I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil Os valores clássicos e a crítica social presentes em Helena, de Machado de Assis, e n’ Os Maias, de Eça de Queirós Profa. Ms. Damares Barbosa1 Resumo: Os romances de Machado de Assis e Eça de Queirós proporcionam a investigação, cada vez mais profícua, acerca da vertente crítica estabelecida por ambos em seus textos, mormente relativa aos costumes, valores morais e sociais do século XIX. Essa crítica, contudo, traz em si valores arraigados e estabelecidos durante a trajetória literária de cada um deles. Nessa esteira, alguns elementos presentes nos romances machadianos e queirosianos remontam à Antigüidade Clássica. É o caso de Helena, de Machado de Assis, e Os Maias, de Eça de Queirós, que destacam como tema principal o incesto fraterno. Assim, abordamos alguns aspectos trágicos presentes nos romances de Machado de Assis e Eça de Queirós, aqui elencados, tomando como base o mito edipiano, retratado por Sófocles e Sêneca, que apresentam em suas tragédias o incesto clássico, por definição. A partir daí, avaliamos a apropriação feita do tema clássico por Machado e Eça, a fim de estabelecermos parâmetros comparativos, contemplando os aspectos sócio-culturais estabelecidos nos romances Helena e Os Maias, escritos no século XIX. Palavras-chave: Machado de Assis, Eça de Queirós, tragédia greco-latina, crítica social. 1 Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH/USP. 1 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil Os temas trágicos ocuparam as páginas romanescas no século XIX, por parte dos escritores Românticos e, também, dos Realistas. Essa vertente temática perdurou na Alemanha, França, Portugal e, naturalmente, no Brasil. Os valores clássicos, contudo, elencados em determinadas obras, nada mais eram do que a contextualização da crítica aos costumes e à moral vigente no século XIX. Desse modo, os casos de incesto, presentes nas tragédias greco-latinas, ocupam os textos escritos no século XIX, onde ficam patentes as transformações sofridas pela humanidade, em decorrência das várias Revoluções e correntes filosóficas surgidas até então. O mito de Édipo, a tragédia por excelência, descreve o incesto entre mãe e filho. No entanto, o incesto foi abordado de forma diferenciada em algumas obras, sofrendo tratamento distinto por parte de seus escritores. É o caso dos romances Helena, de Machado de Assis, e Os Maias, de Eça de Queirós, que apresentam como tema o incesto fraterno tratando-o, contudo, de maneira diferenciada. Nas tragédias antigas, o incesto é apenas mencionado como algo que já estava vaticinado por uma profecia. Também as ações são apenas mencionadas nas tragédias. Édipo e Jocasta, ao descobrirem-se incestuosos, procuram a própria punição, a fim de expurgar o pecado que cometeram. Em Sófocles, a morte de Jocasta se dá por enforcamento e, em Sêneca, Jocasta apunhala o próprio ventre, a exemplo da mãe de Nero, Agripina, que, no momento de sua morte, afirma ser o ventre "o lugar que carregara aquele monstro" . Édipo, por sua vez, vaza os olhos para que não lhe seja mais possível enxergar, após crime tão nefasto. Os valores morais e sociais em Helena e n’Os Maias Em Helena, a protagonista chega à casa do Conselheiro Vale desestabilizando a ordem criada numa família feliz e de reputação imaculada, mesmo sendo suposto fruto de um deslize do patriarca, do qual a única falha apontada são os amores clandestinos. E esse deslize é redimido, posto que o Conselheiro concede à Helena todos os privilégios 2 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil de uma filha legítima, por desejo testamental. Sem dúvida, um gesto de nobreza, que mostra ao leitor a incorruptibilidade da família Vale. Aí estão, portanto, os valores nos quais se fundamenta Machado de Assis para inserir o tema incesto nessa obra. O romance, porém, logo em seu início faz com que o leitor levante a ponta do véu, a despeito dos acontecimentos futuros, antes do primeiro encontro entre Estácio e Helena: Estácio foi neste dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao penetrar na chácara, deu com os olhos nas janelas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguém dentro. Pela primeira vez sentiu Estácio a estranheza da situação criada pela presença daquela meia-irmã e perguntou a si próprio se não era a tia quem tinha razão. Repeliu pouco depois esse sentimento; a memória do pai restitui-lhe a benvolência anterior. Ao mesmo tempo, a idéia de ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa criatura intermediária, que ele já amava sem conhecer, e que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estácio contemplou longo tempo as janelas; nem o vulto de Helena apareceu ali, nem ele viu passar a sombra da habitante nova. (Machado de Assis, 1970, p.20). Logo após o encontro de ambos, Machado de Assis trata de descrever a moça Helena, dando a esta feições angelicais, apresentando-a como possuidora de uma "face, de um moreno-pêssego", "cabelos castanhos como os olhos" e semelhantemente afirma que: "...se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor". Ao leitor, a descrição de Estácio, porém, é feita com base nos valores de caráter moral, ao dizer Machado que este não carregava em si as fraquezas morais do pai e que o caráter do moço vinha mais diretamente da mãe. Desta forma, não nos é possível precisar se há ou não semelhança física entre Estácio e Helena. O que não ocorre em Os Maias. N’ Os Maias, Eça de Queirós apresenta Maria Eduarda, à primeira aparição desta no livro, semelhante a uma deusa: "...Do fim do Aterro aproximava-se, caminhando depressa, uma senhora - que ele reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a terra...". E ainda: "...Carlos não pôde detalhar-lhe as feições; apenas, de entre o esplendor ebúrneo da carnação, sentiu o negro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus." (Queirós, 2000, p. 140-141). Carlos da Maia é descrito, em sua primeira aparição, como homem feito, da seguinte maneira: "...Era decerto formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com testa de mármores sob os anéis dos cabelos pretos, e os olhos 3 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil dos Maias, aqueles irresistivéis olhos do pai, de um negro líquido, ternos como os dele e mais graves." (Queirós, 2000, p. 69); isso, a despeito dos olhos de Maria Monforte, mãe de Carlos e Maria Eduarda, serem azuis e profundos (Queirós, 2000, p.23). E, finalmente, para compor o quadro de semelhanças, já como amantes, Carlos e Maria Eduarda vislumbram certa igualdade em seus traços familiares: Depois reparou no retrato de Pedro da Maia; e interessou-se, ficou a contemplar aquela face descorada, que o tempo fizera lívida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos de árabe, negros e lânguidos. - Quem é? – perguntou. - É meu pai. Ela examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos se parecesse com ele. E voltando-se muito séria, enquanto Carlos desarrolhava com veneração uma garrafa de velho Chambertin: - Sabes tu com quem te pareces às vezes?...É extraordinário, mas é verdade. Pareces-te com minha mãe! Carlos riu, encantado duma parecença que os aproximava mais, e que o lisonjeava. (Queirós, 2000, p. 323). Os valores clássicos e a crítica social, inseridos nos romances elencados, sofrem uma transposição mediante as tranformações a que foram submetidas a sociedade. Se por um lado, os valores religiosos na Antigüidade permeavam o pensamento clássico, de outro, a crítica social ganha forma, ao ser o mote principal em determinados romances, ainda que revestida da couraça de mistérios e enleios passionais. Por fim, a descoberta do amor de ambos, em Helena, leva a protagonista a escolher a morte, nos braços de Estácio. Antes da descoberta do amor, vem a revelação da verdadeira condição de Helena e, conseqüentemente, de sua posição social, bem inferior a de Estácio. O impasse, na obra Helena, conceitua-se da seguinte maneira: conhecendo que não são irmãos verdadeiros, Helena e Estácio podem ser, legitimamente, marido e mulher. Helena tem, primeiramente, a ascensão social por meio do testamento do Conselheiro Vale, que a legitimou como filha. Em segundo lugar, não sendo mais a irmã de Estácio, descobre-se amando-o e, também, amada por ele, podendo vir a ser sua esposa, o que garantiria sua posição social elevada. Helena, porém, escolhe a morte por motivos enigmáticos que, se investigados, dão a impressão de que a moça sente vergonha ao ser descoberta como usurpadora de uma fortuna que lhe não pertence. De outra forma, seria sua morte a única maneira de aliviar o embaraço 4 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil pelos quais poderiam passar Estácio e sua família, que a acolheu e, após a descoberta do engodo, vivia às voltas com um cancro que conspurcaria a reputação de tão nobre família. Em A Escrita Dissimulada, Fábio Camargo contempla uma solução para esse empasse, diferentemente da solução da tragédia greco-latina, permeada de nuances religiosas, a condenar o homem, pois o autor acaba transformando a heroína Helena no próprio engodo, referido por Machado de Assis: Helena é escrita, agora, como uma verdadeira heroína a quem se deve dar valor; é uma personagem feminina que se inscreve a partir das martens, que ajuda a minar o esquema impenetrável da sociedade brasileira do século XIX, do mesmo modo que a escrita machadiana, que também se faria às margens. Machado de Assis estaria, com isso, desligado das questões religiosas e apontaria sua crítica para a questão histórica e social que desejava desmascarar. Helena morre para tornar patente a vitória dos ricos sobre os pobres e a questão do capitalismo que vence tudo, sem deixar lugar para aqueles que não possuem poder para enfrentá-lo (Camargo, 2005, p. 66). Maria Eduarda, em Os Maias, considerada como a deusa imaculada no início do romance, vai decaindo, quando suas verdadeiras origens são reveladas e , por fim, quando vem à tona o fato do Sar. Castro Gomes não ser seu marido legítimo. No entanto, a virtude desta é amar verdadeiramente Carlos da Maia, sem saber que os dois são irmãos. Assim é status no romance, segundo Maria Manoel Lisboa: As últimas ações de Maria Eduarda talvez ofereçam uma glosa para este mote. No que diz respeito a esta protagonista, afigurase-nos que, apoucada pelas vicissitudes da vida, mas engrandecida quando descobre a sua missão vocacional amorosa (a paixão por Carlos), ela nunca a partir daí deixa de merecer o estatuto de heroína trágica que Eça consciente ou inconscientemente lhe concedeu, e que, ao contrário do que é hábito no autor, nunca lhe voltou a retirar, através, por exemplo, daquelas pequenas intervenções caricatas com que raramente resistiu a interromper os momentos de tragédia dos outros personagens (Lisboa, 2000, p. 310). 5 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil A crítica aos costumes e valores sociais , em Os Maias são trazidos por eça de queirós no livro por meio de preceptores ingleses e também pelas relações extra-conjugais manifestas durante todo o romance, revelando a decadência das instituições cultuadas pela sociedade portuguesa. E a crítica prossegue, pelo terreno econômico-social , pois que Portugal ao passar por diversos episódios desastrosos frente ás nações mais ricas durante a disputa colonial, é descoberto como país decadente. Essa decadência, atestada no romance, tem seu ponto culminante personificado pela relação incestuosa entre os dois irmãos: Se Os Maias, como crítica social tem abundantemente arguido, é o romance de Eça que mais panoramicamente documenta a decadência da nação no século XIX (sendo o incesto habitualmente avançado como a suprema metáfora desse declínio), nós propomos aqui, agora, que é o campo não dos amores proibidos, mas da amizade masculina que a batalha pela sobrevivência moral da nação é arrostada e perdida (Lisboa, 2000, p. 318). Maria Manuel Lisboa faz referência à amizade entre Carlos da Maia e João da Ega, que é o que perdura, ao final do romance, quando descobre o incesto e, também, a resolução de Carlos de não mais se entregar ao amor. Considerações finais Os valores clássicos e a crítica social, inseridos nos romances elencados, sofrem uma transposição mediante às tranformações a que foram submetidas a sociedade. Se por um lado, os valores religiosos, na Antigüidade, permeavam o pensamento e o comportamento do homem e, conseqüentemente, encontravam-se descritos nas obras dos grandes tragediógrafos, com o advento da modernidade, as questões morais passam a uma conotação diversa, tendo como principal viés o momento sócioeconômico. 6 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil A não ascensão social de Helena, vedada por Machado de Assis, coloca-se em contraposição à naturalidade vivida por Maria Eduarda e Carlos da Maia, após o incesto. Nota-se que apropriação feita por Machado de Assis do tema clássico incesto conserva algum aspecto religioso ou um quê de moralidade personificado, no romance Helena, pela figura do padre Melchior, que é quem revela a Estácio sua condição de amante da própria irmã. Ainda que o incesto seja apenas imaginário, porque não existe o grau de parentesco, o amor de Estácio por Helena não o é, uma vez que, ao ser descoberto, o rapaz torna-se ainda mais vulnerável à perda do objeto amado, que para todos é a sua própria irmã. Eça de Queirós tem um olhar diferenciado sobre essa questão clássica do incesto. Para Eça, o incesto contextualizado n’ Os Maias foi real, pois que também real era o fato de Maria Eduarda e Carlos da Maia serem irmãos carnais. A união física concretiza-se após a declaração de amor espiritual. 7 I Seminário Machado de Assis Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte 08 a 11 de agosto de 2008 UERJ – Rio de Janeiro, Brasil Referências Bibliográficas CAMARGO, Fábio Figueiredo. A Escrita Dissimulada: um estudo de Helena, Dom Casmurro e Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Belo Horizonte: Sografe Editora e Gráfica Ltda, 2005. LISBOA, Maria Manuel. Teu amor fez de mim um lago triste. Ensaios sobre Os Maias. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2000. LUZES, Pedro. Sob o manto diáfano do Realismo. Psicanálise de Eça de Queiroz. Lisboa: Fim de Século Ed., 2001. MACHADO de ASSIS, J.M. Helena. São Paulo: Ática, 1970. MARTINS, António Coimbra. Ensaios queirosianos. Lisboa: Europa-América, 1967. QUEIRÓS, Eça de. Os Maias. Episódios da vida romântica. São Paulo: Nova Alexandria, 2000. 8