Onde se situa o “pretérito-mais-queperfeito”?
Salete Valer1
Marcos Eroni Pires2
Resumo: A obra Boitempo de Carlos Drummond de Andrade é classificada como um discurso
memorialista. Inserido nesta obra está o poema Pretérito-mais-que-perfeito. Nesse poema,
buscamos trabalhar com o tema da memória em que o poeta resgata os aspectos sociais e
históricos que caracterizavam a sociedade na época pretérita à sua infância.
Palavras-chaves: Poema memorialista. Aspectos históricos. Infância.
– Você deve calar urgentemente
as lembranças bobocas de menino.
– Impossível. Eu conto o meu presente.
Com volúpia voltei a ser menino.
(Carlos Drummond de Andrade)
1 INTRODUÇÃO
A obra Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, pode ser classificada
como um discurso memorialista, já que se nota, ao longo de sua leitura, o peso da
experiência vivida pelo poeta como suporte para a sua arte. Drummond reconstrói a
sua infância e a sua adolescência de uma maneira peculiar, poética, anunciando um
futuro escritor que estaria por vir.
Boitempo é composto por exatamente dez “cantos”. O “canto” de abertura,
intitulado “Boitempo”, composto por apenas três poemas, pode ser lido como uma
“invocação”, no sentido clássico das grandes epopeias. Seguem-se outros nove
“cantos”, que percorrerão todos os grandes momentos da infância e adolescência do
poeta. Este trabalho, por sua vez, se concentrará apenas nos poemas do segundo
“canto”, intitulado “Pretérito-mais-que-perfeito”, e discutirá alguns aspectos gerais da
obra, como o caráter autobiográfico e o lugar da memória nos poemas de Drummond.
2 LINHA DO TEMPO E AUTOBIOGRAFIA
Começando pelo título deste segundo “canto”, “Pretérito-mais-que-perfeito”,
vemos que se trata, claramente, de um tempo verbal. Em termos puramente
linguísticos, as formas verbais se relacionam com o tempo indicando uma localização
temporal dos eventos, que pode ser chamada de referência temporal. Ilari (1997),
seguindo a proposta clássica do filósofo e lógico Hans Reichenbach, sistematiza as
referências temporais levando em conta três “momentos”: o momento de fala (MF),
que é o momento em que uma sentença é proferida; o momento de evento (ME), que é
o momento em que o evento propriamente dito ocorre; e o momento de referência
(MR), que é um momento utilizado para estabelecer a localização do evento para além
1
Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:
[email protected]
2
Mestrando em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas (IEL/UNICAMP). E-mail: E-mail: [email protected]
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da especificação dada pelo MF, algo que é obrigatório em tempos como o pretéritomais-que-perfeito do indicativo, como indicado na representação ME > MR > MF.
Relacionando esse aparato linguístico com a obra de Drummond, podemos
estruturar “Pretérito-mais-que-perfeito” da seguinte forma: o MF como o momento em
que a obra Boitempo foi escrita pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que
corresponde ao período de dez anos em que durou sua produção, embora sua
publicação tenha sido o ano de 1979, o MR como um momento passado, a vida de
Carlos Drummond de Andrade desde o seu nascimento, em 1902, na cidade de Itabira,
Minas Gerais; e o ME como um momento “mais passado” ainda, antes do nascimento
de Carlos Drummond de Andrade. Ou seja, os poemas de “Pretérito-mais-queperfeito” não estão circunscritos ao menino Drummond, às suas vivências, às suas
aventuras, mas a um tempo anterior, calcados nas memórias da família, nas histórias
que passaram de geração em geração, como podemos notar na espécie de “proposição”
que Drummond faz no primeiro poema de “Pretérito-mais-que-perfeito”,
“Justificação”, em que o poeta se liberta de todos os mecanismos opressores e através
da memória está pronto para renascer e contar a todos a história de toda a sua família,
de todo o seu clã:
Não é fácil nascer novo.
Estou nascendo em Vila Nova da Rainha,
cresço no rasto dos primeiros exploradores,
com esta capela por cima, esta mina por baixo.
Os liberais me empurram pra frente,
os conservadores me dão um tranco,
se é que todos não me atrapalham.
E as alianças de família,
o monsenhor, a Câmara, os seleiros,
os bezerros mugindo no clariscuro, a bota,
o chão vendido, o laço, a louça azul chinesa,
o leite das crioulas escorrendo no terreiro,
a procissão de fatos repassando, calcando
minha barriga retardatária,
as escrituras da consciência, o pilão
de pilar lembranças. Não é fácil
nascer e aguentar as consequências
vindas de muito longe preparadas
em caixote de ferro e letra grande.
Nascer de novo? Tudo foi previsto
e proibido no Antigo Testamento do Brasil. (p. 883)
Diante do exposto, coloca-se então a seguinte questão: “Pretérito-mais-queperfeito”, e por extensão Boitempo, é uma obra autobiográfica?
Tomando como referência Bakhtin ([1979]1997), há em todo processo criativo
o autor-pessoa, que é o escritor, o artista propriamente dito, e o autor-criador, aquele
que faz um recorte de suas vivências, de suas experiências, e dá uma forma singular a
elas, reorganizando-as esteticamente. Para isso ocorrer o autor precisa trabalhar um
tipo especial de linguagem ao mesmo tempo em que permanece fora dela, isto é,
precisa haver um deslocamento, ele precisa dizer “eu sou eu” na linguagem de outro.
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Mas não seria o caso de numa autobiografia o escritor e o herói coincidirem?
Justamente não, Bakhtin diz que a autobiografia não é um mero discurso do escritor
sobre si mesmo, pois ao escrever sobre si o escritor precisa se posicionar criticamente
frente à sua vida, submetendo-a a um valor que transcenda o apenas vivido; para isso
ocorrer, só distanciando-se dela, olhá-la de fora, se tornar um outro em relação a si
mesmo.
Candido (1989) coloca que o que temos em Boitempo, diferente de uma
autobiografia, é uma heterobiografia, uma história simultânea dos outros e da
sociedade. Boitempo é um tipo especial de memorialística, diferente de todos os outros
trabalhos do poeta (pois senão todos seriam autobiográficos), em que a estilização
literária é aplicada para narrar a existência do eu no mundo – Drummond constrói a
partir da verdade histórica uma verdade poética, logo, o que temos em Boitempo é uma
autobiografia, acima de tudo, poética.
3 NO TEMPO MAIS-QUE-PERFEITO
Como foi dito, “Pretérito-mais-que-perfeito” está inserido num tempo anterior
ao nascimento de Drummond, portanto antes de 1902. Neste “canto” podemos notar a
presença de muitos fatos importantes de todo o século XIX, além de características
políticas, econômicas e sociais de todo o Brasil, como o ciclo do ouro em Minas Gerais,
a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a sociedade patriarcal etc.
Detenhamos-nos, primeiramente, no poema “Jacutinga”:
É ferriouro: jacutinga
a perfeita conjugação.
Raspa-se o ouro: ferro triste
na cansada mineração.
A jacutinga de hematita
empobrecida revoltada
perfura os jazigos do chão
despe o envoltório mineral
e voa.
Até os metais criam asa. (p. 885)
O ciclo do ouro, que se deu a partir do final do século XVII, foi fundamental
para a criação do estado de Minas Gerais; antes dessa fase a região era praticamente
desconhecida, assim como toda a parte interior do Brasil. Jacutinga é o nome de uma
ave (Pipile jacutinga), hoje em extinção, e também de uma cidade de Minas Gerais,
fundada em 1835, de colonização italiana. O poema, ao retratar o ciclo do ouro, utiliza
como alegoria a figura da ave, pois a compara com o ouro produzido no Brasil: uma
ave coberta de hematita, metal encontrado junto ao ouro nas jazidas, que perfura o
chão e depois voa para longe, principalmente para Portugal e Inglaterra – o ouro criou
asas e foi enriquecer a coroa portuguesa.
Além de trazer a urbanização, a mineração foi importante para a introdução
de aspectos culturais no Brasil, como o Barroco. Mas a fase do ouro foi terminando:
muitos fatores agravaram o fim do ciclo, como a falta de experiência para dar
continuidade à exploração das jazidas, que foram abandonadas por não terem mais
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como serem extraídas manualmente. Outro fator foi o complicado sistema de impostos
que a Coroa Portuguesa impôs aos donos de jazidas, em que os proprietários tinham
que dar 20% da produção a Portugal, o chamado “quinto”, como apontam Barreto e
Galvani Neto (2001). Drummond refere-se à fase de decadência do ouro em Minas, que
se iniciou já no final do século XVIII, em que os mineradores não tinham mais
alternativas para a exploração do metal precioso, as jazidas tornando-se então
improdutivas.
Dentro do ciclo do ouro podemos analisar a sociedade patriarcal que
imperava nesta época, além, claro, do regime escravocrata que era praticado
intensamente no Brasil, mesmo após a abolição da escravatura. No poema “Cuidado”,
Drummond deixa de lado o que acontece nas jazidas de ouro, nos engenhos, na
Câmara, e relata a vida secreta dentro dos sobrados, invadindo a intimidade do senhor
e sua negra:
A porta cerrada
não abras.
Pode ser que encontres
o que não buscavas
nem esperavas.
Na escuridão
pode ser que esbarres
no casal em pé
tentando se amar
apressadamente.
Pode ser que a vela
que trazes na mão
te revele, trêmula,
tua escrava nova,
teu dono-marido.
Descuidosa, a porta
apenas cerrada
pode te contar
conto que não queres
saber. (p. 888)
Logo no título, vemos o alerta que se faz à esposa: ela precisa ter cuidado, não
deve abrir a porta para não encontrar seu “dono-marido” em atos que vão lhe magoar.
Ela, assim como a escrava, também pertence ao homem e deve a ele total respeito e
devoção, cumprindo todas as suas ordens e perdoando os seus atos de infidelidade, ou
seja, ela deve ser piedosamente submissa ao seu senhor.
Os senhores de engenho definiram o padrão de domínio patriarcal entre os
séculos XVI e XVIII. Segundo Freyre ([1936]2002), é a partir do século XIX que o
patriarcalismo rural cederá lugar ao patriarcalismo urbano. A sociedade urbana vai
seguir o padrão de organização social, política e cultural da sociedade rural, com
algumas adaptações. As casas-grandes de cana-de-açúcar eram maiores, com os
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engenhos no quintal da casa, as famílias possuindo uma grande prole. Já os sobrados
do ciclo do ouro eram propriedades pequenas, com famílias menores, que viviam em
comunidade.
Ainda de acordo com Freyre ([1936]2002), há uma integração maior dos
negros e índios na sociedade mineira. Enquanto no litoral, com o ciclo do açúcar, a
negra era para a cozinha, a mulata para a cama e a branca para a sala, em Minas Gerais
a índia se junta ao negro, o branco à negra, não só para a cama, mas para a cozinha e
sala. O senhor tem domínio de suas negras não somente com o intuito de ter prazer,
pelo contrário, a negra passa a fazer parte da família, passa a ser companheira
permanente do senhor.
Continuemos com o tema do negro em “Pretérito-mais-que-perfeito”, com o
poema “Negra”:
A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.
A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)
morrer. (p. 887)
A abolição da escravatura, que se deu em 1888 com a assinatura da Lei Áurea
pela Princesa Isabel, procurava a erradicação da escravidão em solo brasileiro. Mas,
como sabemos, o regime escravocrata não desapareceu de um momento para outro,
não houve a melhoria das condições sociais e econômicas dos ex-escravos. A simples
emancipação jurídica não mudou em nada a condição subalterna em que viviam,
muito menos ajudou a promover sua cidadania ou ascensão social. Neste poema, em
especial, vemos que a posição social e a vida da mulher negra se mantêm inalteradas,
na lavoura ou na casa-grande a mulher negra permanece escrava, sempre submissa à
vontade dos seus senhores, à disposição de seus “nhozinhos”. O único momento em
que os negros terão a digna liberdade, algo que a assinatura de uma lei não foi capaz
de fazer, será na morte, a sete palmos do chão, pois esse é um momento exclusivo e
único na vida de qualquer um.
A mesma coisa se dá em “Homem livre”, onde temos Atanásio, um admirável
“faz-tudo”:
(...)
Sendo tanta coisa, nasce escravo,
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o que não é bom para Atanásio e para ninguém.
Então foge do Rio Doce.
Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,
onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.
(...)
Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.
Mas quem vai prender homem de tantas qualidades? (p. 887)
Prender Atanásio não é necessário, pois ele já foi engolido por uma sociedade
ainda duramente escravocrata, preso nas mãos de um ou de outro não fará a mínima
diferença para este eficiente negro, já que o único momento de liberdade será na morte.
Enfim, podemos perceber a partir da leitura de “Pretérito-mais-que-perfeito”
que Drummond resgata um tempo anterior ao seu, da história de sua família, de seu
clã, ao longo de gerações e gerações. No tempo presente Drummond parece estar sem
raízes, e é a partir desses poemas que ele restaurará a sua identidade, como podemos
ver no poema “Chamado geral”, em que o eu-lírico evoca os elementos da terra e do ar
para ajudá-lo na sua empreitada:
(...)
Vinde feras e vinde pássaros, restaurar em sua terra este habitante
sem raízes,
que busca no vazio sem vaso os comprovantes de sua essência
rupestre. (p. 884)
4 O AMBIENTE SOCIAL, POLÍTICO E ECONÔMICO NA POESIA DE
DRUMMOND
Na tentativa de fazer uma análise do ambiente social, político e econômico em
que Carlos Drummond de Andrade nasceu, e em que este mesmo ambiente pôde
contribuir para compor toda a sua obra memorialista de Boitempo, podemos ver que
com “Pretérito-mais-que-perfeito” existem fatos influentes ainda anteriores ao seu
nascimento, e que, decididamente, acabaram contribuindo para o seu ato de
“relembrar” em toda a sua composição memorialística.
No cenário político, por exemplo, nos deparamos com a República Velha. A
Proclamação da República em 1889 apenas alterou o regime, pois o poder agora está
nas mãos dos grandes proprietários, especialmente os cafeicultores e os pecuaristas dos
estados de São Paulo e Minas Gerais, que anteriormente foram mineradores, os ditos
coronéis.
Carlos Drummond de Andrade era filho do Coronel Carlos de Paula Andrade,
um homem austero e poderoso latifundiário. Seu avô também era um grande
latifundiário ligado à terra, inicialmente pela mineração, posteriormente através da
agricultura e da pecuária, logo, era proprietário de muitos escravos, o que lhe
configurava muito poder na região.
Quando Drummond nasce, em 1902, no cenário social havia apenas quatorze
anos da abolição da escravatura. Teoricamente, os escravos são livres, mas o regime de
servidão e exploração permanece, pois a maioria desses escravos continuou por muito
tempo a serviço de seus antigos donos. Drummond vivencia esta presença constante de
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negros livres, porém servis à sua família, conservando costumes não muito diferentes
de antes da abolição.
Já no cenário econômico nota-se a crescente industrialização das grandes
cidades, mas ao mesmo tempo muito do que é produzido no Brasil é exportado,
principalmente para a Europa. Freyre ([1936]2002) mostra que com a industrialização,
consequentemente as cidades ganham autonomia com relação aos latifundiários;
muitos fazendeiros, dessa forma, vão perdendo aos poucos o poder econômico, que
estava calcado, sobretudo, na economia monoculturista do café, que perde
completamente seu poder de venda no exterior em 1929, falindo muito latifundiários.
Vê-se com isso um crescimento das cidades, do proletariado urbano, a sociedade
urbana modifica-se – trava-se aí a luta entre a tradicional sociedade agrária e o
inovador centro urbano.
É lógico que em todo este quadro de modificações Drummond não participa
ativamente, mas é neste cenário que ele cresce, é neste ambiente social que Drummond
amadurece e isso se reflete em toda a sua estrutura como indivíduo. Os valores
econômicos e sociais que estavam perpetuados em sua família vieram por terra ao
longo da infância de Drummond e fizeram parte do passado dele. Refletiu-se
diretamente nele como indivíduo, colocando um embate entre o Drummond criança
em oposição à descendência familiar.
O título “Boitempo” também é isso: num neologismo entre “boi” e “tempo”, o
boi é o animal que traduz o que é da fazenda, o ambiente rural, o animal que rumina
sempre, que tem como carga o peso do trabalho do campo, que não se modifica,
enquanto que o tempo pára no campo, não passa. Cá fora, as atribulações, a indústria,
a burocracia, a correria cotidiana, para onde Drummond se muda. Esta mudança, além
de espacial, é também temporal. O tempo da cidade é contado diferente do tempo da
fazenda, do interior. Encontramos aí a ruptura e a junção destes dois espaços: a cidade
e o interior provinciano.
Carlos Drummond de Andrade não herdou terras. Foi criado em um ambiente
rural (casa-grande), sob as ordens de um pai autoritário, com os escravos (a senzala) ao
lado. Quando cresceu, foi para a cidade viver em meio aos edifícios, longe da estrutura
patriarcal, ganhando espaço e voz no meio urbano. De certa forma liberta-se da
autoridade do pai, mas as lembranças ficam, pois elas o compõem. Isso, por sua vez,
reflete em sua escritura, estão lá em seu íntimo e se fazem presentes em sua poesia. A
terra, a casa, o poder, isso tudo pereceu; através da escritura de suas memórias de
infância se eternizaram: o menino que amadureceu em Belo Horizonte, ou no Rio de
Janeiro, e que veio à tona através da poesia. Tornou-se um homem urbano, e não
fazendeiro, ou melhor, virou fazendeiro sim, foi cultivar palavras em forma de rimas,
em forma de sentimentos. Um fazendeiro sem terras.
5 A MEMÓRIA NO PROCESSO CRIADOR
De acordo com Oliveira Silva (2003), Carlos Drumonnd de Andrade narra
Boitempo combinando a percepção presente e a capacidade de criação e de modificação
de fatos ocorridos no passado. A memória, por não ser algo confiável, surge
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juntamente com a imaginação, sendo ambas motivadas pelo desejo, segundo a
psicanálise freudiana. Quando o processo de rememoração é voluntário, de anamnese,
ele pode vir acompanhado também por desejos que modificam todo um fato ocorrido.
Para descrever todos os processos de que se utilizou para reconstruir os fatos da
infância através da poesia, o escritor fez uso da memória voluntária, que é mais
consciente e racional, apesar do “momento inspirador da poesia” ser obra da memória
involuntária, ligada aos sentidos e às percepções, porque apesar de qualquer outra
característica, essa é uma obra de arte, desfrutando dos artifícios de que é formada: a
ficção, cuja qualidade primordial é a imaginação.
O ato de criação, seja qual for o objeto que está sendo observado, criado ou
transformado, parece-nos ser o resultado de vários processos, mas é primordialmente
um trabalho de consciência e razão, guiado pela memória voluntária. Pode também ser
o resultado de uma inspiração momentânea, um frenesi que toma conta de nosso ser,
que nos leva a pensar em algo ou alguém, nos obrigando assim a criar, a modelar, a
transformar – esse tipo de ação parece-nos vir de uma memória involuntária que está
presente em todas as nossas ações.
Assim, com o objetivo de tentarmos compreender um pouco dos aspectos
envolvidos no processo da criação, vamos passar os olhos sobre alguns estudos na área
da filosofia, da psicologia aplicada e da literatura a fim de observarmos mais de perto a
relação entre sujeito e objeto no processo de criação.
5.1 DA LITERATURA
Paz (1982, p. 210), em seu ensaio sobre a inspiração poética, coloca que a
verdadeira originalidade do surrealismo “consiste não somente em ter feito da
inspiração uma ideia, mas, sobretudo uma ideia do mundo”. Com isso, a inspiração
deixou de ser algo misterioso e indecifrável e se torna uma ideia que não entra em
contradição com as crenças ou concepções fundamentais do indivíduo.
Um dos grandes investigadores da inspiração foi Breton (PAZ, 1982), cuja
análise procura mostrar que muitos dos acontecimentos são consequências das
distrações, causalidades e dos descuidos que transformam a realidade. Breton investiga
o misterioso mecanismo do que chama de “ação objetiva”, lugar de encontro entre o
homem e o “outro”, campo de eleição da “outridade”. Para ele, cada vez que o
encontro inesperado acontece, parece que ouvimos nós mesmos e vemos o que já
tínhamos visto. Parece que regressamos, voltamos a ouvir, recordamos.
Para Paz, com essa descrição de inspiração (sensação do já sabido e já
conhecido que nos causa a irrupção da “outridade”), Breton assinala a mais preciosa de
todas as confissões e revela e resistência íntima do autor à interpretação puramente
psicológica da inspiração.
Para compreender e romper o dualismo sujeito e objeto da criação poética,
Breton recorre à psicanálise de Freud, cuja resposta é a de que o poético é a revelação
do inconsciente e, por conseguinte, jamais é liberado. Mas para Breton, as explicações
psicológicas sempre foram insuficientes para justificar a “inspiração” e mesmo que
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tenha aderido às ideias de Freud, fez questão de reiterar que a inspiração era um
fenômeno inexplicável para a psicanálise.
Para Paz, a “outridade” está no próprio homem. A partir dessa perspectiva de
morte e ressurreição incessantes, de unidade que resulta em “outridade”, para se
recompor numa nova unidade, talvez seja possível penetrar no enigma da outra voz,
ou seja, para esse autor a inspiração é uma manifestação da “outridade” constitutiva
do homem. Na verdade, a inspiração não está em parte alguma, ela simplesmente não
está, nem é algo: é uma aspiração, um ir, um movimento a frente: para aquilo que nós
mesmos somos. Desse modo, a criação poética é exercício de nossa liberdade, de nossa
decisão de ser. Essa liberdade, conforme já foi dito muitas vezes, é o ato pelo qual
vamos mais além de nós mesmos, para sermos mais plenamente. Liberdade e
transcendência são expressões, movimentos da temporalidade. A inspiração, a “outra
voz”, a “outridade” são, na sua essência, a temporalidade brotando, manifestando-se
sem cessar. De acordo ainda com esse autor, a inspiração é essa voz estranha que
arranca o homem de si mesmo para ser tudo o que é tudo o que deseja: outro corpo,
outro ser. A voz do desejo é a própria voz do ser, porque o ser não outra coisa senão o
desejo de ser.
5.2 DA FILOSOFIA
Nessa área, Heidegger e Bergson propuseram de forma independente que a
constituição do sujeito está relacionada com a temporalidade e com as suas vivências.
A grande pergunta de Heidegger (MAGEE, 1999) era o fato de que desde
Descartes o problema do conhecimento era tratado pela filosofia ocidental como seu
problema central. Essa abordagem cartesiana via a realidade como dividida entre
mente e matéria, sujeito e objeto, observador e observado, conhecedor e conhecido.
Heidegger considerava inválida essa dicotomia, pois não estamos separados do
mundo, apenas contemplando-o de longe, somos parte integrante do mundo, ou seja, o
nosso ser não pode ser concedido senão em um mundo de “algum tipo”. Assim, o
mistério central não seria a questão do conhecimento, mas sim o Ser, a existência.
Como é que, afinal, qualquer coisa existe? Não poderíamos ter a consciência se não
tivéssemos uma apreensão de que algo está acontecendo, o que necessita da dimensão
do tempo, portanto a existência de que temos consciência é inerentemente temporal.
Não poderíamos, assim, ter uma ciência de nossa própria existência se ela não
invadisse nossa consciência: é preciso que nos preocupemos, ainda que minimamente,
em ter consciência dela – a preocupação é um elemento irredutível. A conclusão desse
filósofo é que, em seus aspectos mais importantes, nosso modo de ser tem uma
estrutura tripla cujos elementos correspondem a passado, presente e futuro, ou seja,
que em última análise ser é tempo.
Bergson, por sua vez, entende o Ser como um continuum constituído pelo
tempo. De acordo com Freire (2001), esse poeta e filósofo conceitua o tempo como
duração, puro devir. A temporalidade bergsoniana diz respeito ao campo da
subjetividade e ao fluxo criativo de vivências. Todavia, é um tempo criativo que não
permite quebras, persistindo, a contragosto, na plenitude da presença. Bergson acredita
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que o desenvolvimento do ser humano, bem como das demais espécies, se dá por
“algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior individualidade e, todavia, ao
mesmo tempo, maior complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma
crescente vulnerabilidade e risco” (PIRES, 1998, p. 214). Assim, ele chama de élan vital a
esse impulso que faz com que as espécies se transmutem de uma forma para outra.
Apesar de não explicar claramente como esse processo acontece, ele afirma que é esse
impulso vital que faz com que tudo se mova o tempo todo. E nós seres humanos
vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não
por meio de conceitos, nem por meio de nossos sentidos. A esse conhecimento Bergson
chama de “intuição”, que é inerente a cada indivíduo e o influencia no momento de
tomada de decisões. Mas deve-se dizer que esse tipo de conhecimento imediato da
natureza íntima (conhecimento internalizado) é bastante diferente na forma de
conhecimento adquirido de forma externa e consciente, pelo intelecto. Dessa forma,
para Bergson
vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de
nosso conhecimento imediato, tudo é contínuo, tudo é fluido, fluxo
perpétuo. No mundo externo apresentado a nós por nossos intelectos
há objetos separados ocupando determinadas posições no espaço por
períodos mensuráveis de tempo. (MAGEE, 1998, p. 215)
5.3 DA PSICANÁLISE
A forma como o sujeito manifesta suas criações também pode ser observada
nos estudos na área da psicanálise. Jung concorda com Freud ao afirmar que a
atividade da psique não se reduz exclusivamente à consciência. Atrás da experiência
consciente, de que temos um conhecimento completo, está uma dimensão que não
alcançamos diretamente, mas que podemos derivar na base de indícios e provas de
ordem diferente. O nosso comportamento não depende somente das nossas intenções e
ações voluntárias, mas é conduzido por impulsos que não conhecemos e não
controlamos de maneira direta. Porém, as posições dos dois psicólogos distanciaram-se
na determinação da natureza destes impulsos.
Para Freud, a força fundamental que alimenta a vida psíquica individual, ou
seja, a libido, é essencialmente energia sexual que, sendo capaz de uma ampla
flutuação, pode ser dirigida para os mais diferentes objetos. Segundo Jung, que recusa
a forte caracterização sexual praticada por Freud, a libido é energia vital (noção que vai
buscar Bergson) num sentido mais geral e indiferenciado, energia essa que podendo
assumir também um aspecto sexual, a ele não é inteiramente redutível.
Para Freud o inconsciente é limitativo porque é meramente derivado da
consciência (determinado pelo tempo presente e pelo ambiente físico). Os conteúdos do
inconsciente são tudo aquilo que é inaceitável para a consciência e, portanto, recalcado.
Já para Jung é a consciência que é derivada da dimensão inconsciente. Para ele, além
do inconsciente pessoal, existiria um outro nível mais antigo, comum a todos os seres
humanos, denominado “inconsciente coletivo”, que “contém a inteira herança
espiritual da evolução humana, que volta a nascer na estrutura cerebral de cada
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indivíduo”. (SCARSO, [s.d.]). Na continuação de seus estudos, Jung percebeu que os
arquétipos extrapolavam o cérebro humano e apontavam para o fato de que, nos níveis
fundamentais da realidade, o físico e o psíquico, a realidade externa e a interna,
deixavam de ser vistas como separadas e se tornavam diferentes aspectos de uma
realidade única, indiferenciada. Os arquétipos, então, são os fatores estruturais tanto
da psique quanto do mundo. Assim, Jung entendeu que a construção do inconsciente é
derivada das vivências individuais, e não coletivas.
5.4 DA PSICOLOGIA APLICADA
Segundo Pires (1995, p. 129), as investigações e os estudos atuais da psicologia
profunda apontam o desenvolvimento do homem como um processo psicogenético. O
elemento fundamental da evolução psicogenética é o espírito, o próprio ser que se
projeta no continuum. É o espírito que organiza os demais elementos dando-lhes
condições para o desenvolvimento dos mesmos.
Entende-se na psicologia aplicada que o ser humano não é somente um corpo
físico, é antes de tudo um ser pensante, que através da parte física (biológica) que o
constitui, pode expressar seu saber internalizado; ao mesmo tempo, pelas relações
sociais, adquire novos saberes que, através do sentido físico, se cristalizam no
inconsciente puro. O que o ser humano é em um determinado momento, o que sabe
suas inclinações, suas preferências, tendências, representa a soma de suas experiências
adquiridas através de sucessivas vivências, em uma linha temporal.
Através dos diversos pensamentos expostos, podemos apreender que o
processo de criação, ou seja, o debruçar do sujeito sobre um objeto, é o desejo desse
sujeito em agir, em transformar, em marcar com as impressões pessoais o objeto. Essa
manifestação, mesmo que ocorra de forma consciente, será sempre consequência da
totalidade pensante que se marca pela subjetividade individual.
No processo de criação nem sempre o sujeito tem consciência do que o move
para essa ação. Há uma sensação, uma emoção, que pode ser de alegria ou de tristeza,
que liga o sujeito ao objeto, que o faz agir sobre ele, transformando-o, remodelando-o,
ou simplesmente sentindo-o, isto é, essa motivação não faz parte da memória
voluntária, mas está no inconsciente puro, é a memória involuntária agindo sobre o
consciente presente marcando o objeto. Mesmo que o processo de criação seja
realmente inspirado por um ato externo como queria Breton, há sempre na
profundidade do ser (sujeito-criador) uma propensão, uma preparação, uma relação já
anteriormente estabelecida entre ele (sujeito) e o objeto. Sendo assim, nenhum ato
ocorre de forma inconsequente, há sempre uma pulsão para a ação, esteja ou não seu
criador consciente de sua criação.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, ao lermos os poemas de Drummond, especialmente os da
parte “Pretérito-mais-que-perfeito”, podemos dizer que essa é uma escritura com base
no conhecimento consciente e racional, apreendido através do meio em que o
constituiu. O passado de sua família está marcado na história do local Minas Gerais e,
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Onde se situa o “pretérito-mais-que-perfeito”?
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por extensão, do Brasil. Esses fatos chegam ao conhecimento do poeta não somente
pelos documentos históricos, mas também pela memória de seus familiares e das
demais pessoas que fizeram parte desse cenário constitutivo.
Se a memória voluntária do poeta leva-o a descrever o contexto social do
século XIX, a memória involuntária é que vai apontar como essa obra é criada,
construída e apresentada; reflete, pois, a subjetividade do sujeito-criador. Ou seja, os
fatos políticos, econômicos e sociais passaram, o tempo passou, mas o sujeito Carlos
Drummond de Andrade constituiu-se através e por meio dos fatos que atravessaram
esse tempo.
Assim, o sujeito-poeta Drummond cria seu objeto de uma forma que só ele o
consegue fazer, pois é a sua memória involuntária (o inconsciente) que age sobre a sua
memória voluntária (o consciente) impulsionando-o para a construção de sua arte: a
poesia.
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Salete Valer
Marcos Eroni Pires
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