Pequenos comentários sobre os livros indicados para o vestibular 2010-UFMG Livros obrigatórios para o vestibular da UFMG/2010: 1. Sermão da Sexagésima, do Padre Antônio Vieira; 2. Bom crioulo, de Adolfo Caminha; 3. Cobra Norato, de Raul Bopp; 4. Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; 5. Antes do baile verde, de Lygia Fagundes Telles. Padre Antônio Vieira Sermão da Sexagésima Padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa no ano de 1608 e veio com a sua família para o Brasil, mais precisamente para a Bahia, em 1614, quando tinha apenas seis anos de idade. Pouco tempo depois, ingressou no Colégio dos Jesuítas, do qual não mais se afastou. Seu primeiro sermão foi o Sermão XIV da série Maria, Rosa Mística, pregado em 1633, e dois anos após, foi ordenado sacerdote. Na resistência moral à invasão holandesa na Bahia, o Padre Vieira teve papel importante, que pode ser constatado através dos seguintes sermões com os respectivos anos em que foram proferidos: Sermão de Santo Antônio, 1638; Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, 1638 e o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, 1640. Em 1641, logo que soube que o país onde nascera havia libertado-se do domínio espanhol, viajou para Portugal, na denominada "embaixada de fidelidade" ao novo rei. No Reino, participou ativamente da vida política da época, colocando-se em defesa dos cristãos-novos e suscitando o ódio da Inquisição, tendo problemas com esse segmento da Igreja Católica. Sua defesa aos cristãos-novos fica explicita na "Proposta a El-Rei D. João IV", que também continha um plano de recuperação econômica para o Portugal. No ano seguinte, foi nomeado pregador regio. Em 1649, sofreu a ameaça de ser expulso da Ordem dos Jesuítas, no entanto, D. João IV fez oposição àquela sanção. Anos depois, regressou ao Brasil, estabelecendo-se no Maranhão onde passou a dedicar-se à evangelização dos índios e à defesa destes contra os colonos. Tal conflito culminou com sua expulsão e de toda a Companhia no ano de 1661, quase dez anos depois do seu regresso ao Brasil. Retornando a Portugal, foi perseguido e processado pela Inquisição. Conseguiu livrar-se dos seus problemas com a Inquisição, que segundo Amora (2000) foi "conseguida por meios políticos" e assim "partiu para Roma, onde obteve a revisão de seu processo e voltou a conquistar (no Vaticano e nas reuniões literárias da rainha Cristina da Suécia), os antigos triunfos de excepcional pregador". Vieira voltou a Portugal em 1678, e no ano seguinte dá início à publicação de seus Sermões Completos. Ao retornar definitivamente à Bahia em 1681, reviu e organizou seus sermões para publicação. Padre Antônio Vieira morreu no dia 18 de Julho de 1697, no Colégio da Bahia, com 89 anos de idade. Sobre a sua literatura, pode-se classificá-la como pertencente ao período barroco. Sua obra constitui-se de cerca de 200 sermões , 500 cartas - importantes documentos históricos que abordam a situação da Colônia, a Inquisição, os cristão-novos, a relação entre Portugal e Holanda, entre outros fatos - e, ainda, profecias. Considera-se que o melhor de sua obra encontra-se nos sermões que, em linguagem simples e sem torneios de estilo, revelam extraordinário domínio da língua, imaginação, sensibilidade, humanidade e convicções. Utilizando-se da retórica jesuítica no trabalho das idéias e conceitos, Vieira mostrou-se um barroco conceitista, no desenvolvimento de idéias lógicas, destinadas a persuadir o público, e clássico na clareza e simplicidade de expressão. Seus temas preferidos foram: a valorização da vida humana, para reaproximá-la de Deus, e a exaltação do sofrimento, porque nele está o caminho da salvação. Das obras do Padre Antônio Vieira, vamos destacar o Sermão da Sexagésima, pregado em 1655 na Capela Real, que versa sobre a arte de pregar em suas dez partes. Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Ao traçar paralelos entre a parábola bíblica sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra (que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores contemporâneos seus, considerando que pregavam mal, pois pregavam sobre vários assuntos ao mesmo tempo, logo o resultado era a pregação de nenhum assunto, em decorrência disso, para Vieira, a pregação tornava-se ineficaz, a agradar aos homens ao invés de agradar a Deus. Possivelmente, tal visão decorre de que é mais fácil pregar para agradar aos homens do que a Deus, pois quem está a ouvir, a seguir a religião, e a construir novos templos, são os homens e não Deus. Quem tem o poder para seduzir com bens materiais aqueles que pregam em nome de Deus - sejam esses pregadores Padres, Freis, Abades... -, é o homem, e não o próprio Deus. Então, é mais fácil pregar para os homens do que para Deus, talvez sendo daí o interesse demasiado em pregar para agradar aos homens. Também são os homens insatisfeitos que podem adotar outra religião - como ocorreu com aqueles que aderiram ao calvinismo, ao anglicanismo ou optaram por seguir o "luteranismo" - ou ainda são os homens que podem decidir por seguir a ala do próprio catolicismo que esteja a pregar da forma que mais convém ao ouvinte. O assunto básico do sermão, à primeira vista, é a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores. Um olhar mais profundo mostra que o autor vai além do objetivo da catequese, adotando atitude crítica da codificação da palavra. Percebe-se, também, que o Sermão é usado como instrumento de ataque contra a outra facção do Barroco, representada pelos chamados cultistas ou gongóricos. No Sermão da Sexagésima, Vieira expôs o método que adotava nos seus sermões: 1. Definir a matéria. 2. Reparti-la. 3. Confirmá-la com a Escritura. 4. Confirmá-la com a razão. 5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos "argumentos contrários". 6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar. Vale ressaltar o contexto histórico da época do Padre, uma época onde várias atitudes tomadas pelo catolicismo eram apoiadas inclusive pelo próprio poder temporal - já que não é simples separar a Igreja e o Estado português neste momento da história -, como converter almas ao cristianismo. Nessa época, o mundo assistia: a Santa Inquisição a atuar em pleno vapor, que inclusive fez visitações ao Brasil colonial nas regiões Nordeste e Norte, além de em outras terras pertencentes ao Império Colonial Português como Angola, Madeira e Açores, e vale ainda citar que Goa possuía o seu próprio tribunal do Santo Ofício; também assistia-se a imposição do cristianismo para muitos índios no Brasil; além dos negros africanos que para cá foram trazidos e também foram-lhes imposto o catolicismo. Considerando o contexto de conversões forçadas da época do Padre Vieira e analisando apenas o sermão que fora pregado em 1655, o padre aparenta ser contra a conversão forçada que imperava no período. No entanto, em alguns sermões ele justifica a escravidão, tanto indígena quanto a negra, com argumentos religiosos, como o de que no juízo final esses escravos terão suas almas salvas, no Céu serão servidos pelo próprio Deus, ou ainda, a comparar o sofrimento dos escravos ao martírio do próprio Cristo. É bem verdade que Vieira tivera problemas com os colonos no Brasil causados pela questão da escravidão, pois posicionava-se a favor da igualdade que não agradava em nada aos habitantes da Colônia e ao voltar ao Reino, não recebeu da regente Dona Luísa o mesmo apoio que fora dado a ele por D. João IV (que a essa altura já havia falecido), além de a Inquisição ter-lhe proibido em 1663 de pregar em terras portuguesas. Vieira questionava a escravidão e a desigualdade com argumentos como que um dos Reis Magos era negro; "hei-de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?!"; e que ao ser batizado, todos são iguais perante Deus, meio da irmandade entre todos os seres humanos; e ainda como afirma Bosi "Do ponto de vista da ortodoxia Vieira sabia-se respaldado por vários documentos de papas favoráveis à liberdade dos índios (...)" No entanto, Bosi ainda mostra que "sob o pretexto de guerra justa, a Igreja permitira o cativeiro..." e Vieira possuía a mesma postura ambígua e contraditória de sua Igreja: "Não é minha tenção que não haja escravos, antes procurei (...) que se fizesse (...) [o] cativeiro lícito". Pode-se entender que a adoção da idéia de cativeiro lícito foi uma forma de conciliar os interesses, uma concessão por parte de Vieira para amenizar os problemas que estava a ter com os colonos cá no Brasil. Assim, "chega o momento da proposta conciliadora que Vieira apresenta aos colonos renitentes", que classifica as populações que tinham a possibilidade de ser escravizadas no Maranhão em três grupos que são "os escravos que já estão na cidade", que tem o direito de escolher se continuam a trabalhar ou não; "os que vivem nas aldeias de el-rei como livres"; e os que "vivem nos sertões", que só poderiam ser trazidos aqueles que estivessem presos em tribos inimigas e para serem mortos, é o que justificava a escravidão. Também é valido ressaltar que o discurso de Vieira para os escravos de origem africana era sempre a comparar o sofrimento deles ao martírio de Cristo, a persuadir os negros com a identificação entre eles e o Deus filho: "Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão". Sobre a escravidão dos povos de África, Vieira ainda afirma, no sermão XXVII, que o sacrifício que estavam a passar era compensador, pois assim essas almas estariam redimidas por terem no passado seguido religiões pagãs ou terem vivido sob o Império Islão, e que o cativeiro era algo somente terreno, além de ser um meio para em um plano superior conseguirem a liberdade, e a liberdade eterna, a liberdade da alma. Vieira ainda afirmou que "todos aqueles escravos que neste mundo servirem a seus senhores como a Deus (...) no Céu, senão o mesmo Deus em Pessoa, o que os há-de servir". Portanto, é evidente a postura contraditória do Padre Antônio Vieira, pois ora ele posiciona-se a favor das populações oprimidas pela escravidão, inclusive a incomodar os colonos - visto o problema que teve com estes no Maranhão, por exemplo -, ora ele justifica a escravidão com argumentos religiosos, principalmente nos discursos para os cativos. Independente de ter sido a intenção de Vieira ou não, fato é, que argumentos religiosos muitas vezes são usados para tentar manipular populações de acordo com os desejos e as necessidades da classe dominante. Pois ao causar medo nos ouvintes da fúria de um Deus impiedoso ou prometendo para injustiçados e para aqueles que a vida era uma completa desgraça - como no caso dos escravos - uma vida melhor e mais justa em um outro plano, o espiritual, que é superior e eterno, acaba por fazer que essas populações tenham esperança de conseguir a liberdade um dia, nem que seja no pós-morte. Muitos dos argumentos utilizados para os escravos por parte de Vieira podem ser entendidos como uma maneira de "acalmar os ânimos" das vítimas da escravidão, fazendo com que essa população passe a conformar-se com o seu estado de subjugação e projete para um plano superior a solução dos seus problemas, que na verdade eram insolúveis. Mas por mais que argumentos religiosos tenham tentado fazer com que essas populações aceitassem passivamente a sua situação por estar a serviço de uma Igreja - que era altamente atrelada a um Estado que tinha como base na Colônia a escravidão de índios em um primeiro momento e depois de negros africanos -, ou de classes que tinham interesse na escravidão, se essas populações aceitaram tal discurso religioso quem sabe não é porque tiveram realmente as suas sofridas almas confortadas por ele ou por outros sacerdotes. Por mais resistências em relação ao cristianismo que tenham havido por parte de índios e negros, aceitar a religião do dominador, daquele que o escraviza é algo realmente difícil, e se aconteceu, quem sabe em parte não foi por pregadores dotados de uma grande capacidade de persuasão, como era o caso de Vieira. Sobre o Sermão da Sexagésima, seu autor interessava saber o motivo de a pregação católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. "Sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa", pergunta ele, "como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?" Depois de muito argumentar, Vieira conclui que a culpa é dos próprios padres. "Eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus", afirma. Dito de outra maneira, o jesuíta reclama daqueles que torcem o texto da Bíblia para defender interesses mundanos. No sermão proferido, o Padre também procura criticar a outra facção do Barroco, logo a utilizar o púlpito como tribuna política. No entanto, se muitas vezes o Padre Antônio Vieira procurava conduzir a opinião pública de acordo com a sua visão, transformando o púlpito em tribuna política, isto não era uma característica somente sua: "no século XVII, como frisou C. R. Boxer, o púlpito desempenhava também funções que hoje cabem aos jornais, à rádio, à televisão, enquanto instrumentos nas mãos dos governantes." Adolfo Caminha O Bom Crioulo Romancista, contista, poeta. Após a morte da mãe, Adolfo Caminha ficou órfão com mais cinco irmãos, e foi para a casa de parentes em Fortaleza. Seis anos depois, em 1883, mudou-se para a casa de seu tio no Rio de Janeiro, que o matriculou na antiga Escola de Marinha. Em 1886, saiu a publicação em versos de Vôos incertos. No mesmo ano, fez uma viagem de instrução aos Estados Unidos. No dia 16 de dezembro de 1887 foi promovido a segundo-tenente e publicaram Judite e Lágrimas de um crente, livros de conto. Em 1888, regressou a Fortaleza e envolveu-se em um rumoroso escândalo, ao raptar a esposa de um alferes. O Ministro da Marinha interferiu, mas inutilmente, e em 1890, muito pressionado de todos os lados, Adolfo Caminha se demitiu e, com a mulher e duas filhas, seguiu para o Rio de Janeiro, onde viveu como funcionário público. Em 1891, lançou o romance A normalista e colaborou nos jornais Gazeta de Notícias e O País. Em 1894, publicou No país dos ianques, fruto de sua ida, oito anos antes, aos Estados Unidos. Um ano depois, os romances Bom-Crioulo e Cartas literárias. Em 1896, ano em que fundou o semanário Nova Revista, publicou o romance Tentação. Atormentado pelas dificuldades financeiras e debilitado pela tuberculose morreu precocemente. Deixa inacabados os romances: Ângelo e O emigrado. Considerado um dos mais perfeitos exemplos do Naturalismo nas letras brasileiras, O Bom Crioulo em tudo defende a tese determinista, segundo a qual o homem deve ser retratado dentro de um ambiente pernicioso e podre, decorrendo daí seu caráter enfraquecido e perverso, sua falta de travas morais, sua perversão, principalmente sexual, causadora de seqüelas irreversíveis como a bestialização, a insanidade mental, a histeria ou a degradação. Nesse romance, pela primeira vez na Literatura brasileira, é tratado o tema do homossexualismo, tendo como foco a vida dos marinheiros, retratada, às vezes, com requintes descritivos que chegam às raias da fotografia. Narrado em terceira pessoa, esse romance, datado de 1895, tem como protagonista o jovem Amaro, negro escravo, homem forte e de boa índole, mas de espírito fraco que foge da escravidão e se embrenha na Marinha. Aí conhece Aleixo, grumete que atrai o bom crioulo por ser exatamente o oposto, branco e frágil. A narrativa transcorre linear, e gradativamente o autor deixa o leitor conhecer um vasto painel dos fatos que envolvem o caso amoroso de Aleixo e Amaro. No entanto, Aleixo também é o ponto máximo do amor da portuguesa Carolina, prostituta, mulher excessivamente carente, que nunca havia conhecido o amor desinteressado e é atraída pelo espírito infantil do rapaz branco, pelos olhos azuis e puros. Na terra, envolve-o pelo amor carnal e passa a ser sua amante, mãe, amiga e transpõe para Aleixo todo seu coração reprimido pelas cruezas da vida, ama-o como mulher e como mãe, uma vez que ela não tivera a oportunidade de gerar filhos. O ciúme interfere nesse singular triângulo amoroso, fazendo Amaro agir irracionalmente, como um animal diante do instinto selvagem, destruindo a sua única razão de ser e de viver. Ambientado preferencialmente no mar, o romance de Adolfo Caminha é a síntese da perversão sexual, descrita de modo ousado e chocante com a arte e a técnica de um artista que soube captar com fidelidade os aspectos cruéis de uma fria realidade. Fragmento da obra Com efeito, Bom-Crioulo não era somente um homem robusto, uma dessas organizações privilegiadas que trazem no corpo a sobranceira resistência do bronze e que esmagam com o peso dos músculos. A força nervosa era nele uma qualidade intrínseca sobrepujando todas as outras qualidades fisiológicas, emprestando-lhe movimentos extraordinários, invencíveis mesmo, de um acrobatismo imprevisto e raro. Esse dom precioso e natural desenvolvera-se-lhe à força de um exercício continuado que o tornara conhecido em terra, nos conflitos com soldados e catraieiros, e a bordo, quando entrava embriagado. Porque Bom-Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente, chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda a sorte de loucuras. Armava-se de navalha, ia para os cais, todo transfigurado, os olhos dardejando fogo, o boné de um lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão... Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda gente sabia que era o Bom-Crioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha... Uma cousa indescritível! O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto mar, a borda da corveta, era outro, muito outro: Bom-Crioulo esmurrara desapiedadamente um segunda classe, porque este ousara, “sem o seu consentimento”, maltratar o grumete Aleixo, um belo marinheirito de olhos azuis , muito querido por todos e de quem diziam-se “cousas”. Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. — Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! Estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro... Estava satisfeitíssimo. A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um Hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata... — Uma! cantou a mesma voz. — Duas!... três!... Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura para cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso d’alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos. Entretanto, já iam cinqüenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre as outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrara em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária. Por sua vez Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza de seu pulso. Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse, a cada golpe. — Cento e cinqüenta! Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do marinheiro e logo este ponto vermelho se transformar numa fita de sangue. Nesse momento o oficial, ponteirando o óculo de alcance, procurava reconhecer uma sombra quase invisível que parecia flutuar muito longe, nos confins do horizonte: era, talvez, a fumaça de algum transatlântico... — Basta! impôs o comandante. Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina. Raul Bopp Cobra Norato Nascido em Tupaceretã, no Rio Grande do Sul, em 1898, Raul Bopp perambulou o Brasil adentro e o mundo a fora. Bacharelou-se em Direito e exerceu diversas e disparatadas profissões: jornalista em Porto Alegre e São Paulo, pintor de paredes em Cuiabá, caixeiro de livraria em Buenos Aires, Secretário do Conselho Federal do Comércio Exterior e, finalmente, diplomata. Foi cônsul em Kobe, Los Angeles, Zurique, Barcelona, secretário de embaixada em Lisboa, ministro na Guatemala. Em Yokohama, no Japão, fundou o "Correio da Ásia" e com José Jobim publicou "Sol e Banana", estudos de economia brasileira. Nômade e andarilho desde jovem, nunca se sabe onde Raul Bopp estava mesmo depois de casado e chefe de família. Raul Bopp participou ativamente da fase polêmica do modernismo em São Paulo. A princípio compôs o grupo "Verde e Amarelo". Plínio Salgado definiu-o mesmo como o "verdamarelismo ambulante". Mas, depois, integrou as hostes da "Antropofagia", com Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Publicou "Cobra Norato", que ele mesmo define como obra de "audácias extragramaticais e uma movimentação de material de camada popular", e "Urucungo", poemas negros. Seu principal livro é realmente "Cobra Norato", poema de raízes folclóricas que ultrapassa, no entanto, as lindes do ornamental para ser a fusão da linguagem poética e dialetal com o mistério de uma região feita de sortilégios, febres, dramas e tragédias – a Amazônia, "visão de um mundo paludial e como que ainda na gestação", no dizer de Manuel Bandeira. Para Carlos Drummond de Andrade é possivelmente o mais brasileiro de todos os livros de poemas brasileiros, escritos em qualquer tempo. Os mitos, a sintaxe, a conformação poética, o sabor, a atmosfera – não há talvez nada "tão Brasil" em nossos cantores como este longo e sustentado poema, que é também um poema do homem e do mundo primitivo, geral, anterior às divisões políticas, na fronteira das terras compridas do Sem Fim. O crítico português José Osório de Oliveira considera-o "o mais estranho poema de toda a literatura brasileira". Na dimensão da Antropofagia, a obra melhor arquitetada em todos os sentidos é Cobra Norato. Transfigurando uma lenda amazônica, o poeta gaúcho realizou uma experiência de poesia paralelamente narrativa e lírica. Nela o mitológico se confunde com a realidade natural e a linguagem é permeada tanto por termos locais quando por inovações vanguardistas. "Europeísmo e "primitivismo" fundem-se – numa síntese não encontrada antes – na trajetória do herói que deseja se casar com a filha da rainha Luzia. Para isso, mata a Cobra Norato, vestindo em seguida a sua pele para melhor percorrer os caminhos amazônicos. O rastejar de Norato compõe-se de uma série de quadros, geralmente estáticos, nos quais avultam originais descrições da fauna e flora e dos rios da região. Norato não se deixa seduzir pela luxúria e pelos perigos sensuais da floresta e, auxiliado pelo "compadre tatu", safa-se de todos os obstáculos, até encontrar a amada em poder da Cobra Grande. Rouba-a e é feliz. É de registrar o aspecto intencionalmente "infantil" da linguagem, manifesto pela presença contínua de diminutivos. "- E agora, compadre vou de volta pro Sem-Fim. Vou lá para as terras altas onde a serra se amontoa onde correm os rios de águas claras entre moitas de molungu Quero levar minha noiva Quero estarzinho com ela numa casa de morar com porta azul piquininha pintada à lápis de cor Quero sentir a quantura do seu corpo de vaivém Querzinho de ficar junto Quando a gente quer bem bem (...)" (Raul Bopp) Continua...