O FEMININO E O MASCULINO NOS CONTOS DE PERRAULT, UMA
QUESTÃO A REVER
REGINA SILVA MICHELLI (UERJ - UNISUAM).
Resumo
A Literatura Infanto–Juvenil, em suas origens, configura–se muitas vezes como
veículo para a transmissão de valores ideológicos defendidos pela sociedade em
que foi produzida. Os contos de Charles Perrault, Histórias ou Contos dos Tempos
Passados, com Moralidades, foram registrados ao longo do século XVII, tendo o
escritor falecido em 1703. Suas histórias delineiam uma representação passiva da
figura feminina, via de regra submissa ao poder masculino. Intenta–nos rever esses
paradigmas, analisando personagens femininas e masculinas em contos que
assinalem a possibilidade de subversão a essa estrutura, já consagrada quando a
referência é feita à literatura da tradição. A presença explícita de uma moral, ao
final dos contos, aponta a consolidação de um caráter sentencioso de algumas
histórias, porém, o que objetivamos submeter ao crivo do questionamento e da
análise é o perfil traçado das personagens de acordo com o gênero e a tensão entre
autonomia e heteronomia. Observa–se que há personagens que executam planos e
comandam ações, ora com independência, ora graças à mediação natural ou
mágica de algum ser, mas, acima de tudo, desejantes de traçar o próprio destino;
há também as que se alienam ao poder do outro, reféns e submissas a um desígnio
cuja diretriz lhes escapa. O trabalho fundamenta–se nos estudos de autores já
consagrados da Literatura Infanto–Juvenil, como Nelly Novaes Coelho, Regina
Zilberman, Marisa Lajolo, além de buscar subsídios teóricos na psicologia analítica
junguiana para traçar funções arquetípicas do feminino e do masculino.
Palavras-chave:
Charles Perrault, gêneros, arquétipos.
Introdução
No século XVII, a literatura infantil ocidental tomou a forma escrita através de
Charles Perrault, escritor francês que publicou sua coleção de contos de fada em
1697, com o título Histórias ou Contos dos Tempos Passados, com Moralidades.
Apresentou originalmente contos em verso e em prosa. Perrault ganhou
notoriedade no meio literário da corte francesa de Luís XIV, momento em que se
consagravam os romances conhecidos como "preciosos", lidos nos "salões" das
"preciosas" que ele freqüentava, a despeito da crítica a elas dirigidas por outros
intelectuais da época. As preciosas eram grandes damas cultas que propiciavam,
em seus salões, discussões acerca da literatura e dos direitos femininos. Os
"caudalosos romances preciosos" caracterizavam-se pela "aventura sentimental" e
pelo "heroísmo da paixão" (Coelho, 1991: 106), tendo como eixo o amor e a
mulher, produção literária que se aproximava mais do pensamento popular que da
estrutura clássica.
Afirmar a reprodução, nas narrativas, dos modelos erigidos pela sociedade para o
feminino e para o masculino não causa qualquer surpresa. Referindo-se aos contos
adaptados pelos Grimm, Zilberman realça que eles "transmitem valores burgueses
do tipo ético-religioso e conformam o jovem a um certo papel social." (1982: 41).
Historicamente exigia-se o silêncio e a passividade para a mulher, enquanto cabia
ao homem ser uma figura de fortaleza, comando e destemor. As configurações
propostas para cada gênero, segundo as especificidades da época e do contexto
social, dialogam, neste trabalho, com o perfil arquetípico, marcado pela
universalidade inerente ao conceito de arquétipo. Recorrendo-se aos estudos de
Carl Gustav Jung, pode-se configurar arquetipicamente o feminino e o masculino
através de traços que expressam modos de ser que devem existir
complementarmente na mulher e no homem. Dentre os arquétipos estudados por
Jung, destacam-se aqui os conceitos de anima - "o elemento feminino que há em
todo homem" (Jung, 1977: 31) - e o animus - o componente masculino existente
no inconsciente feminino.
O feminino
O feminino é definido por emoção e sentimentalidade, incluindo "os humores e
sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a
capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso menos
importante, o relacionamento com o inconsciente" (Franz, 1977: 177). O princípio
feminino associa-se a forças que sugerem sensibilidade, imaginação, experiência
intuitiva e lírica, introspecção, sonho, emoção e afeto, primado de Eros. Segundo
Marie-Louise von Franz, para as mulheres, "O lado positivo do animus pode
personificar um espírito de iniciativa, coragem, honestidade e, na sua forma mais
elevada, de grande profundidade espiritual" e sabedoria (1977: 195,193); já o
aspecto negativo traz comportamentos de brutalidade, indiferença, idéias
obstinadas e más.
Analisando as figuras femininas na obra de Perrault, a pesquisadora Mariza Mendes
(2000) questiona se o escritor apresentaria traços de feminismo:
Na leitura dos contos de Perrault, os atributos das personagens femininas logo
saltam aos olhos. Cinderela, Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho são muito
lindas, dóceis e amáveis e lembram as garotas ingênuas e desprotegidas, que estão
expostas aos perigos do mundo. As fadas lembram a mãe protetora e as bruxas
lembram a madrasta, mãe malvada. Essas características definem a imagem da
mulher que o artista captou numa determinada época e transmitiu à posteridade,
valorizando o seu papel na sociedade. Ao perpetuar essa imagem, Perrault teria se
transformado em "profeta" dos ideais feministas, que surgiram muito tempo depois,
mas que já estariam sendo anunciados? (p.124)
Conclui, porém, que embora o escritor tivesse freqüentado o salão das "preciosas"
e defendido as mulheres dos ataques de Boileau, "nas entrelinhas do seu texto, o
que transparece são os preconceitos de uma sociedade machista, que via a mulher
como um ser ridículo" (p.125-126), depreciada ironicamente em alguns contos.
Sobre as configurações do feminino, Mariza Mendes (2000) afirma que:
A beleza era o maior "estigma" da feminilidade, se a mulher não fosse bela, não
seria feminina. Era o primeiro dom com que se preocupavam as fadas, e era a
razão da interferência do herói. O príncipe só salvava a jovem ameaçada ou
atingida pelo mal depois de vê-la e encantar-se com sua infinita beleza. A bondade,
a delicadeza, a honestidade, o recato, a obediência eram os outros estigmas da
fragilidade feminina. As personagens que não tinham esses atributos, e tentavam
se impor pela inteligência, pela maldade, pela inveja ou pela indelicadeza, eram
punidas, ou simplesmente esquecidas. (p.130)
Esse perfil do feminino é efetivamente encontrado em várias histórias de Perrault.
As protagonistas dos contos A Paciência de Griselda, As Fadas e A Bela Adormecida
exercitam o padrão de beleza, docilidade e obediência desejado às mulheres. O
feminino aqui assinala a submissão, carecendo de desenvolver a vivência do
animus. Em outros contos, porém, encontram-se heroínas que empreendem
alguma ruptura, de que se destacam, neste trabalho, Cinderela, a princesa Pele-deAsno e a esposa de Barba Azul.
Cinderela - ou A Gata Borralheira - é, sem dúvida, o conto mais conhecido de
Perrault, levado às telas do cinema por Walt Disney. A bela e boa menina, que tudo
suporta, assinala o paradigma de gentileza e candura proposto ao feminino. Na
análise de Dowling, "as mulheres aceitam o papel de submissas para evitar a
tensão envolvida na construção de uma existência autêntica" (1982: 16),
aguardando a salvação advinda do exterior, em vez de empreender o caminho da
autonomia. Cinderela é capaz de auxiliar as irmãs para que se apresentem no baile
condignamente, enquanto permanece em casa; partilha com elas as frutas
recebidas do príncipe, durante o baile, e, por fim, promove o casamento das duas
com ricos fidalgos da corte. Há, porém, nuances que merecem ser destacadas:
apesar de simplesmente chorar, após a saída da madrasta e das irmãs para o baile,
no exercício de cumprir o que a fada lhe pede, Cinderela começa a esboçar alguma
iniciativa auxiliando-a a encontrar um cocheiro. Após o primeiro baile, uma sutil
malícia já se percebe em tal doce menina: ela finge estar sonolenta ao abrir a porta
para as irmãs, perguntando-lhes se a "princesa" com quem o príncipe dançara
durante o baile era tão linda assim e se ela poderia vê-la no baile seguinte; as
irmãs confirmam a beleza da moça, mas não concordam com a ida de Cinderela ao
baile, o que a deixa "satisfeita, pois ia ficar muito embaraçada se a irmã tivesse
concordado" (Perrault, 1989: 122); o pedido era uma estratégia de dissimulação.
Há um prazer em se saber eleita,
adquirindo sua auto-estima à medida que se sente valorizada pelo príncipe e seus
convidados, durante o baile. A moça que retorna para a casa já não é a mesma que
saíra. O contato com o espaço externo promove o crescimento de Cinderela, capaz
agora de manter a conversa com as irmãs sobre a impressão causada pela "bela
princesa", alimentando sua vaidade; é capaz ainda de tomar a iniciativa de pedir
para experimentar o sapatinho, apesar da zombaria reinante. Quanto à
determinação de voltar antes da meia-noite, no primeiro baile Cinderela obedece ao
compasso do tempo, segundo a orquestração da fada, ultrapassando o horário no
segundo. Um ciclo está prestes a se completar - a noite, a escuridão, as provações
darão lugar ao nascimento de um novo dia. (Michelli, 2004: 8).
Nascimento também de uma nova condição social: Cinderela tornar-se-á mulher,
rainha, deixando para trás a infância e a atitude servil, casamento desejado por ela
uma vez que pede para experimentar o sapatinho, assumindo, gradativamente,
atitudes de maior perspicácia e iniciativa. Mesmo continuando a ser boa e gentil,
arrumando bons casamentos para as irmãs, o poder agora está nas mãos de
Cinderela.
Em Pele de Asno, o conflito inicia-se com a doença da rainha que, à morte, solicita
um juramento do marido, evidenciando tanto a vaidade quanto o sentimento de
posse sobre ele: pede-lhe que só se case com uma princesa mais bela e mais
virtuosa que ela. Pressionado a se casar novamente, o rei volta seus olhos para a
própria filha, legítima herdeira da mãe. Não há, na narrativa, qualquer obstáculo ao
casamento, exceto o desejo da princesa, que, orientada pela Fada dos Lilases, pede
ao pai coisas aparentemente impossíveis, como vestidos da cor do tempo, da Lua,
do Sol e, por último, a pele do asno que garantia a riqueza daquele reino. O pai
tudo lhe dá, na intenção de que o casamento ocorra, mas ela foge, levando consigo
os bens pedidos. A princesa, ainda que ratificando o ideal de feminilidade proposto,
é senhora de seus desejos, não se submetendo ao desejo do pai. De certa forma
vai ser punida na história, como se fosse culpada por ter provocado nele a paixão:
degradada de sua condição de princesa na granja a que chega envolta na pele do
asno, ela precisa realizar as tarefas mais humilhantes. Resgata, porém, sua posição
social através de estratégias que vão levá-la ao encontro do filho do rei. Ao passar
pela granja, ele a vê, pelo buraco da fechadura, vestida com o vestido da cor do
sol, dela enamorando-se perdidamente. Doente, solicita que lhe tragam um bolo
feito por Pele-de-Asno. A princesa esmera-se na preparação do alimento e, ao
manipular a massa, "um anel que ela trazia no dedo desprendeu-se, seja por
indústria ou por outra razão, e misturou-se ao bolo" (Perrault, 1989: 176). O
narrador, portanto, lança a possibilidade da astúcia feminina, pois é através desse
objeto, encontrado pelo príncipe, que Pele-de-Asno será chamada ao castelo: o
anel é o critério de eleição da futura esposa, tal qual o sapatinho de cristal na
história de Cinderela.
Pele-de-Asno representa o ideal feminino de beleza e virtude, pois sua
"desobediência" ao pai é justificada moralmente na narrativa, sendo recompensada
na cerimônia de seu casamento pela presença do pai, já casado. Por outro lado, a
princesa é a que buscou ajuda para se furtar à união indesejada, preferindo o
caminho da fuga, do anonimato, do trabalho e da dor a se submeter; é a que talvez
tenha intencionalmente deixado cair o anel na massa do bolo destinado ao príncipe,
que, segundo o narrador insinua, já tinha sido visto por ela. O feminino age nos
interstícios, tentando ratificar seus próprios desejos, ainda que a narrativa ofereça
valores a guiar a ação da jovem. Diríamos que há um animus que se manifesta na
coragem e na decisão da princesa em enfrentar o destino.
No conto O Barba Azul, a personagem título possui muitas riquezas, mas a barba
torna-o feio e assustador, além de haver um mistério cercando o destino das exesposas. Ele deseja casar-se com uma das duas filhas de uma vizinha da alta
nobreza, ambas muito belas. Como estratégia de sedução e convencimento,
concede oito dias de festa às meninas, à mãe e a alguns amigos em sua casa de
campo, de sorte que a mais nova decide casar-se com ele logo que retornam à
cidade. Após um mês de casados, Barba Azul informa à esposa que precisa fazer
uma viagem, dando-lhe as chaves de todos os cômodos da casa e o acesso a todas
as riquezas, proibindo-a, porém, de entrar no quarto ao final da galeria. A esposa
promete cumprir suas determinações, mas não consegue conter sua curiosidade e
penetra no quarto, descobrindo os corpos das ex-mulheres pendurados nas
paredes. A chave cai no chão e fica manchada, mas, como é mágica, quando a
moça tenta limpá-la, o sangue que some de um lado, aparece de outro. Barba Azul
retorna na mesma noite e, após alguma delonga, a esposa entrega-lhe a chave.
Ameaçada de morte, ela suplica pela vida, pedindo-lhe tempo para rezar e
encomendar a alma a Deus, a que Barba Azul acede. A narrativa não mostra a
esposa rezando, mas pedindo ajuda à irmã. Quando Barba Azul vai matar a esposa,
os irmãos dela surgem e ele é morto pelos dois cavaleiros. A viúva herda a riqueza
do marido.
O que se observa na narrativa é o coroamento final daquela que, em uma das
leituras permitidas da obra, trai a confiança do marido: a esposa curiosa e
desobediente é quem, ao final, obtém a felicidade. Ela é a filha mais nova inexperiente e imatura -, deixando-se iludir por escolhas intempestivas, que
evidencia um amadurecimento pessoal ao se ver ameaçada: ela aprende a negociar
com o tempo, deixando de agir impulsivamente. Evidencia inicialmente o
paradigma do feminino: é bela e age movida pela emoção mais que pela razão, que
aprende a utilizar diante da iminência da morte. Barba Azul representa o masculino
marcado pela crueldade: é um assassino que escolhe as esposas pelo critério de
beleza, mas passa a lhes exigir fidelidade e obediência. Ele é o predador do
feminino, segundo o trabalho da psicóloga junguiana Clarissa Estes (1999) sobre
este conto:
Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse
conhecimento, a mulher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de
sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se
um animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez.
(p. 65)
Consideramos Chapeuzinho Vermelho um conto problemático, no sentido de
possibilitar alguns questionamentos sobre as contingências que cercam o feminino.
Na narrativa, as duas personagens femininas - a menina e a avó - são
completamente destruídas pelo predador - o lobo -, que representa simbolicamente
a figura masculina (Bettelheim, 1980: 205). O feminino assinala a passividade e a
impotência diante de um masculino que subjuga e destrói. Há, na moral, a
advertência explícita à sedução masculina e à imprudência feminina por introduzir,
em seus aposentos particulares, os lobos, especialmente os manhosos. A menina é
punida por sua ingenuidade e, de certa forma, por sua negligência, ao se distrair na
floresta. Não há menção à figura paterna, nem ao caçador, que só aparece na
versão dos irmãos Grimm. O feminino aqui se configura pelas "duas pontas da
vida": de um lado, a ingenuidade nociva à própria sobrevivência; de outro, a
experiência da velhice que, doente, nada pode fazer. Falta animus às duas
personagens de Perrault e o masculino delineia-se como o predador que destrói o
feminino:
Chapeuzinho Vermelho é a portadora do alimento e, por conseguinte, da vida.
Revela-se, porém, frágil - imatura - em sua missão de levar o alimento à avó,
afastando-se de seu objetivo: não percebe a maldade do lobo e termina por
comprometer a sua vida e a da avó. Apresenta-se também completamente
desprotegida: não recebe orientações do único adulto capacitado para isso - a mãe
-, nem a ajuda da avó que, fraca e doente, é incapaz de vencer o lobo. A avó e a
menina são vítimas, punidas com a morte sem que efetivamente tivessem cometido
qualquer transgressão à ordem constituída: a avó nada faz de errado e
Chapeuzinho não recebe qualquer advertência quanto aos perigos que poderia
correr na floresta, logo, não há desobediência de sua parte em relação ao poder
materno. Há, ao final, uma crítica à ingenuidade leviana, castigada com a morte.
(Michelli, 2006: 5).
Segundo Bettelheim, "Por mais atraente que seja a ingenuidade, é perigoso
permanecer ingênuo toda a vida" (1980: 208-209), o que encaminha o conto para
uma leitura em que a ingenuidade demasiada - mesmo para as meninas - é
perniciosa.
O masculino
O masculino (a parte consciente nos homens e inconsciente nas mulheres)
responde por atributos como lógica, objetividade, "capacidade de exercer o poder,
de controlar situações e de defender posições" (Johnson, 1997: 38); o princípio
masculino determina habilidades ligadas à ação, à competição e à conquista, ao
poder de decidir e comandar, ao intelecto, primado do Logos.
Em alguns contos de Perrault aparece, dentre as personagens principais, a figura
masculina do predador, aquele que rompe o diálogo com a anima, evidenciando
desconfiança ou excessivo poder em relação ao feminino, que se configura mais
como presa que como ser igual. Dessa estirpe, associados à morte pela destruição
do outro, fazem parte os ogros e os lobos - "O último avatar do ogro é o lobo, o
animal feroz por excelência na Europa" (2000: 755), afirma Arlette Bouloumié,
incluindo Barba Azul no rol dos ogros: "ele é um ogro que corresponde a um
fantasma tipicamente ocidental e masculino. É a figura do marido abusivo que se
arroga total poder sobre sua mulher escrava, cuja personalidade é por ele
devorada." (2000: 761). Barba Azul é o predador que morre por não efetivar
aprendizagem alguma em seus sucessivos casamentos, representando,
simbolicamente, o devorador do feminino que não se submete à ordem por ele
determinada.
Nesta categoria também se incluem o lobo do conto Chapeuzinho Vermelho e o rei
de A Paciência de Griselda. Este último configura-se como um torturador, causando
uma espécie de morte psíquica à esposa, que se submete a todas as cruéis
arbitrariedades do marido, ao longo de anos: a filha é-lhe tirada por ele, levada
para um convento, sendo-lhe informado de que havia morrido, o que não ocorrera,
e, como última provação, é preterida por uma jovem mulher com quem o marido
supostamente pretende se casar, solicitando a Griselda que oriente a jovem; ao
final, o rei revela que aquela é a filha do casal, louvando publicamente a paciência,
a virtude e o amor da esposa, que ao longo dos anos fora-lhe obediente. Perrault
escreveu este conto, conforme afirma Nelly Novaes Coelho (1991: 87), exatamente
para defender as mulheres do ataque de Boileau. Através da personagem do rei se
expressa toda a desconfiança para com as mulheres, focalizadas por ele como
vaidosas, faladoras, ociosas, traiçoeiras, razão por que evitava o casamento, até
encontrar Griselda. Se o feminino aqui é um primor de submissão, reprimindo a
vivência do animus, o masculino representa a tirania e a crueldade, também
afastado da anima, ambos assinalando a subversão a um desenvolvimento pleno e
integrado.
Um outro grupo se interpõe, o dos "príncipes encantados". Apresentam-se como
fortes e destemidos, atualizando o paradigma do masculino, mas, ao entrarem em
contato com o feminino, a ele se rendem, completamente subjugados ao fascínio
das personagens femininas. Há aqui, em princípio, o domínio da anima,
convergindo para uma integração plena do masculino e do feminino através,
simbolicamente, do casamento. A designação de "encantado", particípio passado,
evidencia a passividade daquele que sofre o encantamento - bem diferente do
"príncipe encantador" de Ana Maria Machado, em História meio ao contrário. Por
outro lado, são essas personagens - jovens príncipes, em sua maioria, e não reis que vão aceitar o feminino, desenvolvendo o diálogo com a anima; apresentam
ainda certa pureza, diferentemente da insensibilidade do predador.
O príncipe do conto Cinderela é definido, durante quase toda a narrativa, como "o
filho do rei", sintagma que realça sua condição filial e dependente. É ele, porém,
que resolve oferecer o baile, elege Cinderela dentre as demais, mesmo
desconhecendo sua origem, e decide se casar com a moça cujo pé coubesse no
sapatinho. Embora pouco atue na história, surgindo durante os bailes e ao final,
quando revê uma Cinderela já transformada pela fada madrinha, o príncipe cumpre
uma função maior que é a de promover o feminino.
Em Pele-de-Asno, o príncipe exemplifica características do masculino - "Tinha-o,
sim, real e marcial o olhar,/ E faria tremer incríveis batalhões." (Perrault, 1977:
62), a que adere outras mais tipicamente atribuídas ao feminino: "jovem, belo e
admiravelmente bem construído; era também muito amado pelo seu pai e a rainha
sua mãe, e adorado pelo povo." (Perrault, 1989: 171). Ele fragiliza-se - ou
humaniza-se - no contato com a visão da princesa, que lhe informam ser apenas
uma imunda serviçal; apresenta, na mesma noite, febre violenta e extrema
fraqueza. A fim de salvar o filho, "doente de amor", os pais dizem-lhe ser capazes
de qualquer ação para o curarem, ao que o príncipe responde pedindo um bolo feito
por Pele-de-Asno. Nesta parte da narrativa, observa-se que ele se acha numa
posição próxima ao feminino, abdicando de suas qualidades guerreiras - o olhar
marcial que a todos conduz - para experimentar a rendição ao feminino,
completamente subjugado ao que julga ser a imagem vislumbrada da perfeição,
quase deidade. Ele reproduz a paixão do rei-pai da princesa, sendo, porém, uma
personagem social e moralmente qualificada para desposar a moça. O príncipe, na
vivência da paixão, carece e deseja sua anima, representada na princesa, dando
vazão à sensibilidade, ao sentimento e à própria intuição ao eleger a jovem como a
dona de seu coração desde a primeira vez em que a vira. Ao final, já casado,
assume o trono, tornando-se rei, o que representa, simbolicamente, seu
amadurecimento pleno, o mesmo valendo para a princesa. No caso do príncipe, há
uma anima que praticamente se apossa do eu, mas, ao final, a convivência se
instala assinalando, pelo casamento, a união do feminino com o masculino na
plenitude de rei e rainha.
Conclusão
Nos contos de Perault observa-se o padrão exigido ao feminino em uma sociedade
marcada por desigualdades, onde o poder concentra-se em mãos masculinas. Os
contos, porém, originam-se de narrativas que eram transmitidas oralmente, em sua
grande maioria, por camponeses, segundo Darnton. Outra, provavelmente, é a
ordem social que rege as relações no meio popular, se comparadas à vida na corte.
Os contos evidenciam certos subterfúgios nem sempre muito corretos eticamente,
o que se vê em O Gato de Botas. Dentro da "ordem" e da norma, há frestas por
onde algumas personagens - femininas e masculinas - escapam. A autonomia
define a liberdade de o ser efetivar as próprias escolhas e formular as regras que
guiam seu comportamento; por outro lado, "toda ausência de liberdade significa
heteronomia, isto é, uma situação em que seguimos regras e comandos impostos
por outros, uma condição agenciada, na qual a pessoa que age o faz por vontade
de outra." (Bauman, 2000: 85).
Os contos de Perrault permitem rever os paradigmas de submissão e de poder que
definem, respectivamente, o feminino e o masculino. Observa-se que embora haja
personagens que se alienam ao poder do outro, reféns e submissas a um desígnio
cuja diretriz lhes escapa, há também as que executam planos e comandam ações,
ora com independência, ora graças à mediação natural ou mágica de algum ser,
mas, acima de tudo, desejantes de traçar o próprio destino. Há heroínas que
vivenciam o lado positivo do animus, associado ao espírito de iniciativa e coragem
no enfrentamento dos desafios e da morte, a que adere a astúcia de se armar dos
instrumentos necessários à própria realização. Há personagens masculinas que
tanto exacerbam o poder, vilipendiando e subjugando o feminino, como se
encantam diante dele, aprendendo a dialogar com sua anima. Ao final, o casamento
representa a integração plena das configurações opositivas do feminino e do
masculino, coroamento que assinala, simbolicamente, o desejado final feliz de
comunhão.
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