O Pretérito mais que Perfeito Myrna Nascimento (...) De rerum natura, de Lucrécio, é a primeira grande obra poética em que o conhecimento do mundo se transforma em dissolução da compacidade do mundo, na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve. Lucrécio quer escrever o poema da matéria, mas nos adverte, desde logo, que a verdadeira realidade dessa matéria se compõe de corpúsculos invisíveis. É o poeta da concreção física, entendida em sua substância permanente e imutável, mas a primeira coisa que nos diz é que o vácuo é tão concreto quanto os corpos sólidos. (Ítalo Calvino sobre a “leveza”, 1990: 20) As experiências extremas nos ensinam; muito mais do que temos capacidade de compreender, a uma distância tão próxima de seu acontecimento. Distância física e temporal. Colocados à presença de fatos que nos desestabilizam, as respostas parecem todas improváveis, injustificáveis, descabidas. O fato extremo é sempre marcado pelo acidente, pela fatalidade, pelos motivos que não somos capazes de aceitar, embora quando tratamos de eventos catastróficos, o retrospecto nos revele, com frequência, que a indiferença aos sinais e a omissão pela decisão de ações sejam os responsáveis por grande parte da vulnerabilidade que o sistema, em questão, apresenta. Há anos se propagam discussões e fóruns que se propõem a abordar possibilidades de reagir aos indícios de fragilidade que as estruturas marcadas pelo peso e pela durabilidade começam a apresentar. Desmaterialização da arquitetura, sistemas leves e flexíveis, o conceito de pele sendo associado ao revestimento externo/interno de ambientes cuja interação com o meio se faz de forma análoga a dos sistemas vivos e naturais. A hipótese de aproximar o desempenho dos produtos destinados a abrigar o corpo e as atividades humanas, ao desempenho das estruturas naturais que se destinam a finalidades semelhantes (concha, casco, membrana, etc.), tem ganhado expressão nas reflexões contemporâneas sobre arquitetura e design. As estratégias e propostas que amparam materialmente soluções emergentes para o problema, poderiam aprender com experiências descartadas ou criticadas, cuja natureza incomum merece nossa atenção, em virtude dos caminhos que inauguraram, e que nem sempre foram desvendados como oportunidade, ao longo da história que a arquitetura desenhou. Dos vestígios do passado, às vezes ecoam sugestões que o futuro deveria se permitir escutar. O eco, curiosamente, só se propaga no vazio. A favor da simplicidade; a simplicidade ao nosso favor “I wanted something that was not simple-minded, but truly simple” (Ken Isaacs) Em Outubro de 1954, a revista Life destacou em artigo denominado “Home in a Cube” a surpreendente solução encontrada por um jovem estudante de design em Chicago, Ken Isaacs, para o problema de moradia que ele próprio enfrentava com seu recente casamento. A ideia de compartilhar um apartamento apertado e inadequado motivou a criação daquilo que ele batizou como “Living Structure”, um conjunto de perfis que definia uma armação cúbica intercalada por painéis de madeira. Primeira de uma série de propostas, que incluem desde novos arranjos para residência a partir da mesma lógica estrutural, até soluções para mobiliário com sistemas de articulações também variáveis, a “casa-cubo” revela aspectos de compactação e engenhosidade capazes de encontrar parentesco nos produtos mais sofisticados, que podemos adquirir atualmente na loja IKEA, ou nos artifícios explorados com ousadia em filmes de ficção, como os da série James Bond (DWELL, 2007, p. 141). O cenário pós-guerra americano proclamava o consumo e a expansão do uso de materiais, e este “otimismo”, de certa forma, incentivou o promissor designer a oferecer a um público disponível e interessado, um novo modo de morar. Isaacs, assim como outros criadores de estruturas habitáveis, como Buckminster Fuller, propunha com sua “Matrix Idea” um conceito integrador, capaz de solucionar ambientes em que todas as funções fossem, satisfatoriamente, atendidas. Usando sua experiência para desenvolver inovadoras estruturas para aplicação no ensino, na Academia de Arte Cranbrook, onde se graduou, e liderando o departamento de design no Instituto de Tecnologia de Illnois e no RISD, Ken Isaacs tem seu nome associado ao “green design” como uma espécie de progenitor do conceito, ao “nomadismo urbano”, e mesmo às estruturas abertas (“open structures”), considerando-se, neste caso, que a idéia de sistemas modulares de construção, capazes de serem organizados a partir da contribuição de todos e de qualquer um, transcende o paradigma das oportunidades do grid geométrico e sugere um sistema de autocolaboração e de troca de informações e knowhow, inovador, sociabilizado e sustentável. Em 1962, após a criação de sua “Knowledge Box”, desenvolvida durante sua experiência como professor no Instituto de Design de Chicago (a Nova Bauhaus, fundada em 1937 por Moholy-Nagy), o autor volta a ser tema da revista Life, apresentando uma estrutura de 3 metros cúbicos, dentro da qual são projetadas imagens, nas paredes, teto e piso, a partir de 24 equipamentos discretamente inseridos no ambiente, explorando os aspectos sensoriais e comportamentais derivados desta experiência incomum, para a época. A estas iniciativas seguiram-se a proposta para Microhouses, série de estruturas leves desenvolvidas em Illinois, sua passagem como professor na Escola de Arquitetura de Illinois, em Chicago, de onde se aposentou em 2000, e, mais recentemente, suas investigações sobre o projeto de um microcar, leve e movido a energia elétrica. Viver de arte; a arte do viver “There are no big ideas here. It is all quite simple” (Aleksandra Kasuba) Aleksandra Kasuba, lituana, nascida em 1923, é conhecida como artista, poetafilósofa ou arquiteta. Estudou na Academia Vilnius de Belas Artes, em seu país natal, até a ocupação alemã, que destruiu a escola, e mudou-se para Nova York com o marido escultor, Vytautas Kasuba, antes da ocupação soviética durante a 2ª Guerra Mundial. Membro de um grupo de jovens artistas que exploravam a arte e a arquitetura com efeitos de luz, som, cor, odores e toda sorte de elementos capazes de promover experiências sensoriais singulares, entre os anos 60mr 70, Kasuba e seus companheiros pretendiam: “criar um ambíguo sentido de espaço no qual os interiores – e mesmo cidades inteiras – apareceriam como elementos intangíveis, diferenciados da realidade, flutuantes e desmaterializados. O ângulo reto, o quadro de “alma-branca”, a grade das referências geométricas seriam todos emaranhados em uma rede caótica, de padrões não-Euclidianos.” (DWELL, 2007, p.199- tradução livre da autora). Embora esta iniciativa fosse nutrida do espírito psicodélico predominante neste tipo de organização cultural e social típica do contexto americano nova-iorquino (ironicamente denominado LSDesign, por alguns críticos), a primeira incursão de Kasuba, em 1970, com membranas de tecido, instaladas no interior de um apartamento comum, esticadas entre o teto e o chão, revela o germe de uma concepção de espaço caracterizada pela transparência, leveza, e continuidade, qualidades muito mais próximas dos parâmetros presentes em estruturas orgânicas, naturais, do que os que regem as estruturas construídas industrialmente. Entre os anos de 1969-1989, serão recorrentes suas experiências com formas e estruturas curvas, tensionadas, usando tecidos compostos com nylon, que simulam câmeras espirais de uma concha nautilus, colmeias, passagens tubulares, combinando conceitos de espaços primitivos com espaços fictícios, referências de espaços naturais com as de estruturas artificiais. Em 1972 dá-se sua primeira instalação ao ar livre, às margens de um lago em Woodstock, NY, com 14 alunos da Escola de Artes Visuais de Manhattan: uma estrutura que remetia tanto a um casulo de borboleta como a um abrigo Nativo Americano. Privilegiando os elementos naturais do entorno, luz, vento, fonte de água, o processo de construção do ambiente foi intuitivo e não linear. Cordas, aros, tiras de madeira, interagiram com troncos e galhos de árvores para conferir integridade e consistência à armação de tecido elástico. A proposta de lidar com o conceito de espaço como “membrana” liderou suas pesquisas e instalações montadas em museus e universidades durante quase 20 anos. Com a morte do marido, em 1997, Kasuba muda para o deserto no Novo México; adquire em 2001 um terreno próximo a cidade de Estância e começa a produzir uma série de habitações, cuja proposta é traduzir concepções efêmeras em abrigos à prova das mudanças meteorológicas. Criadas com fundações de concreto, armações de madeira, cabos de arame e telas de galinheiro revestidas com resina de poliuretano, as habitações são resistentes à água e insolação. As camadas metálicas que as revestem são cobertas de estuque, externa e internamente, onde recebem também revestimento com gesso. Cada camada sobreposta reforça e potencializa as formas curvas, resultando em uma espécie de concha de 7 polegadas de espessura. Os abrigos foram finalizados em 2005, com a inserção de placas de alumínio no telhado, atendendo à demanda de reuso e drenagem da água que incide sobre a estrutura. Pintados da mesma cor que o solo em que estão implantados, estes abrigos “orgânicos”, interagem de forma contínua com a paisagem em que se inserem, plantados como solução singular, fiel às primeiras investigações imateriais e sensoriais de sua criadora. A permanência do passageiro; o passageiro permanente Preocupada em propiciar bem-estar para os passageiros em constante deslocamento pelo espaço aéreo, a empresa russa Arch Group criou, em 2009, a “Sleepbox”, uma caixa de estrutura mínima, de madeira, na qual até 3 pessoas podem entrar, descansar, fazer uso do seu computador e carregar seus aparelhos eletrônicos (ficamos vítimas das tomadas e dos adaptadores por conta da família de eletrônicos dos quais somos dependentes) e dormir antes de embarcar. Instalada no aeroporto internacional de Sheremetyevo, em Moscou, na Rússia, a caixa, de aproximadamente 4 m², tem três camas, dispostas uma em cima da outra. Além disso, o passageiro também dispõe de armários no ambiente para acomodar suas bagagens e pode usufruir de iluminação interna e de uma televisão para se distrair. Projetada pelos arquitetos Goryainov e Krymov, a “caixa para dormir” pode ser alugada por períodos a partir de 15 minutos até algumas horas. Dotada de camas equipadas com sistema automático de mudança de roupa de cama, a divulgação deste equipamento privilegia suas qualidades “higiênicas” e “confortáveis”, em termos de iluminação e ventilação, alertas sonoros, etc. A proposta é bem elaborada e sua pertinência, demanda e adequação merecem reconhecimento. Intriga-me, no entanto, a falta de iniciativas desta natureza, com esta simplicidade e qualidade, para soluções de habitação, ainda que provisórias, que tanto acenam no cenário das urgências, ou melhor, das emergências. Moro, desde que me conheço por gente, na zona sul da capital paulistana, próxima às Vilas - Mariana e Clementino -, onde me acostumei a acompanhar os movimentos dos moradores que se alojam sob o viaduto da Rubem Berta, que cruza perpendicularmente o final da Rua 11 de Junho. Bairros residenciais por excelência, as Vilas se transformaram, nas últimas décadas, em bairros também comerciais, de serviços, mudando sua configuração e seu ritmo de vida com os novos edifícios altos, escolas e universidades, shoppings, etc. Só não mudaram o trânsito e a permanência destes indivíduos, que adotam o viaduto como moradia/lugar de estadia/dormitório. Todas as atividades pensadas como um todo, e, às vezes, funcionando de forma simultânea, independente da hora e do dia. Faça chuva ou sol, 40º ou 5º (o clima da cidade acompanhou suas mudanças drásticas de cenário), impedidos de ficarem por grades que são transgredidas, ou obstáculos que são transpostos, estes passageiros permanecem na paisagem, na memória, na imagem do lugar da minha infância. Não há urgência, não há catástrofe, mas o cartaz anônimo, colado na parede interna da “casa” destes indivíduos, em permanente trânsito, funciona para mim como um sinal muito parecido com o daqueles que são traídos pelo destino e colocados diante de extremos capazes de alterar suas vidas para sempre. Os vazios da cidade têm muito a ensinar para o futuro; o que é frágil, móvel e leve carrega consigo a ciência da adaptação e a astúcia das mutações. Fotos do viaduto – arquivo pessoal da autora Referências Bibliográficas CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Periódicos DWELL. Smaller is smarter, vol. 7, May 2007 Sites http://www.arch-group.org/portfolio/diz/1/ http://www.youtube.com/watch?v=v9uVf65bNgo http://www.kasubaworks.com/ Myrna de Arruda Nascimento. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1985), mestrado em Programa de Mestrado em Comunicação Social pela Faculdade Casper Líbero (1994), mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), lecionando nos cursos de Arquitetura e Design; também é professora do Centro Universitário Senac, atuando como coordenadora da Pós-graduação Lato Sensu em Design de Interiores e lecionando nos cursos de Design Industrial e Arquitetura. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, e Design, atuando principalmente nos seguintes temas: design, arquitetura, design de interiores, ensino e experimentação, história da arte, semiótica, linguagem e representação.