Onde se situa o “pretérito-mais-queperfeito”? Salete Valer1 Marcos Eroni Pires2 Resumo: A obra Boitempo de Carlos Drummond de Andrade é classificada como um discurso memorialista. Inserido nesta obra está o poema Pretérito-mais-que-perfeito. Nesse poema, buscamos trabalhar com o tema da memória em que o poeta resgata os aspectos sociais e históricos que caracterizavam a sociedade na época pretérita à sua infância. Palavras-chaves: Poema memorialista. Aspectos históricos. Infância. – Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino. – Impossível. Eu conto o meu presente. Com volúpia voltei a ser menino. (Carlos Drummond de Andrade) 1 INTRODUÇÃO A obra Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, pode ser classificada como um discurso memorialista, já que se nota, ao longo de sua leitura, o peso da experiência vivida pelo poeta como suporte para a sua arte. Drummond reconstrói a sua infância e a sua adolescência de uma maneira peculiar, poética, anunciando um futuro escritor que estaria por vir. Boitempo é composto por exatamente dez “cantos”. O “canto” de abertura, intitulado “Boitempo”, composto por apenas três poemas, pode ser lido como uma “invocação”, no sentido clássico das grandes epopeias. Seguem-se outros nove “cantos”, que percorrerão todos os grandes momentos da infância e adolescência do poeta. Este trabalho, por sua vez, se concentrará apenas nos poemas do segundo “canto”, intitulado “Pretérito-mais-que-perfeito”, e discutirá alguns aspectos gerais da obra, como o caráter autobiográfico e o lugar da memória nos poemas de Drummond. 2 LINHA DO TEMPO E AUTOBIOGRAFIA Começando pelo título deste segundo “canto”, “Pretérito-mais-que-perfeito”, vemos que se trata, claramente, de um tempo verbal. Em termos puramente linguísticos, as formas verbais se relacionam com o tempo indicando uma localização temporal dos eventos, que pode ser chamada de referência temporal. Ilari (1997), seguindo a proposta clássica do filósofo e lógico Hans Reichenbach, sistematiza as referências temporais levando em conta três “momentos”: o momento de fala (MF), que é o momento em que uma sentença é proferida; o momento de evento (ME), que é o momento em que o evento propriamente dito ocorre; e o momento de referência (MR), que é um momento utilizado para estabelecer a localização do evento para além 1 Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). E-mail: E-mail: [email protected] Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 202 da especificação dada pelo MF, algo que é obrigatório em tempos como o pretéritomais-que-perfeito do indicativo, como indicado na representação ME > MR > MF. Relacionando esse aparato linguístico com a obra de Drummond, podemos estruturar “Pretérito-mais-que-perfeito” da seguinte forma: o MF como o momento em que a obra Boitempo foi escrita pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que corresponde ao período de dez anos em que durou sua produção, embora sua publicação tenha sido o ano de 1979, o MR como um momento passado, a vida de Carlos Drummond de Andrade desde o seu nascimento, em 1902, na cidade de Itabira, Minas Gerais; e o ME como um momento “mais passado” ainda, antes do nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Ou seja, os poemas de “Pretérito-mais-queperfeito” não estão circunscritos ao menino Drummond, às suas vivências, às suas aventuras, mas a um tempo anterior, calcados nas memórias da família, nas histórias que passaram de geração em geração, como podemos notar na espécie de “proposição” que Drummond faz no primeiro poema de “Pretérito-mais-que-perfeito”, “Justificação”, em que o poeta se liberta de todos os mecanismos opressores e através da memória está pronto para renascer e contar a todos a história de toda a sua família, de todo o seu clã: Não é fácil nascer novo. Estou nascendo em Vila Nova da Rainha, cresço no rasto dos primeiros exploradores, com esta capela por cima, esta mina por baixo. Os liberais me empurram pra frente, os conservadores me dão um tranco, se é que todos não me atrapalham. E as alianças de família, o monsenhor, a Câmara, os seleiros, os bezerros mugindo no clariscuro, a bota, o chão vendido, o laço, a louça azul chinesa, o leite das crioulas escorrendo no terreiro, a procissão de fatos repassando, calcando minha barriga retardatária, as escrituras da consciência, o pilão de pilar lembranças. Não é fácil nascer e aguentar as consequências vindas de muito longe preparadas em caixote de ferro e letra grande. Nascer de novo? Tudo foi previsto e proibido no Antigo Testamento do Brasil. (p. 883) Diante do exposto, coloca-se então a seguinte questão: “Pretérito-mais-queperfeito”, e por extensão Boitempo, é uma obra autobiográfica? Tomando como referência Bakhtin ([1979]1997), há em todo processo criativo o autor-pessoa, que é o escritor, o artista propriamente dito, e o autor-criador, aquele que faz um recorte de suas vivências, de suas experiências, e dá uma forma singular a elas, reorganizando-as esteticamente. Para isso ocorrer o autor precisa trabalhar um tipo especial de linguagem ao mesmo tempo em que permanece fora dela, isto é, precisa haver um deslocamento, ele precisa dizer “eu sou eu” na linguagem de outro. Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Salete Valer Marcos Eroni Pires 203 Mas não seria o caso de numa autobiografia o escritor e o herói coincidirem? Justamente não, Bakhtin diz que a autobiografia não é um mero discurso do escritor sobre si mesmo, pois ao escrever sobre si o escritor precisa se posicionar criticamente frente à sua vida, submetendo-a a um valor que transcenda o apenas vivido; para isso ocorrer, só distanciando-se dela, olhá-la de fora, se tornar um outro em relação a si mesmo. Candido (1989) coloca que o que temos em Boitempo, diferente de uma autobiografia, é uma heterobiografia, uma história simultânea dos outros e da sociedade. Boitempo é um tipo especial de memorialística, diferente de todos os outros trabalhos do poeta (pois senão todos seriam autobiográficos), em que a estilização literária é aplicada para narrar a existência do eu no mundo – Drummond constrói a partir da verdade histórica uma verdade poética, logo, o que temos em Boitempo é uma autobiografia, acima de tudo, poética. 3 NO TEMPO MAIS-QUE-PERFEITO Como foi dito, “Pretérito-mais-que-perfeito” está inserido num tempo anterior ao nascimento de Drummond, portanto antes de 1902. Neste “canto” podemos notar a presença de muitos fatos importantes de todo o século XIX, além de características políticas, econômicas e sociais de todo o Brasil, como o ciclo do ouro em Minas Gerais, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a sociedade patriarcal etc. Detenhamos-nos, primeiramente, no poema “Jacutinga”: É ferriouro: jacutinga a perfeita conjugação. Raspa-se o ouro: ferro triste na cansada mineração. A jacutinga de hematita empobrecida revoltada perfura os jazigos do chão despe o envoltório mineral e voa. Até os metais criam asa. (p. 885) O ciclo do ouro, que se deu a partir do final do século XVII, foi fundamental para a criação do estado de Minas Gerais; antes dessa fase a região era praticamente desconhecida, assim como toda a parte interior do Brasil. Jacutinga é o nome de uma ave (Pipile jacutinga), hoje em extinção, e também de uma cidade de Minas Gerais, fundada em 1835, de colonização italiana. O poema, ao retratar o ciclo do ouro, utiliza como alegoria a figura da ave, pois a compara com o ouro produzido no Brasil: uma ave coberta de hematita, metal encontrado junto ao ouro nas jazidas, que perfura o chão e depois voa para longe, principalmente para Portugal e Inglaterra – o ouro criou asas e foi enriquecer a coroa portuguesa. Além de trazer a urbanização, a mineração foi importante para a introdução de aspectos culturais no Brasil, como o Barroco. Mas a fase do ouro foi terminando: muitos fatores agravaram o fim do ciclo, como a falta de experiência para dar continuidade à exploração das jazidas, que foram abandonadas por não terem mais Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 204 como serem extraídas manualmente. Outro fator foi o complicado sistema de impostos que a Coroa Portuguesa impôs aos donos de jazidas, em que os proprietários tinham que dar 20% da produção a Portugal, o chamado “quinto”, como apontam Barreto e Galvani Neto (2001). Drummond refere-se à fase de decadência do ouro em Minas, que se iniciou já no final do século XVIII, em que os mineradores não tinham mais alternativas para a exploração do metal precioso, as jazidas tornando-se então improdutivas. Dentro do ciclo do ouro podemos analisar a sociedade patriarcal que imperava nesta época, além, claro, do regime escravocrata que era praticado intensamente no Brasil, mesmo após a abolição da escravatura. No poema “Cuidado”, Drummond deixa de lado o que acontece nas jazidas de ouro, nos engenhos, na Câmara, e relata a vida secreta dentro dos sobrados, invadindo a intimidade do senhor e sua negra: A porta cerrada não abras. Pode ser que encontres o que não buscavas nem esperavas. Na escuridão pode ser que esbarres no casal em pé tentando se amar apressadamente. Pode ser que a vela que trazes na mão te revele, trêmula, tua escrava nova, teu dono-marido. Descuidosa, a porta apenas cerrada pode te contar conto que não queres saber. (p. 888) Logo no título, vemos o alerta que se faz à esposa: ela precisa ter cuidado, não deve abrir a porta para não encontrar seu “dono-marido” em atos que vão lhe magoar. Ela, assim como a escrava, também pertence ao homem e deve a ele total respeito e devoção, cumprindo todas as suas ordens e perdoando os seus atos de infidelidade, ou seja, ela deve ser piedosamente submissa ao seu senhor. Os senhores de engenho definiram o padrão de domínio patriarcal entre os séculos XVI e XVIII. Segundo Freyre ([1936]2002), é a partir do século XIX que o patriarcalismo rural cederá lugar ao patriarcalismo urbano. A sociedade urbana vai seguir o padrão de organização social, política e cultural da sociedade rural, com algumas adaptações. As casas-grandes de cana-de-açúcar eram maiores, com os Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Salete Valer Marcos Eroni Pires 205 engenhos no quintal da casa, as famílias possuindo uma grande prole. Já os sobrados do ciclo do ouro eram propriedades pequenas, com famílias menores, que viviam em comunidade. Ainda de acordo com Freyre ([1936]2002), há uma integração maior dos negros e índios na sociedade mineira. Enquanto no litoral, com o ciclo do açúcar, a negra era para a cozinha, a mulata para a cama e a branca para a sala, em Minas Gerais a índia se junta ao negro, o branco à negra, não só para a cama, mas para a cozinha e sala. O senhor tem domínio de suas negras não somente com o intuito de ter prazer, pelo contrário, a negra passa a fazer parte da família, passa a ser companheira permanente do senhor. Continuemos com o tema do negro em “Pretérito-mais-que-perfeito”, com o poema “Negra”: A negra para tudo a negra para todos a negra para capinar plantar regar colher carregar empilhar no paiol ensacar lavar passar remendar costurar cozinhar rachar lenha limpar a bunda dos nhozinhos trepar. A negra para tudo nada que não seja tudo tudo tudo até o minuto de (único trabalho para seu proveito exclusivo) morrer. (p. 887) A abolição da escravatura, que se deu em 1888 com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, procurava a erradicação da escravidão em solo brasileiro. Mas, como sabemos, o regime escravocrata não desapareceu de um momento para outro, não houve a melhoria das condições sociais e econômicas dos ex-escravos. A simples emancipação jurídica não mudou em nada a condição subalterna em que viviam, muito menos ajudou a promover sua cidadania ou ascensão social. Neste poema, em especial, vemos que a posição social e a vida da mulher negra se mantêm inalteradas, na lavoura ou na casa-grande a mulher negra permanece escrava, sempre submissa à vontade dos seus senhores, à disposição de seus “nhozinhos”. O único momento em que os negros terão a digna liberdade, algo que a assinatura de uma lei não foi capaz de fazer, será na morte, a sete palmos do chão, pois esse é um momento exclusivo e único na vida de qualquer um. A mesma coisa se dá em “Homem livre”, onde temos Atanásio, um admirável “faz-tudo”: (...) Sendo tanta coisa, nasce escravo, Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 206 o que não é bom para Atanásio e para ninguém. Então foge do Rio Doce. Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina, onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio. (...) Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio. Mas quem vai prender homem de tantas qualidades? (p. 887) Prender Atanásio não é necessário, pois ele já foi engolido por uma sociedade ainda duramente escravocrata, preso nas mãos de um ou de outro não fará a mínima diferença para este eficiente negro, já que o único momento de liberdade será na morte. Enfim, podemos perceber a partir da leitura de “Pretérito-mais-que-perfeito” que Drummond resgata um tempo anterior ao seu, da história de sua família, de seu clã, ao longo de gerações e gerações. No tempo presente Drummond parece estar sem raízes, e é a partir desses poemas que ele restaurará a sua identidade, como podemos ver no poema “Chamado geral”, em que o eu-lírico evoca os elementos da terra e do ar para ajudá-lo na sua empreitada: (...) Vinde feras e vinde pássaros, restaurar em sua terra este habitante sem raízes, que busca no vazio sem vaso os comprovantes de sua essência rupestre. (p. 884) 4 O AMBIENTE SOCIAL, POLÍTICO E ECONÔMICO NA POESIA DE DRUMMOND Na tentativa de fazer uma análise do ambiente social, político e econômico em que Carlos Drummond de Andrade nasceu, e em que este mesmo ambiente pôde contribuir para compor toda a sua obra memorialista de Boitempo, podemos ver que com “Pretérito-mais-que-perfeito” existem fatos influentes ainda anteriores ao seu nascimento, e que, decididamente, acabaram contribuindo para o seu ato de “relembrar” em toda a sua composição memorialística. No cenário político, por exemplo, nos deparamos com a República Velha. A Proclamação da República em 1889 apenas alterou o regime, pois o poder agora está nas mãos dos grandes proprietários, especialmente os cafeicultores e os pecuaristas dos estados de São Paulo e Minas Gerais, que anteriormente foram mineradores, os ditos coronéis. Carlos Drummond de Andrade era filho do Coronel Carlos de Paula Andrade, um homem austero e poderoso latifundiário. Seu avô também era um grande latifundiário ligado à terra, inicialmente pela mineração, posteriormente através da agricultura e da pecuária, logo, era proprietário de muitos escravos, o que lhe configurava muito poder na região. Quando Drummond nasce, em 1902, no cenário social havia apenas quatorze anos da abolição da escravatura. Teoricamente, os escravos são livres, mas o regime de servidão e exploração permanece, pois a maioria desses escravos continuou por muito tempo a serviço de seus antigos donos. Drummond vivencia esta presença constante de Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 207 Salete Valer Marcos Eroni Pires negros livres, porém servis à sua família, conservando costumes não muito diferentes de antes da abolição. Já no cenário econômico nota-se a crescente industrialização das grandes cidades, mas ao mesmo tempo muito do que é produzido no Brasil é exportado, principalmente para a Europa. Freyre ([1936]2002) mostra que com a industrialização, consequentemente as cidades ganham autonomia com relação aos latifundiários; muitos fazendeiros, dessa forma, vão perdendo aos poucos o poder econômico, que estava calcado, sobretudo, na economia monoculturista do café, que perde completamente seu poder de venda no exterior em 1929, falindo muito latifundiários. Vê-se com isso um crescimento das cidades, do proletariado urbano, a sociedade urbana modifica-se – trava-se aí a luta entre a tradicional sociedade agrária e o inovador centro urbano. É lógico que em todo este quadro de modificações Drummond não participa ativamente, mas é neste cenário que ele cresce, é neste ambiente social que Drummond amadurece e isso se reflete em toda a sua estrutura como indivíduo. Os valores econômicos e sociais que estavam perpetuados em sua família vieram por terra ao longo da infância de Drummond e fizeram parte do passado dele. Refletiu-se diretamente nele como indivíduo, colocando um embate entre o Drummond criança em oposição à descendência familiar. O título “Boitempo” também é isso: num neologismo entre “boi” e “tempo”, o boi é o animal que traduz o que é da fazenda, o ambiente rural, o animal que rumina sempre, que tem como carga o peso do trabalho do campo, que não se modifica, enquanto que o tempo pára no campo, não passa. Cá fora, as atribulações, a indústria, a burocracia, a correria cotidiana, para onde Drummond se muda. Esta mudança, além de espacial, é também temporal. O tempo da cidade é contado diferente do tempo da fazenda, do interior. Encontramos aí a ruptura e a junção destes dois espaços: a cidade e o interior provinciano. Carlos Drummond de Andrade não herdou terras. Foi criado em um ambiente rural (casa-grande), sob as ordens de um pai autoritário, com os escravos (a senzala) ao lado. Quando cresceu, foi para a cidade viver em meio aos edifícios, longe da estrutura patriarcal, ganhando espaço e voz no meio urbano. De certa forma liberta-se da autoridade do pai, mas as lembranças ficam, pois elas o compõem. Isso, por sua vez, reflete em sua escritura, estão lá em seu íntimo e se fazem presentes em sua poesia. A terra, a casa, o poder, isso tudo pereceu; através da escritura de suas memórias de infância se eternizaram: o menino que amadureceu em Belo Horizonte, ou no Rio de Janeiro, e que veio à tona através da poesia. Tornou-se um homem urbano, e não fazendeiro, ou melhor, virou fazendeiro sim, foi cultivar palavras em forma de rimas, em forma de sentimentos. Um fazendeiro sem terras. 5 A MEMÓRIA NO PROCESSO CRIADOR De acordo com Oliveira Silva (2003), Carlos Drumonnd de Andrade narra Boitempo combinando a percepção presente e a capacidade de criação e de modificação de fatos ocorridos no passado. A memória, por não ser algo confiável, surge Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 208 juntamente com a imaginação, sendo ambas motivadas pelo desejo, segundo a psicanálise freudiana. Quando o processo de rememoração é voluntário, de anamnese, ele pode vir acompanhado também por desejos que modificam todo um fato ocorrido. Para descrever todos os processos de que se utilizou para reconstruir os fatos da infância através da poesia, o escritor fez uso da memória voluntária, que é mais consciente e racional, apesar do “momento inspirador da poesia” ser obra da memória involuntária, ligada aos sentidos e às percepções, porque apesar de qualquer outra característica, essa é uma obra de arte, desfrutando dos artifícios de que é formada: a ficção, cuja qualidade primordial é a imaginação. O ato de criação, seja qual for o objeto que está sendo observado, criado ou transformado, parece-nos ser o resultado de vários processos, mas é primordialmente um trabalho de consciência e razão, guiado pela memória voluntária. Pode também ser o resultado de uma inspiração momentânea, um frenesi que toma conta de nosso ser, que nos leva a pensar em algo ou alguém, nos obrigando assim a criar, a modelar, a transformar – esse tipo de ação parece-nos vir de uma memória involuntária que está presente em todas as nossas ações. Assim, com o objetivo de tentarmos compreender um pouco dos aspectos envolvidos no processo da criação, vamos passar os olhos sobre alguns estudos na área da filosofia, da psicologia aplicada e da literatura a fim de observarmos mais de perto a relação entre sujeito e objeto no processo de criação. 5.1 DA LITERATURA Paz (1982, p. 210), em seu ensaio sobre a inspiração poética, coloca que a verdadeira originalidade do surrealismo “consiste não somente em ter feito da inspiração uma ideia, mas, sobretudo uma ideia do mundo”. Com isso, a inspiração deixou de ser algo misterioso e indecifrável e se torna uma ideia que não entra em contradição com as crenças ou concepções fundamentais do indivíduo. Um dos grandes investigadores da inspiração foi Breton (PAZ, 1982), cuja análise procura mostrar que muitos dos acontecimentos são consequências das distrações, causalidades e dos descuidos que transformam a realidade. Breton investiga o misterioso mecanismo do que chama de “ação objetiva”, lugar de encontro entre o homem e o “outro”, campo de eleição da “outridade”. Para ele, cada vez que o encontro inesperado acontece, parece que ouvimos nós mesmos e vemos o que já tínhamos visto. Parece que regressamos, voltamos a ouvir, recordamos. Para Paz, com essa descrição de inspiração (sensação do já sabido e já conhecido que nos causa a irrupção da “outridade”), Breton assinala a mais preciosa de todas as confissões e revela e resistência íntima do autor à interpretação puramente psicológica da inspiração. Para compreender e romper o dualismo sujeito e objeto da criação poética, Breton recorre à psicanálise de Freud, cuja resposta é a de que o poético é a revelação do inconsciente e, por conseguinte, jamais é liberado. Mas para Breton, as explicações psicológicas sempre foram insuficientes para justificar a “inspiração” e mesmo que Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 209 Salete Valer Marcos Eroni Pires tenha aderido às ideias de Freud, fez questão de reiterar que a inspiração era um fenômeno inexplicável para a psicanálise. Para Paz, a “outridade” está no próprio homem. A partir dessa perspectiva de morte e ressurreição incessantes, de unidade que resulta em “outridade”, para se recompor numa nova unidade, talvez seja possível penetrar no enigma da outra voz, ou seja, para esse autor a inspiração é uma manifestação da “outridade” constitutiva do homem. Na verdade, a inspiração não está em parte alguma, ela simplesmente não está, nem é algo: é uma aspiração, um ir, um movimento a frente: para aquilo que nós mesmos somos. Desse modo, a criação poética é exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ser. Essa liberdade, conforme já foi dito muitas vezes, é o ato pelo qual vamos mais além de nós mesmos, para sermos mais plenamente. Liberdade e transcendência são expressões, movimentos da temporalidade. A inspiração, a “outra voz”, a “outridade” são, na sua essência, a temporalidade brotando, manifestando-se sem cessar. De acordo ainda com esse autor, a inspiração é essa voz estranha que arranca o homem de si mesmo para ser tudo o que é tudo o que deseja: outro corpo, outro ser. A voz do desejo é a própria voz do ser, porque o ser não outra coisa senão o desejo de ser. 5.2 DA FILOSOFIA Nessa área, Heidegger e Bergson propuseram de forma independente que a constituição do sujeito está relacionada com a temporalidade e com as suas vivências. A grande pergunta de Heidegger (MAGEE, 1999) era o fato de que desde Descartes o problema do conhecimento era tratado pela filosofia ocidental como seu problema central. Essa abordagem cartesiana via a realidade como dividida entre mente e matéria, sujeito e objeto, observador e observado, conhecedor e conhecido. Heidegger considerava inválida essa dicotomia, pois não estamos separados do mundo, apenas contemplando-o de longe, somos parte integrante do mundo, ou seja, o nosso ser não pode ser concedido senão em um mundo de “algum tipo”. Assim, o mistério central não seria a questão do conhecimento, mas sim o Ser, a existência. Como é que, afinal, qualquer coisa existe? Não poderíamos ter a consciência se não tivéssemos uma apreensão de que algo está acontecendo, o que necessita da dimensão do tempo, portanto a existência de que temos consciência é inerentemente temporal. Não poderíamos, assim, ter uma ciência de nossa própria existência se ela não invadisse nossa consciência: é preciso que nos preocupemos, ainda que minimamente, em ter consciência dela – a preocupação é um elemento irredutível. A conclusão desse filósofo é que, em seus aspectos mais importantes, nosso modo de ser tem uma estrutura tripla cujos elementos correspondem a passado, presente e futuro, ou seja, que em última análise ser é tempo. Bergson, por sua vez, entende o Ser como um continuum constituído pelo tempo. De acordo com Freire (2001), esse poeta e filósofo conceitua o tempo como duração, puro devir. A temporalidade bergsoniana diz respeito ao campo da subjetividade e ao fluxo criativo de vivências. Todavia, é um tempo criativo que não permite quebras, persistindo, a contragosto, na plenitude da presença. Bergson acredita Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 210 que o desenvolvimento do ser humano, bem como das demais espécies, se dá por “algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior individualidade e, todavia, ao mesmo tempo, maior complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma crescente vulnerabilidade e risco” (PIRES, 1998, p. 214). Assim, ele chama de élan vital a esse impulso que faz com que as espécies se transmutem de uma forma para outra. Apesar de não explicar claramente como esse processo acontece, ele afirma que é esse impulso vital que faz com que tudo se mova o tempo todo. E nós seres humanos vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não por meio de conceitos, nem por meio de nossos sentidos. A esse conhecimento Bergson chama de “intuição”, que é inerente a cada indivíduo e o influencia no momento de tomada de decisões. Mas deve-se dizer que esse tipo de conhecimento imediato da natureza íntima (conhecimento internalizado) é bastante diferente na forma de conhecimento adquirido de forma externa e consciente, pelo intelecto. Dessa forma, para Bergson vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de nosso conhecimento imediato, tudo é contínuo, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo externo apresentado a nós por nossos intelectos há objetos separados ocupando determinadas posições no espaço por períodos mensuráveis de tempo. (MAGEE, 1998, p. 215) 5.3 DA PSICANÁLISE A forma como o sujeito manifesta suas criações também pode ser observada nos estudos na área da psicanálise. Jung concorda com Freud ao afirmar que a atividade da psique não se reduz exclusivamente à consciência. Atrás da experiência consciente, de que temos um conhecimento completo, está uma dimensão que não alcançamos diretamente, mas que podemos derivar na base de indícios e provas de ordem diferente. O nosso comportamento não depende somente das nossas intenções e ações voluntárias, mas é conduzido por impulsos que não conhecemos e não controlamos de maneira direta. Porém, as posições dos dois psicólogos distanciaram-se na determinação da natureza destes impulsos. Para Freud, a força fundamental que alimenta a vida psíquica individual, ou seja, a libido, é essencialmente energia sexual que, sendo capaz de uma ampla flutuação, pode ser dirigida para os mais diferentes objetos. Segundo Jung, que recusa a forte caracterização sexual praticada por Freud, a libido é energia vital (noção que vai buscar Bergson) num sentido mais geral e indiferenciado, energia essa que podendo assumir também um aspecto sexual, a ele não é inteiramente redutível. Para Freud o inconsciente é limitativo porque é meramente derivado da consciência (determinado pelo tempo presente e pelo ambiente físico). Os conteúdos do inconsciente são tudo aquilo que é inaceitável para a consciência e, portanto, recalcado. Já para Jung é a consciência que é derivada da dimensão inconsciente. Para ele, além do inconsciente pessoal, existiria um outro nível mais antigo, comum a todos os seres humanos, denominado “inconsciente coletivo”, que “contém a inteira herança espiritual da evolução humana, que volta a nascer na estrutura cerebral de cada Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 211 Salete Valer Marcos Eroni Pires indivíduo”. (SCARSO, [s.d.]). Na continuação de seus estudos, Jung percebeu que os arquétipos extrapolavam o cérebro humano e apontavam para o fato de que, nos níveis fundamentais da realidade, o físico e o psíquico, a realidade externa e a interna, deixavam de ser vistas como separadas e se tornavam diferentes aspectos de uma realidade única, indiferenciada. Os arquétipos, então, são os fatores estruturais tanto da psique quanto do mundo. Assim, Jung entendeu que a construção do inconsciente é derivada das vivências individuais, e não coletivas. 5.4 DA PSICOLOGIA APLICADA Segundo Pires (1995, p. 129), as investigações e os estudos atuais da psicologia profunda apontam o desenvolvimento do homem como um processo psicogenético. O elemento fundamental da evolução psicogenética é o espírito, o próprio ser que se projeta no continuum. É o espírito que organiza os demais elementos dando-lhes condições para o desenvolvimento dos mesmos. Entende-se na psicologia aplicada que o ser humano não é somente um corpo físico, é antes de tudo um ser pensante, que através da parte física (biológica) que o constitui, pode expressar seu saber internalizado; ao mesmo tempo, pelas relações sociais, adquire novos saberes que, através do sentido físico, se cristalizam no inconsciente puro. O que o ser humano é em um determinado momento, o que sabe suas inclinações, suas preferências, tendências, representa a soma de suas experiências adquiridas através de sucessivas vivências, em uma linha temporal. Através dos diversos pensamentos expostos, podemos apreender que o processo de criação, ou seja, o debruçar do sujeito sobre um objeto, é o desejo desse sujeito em agir, em transformar, em marcar com as impressões pessoais o objeto. Essa manifestação, mesmo que ocorra de forma consciente, será sempre consequência da totalidade pensante que se marca pela subjetividade individual. No processo de criação nem sempre o sujeito tem consciência do que o move para essa ação. Há uma sensação, uma emoção, que pode ser de alegria ou de tristeza, que liga o sujeito ao objeto, que o faz agir sobre ele, transformando-o, remodelando-o, ou simplesmente sentindo-o, isto é, essa motivação não faz parte da memória voluntária, mas está no inconsciente puro, é a memória involuntária agindo sobre o consciente presente marcando o objeto. Mesmo que o processo de criação seja realmente inspirado por um ato externo como queria Breton, há sempre na profundidade do ser (sujeito-criador) uma propensão, uma preparação, uma relação já anteriormente estabelecida entre ele (sujeito) e o objeto. Sendo assim, nenhum ato ocorre de forma inconsequente, há sempre uma pulsão para a ação, esteja ou não seu criador consciente de sua criação. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, ao lermos os poemas de Drummond, especialmente os da parte “Pretérito-mais-que-perfeito”, podemos dizer que essa é uma escritura com base no conhecimento consciente e racional, apreendido através do meio em que o constituiu. O passado de sua família está marcado na história do local Minas Gerais e, Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”? 212 por extensão, do Brasil. Esses fatos chegam ao conhecimento do poeta não somente pelos documentos históricos, mas também pela memória de seus familiares e das demais pessoas que fizeram parte desse cenário constitutivo. Se a memória voluntária do poeta leva-o a descrever o contexto social do século XIX, a memória involuntária é que vai apontar como essa obra é criada, construída e apresentada; reflete, pois, a subjetividade do sujeito-criador. Ou seja, os fatos políticos, econômicos e sociais passaram, o tempo passou, mas o sujeito Carlos Drummond de Andrade constituiu-se através e por meio dos fatos que atravessaram esse tempo. Assim, o sujeito-poeta Drummond cria seu objeto de uma forma que só ele o consegue fazer, pois é a sua memória involuntária (o inconsciente) que age sobre a sua memória voluntária (o consciente) impulsionando-o para a construção de sua arte: a poesia. Interdisciplinar Ano IV, V.8, jan-jun de 2009 - ISSN 1980-8879 | p. 201-213 213 Salete Valer Marcos Eroni Pires REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, [1979]1997. 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