
2.3.1 Os livros além das grades: a busca pelo prestígio social ...................... 72
2.3.2 Por trás e além das grades, a salvação pela leitura ............................ 80
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 89
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 93
INTRODUÇÃO
Memórias de um sobrevivente, primeiro livro de Luís Alberto Mendes, foi publicado em
2001, quando o escritor estava com 49 anos, e refere-se a episódios de sua vida em períodos
bem demarcados, circunscritos às décadas de 1960 a meados de 1970, desde a sua infância até
por volta dos seus trinta anos e foi escrita e publicada quando seu autor vivenciava a condição
de presidiário.
A história da publicação de Memórias de um sobrevivente inicia-se em 1999, quando o
jornalista e escritor Fernando Bonassi desenvolveu oficinas literárias no Complexo
Penitenciário do Carandiru. Nas reuniões semanais que coordenava, conheceu o presidiário
Luís Alberto Mendes, participante da “turma da literatura”, como era conhecido o grupo na
prisão. Mendes sugeriu a Bonassi a realização de um concurso literário com o intuito de criar
um movimento literário no cárcere. Bonassi, com o auxílio de Drauzio Varella, Arnaldo
Antunes e o funcionário da prisão Waldemar Gonçalves, organizou um concurso de contos e
poesias, patrocinado pela Universidade Paulista (Unip). No final de 1999 os prêmios foram
entregues e na categoria conto a escolha unânime foi por “Cela forte”, de Luís Alberto
Mendes1.
Depois da premiação, Mendes entregou a Bonassi “um calhamaço coberto por uma letra
limpa e uniforme” (MENDES, 2001, p. 10), o original de Memórias de um sobrevivente2.
Bonassi afirma que começou a lê-lo como um documento da vida prisional, “na perspectiva
de quem poderia dar alguns palpites para uma eventual revisão. No entanto, longe de ser „caso
de revisão‟, era, e é, exemplo de obra acabada” (MENDES, 2001, p. 10). Bonassi mediou a
sua publicação pela prestigiosa editora Companhia das Letras.
Em suas quase 500 páginas, o livro de Mendes relata a conflituosa relação mantida com a
família, de extremo afeto com a mãe e a avó e o tratamento violento recebido do pai, a
inserção na vida criminosa desde garoto, as passagens pelo Recolhimento Provisório de
1
O conto permaneceu inédito até a sua publicação na reportagem especial Pena de sangue, da Revista Cult, em
julho de 2002.
2
Segundo depoimentos de Luiz Alberto Mendes, o livro foi escrito por volta de 1979, em um período de três
meses, foi engavetado e só revisto a partir do encontro com Fernando Bonassi.
Menores, os assaltos, as constantes passagens pelas delegacias, em que era torturado e
convivia com a corrupção de alguns policiais e a crueldade dos próprios presos. A narrativa é
um exemplo de escrita autobiográfica, o que a insere em uma tendência, um fenômeno em
contexto mundial.
Biografias suscitam grande interesse de um amplo público, atraído pelos embates, fracassos e
vitórias de existências alheias. Para Carino (1999), o sucesso do gênero é inegável, pois
narrativas de vida se mantêm em destaque há mais de 2000 anos. Desde os tempos do
neoplatônico Damaskios, no século V a.C., a quem é atribuída a cunhagem do termo
biografia, “a narrativa de trajetórias individuais permanece em destaque, suscitando interesse,
quaisquer que sejam sua forma ou as intenções que motivam sua elaboração”. (CARINO,
1999, p. 154).
Quando essa narrativa de uma trajetória é contada pelo próprio indivíduo, tem-se uma
autobiografia. Philippe Lejeune, em seu texto “O pacto autobiográfico”, define autobiografia
como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua vida individual, em particular a história de sua personalidade”. (2008, p.
14). Lejeune afirma que nessa definição entram em jogo elementos pertencentes a quatro
categorias diferentes, a saber: forma da linguagem, expressa por uma narrativa em prosa;
assunto tratado, a vida individual, história de uma personalidade; situação do autor, que seja a
vida individual do autor e do narrador, e cujo nome remeta a uma pessoa real; e posição do
narrador, em que haja a identidade do narrador e do personagem principal e a perspectiva
retrospectiva da narrativa. Lejeune considera que é uma autobiografia toda obra que preencha
ao mesmo tempo as condições indicadas em cada uma das categorias. O pesquisador francês é
uma referência incontornável para os estudos sobre as escritas do eu, gênero que mobiliza
“tanto aqueles que são atraídos pela aventura de um eu reflexivo quanto os que o consideram
uma janela privilegiada para a percepção dos microfundamentos sociais”3.
No Brasil, as publicações dos gêneros biográfico e autobiográfico vêm se consolidando e se
constituem em uma tendência, denominada por Walnice Nogueira Galvão como biografismo,
“uma tendência que surge com intensidade, em voga internacional – e que Phillippe Lejeune,
incluindo-o no âmbito do autobiografismo, tanto tem estudado”. (2005, p. 97). Galvão
considera que o biografismo é uma tendência em alta no panorama editorial brasileiro, mas
3
Texto de Jovita Noronha, publicado na orelha do livro O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, de
Philippe Lejeune, organizado pela autora citada.
com novas características. O país só conhecera um surto editorial de biografismo comparável
ao atual nas décadas de 1940 e 1950. Porém, com uma diferença essencial: tratava-se de
traduções sobre as vidas de indivíduos de outros países. Mas, desde os anos 1970, os autores
brasileiros “passam a vasculhar desvãos e personagens mais enigmáticos” (GALVÃO, 2005,
p. 97), constituindo-se o que a autora denomina de novo biografismo, escrito por brasileiros e
sobre brasileiros, tornando-se um gênero dominante e cujo foco não se dirige apenas a remoto
passado, mas a tempos presentes.
Contudo, o termo usado por Galvão remete ao biografismo excessivo que dominou os Estudos
literários durante o século XIX, quando o historicismo constituía a regra fundamental. As
obras e os autores eram encarados, para explicação, inseridos no contexto ambiental histórico,
social, geográfico, racial, biográfico. Para Afrânio Coutinho, vigorava nos estudos literários
“a teoria positivista do determinismo naturalista, que encarava o fenômeno literário pela sua
gênese, isto é, procurava interpretá-lo à luz dos fatores que lhe dariam nascimento - a famosa
trindade taineana do meio, raça, momento”. Explicada a origem, o meio em que surgia,
estaria interpretada a literatura. Além disso, a doutrina era dominada pelo “fatualismo ou a
pesquisa e levantamento dos fatos ligados ao autor, à história local, ao ambiente social”, em
que bastava saber os detalhes da vida dos autores e produção da obra, do ambiente que os
cercava, para se considerar um estudo como literário4.
Porém, a despeito do termo e de sua remissão à herança do século XIX, a discussão de Galvão
é pertinente, salienta uma tendência que se fortalece no cenário da produção literária brasileira
e esse novo biografismo analisado pela autora tem uma origem específica, dá-se a partir do
resgate da saga da esquerda - duramente reprimida pela ditadura militar que se implantou no
país em 1964 – que nos anos 1970 se desenvolveu em várias direções, destacando-se o
memorialismo e o romance-reportagem, “que demarcam os limites laterais do biografismo,
com ambos mantendo fronteiras às vezes indistintas”. (GALVÃO, 2005, p. 98). Galvão
afirma que o romance-reportagem, de modelo norte-americano, ficcionaliza eventos de
impacto midiático, em geral na área da delinquência e da contravenção. São produções
exemplificativas desse gênero Infância dos mortos e Lúcio Flávio – Passageiro da agonia, de
José Louzeiro, de 1977; Violência e repressão, de Percival de Souza, de 1978, dentre diversos
outros livros e autores. Embora dominante na década de 1970 e posteriormente suplantado
4
COUTINHO, Afrânio. Crítica de mim mesmo. Disponível em:
http://www.pacc.ufrj.br/literaria/mimmesmo.html. Acesso em dezembro de 2009.
pelo biografismo, o romance-reportagem continua atual, o que se comprova pelo êxito
alcançado por Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, publicado em 1999, além de dois
livros de Zuenir Ventura, 1968 – o ano que não terminou, de 1988, e Chico Mendes – Crime e
castigo, de 2004.
Galvão diferencia o que chama de novo biografismo daquele que as editoras nunca deixaram
de manter, cujo temário pouco varia, enfatizando a vida de figuras históricas, nacionais e
estrangeiras ou a linha de biografados suscitada pelo efemeridismo, conceituado pela autora
como a “mania midiática de festejar datas”. Um dos filões explorados por esse gênero versa
sobre a vida de empresários reputados, políticos poderosos, ou a saga de jogadores de futebol
ou dos próprios clubes. Segundo a autora, o êxito de mercado e as altas tiragens que tais livros
alcançam levam à cogitação de que seu o estilo possa se beneficiar de ainda outro ingrediente
ficcional: “[...] De fato, parece ter migrado para o biografismo aquilo que tornava atraente o
romance do século XIX, ao privilegiar um herói e os anos de sua formação, [...]” (GALVÃO,
2005, p. 110).
A discussão empreendida por Galvão remete a um fato importante. A crescente publicação de
livros representativos dos gêneros biográfico e autobiográfico, no Brasil, pode ser relacionada
ao fenômeno mundial de explosão dos gêneros. Interessa, aqui, a tendência específica de
publicações de autobiografias pautadas nas experiências de vida em espaços-limite de
sobrevivência, como os presídios. Nosso sistema prisional mantém encarceradas mais de
473.000 pessoas, com crimes e penas variáveis5. Muitas dessas pessoas encontram na escrita
uma forma de exorcizar um pouco das angústias e traumas vivenciados, transformando a
palavra em um “túnel de fuga espiritual”, segundo Luís Antônio Giron, uma maneira de
expurgar um pouco da dor que sentem e “ocupar o tempo de cela”, em um sistema tão carente
de programas efetivos de ressocialização6. Dessa escrita oriunda do cárcere tem surgido uma
produção sedutora, que tem fascinado público e acadêmicos que se debruçam sobre os textos,
tentando entender o fenômeno emergente. Esses novos autores têm idades entre 20 e 70 anos
e alguns se destacam pelo volume e qualidade de sua escrita, como Luiz Alberto Mendes,
5
Em dezembro de 2009, havia mais de 473 mil pessoas presas, vivendo em condições deploráveis nas quase 295
mil vagas oferecidas em 1.779 estabelecimentos penais no País. Segundo as estatísticas do Sistema Integrado de
Informações Penitenciárias, divulgadas pelo DEPEN, Departamento Penitenciário Nacional, o déficit de vagas,
que era de 174 mil, em 2008, ficou em quase 179 mil no final de 2009. E a estimativa é de que a situação vá se
agravar, uma vez que há cerca de 490 mil mandados de prisão expedidos pela Justiça, que ainda não foram
cumpridos pela polícia. Informações disponíveis em: http:// www.portal.mj.gov.br/depen. Acesso em janeiro de
2010.
6
GIRON, Luís Antônio. Pena de sangue. Revista Cult, Ano VI, n. 59, p. 34 a 44.
Hosmany Ramos, Jocenir, William da Silva Lima, Humberto Rodrigues e André du Rap.
Todos esses presidiários autores guardam algumas semelhanças em suas condições. São
oriundos de famílias economicamente desfavorecidas, apresentam baixos níveis de
escolaridade, envolveram-se com a criminalidade geralmente ainda na infância, cometeram
delitos graves e começaram a escrever na prisão7.
As obras produzidas por esses escritores alcançam boa aceitação junto ao público,
transformando-se, boa parte delas, em fenômenos editoriais. Esse fenômeno parece ter suas
raízes na publicação, em 1999, do romance-reportagem Estação Carandiru, do médico
Dráuzio Varella, que escreveu esse livro pautado em sua experiência como médico voluntário,
desde 1989, na Casa de Detenção de São Paulo e conta o que ouviu dos presos ou o que
presenciou e termina relatando o massacre do Carandiru. O livro foi editado pela Companhia
das Letras e transformou-se em um dos maiores fenômenos editoriais brasileiros, com mais de
470 mil exemplares vendidos e foi laureado com o Prêmio Jabuti 2000 de Livro do ano de
não-ficção.
A partir do início dos anos 2000, as obras produzidas por indivíduos marginalizados
socialmente, com experiências no cárcere, cumprindo pena, vêm alcançando cada vez mais
espaço nesse mercado, sendo muitas, inclusive, publicadas por editoras de prestígio e
chanceladas por pessoas renomadas8. Parece haver uma enorme curiosidade por esse tipo de
produção, demanda habilmente aproveitada pelas editoras que, em suas campanhas de
divulgação, costumam apresentar as obras com tarjetas vermelhas, em uma estratégia
mercadológica, anunciando a autoria presidiária ou o acontecimento tratado na obra, como as
baseadas no massacre do Carandiru. Essa curiosidade pode estar associada a uma negação da
violência como fato real, por isso é lida como ficção.
Contudo, as produções oriundas do cárcere são perpassadas por uma violência real, embora
ressignificada por meio da escrita. A violência, que aumenta vertiginosamente em contexto
mundial, é um fenômeno de grande complexidade. Segundo Pereira, Rondelli e Schollammer
(2000), é preciso reconhecer uma clara articulação entre violência e cultura, para se tentar
7
Dentre os nomes citados, apenas Hosmany Ramos possuía uma situação diferenciada. Originário de família
pobre, a duras penas concluiu o curso de Medicina e era prestigiado cirurgião plástico, assistente de Ivo
Pitanguy, quando foi preso em 1981, acusado de roubo, tráfico internacional de drogas e assassinato.
8
A obra Memórias de um sobrevivente, de Luís Alberto Mendes, teve a sua publicação pela Companhia das
Letras, mediada pelo escritor Fernando Bonassi; André Du Rap escreveu Sobrevivente com a colaboração do
escritor Bruno Zeni e a publicou pela Labortexto. Em Diário de um detento: o livro, de Jocenir, o prefácio foi
escrito pelo médico Dráuzio Varella, após a notoriedade alcançada com a publicação de Estação Carandiru.
compreender o papel e o sentido que a violência possui, como se manifesta, dentro da
perspectiva da dinâmica cultural de uma sociedade contemporânea. Para os autores, a
violência precisa ser analisada sob uma dupla perspectiva, em virtude do paradoxo em que ela
se inscreve, especialmente no Brasil:
Por um lado, surge como realidade alheia e hostil à realização mais plena das
tentativas democratizantes da sociedade em todos os níveis, da
marginalização do pequeno criminoso até a repressão militar de conflitos
trabalhistas. Por outro, a violência aparece como expressão limite de
articulações culturais dinâmicas, a opção para reivindicar exigências sociais
justas, a forma de representar novas identidades culturais ou ressimbolizar a
situação de marginalidade, dando, assim, início a uma tentativa de superação
da exclusão social. (PEREIRA, RONDELLI, SCHOLLAMMER, 2000, p.
15).
Interessa, nesse estudo, a segunda perspectiva. Analisando o que leva os detentos à tentativa
de publicação de seus escritos, é possível estabelecer hipóteses diversificadas. Ao mesmo
tempo em que essa nova escrita pode representar o aproveitamento de uma demanda
específica – o crescente interesse do público por livros biográficos e autobiográficos
representativos de segmentos marginalizados da sociedade, como o presidiário -, também se
pode relacionar esse movimento, que ganha cada vez mais adeptos, como uma possibilidade
de conquistar um espaço de reconhecimento. À medida que a sociedade lê tais obras, toma
contato com uma parte do extenso universo dos marginalizados e percebe que os excluídos
tentam “se fazer ouvir”, buscam superar a condição de exclusão social que vivenciam: “Cala a
boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta e na moral agora a gente escreve”
(FERRÉZ, 2005, p. 9). A publicação das obras, segundo Maria Rita Sigaud Palmeira (2008),
está assentada sob o signo da ambivalência. Por um lado, os detentos atrelam-se ao mundo
prisional, com seus códigos de conduta e, por outro, almejam alcançar o além-muro da prisão,
buscando o reconhecimento de suas existências por via da publicação de seus escritos.
Não há consenso se essa produção é de fato literatura ou não, embora alguns estudos
comecem a se aprofundar em defesa da produção dos excluídos como literatura, posição
endossada por acadêmicos como Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, Eneida
Leal Cunha, da UFBA e Andrea Saad Hossne, da USP, entre alguns outros. Essas estudiosas
questionam, por exemplo, porque é literatura uma escrita produzida por um escritor de classe
média, pautada em suas experiências, no entanto, quando essas mesmas experiências referemse a presos, a escrita torna-se testemunho.
Pretende-se analisar a obra Memórias de um sobrevivente considerando-a como
exemplificativa da vertente de literatura marginal contemporânea. Entende-se por marginal,
aqui, uma produção escrita oriunda de grupos sociais relegados à margem da sociedade, como
o carcerário, do qual fez parte o autor de Memórias de um sobrevivente, o ex-presidiário Luís
Alberto Mendes. A definição de literatura marginal, nesse contexto, foi cunhada por um
representante dessa escrita à margem da “boa literatura”, Ferréz, autor de Capão pecado, que
a divulgou inicialmente no seu “Manifesto de abertura: Literatura Marginal”, na Revista
Caros Amigos / Literatura Marginal, Ato I: “A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é
uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à
margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, de grande poder
aquisitivo” (FERRÉZ, 1998, p. 3).
Ferréz associa a produção escrita dessa minoria ao exemplo do escritor Franz Kafka, hoje
considerado um dos maiores escritores de ficção em língua alemã do século XX, mas que, à
época de publicação de seus livros, foi classificado pela crítica como produtor de uma
literatura menor, literatura feita pela minoria dos judeus em Praga, mas em uma língua
“maior”, o alemão. Ferréz não aceita o epíteto de literatura menor: “Hoje não somos uma
literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita por
maiorias, numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos” (FERRÉZ, 2005, p. 9).
Memórias de um sobrevivente não é literatura menor, como salienta Ferréz acerca da
produção dos marginalizados. É uma produção escrita que sinaliza para a tentativa de inserção
em uma condição específica, socialmente prestigiada, a de escritor. No epílogo, Luís Alberto
Mendes afirma que o seu propósito não é apenas partilhar sua experiência de aprisionamento,
seu desejo é tornar-se escritor: “Passaram-se mais de vinte anos do final do relato que fiz da
minha vida. Muita água rolou por baixo da ponte, nesse tempo. Daria para fazer um novo
livro. Talvez até venha a fazê-lo, não se sabe do futuro” (MENDES, 2001, p. 471). E Mendes
o fez.
Em 2005, Luiz Alberto Mendes publicou, também pela Companhia das Letras, Às cegas, uma
espécie de continuação de Memórias de um sobrevivente, em que conta a experiência que o
levou à escrita e ao trabalho voluntário e também mostra como encontrou nas amizades e nas
relações amorosas um antídoto contra o desespero. A narrativa acompanha um período que
vai de sua aprovação no vestibular de Direito, em 1982, às suas primeiras tentativas literárias,
já nos anos 1990. O livro foi finalista do Jabuti 2006, prêmio de prestígio no meio intelectual
brasileiro. Mas sua experiência como escritor não se resume a esses dois livros. Em 2004, já
havia publicado Tesão e Prazer: memórias eróticas de um prisioneiro, pela Geração Editorial
e, desde 2002, Luiz Alberto Mendes assina uma coluna na Revista Trip e, a partir de 2009, um
blog, o Mundo Livre, no site da revista. O autor afirma que ainda possui para publicação um
último livro de memórias e cinco outros livros, de contos, crônicas e literatura infanto-juvenil.
Concluiu a produção de uma peça, um monólogo em quatro atos, intitulado A passagem, que
já estreou em São Paulo, com o ator João Signorelli. Concluiu outra peça, Dois mundos, em
estudo com o Grupo Teatral Nois do Morro, do Rio de Janeiro.
Há que se considerar que a recepção crítica, em relação a Memórias de um sobrevivente, foi
significativa, com divulgação em publicações prestigiadas no meio intelectual. O Jornal Folha
de São Paulo dedicou-lhe três reportagens, em 28 de abril de 2001, nas proximidades da data
de publicação. A primeira delas “Condenados escolhem a literatura como saída para suas
buscas”, das jornalistas Cynara Menezes e Sylvia Colombo, comenta os livros de Luiz
Alberto Mendes e Hosmany Ramos, Memórias de um sobrevivente e Pavilhão 9,
respectivamente; a segunda e a terceira, "Memórias de um Sobrevivente chega em maio às
livrarias” e “Memórias de um sobrevivente dialoga com a história recente do país”, de Sylvia
Colombo, enfatizam positivamente a produção de Mendes e uma delas traz ainda uma
entrevista concedida pelo escritor, na prisão.
A nova safra de escritos que representam o mundo do cárcere, dentre eles Memórias de um
sobrevivente, conquistou espaço na mídia impressa, em jornais e revistas. Em dezembro de
2002, a Revista Cult publicou uma matéria de capa intitulada Vozes da prisão, sobre a
literatura emergente dos espaços prisionais, com destaque para a produção de Luís Alberto
Mendes. De 1998 a 2004, em parceria com a Revista Caros Amigos, Ferréz organizou a
divulgação da cultura da periferia, com autores marginalizados, entre eles alguns presidiários
ou ex-presidiários, em uma revista intitulada Literatura marginal, que teve três números
publicados e também dá nome a uma editora a serviço da divulgação dessa cultura
denominada periférica.
As publicações de Luiz Alberto Mendes, em especial Memórias de um sobrevivente, têm
conseguido também suscitar o interesse de parte da crítica acadêmica, que analisa aspectos
diversos perceptíveis nessa primeira narrativa de Mendes, destacando a sua produção dentre a
grande leva de novos escritos que emergem do cárcere na contemporaneidade, baseados nas
experiências de aprisionamento de sujeitos que cometeram delitos graves e transformam suas
lembranças em livros, representativos da sobrevivência em situações-limite. O acolhimento
recebido pela obra em estudo ao longo desses nove anos, desde a sua publicação, demonstra
que a recepção acadêmica de Memórias de um sobrevivente é significativa, porém ainda
restrita.
Embora o boom, no mercado editorial, dessa literatura oriunda da prisão tenha se iniciado
desde o começo dos anos 2000, somente nos últimos quatro anos aparecem alguns trabalhos
pontuais sobre esse tipo de produção, especificamente em algumas instituições. A
UNICAMP, por exemplo, desenvolve inúmeros estudos dentro dessa abordagem e alguns
grupos de pesquisa, como o Escritas da Violência - do qual fazem parte, dentre outros,
Márcio Orlando Seligmann-Silva e Regina Dalcastagné -, realizam pesquisas diretamente
relacionadas à produção dos presidiários autores. Andrea Saad Hossne, da USP, também
realizou pesquisa sobre esse tipo de publicação9.
Eneida Leal Cunha, da UFBA, desenvolveu um estudo interessante sobre essa literatura
oriunda do cárcere. Em um texto intitulado Narrar ou morrer: sobrevivências do sistema
penitenciário brasileiro, estabelece um nexo entre a ideia da contação de histórias, por
Sherazade, como condição de sobrevivência e as narrativas produzidas na prisão, também
oriundas de um lugar frágil e ameaçado, constituídas como lances contra a morte ou apostas
em alguma sobrevivência, em situação de atrito com a paisagem literária canônica ou
instituída. A autora parte de duas questões principais e interconectadas. A primeira, como
podem ser lidos, a partir da ótica institucional, acadêmica e disciplinar, esses textos exitosos
no mercado editorial que articulam a emergência de autores no exterior da comunidade letrada
erudita; a segunda, o que narram e como narram suas histórias de delinquência, fora e dentro
9
A pesquisadora da USP escreveu uma apreciação crítica sobre Memórias de um sobrevivente e estabelece uma
relação entre Lima Barreto e o seu livro Recordações do escrivão Isaías Caminha, Dostoiévski, com a obra
Recordações da casa dos mortos e Luís Alberto Mendes e suas Memórias de um sobrevivente. A autora compara
as estratégias utilizadas por Lima Barreto e Dostoiévski nas obras citadas e chama a atenção para o fato de que a
crítica, o público e os próprios autores consideram as obras em foco como pertencentes à literatura, ainda que
lidando com as fronteiras entre literatura e documento. Mas, de acordo com Hossne, esse automatismo se rompe
e se expõe quando o objeto em análise não foi alçado ao panteão literário. Nesse caso, já não se denomina essa
experiência como a de autores na prisão, ou narradores, ou personagens, como em Lima Barreto, e sim como
presidiários autores, pois aquele que escreve a obra vivencia a condição de encarcerado e essa condição
precede e preside a da escrita e é o que ocorre com a safra de livros, denominada de nova escrita no cárcere.
da prisão. Não analisa especificamente a obra Memórias de um sobrevivente, faz uma análise
mais generalizada das escritas saídas das prisões brasileiras desde o início dos anos 2000. A
autora baseia-se em Alberto Moreiras e sua discussão sobre a aura do testemunho para
estabelecer uma relação com a literatura de testemunho que se produz no Brasil
contemporaneamente, oriunda do sistema prisional. Para Cunha, Moreiras, em sua variedade
de análises, comprova a premissa de que o testemunho tornou-se objeto nobre para os
departamentos e os estudiosos da literatura, na crise do literário. Porém registra que não há
uma cabal afinidade entre os testemunhos a que o crítico se refere e a produção brasileira
referida por ela, principalmente devido ao modo de circulação10.
Porém, o interesse por essa produção emergente é ainda restrito, aspecto aqui associado a uma
marcada condição de marginalidade desses escritos. Marginalidade não só no sentido de que é
uma produção escrita por pessoas em situação de marginalização, como também pelo fato de
a própria produção não receber plena aceitação dos espaços acadêmicos, sendo considerada
por muitos como um subgênero, um modismo e sequer ser aceita pela historiografia literária,
que possui critérios de seleção e inclusão de obras baseados em valores da cultura
hegemônica. Ainda há muito caminho a ser desbravado nesse sentido.
Em Memórias de um sobrevivente, Mendes não reconstitui apenas sua experiência na prisão,
há uma retomada de sua trajetória antes de ser preso, em uma espécie de encadeamento, como
a delinear o que o colocou no cárcere. E a sobrevivência, anunciada já no título, acontece,
não pela via da libertação, uma vez que quando o livro foi publicado o autor encontrava-se
preso. Mendes é um sobrevivente, e para ele essa salvação só foi possível graças à leitura.
Segundo o autor, foi a sua relação com a leitura e a escrita que o ajudou a enfrentar as
10
Eneida Leal Cunha chama a atenção para o fato de que Moreiras, em seu ensaio, discute a categoria
"testemunho" a partir da análise das repercussões críticas do relato de Rigoberta Menchú e, a partir dele, o
destaque para as narrativas que, nas décadas seguintes, emergiram como "forma primária de manifestação
cultural para uma grande variedade de movimentos sociais, cuja política é identitária." (MOREIRAS, 2001, p.
278). Para Moreiras, a enunciação periférica ou marginal do testemunho, associada ao "apelo direto a uma dor
não-exemplar, [...] além de qualquer possibilidade de representação", produz a sua dimensão extraliterária, e
oferece ao leitor "uma possibilidade inesperada de real", "um cerne de experiência", uma "reivindicação política
mais premente" (p. 254). Segundo essa perspectiva, os testemunhos são textos que geralmente circularam
primeiro entre um grupo social restrito, que compartilha o seu "enredo". Geralmente chegam ao grande público
com, no mínimo, o aval de estudiosos das ciências humanas e sociais, que os legitimam e publicizam - às vezes
se apresentam até como os tendo "descoberto". Entretanto, os livros oriundos do cárcere, aos quais se refere
Cunha, embora tenham todos eles um patrono ou um intermediário que não compartilha da condição de seus
autores, estão chegando até estudiosos da literatura e da cultura em grande parte já consagrados como fenômeno
editorial e mercadológico. Estão em todas as prateleiras de livrarias e estiveram em toda a mídia. Se isto
acontece, é porque de alguma forma correspondem a uma demanda especial de leitores ou consumidores que
também não compartilham - pelo menos não compartilham diretamente, enquanto protagonistas - da experiência
narrada, diferentemente da categoria analisada por Moreiras.
angústias do cárcere, o que aponta para um processo de perlaboração do trauma, sob a chave
freudiana.
Embasado na Sociologia da Leitura, esse estudo retoma pesquisadores que concebem a leitura
como prática social e a investigam, analisando, por exemplo, a história do livro, suas
condições de produção e circulação; as práticas de leitura e suas variações socioculturais, bem
como suas representações. A Sociologia da Leitura também considera os fatores sociais que
interferem no processo de formação do leitor, além das características desse público leitor
conforme sua condição social, cultural, etária, sexual, profissional, entre outros. Nesse
sentido, a análise aqui proposta dialoga explicitamente com as pesquisas desse campo de
conhecimento.
Pretende-se, nesse estudo, analisar as representações sobre leitura em Memórias de um
sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, de modo a entender o valor que a leitura assume nessa
trajetória de vida contada e organizada a partir da voz do autor-narrador-personagem.
O objetivo desse trabalho foi deflagrado a partir de uma questão que norteou a pesquisa: Que
representações sobre leitura são apresentadas na obra Memórias de um sobrevivente e como se
relacionam ao processo de constituição do leitor-narrador, durante sua inserção no sistema
prisional, relatado em uma escrita autobiográfica? Essa questão direciona o estudo para dois
focos centrais: Como a leitura constitui Mendes como sujeito e o leva a um processo de autoreflexão, deflagrando uma “escrita de si”, uma narrativa autobiográfica que tenta reconstituir
sua trajetória pessoal. Por outro lado, as representações sobre leitura que podem ser
depreendidas a partir do modo como o autor delineia sua relação com o mundo letrado.
Serge Moscovici (2003, p. 58) afirma que as representações constituídas pelas pessoas são
sempre o resultado de um constante esforço para tornar comum e real algo que não o é, que se
apresenta como não-familiar ou denota uma sensação de não-familiaridade. Segundo o autor,
ao se estudar uma representação, deve-se sempre buscar descobrir a característica nãofamiliar que a motivou e que a representação absorveu. Por meio da análise da narrativa
autobiográfica, em que Mendes expõe como se constituiu leitor, foi possível delinear duas
representações sobre leitura. Uma delas é a da leitura como salvação, dado o valor altamente
positivo atribuído pelo escritor ao ato de ler, a leitura é apresentada como uma experiência
vital. A outra é a possibilidade de prestígio social em decorrência do que se lê, questão
relacionada à prática de leitura que ocorreu na prisão, associada à busca de um
reconhecimento da sociedade além muros da prisão, através da publicação do livro.
O trabalho foi dividido em dois capítulos. No primeiro capítulo, A escrita em Memórias de
um sobrevivente: um eu que se biografa pela via da leitura, analisa-se a escrita na obra sob
um duplo olhar. De início, a autobiografia como uma possibilidade de reconstrução do eu, já
que, através da escrita, o eu se revê, analisando-se. Para embasar essa análise, o estudo se
fundamenta principalmente nos teóricos Philippe Lejeune e Luís Costa Lima, em suas
pesquisas sobre o estatuto da autobiografia. O outro enfoque analisa a escrita em Memórias de
um sobrevivente como uma produção marginal, tanto no que se refere ao lugar de origem de
sua autoria, pois o autor escreve de um espaço marginalizado socialmente, quanto à condição
de marginalização da própria obra, no que concerne à sua aceitação ainda restrita pela
comunidade acadêmica. Para embasar as afirmações, o texto pauta-se em Alfredo Bosi e
Márcio Seligmann-Silva, em textos que discutem a literatura de testemunho, relacionando-a
ao caráter da literatura marginal.
No segundo capítulo, Os livros por trás das grades: práticas e representações sobre
leitura em Memórias de um sobrevivente, enfoca-se a importância da leitura na obra
Memórias de um sobrevivente, de Luís Alberto Mendes, sob três aspectos. O primeiro referese aos rastros de leitura perceptíveis na obra, em que se pretende delinear o papel da leitura
nos espaços sociais nos quais o autor esteve inserido. Para tanto, embasar-se-á em estudos de
Roger Chartier e Pierre Bourdieu sobre a leitura como prática cultural; na noção de capital
cultural de Pierre Bourdieu e nas contribuições de Jean Hébrard acerca da experiência da
leitura. Sob um segundo aspecto, focaliza-se a leitura na obra partindo da perspectiva de
análise de Memórias de um sobrevivente como um relato de aprendizado autodidata, segundo
Jean-Claude Pompougnac, observando-se o processo de constituição do leitor-narrador, a
partir de seu contato com os livros quando estava preso. O último aspecto discutirá
representações sobre leitura perceptíveis na obra, ancorado na Teoria das Representações
Sociais, de Serge Moscovici, e em estudos da Sociologia da Leitura.
Espera-se que esse trabalho possa contribuir para o estudo das produções literárias oriundas
de espaços marginalizados, enfatizando a questão de que a cultura periférica, representada
pela literatura marginal, vem conquistando significativos espaços no cenário da literatura
nacional. Essas produções podem, quem sabe um dia, contribuir para a ampliação do conceito
de literatura, por tanto tempo restrito aos valores de uma cultura dominante.
1 A ESCRITA EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE: UM EU QUE SE
BIOGRAFA PELA VIA DA LEITURA
1.1 Mendes e a encenação do eu
O escritor Luís Alberto Mendes assina a escrita de Memórias de um sobrevivente e convertese em narrador e personagem do livro, configurando o pacto autobiográfico, de Philippe
Lejeune: “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é
preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”.
(LEJEUNE, 2008, p. 14). As informações e acontecimentos são passíveis de verificação, a
começar pela condição de presidiário do narrador, cuja passagem pela Casa de Detenção de
São Paulo, o Carandiru, foi registrada sob o prontuário 068.120, alocado no Pavilhão quatro
da instituição.
Nessa autobiografia, a escrita - intimamente relacionada à leitura, vez que foi deflagrada pelo
processo de constituição do leitor Luís Alberto Mendes, assume uma posição de destaque, por
ser, antes de tudo, uma condição de sobrevivência. Mendes, assim como outros presidiários
autores, leu e escreveu para sobreviver, para enfrentar uma situação adversa e, de certa forma,
enfrentar o próprio tempo, inimigo dos que estão aprisionados, e enfrentar uma morte em
vida, dada a condição de privação da liberdade.
A escritora Patrícia Melo, em depoimento ao livro O lugar do escritor, afirma: “A ideia da
morte está sempre presente no trabalho artístico. Ela é transfigurada, maquiada, disfarçada,
mas está sempre presente. A morte, assim como o amor, é uma espécie de roda da literatura”
(CHIODETTO, 2002, p. 57). A escritora, citando Martin Heidegger, diz que o homem é um
ser condenado à morte e essa condenação é carregada pelos seres por toda a vida e, no caso
dela, é o que a obriga a escrever.
A escrita de Mendes deixa transparecer o tema da morte como a roda da literatura que move o
seu fazer artístico. A morte rondava de perto a sua existência: “Sentia estar morrendo em
vida” (p. 109). Por isso, para o autor, escrever é dolorido, porque pressupõe um reviver da
dor, é colocar em carne viva todas as feridas, como o autor afirma em Memórias de um
sobrevivente e reitera em Às cegas: “[...] Cada linha foi extraída como que com unhas, de
grossas paredes. Parei muitas vezes. Ficava dias sem escrever. Em recuperação. Quando me
sentia forte, retomava. A história foi se desenrolando”. (MENDES, 2005, p. 239).
Considerando o conceito freudiano de perlaboração do trauma, é possível afirmar que a
escrita do texto permite a Mendes perlaborar o passado traumático. Em Inibições, sintomas e
angústias (1980 [1926]), Freud relaciona a perlaboração a uma “resistência do inconsciente”:
uma vez que o ego decide abrir mão das resistências, segue-se um período de “esforço tenaz”,
denominado por Freud de perlaboração, que é um processo inconsciente.
Sendo assim, por meio de sua escrita autobiográfica, pautada em suas memórias, é possível a
Mendes essa perlaboração e esse processo produz um conhecimento que só é possível graças
ao distanciamento temporal do vivido, o que remete ao conceito de a posteriori, marca do
pensamento freudiano, indicativo de uma dessimetria entre o fato ocorrido e a lembrança
construída acerca desse fato. Sob essa chave, a construção das lembranças de Mendes acerca
dos fatos vivenciados por ele deve-se à incidência do trauma, entendido como o núcleo de
experiências para as quais não haveria possibilidade de representação, por isso, o valor
traumático das experiências não pode ser pensado em relação aos fatos ocorridos, mas à
lembrança elaborada ulteriormente acerca deles.
A escrita, então, torna-se uma possibilidade de auto-análise. O escritor Orhan Pamuk (2007)
define o escritor como alguém que passa anos tentando descobrir um segundo ser dentro de si
e o mundo que o faz ser quem é. Para Pamuk, escrever “é transformar em palavras esse olhar
para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si
mesma” (PAMUK, 2007, p. 13). Na escrita de Mendes esse olhar para dentro está presente. É
ele quem deflagra a sua produção: “A idéia de escrever minha vida foi automática. Escrever
para mim mesmo, para ninguém mais. Sem receio de ser punido ou censurado. Precisava
entender o que havia acontecido. Iria escrever minha história para me conhecer” (MENDES,
2005, p. 237)
A escrita de Memórias de um sobrevivente é autobiográfica, e o autor a situa como uma
possibilidade de reconstrução do “eu”, pois, escrevendo, revê a própria trajetória. A
autobiografia permite que o “eu” passe a sua vida a limpo, observando a transformação do
que ele era no que ele é: “Escrever tem sido meu alimento e minha alma exposta”; “Eu
necessito escrever porque sinto prazer em expor o que me vai por dentro”11. Esse estudo não
11
Fragmentos de entrevista concedida à revista CULT, nº 59, em julho de 2002.
assume uma posição ingênua de que a reconstrução do eu empreendida por Mendes, em sua
autobiografia, não seja pautada pela pessoalidade. Toda a construção da narrativa obedece aos
interesses pessoais de seu escritor, a seleção dos acontecimentos liga-se intimamente ao seu
propósito de se reconstituir, pela escrita, refletindo sobre a sociedade na qual estava inserido e
seus mecanismos de funcionamento. Por isso, há que se considerar sempre a condição de um
exemplo de escrita autobiográfica, como sempre o é, estar sujeita a vazios e distorções, uma
vez que o sujeito, autobiografando-se, encena-se e dramatiza-se.
Embora alguns traços do biográfico ou do autobiográfico possam ser encontrados desde a
Antiguidade Clássica, o gênero é considerado por variados teóricos como um fenômeno
tipicamente ocidental situado a partir do Renascimento, quando surgem as condições efetivas
para que a biografia e a autobiografia possam se afirmar como forma discursiva, pois, até fins
do século XVI, não havia uma literatura da “interioridade”. Sobre esse aspecto, Luís Costa
Lima, em seu texto Júbilos e misérias do pequeno eu, afirma que a partir do Renascimento o
indivíduo se encontra perante si, e conclui que, no campo da autobiografia, o indivíduo
moderno só vai ter sua presença inconteste no século XVIII, apontando Rousseau como o
paradigma da autobiografia.
Segundo Costa Lima (2007), Confessions, de Rousseau, apresenta um desvendamento do eu
pela sondagem de suas motivações, por mais remotas, ocultas ou desagradáveis que pudessem
se apresentar. Nesse livro, de acordo com Costa Lima, Rousseau emprega uma espécie de
causalidade psíquica que será incorporada às expectativas que acompanharão o gênero
autobiográfico: para que se possa conhecer um homem na maturidade avançada, é preciso
aprender a se ver já na infância. Dessa forma de causalidade derivará a ideia de a
autobiografia ser o “documento de uma vida, narrado pelo mais competente de seus
narradores” (COSTA LIMA, 2007, p. 490).
Costa Lima analisa que, desde a conversão da individualidade em valor, pela cultura
ocidental, a impaciência de viver aumentou a impaciência de se contar e a variante mais
frequentada pelas produções autobiográficas é aquela em que o indivíduo não se contenta com
o que não seja seu retrato de corpo inteiro. Para Costa Lima, memórias e autobiografias são
substitutos dos espelhos. Se estes são implacáveis, assinalando o desgaste dos traços e
apresentando todas as características desnudadas, aquelas permitem que nos fechemos contra
a maldade dos espelhos e procuremos nos rever no que fomos, “como se o percurso da antiga
paisagem nos capacitasse a nos explicar ante nós mesmos” (COSTA LIMA, 2007, p. 455).
Essa metaforização efetuada por Costa Lima pode ser relacionada ao livro em estudo. Luís
Alberto Mendes, em Memórias de um sobrevivente, sua primeira experiência escrita, tenta
desvendar-se, mergulhando em um processo de sondagem de suas motivações, na tentativa de
se (re) conhecer. Sua narrativa refere-se a episódios de sua vida em períodos bem
demarcados, mas sua análise parte da infância, como se observando a si próprio menino
pudesse conseguir pistas que o auxiliariam a se conhecer homem, em todos os seus conflitos.
A tarefa de lembrar os acontecimentos que o envolveram, de retomar sua “tragédia pessoal”,
traz a necessidade do enfrentamento, por parte do narrador, do sofrimento experimentado. Por
outro lado, o estabelecimento da autobiografia como substituto do espelho, na acepção de
Costa Lima, permite, ao narrador, a seleção de fatos que possam reconstituir esse eu perdido,
é preciso considerar que a descrição lida em Memórias de um sobrevivente é fruto da visão
pessoal, fechada contra a “maldade dos espelhos”. Embora seja um “retrato de corpo inteiro”
do protagonista, não se pode esquecer que os traços que constituem essa imagem foram
selecionados pelo retratado, o qual se (re) constitui.
No processo de reconstituir-se, a infância assume importância ímpar, pois é nessa fase que
Mendes inicia-se no mundo do crime, assunto sobre o qual gravita a narrativa. O narrador, no
início do relato, apresenta sua família, expondo a visão que seus pais tinham dele durante
fases de sua infância, registrando que até os seis anos era visto como santo, pela mãe, e como
débil mental, pelo pai, por ser uma criança quieta. Porém, o narrador relata que ao ir para a
escola esse comportamento modificou-se de santo para diabo e vivia em conflito com a
disciplina imposta à base de castigos físicos pela professora. Estabelece-se, a partir daí,
também o relacionamento conflituoso com o pai, que bebia e, sempre que chegava bêbado em
casa, tornava-se agressivo e violento, batendo constantemente no filho. Na percepção do
narrador, para seu pai “espancar era o melhor, se não o único, método de educar filhos”
(MENDES, 2001, p. 15)12. E é essa relação tumultuada que acende desde cedo no menino o
sonho de liberdade.
Para Luisinho, como era conhecido na infância, a casa era uma prisão imposta pelo pai e, por
isso, fugia para jogar bola, empinar pipa ou caçar passarinho, mesmo sabendo que seria
castigado pelo pai por ter saído. A mãe, figura dócil, não encontrava forças para enfrentar o
marido, mas era seu referencial de amor e carinho, junto com a avó materna, que ajudava a
12
As referências a Memórias de um sobrevivente são extraídas dessa edição. Desse momento em diante, somente
haverá indicação das páginas das passagens retiradas do livro.
sustentá-los, colaborando no aluguel e colocando comida à mesa, uma vez que “seu Luís”, o
pai, devido ao comportamento violento e ao problema com o alcoolismo, não conseguia
trabalhar por muito tempo em emprego nenhum. As mulheres, na família Mendes, exercem
papel primordial, são elas o referencial de equilíbrio, carinho e responsabilidade.
O narrador relata que com sete, oito anos começou a roubar, de início dos próprios pais, da
carteira da mãe e do bolso do pai, sempre que este desmaiava, bêbado, sem nunca ter sido
descoberto. E essa impunidade levou-o a ficar cada vez mais audacioso, cometeu o primeiro
roubo a uma loja e intensificou suas atividades criminosas. Aos dez anos, sua necessidade de
dinheiro “aumentava geometricamente” (p. 30). Continuava a roubar os pais, a tia, a avó e os
vizinhos, seus furtos já eram percebidos na família, foi pego com coisas roubadas, apanhou
muito por isso, mas não parou, precisava “comprar suas relações”, não sabia conquistar
amigos. É nessa fase, por volta dos onze, doze anos, que os pais decidem que deveria
trabalhar e estudar à noite e ocorrem as primeiras fugas, a segunda delas, para não apanhar,
quando os pais descobrem que fora expulso do colégio, por faltas e ausência de pagamento,
que Mendes desviava para pagar sua diversão na cidade. Essa segunda fuga leva-o ao
primeiro recolhimento pelo Juizado de Menores, tendo sido encaminhado ao SAT, Serviço de
Assistência e Triagem da cidade de São Paulo, local para onde eram levados menores de
catorze anos que viviam de pequenos roubos.
Desde então, imergiu cada vez mais no mundo da criminalidade, envolvendo-se em roubos
mais complexos e aplicando golpes nos locais em que conseguia trabalho como office boy.
Possuía uma necessidade premente de dinheiro, desejava os bens de uma sociedade de
consumo. Mas agia sempre com medo de ser enviado ao RPM, Recolhimento Provisório de
Menores, para onde acaba sendo levado pela primeira vez, por volta dos quinze anos, e
experimenta a “lei da borracha” e do terror consequente.
Em Memórias de um sobrevivente, Mendes expõe um regime prisional que tem explicação em
Foucault (2006). Em Vigiar e punir, Michel Foucault relaciona a história da prisão ao poder
de punir, registrando a transição dos processos de punição, desde a época medieval, com a
violência física aberta ao público, espetacularizada, pela via do suplício dos corpos, até a
adoção das instituições penitenciárias da modernidade e paulatinamente a substituição do
flagelo corporal pela ênfase na supressão da liberdade e o castigo da alma:
A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal,
provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária
e entra no campo da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua
fatalidade, não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve
desviar o homem do crime e não o abominável teatro; a mecânica exemplar
da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume a
parte da violência que está ligada a seu exercício. (FOUCAULT, [1975]
2006, p. 15)
Em um contexto mais atual, pautado nas bases legais e nos preceitos de órgãos de direitos
humanos, não se admite que a prisão moderna, inserindo-se nela o sistema carcerário
brasileiro, ainda lance mão do castigo dos corpos como punição. O criminoso condenado tem
a sua liberdade suprimida, acrescida de todas as consequências físicas e morais, e somente
essa experiência, somada aos programas de ressocialização que possam ser oferecidos,
deveria levá-lo ao desvio do crime. Porém, na prática, em muitas delegacias e prisões o
flagelo dos corpos continua, de forma velada e ilegal. Desenvolvem-se técnicas de tortura que
não deixem marcas, a violência é uma constante. Isso acontece inclusive em muitas
instituições de amparo a menores, o que pode ser facilmente constatável segundo dados de
órgãos de apoio aos direitos humanos. Mesmo a ressocialização, tão propalada, acontece em
escala reduzidíssima, alcançando porcentagem mínima dos encarcerados em cada instituição.
Em Memórias de um sobrevivente, Luís Alberto Mendes registra essa violência impetrada
desde a sua inserção no Recolhimento Provisório de Menores. Do RPM, o narrador foi
transferido para o Instituto de Menores de Mogi-Mirim, para onde eram levados os menores
considerados de alta periculosidade, o que o faz se sentir injustiçado e revoltado, pois se
considerava ainda um “reles ladrãozinho”, não um criminoso perigoso. No Instituto, porém, a
violência não era propiciada apenas pelos guardas, mas pelos próprios menores, se não
seguissem o “proceder”, conjunto de normas mais fortes que as leis oficiais do Instituto. O
narrador relata que os guardas, diferentemente dos funcionários do RPM, obedeciam às
normas de proteção aos menores, dispensavam aos menores um tratamento respeitoso, agiam
de modo sisudo, porém o castigo físico, em graus extremos, era reservado àqueles que
tentavam fugir ou desobedeciam às normas impostas. Em suma, Mendes sofreu violência em
todas as instituições pelas quais passou, desde as delegacias, para onde era levado na infância
e “torturado como gente grande”, até os institutos para menores e a prisão.
Esse aspecto da quase falência da prisão em seu propósito de reeducar ou recuperar
criminosos e infratores também se embasa nas discussões empreendidas por Foucault em
Vigiar e punir. Foucault analisa os recursos para o bom adestramento impetrados às
instituições voltadas para menores, como as colônias para crianças pobres, abandonadas e
vadias de Petit-Bourg, em 1840, a de Ostwald, em 1842; as colônias penitenciárias previstas
pela lei de 1850, absolvidos ou condenados, deviam ser “criados em comum sob uma severa
disciplina, e aplicados em trabalhos de agricultura, assim como nas principais indústrias que a
elas se ligam” (FOUCAULT, 2006, p. 246). Segundo o autor, as instituições pautavam-se na
ideologia de que o “sucesso para o bom adestramento”, o sucesso do poder disciplinar estaria
em uma rígida vigilância hierárquica e o uso de sanção normalizadora para quem fugisse às
regras. Mas isso, por si só, não reeduca nem recupera ninguém.
Se se estabelece uma relação com as instituições para menores da sociedade moderna, dentre
elas as brasileiras citadas por Mendes, percebe-se que, geralmente, essas instituições
funcionam como escolas preparatórias para a delinquência, dados os poucos investimentos em
efetivos programas de ressocialização dos menores, o que geralmente também se aplica em
relação aos presídios, para os maiores de idade. Em relação à narrativa em estudo, o autor
registra que, no RPM, dos cerca de duzentos menores internos, apenas quinze trabalhavam na
horta, o restante passava o tempo ociosamente, pensando estratégias de crime para quando
saíssem dali. No Instituto de Menores de Mogi-Mirim a situação era semelhante. O narrador
conseguiu inserir-se nas atividades oferecidas, tendo passado pela lavoura da casa, atuando
depois como ajudante na cozinha e, por fim, na lavoura da rua, que era remunerada, até ser
libertado, após os dezoito anos.
Na descrição da passagem pelo RPM, o narrador demonstra uma aguda percepção acerca da
situação dos menores infratores e tece uma interessante reflexão sobre a ausência de
responsabilidade do Estado e deixa implícita a constatação de que ao invés de apenas
possibilitar a existência dos “institutos de correção”, seria necessária outra postura, de
prevenção:
Certa vez, li não sei onde, que condenava-se o rio por ser caudaloso e
devastador em sua corrente, mas nada se dizia das margens que o limitavam
e comprimiam, tornando-o tão violento. Era o caso ali. Queriam proteger a
sociedade de nós, mas talvez a solução fosse nos proteger da proteção social.
Daí é para se perguntar se éramos animais, como queriam, ou se éramos
animalizados, como nos faziam. Marginais e criminosos ou
“marginalizados” e “criminalizados”? (p. 146)
Quando novamente foi preso, aos dezenove anos, por diversos roubos e um latrocínio, o
escritor foi encaminhado à Casa de Detenção de São Paulo, em que vivenciou as mais
variadas formas de violência, tanto impetrada pela instituição, quanto pelo sistema de castigo
exercido pelos presos a seus desafetos. O narrador passou por uma breve experiência de
castigo na cela forte dessa prisão e em outra situação acabou cometendo outro homicídio, para
se defender. Ao ser transferido para a Penitenciária do Estado, já recebeu o castigo supremo,
por ter cometido o assassinato na outra instituição, pelo qual já fora castigado, e foi obrigado
a ficar nove meses recolhido na cela-forte13, padecendo frio e o isolamento quase total, exceto
pelo sistema ilegal de comunicação usado pelos presos, através da rede de encanamento.
Novamente Mendes expõe a insuficiência de projetos de ressocialização, muitos presos eram
inscritos em programas apenas para contabilizar estatísticas, não participavam efetivamente
das atividades.
Embora pautado nas experiências vivenciadas pelo seu autor e que o levaram à prisão, não se
deve ter a impressão de que a primeira publicação de Mendes permita somente uma análise da
trajetória pessoal do autor, pois analisar uma escrita autobiográfica, tendo como referência
apenas o conhecimento que se constituirá acerca da vida particular de um determinado
indivíduo, é uma perspectiva restrita. Ainda que gire em torno da vida de uma pessoa, essa
leitura da autobiografia se associará ao contexto histórico-político-social no qual foi
produzida. Costa Lima (2007, p. 465) afirma que é preciso lembrar que não é apenas o eu a
matéria indispensável para a autobiografia, uma vez que esta tem como característica o
intercâmbio que se estabelece entre um eu empírico e o mundo. Para o autor, a autobiografia
“supõe um duplo e simultâneo foco: como o eu reage ao mundo e como o mundo experimenta
o eu” (COSTA LIMA, 2007, p. 465).
Esse intercâmbio é latente na narrativa, a trajetória do narrador Mendes está intimamente
relacionada à sua maneira de lidar com o mundo no qual estava inserido. Segundo Andrea
Saad Hossne, em Memórias de um sobrevivente “um quadro muito vivo da história de São
Paulo nas décadas de 1960 e 1970 toma forma. À moda dos grandes painéis do romance
realista, a cidade em um momento crítico do seu desenvolvimento industrial, cultural é
13
Cela-forte era o nome dado ao local em que os presos ficavam isolados, por longos períodos, em regime de
castigo fechado. As celas eram revestidas por azulejos nas paredes e pedaços de cerâmica no piso, espaços
repletos de poças de água, o que auxiliava a torná-las extremamente frias, ainda mais em pleno inverno
paulistano. Quando Luís Alberto Mendes foi submetido a esse rigoroso regime, todos os presos que recebiam
esse castigo passavam os primeiros dez dias completamente nus, sujeitos a doenças respiratórias, a maior causa
mortis dos que eram condenados a esse regime de punição.
apresentada” (2005, p. 133). À medida que tece suas memórias, pautadas em suas
experiências, Mendes fornece a sua leitura da cidade. Quando começa a experimentá-la mais
intimamente, no início de sua adolescência, a cidade está ainda em desenvolvimento, havia
praças, poucas pessoas pelas ruas, o que facilitava a ação dos pequenos criminosos. Após a
sua passagem pelas instituições para menores, antes da prisão definitiva ocorrida aos
dezenove anos, o contato com a nova São Paulo e com uma nova realidade causa-lhe
estranhamento:
Em agosto de 1970 Lennon já havia dito que o sonho acabara. Não quis
acreditar. A guerra do Vietnã estava em pleno curso, a guerrilha no Brasil
começara a ser desmantelada pelos órgãos de repressão. O DOI-CODI era o
palco dos horrores, o Esquadrão da Morte matava todo dia. O mundo de
pernas para o ar, arreganhado como uma puta, e eu ali no meio, abobado
com tudo que via, sem entender nada.
(...) A cidade havia mudado bastante. Estava parecendo aquelas cidades
futuristas, com viadutos e elevados para todos os lados. O volume de carros
era fantástico.
(...) Parecia um canteiro de obras, as obras do metrô estavam a pleno vapor
(MENDES, 2005, p. 205-207).
De acordo com Luís Costa Lima (2007), as produções autobiográficas, por sua posição
discursiva, sofrem uma instabilidade permanente e ora se inclinam para o discurso histórico e
ora para o ficcional. Esse autor questiona se a autobiografia é de fato um documento e se faz
parte ou não da literatura, refletindo, em relação ao primeiro questionamento, que a
autobiografia não pode ser analisada como documento histórico, por apresentar uma versão
personalizada da história, pois o memorialista “não pode dizer senão que apresenta um
testemunho de boa fé; i.e., que é assim que sente haver sido em certa situação ou haver
presenciado certo acontecimento” (COSTA LIMA, 2007, p. 506). Já em relação ao segundo
questionamento, o autor defende a idéia de que a autobiografia e a ficção não são espécies
discursivas semelhantes, embora as fronteiras sejam permeáveis. Para ele, entre a ficção e a
autobiografia, o eu é a barra separadora. Na primeira o eu empírico do escritor é o suporte da
invenção, enquanto que na segunda é a fonte de experiências que tentará transmitir.
Maria Helena Santana (2006) tece considerações diversas sobre a escrita biográfica. Parte da
definição de biografia como uma narrativa que toma por tema a vida de um indivíduo
historicamente documentado, o que, no caso da autobiografia, transforma esse protagonista
em narrador. Mas salienta que há uma heterogeneidade de perspectivas, literárias e nãoliterárias, quando se fala de biografia, apontando para a existência de gêneros híbridos entre a
literatura e a historiografia tradicional, semelhantemente a Costa Lima. Porém, apoiada em
Bourdieu, distancia-se do posicionamento de Costa Lima. Santana revisa a noção de “história
da vida” que subjaz à definição de biografia e reflete que essa possibilidade de uma vida
“contar-se”, tal como uma cadeia de eventos, traz implicações. Em A ilusão biográfica
([1986] 1996), Bourdieu analisa que o problema está em conceber o relato biográfico como a
escrita de uma vida, como um conjunto coerente e organizado de acontecimentos de uma
existência individual, guiado por um caminho unidirecional até o fim da estrada, até o fim da
história. Desta forma,
[...] produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é,
como um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com
significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma
representação comum da existência que toda uma tradição literária não
deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1996, p. 185).
Essa ilusão retórica leva à pressuposição de que os acontecimentos da vida contada seguem
uma ordem não só cronológica, mas também causal e a vida, narrativizada, investe-se de
sentido. Contudo, é preciso considerar que a existência não é linear, possui um caráter
descontínuo e aleatório, abolido pela ilusão retórica. Para Santana (2006), o que Bourdieu
sugere é que todas as biografias são, em suma, literatura, e que não há mal nenhum nisso, já
que a literatura é uma forma de interpretar o real.
Outro aspecto pertinente salientado por Santana (2006) é o estatuto da personagem nos textos
biográficos. A autora afirma que nenhuma personagem histórica é real, desde que posta em
texto:
A personagem renasce como tal (personagem) de cada vez que se faz texto,
mantendo com a memória cultural uma relação activa – mais ou menos
mimética, mais ou menos conflitual, às vezes irónica, nunca transparente.
Mesmo que fale na primeira pessoa, será sempre “ele”, “um”, o outro, o que
não somos nós. O herói do texto biográfico é uma construção textual, ainda
que pré-determinada; e no entanto todo o interesse que desperta provém
duma espécie de verdade – aquela que sustenta o desejo, ou o equívoco, em
que imaginamos (re)conhecê-lo. Recordemos as sábias palavras de Agustina:
“Nada é verídico, tudo é a tentativa desesperada de o ser”. (SANTANA,
2006, p. 152)
Esse aspecto pode ser relacionado à análise da autobiografia Memórias de um sobrevivente.
Em se considerando que o autor é narrador e personagem de um texto autobiográfico, o Luís
Alberto Mendes que ali aparece não é o real, mas uma construção textual. Na autobiografia,
memória e narração dialogam. A autobiografia, como escrita de si, pauta-se no campo da
memória. Lançando mão desse recurso, a lembrança se constitui linguagem e, em associação
com a imaginação e a perspectiva individual sobre aquilo que se viveu, as situações são
recriadas, o passado é retomado a partir de um momento no presente, em que se rememora o
vivido e se escreve. Em Memórias de um sobrevivente, o escritor narrativiza os
acontecimentos passados de sua vida, mas faz isso de um presente distanciado dos fatos já
ocorridos: “Fui escrevendo e me surpreendendo comigo. Não tinha a mínima consciência do
que eu fora. Via-me na figura daquele menino e me desconhecia. Às vezes ele era eu mesmo,
e chorava me descrevendo, com profunda piedade daquele garoto” (MENDES, 2005, p. 238).
Há, na primeira publicação de Mendes, um fato emblemático que reforça esse aspecto do
herói do texto (auto) biográfico ser uma construção textual. Durante a sua permanência na
cela-forte, Mendes travou contato com outro preso, Henrique Moreno, que se tornou
personagem importantíssimo em sua relação com os livros. Após sair da cela-forte, decidido a
escrever para a mãe, pede ajuda ao amigo:
[...] Precisava fazer uma carta bastante comovente para chocá-los, [...]. O
Henrique se encarregou de fazer um rascunho. Sabia escrever, mas meu
vocabulário era reduzido, cheio de gírias, e eu perdera a prática, foram
muitos anos sem ler ou escrever nada. (p. 443).
Quando Mendes descreve a sua passagem pela escola, sempre reforça que era excelente aluno,
tirava notas acima da média. Assim, imagina-se que não seria difícil escrever uma carta,
gênero textual tão familiar. O leitor é equivocadamente levado a imaginar que a emoção,
talvez, pudesse ser um entrave à escrita da carta, já que seria endereçada à mãe, tão
importante em sua trajetória, segundo o protagonista. Entretanto, em depoimentos, Mendes
deixa explícito o fato de que, na realidade, Henrique escrevia suas cartas porque ele mesmo
mal sabia escrever14.
É preciso considerar que autobiografias, literaturas de testemunho, segundo Seligmann-Silva
(2003), estão embasadas na relação estabelecida entre memória e esquecimento: “A memória
só existe ao lado do esquecimento: um complementa o outro, um é o fundo sobre o qual o
outro se inscreve. Esses conceitos não são simplesmente antípodas, existe uma modalidade do
esquecimento [...] tão necessária quanto a memória e que é parte desta”. (SELIGMANNSILVA, 2003, p. 53). Para o sobrevivente, como Mendes em suas memórias, a narração
combina memória e esquecimento15. Seligmann-Silva afirma que:
O sobrevivente, aquele que passou por um “evento” e viu a morte de perto,
desperta uma modalidade de recepção nos seus leitores que mobiliza a
empatia na mesma medida em que desarma a incredulidade. Tendemos a dar
voz ao mártir, vale dizer, a responder à sua necessidade de testemunhar, de
tentar dar forma ao que ele conheceu – mesmo que o fantasma da mentira
ronde as suas palavras. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 377)
Em Memórias de um sobrevivente alguns acontecimentos traumáticos são lembrados, outros
são esquecidos, ou propositalmente ou por necessidade de redução da narrativa, quando do
processo de revisão para publicação. Contudo, tem-se a percepção de que o “fantasma da
mentira” ronda muitos dos fatos narrados, uma vez que o autor-narrador-personagem encenase e apresenta-se aos leitores de maneira a conquistá-los, enaltecendo, pelo seu relato, a sua
condição de sobrevivente, de alguém que trilha caminhos considerados inadequados pelos
parâmetros sociais, mas depois se redime e se transforma. Mesmo os acontecimentos relativos
à vida no crime que são relembrados, de carga negativa, o são com a finalidade de expor a
redenção desse sujeito16.
14
Esse depoimento foi fornecido por Mendes durante a Conferência de encerramento proferida por ele no I
Colóquio Literatura, Autoria e Biografias, realizado no Campus I da Universidade do Estado da Bahia em
dezembro de 2009.
15
Em seu livro, Mendes relata que, de um grupo de doze meninos, levados ao Recolhimento Provisório de
Menores, o RPM, apenas ele sobreviveu: “Todos os que estavam naquele xadrez e os outros que completavam os
doze rebeldes foram mortos pela polícia, com exceção do Brasinha, que foi morto na Casa de Detenção, a
facadas. Sou o único sobrevivente”. (p. 154, grifos da autora do trabalho).
16
Claro que, segundo o próprio Mendes (em depoimento à autora do trabalho), o livro “é verdadeiro e sincero”.
“Não tem ficção nele. Tem amenização, ele tinha cerca de 800 fls. Originalmente, foi cortado muita coisa porque
Sobre o modo pelo qual a escrita torna-se parte da vida de Luís Alberto Mendes, é preciso
considerar que sua trajetória peculiar, seu contato intenso com a leitura na prisão, durante
anos, sua relação singular com os livros é o que o transforma em escritor, pois, quando
resolve escrever, o livro já lhe é um objeto extremamente próximo. No epílogo, o autor afirma
que não possui o intuito de conferir a suas memórias um caráter exemplar, carregado de
mensagens ou explicações grandiosas: “Sou de opinião que os fatos, a vida, falam por si
mesmos e não carecem de explicações, e sim, tão-somente de narração acurada. As
conclusões e ilações, sem dúvida, são pessoais” (MENDES, 2001, p. 471). Fica perceptível na
obra a tripla condição de Mendes, a de presidiário, a de leitor e a de escritor. É na condição de
presidiário, de marginalizado, que se constituem o leitor e o escritor. Ao mesmo tempo que
escreve sobre si, em situação limite de sobrevivência, a do encarceramento, no esforço para
atender aos “códigos de conduta” vigentes entre os presidiários, como a não delação, percebese o seu desejo de alcançar o mundo externo, buscando o seu reconhecimento pela publicação
dos seus escritos, embora oriundo de um espaço marginalizado. É sintomática, em seu texto, a
epígrafe de Jean-Paul Sartre, que abre a obra: “Não importa o que o mundo fez de você,
importa o que você faz com o que o mundo fez de você”.
1.2 Memórias de um sobrevivente: uma escrita marginal
Mendes, em seu primeiro livro, narra a sua vida infame, em íntima relação com a de seus
companheiros de marginalidade. No texto “A vida dos homens infames” Foucault (1992)
defende uma afinidade entre a literatura moderna e a transgressão, estabelecida a partir da
aquisição de significação de um destino por parte de algumas vidas sem fama e sem história,
que passam a lenda, ou seja, merecem ser lidas: “Vidas que são como se não tivessem
existido, vidas que não sobrevivem senão do choque com um poder que não quis mais que
aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que a nós não tornam a não ser pelo efeito de
múltiplos acasos [...].” (FOUCAULT, 1992, p. 102). Embora o autor estivesse se referindo a
vidas infames lidas em documentos franceses do período 1660-1760 - provenientes de
a editora acreditava que seria pesado demais e iria ser rejeitado por isso. Ali não tem 10 por cento do que
realmente ocorreu; vocês não aguentariam. [...] Muita gente pula partes dele ao ler”.
arquivos de reclusão, da polícia e de petições ao rei -, estabelecem-se analogias com outras
vidas infames.
Mendes e o universo da prisão são um exemplo. Ao narrar a sua vida infame e a de seus
companheiros de marginalidade, sua história ganha voz, como afirma Foucault acerca das
vidas infames por ele analisadas: “O insignificante deixa de pertencer ao silêncio, ao rumor
passageiro ou à confidência fugaz. Todas aquelas coisas que constituem o ordinário, o
pormenor insignificante, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum, podem e devem ser
ditas – mais, escritas”. (FOUCAULT, 1992, p. 117). Mendes relata sua vida a partir de sua
experiência no mundo do crime, mas sua narrativa não é endereçada aos seus companheiros
de cárcere, como já afirmado. A narrativa é endereçada aos de fora, aqueles considerados
cultos, integrados à sociedade, representantes de um mundo em que sua vida sem fama não
teria muito alcance. Porém, ao escrevê-la, pode sair do silêncio, fazer com que sua vida faça
sentido por meio da narrativização literária.
Nesse sentido, Memórias de um sobrevivente é uma escrita marginal. Situada à margem da
sociedade, pela tematização de uma vida em obscuridade e pela origem dessa narrativa,
transforma-se em uma possibilidade de conquista de um espaço de reconhecimento, de
difundir a própria voz, como prega o conceito de literatura marginal contemporânea.
Considera-se marginal, em se tratando de produções escritas, aquelas oriundas de grupos
sociais à margem da sociedade, feitas “à margem dos núcleos centrais do saber”, como
defende Ferréz, um dos representantes dessa literatura.
Memórias de um sobrevivente, de Luís Alberto Mendes, é uma produção que se origina do
cárcere. Porém, quando se fala dessa modalidade de produção, no Brasil, é preciso delimitar
de que experiência específica se fala, uma vez que temos uma tradição literária de escritas no
cárcere com diversos matizes.
Uma primeira situação de destaque é a de escritores já consagrados que passaram pela
situação de aprisionamento, cujo exemplo mais significativo no Brasil é Graciliano Ramos,
preso em 1936 – quando o país estava sob o domínio da Ditadura Vargas e do poderoso
Coronel Filinto Müller –, por suspeita de ser militante do Partido Comunista. Uma das
situações políticas da época, retratadas por Ramos e que provavelmente o levou à prisão, foi o
movimento tenentista – retaguarda da revolução de 30, uma rebelião típica da classe média
urbana emergente contra o absoluto domínio exercido pela classe latifundiária – relatado em
São Bernardo, cujo cenário de fundo era o problema da reforma agrária. Em função da crítica
social que faz na sua obra, é preso em Alagoas, depois levado para Pernambuco, e logo a
seguir reconduzido para o Rio de Janeiro, onde passa dois anos entre prisões locais e a temida
Colônia Correcional da Ilha Grande, no interior do Estado do Rio.
Ao ser preso, Graciliano Ramos já publicara inúmeras obras, mas a experiência limite do
aprisionamento deflagra uma produção pautada em suas memórias da prisão, diversificada das
anteriores, mas exemplificativa do estilo do autor. Em relação a essa obra, a crítica literária
não hesita em considerá-la como uma produção exemplificativa do cânone, principalmente
por conta de sua autoria. Alfredo Bosi, em seu texto A escrita do testemunho em ‘Memórias
do cárcere’ (1995), classifica a obra de Graciliano Ramos como literatura de testemunho, pois
é a memória de fatos históricos que se faz construção literária, mas não se constitui em pura
ficção, nem em pura historiografia, é um testemunho, portanto, subjetivo, mas que se pretende
idôneo, verídico, aspira a certo grau de objetividade, associando memória individual com
história. Por isso, Bosi situa a literatura de testemunho em uma zona fronteiriça:
Mas o testemunho também se sabe obra de uma testemunha, que é sempre
um foco singular de visão e elocução. Logo, o testemunho é subjetivo e, por
esse lado, se aparenta com a narrativa literária em primeira pessoa. O
testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas são
delicadas: ora fazer a mímese de coisas e atos apresentando-os "tais como
realmente aconteceram" (conforme a frase exigente de Ranke), e
construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio;
ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se
associam, na mente do autor, às situações evocadas. (BOSI, 1995, s/p)
Bosi afirma que Ramos, em suas memórias da prisão, deixa explícita a sua convicção de que o
testemunho não é documento histórico, no sentido tradicional de espelho fiel da realidade e,
em decorrência disso, a escrita do testemunho deve dispor de uma considerável margem de
liberdade, mas nem por isso aceita confundir-se com a prosa de ficção.
Outra situação exemplificativa das escritas no cárcere, bem como dessa literatura de
testemunho reconhecida pelo cânone, é a de pessoas de classe média que passaram pela prisão
devido às perseguições da ditadura militar brasileira das décadas de 1960 e 1970 e
transformaram suas agruras no cárcere em escritas, o que pode ser exemplificado com os
casos do ator e compositor Mário Lago, do religioso Frei Betto e do dramaturgo Augusto
Boal17, cujas obras, embora distintas em seus fins e nos seus interesses, alertam a opinião
pública sobre as arbitrariedades cometidas pelo regime político. Segundo Maria José de
Queiroz (1981), as obras de Mário Lago e Frei Betto “são produtos de circunstância”, porém o
livro de Boal, - dotado de um “agudo senso teatral, aliado à experiência do mundo – que o
leva a evitar o ranço do provincianismo -, combinado ao sentido da história e ao tratamento
político do fato social” (QUEIROZ, 1981, p. 149), - ocupa situação de privilégio na grande
literatura do cárcere e seu testemunho eleva-se à altura dos melhores depoimentos sobre a
prisão à época em que a autora publicou o seu ensaio.
Contudo, quando se fala em escritas oriundas do cárcere em contexto contemporâneo,
geralmente faz-se referência às pessoas que, estando aprisionadas, escrevem suas obras. Esses
novos escritores não escreviam antes de se tornarem presos, o que os coloca em situação
diferenciada da de Graciliano Ramos, um escritor preso, enquanto eles podem ser
denominados de presidiários autores, de acordo com Andrea Saad Hossne (2005).
Há que se considerar que essa escrita no cárcere contemporânea é diversificada, poucos
autores ultrapassaram a marca da primeira obra e se firmaram na condição de escritores.
Algumas obras se destacam, e o que há em comum é que todas elas apresentam caráter
testemunhal, de memória de acontecimentos, podendo ser inseridas na vertente de literatura
de testemunho.
Testemunho pode ser denominado em latim com duas palavras: testis e supertes. Testis indica
o depoimento de um terceiro em um processo. Já supertes indica a pessoa que atravessou uma
provação, o sobrevivente. No primeiro caso, o testemunho cumpre um papel de justiça
histórica e de documento para a história. Já no segundo, o testemunho caracteriza-se como um
momento de perlaboração do passado traumático. Partindo dessas acepções e de outras
questões pertinentes, Márcio Seligmann-Silva, no livro História, memória, literatura: o
testemunho na era das catástrofes, defende a existência de um teor testemunhal da literatura
de modo geral:
17
Mário Lago publicou a obra 1º de abril. Estórias para a história, pela Civilização Brasileira, em 1964. A
segunda edição da obra, revista e ampliada, recebeu novo título – Reminiscências do Sol quadrado, pela
Avenir Editora, em 1979; Frei Betto publicou Cartas da prisão, em 1977 e Das catacumbas, Cartas da prisão
– 1969-1971, em 1978, ambos pela Civilização Brasileira, além da obra Cartas de três dominicanos quando
em cárcere político, em co-autoria com Frei Ivo e Frei Bernardo; Augusto Boal publicou Milagre no Brasil,
sobre a sua experiência de encarceramento.
Literatura de testemunho é um conceito que, nos últimos anos, tem feito com
que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a “realidade”. O
conceito de testemunho desloca o “real” para uma área de sombra:
testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. [...]
Devemos, no entanto, por um lado, manter um conceito aberto da noção de
testemunha: não só aquele que viveu “um martírio” pode testemunhar; a
literatura sempre tem um teor testemunhal. E, por outro, o “real” é – em
certo sentido, e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo –
sempre traumático. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 47-48).
Para Seligmann-Silva, esse teor se torna mais explícito nas obras nascidas de ou que têm por
tema eventos-limite. Essas obras são literatura de testemunho no sentido etimológico de testis,
terceiro, de necessidade de se ter três testemunhas para se poder dar uma sentença jurídica, o
que demonstra que essa literatura quer ser documentária, documento. Mas também é possível
relacioná-la à outra etimologia do termo testemunho: supertes, nesse sentido, a literatura de
testemunho é realizada por alguém que sobreviveu.
Seligmann-Silva discute a literatura de testemunho como mais do que um gênero, como uma
face da literatura que vem à tona em nossa época de catástrofes e faz com que toda a história
da literatura seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com
o “real”, que não deve ser confundido com a “realidade” tal como pensada e pressuposta pelo
romance realista e naturalista: o “real” que interessa a Seligmann-Silva “deve ser
compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à
representação” (2003, p. 373).
Seligmann-Silva analisa principalmente a literatura de testemunho escrita a partir de
Auschwitz, mas salienta a questão de que os estudos comparativos sobre o teor testemunhal
de diferentes literaturas ainda estão por ser estabelecidos e, nesse percurso, caberá um
importante papel ao estudo do teor testemunhal na literatura latino-americana que vá além da
análise do que se estabeleceu como gênero literatura de testimonio, em que o testemunho é
compreendido no sentido jurídico e de testemunho histórico, em que não se problematiza a
possibilidade e os limites de representação.
Memórias de um sobrevivente é uma narrativa de testemunho e, para Seligmann-Silva (2008),
o elemento testemunhal presente na primeira publicação de Mendes pode ser observado tanto
sob o aspecto individual quanto social. Quanto ao primeiro, percebemos uma narrativa que dá
testemunho das experiências individuais do personagem central, que explicita seus
sofrimentos e de certa forma se confessa diante do público. No aspecto social, a narrativa
apresenta um retrato da cidade de São Paulo nos anos 1960 e 1970, além de uma descrição
minuciosa da vida nos cárceres do prisioneiro comum durante a ditadura militar. Segundo
Seligmann-Silva, esse duplo viés testemunhal “cria um esteio de realidade que torna a
narrativa particularmente forte para o leitor, na medida em que ela o envolve emocionalmente
[...] e também faz um apelo aos nossos sentimentos morais e éticos de justiça, igualdade,
solidariedade, etc” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 110).
Esse apelo aos sentimentos morais e éticos de justiça, igualdade e solidariedade do leitor pode
ser comprovado pela forte comparação estabelecida entre o vivido por Mendes e a experiência
dos campos de concentração na vertente nazista, como afirma Seligmann-Silva (2008). Os
procedimentos de humilhação dos presos, descritos em Memórias de um sobrevivente, são
semelhantes aos utilizados nos campos de concentração, como os rituais de entrada na prisão,
em que os presos têm os cabelos raspados, são obrigados a desfilar nus diante dos demais
prisioneiros e policiais, usam uniformes, são desinsetizados, sofrem privação de comida, às
vezes. A própria separação dos presos dá-se a partir de tamanho e força, seguindo uma
“biotipologia” (p. 451). Outro procedimento descrito é a conivência e cumplicidade de
médicos nos rituais de tortura, similar à ideologia médica de higienização da sociedade,
cúmplice do ideário nazista de limpeza étnica. Em um trecho da narrativa, em que se descreve
o transporte dos presos para o fórum, Mendes estabelece uma relação com o nazismo:
“Parecia aqueles carros com escapamento para dentro em que os nazistas transportavam os
judeus. Eu ainda iria sofrer muito, e muitas vezes, nas mãos daquele torturador motorizado”
(p. 271). A diferença, essencial, é que os caminhões que transportavam judeus matavam
mesmo a todos neles transportados.
Embora essas descrições das humilhações sofridas nas prisões evidenciem o tratamento
animalesco dispensado aos presidiários, sua despersonalização e desumanização, é preciso,
porém, considerar as enormes diferenças entre essa experiência e a de um campo de
concentração nazista, como salienta Seligmann-Silva (2008). Por mais semelhanças que se
possam estabelecer, uma prisão na América Latina não é igual a um campo de concentração,
bem como “a marginalização e assassinato dos marginalizados neste continente não é a
mesma coisa que o projeto genocida nazista. Estas nuanças essenciais não podem ser perdidas
de vista” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 124). Guardadas as devidas proporções, o que
interessa, aqui, é a possibilidade de Mendes, após vivenciar uma experiência sórdida, a de
encarceramento e todas as suas consequências, transformá-la em uma experiência estética, em
um testemunho que se constitui literatura.
Já se afirmou, nesse estudo, a filiação de Memórias de um sobrevivente ao que se
convencionou chamar de literatura marginal, que também contempla toda a diversificada
escrita no cárcere contemporânea. É preciso considerar que essa classificação parte dos
produtores dessa escrita, os quais sentem a marginalização imposta à sua produção, por parte
de uma produção literária canônica, calcada em valores de uma sociedade dominante. Sob
esses valores, os livros dessa produção à margem da “boa literatura” são recepcionados com
epítetos, como o de “testemunho”, contudo em um sentido diverso do teor testemunhal da
literatura, defendido por Seligmann-Silva. Alcunha-se essa produção como de testemunho,
mas ela não é reconhecida dentro da chave canônica da “literatura de testemunho” da qual
fazem parte autores como Graciliano Ramos, em sua vertente memorialística. Sendo assim,
considera-se essa escrita marginal produção menor, não literária ou, no máximo, literatura
menor, frente a uma idealização da literatura, enquanto deveria ser reconhecida nos mesmos
moldes aplicados a outras produções de cunho memorialístico, já aceitas pelo cânone.
Regina Dalcastagnè, em seu texto “Isso não é literatura” (2005), discute essa idealização: “É
muito comum, ao se falar de literatura, pensar num campo de liberdade, lugar freqüentado por
qualquer um que tenha algo a expressar sobre o mundo e sua experiência nele”
(DALCASTAGNÈ, 2005, p. 65). Mas, na prática, há um processo de idealização do campo
literário, meio expressivo tão contaminado ideologicamente quanto qualquer outro, uma vez
que construído, avaliado e legitimado “em meio a disputas por reconhecimento e poder”
(DALCASTAGNÈ, 2005, p. 66). Para a autora, o problema de se idealizar a literatura é o que
isso acaba escondendo:
Negar a literatura como prática humana, presa a uma complexa rede de
interesses, é escamotear um processo em última instância autoritário: aquele
que define o que pode ser considerado literatura em meio a tudo o que é
escrito ou que se pensa escrever um dia. De um modo geral, se dissocia a
idéia de produção e de controle, como se todos fossem livres para escrever o
que bem entendessem, desde – é claro, que se sujeitem às regras “estéticas e
universais” da Literatura (com L maiúsculo para diferenciá-la de outras
atividades mais corriqueiras). (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 66).
Essa idealização da literatura não contribui para a sua democratização. Ainda que algumas
lutas por direitos civis tenham desembocado também na literatura, como lembra Dalcastagnè
(2005), e mulheres, negros, homossexuais, índios e presidiários tenham começado a escrever,
a tentar fazer ouvir suas vozes, são várias as dificuldades de inserção no campo literário. Uma
delas é que, em geral, autor, no Brasil, é homem, branco, de classe média, segundo
Dalcastagnè (2005). Essas produções oriundas de grupos marginalizados são aceitas no
campo da disputa literária, porém atreladas a seus guetos, perpetuando uma forma de opressão
que elimina da literatura aquilo que traz as marcas da diferença social “e expulsa para os
guetos tantos vozes criadoras” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 68).
Silviano Santiago contribui para essa discussão ao tematizar o fato de a prosa que envolve a
questão das minorias com vigência histórica se apresentar sob a forma de texto memorialista:
Unindo os relatos dos ex-exilados e as lembranças dos velhos operários
existe a mesma preocupação pelos grupos que são marginalizados pela
história oficial. Se não me engano, é pela via da marginalização que se
propaga e frutifica a fórmula do relato autobiográfico, ou memorialista
(numa visão não-conservadora) [...]. Só que o fenômeno da marginalização é
compreendido como uma espécie de exílio interno: trata-se de determinados
grupos sociais que eram e são desprovidos de voz dentro da sociedade
brasileira, cuja voz era e é abafada. (SANTIAGO, 2002, p. 40).
Santiago discute a produção de uma prosa que fala das minorias, como os índios, ou as
mulheres, porém, em alguns casos, produzida por intelectuais que falam em lugar de, ainda
que deem voz aos grupos minoritários. Para Santiago, o intelectual passa a ser a figura mais
questionada pela prosa dos últimos anos, “deixando de ser a origem presunçosa de todos os
discursos do saber” (SANTIAGO, 2002, p. 42). O autor salienta que a questão das minorias
“passa tanto por uma necessária descentralização do poder, quanto por uma contundente
descentralização da fala do saber” (SANTIAGO, 2002, p. 42).
É preciso refletir que a discussão de Santiago situava-se no início da década de 1980. Em um
contexto mais recente de discussão, a partir dos anos 2000, percebe-se que essa discussão
ampliou-se. Dalcastagnè (2008) afirma que, cada vez mais, os estudos literários (e o próprio
fazer literário) têm se preocupado com os problemas ligados ao acesso à voz e à representação
dos grupos sociais, tão diversificados, e se tornado mais conscientes das dificuldades
associadas a quem fala e em nome de quem, ou seja, o lugar da fala. Na opinião da autora,
esse fenômeno tem ocasionado o crescente debate sobre o espaço, tanto na literatura brasileira
quanto em outras, dos grupos marginalizados, “entendidos, em sentido amplo, como todos
aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura
dominante” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 78). Mas os marginalizados continuam silenciados e
esse silêncio é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, “vozes que buscam falar em nome
deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios
integrantes” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 78).
Essa produção literária dos marginalizados insere-se na chave da representação, de acordo
com Dalcastagnè (2008). A literatura fornece determinadas representações da realidade, mas
essas não representam o conjunto das perspectivas sociais. Esse fenômeno não é exclusivo do
campo literário. Os representantes das classes populares possuem menos acesso à política, à
mídia, ao ambiente acadêmico, em virtude do processo de controle do discurso, segundo
Foucault (1996). Assim, a fala é negada àqueles que não preenchem determinados requisitos
sociais:
Aqueles que estão objetivamente excluídos do universo do fazer literário,
pelo domínio precário de determinadas formas de expressão, acreditam que
seriam também incapazes de produzir literatura. No entanto, eles são
incapazes de produzir literatura exatamente porque não a produzem: isto é,
porque a definição de “literatura” exclui suas formas de expressão. Assim, a
definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de
expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos,
não de outros. (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 81).
Sendo assim, a produção que emerge de grupos marginalizados geralmente é desconsiderada
pelo campo literário, mas necessita ser analisada sob uma perspectiva mais ampla,
considerada esteticamente em sua diversidade. Nesse sentido, a produção oriunda das prisões
não pode ser vista apenas como uma visão peculiar, de um grupo delimitado, cuja liberdade
foi cerceada, é preciso analisar de que maneira esse grupo representa a sociedade, em seus
escritos, e que se permita um diálogo desses discursos, o tradicional, hegemônico e o dos
excluídos, que clamam para que se escutem suas vozes, representativas de vidas narradas na
prisão.
E Memórias de um sobrevivente não foge a essa premissa. Origina-se de um espaço
periférico, de uma cultura marginalizada e a escrita e publicação da obra é uma tentativa de
seu autor de retorno ao convívio social no espaço extra-muro prisional, representativo da
cultura valorizada pela sociedade, de modo geral. Esse aspecto fica latente na passagem em
que o autor explica o seu cada vez maior envolvimento com a leitura, que se torna o seu
projeto de vida: “Eu queria ser respeitado e conhecido como uma pessoa culta e sábia. O
que eu queria mesmo era impressionar os outros. E aprender cultura era o único meio
viável de atingir meus anseios. Nada me parecia mais lógico” (p. 468, grifos nossos). O
fragmento é significativo para que se perceba a posição do autor de considerar o horizonte
cultural no qual estava inscrito, antes do contato com as diversas leituras que realizou, como
sem importância, por ser marginalizado pela cultura hegemônica. Para se tornar “alguém”,
Mendes sente que precisa alcançar o horizonte da “alta cultura”, que supervaloriza o saber
canônico em detrimento dos diversos saberes construídos pelas populações marginalizadas,
por isso o investimento maciço, em suas leituras na prisão, em obras canônicas,
exemplificativas do critério único de qualidade estética dessa cultura. O narrador vê na leitura
uma possibilidade de alcançar outro patamar cultural e ser reconhecido como uma pessoa
sábia.
A experiência de escrita e a tentativa de publicação de suas memórias pressupõem o desejo de
alcançar um espaço valorizado pela sociedade, o de escritor. Tanto é assim que o livro não é
dirigido aos presidiários, até porque a leitura não é uma prática cultural tão valorizada na
prisão e o livro não é um objeto valorizado, não se torna “moeda de troca”, como cigarros,
produtos de higiene, drogas, TV e tantas outras coisas. Mendes dirige-se a um público
externo, que possa reconhecê-lo como escritor e há uma dependência desse reconhecimento,
como o autor registra no epílogo, ao referir-se a Fernando Bonassi, que viabilizou a
publicação do livro: “Para ele, eu já sou escritor. Eu ainda espero a publicação deste livro para
me considerar como tal” (p. 474).
E é Fernando Bonassi quem assina a apresentação da obra, na qual discorre sobre o contexto
em que conheceu Mendes e chama a atenção para a ousadia do autor, um presidiário
autodidata que domina um código que os “homens de bens” têm como sua propriedade. Para
Bonassi, o estilo de Mendes é “único, denso e amoral” (p. 10) e alerta o leitor para o fato de
que não espere encontrar na obra um autor que tenha tido pruridos consigo mesmo ou com a
realidade e conclui caracterizando Mendes como um artista de compromisso vital que não
quer se salvar dentro de seu livro e de suas histórias, mas se salva ao se expressar e tirar de si
um peso que não juntou sozinho e por isso o devolve à sociedade.
É necessário considerar o fato de que a análise dessa primeira publicação de Mendes, apresentada como memórias, e elas de fato é que constituem a narrativa, - permite uma
discussão sobre a questão dos gêneros de fronteira. A produção literária contemporânea é
cada vez mais múltipla e não se encaixa nos compartimentos da divisão tripartida originária
da Poética de Aristóteles. Para Helena Parente Cunha, percebe-se uma tendência dos
escritores modernos, que querem, cada vez mais,
[...] libertar-se das intolerâncias acadêmicas, em rebeldia contra os
princípios autoritários, em nome de uma originalidade que derruba a
ordem preestabelecida e instaura novas modalidades, cada vez mais
difíceis de serem classificadas nas fronteiras dos gêneros. (CUNHA,
1975, p. 96).
Em Memórias de um sobrevivente, Mendes liberta-se da intolerância acadêmica e apresenta
uma narrativa autobiográfica cujo título aponta para um dado gênero literário, as memórias,
mas não engessa a narrativa nessa classificação. Em se considerando os aspectos já abordados
sobre a literatura de testemunho e seu caráter memorialístico, é possível aproximar a narrativa
de Mendes da literatura de testemunho e – devido à literatura de testemunho estar situada em
uma zona fronteiriça, dispondo de uma considerável margem de liberdade, embora não se
confunda com a prosa de ficção, – pode-se apontar na construção da narrativa a utilização de
recursos de elaboração literária.
A estrutura da narrativa, com o texto de apresentação de Fernando Bonassi, colabora para
auferir às memórias de Mendes um caráter de autenticidade, corroborado pelo epílogo, em
que o autor explicita a trajetória de seu texto. Se não se considera esse texto inicial de
Bonassi, todo o relato possui certo tom de romance. Extenso, denso, com algumas repetições,
mas um romance. A opção estética do autor sinaliza para esse modelo literário tradicional, em
proximidade com um realismo convencional. Nesse romance, mesclam-se aventura, drama,
tragédias pessoais, amor, bem ao gosto do gênero. É a história de uma vida, marcada pela
exclusão e pela violência.
Em sua narrativa, desfila uma imensa galeria de personagens cujas existências cruzam com a
do narrador-protagonista. Alguns são mais bem trabalhados, devido à sua importância para o
relato. É o caso da mãe, esteio do protagonista, e do pai, seu primeiro opressor. A mãe é
retratada com as tintas do afeto, personificando-se em uma mulher forte, embora miúda, era
batalhadora, amorosa. O pai, desde as primeiras páginas, é retratado como um inútil,
alcoólatra, ser violento e pouco dado ao afeto.
Grande número dos outros personagens é de presos, uma vez que Mendes passou a maior
parte de sua vida encarcerado. Fora desse espaço, destaque para personagens que fizeram
parte do drama de sua existência: as primeiras relações amorosas, em íntima relação com a
vida criminosa; os policiais e guardas, que lhe perpetravam torturas de “gente grande”; os
cúmplices na criminalidade. Há um destaque maior para os personagens associados à sua
iniciação à leitura: os prisioneiros Henrique Moreno e Franco, e a correspondente externa
Eneida.
Porém, é o protagonista o que interessa sobremaneira, pois é a partir do seu olhar que o leitor
recebe a representação do universo da prisão e seus códigos de conduta. Ele é o filtro do que
deve ser repassado, justifica algumas atitudes que possam ser estranhas ao leitor,
desconhecedor dos códigos do cárcere. O protagonista representa ao leitor sua interioridade,
seu universo emocional, enquanto desvela suas desventuras em um meio que determina seus
valores, limites e transformações, biografando a sua existência.
Outro recurso indicador da elaboração literária é o cuidado com a linguagem. Mendes pouco
utiliza gírias e jargões das prisões, frente a outras obras representativas da nova escrita no
cárcere. Embora haja, às vezes, certa coloquialidade, na maior parte da narrativa o
vocabulário é cuidadoso, com a utilização de palavras e expressões pouco usuais, construções
frasais de acordo com a norma culta. A escrita apresenta um esmero em relação às colocações
pronominais: “Por pouco o japonês não os alcançara” (p. 320); “Juntei-me aos outros presos”
(p. 403); “Iria pegá-lo quando menos esperasse” (p. 403). Pode-se perceber também a
hipercorreção, em relação à colocação dos pronomes: “Certa vez, li não sei onde que
condenava-se o rio [...]” (p. 115). Há, ainda, o uso de metáforas, comparações e linguagem
poética como recurso estilístico: “O mundo de pernas para o ar, arreganhado como uma puta,
e eu ali no meio, abobado com tudo que via, sem entender nada” (p. 205); “A vida era luz, e
eu me sentia iluminado por ela” (p. 205); “Retornaríamos, dois náufragos, tendo sempre dona
Eida como ilha sólida a nos receber” (p. 213); “A noite era de lua cheia, o céu estava
pontilhado de estrelas que brilhavam, brilhavam... Eu bebia aquilo a longos sorvos” (p. 344).
Durante o relato, Mendes faz questão de estabelecer relações intertextuais com autores lidos:
“Tal como naquele poema de Maiakóvski, eu não podia deixar que pisassem nas flores do
meu jardim [...]” (p. 403). Assim, demonstra ao leitor sua característica de leitor, o que
também pode ser comprovado por alusões a conhecimentos sobre a história mundial:
“Idêntica àquelas liças da Idade Média, só faltava o cavalo e a armadura [comentário sobre
uma briga de facas entre dois presos]” (p. 414).
Pode-se apontar, em Memórias de um sobrevivente, a percepção de um ritmo imposto à
escrita, considerando a recepção do leitor. Em entrevista concedida à jornalista Mona Dorf,
Mendes, após a pergunta sobre que livros o inspiraram a escrever sua primeira publicação,
respondeu18:
Penso que somos a somatória de tudo aquilo que fizeram de nós, do que
lemos [...] Quase todos. Alguns livros mexeram muito comigo. Se for em
termos de técnica, o livro que pode parecer banal, mas pra mim é fenomenal,
é o Papillon, de Henry Charrière. Esse livro tem uma velocidade, uma
pegada, você começa a ler ele no começo, você não para mais, até o fim.
Essa foi a minha tentativa no meu livro, dar esse ritmo [...], tentar deixar a
emoção do leitor no alto o tempo todo.
Essa tentativa de dar ritmo e cadência ao livro, encadeando as ações para prender a atenção do
leitor, além dos outros recursos já explicitados, tudo isso demonstra que o livro de Mendes
traz uma elaboração que inscreve seu texto no campo literário.
É possível estabelecer uma proximidade de Memórias de um sobrevivente com a escrita
literária de Rubem Fonseca, quando se observa a crueza na descrição de várias das cenas de
violência: “[...] subiu por cima da vítima e foi cravando aquele pedaço de ferro improvisado
em faca pelo peito e barriga dele” (p. 337); “Todo sujo de sangue, babava uma gosma branca
pelo canto da boca” (p. 337); “[...] amarraram fios na glande do meu sumido pênis, e fios
foram introduzidos no meu ânus” (p. 379); “Defequei, urinei, involuntariamente, a sala ficou a
maior fedentina. Passaram as minhas fezes em minha boca [...]” (p. 388); “Toninho tentou se
agarrar em mim e novamente recebeu toda a lâmina no peito. Caiu, subi por cima e procurei
só furar o coração. Só parei quando o vi virando os olhos, estava morrendo” (p. 418). As
18
Entrevista concedida ao Programa Letras & Leituras, da Rádio Eldorado, em 27/11/2007.
cenas descritas em muito se assemelham às relatadas em livros de Fonseca, a exemplo de
Feliz ano novo.
Há um aspecto bastante significativo, no que concerne a essa produção marginal, em relação à
trajetória da produção literária dos autores que se consolidam, a exemplo de Luís Alberto
Mendes. Ao se analisar a publicação dos autores já consagrados no campo literário que
vivenciaram a condição de encarcerados percebe-se que primeiro eles trilharam o caminho da
ficção, tornaram-se conhecidos e reconhecidos pela crítica. Após a experiência traumática,
produziram memórias, a exemplo de Graciliano Ramos. Entretanto, Mendes seguiu caminho
inverso.
As primeiras publicações do autor foram memorialísticas e só depois vem a incursão pelo
campo da ficção. Uma hipótese para essa primeira opção pelas memórias pode ser a busca da
legitimidade do discurso, do se fazer ouvir. Em entrevista concedida à Revista Cult (2002),
Mendes afirma escrever porque há o que dizer sobre um mundo que ninguém vê, que é o dos
presidiários, do qual fazia parte quando publicou o primeiro livro. Mas, para o autor,
“memória é um pouco sofrido e chato de escrever. Agora, criar histórias é uma maravilha!
Viajo nas histórias, vivo os protagonistas, sou cada um dos personagens e vivo cada situação
que invento. Adoro criar” (CULT, 2002, p. 39).
Embora se defenda aqui o estatuto literário já na produção memorialística, a opção de
produzir ficção apenas depois de se fazer conhecer reforça um aspecto específico. Mendes
primeiro produz memórias, associado ao seu desejo de fazer ouvir a sua voz excluída e a de
outros companheiros no cárcere, também marginalizados. Assim, expressa-se o seu modo de
ver uma realidade vivenciada, angustiante, como uma possibilidade de refletir sobre uma vida.
Só após essa escrita autorreflexiva o autor teria “liberdade” para criar, enveredando
conscientemente pelos bosques da ficção.
Para Andrea Saad Hossne, em Memórias de um sobrevivente o narrado não apresenta natureza
ficcional, mas há uma formalização estética da matéria narrada e que por isso a obra assentase já no campo da literatura. Para a autora, na obra há a presença do “vezo realista da
narrativa de grande fôlego” (HOSSNE, 2005, p. 133), na qual não é possível constituir o
percurso individual sem que o quadro social seja ao mesmo tempo delineado.
A autora considera que a recepção de obras como a de Mendes, no Brasil, passa por dois
caminhos: um deles é a leitura do que se passou a denominar de “literatura marginal” como
apanágio do intelectual comprometido com o seu tempo, do mesmo que anteriormente
interessou-se pela literatura popular. Mas devido à exploração midiática dessa literatura, sua
leitura foi posta sob suspeita, considerada recepção acrítica por parte do público, sintonia de
“superfície” com seu próprio tempo; busca da violência como sensação; busca da classe
média por uma espécie de novo “exotismo”; desistência da ideia de especificidade do texto
literário, o público vê esse universo da prisão de modo ficcionalizado.
Para Hossne, estão sendo deixados de lado os problemas literários que uma obra como de
Mendes repõe, tais como a dos gêneros de fronteira; a da investigação de como a forma do
romance se transforma para dar conta de um universo antiburguês, sendo ele burguês por
excelência; a da discussão de um romance de uma formação em que o contexto é periférico de
saída e por excelência, apresentando como sujeito e protagonista o excluído, o marginalizado,
o marginal. Discutir todas essas questões, para Hossne, é tarefa do âmbito da crítica literária.
Mas apesar desse reconhecimento por parte de alguns críticos, o livro ainda necessita de uma
árdua trajetória para que seja reconhecido pela historiografia literária.
Memórias de um sobrevivente constitui-se em uma obra instigante, representativa da literatura
marginal contemporânea, ao lado de uma enorme gama de produções oriundas das periferias,
mas que nem sempre alcançam o mesmo patamar que as obras de Mendes conseguiram. Luís
Alberto Mendes tornou-se escritor, contudo suas produções, ao lado de outras consideradas
marginais, ainda precisam trilhar um árduo desafio: o de conseguirem o pleno reconhecimento
da história literária, para que se reconheça a diversidade cultural presente nas escritas do
Brasil, constituindo os vários Brasis que possuímos e não apenas aquele que é apontado como
o ideal, reconhecido pelo que se convencionou chamar de cânone literário. A produção
marginal aí está, sempre esteve, e continua manifestando o seu desejo de se transformar em
questão literária, a ser tratada pelo campo literário.
2 OS LIVROS POR TRÁS DAS GRADES: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES
SOBRE LEITURA EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE
2.1 ENTRE ROMANCISTAS E FILÓSOFOS: rastros de leitura em Memórias de um
sobrevivente
Discutir a experiência da leitura pressupõe adentrar-se em uma seara extremamente instigante,
que tem sido objeto de apuradas pesquisas, sob diferentes perspectivas, ao longo dos tempos.
Para esse estudo, adota-se a perspectiva de discussão da leitura a partir do polo do leitor.
Segundo Ezequiel Theodoro da Silva (2005), ao experienciar a leitura, o leitor executa um ato
de compreender o mundo, pois o leitor não apenas decodifica seus sinais e signos, mas
assume uma postura diante do texto, transformando-o e transformando-se.
Para Roger Chartier e Pierre Bourdieu (2001), a leitura deve ser entendida como uma prática
cultural, portanto plural, embora nem sempre essa pluralidade da leitura seja considerada pela
sociedade. Segundo ainda Chartier (1992, p. 214), “ler é uma prática criativa que inventa
significados e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou dos
produtores dos livros”. Há que se considerar ainda a perspectiva filosófica, como a de Paul
Ricoeur, citado por Chartier (1992, p. 215), em que se analisa como as configurações
narrativas formadoras das histórias, sejam elas ficcionais ou não, remodelam a consciência
privada dos indivíduos e sua experiência temporal. Chartier afirma que, nesse sentido, o ato
de ler estaria situado no ponto de aplicação no qual o universo do texto encontra-se com o do
leitor, e a interpretação da obra termina na interpretação do eu. Citando Ricoeur, Chartier
(1992, p. 215) reitera que “ler é entendido como uma „apropriação‟ do texto, tanto por
concretizar o potencial semântico do mesmo, quanto por criar uma mediação para o
conhecimento do eu através da compreensão do texto”.
A leitura é uma prática cultural e, segundo Chartier (2001), seu exemplo é adequado quando
se pensa em debater a compreensão possível das práticas culturais, pois sob o terreno da
leitura encontram-se colocados, “como num microcosmo, os problemas passíveis de ser
reencontrados em outros campos e com outras práticas” (CHARTIER, 2001, p. 231).
Bourdieu (2001), em debate com Chartier, salienta que a palavra leitura pode ser substituída
por uma série de palavras que designam toda espécie de consumo cultural e que, entendendose assim a leitura, é preciso perceber que esse consumo cultural é apenas um entre outros e
tem suas particularidades. Para o autor, ao se abordar uma prática cultural, a exemplo da
leitura, é mister que nos interroguemos como praticantes dessa prática.
Bourdieu afirma que, embora a leitura obedeça às mesmas leis que as outras práticas culturais,
é mais diretamente ensinada pelo sistema escolar, por isso o nível de instrução constitui-se em
um instrumento poderoso no sistema dos fatores explicativos para a análise dos indicadores
das maneiras de ler. O sociólogo relaciona ainda a origem social como o segundo fator
importante, entretanto considera o primeiro de maior peso.
Em se analisando o processo de constituição do leitor Luís Alberto Mendes, delineado em
Memórias de um sobrevivente, percebe-se uma situação diferenciada da característica
apontada por Bourdieu, já que a íntima relação do protagonista com a leitura, segundo o seu
relato, não se deu em virtude de sua passagem pelo sistema escolar, com o crescimento do
nível de escolarização. Por isso, é preciso relacionar essa constituição leitora de Mendes aos
rastros de suas leituras, indicadores de suas maneiras de ler, aspectos que se inserem no
campo de pesquisas da Sociologia da Leitura.
Os estudos da Sociologia da Leitura, nascidos no início do século XX, objetivam, dentre
outros aspectos, compreender de que maneira a leitura afeta os leitores e os modifica, como se
desenvolvem suas práticas leitoras e rastros de leitura no processo de constituição do leitor.
Também se analisam as predisposições dos leitores – que provêm de seu perfil sociocultural,
das motivações da leitura, suas opiniões, suas expectativas ou o lugar que ocupam na estrutura
social – associadas às disposições dos textos, que também são variáveis: razões, condições e
modos de publicação do texto escrito, distribuição, difusão, tendência de opinião sobre certos
temas.
Dentro do campo de estudos da Sociologia da Leitura, Jean Hébrard (2001) situa a
experiência da leitura como uma ritualização que ocorre principalmente como imposição da
instituição escolar. Jean Hébrard, educador e pesquisador francês, um dos principais
especialistas em cultura escrita, critica o ensino da leitura na escola como um meio de
transformar os valores e os alvos dos grupos sociais que são o foco da instituição, percebendo
o leitor como “cera mole” a ser transformada pelo poder do livro educador. O teórico francês
contrapõe a essa visão a questão de boa parte dos estudos sobre leitura das duas últimas
décadas, que apresentam uma imagem bem diferente do ler e de sua aprendizagem. Segundo
Hébrard:
Para a sociologia das práticas culturais, a leitura é uma arte de fazer que se
herda mais do que se aprende. E, por essa razão, ela tem mais
frequentemente, valor de sintoma de enraizamento nos grupos sociais que
praticam as formas dominantes da cultura do que valor de instrumento da
mobilidade cultural em direção a esses mesmos grupos. Colocando o acento
sobre o ler mais do que sobre o livro, sobre a recepção mais do que sobre a
posse, os pesquisadores demonstram amplamente que, na escola, não é a
leitura que se adquire, mas são maneiras de ler que aí se revelam.
(HÉBRARD, 2001, p. 37)
Hébrard salienta que esse mesmo ceticismo em relação à existência de uma dinâmica cultural
relacionada ao acesso ao mundo da leitura também marca os modelos apresentados pela
psicopedagogia ou pela psicolinguística quanto à compreensão da aprendizagem e da prática
da leitura. Para esses campos de estudo, a comunicação escrita é vista como diferenciada, o
que confere ao leitor uma posição distinta de simples receptor ou mero decodificador. A
leitura é analisada como um processo de produção de sentido, em que o leitor assume uma
posição ímpar, o texto não é uma mensagem estrita, seus sentidos são construídos pela
interação com esse leitor, pautado pela sua bagagem cultural, pois, no ato de leitura, o leitor
reativa suas aquisições culturais anteriores. Porém esses modelos dificultam a possibilidade
de explicar como o encontro com um texto pode remodelar um universo pessoal intelectual, o
que leva à percepção de que a leitura é vista mais como processo de confirmação cultural do
que como motor de deslocamento ou de uma progressão no mesmo campo.
O pesquisador francês afirma que existem aprendizagens exemplares da arte da leitura,
“irrupções no mundo do escrito que nada ou quase nada deixava prever, como é o caso de
autodidatas trânsfugas das práticas culturais de seus círculos ou de comunidades e até mesmo
de grupos sociais mais importantes” (HÉBRARD, 2001, p. 38). Desses dois grupos, interessa
sobremaneira o primeiro, acerca do qual Hébrard afirma que frequentemente só se toma
conhecimento da existência de integrantes do mesmo através das suas histórias de vida faladas
ou escritas, nas quais a relação com os livros parece determinante na consciência que
adquirem de sua trajetória, articulada com uma aprendizagem bem-sucedida da leitura. O
autor apresenta como exemplo o caso de Valentin Jamerey-Duval, cuja autobiografia diz,
tanto em sua narração como em sua escrita, o que foi a sua trajetória cultural.
É possível estabelecer relações entre o lido e a história pessoal do autor-leitor em Memórias
de um sobrevivente. No livro, tem-se delineado um nítido registro das leituras de textos
escritos empreendidas pelo protagonista, durante sua permanência na prisão. Essa experiência
de leitura foge à concepção de leitura ritualizada apresentada por Jean Hébrard (2001), uma
vez que Mendes concretiza suas práticas leitoras fora do âmbito da escola, sem ligação com
os rituais de leitura impostos por essa instituição. Sua trajetória leitora possui caráter de
errância didática e se constitui em uma aprendizagem exemplar da arte da leitura, similar ao
caso de Valentin Jamerey-Duval, analisado por Hébrard. Mas o que e como lia Luís Alberto
Mendes? Em sua primeira obra, o espaço destinado à descrição das leituras empreendidas não
é amplo, apenas nas páginas finais de Memórias de um sobrevivente há um registro, bastante
significativo, do processo vivenciado em relação à leitura e as práticas leitoras e obras e
autores lidos. A crer no relato de Mendes, o seu contato mais íntimo com a leitura só ocorreu
na prisão e a partir daí a leitura se torna uma companheira constante na ociosidade do cárcere:
Ler tornou-se um vício. Li todas as obras de Dostoiévski, Tolstói, Górki,
John Steinbeck, Cronin, Scott Fitzgerald, e livros de Guy de Maupassant,
Francoise Sagan, Leon Uris, Walter Scott, James Michener, Harold Robbins,
Morris West, Irving Wallace, Irving Stone, Irwin Shawn, Henry James,
Stendhal, Balzac, Victor Hugo, Somerset Maugham, Virgínia Wolf, Arthur
Hailey, Sinclair Lewis, Henry Miller, Hemingway, Norman Mailer, Robert
Ludlum etc. (p. 444)
As leituras realizadas por Mendes atestam o seu interesse em ampliar seu capital cultural,
que, na acepção de Bourdieu, constitui-se em um
[...] conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de
uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de
interconhecimento e de interreconhecimento ou, em outros termos, à
vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são
dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo
observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por
ligações permanentes e úteis. (BOURDIEU, 1998, p. 28)
A noção de capital cultural, de Bourdieu, torna-se uma ferramenta importante para apreender
a dimensão simbólica da luta entre diferentes grupos sociais, a exemplo da luta pela
legitimação de certas práticas sociais e culturais (dentre elas, a prática da leitura), úteis para
definir e distinguir os diferenciais de poder dos diversos grupos pela posse da cultura
dominante. Por isso, o conceito de capital cultural não se dissocia dos efeitos da dominação
no espaço social, que é um espaço de lutas, no qual as estruturas simbólicas, como a cultura,
revestem-se de importância no exercício da legitimação de um grupo sobre os outros e a
distribuição desigual dos bens materiais e simbólicos estimula ainda mais o conflito pela sua
posse. Esses bens fazem parte dos sistemas simbólicos construídos e operados pelos grupos
que conseguiram se colocar em posição dominante, garantindo a hegemonia de suas práticas
culturais. Assim, a luta pela posse da cultura dominante representa a aquisição de algo que
sirva não somente como elemento de legitimação, mas também de distinção social. A cultura
aparece como bem e o acesso a ela, a sua aquisição, significa, para um integrante dos grupos
populares, como Mendes, um passaporte de acesso ao capital cultural e a representação de
uma relação de naturalidade e de intimidade com as práticas culturais mais valorizadas
socialmente.
Buscando apropriar-se de um capital cultural que lhe foi negado, Mendes investe
maciçamente em leituras de “livros mais profundos” (p. 444), de escritores celebrados pela
crítica. Uma breve observação de alguns dos nomes citados remete a autores clássicos da
literatura universal, como Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, considerado um dos maiores
romancistas da literatura russa do século XIX e um dos mais inovadores artistas de todos os
tempos; Liev Tolstói, junto a Fiódor Dostoiévski, Gorki e Tchecov, foi um dos grandes da
literatura russa do século XIX; Gorki, pseudônimo de Aleksei Maksimovich Peshkov, famoso
escritor, romancista, dramaturgo, contista e ativista político russo, formou uma espécie de
ponte entre as gerações de Tchecov e Tolstoi e a nova geração de escritores soviéticos; John
Ernst Steinbeck, escritor estadunidense Prêmio Nobel em Literatura em 1962; Francis Scot
Fitzgerald, considerado um dos maiores escritores americanos do século XX; Henry René
Albert Guy de Maupassant, escritor e poeta francês do século XIX com predileção para
situações psicológicas e de crítica social com técnica naturalista, é considerado influente
escritor, trazendo em sua bagagem de seguidores o escritor irlandês James Joyce.
Figuram também nas escolhas de Mendes autores como Francoise Sagan, pseudônimo da
escritora francesa Françoise Quoirez, já aos 18 anos conheceu um sucesso fulgurante com o
seu primeiro romance, Bonjour Tristesse, que, em 1954, se transformaria em um escândalo
mundial, ao mesmo tempo que vendia milhões de exemplares; Walter Scott, escritor escocês
de transição do século XVII para o XIX, foi o criador do romance histórico. Mendes cita
ainda nomes como o de Victor-Marie Hugo, escritor e poeta francês do século XIX, de grande
atuação política em seu país e autor de clássicos como Les Misérables, dentre outras obras;
William Somerset Maughan, famoso romancista e dramaturgo britânico do século XIX
também é listado como autor lido, ao lado de uma das mais importantes escritoras britânicas,
Virgínia Wolf, cuja obra é considerada modernista. Wolf estreou na literatura em 1915, com
The voyage out, escrevendo depois uma série de obras notáveis que lhe valeram o título de “a
Proust inglesa”.
Outros autores listados, também clássicos da literatura universal, são Henri-Marie Beyle, ou
Stendhal, escritor francês atuante no século XIX, reputado pela fineza na análise dos
sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco; o escritor Honoré de
Balzac, cuja prosa realista e fôlego como retratista quase enciclopédico de sua época, o século
XIX, posicionam-no como um bastião da literatura francesa. Ao lado deles, figura ainda
Sinclair Lewis, escritor norte-americano da primeira metade do século XX, ganhador do
Prêmio Nobel de Literatura em 1930; Henry Miller, controverso escritor norte-americano do
século XX, muitas vezes lembrado como escritor pornográfico, escreveu também livros de
viagem e ensaios sobre literatura e arte. Miller tornou-se um clássico quando publicou a
trilogia Sexus, Plexus, Nexus, que ele chamou “A crucificação encarnada”. Outro escritor
citado é o norte-americano Ernest Miller Hemingway, em 1952 publicou O velho e o Mar,
considerada a sua obra-prima, com a qual ganhou o prêmio Pulitzer (1953). Em 1954,
Hemingway recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Também se destaca dentre os citados
Norman Kingsley Mailer, escritor estadunidense do século XX, duas vezes premiado com o
Pulitzer. É considerado um dos pais da não-ficção criativa, também chamada de new
journalism, ao lado de escritores como Tom Wolfe e Truman Capote, vértice da literatura
norte-americana.
Ao lado dos clássicos, Mendes cita ainda a leitura de autores considerados como best sellers,
cujas obras alcançaram largo volume de vendas e fama. Um best seller é “literatura de massa”
e, dentre os autores listados por Mendes, podem ser associados a esse tipo de produção
Archibald Joseph Cronin, escritor escocês do século XX, escreveu romances idealistas de
crítica social, traduzidos em vários idiomas e alguns deles adaptados ao cinema e à televisão;
Harold Robbins foi um dos maiores autores de best sellers do mundo, publicando mais de 20
livros que foram traduzidos em 32 idiomas e vendidas mais de 50 milhões de cópias; Morris
West também alcançou vendagens típicas de best sellers como O advogado do diabo, As
sandálias do pescador e mais 25 livros, além de peças de teatro e programas de rádio; Arthur
Hailey, romancista britânico do século XX, também se insere nesse grupo, tendo escrito peças
e roteiros de TV, além de Irving Wallace, escritor e roteirista estadunidense, que teve vários
de seus livros transformados em filmes.
Entre suas obras mais conhecidas estão The
Chapman Report (1960), The Prize (1962), The Word (1972) e The Fan Club (1974). Robert
Ludlum, nascido em 1927, dedicou boa parte de sua vida ao teatro, como ator e produtor,
estreando tardiamente na literatura de ficção, em 1971, com A herança Scarlatti, que
transformou o escritor em um best seller. Passou a dedicar-se integralmente à literatura e
possui um número superior a 200 milhões de exemplares publicados, seus livros foram
traduzidos em 32 idiomas e são comercializados em 40 países.
Entretanto, em sua narrativa Mendes não dá ênfase à leitura desses livros representativos da
literatura de massa. Há, inclusive, silêncios significativos em relação a essas leituras. Em
momento algum, em seu relato, o autor cita ter lido o livro Escuta, Zé Ninguém!, de Wilhelm
Reich. Contudo, em entrevista concedida ao Programa Letras & Leituras, da Rádio Eldorado,
em 27/11/2007, ressaltou a grande influência que o livro exerceu sobre sua vida,
classificando-o como “indispensável”, e expressou o choque causado pelo seu conteúdo,
mantido mesmo depois de muitos anos, ao relê-lo, já em liberdade19. Uma explicação possível
para esses apagamentos seria o fato de que esse gênero textual não é valorizado, não possui
prestígio no meio intelectual. Memórias de um sobrevivente também não traz o registro da
leitura de Papillon, de Henry Charrière, que Mendes considera como a inspiração do estilo da
escrita de seu primeiro livro.
Destacam-se, na narrativa, as obras valorizadas pela cultura letrada, de uma elite intelectual
da época. Por meio da leitura desses livros, “considerava-se em voo alto, em contato com
novos costumes, novas relações com a vida”. Na prisão, Mendes tornou-se amigo do
presidiário Zé Carlos, também uma pessoa cheia de vontade de aprender e possuidora de
curiosidade enorme em relação às verdades existenciais, segundo Luís, o que causou estreita
identificação entre eles. Como Zé Carlos possuía recursos financeiros fora da prisão, sua
esposa adquiriu muitos livros, selecionados por Zé Carlos e Mendes, de acordo com o que
entendiam como importante em termos de conhecimento. Assim, leram os cinquenta e dois
19
REICH, Wilhelm. Escuta, Zé Ninguém! Disponível em http://zeroeum.multiply.com/journal/item/48. Acesso
em dezembro de 2009.O livro assemelha-se a um manual de auto-ajuda, conclamando o leitor a refletir sobre a
sua condição de ser desvalorizado. Segundo a introdução, “resultou da luta interior de um cientista e médico que,
durante décadas, passou pela experiência, a princípio ingênua, depois cheia de espanto e, finalmente, de horror,
do que o Zé Ninguém é capaz de fazer a si próprio, de como sofre e se revolta”. O livro é apresentado como uma
“resposta silenciosa à intriga e à difamação” por que passava seu autor em 1947. É interessante perceber o
interesse por um livro cuja temática parecia refletir a própria condição de Mendes, a de excluído.
volumes da coleção Os pensadores, em sua primeira edição, considerada pelo narrador como
mais completa que as subsequentes: “Fomos dos pré-socráticos a Sartre, Merleau-Ponty,
passando por todas as escolas filosóficas” (p. 459)20.
Fica latente, na análise da prática leitora que se desenvolve no espaço do cárcere,
protagonizada pelo autor-narrador-personagem das Memórias de um sobrevivente, a questão
de que a leitura, nessa obra, assume caráter de partilha, formam-se comunidades de leitura, na
acepção de Roger Chartier (1990).
Há que se considerar que essa prática de leitura pautada pela partilha dá-se em dois âmbitos.
O primeiro, o da partilha entre os próprios presos, grupos de leitores excluídos do campo
intelectual e que acabam por se constituir em criadores de novos códigos, se se analisa a
fecunda produção oriunda do cárcere; o segundo âmbito concerne à busca da legitimação das
leituras, através do aval de leitores mais experientes, tanto os leitores da própria prisão,
representados, no caso de Mendes, pelos amigos Henrique Moreno, Franco e Zé Carlos,
quanto os externos, cuja representante mais destacada é Eneida, com quem o protagonista
estabelece uma farta e inquietante correspondência.
Em relação à leitura como prática compartilhada entre os presos, embora inicialmente
realizada por leitores individuais, em seus espaços de reclusão, há uma organização desses
leitores no intuito de partilharem os livros dentre os interessados, muitas vezes com
estratégias perigosas, passíveis de duros castigos. Isso pode ser exemplificado com o primeiro
contato de Mendes com os livros na prisão, na cela-forte, em que se realizavam conversas,
dentre outras coisas, e emprestavam-se livretos através do sistema de encanamento:
À noite conversávamos muito, ouvíamos rádio que algum companheiro de
cima colocava na privada para que escutássemos. Líamos bangue-bangue e
fazíamos os transportes. [...]
A administração sempre procurava meios de sacanear quem estava em
regime de castigo. [...]
20
A coleção Os pensadores foi publicada pela Abril Cultural de 1972 a 1975, em um projeto de grande fôlego
coordenado por José Américo Pessanha. A coleção contou com o trabalho de acompanhamento, consultoria,
seleção e tradução de dezenas de intelectuais do mais alto nível. Foi uma iniciativa muito importante, que
marcou época, introduzindo no Brasil autores, obras e excertos de obras do pensamento filosófico até então
indisponíveis no país. Tornaram-se de fato livros de utilidade para o ensino nas mais diversas áreas de
graduação, principalmente Filosofia. Era composta por 52 volumes, com textos de 114 pensadores no total, com
apresentação em ordem cronológica.
Para a Chefia de Disciplina, essa comunicação privada era um luxo e ao
mesmo tempo uma ameaça à autoridade que imaginavam possuir.
Resolveram cortar. (MENDES, 2005, p. 436)
Outra situação exemplificadora do perigo a que estavam submetidos refere-se à estratégia
encontrada para continuar partilhando livros durante os três meses em que todos os presos
ficaram trancados e sem visitas, em 1974, após serem barbaramente espancados, em represália
ao assassinato de um guarda por um preso. Para conseguir passar o tempo, alguns presos
lançavam-se à leitura, como Mendes, que selecionou, dentre o seu acervo, os livros a ler e os
que poderiam ser relidos e preocupava-se ainda em partilhar obras com os companheiros de
pavilhão: “Eu fazia milagres trocando livros à noite pela janela, com uma corda fina que
chamávamos de Teresa. O risco era enorme” (MENDES, 2005, p. 454).
É preciso destacar o fato de que as leituras realizadas por Mendes, logo após sair da celaforte, inicialmente seguiam as indicações de companheiros de cela como Henrique, Índio e
outros conhecidos que fizeram listas de indicações de livros a serem solicitados na biblioteca
do presídio, com a ajuda de outros companheiros que não liam, mas de certa forma
participavam da rede de sociabilidade, possibilitando aos leitores o acesso a mais livros, uma
vez que havia limites para a quantidade de títulos por preso, os não leitores auxiliavam os
leitores. As leituras, depois de realizadas, saíam do espaço individual e iam para o espaço
coletivo, nas conversas sobre obras lidas.
Associada ao grupo de leitores de fora da prisão encontra-se a mãe de Mendes. Como já se
referiu anteriormente, em seu relato Mendes não registra o fato da mãe ser assídua leitora de
romances. Depois de preso, sua mãe passa a também fazer parte de sua comunidade de
leitores. Sempre que o visitava, conversavam sobre livros lidos, ele assistia às mesmas
novelas que ela, para comentá-las, ela lia livros e os levava com anotações, para partilhá-las
com ele. Mas sua condição é diversa da de outros interlocutores que atuaram como
certificadores de suas leituras. Em depoimento, Mendes afirma que, depois de adulto,
influenciou a mãe, estimulando-lhe o gosto pela leitura21.
21
Informação coletada em depoimentos à autora do trabalho.
Com o estabelecimento de correspondências com pessoas externas à realidade prisional, que
faziam parte do Círculo de Missivistas Amigos22, foi possibilitada a Mendes uma ampliação
da comunidade de leitores. O seu interesse precípuo era exercitar por escrito o que aprendera
em tantos livros lidos, além de saciar a curiosidade de saber como eram as pessoas tidas por
honestas, segundo o narrador. Dentre os vários correspondentes citados, destacam-se duas
mulheres, uma era a Irmã Mônica, poetisa, fora-lhe encaminhada pelo Sr. Denir, que
admirava as poesias de Mendes e colocou-lhe em contato com alguém que gostava de poesias.
De tia Monic, como ele passou a chamá-la, experimentou receber uma ternura comovente, em
suas palavras, pois ela trazia uma bondade, um amor destituído de objetivos além do amor
mesmo e passou a alimentar a sua carência afetiva, era a sua fonte de amor.
A outra mulher com quem se correspondeu e assumiu grande importância em sua vida foi
Eneida, apaixonada por literatura e uma amante dos livros, o que fez com que Mendes se
identificasse com ela. Era cinco anos mais velha que ele e o centro de uma família composta
por ela, o marido, filho pequeno, mãe e uma sobrinha a quem criava. Através dessa
interlocutora, Mendes entrou em contato com a literatura de Érico Veríssimo, primeiro autor
escolhido para suas leituras conjuntas:
O saudoso autor era vivo na época, e eu me apaixonei por sua obra, tão
densamente humana, além de crítica e histórica. Lemos e estudamos toda a
obra desse nosso mestre. Discutimos cada movimento de sua ironia fina, sua
amarga visão dos homens e suas personagens femininas, fortes e
dominantes. (p. 461)
Dentre essas personagens femininas, Clarissa, personagem do livro homônimo, tornou-se
favorita. Em Clarissa, Mendes e Eneida buscaram inspiração para seus apelidos, que se
tornaram a forma de tratamento de um e outro: Princesa do Figo Bichado e Gato-do-Mato, Os
prenomes Eneida e Luiz existiam apenas no nome do remetente e destinatário das cartas
trocadas entre eles.
De Érico Veríssimo, mediado por Eneida, Mendes passou a ler títulos de Jorge Amado,
Marcos Palmério, Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, a quem o autor
22
Pequena entidade dirigida pelo Sr. Denir Lopes, por volta de 1974, externa à prisão. Luís Alberto Mendes
chegou até ela por intermédio de outro preso, chamado de Velho Severino, que lhe indicou o círculo.
atribui modernidade na escrita, Nelson Rodrigues, as poesias de Carlos Drummond de
Andrade, Mário Quintana e do poeta português Fernando Pessoa. Além de Eneida, a
interlocução com pessoas externas à prisão também se realizava através da presença de
visitantes como o padre Geraldo, o pastor Rubens e o Sr. Gilberto, que vinham regularmente
ao cárcere, possuíam uma sala para entrevistas e realizavam diversas discussões com os
presos. Sr. Gilberto foi responsável pela ida à prisão de diversos expositores, os quais
mediavam discussões que impeliam Mendes mais e mais a ler. A intervenção desses
mediadores foi crucial para a introdução de novas relações com o livro e para certificar outras
modalidades de leitura.
Eneida e Mendes correspondiam-se diariamente e ela apresentou-lhe textos de filosofia,
antropologia, religião, pedagogia e literatura, nos quais estava imersa. Estimulou-o aos
estudos da filosofia, vindo a tornar-se, nessas leituras, seu par, cujo papel “não é apenas levar
a descobrir ou dar novos textos para ler. Testemunho das novas leituras, ele ajuda a conseguilas e a „certificar‟ o novo leitor” (POMPOUGNAC, 1997, p. 46). Mas a filosofia foi, para esse
leitor, um enorme desafio: “Filosofia era algo extremamente difícil para mim pela minha falta
de bases culturais. Os raciocínios eram muito complicados e técnicos demais para meus
parcos conhecimentos” (p. 466). Transformou Mendes em um companheiro de discussão de
suas leituras:
Eu quase não tinha base para conversar teorias de profundidade. Mas todos
os livros que ela lia e estudava, além dos que já lera, mandava-me pelo
correio. Além de estudá-los avidamente para ser capaz de discuti-los com
ela, emprestava-os ao Henrique e este ao Franco, um novo amigo que
passara a fazer parte de nossa vida. (MENDES, 2001, p. 458)
A narrativa fornece algumas pistas sobre a peculiar maneira de ler desse leitor-protagonista,
de formação autodidata, que buscava nos interlocutores de leitura respaldo para os seus
posicionamentos. Em texto que discute a leitura, Chartier (1990) salienta a importância do
leitor e afirma que este sempre se encontra inscrito no texto, embora o texto diversamente se
inscreva nos leitores. Para o pesquisador, é preciso, por isso, reunir duas perspectivas,
frequentemente separadas:
Orientado ou colocado em uma armadilha, o leitor encontra-se sempre
inscrito no texto, mas, por seu turno, este inscreve-se diversamente nos seus
leitores. Daí a necessidade de reunir duas perspectivas, frequentemente
separadas: o estudo das maneiras como os textos e os impressos que servem
de suporte organizam a leitura que deles deve ser feita e, por outro lado, a
recolha das leituras efetivas, captadas nas confissões individuais ou
reconstruídas às escalas das comunidades de leitores. (CHARTIER, 1990, p.
123-124)
A comunidade de leitores da qual o escritor de Memórias de um sobrevivente fez parte, em
seu processo de constituição leitora, estimula-o à leitura de textos filosóficos, o que, para
Mendes, era lutar contra os próprios limites - uma vez que se considerava como portador de
uma cabeça pragmática -, pois precisava tentar entender o nível de abstracionismo das teorias
e lidar quase que sozinho com questões complexas e relacionar ideias diametralmente opostas
de diversos filósofos. Nesse processo, o escritor expõe que “acumulava conhecimentos e não
extraía deles uma visão pessoal do mundo” (MENDES, 2001, p. 467).
Hébrard (2001) afirma que o acesso aos textos “difíceis” depende de uma remodelação do
horizonte de expectativas a partir das quais o leitor tenta interpretar os signos dispostos no
texto. Sendo assim, “o ato de leitura [...] distingue-se de um simples fenômeno de
reconhecimento, de confirmação cultural, por um trabalho que deve ser operado pelo leitor
sobre si mesmo, condição sine qua non de uma abertura ao novo e, portanto, de um processo
de educação pelo livro” (HÉBRARD, 2001, p. 43).
Mendes, em sua trajetória leitora, remodela o seu horizonte cultural de referência para tornar
eficaz o encontro com o escrito. Abre-se ao novo e investe, dentre outras, nas leituras sobre
filosofia e busca respaldo para seus estudos: “Gosto de pensar e sou apaixonado por filosofia.
Estudei durante oito anos com uma catedrática em Filosofia Greco Romana, Dra. Rachel
Gazzola, por correspondência”23. Esse exemplo é interessante para se perceber o movimento
do escritor de busca de uma tutela cultural, que assegure a autenticação de suas leituras, como
discute Hébrard (2001). Inicialmente tutelado pelos companheiros de prisão Henrique
Moreno, Franco e Zé Carlos, depois por Eneida, estudante de Letras, professora na Educação
Básica e primeira mediadora nas discussões filosóficas, até a Dra. Rachel Gazzolla de
Andrade, professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Comunicação e
23
Informação coletada em depoimento à autora do trabalho.
Filosofia da PUC-SP. Consolida-se cada vez mais o intuito de ampliação do capital cultural
do escritor.
Mendes, em Memórias de um sobrevivente, relata a sua trajetória, concede à leitura e à escrita
um papel primordial em sua vida, permite entrever as condições de sua aprendizagem, em
uma formação autodidata expressa em uma autobiografia. Sobre autobiografias enunciadoras
de uma vida bem sucedida, Hébrard (2001) afirma que
[...] o autodidata testemunha não somente a possibilidade de aprender a ler,
no sentido mais pleno do termo, mas também a necessidade de contar essa
aprendizagem para dar-lhe a sua verdadeira dimensão, a de uma vitória
contra a inércia das posições culturais, e, desse modo, torná-la irrevogável.
(HÉBRARD, 2001, p. 39)
E é essa aprendizagem da leitura, apresentada na relação que se estabelece entre o narrador e
os livros, que se destaca em Memórias de um sobrevivente. A intervenção dos mediadores de
leitura, seus pares, foi imprescindível para o processo de certificação de Mendes, que só se
efetivou com o estabelecimento de sua condição de escritor, como discute Pompougnac
(1997). Lendo e escrevendo, o protagonista tentava não se constituir em regra, burlando a
rígida inércia das posições culturais.
2.2 A ERRÂNCIA DIDÁTICA DE MENDES: relato de um aprendizado
Pompougnac (1997), em texto que analisa relatos de aprendizado de autores diversos, salienta
que quando esses relatos são produzidos por indivíduos autodidatas, os quais não nasceram
em ambientes com um horizonte cultural privilegiado, há certa peculiaridade extremamente
interessante. O autor destaca que “se ler verdadeiramente é poder ler algo que ainda não
conhecemos, aqueles que não nasceram no mundo dos livros terão necessidade de nada menos
que uma reestruturação de seu horizonte cultural de referência para aí chegar”
(POMPOUGNAC, 1997, p. 15)24.
Sendo assim, o autodidata precisa sair de seu campo social e de seu horizonte cultural de
origem a outro. O escritor de Memórias de um sobrevivente é um autodidata. O seu meio
social de origem é marcado por uma situação de extrema miséria e um baixíssimo nível de
instrução, com pai e mãe pouco escolarizados e ele próprio tendo concluído apenas as séries
iniciais do ensino básico, mantendo com a escola uma relação conflitante. Ao longo dos
poucos anos da infância em que a frequentou, desenvolveu pela escola um sentimento de
ódio, diversas vezes registrado ao longo do relato:
Depois, fui para a escola. Dizem que de santo virei diabo. Lembro da
primeira professora, de régua em punho, exigindo disciplina. E não obtinha,
pelo menos não de mim. Enfiava a régua sem dó, ao menor descuido. Odiei
escola, odiei professores. (p. 13)
Sempre passei de ano, jamais repeti. Frequentava escola na marra, não
gostava nem um pouco. Era inteligente, aprendia tudo muito fácil. O
problema era que meu comportamento era o pior da classe. Não conseguia
parar quieto. Estava sempre causando problemas. [...] Odiava escola! (p. 2627)
O autor relata que, aos dez anos, conseguiu o diploma de curso primário, mas “na marra”,
apenas pelo medo de enfrentar o pai, caso fosse reprovado. Por volta de onze, doze anos,
devido ao excessivo número de faltas e a inadimplência, uma vez que enganava os parentes e
embolsava o dinheiro das mensalidades do colégio particular onde fora matriculado, foi
expulso da escola, abandonando-a até a fase adulta, e fugiu de casa.
Em seu relato, Mendes não faz menção, em momento algum, a experiências de leitura de
textos escritos em sua família. Entretanto, o silêncio de Mendes não significa que a leitura não
fizesse parte das atividades da família. Em depoimento fornecido pelo escritor, Mendes
24
Em seu texto, Pompougnac, partindo da concepção das autobiografias como representações do ato de ler,
analisa textos autobiográficos de autores nascidos no fim do século XIX ou começo do século XX e cujas
histórias de leitura trazem aspectos sui generis. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, iniciados na leitura no
seio familiar, tinham à sua disposição uma imensa galeria de livros; François Mauriac apega-se a livros
herdados, mas em número limitado, devido à censura das mulheres católicas da família; Michel Ragon
desenvolve o hábito de leitura bulímica, compartilhado com a mãe, mas depois segue uma trajetória de leitura
independente; Cavanna inicia o pai, analfabeto, no mundo dos livros, lendo para ele. Em todos os casos,
Pompougnac analisa a importância dos certificadores das leituras no processo de constituição desses leitores que
se tornaram escritores. A trajetória de Ragon e Cavanna traz semelhanças no fato de que ambos são oriundos de
meios culturais modestos, assim como Luís Alberto Mendes.
acrescenta algumas informações. Caracteriza sua mãe como leitora assídua de romances, e o
pai leitor de gibis com histórias do Cavaleiro negro, Fantasma, Cisco Kid e de bolsilivros de
bangue-bangue e, quando era castigado pelo pai, folheava escondido seus gibis e bolsilivros,
mesmo sem entendê-los, como ele afirma. O autor cita a existência do livro Oliver Twist, de
Charles Dickens, na casa de uma de suas tias e que ele leu antes de aprender a ler: “Não
entendia as letras, mas sabia o que elas diziam, algo assim bem estranho mesmo”25.
O silenciamento dessas informações no relato de Mendes, semelhantemente ao caso de
autodidatismo de Jamerey-Duval analisado por Hébrard (2001), é significativo. Suas
memórias não associam a mãe ou o pai a qualquer prática de leitura, nem tampouco falam de
seu contato com esses textos que circulavam em família. Tanto o pai quanto a mãe são
caracterizados como de baixo nível cultural, embora registre que a mãe conhecera o pai em
um salão de danças, durante as férias do colégio interno protestante em que estudava e
abandonou para morar com ele. Pode-se supor que a omissão das informações seja uma
tentativa de destacar a sua trajetória de leitor, dando-lhe um aspecto de excepcionalidade
autodidata. Contudo, não se pode esquecer que Mendes abandonou a família por volta dos
doze anos e passou a errar pelas ruas, com rápidas passagens pelo lar. É possível afirmar que,
em seu horizonte cultural de origem, a leitura, embora presente, não era tão valorizada como
prática cultural e que o livro era um objeto distante em seu sistema de referências: “Aprendi a
ler na prisão”26.
Essa situação foi rompida quando entrou em contato com os livros no cárcere. Durante o
processo de autodidaxia, segundo Pompougnac (1997, p. 16), o autodidata passa por uma fase
de ruptura, que conduz a uma de desaculturação. Durante esse “desnorteamento”, seja ele real
ou metafórico, desconstrói-se seu sistema de representações e seu universo cultural. Após,
segue-se uma fase de aculturação, em que novos saberes são adquiridos e novas referências
construídas. As questões apontadas por Pompougnac reforçam a posição de análise de
Mendes como um exemplo de autodidaxia. O narrador-leitor, em suas memórias, delineia
como se foi constituindo a sua intensa relação com a leitura, acumulando um capital cultural
que o desnorteou e, ao mesmo tempo, orientou-o para uma busca por outras leituras.
25
Informação coletada em depoimento à autora do trabalho.
Informação coletada em entrevista concedida ao Programa Letras & Leituras, da Rádio Eldorado, em
27/11/2007.
26
Embora escrita por um presidiário, a contundente narrativa de Mendes, segundo Eneida Leal
Cunha (2002), não se detém tanto na exposição do crime e da ilegalidade e sim na descrição
do processo de brutalização, da aprendizagem resultante das experiências do encarceramento,
na apresentação das humilhações, arbitrariedades e violências sofridas dentro das prisões e
das instituições destinadas ao confinamento dos menores infratores. E a sobrevivência,
anunciada já no título, acontece, não pela via da libertação, uma vez que quando o livro foi
publicado o autor encontrava-se preso. Mendes é um sobrevivente, e para ele essa salvação só
foi possível graças à leitura.
Já se registrou que os primeiros contatos de Mendes com a leitura, na prisão, ocorreram
quando o escritor encontrava-se em regime de castigo fechado, a denominada cela-forte, na
Penitenciária do Estado de São Paulo. Assume grande importância, nesse contexto, Henrique,
o amigo conhecido durante parte dos nove meses de reclusão nesse castigo diferenciado, que
o introduziu no mundo dos livros. Essa experiência, para o autor, foi um divisor de águas. Ao
sair da cela forte, só pensava em ler, o amigo logo lhe enviou dois pacotes com um
significativo presente:
Dia seguinte à minha saída da cela, logo cedo, veio um companheiro lá do
terceiro pavilhão com dois pacotes enormes. O Henrique havia me mandado
uma pilha de livros, cadernos com poesias e textos dele, papéis, canetas, [...].
Olhei e namorei livro por livro, caderno por caderno. (p. 443)
Estabelece-se aí o seu propósito de mudar de vida graças à leitura, que lhe possibilitaria,
segundo o autor, construir uma “nova história”. Os pacotes enviados por Henrique continham
os livros sobre os quais conversavam e mais uma lista com títulos para serem solicitados ao
bibliotecário. Para solicitar empréstimos de muitos livros, pedia ajuda aos companheiros
vizinhos, que não liam, para que também pedissem os livros que pretendia ler. E, assim, ia-se
intensificando sua relação com a leitura:
[...] Toda semana lia quatro, cinco livros, e preferia os volumosos. Não podia
sair da cela, então lia o tempo todo. E que delícia era o mundo dos livros!
[...]
Fui me apaixonando por livros. Lia, em média, oito a dez horas por dia.
Comecei com os romances. Lia todos os clássicos como quem devora o prato
mais saboroso.
Ler tornou-se um vício. [...]
Fui ampliando meu vocabulário e, a partir dos romances, comecei a me
interessar por livros mais profundos. (p. 444)
É interessante destacar que essa prática intensiva de leitura, que Mendes expõe como “um
vício” (p. 444), transforma-se em uma espécie de “vício” socialmente produtivo e prazeroso.
Em uma sociedade letrada, a leitura assume papel crucial. Se historicamente já foi
considerada privilégio exclusivo das classes abastadas – como o era para a aristocracia na
sociedade cristã da baixa Idade Média e começo da Renascença, ou para a alta burguesia, a
partir do século XIII –, como afirma Alberto Manguel (2006, p. 90), hoje a leitura não é
privilégio exclusivo de classes privilegiadas economicamente, mas guarda ainda esse caráter
de extrema valorização social.
Retomando as fases propostas por Pompougnac para o processo da autodidaxia, quando o
aprendizado da leitura se torna o momento marcante da ruptura, desencadeia uma prática
intensiva e “o autodidata lê muito, lê tudo o que lhe cai nas mãos, tudo o que chega a ele
facilmente” (POMPOUGNAC, 1997, p. 16), o que pode ser exemplificado pela intensa
relação que Mendes estabeleceu com a leitura. Após a ruptura, segue-se a fase de
desaculturação, que é marcada por um desnorteamento, pela desconstrução do sistema de
representações e do universo cultural do leitor:
Só que, a cada livro terminado, dava uma angústia, um aperto no coração
que jamais consegui explicar. Era livro atrás de livro, meu mundo se
ampliou de tal modo que às vezes dava pane mental pelo acúmulo de
informações (p. 444, grifos nossos)
Essa sensação descrita por Mendes já aponta para a fase da aculturação, ainda de acordo com
Pompougnac, com a aquisição de novos saberes e a construção de novas referências. O
narrador-leitor, em suas memórias, relata que, quanto mais lia, mais tinha vontade de ler. E os
livros lidos orientavam-no a buscar a leitura de outros, acumulando um capital cultural
crescente.
Mas essa busca não se constituiu em tarefa das mais fáceis. À medida que Mendes tornava
mais estreita a sua relação com a leitura, sentia-se mais e mais desafiado com os livros que
considerava “complexos”. Tentava entendê-los na interação com outros colegas que também
os tivessem lido, os companheiros de pavilhão Henrique e Franco, além de sua
correspondente Eneida, que discutia com ele as leituras empreendidas: “Eneida colocava-se
numa posição de professora e orientadora. Dessa maneira, procurava sempre fazer uma crítica
de meus pontos de vista. Questionava a fundo meus conceitos e ideias de revolta.” (p. 458).
O narrador afirma que passou com essa mediadora de leitura uma fase extremamente difícil,
pois Eneida contestava suas colocações, provocava-o para releituras e demolia ou depreciava,
segundo Mendes, todos os valores que demorara a vida toda para construir. E é essa confusão
intelectual que guia o autor para outras leituras, a das obras dos filósofos, embora
considerasse filosofia algo extremamente difícil:
Era uma luta fantástica contra meus limites quando pegava um texto
filosófico para estudar. Apanhei e sofri muito para assimilar o que seria e
para que servia, em termos de aplicação, a teoria do conhecimento e a teoria
do ser.
[...]
O pior de tudo era que, logo depois de ficar convencido das idéias e vida de
um filósofo (eu era altamente influenciável), estudava outro com idéias
diametralmente opostas. Entrava em conflito, não sabia qual a posição mais
coerente e não possuía a balança do bom senso para poder dimensionar com
correção. Rapidamente tive dificuldades para estabelecer uma idéia própria.
(p. 466-467)
Nessa rede de sociabilidade da leitura, por via da prática de leitura compartilhada, mesclandose os leitores da prisão com os leitores externos, as obras lidas eram avidamente discutidas.
No entanto, considerando-se a autodidaxia de Mendes, nessa fase o autor sentia-se em posição
inferior aos companheiros:
Sobre os livros mais complexos, que não conseguia assimilar inteiramente,
colhia os comentários de meus amigos e então fazia um aprendizado bastante
substancioso. Eu era bem humilde em comparação à inteligência e
conhecimentos dos dois amigos [Henrique e Franco]. (MENDES, 2001, p.
458)
Essa vivência de leitura de Mendes exemplifica uma última etapa que, de acordo com
Pompougnac (1997), é necessária para marcar a irreversibilidade da trajetória cultural, a etapa
da legitimização, da certificação das leituras empreendidas, que permite a continuação do
processo. Mendes se sente inseguro em suas novas leituras, por se constituírem diferentes das
realizadas até então e busca apoio em outros leitores, já apresentados como mediadores, para
certificar-se de que suas interpretações estejam em conformidade com as interpretações
admitidas, tentando receber de um dos representantes do mundo dos leitores legítimos a
“chave” para também ser considerado parte desse mundo.
À medida que vai ampliando o seu repertório de leituras e o seu capital cultural, esse processo
se intensifica. Isso pode ser exemplificado com a prática leitora de textos filosóficos realizada
por ele e seu amigo Zé Carlos, especificamente a leitura da coleção Os pensadores: “Lemos
tudo aos poucos. Principalmente apanhamos juntos para aprender sozinhos o que não
possuíamos bases nem estruturas para entender. Não havia quem nos ensinasse, nem Eneida
ou Henrique haviam ido tão fundo” (p. 459). Os primeiros mediadores de suas leituras não
conseguiam responder à ansiedade gerada pela leitura desses textos. Embora tenha aprendido
muito, para Mendes ainda foi pouco, muitas coisas ficaram sem ser assimiladas por falta de
quem os orientasse. Ainda assim, de acordo com Mendes, esse foi o período mais fértil de sua
vida:
Eu estava sob três baterias de questionamentos. A do Henrique, que sempre
discutiu meus pontos de vista. Do Zé, que questionava comigo. E de Eneida,
que vivia a me enquadrar em sua lógica sempre impecável. Foi o período
mais fértil de minha vida, em termos de cultura e descoberta de novos
valores. (MENDES, 2001, p. 460)
O relato em Memórias de um sobrevivente termina abruptamente nessa descrição do contato
com o universo da leitura. No epílogo, produzido em 2000, algumas pistas nos são fornecidas
nas entrelinhas: o autor está em outra prisão, a Casa de Detenção de São Paulo, fugiu duas
vezes da anterior. Já descrevera anteriormente como concluíra o ensino fundamental, na
escola da prisão, mas narra também que terminou o ensino médio, mas não há detalhes de
como isso ocorreu. Fez o primeiro ano de Direito na PUC de São Paulo, cumpriu dois anos de
prisão em regime semi-aberto, casou-se, teve dois filhos. Passaram-se vinte anos do final do
relato feito e o autor insinua que as tantas coisas passadas dariam outro livro de memórias,
afirmando que talvez fosse feito algum dia. No livro Às cegas (2005), Mendes dá
continuidade a essas lembranças.
Memórias de um sobrevivente apresenta o processo de constituição leitora de Mendes, é um
relato de seu aprendizado, enfaticamente destacada a sua experiência com a leitura de livros
no presídio. O autor afirma, no epílogo, que sentiu a necessidade de partilhar aquilo que
aprendera em suas leituras, por isso trabalhou como professor na escola da prisão, sendo
conhecido como “Professor”, uma espécie de guru, símbolo de sabedoria para os outros
presos, o que também lhe confere uma certificação, o reconhecimento de suas leituras.
Para Pompougnac (1997, p. 14), as autobiografias procedem a uma reconstrução e, por via da
escrita, a leitura aparece como representação. Em Memórias de um sobrevivente, questões
concernentes à busca de prestígio social pelo acesso ao mundo letrado, além do caráter de
redenção atribuído ao ato de ler são representações possíveis de análise na narrativa.
2.3 REPRESENTAÇÕES SOBRE LEITURA EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE
A Teoria das Representações Sociais, de Serge Moscovici, originou-se na Europa, com a
publicação de seu estudo La Psychanalyse: Son image et son public (1961). Embora surgida
no âmbito de estudos do campo da Psicologia Social, a teoria de Moscovici difere de
conceitos básicos desse campo. Enquanto a Psicologia Social negou a tensão entre o indivíduo
e a sociedade e, por isso, em grande parte não conseguiu teorizar adequadamente essa relação,
a Teoria das Representações Sociais centra seu olhar na relação entre os dois e recupera um
sujeito que constrói tanto o mundo como a si mesmo, através de sua atividade e relação com o
objeto-mundo.
Segundo Robert Farr (2008), a Teoria das Representações Sociais é uma forma sociológica de
Psicologia Social e essa classificação está relacionada ao fato de que Moscovici não
desenvolveu sua teoria em um vazio cultural, pois apoiou-se nos fundadores das ciências
sociais na França, especialmente em Durkheim, considerado um dos fundadores da sociologia
moderna. Moscovici (2003) afirma que o conceito de representações sociais usado em sua
teoria é oriundo de Durkheim, mas de modo diverso. Enquanto Durkheim adotava o conceito
de representações coletivas, Moscovici sugere o termo representações sociais, uma vez que,
sob o enfoque do primeiro, as representações coletivas abrangiam uma cadeia completa de
formas intelectuais que incluíam ciência, religião, mito, modalidades de tempo e espaço, o
que permitia nessa categoria a inclusão de qualquer tipo de ideia, emoção ou crença e, para
Moscovici:
[...] Isso representa um problema sério, pois pelo fato de querer incluir
demais, inclui-se muito pouco: querer compreender tudo é perder tudo. A
intuição, assim como a experiência, sugere que é impossível cobrir um raio
de conhecimento e crenças tão amplo. Conhecimento e crença são, em
primeiro lugar, demasiado heterogêneos e, além disso, não podem ser
definidos por algumas poucas características gerais. (MOSCOVICI, 2003, p.
46)
Por isso Moscovici acrescenta duas qualificações significativas às representações sociais. A
primeira é que elas devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e
comunicar o que nós já sabemos; a segunda refere-se ao fato de que a concepção de
representações de Durkheim é bastante estática. Em suma, o autor sintetiza que as
representações coletivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a uma
classe geral de ideias e crenças, enquanto, sob o enfoque da teoria das representações sociais,
as representações são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados, são fenômenos
específicos relacionados a um modo peculiar de compreender e se comunicar.
Ao analisar a natureza das representações sociais, Moscovici (2003, p. 33-37) afirma que o
pensamento pode ser considerado um ambiente, na perspectiva de ser observado como uma
atmosfera social e cultural, pois cada ser humano está cercado, tanto individual quanto
coletivamente, por palavras, ideias e imagens que penetram seus olhos, ouvidos e mente, à
revelia de seus desejos e consciência. Sendo assim, para o autor as representações intervêm na
atividade cognitiva do ser humano e até certo ponto são interdependentes dela e a
determinam, o que o leva a delimitar duas funções que as representações possuem.
A primeira é que as representações convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos
que encontram, dando-lhes uma forma definitiva, localizando-os em uma determinada
categoria e gradualmente colocam-nos como um modelo de determinado tipo, distinto e
partilhado por um grupo de pessoas.
A segunda função das representações é que elas são prescritivas, impõem-se sobre nós com
uma força irresistível, a combinação de uma estrutura presente no indivíduo antes mesmo que
ele comece a pensar e de uma tradição que decreta o que deve ser pensado. Moscovici
exemplifica essa função com a psicanálise como representação, na situação de uma criança
que nascesse no contexto da publicação da obra, já encontraria a estrutura da psicanálise nos
gestos da mãe, na afeição com que seria cercada para lidar com provas e atribulações do
conflito edípico, nas relações interpessoais, dentre outros. Por isso o autor afirma que embora
as representações sejam partilhadas por tantos, penetrem e influenciem a mente de cada um,
elas não são pensadas por esses indivíduos, mas re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas. As
representações, para Moscovici, são impostas, transmitidas e são o produto de uma sequência
completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de
sucessivas gerações, por isso o autor afirma:
Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições
que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas,
implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na
memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente,
reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação
presente. (MOSCOVICI, 2003, p. 37)
Essas funções das representações, delimitadas por Moscovici, permitem ao autor concluir que
as representações, que são criaturas do pensamento, acabam por se constituir em um ambiente
real, concreto, uma vez que, por um lado, um signo convencional é colocado na realidade e,
por outro, é prescrito, através da tradição e das estruturas imemoriais o que o indivíduo
percebe e imagina. Mesmo que as representações sejam apenas ideias, elas possuem
autonomia, exercem pressões e assumem uma posição de realidades inquestionáveis a serem
confrontadas, com o peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo, bem como a
resistência de um objeto material, de grande força, pois “o que é invisível é inevitavelmente
mais difícil de superar do que o que é visível” (MOSCOVICI, 2003, p. 40).
Para esse teórico romeno, essa era é a da representação, pois as representações possuem uma
atividade profissional, já que os representantes da ciência, culturas ou religião criam-nas e
transmitem-nas, muitas vezes sem sabê-lo ou querê-lo. O autor afirma que tais profissões
estão destinadas a se multiplicar, o que tornará a tarefa da criação e transmissão das
representações mais sistemática e mais explícita, mas que isso não subverterá a autonomia das
representações no que concerne tanto à consciência do indivíduo quanto à do grupo.
Estabelecendo uma relação com esse substrato teórico, pode-se afirmar que Luís Alberto
Mendes, ao narrar suas memórias, fornece o registro de uma vida e sua experiência com a
leitura, o que permite investigar as representações sociais sobre leitura, decorrentes dessa
narrativa, como uma maneira peculiar de compreender o mundo e comunicar-se. É preciso
registrar que as representações são ocasionadas, segundo Moscovici (2003, p. 60), em virtude
de dois processos geradores. Para o autor romeno, não é fácil transformar palavras nãofamiliares, ideias ou seres, em palavras usuais, próximas e atuais. Para que se possa dar-lhes
uma feição familiar, são colocados em funcionamento os dois mecanismos de um processo de
pensamento baseado na memória e em conclusões passadas.
O primeiro desses mecanismos é denominado por Moscovici de ancoragem, que é o processo
de classificar e dar nome a alguma coisa, ancorando ideias estranhas, reduzindo-as a
categorias e imagens comuns, colocando-as em um contexto comum, e é o que acontece com
Mendes em relação à leitura, que, de prática não-familiar, tornou-se, por meio da ancoragem,
uma prática comum, partilhada em um contexto de existência. Se na infância a leitura de
textos escritos era uma prática quase inexistente na vida do protagonista, a partir do momento
em que os livros lhe são apresentados, desenvolve-se um processo em que o narradorpersonagem tenta ancorar algo que lhe era distante e inacessível aos seus valores, dando-lhe
uma feição de proximidade, estabelecendo relação com o que vivenciava, uma vez que a
leitura tornou-se, a princípio, uma possibilidade de preencher o tempo ocioso do cárcere, um
modo de refletir sobre a vida. As representações sobre leitura que transparecem na obra
denotam um processo de ajustamento à representação social dominante, de que a leitura
possibilitaria ao indivíduo um espaço de prestígio, de que teria imbuída uma capacidade
redentora.
O segundo mecanismo é o da objetivação, cujo propósito é “transformar algo abstrato em algo
quase concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico”
(MOSCOVICI, 2003, p. 61). Une-se, assim, o não-familiar à realidade, tornando-se a
verdadeira essência da realidade. De acordo com Moscovici, sob o aspecto da objetivação,
toda representação torna real um nível diferente da realidade.
Dessa forma, pretende-se analisar o modo como a atividade cognitiva do indivíduo Luís
Alberto Mendes - cercado por palavras, ideias e imagens que penetram seus olhos, ouvidos e
mentes, sem que possa controlar esse processo, como preconiza Moscovici - sofre a
intervenção das representações sociais sobre o modo como conhece e representa a leitura, sob
a perspectiva das funções que as representações possuem, já apresentadas. A leitura será
analisada sob esse duplo enfoque das funções: a primeira, de que forma as representações
sociais perceptíveis na obra convencionalizam a leitura, dando-lhe uma forma definitiva,
localizando-a em uma categoria e colocando-a como um modelo; a segunda, a função
prescritiva das representações sociais impõe um olhar redentor sobre a leitura, em virtude da
combinação de estruturas presentes no indivíduo e de uma tradição que decreta o que se deve
pensar acerca da leitura.
2.3.1 Os livros além das grades: a busca pelo prestígio social
Para Mendes, escrever é uma possibilidade de conhecer-se e compreender a trajetória pela
qual passara e passava, entendendo a sua existência. Isso se relaciona diretamente ao que
Moscovici delimita como a razão do estudo das representações sociais:
[o estudo das representações sociais] vê o ser humano enquanto ele tenta
conhecer e compreender as coisas que o circundam e tenta resolver os
enigmas centrais de seu próprio nascimento, de sua existência corporal, suas
humilhações, do céu que está acima dele, dos estados da mente de seus
vizinhos e dos poderes que o dominam: enigmas que o ocupam e preocupam
desde o berço e dos quais ele nunca para de falar. (MOSCOVICI, 2003, p.
42)
Mendes converte em escrita essa tentativa de autoconhecimento e de compreensão de uma
realidade circundante, e analisar, nessa escrita, a relação estabelecida entre o protagonista e a
leitura pressupõe delimitar algumas das representações possíveis para a leitura, a partir do
narrado. Uma primeira representação da leitura é sua convencionalização como
possibilitadora de prestígio social, atrelada à prescrição das leituras “adequadas” e a um
modelo partilhado por um grupo restrito de pessoas, o de que a leitura dos clássicos é o
modelo de cultura dominante.
Em Memórias de um sobrevivente fica latente, desde o início do relato, a condição social de
origem do protagonista, criado em uma família economicamente desfavorecida, com um pai
alcoólatra que não conseguia fixar-se por muito tempo em um emprego, gerando uma
constante instabilidade financeira:
[meu pai] Ficava dois, três meses desempregado. Essa era a sua rotina.
Atrasava o aluguel da casa. Vivíamos apavorados com a possibilidade de
despejo. Minha mãe acabava com sua já precária visão na máquina de
costura, até altas horas da noite. A vó nos sustentou sempre que pôde.
Ajudava a pagar o aluguel e colocava comida em nossa mesa, [...]. (p. 17)
Apesar de pouco escolarizados, o pai e a mãe do protagonista insistiam para que estudasse, o
pai pressionava Luís a continuar os estudos, mas o sentimento de Mendes era de não
pertencimento à escola, que o repelia, parecia uma prisão, “possuía grades e tudo o mais” (p.
28). Suas notas eram boas, mas seu comportamento era péssimo, o que o fazia ser repudiado
pelos professores. Sua rápida passagem pela escola foi apenas em decorrência da insistência
da família, provavelmente movida pelo desejo de não ver repetida no filho a condição de
pouca escolarização dos pais. Pode-se estabelecer uma relação entre esse desejo dos pais de
que o filho estude e a afirmação de Manguel sobre a ritualização da aprendizagem da leitura,
presente nas sociedades letradas:
Em todas as sociedades letradas, aprender a ler tem algo de iniciação, de
passagem ritualizada [...] A criança, aprendendo a ler, é admitida na
memória comunal por meio de livros, familiarizando-se assim com um
passado comum que ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura.
(MANGUEL, 2006, p. 89-90)
Em Memórias de um sobrevivente o ritual é consolidado, o filho de pais que praticamente não
estudaram é inserido na escola para que aprenda a ler, mas ao ato de ler não é atribuído um
valor cultural, a leitura foi deixada em segundo plano talvez não em virtude de um desejo, de
uma opção dessa família, mas de uma necessidade. Não há, em passagem alguma do relato de
Mendes sobre sua infância e adolescência, menção a leituras de textos escritos realizadas no
seio familiar, apenas são referidas passagens de muito trabalho, muita miséria e pouco lazer.
Embora não se possa negar que a leitura estivesse presente, essa não era a leitura de textos
escritos, que, no caso de Mendes, ficavam circunscritos à escola, nessa fase, mas a leitura de
mundo. Esse caráter amplo da leitura é discutido por Manguel, que afirma: “Todos lemos a
nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para
compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como
respirar, é nossa função essencial” (MANGUEL, 2006, p. 20). Essa acepção ampla de leitura
é corroborada por Yunes (2003, p. 42), quando afirma que ler é uma condição de
sobrevivência e que a todo tempo estamos lendo, decifrando o mundo do qual fazemos parte.
Mendes, desde a sua infância, decifrava o mundo, atribuindo-lhe sentidos. Percebia a
desigualdade social: “A moda era grife Calhambeque, que num lance publicitário muito
esperto ele [Roberto Carlos] lançou, fazia a cabeça dos adolescentes como eu. Só que era tudo
muito caro e impossível para pobres como eu” (p. 45); “Aquilo mexia comigo. Saía pelas
ruas, com a pasta cheia de tabletes de dinheiro e sem um tostão no bolso, olhando vitrines,
doces, sorvetes etc. Vendo com os olhos e lambendo com a testa” (p. 45). Já adulto, após a
aprendizagem da leitura, reflete: “O que acontecia comigo era simples. Possuía um
conhecimento do mundo, ao aprender a ler e assim entender melhor esse mundo, tal
conhecimento não se sustentava. Só me restava fazer uma releitura e reinterpretação desse
mundo. Simples” (p. 461).
Sobre a constituição do leitor, Jean Foucambert afiança que “são as condições familiares que
permitem tornar-se leitor” (1996, p. 26). Essas condições estão vinculadas ao status das
classes privilegiadas, pois a leitura é produto de um status social. Valoriza-se e estimula-se a
leitura porque pertencer ao universo dos leitores é ser valorizado socialmente. Mas esse
posicionamento de Foucambert é revisto em pesquisas de Jean Hébrard, demonstrativas de
que nem sempre essa aprendizagem da leitura dá-se em relação direta com as condições
familiares, como é o caso dos autodidatas trânsfugas das práticas culturais de seus círculos.
Jean-Claude Pompougnac, analisando relatos de formação, também reforça essa possibilidade
de acesso à leitura não apenas em virtude do condicionamento familiar27. As condições
familiares de Mendes não o fizeram estabelecer largo contato com a leitura em família, essa
27
A respeito das pesquisas de Hébrard, cf. subcapítulo 2.1. Pompougnac, subcapítulo 2.2.
tarefa ficou parcamente restrita à escola, já que essa experiência de leitura nos espaços
escolares também não é destacada. A tomada de consciência do protagonista sobre as práticas
de leitura só vai ser possível a partir da própria prática desenvolvida já no espaço do cárcere.
Por que se lê? Essa pergunta, intimamente relacionada ao universo de pesquisa da Sociologia
da Leitura, pode ser bastante significativa quando se analisam as causas das práticas leitoras
de Mendes. Ler, para o protagonista, apresentou-se como uma possibilidade de mudança do
horizonte cultural de origem, em que a leitura de textos escritos não se fazia presente,
vinculando o conceito de leitura à cultura, como conhecimento acumulado, e quanto mais
acumulação de conhecimento o narrador conseguisse, maiores seriam as suas chances de ser
aceito pela sociedade além-muro.
A leitura assume forte conotação social, como preconizado por Foucambert (1994), para
quem a leitura não passa somente pela decodificação dos signos, ela já nasce com outra
natureza e com objetivo de refletir sobre o mundo para poder agir e interagir com ele. Para
Abreu (1999, p. 15), "A leitura não é uma prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de
poder". Essa prática leitora protagonizada por Mendes assume esse caráter de campo de
disputa, em que o que se almeja é uma posição privilegiada no espaço social externo à prisão,
o que é explicitado tanto direta quanto indiretamente na narrativa.
A própria escolha dos livros a serem lidos reforça esse aspecto, uma vez que as obras, em sua
grande maioria, são representativas de valores da cultura hegemônica, consideradas como
leituras profundas, para um público intelectualizado e sábio, posição que o protagonista queria
alcançar. Quando o protagonista percebeu que seu acervo de leituras impressionava as
pessoas, principalmente as de fora do ambiente prisional, investiu mais ainda em leituras que
pudessem reforçar essa imagem:
[...] Meu negócio era acumular conhecimentos, pois acreditava que isso me
valorizaria para os outros. Eu carecia de importância, e queria chocar com
um tal volume de conhecimentos e informações que me destacasse da
minha condição prisional. (p. 467, grifos nossos)
Ao perceber que tal atitude resultava, já que possuía uma grande coleção de
amigos que me escreviam e admiravam meus conhecimentos e cultura,
reforcei-a mais ainda. Eu estava obtendo sucesso em meu intento, estava me
dando bem. Possuía uma curiosidade enorme por pessoas cultas e bem
falantes e as admirava muito, esse era meu ideal de ser. (p. 468, grifos
nossos)
Para Mendes, a ideia de ser “bandido”, “ladrão” e o ideal de crime e malandragem foram se
afastando de seu foco de visão, segundo sua perspectiva. Nesse esforço para libertar-se dessa
condição, reforça-se a crença em uma visão da cultura hegemônica em que se atribui valor
positivo à leitura. Assim, o aprendizado resultante das leituras, a cultura que considerava estar
adquirindo, levava-o a fazer uma releitura do mundo, para ele havia um lado “melhor”, ao
qual queria pertencer, embora ainda estivesse imbuído da cultura do crime, assimilada desde a
infância: “Estava no meu sangue, nos meus ossos, demoraria a vida toda para conseguir um
certo equilíbrio com a vida social” (p. 469).
Outro aspecto que reforça a representação sobre leitura como possibilitadora de prestígio
social diz respeito às características da escrita de Mendes, no que tange aos códigos refletidos
por ela. Maria Rita Sigaud Palmeira (2007) afirma que é perceptível em Memórias de um
sobrevivente um olhar duplo, pois a narrativa é fruto da dupla experiência de Mendes na vida
criminosa, uma é o fato de estar encarcerado, a outra, o contato com a vida letrada28. Por isso
a escrita cambia entre dois mundos, entre dois códigos, o dos encarcerados e o dos homens
livres e letrados. Mendes, em suas memórias, reflete sobre a prisão e a sociedade externa a
ela, mas o próprio fato de escrever e almejar a publicação de seus escritos já é uma
constatação de que o autor espera a legitimação da mesma sociedade a qual nega:
Essa dupla adesão aos códigos externo e interno à cadeia, articulada à
necessidade de legitimação por parte de, em acepção mais ampla, “um
sistema” que, como presos, desprezam por ser responsável por seu
encarceramento, rende uma resolução formal e narrativa ambivalente e
própria. (PALMEIRA, 2007, s/p)
A adesão ao código interno à cadeia pode ser comprovada com diversos acontecimentos
ocorridos no cárcere, como a aceitação, sob o ponto de vista do mundo prisional, dos crimes
cometidos pelos amigos Henrique e Carlão. Ao conhecer Henrique, na cela-forte, o escritor
descobre que este tentara matar outro presidiário, Jorginho, junto com o amigo de infância
Claudinho e essa era a causa de sua estadia naquele rígido regime de castigo. Sob a
perspectiva do mundo externo, a atitude de Henrique é execrável, tentara cometer um
28
Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Maria Rita Sigaud Palmeira pesquisa as
narrativas de prisioneiros da década de 2000 no Brasil.
homicídio, porém, sob as normas dos presidiários, sua atitude havia sido de solidariedade,
ajudava um amigo de infância, e é descrito como uma pessoa boa, generosa e despojada,
qualidades valorizadas pelo mundo dos homens livres, mas não da mesma forma na prisão.
Outro acontecimento representativo da adesão ao código de conduta vigente entre os
presidiários refere-se a um crime cometido por Carlão:
Quinta-feira era dia de fazer barba, cabelo e tomar banho. Os guardas do
Choque abriam as celas, passávamos pelo barbeiro, que raspava nossa
cabeça e cara, e entrávamos numa ducha. Numa dessas quintas, que eram
como dias de festa para nós, uma vez que saíamos da cela, tomávamos um ar
e nos víamos, o Choque nos soltou, e fomos para a ducha. Fiquei no último
boxe, como era meu costume, o Carlão ficava em frente. Preso é assim
mesmo: cada um estabelece um canto e se acostuma a fazer uso sempre
desse mesmo local. Acaba por se sentir proprietário de seus espaços
preferidos, e é, de certo modo, respeitado nisso. Cada um estabelece seu
território.
Tomava banho quando vi Carlão apanhar uma faca colocada na parte de
baixo do boxe dele. Já fiquei em suspense. Enxaguei o corpo rapidamente,
enxuguei-me e já fui saindo. Sabia quem ele iria pegar. Não queria assistir.
A gente nunca sabe o que pode acontecer em casos assim. Não é bom ficar
perto, no mínimo, podemos ser envolvidos como testemunhas, e
testemunha não é bem-vista na prisão (p. 438-439, grifos nossos).
Apesar de saber o que aconteceria, o narrador destaca o seu não envolvimento, não relatou aos
guardas o que aconteceria, sequer quis testemunhar o crime que seria cometido, para não
correr o risco de ser envolvido como testemunha, o que quebraria o rígido código de conduta
seguido pelos presos, em que delator é visto como traidor.
A escrita e a publicação de Memórias de um sobrevivente expõem a tentativa de construção de
uma identidade social de prestígio, inserindo-se no campo literário. No intuito de analisar esse
aspecto, é necessário recorrer à noção de campo na perspectiva do sociólogo francês Pierre
Bourdieu, especificamente o campo artístico, em sua estrutura e funcionamento. Em seu livro
As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário, Bourdieu (1996) afirma que a obra e
o artista só existem dentro de uma rede de relações visíveis ou invisíveis que definem a
posição de cada um em relação à posição dos outros, ou seja, uma posição social em relação a
uma posição estética.
Os campos, dentre eles o literário, segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e
hierarquias. Definem-se a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria
delimitação e são constituídos por redes de relações ou de oposições entre os atores sociais
que são seus membros. Todo campo está marcado por uma luta, “da qual se deve, cada vez,
procurar as formas específicas entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de
entrada, e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência”
(BOURDIEU, 1983, p. 89). Então, para que haja o funcionamento de um campo, faz-se
necessária a existência de objetos de disputas e interesses pessoais, em um jogo de
dominantes e aspirantes. A estruturação de um campo ocorre pela relação de forças entre
esses atores, embora nem sempre de modo consciente, e as lutas dão-se em torno da
apropriação de um capital específico, considerado legítimo. Bourdieu considera que as lutas
de representação, as quais levam ao estabelecimento de quem é digno de dada categoria,
como a de escritor, remetem à luta pelo monopólio do poder da consagração estética ou
intelectual.
Na escrita de Memórias de um sobrevivente percebe-se essa busca por instâncias
legitimadoras. Mendes não transforma o seu livro em espaço compartilhado pelos
companheiros, como acontece em outras produções recentes oriundas do cárcere, não
reproduz cartas trocadas, não há fotografias nem disponibilização do espaço para declarações
dos amigos da prisão. A não adesão a uma estratégia usada por outros escritores de narrativas
do cárcere contemporâneas pode reforçar o seu desejo de tornar-se um autor, sob os valores
culturais do mundo externo, além-grades. Mendes dirige-se a um público que possa alçá-lo à
condição de escritor, necessita desse reconhecimento, sua escrita busca uma aproximação com
publicações reconhecidas pelo campo literário29.
Para viabilizar sua legitimação nesse campo, no processo de publicação do livro o escritor
busca dispor de um capital de relações sociais, que compreende as relações de amizade, a
influência pessoal em determinadas instâncias e o favorecimento. Não obstante a qualidade
literária de Memórias de um sobrevivente, não se pode negar que a amizade estabelecida entre
o escritor e o jornalista Fernando Bonassi possibilitou a publicação do livro que, graças ainda
à inserção de Bonassi no meio intelectual, foi aceito por uma editora de prestígio nesse meio.
Para Mendes, somente o reconhecimento do jornalista é insuficiente, o que explicita no
“Epílogo”: “Para ele, eu já sou escritor. Eu ainda espero a publicação deste livro para me
considerar como tal” (p. 474). O protagonista acredita que só pode ser considerado escritor
29
Cf. subcapítulo 1.2, Memórias de um sobrevivente: uma escrita marginal, em que se analisa a utilização de
recursos literários na elaboração do livro.
quando alcançar o reconhecimento do público: “Eu sempre soube que o meu livro era
interessante e que merecia ser editado. Só era preciso encontrar quem o valorizasse” (p. 473).
Essa valorização não pode estar situada apenas no âmbito da prisão, mesmo porque, quando
Fernando Bonassi conhece Luís Alberto Mendes no cárcere, Mendes já ocupava uma posição
de destaque dentro desse ambiente, no que concerne ao seu objetivo de ser valorizado como
uma pessoa sábia. Dava aulas na prisão, era conhecido como “Professor”, dado o seu grau de
sabedoria, na opinião dos presos. A valorização almejada era a que proviesse de fora, do
mundo de fora, que mais parecia “ficção” (p. 443).
Luís Alberto Mendes escreve situado dentro de um ambiente marginalizado, o espaço
prisional, reflete sobre experiências que o levaram à criminalidade e as suas múltiplas
passagens por instituições de encarceramento, mas o seu escrito não é simplesmente resultado
de um desejo de colocar no papel suas memórias. O seu contato com a leitura promoveu
intensas transformações no protagonista e despertou-lhe interesses, sendo o mais significativo
deles estabelecer uma relação com o mundo externo, considerado mais letrado por ele, através
de sua escrita. Almeja tornar-se escritor e alcança o estatuto de autor, sempre destacando o
largo conhecimento adquirido através das leituras, lista o vasto cânone literário lido,
reforçando constantemente a sua importância.
No “Epílogo”, manifesta o seu desejo de “escrever sempre e para sempre” (p. 471) e afirma
que ainda é a mesma pessoa, contudo modificado: “Ainda sou aquele, mas sou também
outros. [...] Quer dizer: sempre mudamos, mas funcionamos dentro de um eixo, o núcleo do
que somos” (p. 471). Por fim, reitera que, boa ou ruim, a história escrita é a da vida dele:
“Quer dizer: sou o que resulta daí” (p. 477). Ou seja, como Mendes reitera, o que resulta de
sua escrita é o fato de que ele é um escritor, contudo é um escritor que passou trinta e quatro
anos na prisão, foi torturado, vilipendiado, humilhado e compartilhou os códigos do cárcere,
mas buscou, por meio das leituras empreendidas, alcançar um prestígio social que a vida
inteira lhe foi negado.
2.3.2 Por trás e além das grades: a salvação pela leitura
Em texto que discute a Teoria das Representações Sociais trinta anos depois do aparecimento
do conceito em obra de Moscovici, Jovchelovitch (2008) afirma que a teoria nasceu e cresceu
sob a égide de interrogações radicais, que repõe contradições e dilemas que ainda precisam
ser respondidos e aponta como a principal das contradições a relação indivíduo-sociedade e
como essa relação se constrói. A autora defende que as rupturas propostas pelas Teorias das
Representações Sociais recolocam nos espaços constitutivos da teoria e do método em
Psicologia social um lugar para o mundo social e suas solicitações, sem que se perca de vista
a capacidade criativa e transformadora de sujeitos sociais. Em seu texto, Jovchelovitch se
propõe a apresentar alguns dos modos como a Teoria das Representações Sociais
[...] se articula tanto com a vida coletiva de uma sociedade, como com os
processos de constituição simbólica, nos quais sujeitos sociais lutam para dar
sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar o seu lugar, através de uma
identidade social. Isso significa deixar claro como as representações sociais,
enquanto fenômeno psicossocial, estão necessariamente radicadas no espaço
público e nos processos através dos quais o ser humano desenvolve uma
identidade, cria símbolos e se abre para a diversidade de um mundo de
Outros. (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 65)
Esses sujeitos sociais estão postos em espaços da alteridade, em um mundo de Outros, como
afirma a autora. É nessa esfera pública que o sujeito precisa desenvolver sua identidade social,
processo em que as representações sociais se fazem perceptíveis. Emprega-se, aqui,
identidade na perspectiva da Psicologia social, que entende o homem como sujeito social,
inserido em um contexto sócio-histórico. Segundo Jacques (1998, p. 161), quando se fala em
identidade social, há uma referência aos atributos que assinalam a pertença a grupos ou
categorias. Dessa forma, o sujeito social constrói, reconstrói e desconstrói sua identidade no
contato com os Outros. Na obra em análise, pode-se perceber esse aspecto na maneira
ambivalente como o protagonista se apresenta, em virtude principalmente da sua relação com
os textos lidos.
A leitura, como já referido, assume em Memórias de um sobrevivente um papel crucial.
Dentre as representações aqui suscitadas é a representação da leitura como salvação a que
mais fica latente no relato do autor-narrador-personagem Luiz Alberto Mendes,
principalmente quando se observa a importância atribuída à mesma no processo de
transformação do autor e o seu desligamento de um comportamento ilícito e de uma
identidade criminosa, tão valorizada no pretérito.
Ao rememorar sua trajetória, revivendo as situações pelas quais passou, Luís Alberto Mendes
relê a sua vida e reflete sobre a sua identidade, problematizando-a. Ao colocar-se como
personagem de suas memórias, Mendes se apresenta de uma maneira dupla: o eu anterior,
sobre o qual reflete, e o eu atual, que analisa o passado, diferenciando-os. Essa questão da
diferenciação será uma constante na obra, tanto no que concerne ao seu envolvimento com a
vida criminal, quanto ao seu relacionamento com a leitura, parece haver uma necessidade de
Mendes de mostrar-se diferente dos outros, como algo necessário à constituição de sua(s)
identidade(s).
Isso pode ser percebido em diversas situações, por exemplo, quando o protagonista imerge no
banditismo, busca construir uma identidade criminosa, ser e parecer um “bandido” e, segundo
o seu relato, para fortalecer essa nova identidade seria necessário alcançar o prestígio
concedido ao malandro, ser o mais esperto, o criminoso diferente dos outros. Isso é
perceptível desde o início de sua inserção na vida criminal, na infância, desde os primeiros
furtos - induzido pelo amigo Carlito, que o estimulava a roubar frutas na feira, dinheiro em
casa, garrafas de bebidas em caminhões, entre outros delitos, - até o seu primeiro furto de
envergadura, aos dez anos de idade, quando roubou um isqueiro em formato de arma da
vitrine de uma relojoaria, desafiado por dois colegas:
Já era respeitado na rua pelos outros garotos como um sujeito com quem não
se podia mexer sem receber o troco. Criara essa imagem, cuidadosamente.
Depois dessa façanha, o respeito cresceu enormemente. E isso era tudo o
que eu queria: ser famoso e temido. Tinha de ser o melhor em tudo.
Gostava quando os garotos ficavam falando de meus feitos, cheios de
admiração, puxando o saco. Isso era mais importante que tudo, e faria o que
fosse preciso para manter tal admiração. (p. 23. Grifos nossos)
Por isso, a partir desse episódio, começou a elaborar roubos mais arriscados, até que se viu
obrigado a fugir de casa pela primeira vez, em função de suas ações e, quando retornou, foi
obrigado a começar a trabalhar, aos treze anos. Nesse período, o protagonista, ao realizar os
serviços de office boy na cidade, sentia-se atraído por suas luzes, suas vitrines, por tudo
aquilo que não podia ter. Era fã de Roberto Carlos e da moda da grife Calhambeque, lançada
pelo cantor, mas era tudo muito caro e impossível para pobres como ele, segundo o narrador.
Era fã também do Bandido da Luz Vermelha30, do Bando do Fusca31 e admirava os
assaltantes de banco que começavam a surgir em São Paulo, pois os julgava da maior
coragem.
Motivado por seus desejos de consumo, começou a aplicar golpes também no seu emprego,
roubava dinheiro do cofre, após descobrir o segredo, e elaborou um esquema de roubo mais
rentável que os pequenos saques diários aos maços de dinheiro guardados. Convenceu alguns
empregados a retirarem vales altos perto do final do mês e antes do pagamento roubava os
vales do cofre, e os empregados lhe restituíam metade do valor, referente aos vales, recebido
do patrão, que não possuía mais os documentos que comprovavam os saques realizados.
Depois de cerca de oito meses, foi demitido e, por isso, mais uma vez duramente castigado
pelo pai, que o obrigou a procurar novo emprego.
Seu novo emprego de office-boy nas Lojas Hirai, no centro da cidade, colocava-o mais em
contato com o seu objeto do desejo, a cidade e seus altos padrões de consumo. Levava sempre
muito dinheiro ao banco e certo dia fugiu com o dinheiro da empresa, levando junto um
amigo adolescente, em direção à cidade do Rio de Janeiro, após sacar os cheques e comprar
todas as roupas que namorara nas vitrines por tanto tempo. No Rio de Janeiro, envolveram-se
em aventuras amorosas, mas voltaram logo a São Paulo, como era procurado pela polícia, não
voltou para casa, ficou pelo centro da cidade, reencontrou-se com dois adolescentes que
estavam sendo perseguidos pela polícia, após cometerem um roubo, e juntou-se a eles:
Ficaram admirando minha roupa e abriram um sorriso enorme quando abri a
bolsa e lhes mostrei o monte de dinheiro que possuía. Contei a façanha do
roubo da loja, aumentando, é claro. Para eles, eu já era malandro (e esse era
30
João Acácio Pereira da Costa, o "Bandido da Luz Vermelha", nasceu em Santa Catarina em 1942 e faleceu
nesse mesmo estado em 1998. Foi um notório criminoso brasileiro. João Acácio ficou órfão com apenas quatro
anos e sua vida no crime iniciou-se a partir daí. Chegou em São Paulo ainda na adolescência, fugindo dos furtos
que praticara em Santa Catarina. Foi morar em Santos, onde se dizia filho de fazendeiros e bom moço. Na
verdade, levava uma vida pacata no lugar que escolheu para morar, praticando seus crimes em São Paulo e
voltando incólume para Santos. Sua preferência era por mansões. Seu estilo próprio de cometer os crimes
(sempre nas últimas horas da madrugada, cortando a energia da casa, usando um lenço para cobrir o rosto e
carregando uma lanterna com bocal vermelho) chamou a atenção da imprensa, que o apelidou de "Bandido da
Luz Vermelha", em referência ao notório criminoso estadunidense Caryl Chessman, que tinha o mesmo apelido.
31
Uma famosa quadrilha de assaltantes que dirigia um automóvel fusca para as fugas dos assaltos. Esse bando
alcançou larga fama em São Paulo, na década de 1960.
um título que eu queria muito), sujeito esperto a ser respeitado. Adorei o
jeito reverente como me tratavam! [...] Queria me mostrar mais malandro
ainda, aproveitando a oportunidade para formar minha nova identidade
de vez. (p. 49. Grifos nossos)
Esse fortalecimento da identidade criminosa prossegue por toda a sua vida, enquanto esteve
envolvido com a criminalidade, sempre pautado pelo aspecto da diferenciação. Como
bandido, desde cedo, não se considerava igual aos outros, era um criminoso cuja força estava
na astúcia e não na brutalidade: “Nunca fora, também, quando sozinho, um sujeito violento.
Sobressaía sempre pela astúcia e ousadia” (p. 122). Após as suas várias passagens pela prisão,
desde a adolescência, no Recolhimento Provisório de Menores, o RPM, depois o Instituto de
Menores de Mogi-Mirim, até a idade adulta, quando é encaminhado à Casa de Detenção de
São Paulo, dentre outras prisões, todos os parâmetros do narrador eram de prisão, em tudo
pensava como um preso. Sempre que cometia algum roubo, sentia uma necessidade de
esbanjar o dinheiro adquirido, para que os outros bandidos vissem o seu poder: “Malandro
tem essas necessidades. Precisa esnobar, desfilar com sua felicidade na cara dos outros
malandros para que comentem, exaltem e reafirmem seu prestígio no meio” (p. 255).
Na Penitenciária do Estado de São Paulo, durante os nove meses em que esteve sob o regime
de castigo denominado cela-forte, entrou em contato com a leitura, como já referido. Assim, a
leitura começou a preencher um importante espaço de seu tempo, até que se tornou um leitor
voraz. Em seu relato, o autor deixa entrever o valor altamente positivo atribuído à leitura, a
ponto de ser possibilidade de salvação: “Aquilo era importante demais para mim. Eu iria
construir uma nova história de minha vida, doravante. Uma história mais bonita” (p. 443.
Grifos nossos).
O trecho deixa perceptível a extrema capacidade de mudança atribuída à leitura. O narrador
desejava mudar e acreditava que por meio da leitura pudesse alcançar o seu intento. Mendes
desenvolveu uma relação intensa com a leitura, que se torna uma experiência vital para sua
existência, tanto quanto respirar. As relações criminosas já não o satisfaziam mais, segundo
seu relato, pouco tinham a acrescentar a ele. Novamente o aspecto da diferenciação se torna
uma constante, agora para marcar a diferença de interesses entre ele e um seleto grupo, o de
leitores na prisão, dos outros presos: “O submundo do crime começou a me parecer estreito,
limitado, e eu não cabia mais só ali” (p. 445).
À medida que lia mais e mais, o narrador expõe que sentia sua sensibilidade vindo à tona,
mais aguçada e requintada, em desacordo com o universo e a realidade nos quais estava
inserido. Começou a compor poesias, produzir diversos textos, discutir ideias que considerava
profundas, o que o levou a um processo de questionamento de si, o que era, quem era, por que
era assim, por que realmente estava preso.
Essa percepção da leitura como redentora abriu para Mendes a possibilidade de constituir
outra identidade, que o afastasse da identidade criminosa tão valorizada anteriormente e a
partir daí negada. Quanto mais lia, mais introspectivo e reflexivo se considerava, e profundas
mudanças comportamentais começaram a diferenciá-lo dos outros companheiros, os que
gostavam da “carnificina” na prisão, das brigas, enquanto Mendes sentia-se impelido a ajudar,
socorrendo as vítimas: “Eu estava muito mais civilizado e não me importava mais com isso de
ter nome e fama de bandido. Aliás, começara a perceber o quanto era melhor o anonimato, o
sossego de não me importar com o que os outros pensavam de mim” (p. 448).
A sua relação com a leitura tornou-se cada vez mais intensa, ler se transformou no seu projeto
de vida. Em 1974, o assassinato de um guarda por um preso deflagrou uma fortíssima
represália do Batalhão de Choque da PM, que invade a Penitenciária e tortura todo os presos,
de pavilhão a pavilhão, destruindo também os seus pertences. Após a agressão, o que mais
incomodou a Mendes foi a destruição dos livros, uma agressão à cultura:
Passei o dia a gemer e colar livros estourados. A cultura, na prisão, era
sempre a primeira a sofrer agressões. Os livros do preso sempre foram
tratados com o maior desrespeito. Durante o período que passei na
Penitenciária, briguei e discuti com os guardas do Choque e da Inspeção
(que vistoriavam as celas) centenas de vezes por conta do fato de eu sempre
possuir muitos livros e eles quererem tomá-los de mim. Eu amava aqueles
livros, e sua quase destruição doía-me mais do que as cacetadas que tomara.
(p. 453. Grifos nossos).
O trecho expõe o culto ao livro, um objeto salvador em Memórias de um sobrevivente,
aspecto semelhante ao expresso em Fahrenheit 451, novela do norte-americano Ray
Bradbury, publicada em 1953 e adaptada para o cinema em 1966, em filme dirigido por
François Truffaut, um dos expoentes da Nouvelle Vague francesa32. Tanto a novela e o filme
quanto o acontecimento acima retratado podem ser analisados sob a perspectiva de uma
crítica ao controle do pensamento e uma contundente defesa da importância da leitura. Na
novela de Bradbury, as obras queimadas não impediam o interesse de leitores por elas e livros
importantes eram preservados pela força da memória, remetendo à ideia mitológica da fênix
renascida das cinzas. As obras não se perdiam no fogo, reviviam por meio de seus leitores. Na
narrativa de Mendes, como mostra o fragmento, a destruição dos livros não significava o fim
do interesse do protagonista por eles e o ataque aos livros, à cultura, era mais doloroso do que
a agressão física.
O fragmento também remete a uma concepção generalizada, em sociedade, de que a leitura é
uma atividade prescindível, “um entretenimento, seguramente elevado e útil para o cultivo da
sensibilidade e das maneiras, [...] que pode ser sacrificado sem escrúpulos na hora de
estabelecer uma ordem de prioridades nos afazeres e nos compromissos indispensáveis da luta
pela vida” (LLOSA, 2004, p. 349). Essa concepção é criticada pelo escritor peruano Mario
Vargas Llosa em seu livro A verdade das mentiras. Para Llosa, a literatura não é passatempo
de luxo, mas sim “uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade
moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso mesmo, deveria ser inculcada nas
famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação como uma
disciplina básica” (LLOSA, 2004, p. 351). O escritor peruano considera que a literatura é uma
das melhores formas de ensinamento da riqueza do patrimônio humano.
Coadunado com essa perspectiva de Llosa, Mendes reveste a literatura de uma importância
salutar. Em seu relato, afirma que, a partir do encontro com a leitura, já não precisava tanto de
pessoas ou coisas, pois estava se acostumando a não se prender a nada nem a ninguém, mas
precisava de livros: “Precisava era de livros. Eles me bastavam, sempre me salvaram, daí
para a frente” (p. 454. Grifos nossos). Mendes atribui à leitura uma função redentora. Essa
32
A novela de Ray Bradbury e sua adaptação cinematográfica se passam em um futuro em que os livros são
considerados profundamente nocivos, pois tornam as pessoas inquietas, infelizes e improdutivas. Os livros são
artigos ilegais e devem ser eliminados pelo fogo disparado por agentes especiais, os bombeiros, que têm, nessa
sociedade, uma função precisa. Esquadrinham as casas de suspeitos que, às escondidas, entregam-se ao crime da
leitura. Ao encontrarem bibliotecas ocultadas do modo mais astucioso, põem fogo nos volumes. Nesse mundo de
liberdade suprimida, o protagonista da narrativa, o bombeiro Guy Montag, rebela-se contra o sistema e, ao invés
de queimar, passa a roubar exemplares de livros e levá-los para casa, formando uma pequena biblioteca
clandestina. Descoberto, torna-se, também, um dos perseguidos pelo sistema, como tantos outros leitores. Essa
perseguição leva-os a se esconderem em regiões não urbanas, à mercê de um destino itinerante. Assim,
memorizam os livros para que não desapareçam. Mais do que isso, tornam-se as próprias obras, perdem seus
nomes de batismo e passam a ser Os miseráveis ou O morro dos ventos uivantes. Tornam-se “vagabundos por
fora, bibliotecas por dentro” (BRADBURY, 2003, p. 188).
função da leitura corroborou para a constituição da nova identidade pretendida pelo narrador,
processada sob a tutela da diferença, pois esse leitor-escritor, aprisionado, afastou-se dos
outros presos, negando-os e, ao mesmo tempo, negando alguns valores do submundo do
crime, tentando tornar-se outro ser:
Errei muito nessa passagem, e a ela credito grande parte da culpa por
grandes sofrimentos posteriores. De um radicalismo pessimista, negativista,
individualista e primitivamente violento, quis passar para o outro extremo,
sem percorrer o caminho que leva de um extremo ao outro. [...] De bandidohomicida-latrocida, quis ser cidadão honesto e até meio santo. Larguei
maconha, cigarro, malandragem, contatos no meio criminal, até os amigos
envolvidos no submundo aos poucos fui abandonando. Não havia mais
afinidades. Dei uma virada total em minha existência. (p. 460)
Embora o autor tente abandonar seu envolvimento com o mundo do crime, assumindo outra
identidade, só lhe foi possível refletir sobre a sua existência tomando como mote exatamente
essa vida que tenta negar e suas ações passadas. Somente retomando o passado, pôde
reconstituir a sua história. O seu contato com a leitura permitiu-lhe aguçar a sua capacidade
de reflexão, relendo e reinterpretando o mundo e também a si próprio. Na concepção do
escritor, a leitura tornou-se o seu bote salva-vidas para retirá-lo daquela situação em que se
encontrava, como uma defesa aos inúmeros desafios que a vida no cárcere lhe impunha.
Tzvetan Todorov, no livro Em face do extremo, analisa o que ele denomina de experiências
estéticas e intelectuais vivenciadas por indivíduos em condição extrema de sobrevivência,
aprisionados em campos de concentração. Comenta o relato de Viktor Frankl sobre a vida nos
campos, em que este conta a descoberta, pelos detentos transferidos de Auschwitz para
Dachau, de uma nova experiência. Em Dachau, embora em meio ao cansaço, ao frio, a
natureza mostra-se mais bonita e sua contemplação e admiração tornam mais suportáveis as
agruras da prisão. Acerca desses relatos, Todorov comenta:
Lendo tais passagens, sente-se que essa experiência – que poderíamos dizer
estética – representa não só um prazer para quem a experimenta, mas
também uma elevação moral; o espírito abandona suas preocupações
imediatas, utilitárias, para contemplar a beleza. Por isso mesmo, também ele
se embeleza. (TODOROV, 1995, p. 106).
Em relação às experiências intelectuais, Todorov salienta a importância atribuída pelos
detentos, nos campos de concentração, aos livros, objetos proibidos. Lê-los representava o
contato com a beleza que os livros encarnavam e a experiência de liberdade de espírito
experimentada ao entrar em comunicação com os criadores, os autores dos livros. Um dos
exemplos suscitados é o de Eugenia Guinzbourg, que, durante sua passagem como prisioneira
pelos campos de concentração, mesmo na falta de livros, trazia-os na memória. Recitando
poesias, distraía suas companheiras e, ao mesmo tempo, exercia uma forma de resistência pela
leitura: “Meu instinto dizia-me que mesmo que minhas pernas tremessem, mesmo que minhas
costas se quebrassem sob o peso das padiolas cheias de pedras escaldantes, eu continuaria
viva, se a brisa, as estrelas e a poesia continuassem a me emocionar”. (GUINZBOURG, 1980,
apud TODOROV, 1995, p. 107).
Pode ser estabelecida uma analogia entre essas experiências analisadas por Todorov e as
vivenciadas por Mendes, relatadas em Memórias de um sobrevivente. Também para o autor a
leitura se constitui em bem mais do que uma atividade intelectual, torna-se experiência
estética, a ser buscada e que é revestida de uma importância similar à vivenciada por
Guinzbourg. Embora em situação adversa, em um ambiente em que a leitura é vilipendiada,
seu contato com os livros transforma-se em uma relação quase amorosa. Pela leitura, Mendes
busca a salvação. E essa intensa relação vai continuar mesmo após a libertação do escritor,
mas já em uma tentativa de levar para outros presidiários, através da realização de oficinas de
leitura, uma experiência estética a ser partilhada.
Entender a leitura como salvação remete a uma interpretação metafórica. O escritor espanhol,
crítico e professor de Literatura Victor Moreno, em um instigante livro intitulado Metáforas
de la lectura, analisa a leitura como uma das experiências emotivo-intelectuais que mais gera
comparações entre teóricos e escritores. Moreno afirma que se compara com tanta paixão
metafórica a leitura a mil e uma realidades que muitas vezes o objeto da comparação passa a
fazer parte da vida das pessoas, mais do que a própria leitura. Desconstruindo metáforas como
ler é uma aventura, um jogo, uma viagem, campos magnéticos, felicidade, dentre algumas
outras, o autor provoca a reflexão sobre um assunto extremamente importante, a leitura, e as
imagens que se constroem desse ato de ler:
La defensa de la lectura y de los libros, así como de la literatura, está más
que saturada de metáforas. Algunas, desde luego, mucho más vacías que
estas que acabo de señalar. Especialmente vacías son aquellas que presentan
los libros como cumbres, cimas y himalayas más o menos nevados cuya
conquista lleva aparejadas recompensas múltiples y felicísimas. (MORENO,
2005, p. 122)33.
Ao criticar, dentre outras, a “muleta metafórica” da leitura como um jogo, Moreno assinala as
características do ato de ler:
Leer posee todos los boletos para ser considerado como un trabajo emotivointelectual, arduo y difícil. Y no es lo hagamos así, que también, sino que lo
es por esencia. […] Leer exige concentrarse, determinar significados y
extrapolarlos al sentido de la vida que uno vive y desea vivir. Leer es
descifrar. […] Es un trabajo muy duro. (MORENO, 2005, p. 34)34.
Mas, em Memórias de um sobrevivente, a metaforização da leitura como salvação não é
meramente um jogo de sentidos. Associado a esse caráter de concentração atribuído ao ato de
ler, discutido por Moreno, em Mendes a leitura é, sim, salvação. Claro que esse processo está
relacionado às contingências individuais do escritor, pois, como afirma Moreno, “quiera o no
reconocerse, leer es simplesmente eso, uma elección apetecible acotada por unas limitaciones
temporales y personales, de las que raramente se habla”35. (MORENO, 2005, p. 202). É a
partir dessas escolhas do leitor Mendes que suas práticas leitoras se concretizam, mas
sinalizando para a busca por uma salvação, uma necessidade de sobrevivência em meio às
adversidades. De acordo com Eliana Yunes, “ler é uma condição de sobrevivência. Aos
homens que não lêem, e não apenas o verbal, não é fácil sobreviver” (YUNES, 2003, p. 42).
Luís Alberto Mendes sobreviveu, principalmente em função do uso que fez da leitura, tanto
na larga acepção adotada por Yunes, quanto em sentido mais estrito, a leitura dos textos
impressos, de um vasto acervo literário, leituras que ele realizou como uma possibilidade de
mudar de vida, de salvar-se, relendo e reescrevendo a própria história.
33
“A defesa da leitura e dos livros, assim como da literatura, está mais do que impregnada de metáforas.
Algumas, desde sempre, muito mais vazias do que estas que acabo de apontar. Especialmente vazias são aquelas
que apresentam os livros como cumes, topos e himalaias mais ou menos nevados cuja conquista traz múltiplas e
felicíssimas recompensas”. (Tradução da autora do trabalho).
34
“Ler possui todos os bilhetes de entrada para ser considerado um trabalho emotivo-intelectual árduo e difícil.
E não é que o façamos assim, mas sim que o é por essência. Ler exige concentrar-se, determinar significados e
extrapolá-los ao sentido da vida que alguém vive e deseja viver. Ler é interpretar. [...] É um trabalho muito
duro”. (Tradução da autora do trabalho).
35
“queira ou não reconhecer-se, ler é simplesmente isso, uma escolha desejável delimitada por algumas
limitações temporais e pessoais, das quais raramente se fala”. (Tradução da autora do trabalho).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evelina Hoisel, em seu livro Grande sertão: veredas – uma escritura biográfica, defende a
tese de que toda escritura literária traz, como sua marca constitutiva, a biografia, configurando
o que a autora denomina de escritura biográfica, presente em toda e qualquer obra literária.
Para a autora, antes mesmo de se constituir como um gênero historiográfico ou como uma
tipologia literária, a “biografia é marca indissociável, está presente na cena da escritura onde o
sujeito se dramatiza, e cuja dramatização é apreendida no palco da própria linguagem, no
espaço do livro”. (HOISEL, 2006, p. 11).
Hoisel amplia os limites do pacto autobiográfico de Philippe Lejeune e afirma que o pacto
autobiográfico (ou biográfico) sustenta a produção da escritura literária e ainda da leitura
poética, mesmo que não haja identidade aparente entre autor-narrador-personagem, como
preconiza Lejeune. Nessa perspectiva de Hoisel, todos os textos literários trazem em si o
rastro, o estilo do escritor, mesmo que não sejam assumidamente biográficos ou
autobiográficos e o nível de identidade ultrapassa a estabelecida pela correlação autornarrador-personagem, “[Ela] é mais visceral, está no emaranhado do texto, na superfície dos
signos, nas pausas, na pontuação, no tom, no ritmo, [...]. Está enfim no estilo”. (HOISEL,
2006, p. 14).
Considerando-se a concepção da escritura biográfica proposta por Hoisel, em que a
abordagem da construção biográfica e autobiográfica parte de uma vinculação indissociável
entre o ser e a linguagem, pode-se afirmar que a crescente produção literária de Luiz Alberto
Mendes traz essa marca biográfica, o autor se insere em todos os seus textos, o seu estilo se
demarca no texto que se constrói, mesmo naqueles que não se apresentam como vida grafada.
Em Memórias de um sobrevivente, Luís Alberto Mendes lê a si mesmo, apresentando-nos um
retrato de Luís Alberto Mendes pelo próprio Mendes. Nesse processo, o eu que transparece
nessa escrita autobiográfica encena-se, dramatiza-se, lendo e relendo-se.
Memórias de um sobrevivente, a primeira publicação do escritor Luís Alberto Mendes,
embora assumidamente autobiográfica, começa a demarcar os rastros do estilo do autor, que
podem ser reconhecidos em seus livros subsequentes. Dono de um estilo peculiar, é
comparado - por Fernando Bonassi, dentre outros -, a Jean Genet. Bonassi considera que em
Mendes a poesia se manifesta em força bruta: “É uma revisão emocional do próprio passado
para se aliviar dele. Parece Genet, porque não faz nem mea culpa nem concessões à
sociedade” (GIRON, 2002, p. 40). Se se observa o modo como a escrita de Genet ocorre,
também se apontam similitudes. Maria Rita Kehl (2002), pautada em Sartre, afirma que Genet
escreveu todas as suas peças em períodos curtos e intensos de trabalho ininterrupto, sob forte
tensão interna. Em Mendes, a escrita de seu primeiro livro ocorreu em curto período de
tempo, em três meses, segundo seu depoimento. Tal qual em Genet, a criação literária
apresenta-se como um “recurso contra a angústia provocada pelo encontro com o real”.
(KEHL, 2002, p. 172).
Mendes registra nas páginas de suas memórias a sua íntima relação com a leitura. Ao se
considerar uma ampla acepção da leitura, todos são leitores. Como preconiza Yunes (2003), a
leitura é uma prática obrigatória para todas as coisas que se fazem, lê-se o mundo à volta, as
pessoas com as quais se convive, as situações enfrentadas. O tempo inteiro, em seu relato,
Mendes descortina ao leitor o seu processo de leitura e releitura não somente dos textos, mas
de sua própria vida, consubstanciado na análise das mais variadas situações pelas quais
passou, permitindo-lhe lê-las e relê-las, tendo como referência o seu texto pessoal.
Entretanto, no relato de Mendes destaca-se a ênfase dada à leitura de textos escritos, por meio
de obras literárias. Em relação à leitura desse tipo de texto, Mario Vargas Llosa salienta que a
literatura “é um questionamento do mundo em que vivemos”, ela “não diz nada aos seres
humanos satisfeitos com sua sorte, que se contentam com a vida tal como a vivem. Ela é
alimento de espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para aquele a
quem falta algo na vida, [...]” (LLOSA, 2004, p. 359).
Llosa carrega de sentidos metafóricos a função da leitura e da literatura. Vistas como
“alimento para espíritos indóceis”, parece ser essa a carga semântica adotada por Mendes em
seu processo de constituição de leitor. Enclausurado, insatisfeito com a vida que tinha,
buscava na leitura a vida que não lhe bastava, não lhe oferecia tudo o que queria, como
defende Llosa (2004), que complementa: “A literatura não começa a existir quando nasce, por
obra de um indivíduo; somente existe de verdade quando é adotada por outros e passa a tomar
parte na vida social, quando se torna, graças à leitura, experiência compartida”. (LLOSA,
2004, p. 354).
Esses aspectos relacionam-se às representações sobre leitura perceptíveis em Memórias de um
sobrevivente, relacionadas ao processo de constituição leitora do autor. Experiência salutar, a
leitura permitiu a Mendes uma possibilidade de reflexão sobre a vida. Por fazer parte de um
grupo marginalizado, o de presos, por meio da leitura também se buscava uma inserção no
meio intelectual de prestígio, em que a “qualidade” dos livros lidos pode ser um passaporte de
acesso. Mendes também credita à leitura o seu processo de modificação, a sua redenção:
“Sempre é possível levantar e caminhar, só é preciso motivação que alimente a vontade” (p.
471).
Mas a leitura de livros, por si só, não leva ninguém a uma ascensão social nem redime dos
erros cometidos. Entretanto, pode permitir ao indivíduo que lê a reformulação de seus
horizontes de expectativas, levando-o a construir outras atitudes em sua existência. Sendo
assim, a leitura “salvou” Mendes, permitiu-lhe a construção de um conhecimento que o levou
a se modificar e sobreviver, não sucumbindo ao ambiente sufocante da prisão. Se, como
afirma Sônia Régis Barreto (2005, p. 512), a leitura é o lugar de um sujeito complexo, que
tanto pode ser autor quanto leitor, que se ensaia no texto, esta se constitui em forma e
consciência do pensamento, forçando esse sujeito à ação da interpretação. Em suas leituras,
Mendes passou por esse processo, interpelando o lido e interpelando-se, em um processo
dialógico. Essa leitura que se realiza em Memórias de um sobrevivente - situada fora do
âmbito social comum, uma vez que esse leitor que alça sua voz estava sob situação limite de
sobrevivência, enclausurado - apresenta-se como uma possibilidade de salvação.
O livro de Mendes, objeto desse estudo, é uma escrita oriunda do sistema prisional. Na
apresentação da obra, Bonassi comenta:
Se é sabido que a palavra empenhada é muito forte num presídio, é bom
saber que a palavra escrita também o é. Cartas, diários, poemas... embora
„aqui fora‟ raramente nos interessemos por essas manifestações, elas
representam, se não o único, o principal meio de reflexão e expressão do
mundo afetivo e espiritual de milhares de brasileiros postos para mofar nas
nossas cadeias. (MENDES, 2005, p. 9)
Mais do que apenas um meio de reflexão e expressão de um ex-presidiário, Memórias de um
sobrevivente deve ser inserida na história da literatura. Acerca da significativa produção
marginal contemporânea, um dos mais importantes representantes desse segmento, o escritor
Ferréz, afirma: “Estamos na rua, loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e
somos marginais mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os
olhos, virar as costas, mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social que
divide este país” (FERRÉZ, 2005, p. 12). Se se analisa a filiação de Memórias de um
sobrevivente a essa denominada literatura marginal, é perceptível um movimento paradoxal.
Ao mesmo tempo em que se pode associar a primeira publicação de Mendes a essa literatura,
em virtude do contexto periférico a que se refere e a posição do autor quando da publicação,
situado em uma situação limite de existência, tentando fazer ouvir a sua voz, também se pode
perceber que o livro ultrapassa essa condição. O contexto de publicação é um dos argumentos
mais consistentes acerca disso. A obra foi publicada por uma prestigiosa editora, alcançou
larga aceitação de público e cobertura jornalística considerável.
Entretanto, embora a recepção crítica acadêmica que se construiu sobre Memórias de um
sobrevivente seja extremamente positiva, ainda é pequeno o número de pesquisas sobre essa
produção específica ou acerca de outras da mesma lavra. A crítica literária brasileira precisa
analisar novos escritos como esse com mais profundidade, buscando traçar um painel do que
se tem produzido no Brasil, o que isso tem representado. Essa produção oriunda das prisões
precisa ser analisada com mais ênfase, objetivando entender as razões para a proliferação de
tantos escritos do tipo, mas, principalmente, analisando-as como obras literárias, observadas
em sua singularidade e cada uma com seus aspectos peculiares. E é essa a principal
contribuição que se pode depreender da publicação de Memórias de um sobrevivente.
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