Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1996 O Ti “Só” O “Amigo”, sobre os troncos empilhados, ladra aos bandos de pássaros que pousam no chão ou aos pastores que, cedo, levam os rebanhos para longe da planície. Abandonou a tosca cabana de sacas velhas ainda o galo queimava em cantar ao Sol já alto. Arranha a porta cinzenta, sorrindo-se ao rodar da chave, ao ranger da porta a abrir. O homem, mudo, saúda o dia. Olha o tempo, avalia-o. A manhã tem ainda o céu como que enevoado mas o Sol rapidamente aquecerá os seus raios. À tarde irá para a eira dos vizinhos malhar algum trigo que também ajudou a ceifar. E os seus dedos fogem numa breve carícia ao animal. Senta-se no degrau da porta, tem ao lado queijos de ovelha que limpa com uma tira de pano antes de os colocar em azeite. Passa um braço pelo perdigueiro e empurra-o, ralhando para que não teime em lamber os queijos. O “amigo” parece encantar o objectivo de cobiça, olhar fixo e rabo ondulante, narinas dilatadas a cada passo curto, cauteloso, carvão brilhante nos olhos. Às ameaças do dono renuncia ao assalto, deita-se à frente da porta, assenta o focinho no chão, suspirando fundo. - Vamos ao almoço, “amigo”! Caiem no alguidar de barro os pedaços de horta: tomates sangrando ao golpe da faca, pimentos quebradiços; o peixe, bordalos apanhados nas lapas do ribeiro. O “Amigo” cheira o ar. A tigela roda desgovernada sob a língua rosada. E já o homem se prepara, boné brilhando do uso, saco ao ombro e cajado na mão. Vai para o lado dos montes, vereda fora, sobre piçarra e pedra solta, roçando saudades bravas. Passa junto aos tanques, às fontes brancas. Não encontra ninguém, apenas uma galinha fugiu alvoraçada, perseguida pelo cão. O sol é uma brasa no azul e as cigarras começam a aquecer o canto. Ouvem-se vozes por trás do verde cinzento das oliveiras, vozes baixas, abafadas pelo calor. As medas de trigo não são muitas. Há sacas meio cheias. Na palma das mãos um braseiro de dor, cansaço húmido. Mas param, que os patrões são eles próprios. Sentem, então, vontade de ir, descansam à sombra e falam do tempo, da terra e da vida. Uma brisa inesperada vem ao cair da tarde e o cantar das cigarras deixa de doer. Menção Honrosa (Conto) Maria Manuela Gomes de Sousa Rosa Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1996 O azul empalidece mas por entre os cabeços o Sol derrama os últimos traços de fogo. Reanimados pelo esforço último, levam o produto da colheita às costas – “Um peso bom a esmagá-los!” – e descem em fila pelo carreiro. Amontoadas as sacas no celeiro, o homem passa do cheiro confuso do cereal, sacas e ferrugem, para o ar em movimento junto às ramagens dos choupos. Ficou o “Até logo!”, retoma o seu próprio passo em direcção ao monte e dali à horta. Lá adiante, à esquerda do atalho e descendo até à beirinha do ribeiro, a terra abre-se em regos, gretados desde a última rega. A enxada ergue-se e enterra-se firme na carne da terra, que sangra e vem húmida à superfície. Rasga a passagem à água do ribeiro, qual serpente líquida e ávida; engrossa, suja da terra que o ferro levanta, e encontra o seu próprio caminho. Transbordam as caldeiras e os pequenos rebentos afogam-se numa espuma enlameada. Atento, o homem fortalece as barreiras dos regos com terra e grama, disciplina a água, obrigando-a a saciar as plantas. Aqui e além a terra abate-se num buraco de toupeira que o leva a praguejar. O “Amigo” deita-se na verdura rasa, sob as heras que descem dos choupos. O dono, de pé, tira o boné velho e sujo e, na serena acalmia do entardecer, aspira o cheiro da terra molhada. Agora, que o calor emudece, há um murmurar tranquilo e o coaxar das rãs é ainda indeciso. O astro desapareceu e, por breves momentos, a terra parece iluminar-se a si mesma . O vermelho riscado no céu sobre os montados é o sinal, aos olhos das gentes dos montes brancos, de mais um dia quente. Por enquanto, à noite, quando o ar morno ainda flutua, as estrelas salpicam profusamente o céu negro, acolhendo o serão ao relento. Antes de chegar às casas brancas onde já instalaram a luz eléctrica, o homem foi acompanhado pelo piar dos mochos, pelas sombras recortadas das árvores. Os seus passos fizeram ladrar os guardas dos rebanhos, caçadores e assaltantes de coelheiras. O “Amigo” respondeu e o coro de latidos prolongou-se. Os filhos dos homens do campo, que adormecem tarde e exaustos de correrias, lutam, esgrimem-se com paus de lenha, tropeçam na escuridão, braços e pernas arranhados. Sentados por um momento nos mochos, observam as mãos escuras do velho, traçadas pela navalha. Muitas vezes foram até à sua casa para o verem tirar da caixa de madeira o prego enferrujado, o parafuso, arame … Cose as botas com a sovela e o fio das sacas, substitui as varetas partidas das sombrinhas, constrói papagaios leves e gaitas de cana verde… “Olhe, quando o Manel estava a derrubar os vespeiros das vigas do palheiro, saiu de lá um morcego. Era preto! Eu estava à porta e ele ainda me bateu de raspão. Então eles dormem de dia? Não tem uma ratoeira boa? Que eu amanhã em as ovelhas recolhendo, vou apanhar um. Vou sozinho, que estes espantam-mos!” Menção Honrosa (Conto) Maria Manuela Gomes de Sousa Rosa Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1996 Os morcegos apanham-se à noite, quando vêm voar para o negrume, sombras rápidas que passam à frente “Seguram bem alta e direita uma cana untada com sebo!” “Os bichos são moucos!” “E apanhou algum?” A memória falha. Talvez, ou tentou e desistiu, logo distraído com os pintassilgos, ocupado a correr os campos a pé descalço ou a trabalhar. Novo dia. Agora o homem pendura o espelho no umbral da porta e barbeia-se. O Sol vai bebendo da terra a frescura matinal. Quando seguir pelo carreiro, almoço no tarro e foice na mão, já o ar estará seco como o chão que pisa. O céu torna-se pardacento e abafa como cinzas quentes espalhadas. “Caramba, hoje é maligno!” queixam-se contra o ar quente que pesa nos pulmões. “Hoje nem dentro de água!” E o suor escorre, encharcando o cabelo e a roupa. A sombra falta para homens cântaros e talegos. Foi sobre estes sulcos, no inverno, que muitos do rancho apanharam azeitona. Nesse tempo, são as pernas que adormecem e a geada morde os dedos, quando recolhem os bagos negros do azeite. São dedos grossos e feridos, esses, com unhas escuras e gastas por roçarem a terra. Os panejões enchem-se, há que usar a ciranda, há que catar a que se some entre as azedas. Vêm depois o pão e a linguiça, cortadinhos com navalha de ponta gasta; azeitonas novas, esmagadas em verde e temperadas com orégãos, completam o almoço. Mas noutros tempos nem isso… “Que grande calma está hoje!” O canto das cigarras arranca a praga, aumenta a dor. E a dor, e a vida, lavraram sulcos nas faces, assim como o sol gretou os campos. Ele tem a face enrugada, a pele grossa, curtida por dias e dias de calor ou de frio, de alegria ou de tristeza. Mas foi tudo isso que lhe fortaleceu as entranhas, “Pô-lo rijo que nem couro!”, ri, dentes manchados do tabaco mas firmes, semeados ao acaso nas gengivas. “Estar parado traz más cismas.” Hora de jantar. Som de panelas e o “Amigo” fareja um naco de pão. O dono corta fatias para um prato de estanho. Aceso o candeeiro a petróleo, a luz desenha sombras e histórias na parede branca. Em frente, a estanheira velha que pertenceu à mãe. Hora de memórias! A porta fecha-se aos mosquitos e aos sons nocturnos. Um rancho de irmãos, uns foram casando e outros morreram… Trabalhara desde criança e muitas das vezes a sua casa fora a planície. Apenas a ela se ligara “Calhou assim. No fim de contas, quem é que vive sozinho?” Muito falam os outros. “Hoje em dia nínguem quer viver no campo. Vêem-se esses montes abandonados porque os filhos vão para França. As pessoas já não querem viver sem água nem luz. Porque não arranja uma casinha na vila?” Um homem é como uma árvore. Nasce num sítio, pode até ser plantada mas desde que lanças as raízes bem fundo, aí vai vivendo. Menção Honrosa (Conto) Maria Manuela Gomes de Sousa Rosa Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1996 A vila? A vila dos dias de feira, das tabernas, do mercado… O homem coloca sobre uma saca os orégãos, os poejos e os agriões do rio. Espera encostado a um muro branco. Passa gente sem olhar. Chama-os: “Agriões” de boas águas sem, sem sanguessugas!” Crianças descalças oferecem flores e cata-ventos de papel, num pedido cantado. Hora de fechar, um ao outro comprador atrasado. As carroças retomam o caminho para os montes. Dos quintais das últimas casas da vila vem o cheiro a sardinhas e pimentos assados. Quebram torrões os passos de um pastor ou de quem vem das searas. Nos montes, ouvem-se vozes dentro de casa, atrás das fitas das portas; os cães comem as sobras e adormecem à sombra. Amanhece cedo. “O Amigo” não acorre ao levantar do homem, nem vem intrometerse na arrumação da cabana. Ladra lá longe mas não está para os lados da estrada onde a noite deixou morto, na berma, o cão vadio. Qualquer carro que passou… Sob a sombra da azinheira o homem encosta a cabeça ao tronco rugoso. Corre a vista pelos campos. Só o pensamento o leva além da terra plana. “Quanta gente por essas feiras. São como formigas! Quantas mais por esse chão que dali se estende!?” Dizia-lhe o Sebastião ainda um destes dias: “Nem se dá um cálculo a gente que vai por aí. E gente que vive de maneira tão diferente!” “Ora, é gente que trata da sua vida, como nós fazemos.” “Grande cegueira apanham alguns por ir de abalada. Vão para as cidades, nunca mais os vemos. E nós aqui, nesta canseira!” “A única grande cegueira que agarrei em toda a minha vida foi a da terra. A terra que eu conheço, a terra que me conhece.” O amigo, vindo das bandas dos montes, arfando da louca correria, deita-se aos pés do dono, já adormecido. Menção Honrosa (Conto) Maria Manuela Gomes de Sousa Rosa