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MENINOS EMASCULADOS:
mais que um caso de polícia, uma questão de política pública
Valdira Barros*
RESUMO
A partir do modelo teórico do ciclo das políticas públicas ou policy cycle,
analisa-se o processo mobilizatório relativo ao chamado caso dos meninos
emasculados do Maranhão, considerando-se os dois momentos iniciais do
processo das políticas públicas: a constituição do issue e formação da
agenda política. Apresenta-se, preliminarmente, a configuração do caso dos
meninos emasculados, contendo as informações gerais sobre o referencial
empírico de análise.
Palavras-chave: políticas públicas, policy cycle, meninos emasculados.
ABSTRACT
Starting from the theoretical model of the cycle of the public politics or policy
cycle, the relative mobilization process is analyzed to the castrated boys' from
Maranhão call case, being considered the two initial moments of the process
of the public politics: the constitution of the issue and formation of the political
calendar. She comes, firstly, the configuration of the castrated boys' case,
containing the general information on the empiric referencial of analysis.
Keywords: public politics; policy cycle; castrated boys´.
1 INTRODUÇÃO
O caso dos meninos emasculados pode ser descrito como uma seqüência de
homicídios de meninos com idade entre 04 e 15 anos, cuja característica principal era a
retirada dos órgãos genitais. Esses crimes foram praticados no período compreendido entre
os anos de 1991 e 2003 na região que interliga a capital maranhense, São Luís, e os
municípios de Paço do Lumiar e São José de Ribamar, e chamaram a atenção da
comunidade local e internacional pela crueldade a que foram submetidas as vítimas e pela
impunidade constatada em relação à maioria dos casos durante mais de uma década.
Como pano de fundo desta reflexão, tem-se a análise da atuação dos sujeitos e
interesses presentes no interior desse caso, evidenciando uma série de contradições que
possibilitaram a inclusão deste problema na agenda política.
Não poderia deixar de demarcar que as informações que subsidiaram a
elaboração deste artigo são resultado em parte do contato direto com a temática, na
condição de advogada que acompanhou o referido caso durante quatro anos, e em parte do
*
Advogada, Mestranda em Políticas Públicas/UFMA.
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trabalho de campo realizado durante a pesquisa exploratória para elaboração do Projeto de
Qualificação do Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão.
2 CONFIGURAÇÃO DO CASO DOS MENINOS EMASCULADOS
O caso dos meninos emasculados é como ficou conhecida uma série de
homicídios de 34 meninos, com idade entre 04 e 15 anos de idade, cuja característica
principal era a retirada dos órgãos genitais. Esses crimes foram praticados na região
denominada Grande São Luís, que interliga a capital São Luís e os municípios de São José
de Ribamar, Raposa e Paço do Lumiar, no período de 1991 a 2003, sendo que durante
todos esses anos, a maioria dos homicídios permaneceu sem solução.
Os meninos eram filhos de famílias de baixa renda, cuja maioria não tinha
acesso a direitos sociais básicos como moradia, trabalho, educação e lazer, entre outros.
Boa parte das crianças e adolescentes assassinadas desapareceu quando
estava realizando algum tipo de trabalho infantil, em busca da sobrevivência sua e de seus
familiares. Entre as atividades realizadas pelas vítimas, constavam: vender “suquinho”,
vender bolo, tirar e carregar madeira. Em geral a realidade das crianças pobres as expõe
desde cedo a uma infância onde o trabalho faz parte do seu dia-a-dia. Como afirma Sérgio
Adorno isto tem um alto preço:
[...]A pobreza deita com maior rigor seus efeitos sobre a parcela jovem da
população pobre. Mais do que isso, o trabalho adulto, que deveria ser fonte de
proteção, transfigura-se em fonte de opressão. De fato, os dados sugerem a
configuração de uma ordem pelo avesso. O trabalho infantil aparece como subsídio
importante ao trabalho familiar. A família que, na sua origem, pensa-se como fonte
de solidariedade, de proteção e de socialização primária das crianças se subverte
para justamente apoiar-se no universo infantil. É como se a família fosse
socializada pelas crianças e não o seu contrário[...](ADORNO, 1991, p.192).
As características sócio-econômicas das vítimas, o fato de serem todos pobres,
é algo que seria associado pelos familiares das crianças assassinadas ao (não) empenho
dos órgãos responsáveis pela segurança pública no trabalho de apuração dos crimes. O
depoimento de Normélia Silva, mãe de Raniê Silva Cruz, primeira criança assassinada,
ilustra essa compreensão:
O caso do meu filho tava esquecido. Só está acontecendo esses crimes porque são
filhos de pessoas pobres. Ficou esquecido da polícia e a matança continua
(CENTRO, 2004, p. 8).
O caso dos meninos emasculados, chamou a atenção da comunidade local e
internacional pela crueldade a que foram submetidas as vítimas e pela impunidade dos
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crimes, uma vez que até o mês de dezembro do ano de 2003, quando se contabilizavam 23
assassinatos,1 três inquéritos já haviam sido arquivados, e somente quatro haviam se
transformado em processo, com os acusados levados a julgamento, dos quais dois foram
absolvidos e dois foram condenados. Os inquéritos relativos aos demais casos ainda se
encontravam em apuração no âmbito policial.
3 DAS PÁGINAS POLICIAIS À PUBLICIZAÇÃO NA AGENDA POLÍTICA
Inicialmente, faz-se necessário um recorte acerca da concepção de políticas
públicas que orienta o presente artigo. Nesse sentido, compartilhamos da noção de que as
políticas públicas constituem um conjunto de ações ou omissões do Estado que se
apresentam como respostas do poder público às demandas apresentadas pela sociedade.
No campo teórico-analítico das políticas públicas, é corrente o entendimento de
que a efetivação de uma política pública se concretiza através de um processo constituído
por fases ou momentos, que constituiriam um verdadeiro ciclo da política.
O ciclo das políticas públicas ou policy cycle, pode ser interpretado como um tipo
“ideal” construído para analisar a “vida” de uma política pública. Em que pese algumas
variações decorrente da linha teórica adotada por cada autor, este ciclo seria constituído dos
seguintes momentos ou fases: constituição do “issues” ou identificação do problema;
formação da agenda;
formulação da política;
adoção da política; implementação e
avaliação da política .
Há que se ressaltar que o modelo do policy cycle se apresenta como um
parâmetro para análise das diversas fases pelas quais pode passar uma política, não
significando necessariamente que esse modelo esteja presente em todas as políticas ou
programas. Isto porque o processo das políticas públicas é dinâmico, estando sujeito ao
jogo de relações que se estabelecem em torno de sujeitos e interesses afetos a uma
determinada política.
Nesse contexto, o presente trabalho se propõe a analisar os dois momentos
iniciais do processo das políticas públicas, em que a articulação de sujeitos e interesses é
decisiva para a transformação de um fato-problema em um problema político, Desta forma,
analiso o primeiro momento, referente à constituição do issues e o segundo momento,
1
Com o assassinato do adolescente Jonatham Silva Vieira, em 06 de dezembro de 2003, levantamentos do
Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Pe. Marcos Passerini, contabilizaram 23
assassinatos. Posteriormente, esse número foi alterado a partir das confissões do suspeito Francisco das Chagas
Rodrigues Brito, que confessou ter matado Jonathan e outros dez meninos que não constavam da lista da
entidade, ao mesmo tempo em que negou a autoria do homicídio de quatro adolescentes que estavam nesta lista.
Ao todo, são 30 os assassinatos confessados por “Chagas”.
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referente à formação da agenda política, tomando como referência o caso empírico dos
meninos emasculados do Maranhão, já configurado anteriormente.
3.1 A Constituição do “Issue”
Nesta fase do processo das políticas públicas, um fato social aparentemente
isolado é convertido em problema de interesse coletivo, ganhando visibilidade social e
relevância política. Não raramente, isto acontece pela ação de atores sociais, cujos
interesses se vinculam a tal fato.
Segundo Frey (2000, p.227) “um fato social pode ser percebido pela primeira
vez, como um problema político por grupos sociais isolados, mas também por políticos,
grupos de políticos ou pela administração pública”.
No caso dos meninos emasculados, a ação das entidades ligadas ao chamado
movimento da infância, com destaque para o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente Padre Marcos Passerini, foi decisiva para transformação desse caso em um
problema de relevância política.
Entre as ações
elaboração
realizadas pelo Centro Padre marcos Passerini destaco a
de um documento intitulado “Dossiê: Meninos Emasculados do Maranhão”.
Neste documento, estão agrupados os assassinatos de crianças que apresentavam
características semelhantes, assim como depoimentos dos familiares acerca das
circunstâncias em que desapareceram as vítimas, e da forma pela qual eram tratados nas
delegacias de polícia.
Esta ação
teve, entre outros
objetivos, o de reunir elementos que
fundamentassem o discurso da entidade no sentido de que se tratava de uma série de
crimes com características peculiares e comuns que deveriam receber um tratamento
diferenciado.
Este discurso contrapunha-se à versão do órgão responsável pela segurança
pública que argumentava tratarem-se de casos isolados, haja vista o lapso temporal entre
alguns crimes, que chegava a dois anos, e o fato de existirem inúmeros suspeitos, dados
estes que denotavam não existir conexões entre os crimes.
Ainda em decorrência desta concepção, o gestor da segurança pública afirmava
que boa parte dos crimes já estavam solucionados. Em 2001, a então Gerência de Estado
de Justiça, Segurança Pública e Cidadania, divulgou amplamente um relatório no qual
contestava as informações constantes do “Dossiê Marcos Passerini”. Na época o Gerente
de Segurança Pública declarou que “Dos 19 casos arrolados, a polícia elucidou 13, com a
descoberta de autoria comprovada e o inquérito entregue à justiça” (POLÏCIA..., 2001, p.12)
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Diante desta argumentação, a luta das famílias das vítimas e das entidades
ligadas ao chamado movimento da infância, era para que esses casos não caíssem no que
se denomina “vala comum”, sendo tratados como mais um entre tantos casos a serem
investigados pela polícia.
Entre 2000 e 2002, quando ocorreram novos assassinatos, realiza-se uma
campanha para apuração dos casos, que ganha repercussão internacional com a
apresentação de duas petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos. Estas petições denunciavam o Estado brasileiro pela
violação de direitos humanos e de crianças e adolescentes e pela omissão na apuração do
caso dos meninos emasculados.
As ações das entidades ligadas ao movimento da infância e a postura adotada
pelos organismos estatais evidenciam um conflito de racionalidades e interesses presente
neste caso, posto que enquanto as entidades e familiares pressionavam os órgãos públicos
a darem um tratamento diferenciado para o caso tanto no âmbito da investigação policial
quanto das políticas públicas de forma geral, os gestores da segurança pública buscavam
incutir na sociedade o discurso de que aqueles crimes não passavam de fatos isolados.
Este conflito de interesses presente na fase da definição do problema é algo que
perpassa todo o ciclo da política.
De acordo com Guilhon (1995, p.105)
[...] as políticas públicas, enquanto conjunto de ações (ou omissões) sob a
responsabilidade do Estado traduzem, essencialmente, o conjunto de decisões e
não-decisões resultantes do jogo de interesses que se desenvolvem no seio da
Política, encontrando sua determinação e seu limite em processos econômicos
engendrados em uma realidade específica.
Desta forma, na esteira do pensamento de Marx, considero importante demarcar
que esse jogo de interesses não se desenvolve de forma espontânea, estando impregnado
de determinantes econômicos ideológicos presentes no Estado e na sociedade.
3.2 Formação da Agenda
De forma sucinta pode-se afirmar que este é o momento em que um problema é
incluído na agenda política, a fim de que seja objeto de ações por parte do poder público.
Para que um problema seja pautado na agenda, algumas exigências devem ser
atendidas. Assim, exige-se que o fato tenha: reconhecimento popular; possibilidade ação
quanto às reivindicações em torno do problema; e a legitimidade dos sujeitos que publicizam
o fato (SILVA, 2001, p.38).
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No caso dos meninos emasculados tudo indica que esses requisitos foram
preenchidos, tendo como conseqüência a inclusão do tema na agenda governamental.
Contudo, no que tange às respostas dadas pelo Governo às demandas postas
pelos movimentos sociais organizados, estas tem se limitado ao âmbito da segurança
pública e, mais especificamente, à investigação policial.
Desta forma, em abril de 2003, uma antiga reivindicação das entidades começa
a ser efetivada. Trata-se da constituição de uma força-tarefa composta por integrantes do
Ministério Público Estadual, da Polícia Civil e da Polícia Federal, encarregada de investigar
o caso dos meninos emasculados.
O trabalho dessa equipe ganha notoriedade nos primeiros meses do ano de
2004, com a prisão de Francisco das Chagas, suspeito que teria confessado o assassinato
de 20 crianças que compunham o rol do “caso dos meninos emasculados” até dezembro de
2003, e de mais 10 meninos cujos desaparecimentos não eram do conhecimento das
entidades civis, sendo que alguns sequer haviam sido comunicados à policia.
Este suspeito seria apresentado publicamente pelos órgãos investigadores como
o provável maior “serial-killer” do Brasil.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, o objetivo deste artigo era analisar como o processo das políticas
públicas, consubstanciado em fases ou momentos teoricamente ordenados, poderia ser
visualizado a partir de um caso empírico: o caso dos meninos emasculados do Maranhão.
Este exercício, ainda que restrito quanto ao seu objeto, já que se limitou a
analisar os dois momentos iniciais do ciclo da política, me possibilitou chegar a algumas
conclusões que extrapolam, inclusive, o objetivo inicial.
Uma primeira conclusão é de que o desencadeamento do ciclo das políticas
públicas é algo que está ao alcance de todos nós, desde que saibamos formar coalizões em
torno de interesses comuns.
A concepção do problema incorporada na agenda pública influi decisivamente
nas ações a serem desenvolvidas em torno da questão. Daí a importância de se analisar o
jogo de interesses presente no primeiro momento do ciclo, referente à definição do
problema.
Uma outra é de que o antagonismo de interesses é algo que se faz presente
neste processo, sobretudo, considerando-se a natureza classista dos organismos estatais,
que vêem na sociedade civil organizada não um sujeito legítimo, mas um “inimigo do
Estado”. Neste sentido, o caso dos meninos emasculados é um exemplo emblemático.
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Por fim, que a inscrição na agenda governamental não basta para que uma
política pública se efetive, sendo necessários que os mesmos sujeitos que se mobilizaram
para o fato se tornasse relevante publicamente, continuem articulados para o processo das
políticas públicas se complete.
Nesse sentido, é este o grande desafio posto aos familiares e entidades
mobilizados em torno do caso dos meninos emasculados, manter acesa a chama da
indignação, articulando-se na luta por justiça.
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sociais: teoria e prática. São Paulo: Veras, 2001.
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