O FEMININO E O MASCULINO NOS CONTOS DE PERRAULT, UMA QUESTÃO A REVER REGINA SILVA MICHELLI (UERJ - UNISUAM). Resumo A Literatura Infanto–Juvenil, em suas origens, configura–se muitas vezes como veículo para a transmissão de valores ideológicos defendidos pela sociedade em que foi produzida. Os contos de Charles Perrault, Histórias ou Contos dos Tempos Passados, com Moralidades, foram registrados ao longo do século XVII, tendo o escritor falecido em 1703. Suas histórias delineiam uma representação passiva da figura feminina, via de regra submissa ao poder masculino. Intenta–nos rever esses paradigmas, analisando personagens femininas e masculinas em contos que assinalem a possibilidade de subversão a essa estrutura, já consagrada quando a referência é feita à literatura da tradição. A presença explícita de uma moral, ao final dos contos, aponta a consolidação de um caráter sentencioso de algumas histórias, porém, o que objetivamos submeter ao crivo do questionamento e da análise é o perfil traçado das personagens de acordo com o gênero e a tensão entre autonomia e heteronomia. Observa–se que há personagens que executam planos e comandam ações, ora com independência, ora graças à mediação natural ou mágica de algum ser, mas, acima de tudo, desejantes de traçar o próprio destino; há também as que se alienam ao poder do outro, reféns e submissas a um desígnio cuja diretriz lhes escapa. O trabalho fundamenta–se nos estudos de autores já consagrados da Literatura Infanto–Juvenil, como Nelly Novaes Coelho, Regina Zilberman, Marisa Lajolo, além de buscar subsídios teóricos na psicologia analítica junguiana para traçar funções arquetípicas do feminino e do masculino. Palavras-chave: Charles Perrault, gêneros, arquétipos. Introdução No século XVII, a literatura infantil ocidental tomou a forma escrita através de Charles Perrault, escritor francês que publicou sua coleção de contos de fada em 1697, com o título Histórias ou Contos dos Tempos Passados, com Moralidades. Apresentou originalmente contos em verso e em prosa. Perrault ganhou notoriedade no meio literário da corte francesa de Luís XIV, momento em que se consagravam os romances conhecidos como "preciosos", lidos nos "salões" das "preciosas" que ele freqüentava, a despeito da crítica a elas dirigidas por outros intelectuais da época. As preciosas eram grandes damas cultas que propiciavam, em seus salões, discussões acerca da literatura e dos direitos femininos. Os "caudalosos romances preciosos" caracterizavam-se pela "aventura sentimental" e pelo "heroísmo da paixão" (Coelho, 1991: 106), tendo como eixo o amor e a mulher, produção literária que se aproximava mais do pensamento popular que da estrutura clássica. Afirmar a reprodução, nas narrativas, dos modelos erigidos pela sociedade para o feminino e para o masculino não causa qualquer surpresa. Referindo-se aos contos adaptados pelos Grimm, Zilberman realça que eles "transmitem valores burgueses do tipo ético-religioso e conformam o jovem a um certo papel social." (1982: 41). Historicamente exigia-se o silêncio e a passividade para a mulher, enquanto cabia ao homem ser uma figura de fortaleza, comando e destemor. As configurações propostas para cada gênero, segundo as especificidades da época e do contexto social, dialogam, neste trabalho, com o perfil arquetípico, marcado pela universalidade inerente ao conceito de arquétipo. Recorrendo-se aos estudos de Carl Gustav Jung, pode-se configurar arquetipicamente o feminino e o masculino através de traços que expressam modos de ser que devem existir complementarmente na mulher e no homem. Dentre os arquétipos estudados por Jung, destacam-se aqui os conceitos de anima - "o elemento feminino que há em todo homem" (Jung, 1977: 31) - e o animus - o componente masculino existente no inconsciente feminino. O feminino O feminino é definido por emoção e sentimentalidade, incluindo "os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente" (Franz, 1977: 177). O princípio feminino associa-se a forças que sugerem sensibilidade, imaginação, experiência intuitiva e lírica, introspecção, sonho, emoção e afeto, primado de Eros. Segundo Marie-Louise von Franz, para as mulheres, "O lado positivo do animus pode personificar um espírito de iniciativa, coragem, honestidade e, na sua forma mais elevada, de grande profundidade espiritual" e sabedoria (1977: 195,193); já o aspecto negativo traz comportamentos de brutalidade, indiferença, idéias obstinadas e más. Analisando as figuras femininas na obra de Perrault, a pesquisadora Mariza Mendes (2000) questiona se o escritor apresentaria traços de feminismo: Na leitura dos contos de Perrault, os atributos das personagens femininas logo saltam aos olhos. Cinderela, Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho são muito lindas, dóceis e amáveis e lembram as garotas ingênuas e desprotegidas, que estão expostas aos perigos do mundo. As fadas lembram a mãe protetora e as bruxas lembram a madrasta, mãe malvada. Essas características definem a imagem da mulher que o artista captou numa determinada época e transmitiu à posteridade, valorizando o seu papel na sociedade. Ao perpetuar essa imagem, Perrault teria se transformado em "profeta" dos ideais feministas, que surgiram muito tempo depois, mas que já estariam sendo anunciados? (p.124) Conclui, porém, que embora o escritor tivesse freqüentado o salão das "preciosas" e defendido as mulheres dos ataques de Boileau, "nas entrelinhas do seu texto, o que transparece são os preconceitos de uma sociedade machista, que via a mulher como um ser ridículo" (p.125-126), depreciada ironicamente em alguns contos. Sobre as configurações do feminino, Mariza Mendes (2000) afirma que: A beleza era o maior "estigma" da feminilidade, se a mulher não fosse bela, não seria feminina. Era o primeiro dom com que se preocupavam as fadas, e era a razão da interferência do herói. O príncipe só salvava a jovem ameaçada ou atingida pelo mal depois de vê-la e encantar-se com sua infinita beleza. A bondade, a delicadeza, a honestidade, o recato, a obediência eram os outros estigmas da fragilidade feminina. As personagens que não tinham esses atributos, e tentavam se impor pela inteligência, pela maldade, pela inveja ou pela indelicadeza, eram punidas, ou simplesmente esquecidas. (p.130) Esse perfil do feminino é efetivamente encontrado em várias histórias de Perrault. As protagonistas dos contos A Paciência de Griselda, As Fadas e A Bela Adormecida exercitam o padrão de beleza, docilidade e obediência desejado às mulheres. O feminino aqui assinala a submissão, carecendo de desenvolver a vivência do animus. Em outros contos, porém, encontram-se heroínas que empreendem alguma ruptura, de que se destacam, neste trabalho, Cinderela, a princesa Pele-deAsno e a esposa de Barba Azul. Cinderela - ou A Gata Borralheira - é, sem dúvida, o conto mais conhecido de Perrault, levado às telas do cinema por Walt Disney. A bela e boa menina, que tudo suporta, assinala o paradigma de gentileza e candura proposto ao feminino. Na análise de Dowling, "as mulheres aceitam o papel de submissas para evitar a tensão envolvida na construção de uma existência autêntica" (1982: 16), aguardando a salvação advinda do exterior, em vez de empreender o caminho da autonomia. Cinderela é capaz de auxiliar as irmãs para que se apresentem no baile condignamente, enquanto permanece em casa; partilha com elas as frutas recebidas do príncipe, durante o baile, e, por fim, promove o casamento das duas com ricos fidalgos da corte. Há, porém, nuances que merecem ser destacadas: apesar de simplesmente chorar, após a saída da madrasta e das irmãs para o baile, no exercício de cumprir o que a fada lhe pede, Cinderela começa a esboçar alguma iniciativa auxiliando-a a encontrar um cocheiro. Após o primeiro baile, uma sutil malícia já se percebe em tal doce menina: ela finge estar sonolenta ao abrir a porta para as irmãs, perguntando-lhes se a "princesa" com quem o príncipe dançara durante o baile era tão linda assim e se ela poderia vê-la no baile seguinte; as irmãs confirmam a beleza da moça, mas não concordam com a ida de Cinderela ao baile, o que a deixa "satisfeita, pois ia ficar muito embaraçada se a irmã tivesse concordado" (Perrault, 1989: 122); o pedido era uma estratégia de dissimulação. Há um prazer em se saber eleita, adquirindo sua auto-estima à medida que se sente valorizada pelo príncipe e seus convidados, durante o baile. A moça que retorna para a casa já não é a mesma que saíra. O contato com o espaço externo promove o crescimento de Cinderela, capaz agora de manter a conversa com as irmãs sobre a impressão causada pela "bela princesa", alimentando sua vaidade; é capaz ainda de tomar a iniciativa de pedir para experimentar o sapatinho, apesar da zombaria reinante. Quanto à determinação de voltar antes da meia-noite, no primeiro baile Cinderela obedece ao compasso do tempo, segundo a orquestração da fada, ultrapassando o horário no segundo. Um ciclo está prestes a se completar - a noite, a escuridão, as provações darão lugar ao nascimento de um novo dia. (Michelli, 2004: 8). Nascimento também de uma nova condição social: Cinderela tornar-se-á mulher, rainha, deixando para trás a infância e a atitude servil, casamento desejado por ela uma vez que pede para experimentar o sapatinho, assumindo, gradativamente, atitudes de maior perspicácia e iniciativa. Mesmo continuando a ser boa e gentil, arrumando bons casamentos para as irmãs, o poder agora está nas mãos de Cinderela. Em Pele de Asno, o conflito inicia-se com a doença da rainha que, à morte, solicita um juramento do marido, evidenciando tanto a vaidade quanto o sentimento de posse sobre ele: pede-lhe que só se case com uma princesa mais bela e mais virtuosa que ela. Pressionado a se casar novamente, o rei volta seus olhos para a própria filha, legítima herdeira da mãe. Não há, na narrativa, qualquer obstáculo ao casamento, exceto o desejo da princesa, que, orientada pela Fada dos Lilases, pede ao pai coisas aparentemente impossíveis, como vestidos da cor do tempo, da Lua, do Sol e, por último, a pele do asno que garantia a riqueza daquele reino. O pai tudo lhe dá, na intenção de que o casamento ocorra, mas ela foge, levando consigo os bens pedidos. A princesa, ainda que ratificando o ideal de feminilidade proposto, é senhora de seus desejos, não se submetendo ao desejo do pai. De certa forma vai ser punida na história, como se fosse culpada por ter provocado nele a paixão: degradada de sua condição de princesa na granja a que chega envolta na pele do asno, ela precisa realizar as tarefas mais humilhantes. Resgata, porém, sua posição social através de estratégias que vão levá-la ao encontro do filho do rei. Ao passar pela granja, ele a vê, pelo buraco da fechadura, vestida com o vestido da cor do sol, dela enamorando-se perdidamente. Doente, solicita que lhe tragam um bolo feito por Pele-de-Asno. A princesa esmera-se na preparação do alimento e, ao manipular a massa, "um anel que ela trazia no dedo desprendeu-se, seja por indústria ou por outra razão, e misturou-se ao bolo" (Perrault, 1989: 176). O narrador, portanto, lança a possibilidade da astúcia feminina, pois é através desse objeto, encontrado pelo príncipe, que Pele-de-Asno será chamada ao castelo: o anel é o critério de eleição da futura esposa, tal qual o sapatinho de cristal na história de Cinderela. Pele-de-Asno representa o ideal feminino de beleza e virtude, pois sua "desobediência" ao pai é justificada moralmente na narrativa, sendo recompensada na cerimônia de seu casamento pela presença do pai, já casado. Por outro lado, a princesa é a que buscou ajuda para se furtar à união indesejada, preferindo o caminho da fuga, do anonimato, do trabalho e da dor a se submeter; é a que talvez tenha intencionalmente deixado cair o anel na massa do bolo destinado ao príncipe, que, segundo o narrador insinua, já tinha sido visto por ela. O feminino age nos interstícios, tentando ratificar seus próprios desejos, ainda que a narrativa ofereça valores a guiar a ação da jovem. Diríamos que há um animus que se manifesta na coragem e na decisão da princesa em enfrentar o destino. No conto O Barba Azul, a personagem título possui muitas riquezas, mas a barba torna-o feio e assustador, além de haver um mistério cercando o destino das exesposas. Ele deseja casar-se com uma das duas filhas de uma vizinha da alta nobreza, ambas muito belas. Como estratégia de sedução e convencimento, concede oito dias de festa às meninas, à mãe e a alguns amigos em sua casa de campo, de sorte que a mais nova decide casar-se com ele logo que retornam à cidade. Após um mês de casados, Barba Azul informa à esposa que precisa fazer uma viagem, dando-lhe as chaves de todos os cômodos da casa e o acesso a todas as riquezas, proibindo-a, porém, de entrar no quarto ao final da galeria. A esposa promete cumprir suas determinações, mas não consegue conter sua curiosidade e penetra no quarto, descobrindo os corpos das ex-mulheres pendurados nas paredes. A chave cai no chão e fica manchada, mas, como é mágica, quando a moça tenta limpá-la, o sangue que some de um lado, aparece de outro. Barba Azul retorna na mesma noite e, após alguma delonga, a esposa entrega-lhe a chave. Ameaçada de morte, ela suplica pela vida, pedindo-lhe tempo para rezar e encomendar a alma a Deus, a que Barba Azul acede. A narrativa não mostra a esposa rezando, mas pedindo ajuda à irmã. Quando Barba Azul vai matar a esposa, os irmãos dela surgem e ele é morto pelos dois cavaleiros. A viúva herda a riqueza do marido. O que se observa na narrativa é o coroamento final daquela que, em uma das leituras permitidas da obra, trai a confiança do marido: a esposa curiosa e desobediente é quem, ao final, obtém a felicidade. Ela é a filha mais nova inexperiente e imatura -, deixando-se iludir por escolhas intempestivas, que evidencia um amadurecimento pessoal ao se ver ameaçada: ela aprende a negociar com o tempo, deixando de agir impulsivamente. Evidencia inicialmente o paradigma do feminino: é bela e age movida pela emoção mais que pela razão, que aprende a utilizar diante da iminência da morte. Barba Azul representa o masculino marcado pela crueldade: é um assassino que escolhe as esposas pelo critério de beleza, mas passa a lhes exigir fidelidade e obediência. Ele é o predador do feminino, segundo o trabalho da psicóloga junguiana Clarissa Estes (1999) sobre este conto: Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse conhecimento, a mulher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se um animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez. (p. 65) Consideramos Chapeuzinho Vermelho um conto problemático, no sentido de possibilitar alguns questionamentos sobre as contingências que cercam o feminino. Na narrativa, as duas personagens femininas - a menina e a avó - são completamente destruídas pelo predador - o lobo -, que representa simbolicamente a figura masculina (Bettelheim, 1980: 205). O feminino assinala a passividade e a impotência diante de um masculino que subjuga e destrói. Há, na moral, a advertência explícita à sedução masculina e à imprudência feminina por introduzir, em seus aposentos particulares, os lobos, especialmente os manhosos. A menina é punida por sua ingenuidade e, de certa forma, por sua negligência, ao se distrair na floresta. Não há menção à figura paterna, nem ao caçador, que só aparece na versão dos irmãos Grimm. O feminino aqui se configura pelas "duas pontas da vida": de um lado, a ingenuidade nociva à própria sobrevivência; de outro, a experiência da velhice que, doente, nada pode fazer. Falta animus às duas personagens de Perrault e o masculino delineia-se como o predador que destrói o feminino: Chapeuzinho Vermelho é a portadora do alimento e, por conseguinte, da vida. Revela-se, porém, frágil - imatura - em sua missão de levar o alimento à avó, afastando-se de seu objetivo: não percebe a maldade do lobo e termina por comprometer a sua vida e a da avó. Apresenta-se também completamente desprotegida: não recebe orientações do único adulto capacitado para isso - a mãe -, nem a ajuda da avó que, fraca e doente, é incapaz de vencer o lobo. A avó e a menina são vítimas, punidas com a morte sem que efetivamente tivessem cometido qualquer transgressão à ordem constituída: a avó nada faz de errado e Chapeuzinho não recebe qualquer advertência quanto aos perigos que poderia correr na floresta, logo, não há desobediência de sua parte em relação ao poder materno. Há, ao final, uma crítica à ingenuidade leviana, castigada com a morte. (Michelli, 2006: 5). Segundo Bettelheim, "Por mais atraente que seja a ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida" (1980: 208-209), o que encaminha o conto para uma leitura em que a ingenuidade demasiada - mesmo para as meninas - é perniciosa. O masculino O masculino (a parte consciente nos homens e inconsciente nas mulheres) responde por atributos como lógica, objetividade, "capacidade de exercer o poder, de controlar situações e de defender posições" (Johnson, 1997: 38); o princípio masculino determina habilidades ligadas à ação, à competição e à conquista, ao poder de decidir e comandar, ao intelecto, primado do Logos. Em alguns contos de Perrault aparece, dentre as personagens principais, a figura masculina do predador, aquele que rompe o diálogo com a anima, evidenciando desconfiança ou excessivo poder em relação ao feminino, que se configura mais como presa que como ser igual. Dessa estirpe, associados à morte pela destruição do outro, fazem parte os ogros e os lobos - "O último avatar do ogro é o lobo, o animal feroz por excelência na Europa" (2000: 755), afirma Arlette Bouloumié, incluindo Barba Azul no rol dos ogros: "ele é um ogro que corresponde a um fantasma tipicamente ocidental e masculino. É a figura do marido abusivo que se arroga total poder sobre sua mulher escrava, cuja personalidade é por ele devorada." (2000: 761). Barba Azul é o predador que morre por não efetivar aprendizagem alguma em seus sucessivos casamentos, representando, simbolicamente, o devorador do feminino que não se submete à ordem por ele determinada. Nesta categoria também se incluem o lobo do conto Chapeuzinho Vermelho e o rei de A Paciência de Griselda. Este último configura-se como um torturador, causando uma espécie de morte psíquica à esposa, que se submete a todas as cruéis arbitrariedades do marido, ao longo de anos: a filha é-lhe tirada por ele, levada para um convento, sendo-lhe informado de que havia morrido, o que não ocorrera, e, como última provação, é preterida por uma jovem mulher com quem o marido supostamente pretende se casar, solicitando a Griselda que oriente a jovem; ao final, o rei revela que aquela é a filha do casal, louvando publicamente a paciência, a virtude e o amor da esposa, que ao longo dos anos fora-lhe obediente. Perrault escreveu este conto, conforme afirma Nelly Novaes Coelho (1991: 87), exatamente para defender as mulheres do ataque de Boileau. Através da personagem do rei se expressa toda a desconfiança para com as mulheres, focalizadas por ele como vaidosas, faladoras, ociosas, traiçoeiras, razão por que evitava o casamento, até encontrar Griselda. Se o feminino aqui é um primor de submissão, reprimindo a vivência do animus, o masculino representa a tirania e a crueldade, também afastado da anima, ambos assinalando a subversão a um desenvolvimento pleno e integrado. Um outro grupo se interpõe, o dos "príncipes encantados". Apresentam-se como fortes e destemidos, atualizando o paradigma do masculino, mas, ao entrarem em contato com o feminino, a ele se rendem, completamente subjugados ao fascínio das personagens femininas. Há aqui, em princípio, o domínio da anima, convergindo para uma integração plena do masculino e do feminino através, simbolicamente, do casamento. A designação de "encantado", particípio passado, evidencia a passividade daquele que sofre o encantamento - bem diferente do "príncipe encantador" de Ana Maria Machado, em História meio ao contrário. Por outro lado, são essas personagens - jovens príncipes, em sua maioria, e não reis que vão aceitar o feminino, desenvolvendo o diálogo com a anima; apresentam ainda certa pureza, diferentemente da insensibilidade do predador. O príncipe do conto Cinderela é definido, durante quase toda a narrativa, como "o filho do rei", sintagma que realça sua condição filial e dependente. É ele, porém, que resolve oferecer o baile, elege Cinderela dentre as demais, mesmo desconhecendo sua origem, e decide se casar com a moça cujo pé coubesse no sapatinho. Embora pouco atue na história, surgindo durante os bailes e ao final, quando revê uma Cinderela já transformada pela fada madrinha, o príncipe cumpre uma função maior que é a de promover o feminino. Em Pele-de-Asno, o príncipe exemplifica características do masculino - "Tinha-o, sim, real e marcial o olhar,/ E faria tremer incríveis batalhões." (Perrault, 1977: 62), a que adere outras mais tipicamente atribuídas ao feminino: "jovem, belo e admiravelmente bem construído; era também muito amado pelo seu pai e a rainha sua mãe, e adorado pelo povo." (Perrault, 1989: 171). Ele fragiliza-se - ou humaniza-se - no contato com a visão da princesa, que lhe informam ser apenas uma imunda serviçal; apresenta, na mesma noite, febre violenta e extrema fraqueza. A fim de salvar o filho, "doente de amor", os pais dizem-lhe ser capazes de qualquer ação para o curarem, ao que o príncipe responde pedindo um bolo feito por Pele-de-Asno. Nesta parte da narrativa, observa-se que ele se acha numa posição próxima ao feminino, abdicando de suas qualidades guerreiras - o olhar marcial que a todos conduz - para experimentar a rendição ao feminino, completamente subjugado ao que julga ser a imagem vislumbrada da perfeição, quase deidade. Ele reproduz a paixão do rei-pai da princesa, sendo, porém, uma personagem social e moralmente qualificada para desposar a moça. O príncipe, na vivência da paixão, carece e deseja sua anima, representada na princesa, dando vazão à sensibilidade, ao sentimento e à própria intuição ao eleger a jovem como a dona de seu coração desde a primeira vez em que a vira. Ao final, já casado, assume o trono, tornando-se rei, o que representa, simbolicamente, seu amadurecimento pleno, o mesmo valendo para a princesa. No caso do príncipe, há uma anima que praticamente se apossa do eu, mas, ao final, a convivência se instala assinalando, pelo casamento, a união do feminino com o masculino na plenitude de rei e rainha. Conclusão Nos contos de Perault observa-se o padrão exigido ao feminino em uma sociedade marcada por desigualdades, onde o poder concentra-se em mãos masculinas. Os contos, porém, originam-se de narrativas que eram transmitidas oralmente, em sua grande maioria, por camponeses, segundo Darnton. Outra, provavelmente, é a ordem social que rege as relações no meio popular, se comparadas à vida na corte. Os contos evidenciam certos subterfúgios nem sempre muito corretos eticamente, o que se vê em O Gato de Botas. Dentro da "ordem" e da norma, há frestas por onde algumas personagens - femininas e masculinas - escapam. A autonomia define a liberdade de o ser efetivar as próprias escolhas e formular as regras que guiam seu comportamento; por outro lado, "toda ausência de liberdade significa heteronomia, isto é, uma situação em que seguimos regras e comandos impostos por outros, uma condição agenciada, na qual a pessoa que age o faz por vontade de outra." (Bauman, 2000: 85). Os contos de Perrault permitem rever os paradigmas de submissão e de poder que definem, respectivamente, o feminino e o masculino. Observa-se que embora haja personagens que se alienam ao poder do outro, reféns e submissas a um desígnio cuja diretriz lhes escapa, há também as que executam planos e comandam ações, ora com independência, ora graças à mediação natural ou mágica de algum ser, mas, acima de tudo, desejantes de traçar o próprio destino. Há heroínas que vivenciam o lado positivo do animus, associado ao espírito de iniciativa e coragem no enfrentamento dos desafios e da morte, a que adere a astúcia de se armar dos instrumentos necessários à própria realização. Há personagens masculinas que tanto exacerbam o poder, vilipendiando e subjugando o feminino, como se encantam diante dele, aprendendo a dialogar com sua anima. Ao final, o casamento representa a integração plena das configurações opositivas do feminino e do masculino, coroamento que assinala, simbolicamente, o desejado final feliz de comunhão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 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