Chacal
Uma história à margem
Este livro foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural
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de como virei chacal
Cresci entre o jogo de botão, autorama, pingue-pongue, Monteiro Lobato
e seriados de tv: Falcão Negro, Rin-Tin-Tin, Bat Masterson, O Fugitivo, Os
Intocáveis. Da escola pra casa. De casa pra escola. Sempre sob o olhar onipresente de Maria Magdalena, minha mãe. Nas férias ia para o sítio da família em
Cinco Lagos, um vilarejo próximo a Mendes, no interior do Estado do Rio. Lá,
além das muitas jabuticabeiras, havia Mimosa, mangalarga mestiça, que me
galopava para o infinito.
Aos 14 anos pulei meu primeiro obstáculo: o muro do Dom Ricardo,
edifício onde morava com a família. Do outro lado, uma mangueira frondosa,
reinando sobre toda a área, me chamava. Ali era a reunião dos pátios e garagens do fundo dos prédios de um quarteirão de Copacabana, Posto 5, limitados pela Praça Eugênio Jardim e pelas ruas Xavier da Silveira, Miguel Lemos
e Barata Ribeiro.
Foi mais ou menos por essa época que Chacal se superpôs ao meu nome
cristão. Fui criado em apartamento. Menos mal que meu prédio tinha um playground de bom tamanho. Menos mal ainda que esse pátio ficasse a cinco quarteirões do mar de Copacabana, onde pegava jacaré e tirava onda. Entre o edifício e a praia ficava o Colégio Mallet Soares, onde estudei primário e ginásio.
Nesse play desenvolvi habilidades. Aprendi a jogar futebol e vôlei.
Ambos por inspiração de família. Meu pai, Marcial Galdino, saiu do Rio
Grande do Sul com o exército gaúcho com destino ao Rio de Janeiro, na
Revolução Constitucionalista de 1932. Houve um jogo entre soldados gaúchos
e o Fluminense. Meu pai foi convidado para jogar no tricolor das Laranjeiras.
Em 1936, foi campeão carioca, ao lado de Hércules, Tim, Batatais e Romeu,
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que, reza a lenda, ficava meses sem errar um passe. Marcial formava a linha
média com Brant e Orozimbo e jogava duro. Marcava o lendário homem-gol
Leônidas da Silva, inventor da bicicleta, uma maravilhosa e alucinada adequação do movimento do corpo à funcionalidade do gol.
Filho de peixe, fui bicampeão carioca de futebol de salão infanto-juvenil
pelo Fluminense em 1964 e 65. Em 64 fui artilheiro do campeonato.
quadra de futebol de salão: contra-ataque
rápido. vaguinho, o goleiro, lança a bola
rasteira com força. no meio da quadra, só
eu e o beque do América, colado às minhas
costas. enfio o pé com força por baixo da
bola e corro pelas costas do beque. A bola
sobe e faz uma curva para trás. encobre o
adversário. saio na cara do gol. dou um
toque. desloco o goleiro. fluminense 1.
américa 0. rio de janeiro 1965. corta.
O vôlei veio da praia, de ver minhas irmãs jogarem e de acompanhar pelo
rádio as grandes seleções brasileiras de Feitosa, Quaresma, Vitinho e companhia. Em 64, um amigo, Sérgio Liuzzi, que depois ilustrou meu primeiro livro,
jogava vôlei no Botafogo e foi convocado para a seleção carioca. Ele me levou
para jogar no time. Fiz um teste e fui aprovado.
Depois de um treino, me atrasei no vestiário, e quando cheguei à cantina do ginásio do Mourisco, onde a seleção treinava, a rapaziada comia quieta.
Diante do silêncio exclamei: “Que onda chacal!” Era uma gíria da época que não
lembro mais o significado. Devia ser o mesmo que onda careca, onda por fora,
devagar. Fato é que o Serginho achou engraçado e levou para a turma da praça.
Apesar dos protestos de meus pais, que não gostaram nada de ter seu
filho Ricardo confundido com um bicho carniceiro, o apelido pegou. Meu
batismo de rua veio de uma gíria. Assim foi.
De volta ao muro: aquele monolito de tijolo e argamassa, que me protegeu para eu aprender a jogar, agora se colocava como um beque monumental
à minha frente. Ele me impedia de avançar e conhecer coisas novas. Pulei-o.
E assim fiz durante toda a vida, essa corrida de obstáculos para poder ir ver,
para poder viver.
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turma da pracinha
A mangueira soberana punha as manguinhas de fora de dezembro a fevereiro. O aroma agridoce forte predominava entre os paredões de apartamentos. Sob sua sombra generosa, se reunia a turma da pracinha. Era o Cantinho
do Céu. Ali vivia também pendurado o papagaio Braziliano. Volta e meia
recebia uma baforada de maconha no bico. Ele assoviava o hino do Bangu e
caía duro no chão. Braziliano.
Havia também o concurso de quem fazia a maior labareda. Acendia-se
um isqueiro perto do cu e mandava-se violentas bufas inflamáveis. Aconteciam
erupções instantâneas feitas por dragões invertidos. Era fogo na roupa. Os
ratos também lambiam como balões. Encurralados na garagem do edifício,
eram embebidos em álcool. Depois riscava-se o fósforo. Os ratos flambados viravam buscapés. Teatro da crueldade. Um tanto de Fellini. Outro de
Tarantino.
Outra onda era descer a Estrada das Canoas de rolimã. Faíscas nas curvas da noite de São Conrado. Ou andar de baby surf, o ancestral do skate. Uma
tábua serrada em forma de prancha, uns patins desmembrados e pregados na
madeira. Era 65 e lá íamos nós, fagueiros, pelo asfalto de Copa deslizando.
trip tropa
capitaneando a nau capitânea orlando
compartilha compartimento com diva divina
corista de revista. orgias a bombordo. o
litoral aponta farol canhão lunetas
disparates. o barco é ferido no nariz e faz
água. orlando dá ordem à desordem
embarcando a tripulação no submarino para
casos como esse. no bico do colosso semi
afundado orlandes barriga encolhida farda
de gala assovia o hino da esquadra e pula. o
resto da nau eram bolhas. rio maracanã
banheira de d. moema largo do boticário
praias cariocas o dirigível estaciona numa
sarjeta sórdida de niterói. pegam a barca
pro rio. orlando asseclas partner desviam a
cantareira rumo à lagoa rodrigo dos peixes
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exilados com falta de ar e área. barcarola
ancorada os tripulantes raptados são
atirados aos tubarões de mandíbulas. os
reféns pra trabalhar e a trip tropa trota corte
cantagalo acima abaixo na final visita
cordial ao pequeno canto do céu que ela
veio pra se lembrar.
bunda mole e dedo duro tanto treme quanto entrega
(Preço da passagem, 1972)
Eu tinha uma namorada. Namoramos um bom tempo. Ela passava pra
me pegar na pracinha num Citroën Sapo com motorista. O carro levantava
a carroceria quando dava a partida. Quase impossível de capotar. Ela tinha
olhos de kiwi. Ela era linda.
Um dia, o Citroën parou no sinal da avenida Copacabana com a rua
Bolívar. Um jipe baleado, sem capota, com dois cabeludos, parou ao lado. Eles
olharam pra dentro do nosso carro e um comentou com o outro: “Puta que o
pariu! Isso é que é vida”. Mal sabiam que, em pouco tempo, eu estaria num jipe
daqueles correndo mundo.
Nessa época, 64, eu ia às domingueiras no Olímpico Club na rua Pompeu
Loureiro. Tensão no ar. As turmas iam lá pra brigar. A turma da Barão, a turma
da Miguel, a turma da Constant. Turmas de rua de Copacabana. Lá tocava de
vez em quando um rock irresistível. Todo mundo dançava. Tinha acabado de
ser lançado. Era um compacto. De um lado, “Paint it Black”. Do outro, o hino:
“(I can’t get no) Satisfation”. Até hoje fico em pé quando toca.
aquela guitarrinha ranheta
debochada desbocada
my generation
satisfaction
aquela mina felina
cuba sarro cocaína
do you wanna dance
don’t let me down
aquela ginga jenipapo
elástica solta rasteira
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i’m free
like a rolling stone
aquele clima da pesada
cheiro de porrada no ar
street fighting man
jumping jack flash
aquele som de fuder
orelhas pra que te quero
who knows
straight ahead
(América, 1975)
Também comprava os lps dos Beatles assim que saíam. Help, Revolver,
Rubber Soul. Eu vivia embebido em Beatles. Eu era um soldado da banda dos
corações solitários do Sargento Pimenta.
bob dylan
Nessa mesma época, escutei “Like a Rolling Stone”. Era o verão de 64.
Enquanto o pau quebrava em Brasília, eu passava as férias em Resende, sul do
Rio de Janeiro, meio caminho para São Paulo. Ia pra casa de um amigo. Nessa
casa fui apresentado à loucura. Ela se chamava Duda, um parente alienado,
trancafiado num quarto. Ele me apavorava. De vez em quando ele balia combalido com seus fantasmas. Duda, o doido.
A vida se esvaía nas conversas com os playboys da cidade nos botecos
regados à cerveja, carnavais no clube, os primeiros beijos e pegas de kombi
pela Dutra. Tinham duas ou três kombis que voavam baixo na estrada até o
Tamboridegui, um restaurante de nome esquisito às margens da Rio-São Paulo.
E as kombis faziam vrruuummmm, vroooommmmm, vaaaarrruuuummmm.
E era um tal de se agarrar aos bancos e às paredes de lata, branco feito papel,
sem deixar transparecer o terror. Naquele tempo, os ônibus da Cometa, imbatíveis, passavam pela Dutra a mais e mil.
Nesse clima rebeldes sem causa e suas kombis voadoras, eu e meus treze
anos, gostava mais de futebol, rock and roll e meninas de rabo de cavalo. Na
Academia Militar das Agulhas Negras, que ficava de cara para a cidade, do
outro lado da Dutra, e era comandada pelo general Emílio Garrastazu Médici
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(um desperdício de nome!) – que teria importante função, meses depois, no
golpe de 64 –, deu-se uma epifania. E ela se chamava “Like a Rolling Stone”.
Foi numa festinha regada a cuba-libre, totalmente alheio ao clima de
insurreição na caserna pré-golpe, que, pelos labirintos dos meus ouvidos,
penetrou com gaita e tudo a voz anasalada de Mr. Robert Zimmerman, ou
melhor, Bob Dylan. Era a faixa de um compacto recém-lançado. Boa de dançar. E aquela voz desenhando arabescos cortantes, imagens acústicas arrastadas. “When you got nothing, you got nothing to lose”… Isso sempre me orientou nas nuances do nada, na hora do bicho solto.
Resende, agulhas negras, kombis, as meninas, dudas, tudo isso era um
distante décor para aquela revelação na sala de uma casa qualquer na academia militar. Ali minha alma foi encomendada. Eu percebi que a voz, a palavra,
o ritmo e um vago perfume eram as armas que eu precisava para derrubar o
poder das agulhas negras. Voodoo you!
colégio andré maurois
Comecei a fazer o curso secundário no Colégio Estadual André Maurois,
no Leblon, onde tudo acontecia sob o comando da diretora Henriette Amado,
sob o lema “liberdade com responsabilidade”. Era 67, 68 e 69. Pela primeira
vez, eu caía no mundo pelas lentes ácidas de uma nova cultura. No André
Maurois, tudo era tratado abertamente: sexo, drogas, política. Ali tive professores extraordinários como Ivo Barbieri, que, ao ler em voz alta o conto
“A Boicininga”, de Guimarães Rosa, tinha esgares, se contorcia. Comecei a ler
Guimarães avidamente. Eu percebi que as palavras tinham molas, dobravam
esquinas. Foi outra revelação.
Entrei em um grupo de estudos sobre materialismo dialético. Lia extasiado
A história da riqueza do homem, de Leo Huberman. Comecei a ler o mundo
de outra forma. As aulas eram dadas por Carlos Henrique Escobar, professor
de filosofia, poeta e diretor de teatro, numa sala meio esquiva da Tijuca. Foi o
máximo de clandestinidade que vivi naqueles anos de utopia exacerbada.
Nesse período, uma colega de classe chamada Gracinha foi participar de sua
primeira manifestação política no centro do Rio. Precisava de alguém para fazer
sua segurança. Me habilitei. E lá fui eu, hipnotizado por outros olhos intensamente verdes, viver o movimento estudantil.
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Eu ficava abismado com aquela mobilização de estudantes, intelectuais e
artistas contra o governo militar. Aquele mar de faixas com palavras de ordem
incitando as pessoas a irem à luta. E as vozes gritando frases como “só o povo
armado derruba a ditadura” ou “o povo unido jamais será vencido”. E a crença
de todos refletida nos punhos cerrados, nos rostos crispados, nos gritos convictos. Até que chegava a repressão com seus cavalos, seus camburões, e dispersava a multidão. Numa dessas, um policial, com meio corpo para fora do
camburão e uma arma na mão, atira. Uma colega de classe cai com um tiro na
perna. Realmente ali não era lugar para gracinhas.
Vibrava com os comícios-relâmpagos. Vi Marcos Medeiros, depois diretor de cinema, na rua Santa Luiza, fazer um. Ele pulava num poste, bradava
meia dúzia de palavras de ordem, incendiava a galera e abria fora, cercado por
seguranças do movimento. Vi Vladimir Palmeira, presidente da ubes, União
Brasileira dos Estudantes Secundaristas, fazer o mesmo. Ele era peludo e parecia o Glauber Rocha. Eram os popstars vermelhos. Os comícios-relâmpagos,
quem sabe, deflagraram algum dispositivo que viria a usar mais tarde nos recitais pela vida inteira. A síntese, a urgência e a convicção daquilo que se fala.
todo poeta é um traficante de armas.
primeiros ácidos
1o – O papo era que, tomando uma lasca daquela substância, o mundo
se transformava em marshmallow, as cores retiniam na vista, os sons se liquefaziam. Yellow Submarine. Eu tinha que viver aquilo. Uns amigos tinham trazido alguns dos Estados Unidos. Apresentaram. E fui fazer minha primeira
trip na casa deles. Tomei uma metade do ácido e fiquei esperando as portas da
percepção se abrirem. Nada acontecia. Pegava a capa de um disco de Hendrix,
sacudia diante dos olhos e nada. O controle era muito. Resultado: peguei papel
e caneta e escrevi um longo texto que começava assim: “quero deixar aqui meu
protesto contra a total falta de movimento das cores, das formas e dos sons...”
Escrevi compulsivamente por páginas e páginas. O ácido batera naquilo que
mais me mobilizava: a palavra escrita. O segundo, sem querer controlar a vertigem, bateu como as asas de um beija-flor.
2o – O sol mal acabara de sair e um grupo estranho de pessoas vestidas
de branco vinha andando pelas margens do rio até o encontro com o mar. Nós
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tínhamos acabado de chegar à praia de Muriqui, litoral sul do Rio de Janeiro.
Éramos quatro ou cinco. Fomos tomar um ácido e curtir aquela praia deserta
um dia inteiro. Realmente, a praia era deserta, a não ser por aquele grupo de
umbandistas festejando o encontro de oxum com iemanjá. Saravamos todos.
A viagem começara bem. Ficamos a zanzar pela praia all day long, mergulhando na água amniótica, penetrando no madrepérola das conchas, extasiados com o voo das gaivotas.
Enquanto o sol se punha, deixando seu rastro púrpura, ouvimos com
um estrondo tremendo dentro dos nossos tímpanos o apito de um trem. Na
sequência, um farol varrendo a praia e o som estridente da locomotiva. A
Maria Fumaça, que ia para Mangaratiba, fez a sua presença, fechando aquele
dia de alucinações psicodélicas variadas.
Foi muito difícil sair daquele sítio tão perfeito com os amigos e voltar
para a balbúrdia do Rio de Janeiro. Mas o que fazer? Pegamos uma sessão
noturna no Cine Paissandu. O filme, naquele dia, pouco importava. O que
valia era a sensação de ainda viajar em boa companhia.
gang de poetas
Em 1970 entrei para a eco, Escola de Comunicação da ufrj. Minha primeira opção era Economia. Imaginava poder dar curso ao meu interesse por
história, geografia, sociologia e matemática. Mas foi essa última a minha algoz
nas provas do vestibular. A tensão nervosa me fez trocar sinais e levei pau.
Menos mal que passei bem na segunda opção, Comunicação, uma novidade na
época. A Universidade como um todo estava sendo esvaziada pela política educacional do governo militar, orientada pelos americanos, no famigerado acordo
mec/usaid. Fiz a prova de vestibular no antigo prédio de esquina da Praça da
República. Do prédio da polícia ao lado vinha o som surdo, abafado, dilacerante
dos presos políticos torturados. Era esse o quadro clínico da época.
pra quê?
sentado e estudantil, orlando tacapau
perscrutava o absurdo e o rabo da
professora. de repente, passos no corredor
atrás da porta fechada. “serão policiais ou
alunos atrasados?” takapassou a mulher
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com o giz e abriu a porta. o homem colado
com as orelhas entregando saiu de banda.
bandeira. sua suástica caiu no chão.
orlando viu o lance achou nada pisou na
escada e não apareceu mais por ali.
pra quê?
não ato
nem desato
desa
r
t
iculo
(Preço da passagem, 1972)
Pois foi nesse mausoléu que minha vida voltou a dar meia volta. Lá conheci
duas pessoas que mudaram minha história: Charles Peixoto e Virgínia Sabino.
Charles, nascido Carlos Ronald de Carvalho, era neto do poeta modernista.
Além de conhecer mais poesia que eu, era dono de um humor cáustico e de
versos abissais. A empatia entre nós foi imediata. Virgínia Sabino era neta de
Benedito Valladares, histórico político mineiro e filha de Fernando Sabino,
escritor e cronista exemplar. Vírginia fazia joias e tinha um humor e um coração sem tamanho.
Ao nosso trio, trazido por Charles, apareceu Guilherme Mandaro, aluno
de Filosofia no Largo de São Francisco e professor de História em um curso
de vestibular. Era o crânio mais efervescente que jamais existiu. Guilherme
era uma máquina de promover a vida à vista. Esse era o núcleo do grupo que
depois foi incorporando várias criaturas queridas. O ano era 1970. Woodstock
ressoava. A bandeira beat e a fogueira hippie retiniam aqui em todo lugar.
Guilherme ainda não escrevia poesia, mas lia muito e escrevia ensaios. A
gente vivia entre a casa de Vírginia, em Correias, Petrópolis, e a casa de Charles
em Teresópolis. Charles, leitor fiel de Fernando Pessoa e Maiakovski, dava a
letra. Guilherme incendiava as ideias com sua paixão pelo porvir. Virgínia,
nossa sweet Virgínia, com seu humor sutil e suas observações certeiras, era a
mais perfeita companheira de viagem. Quando ria, o céu todo luzia. E a vida
era vivida como manda o figurino entre solos de Hendrix, esgares de Joplin,
solos de Peter Townsend e a fina flor acrilírica do Tropicalismo.
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dias de mescalina
agora vai pra casa, descansa.
amanhã terás um dia feliz
como são os dias de mescalina.
(Muito prazer, 1971)
esquizofrenética copa
Nada era muito angelical, não obstante. Estávamos no Brasil e o ar fedia.
Na televisão, volta e meia entrava um preso político no Jornal Nacional, com o
rosto totalmente sugado de qualquer vitalidade, depois de muita tortura, para
declarar seu repúdio à luta armada.
Em 1970, durante a Copa do Mundo nos reuníamos na casa de Virgínia,
na rua San Martin, no final do Leblon, para assistir aos jogos. Uma jornada inesquecível, com a seleção jogando de forma avassaladora com Gerson, Jairzinho,
Pelé, Tostão, Rivelino e Carlos Alberto dando show. Acabados os jogos, eufóricos, pegávamos um ônibus para ir até a Praça General Osório, em Ipanema,
comemorar a vitória com a galera. No ônibus, não sabíamos se discursávamos
contra a ditadura, que capitalizava como podia a vitória da seleção (“Pra frente,
Brasil” era a música mais ouvida) ou se comemorávamos a vitória. Na Praça
General Osório, quase sempre, o pau quebrava com a polícia.
Mas se por um lado a truculência, a injustiça, a miséria, por outro lado o
rock, o movimento hippie, as drogas psicodélicas, a paz e o amor também existiam. E toda essa farra dos sentidos nos embalava. Nós, atacados à direita como
porra-loucas, ripongas. À esquerda como alienados, burgueses. E a poesia,
nossa palavra desordem, sempre presente nas letras de música e nos livros.
Um dia, Charles me apresentou a um que mudou meu destino. Creio que
estávamos indo para Teresópolis ou voltando de Mangaratiba quando ele tirou
um livrinho do bolso e me deu. Era um pequeno exemplar de capa cinza da
coleção Nossos Clássicos, da Editora Agir, e o poeta era Oswald de Andrade.
Sabia quem era Oswald pela peça O rei da vela, dirigida por Zé Celso Martinez
Corrêa, e pelas muitas citações tropicalistas. Mas quando li o livrinho com
excelente introdução de Haroldo de Campos, fiquei três dias abobado, rindo
sozinho, besta feito um jubileu.
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primeiros cadernos de poesia
Pequenas viagens se repetiam com frequência naqueles tempos. Entre o
delírio das substâncias químicas que vinham de fora com a bula “paz e amor”
e o pau comendo aqui dentro, meus alicerces eram desconstruídos. Nós estávamos em queda livre. Não sabíamos onde íamos parar, mas os caminhos
dados – a luta armada ou o sistema – não eram possíveis de trilhar. O que
podia substituir aquilo, a gente não sabia. Era tentativa e erro. Era o mergulho
no escuro. Até que, do meio do mais escuro breu, uma voz se anuncia:
da orelha esquerda de Moisés
saltava um duende capenga
nas noites de lua nova
(Boca roxa, 1979)
Foi meu primeiro poema pós-Oswald. Ele abria uma série de três cadernos manuscritos, com ilustrações, que comecei a escrever a partir de 1971.
Escrever pra não esquecer. Escrever porque com as letras me sinto em casa.
Escrever porque gosto. A Poesia se precipitava como um maná sobre esse um.
parati
Um lugar ficou marcado na memória e nas páginas do meu segundo livro,
Preço da passagem: Parati. A cidade ainda era o cenário do cinema brasileiro
da época: Asylo Muito Louco, Como era gostoso meu francês, Brasil Ano 2000
e outros. Panorama deslumbrante. Rico casario. Ali os dharmas bums daqui
tomavam fôlego. Lembro muito da viagem para Parati. De ônibus até Angra
dos Reis e de lá um barco até Parati. Eram duas horas de viagem pela baía
de Angra numa traineirinha, sujeita a todos os ventos. Tomava-se Romilar,
um xarope para tosses fictícias. Lá, hospedados em alguma estalagem barata,
íamos para a praça principal, entre vira-latas, escrever algumas linhas:
e agora?
pra um lado pro outro.
nada nas cercanias.
orlandade calmamente apertou um charo e disse:
– é aqui.
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bronca metida tacapau desmaiou começou a rolar
a sonhar.
uma barcaça cheia de vômito levava na esteira
cascas descascadas do fruto tropical vidros de
xarope para bronquites absurdas dançarinas de
balé algas anáguas patos selvagens.
a carcaça vagava atlanticamente.
chapinhava a palma do pé no rés d’água.
a barba denunciava um parentesco latente
com poisedon, o deus netuno. 1 pessoa.
cruzolharam.
orlando soube que o navio era aquele.
e riu. abriu os braços os olhos.
– é aqui mesmo.
e balançava a cabeça como quem diz
podes crer.
quem estava ali se levantou.
dança no mato colhendo lenha.
fire.
(Preço da passagem, 72)
Ali a poesia se entranhava a cada gole, a cada dia que nascia ou se
punha. Charles, Guilherme, Virgínia e eu sempre juntos. Lembro de um dia,
voltando de Parati na estrada, começa a tocar no rádio do carro “My sweet
Lord”, com George Harisson. Delírio. A trilha era essa: The Who, Stones,
Dylan, Beatles, Submarino Amarelo, que vimos várias vezes em transe na
Cinemateca do mam.
rio são francisco
No início de 71, fomos fazer a lendária viagem pelo rio São Francisco.
Guilherme, Charles, eu e mais uns sete ou oito companheiros de viagem. Eram
6 dias de jornada de Pirapora (Minas Gerais) até Petrolina (Pernambuco)
numa gaiola como as que cruzavam o Mississipi. Nós compramos passagem
na segunda classe, na parte de baixo, junto às redes do pessoal menos abonado.
Logo logo, estendemos nossas esteiras e sleeping bags na parte de cima, onde
tinham cabines alguns amigos. E era bonito fumar unzinho e ver o pôr do sol
na popa da gaiola. Em pouco tempo já estávamos em cima da capota da barcaça,
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junto à chaminé, vendo estrelas. Escrevi os desregulamentos de bordo que ficaram pelo caminho. Lembro de um que dizia: “é proibido tomaconhaque”.
Cada parada nas cidades ribeirinhas era uma efeméride. O povo juntava
no cais para receber a barca. Um dos passageiros fez um solo de piston ao chegar em Januária. Foi recebido em grande estilo. Parecia Fellini. A barca parava
também na noite estrelar, no meio de lugar nenhum, para se abastecer de lenha.
Era tudo muito outra coisa. Rio São Francisco, Brasil, Planeta Terra.
Uma manhã bem cedo, fui pego apertando um baseado por um tenente
ou coisa parecida. Ele veio por trás e segurou meu punho. Não tive tempo de
atirar o fumo no rio. Fui detido. Ficaria preso quando a barca chegasse à próxima parada, Carinhanha, primeira cidade da Bahia. Só que a galera toda tava
junto, e iria ser um problema prender todo mundo. Guilherme, que era professor de História, apresentou a carteirinha e se responsabilizou por mim. A
comunidade, a tripulação da gaiola, o meio ambiente, todos se tranquilizaram. Enquanto as iaras uivavam. Seguimos viagem.
é proibido pisar na grama
– o jeito é deitar e rolar.
(Boca roxa, 1979)
arembepe
Depois de Petrolina, Salvador, Bahia. Fiquei lá o resto das férias e além.
Alguns amigos do Rio estavam indo para Arembepe e me convidaram. Eram
Lúcia e Ivan Viana e uma colega do André Maurois, também chamada Lúcia. O
tempo era zen. E fui aplicado na macrobiótica. Fiz dois dias de jejum completo.
Se viesse um vento forte, eu decolava. Virei um asceta, um fiapo, um faquir.
O cenário era de sonho: casa de telhado de sapé, fogão a lenha, vitrolinha
de braço tocando João Gilberto, Mutantes, Gil, Caetano, Their satanic majesties request, dos Stones (reza a lenda que Mick Jagger e Keith Richards fizeram
“Simpathy for the Devil” em 68 ali), arroz, banchá e outras iguarias.
relembrando o catupiry
de arembepe
a guarapari
rolou redondo
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rolou risonho
como um queijo catupiry
nas aldeias
pescando siri
sorriu cheiroso
sorriu cremoso
como um queijo catupiry
A paisagem era o paraíso tropical: coqueiros, dunas, o mar da Bahia e um
acampamento de ciganos à beira de um riozinho próximo. O point hippie por
excelência. Era difícil sair dali, mas, em busca de mantimentos, eu e Ivan voltamos ao Rio de carona. Foram três dias na estrada, passando por certos apertos por conta de nosso aspecto alienígena para a brutalidade caipira dos caminhoneiros. Fomos expulsos a pau de um posto de gasolina próximo a Feira de
Santana, na Bahia. Por outro lado, pintou um caminhoneiro, gente muito fina,
que me deixou bem próximo ao Rio de Janeiro.
Com dificuldade, retornei ao dia a dia das aulas na Escola de Comunicação
da ufrj, na Praça da República. Acordava muito cedo, ia fazer ioga na praia
de Copacabana, voltava pra casa, tomava um mingau e ia para a eco pendurado num ônibus. Às vezes andava pela avenida Copacabana fazendo discursos imaginários contra o consumo desnecessário com minha figura esquelética. Era o meu jeito de dizer não.
o comércio e o marketing
O acelerado crescimento econômico que se verifica no Brasil no início dos
anos 70 fez com que o país ingressasse finalmente na sociedade de consumo,
definida pelo publicitário Celso Jupiassu como “a busca de felicidade através da posse de bens”. Assim foi possível assistir a um constante desfile de
lançamentos, aguçando a concorrência, criando mercados completamente
novos: iogurtes, aparelhos de som, fitas gravadas passam a disputar a preferência do público. Num movimento paralelo, o comércio retocou a face de
suas lojas para receber as ondas crescentes de consumidores, devidamente
acionados pelos apelos da publicidade. Os negócios prosperaram, mas, apesar da boa disposição do consumidor para comprar sempre e mais, os industriais e os comerciantes tiveram que adaptar-se ao novo ritmo do mercado,
enfrentando uma concorrência agressiva e sofisticada. Nesse sentido, a utilização do marketing foi uma verdadeira tábua de salvação. O marketing (a
mercadologia) era, acima de tudo, “a arte de fazer toda a produção de uma
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empresa girar em torno do mercado, gostos e necessidades do consumidor,
cuidando da embalagem, da qualidade do produto, da concorrência, da distribuição e das campanhas publicitárias, precedidas de ampla pesquisa de
mercado”.
(Nosso século 1960-80, p. 213)
Apesar do clima de delação e das péssimas instalações da Escola de
Comunicação, onde não havia um laboratório, uma gráfica, um jornal, um
nada, um mundo se abriu pra mim naquela época. O estudo de Linguística, de
Semiótica, de Saussure, Jakobson, me ensinou que entre mim e o outro existe
uma coisa, uma coisa chamada linguagem. Essa serpente, essa coisa insidiosa
que, no mais das vezes, ganha vida própria, turvando seu referente e, oca de
significado ou poluída de conceitos, impera absoluta.
Percebi que poderia usar essa coisa para me organizar, divertir e comunicar com o outro. Eu era muito travado. Pensei durante um tempo em ir para
fora do país, aprender com Jakobson. Fazer meu curso de pós-graduação em
Linguística alhures. Mas resolvi cair na real e me tornar poeta. Era mais barato.
orlando belo dia desceu
pra lembrar vida na terra
sin’carnou em quem devia
e saiu a correr
pular cantar
trepar rolar
dançar rimar
alfabesteira falar
mais tarde um dia taka sentiu uma afissuração
no plano inclinado do quarto planeta do sistema nervoso
visto de trás pra diante. foi ver o que era.
daí a carcaça cansada voltou de novo
à velha inquietação: a tradução
à eterna bagagem: a linguagem.
(Preço da passagem, 1972)
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