Atas das 2as
CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
2014
24 e 25 de outubro
QUINTAS DO DOURO
História, Património e Desenvolvimento
Geraldo Coelho Dias
ATAS das 2as
CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2014
Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento
Disponível online em www.museudelamego.pt
ABREVIATURAS
AMVR – Arquivo Municipal de Vila Real
ASCR – CQ - Amigos do Solar dos Condes de Resende
– Confraria Queirosiana
ASRAVD – Associação de Desenvolvimento da Rede
de Aldeias Vinhateiras do Douro
CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar
Cultura, Espaço e Memória
CNRS – Centre National de la Recherche Sciéntifique,
Lyon
DL – Diocese de Lamego
DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte
FCSH – UNL – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto
GHAP - Gabinete de História, Arqueologia e Património
MD – Museu do Douro
ML – Museu de Lamego
ORGANIZAÇÃO
ML DRCN / CITCEM FLUP
CONCEPÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA
Pe. Hermínio Lopes (DL)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Alexandra Braga (ML DRCN)
Gaspar Martins Pereira (FLUP CITCEM)
Luís Sebastian (ML DRCN)
Paula Montes Leal (FLUP CITCEM)
IMAGEM DE CAPA
Pedro Martins.
© Direção Regional de Cultura do Norte
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Alexandra Braga
Luís Sebastian
EDIÇÃO
© Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura
do Norte
DATA DE EDIÇÃO
Outubro de 2014
CONFERENCISTAS
António Martinho (ADRAVD)
Carlota Cabral (FCSH-UNL)
Celeste Pereira (Greengrape)
Gaspar Martins Pereira (CITCEM)
Gonçalves Guimarães (GHAP – ASCR-CQ)
Luís Ramos (UTAD)
Manuel Carvalho (Jornal «Público»)
Natália Fauvrelle (MD/CITCEM)
Nuno Magalhães (UTAD)
Nuno Resende (CITCEM)
Otília Lage (CITCEM)
Paula Montes Leal (CITCEM)
Paulo Amaral (DRCN)
Pedro Peixoto (AMVR)
Pedro Pereira (CITCEM/CNRS)
e-ISBN
978-989-98657-7-8
O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica
são da responsabilidade dos autores.
DESIGN DE COMUNICAÇÃO
Luís Sebastian
COMUNICAÇÃO
Patrícia Brás (ML - DRCN)
SECRETARIADO
Paula Duarte (ML DRCN)
Patrícia Brás (ML DRCN)
Teresa Sequeira (ML DRCN)
LOGÍSTICA
Paula Pinto (ML DRCN)
APOIOS:
Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Município de Lamego
Diocese de Lamego
Hotel Lamego
Solta Giga
Casa de Santo António de Britiande
ESTGL Lamego
Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego
Quinta de Mosteirô
Índice
Conferência de Abertura
Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM)
Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento ......................................................... 09
Mesa-redonda
QUINTAS DO DOURO: MEMÓRIA E RECURSO
António Martinho (Membro da Direção da Douro Generation – Associação de Desenvolvimento)
A História e o património das quintas do Douro como valor de recurso para o Turismo ........................... 21
Celeste Pereira (Greengrape - consultoria)
A importância do vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro ............................ 29
Painel 1
O PATRIMÓNIO DAS QUINTAS DO DOURO
Natália Fauvrelle
(Museu do Douro – Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença). Bolseira de doutoramento FCT/MD:
Investigadora CITCEM)
As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro......................................... 35
Carlota Cabral (Mestre FCSH-UNL)
Quinta do Paço de Monsul: um património singular ................................................................... 53
Nuno Resende (DCTP- FLUP)
Santos da casa: capelas, devoção e poderes a sul do Douro no memorialismo paroquial .......................... 61
J,A, Gonçalves Guimarães (arqueólogo; coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património – ASCR-CQ)
Da intervenção arqueológica ao museu de sítio: a experiência da Quinta de Ervamoira........................... 81
6
Painel 2
QUINTAS DO DOURO: PATRIMÓNIO VITIVINÍCOLA, ENOTURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Nuno Magalhães (UTAD)
O papel e importância das “quintas” na investigação e desenvolvimento da vitivinicultura duriense......... 105
Painel 3
QUINTAS DO DOURO: DOS ARQUIVOS À HISTÓRIA
Paula Montes Leal (CITCEM)
Arquivos de quintas do Douro: os casos de Santa Júlia e da Pacheca .............................................. 117
Pedro Peixoto (diretor do Arquivo Municipal de Vila Real)
Os arquivos das quintas do Douro: que estratégias de salvaguarda?............................................... 125
Otília Lage (CITCEM)
Dos arquivos patrticulares, património a preservar, à história da Quinta da Alegria de Cima (Carrazeda de Ansiães, 1890-2014) ....................................................................................................... 129
Painel 4
ARQUEOLOGIA DAS QUINTAS DO DOURO
Pedro Pereira (CITCEM; UMR 5138 Archéométrie et Arqchéologie – ULLII/CNRS)
A importância da Arqueologia para a história da vinha e do vinho na região do Douro .......................... 143
Conferência
de abertura
Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM)
9
Quintas do Douro:
História, Património e Desenvolvimento
texto: Gaspar Martins Pereira
Nota biográfica:
Gaspar Martins Pereira Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e
Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do
CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória». Tem desenvolvido investigação nas áreas de História Urbana, História Social,
História Empresarial e História da Vinha e do Vinho. É autor de diversas obras,
de que se destacam, entre as publicações mais recentes, Uma vida pela liberdade:
Artur Santos Silva, 1910-2010 (Porto, 2010), Crise e Reconstrução. O Douro e o
Vinho do Porto no século XIX (coord., Porto, 2010), Roriz. História de uma Quinta
no Coração do Douro (Porto, 2011), Alves Redol e o Douro. Correspondência para
Francisco Tavares Teles (org., Porto, 2013).
Resumo:
As quintas do Douro assumem, desde há séculos,
uma posição estratégica na sociedade, na economia e
na cultura da região vinhateira. Partimos do reconhecimento da importância das quintas, enquanto unidades de povoamento, de exploração agrícola e de poder
territorial e social na longa história da região do Douro, de que decorre, em grande parte, um riquíssimo e
plural legado patrimonial, tanto material como imaterial, o que as torna, hoje, componentes centrais do território classificado como Património da Humanidade,
quer como valor de memória colectiva quer como valor de recurso insubstituível para a definição, liderança
e promoção do desenvolvimento regional. Nessa tripla
perspectiva, pretende-se suscitar o debate em torno da
história e do património das quintas, enquanto vectores de desenvolvimento da região do Douro.
Abstract:
For centuries the Douro ‘quintas’ have played a
strategic part in the society, economy and culture of
the wine-making region. Recognizing the value of
these ‘quintas’ as settlement units, places of farming,
territorial and social power in the long history of the
Douro region is paramount. The rich and plural patrimonial legacy of these structures, both material and
immaterial, makes them, today, a central component
of the territory classified as World Heritage. The place they hold on the collective memory but also as an
irreplaceable resource for the definition, leadership
and promotion of regional development is undeniable.
From this triple perspective, we intend to raise the debate on the history and heritage of these ‘quintas’, while
vectors of development of the Douro region.
Palavras-chave: Douro, Quintas, História, Património, Desenvolvimento.
Keywords: Douro, Quintas, History, Cultural Heritage, Development
10
INTRODUÇÃO
C
abe-me a responsabilidade de apresentar
o tema geral deste Encontro, «Quintas
do Douro: História, Património e Desenvolvimento». Antes disso, creio que
vale a pena evocar o espírito destas Conferências, que
se iniciaram em 2013 e que resultam de uma parceria
entre o Museu de Lamego e o CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Pretende-se, essencialmente, atingir três objectivos:
i) constituir um espaço de encontro e de debate
científico, com periodicidade anual, reunindo investigadores das áreas de História e Património, com trabalhos realizados ou em curso sobre a Região do Douro;
ii) estimular o diálogo interdisciplinar com outras
áreas do saber;
iii) abrir o debate à comunidade regional, assumindo não só a missão de partilhar o conhecimento que
se vem produzindo na Universidade mas também de
o discutir com todos os interessados na valorização do
património histórico-cultural na região duriense.
Ou seja, na sociedade do conhecimento em que vivemos, o saber académico não pode isolar-se no círculo estreito das universidades e centros de investigação.
Sem ceder um milímetro ao utilitarismo esterilizador
destes tempos neo-liberais e sem perda da liberdade
de pensamento, base essencial do espírito de criação
e de crítica, o conhecimento académico, na área das
Humanidades, e em particular na História e no Património, pode e deve apostar na eficácia social da
cultura, no seu auto-questionamento e na partilha e
troca solidárias de saberes, como contributos para o
desenvolvimento. Isso mesmo quisemos reflectir na
primeira edição destas Conferências, subordinadas ao
tema «História e Património no/do Douro: Investigação e Desenvolvimento».
Na tripla perspectiva que referimos, a escolha do
tema geral desta segunda edição das Conferências
também não foi casual. Partimos do reconhecimento
da importância das quintas, enquanto unidades de povoamento, de exploração agrícola e de poder territorial e social na longa história da região do Douro, de
que decorre, em grande parte, um riquíssimo legado
patrimonial, tanto material como imaterial, e que as
torna, hoje, componentes centrais do território classificado como Património da Humanidade, quer como
valor de memória colectiva quer como valor de recurso insubstituível para a promoção do desenvolvimento
regional.
Unidades vinhateiras típicas do Alto Douro, as
quintas correspondem, no entanto, a uma realidade
territorial relativamente excepcional. De facto, entre as
cerca de quarenta mil explorações vitícolas do Douro,
as quintas representam apenas uma pequeníssima parte, da ordem das centenas. Mas a sua estrutura, como
unidades de exploração vitícola integrada (reunindo
vinhas, centros de vinificação e armazenagem de vinhos, casa de proprietário e/ou caseiro e trabalhadores; por vezes, também, azenha de azeite, capela, etc.),
a dimensão frequentemente média ou grande (em
alguns casos, centenas de hectares, como nas quintas
dos Frades, Carvalhas, Ventozelo, Vesúvio, Vale Meão,
etc.) e a vocação de comercialização dos respectivos
vinhos conferem às quintas um lugar socioeconómico
estratégico na viticultura duriense.
Além disso, muitas quintas do Douro aliam a
produção vitivinícola a iniciativas de enoturismo de
excelência, revelando uma notável capacidade para
conjugar tradição e modernidade. Independentemente dessa aposta económica, as quintas desempenham
a dupla missão de guardiãs do património cultural e
ambiental do Douro e de centros de irradiação eficaz
quer desses valores de memória e identidade quer de
dinamismo e de aperfeiçoamento tecnológico, ou seja,
de conhecimento, no sentido mais abrangente e plural
da palavra. Relativamente à cultura da vinha e do vinho, essa missão foi particularmente bem-sucedida ao
longo da história e continua a sê-lo na actualidade. Porém, no plano do desenvolvimento regional, estamos
longe de poder falar de sucesso. Por muitas razões, que
vão desde a forma como se exerceu a intervenção do
Estado na regulação da região demarcada até à estruturação da sociedade e dos poderes regionais, passando
pelas relações que as grandes quintas mantiveram com
a sociedade envolvente. Nesta perspectiva, o desafio
de transformar uma região pobre e deprimida num
espaço de desenvolvimento socialmente inclusivo implica que as quintas do Douro assumam uma maior
integração regional, com capacidade para contagiar as
comunidades vizinhas e para gerar novos dinamismos
económicos, sociais e culturais.
11
2 Entre outros: SAMPAIO, 1923; DURAND, 1982; COELHO, 1983;
AMARAL, 2007; MARQUES, 2006 e 2012.
assumido um crescente estatuto de domínio senhorial, integrando a residência ou paço (a pars urbana
da villa romana), por vezes com carácter defensivo e
de protecção das populações vizinhas6, a par de outras
instalações de apoio à exploração agrária (a pars rustica e a pars fructuaria romanas) e das terras de cultivo
circundantes. Mas a evolução, tal como aconteceu com
outras sub-unidades das villae, em especial os casales,
esteve longe de ser linear, como têm destacado diversos estudos7.
Esse carácter senhorial das quintas terá sido o principal factor de distinção relativamente a outras formas
de propriedade rural, como o casal, associado a estratos sociais mais baixos8. Algumas quintas derivaram
de «granjas» estabelecidas por mosteiros cistercienses,
que, a partir de meados do século XII, vieram imprimir um forte dinamismo nas zonas rurais em que se
implantaram. Por essa altura, segundo nos ensina Almeida Fernandes, essas granjas assemelhavam-se às
«quintãs» dos ricos-homens ou cavaleiros, como domínios senhoriais9. Tal sinonímia evidencia-se, entre
outros casos, para Mosteirô e Paço de Monsul, importantes «granjas» dos mosteiros de S. João de Tarouca e
de Santa Maria de Salzedas, desde a segunda metade
do século XII10 e, provavelmente, até ao século XIV.
No início do século XVI, na célebre descrição de Lamego, de Rui Fernandes, de 1531-1532, já aparecem
designadas por quintas ou quintãs (e a designação deverá ser bastante anterior) e como grandes explorações
vitícolas11.
Em finais da Idade Média e no início da Época Moderna, as quintas do Douro parecem ter reforçado o
seu papel de centros de exploração agrária de matriz
senhorial, combinando-se com o dinamismo dos casais e com formas de domínio indirecto da terra, através da enfiteuse.
Desde finais do século XVII, com a rápida expansão
da viticultura duriense, estimulada pelo crescimento
das exportações dos vinhos da região, as quintas já
existentes, pelas suas características e dimensão, assumiram um papel liderante da resposta à procura externa, num duplo sentido. Por um lado, como unidades
3 6 BARROCA, 1989: 29.
7 SAMPAIO, 1923: 72-73; MARQUES, 2012: 439-442.
8 GONÇALVES, 1981: 60‑72.
9 FERNANDES, 1973: 27.
2. ORIGENS E EVOLUÇÃO DAS QUINTAS DO
DOURO: UMA LONGA HISTÓRIA
T
alvez valha a pena começar pelas origens.
Como nasceram as quintas do Douro e
como evoluíram, de modo a tornarem-se
unidades estratégicas de povoamento,
exploração e organização do território nesta região?
Estas questões remetem-nos para o período longínquo
que vai do fim do Império Romano ao final da Idade Média, primeiro, de desorganização e, depois, de
«reorganização social do espaço». Há muito que estas
questões vêm merecendo a atenção de historiadores,
filólogos, arqueólogos e etnógrafos, mas, no caso do
Douro, estamos ainda longe de dispor de estudos históricos aprofundados sobre a «organização social do
espaço», ao nível dos que têm sido realizados para o
lado espanhol1 e mesmo para outras zonas do território português2. A perda irreparável da maior parte
dos cartórios dos mosteiros de Salzedas, Tarouca e S.
Pedro das Águias no incêndio que deflagrou, em 1841,
no Seminário de Viseu, para onde tinham sido levados, privou os medievalistas de fontes valiosas, mas,
como provam os estudos de Almeida Fernandes3 e de
outros autores4, subsiste ainda muita documentação
medieval que poderá trazer informações importantes
para o conhecimento da história do Douro neste período.
Na Alta Idade Média, a quintana (que evoluiu, foneticamente, para quintã e, a partir do século XV, para
quinta) teria resultado da desagregação da villa, unidade de domínio e exploração agrária da época romana e visigótica, que se manteve, com esse significado,
a par de outros (aldeia e vila), até bem tarde5. Nesses
tempos conturbados que antecederam e enquadraram
a formação da nacionalidade portuguesa e sobretudo a
partir da implantação da ordem feudal, a quinta teria
1 Entre muitos outros, destaquem-se os de GARCÍA DE CORTÁZAR,
1996 e 1999.
4 5 Da vasta produção do autor, destaquem-se, por exemplo, FERNANDES, 1973-1976 e 1984-1985.
Veja-se, por exemplo, sobre o papel dos cistercienses no Douro, DIAS;
DUARTE (coord.), 1999; para as propriedades de Salzedas, MARREIROS, 1997 e ALBUQUERQUE, 2012; para Santa Maria de Aguiar, VICENTE, 1996 e RODRIGUES, 2004.
Sobre a villa romana como «antepassada das quintas do Douro», veja-se ALMEIDA, 2006; PEREIRA, 2008 e 2014.
10 FERNANDES, 1975: 22-31.
11 FERNANDES, 2012: 79-80.
12
produtivas maiores e com capacidade de concentração
das produções locais e, por outro, como principais representantes dos interesses locais face aos negociantes
A par do reforço da vocação vinhateira das quintas e
da expressão mercantil e exportadora dos vinhos do
Douro, verificou-se um crescente investimento na
criação de novas quintas e, sempre que possível, na
respectiva nobilitação, através da instituição de vínculos e capelas. Em meados do século XVIII, por altura
da instituição da Companhia Geral da Agricultura das
Vinhas do Alto Douro, uma representação enviada ao
rei pelo cônsul inglês no Porto, Robert Jackson, referia a formação recente da maior parte das quintas do
Douro, resultantes da apropriação de terras dos camponeses pobres e dos baldios por parte da fidalguia
rural:
Se para a Feitoria houvessem de servir vinhos tão-somente de quintas grandes, incluídas em um território demarcado, nenhuma dificuldade haveria em que
os seus possuidores poderosos, e abonados se unissem
em um preço exorbitante, e os pobres lavradores seriam
obrigados a lhes entregar os seus frutos por aquilo que
os ricos quisessem, que depois de recolhidos nas suas
adegas venderiam aos ingleses com a mesma exorbitância; vindo a ser por esses caminhos árbitros absolutos
do negócio, e dominantes sobre o miserável povo das
suas vizinhanças; que é ideia em que trabalham, dourada de aparentes conveniências, e firmada de argumentos enganosos. / A maior parte das quintas do Douro
são de poucos anos, compostas de pedaços de terra que
possuíam outros tais lavradores, como estes a quem os
supraditos com inumanidade pretendem excluir; são
algumas fabricadas em maninhos que de novo se romperam, estendidas por ribeiras de pão que se trocaram
em bacelos, e quase todas espalhadas: e se o vinho dessas quintas serve para negócio, por que não servirá o
mais que se cria junto delas, que os poderosos querem
condenar sem mais culpa que ser vinho de gente pobre,
/ O vinho mais fino da Feitoria é o desses lavradores
que como faltos de cabedal para comprar outros, e para
materiais, e confeições, são obrigados a fazê-lo puro, e a
vendê-lo sem mistura; e sendo por esse respeito o mais
procurado, e de melhor aceitação, por isso é que os ricos
industriosamente o condenam para depois o haverem a
si, e com ele acreditarem as suas adegas, e cobrirem os
vinhos baixos que nas mesmas introduzem [...]12.
Poderá argumentar-se que a opinião do cônsul
12 Cit. em FONSECA, 1949: 35-36.
inglês era suspeita, por representar os interesses dos
negociantes. Mas, para o que nos interessa, evidencia
três aspectos importantes, facilmente detectáveis em
outros documentos da época: i) a expansão da viticultura, com a plantação de novas vinhas, inclusive em
zonas baixas e em terras «de pão«; ii) a multiplicação
de novas quintas, muitas delas resultantes de emparcelamentos ou de ocupação de terras maninhas ou incultas; iii) o papel das grandes quintas na concentração de
produções locais de pequenos produtores.
Não é difícil perceber na documentação da segunda metade do século XVIII, desde a demarcação
pombalina da região do Douro, o papel estratégico desempenhado pelas quintas, como principais centros de
exploração vitícola. Esse papel liderante não deixará
de se manifestar em outros momentos cruciais da história da região, sob múltiplos aspectos, desde a introdução de novidades técnicas e sua difusão (como nas
crises do oídio e da filoxera ou, mais recentemente, na
reconversão vitícola das últimas três décadas) à defesa
do produto regional e dos mecanismos reguladores da
denominação de origem.
A importância das quintas na história longa do
Douro justificaria um maior investimento da historiografia em investigações monográficas Porém, neste
ponto, apesar de alguns trabalhos realizados13, estamos quase a zero. Os trabalhos pioneiros do Visconde
de Vila Maior14 e de Manuel Monteiro15, bem como o
mais recente de Alex Liddell e Janet Price16, baseados
sobretudo em informações locais e sem o recurso a
documentação histórica substancial, continuam a ser
utilíssimos para alguns casos, mas contêm bastantes
imprecisões e não permitem, geralmente, uma leitura de longa duração. Embora mais rigoroso e com
maior suporte documental, o trabalho coordenado
por Eduardo Gonçalves e Aurélio de Oliveira17 fica-se
também, na sua maior parte, por generalidades, pouco
esclarecendo sobre a história das quintas do Douro, na
perspectiva de longa duração.
São igualmente escassos os estudos sobre quintas
do Douro na perspectiva dos investimentos vinhatei13 Veja-se FAUVRELLE, 2001; AMARAL, 2011; CABRAL, 2011; PEREIRA, 2011.
14 VILA MAIOR, 1876.
15 MONTEIRO, 1911.
16 LIDDELL; PRICE, 1995.
17 GONÇALVES; OLIVEIRA, 2012.
13
ros e das práticas vitivinícolas, que seriam utilíssimos
para compreendermos períodos de maior transformação, como o que rodeou a formação da Companhia
Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro18 ou o
da devastação filoxérica e da reconstrução posterior19.
Uma análise histórica mais aprofundada das quintas do Douro permitiria perceber melhor as relações
sociais na região (entre proprietários, frequentemente
absentistas, administradores, caseiros e jornaleiros),
bem como as relações entre as quintas e os casais e
as aldeias vizinhas, as estratégias de investimento e
as práticas vitivinícolas, etc.. Ao longo da história, tal
como ainda hoje, a centralidade que as quintas ocupam no sistema vitícola do Douro, quer como espaços
de poder social e económico quer como espaços de
inovação técnica, contrasta com a sua relativa marginalidade na sociedade duriense. Em muitos casos, as
quintas aparecem como realidades destacadas e autónomas do tecido social e económico envolvente, com
o qual têm relações mais frágeis do que com a economia-mundo, a que se ligaram desde muito cedo, adoptando um elevado grau de especialização e destinando
a sua produção quase totalmente ao mercado.
Ao contrário dos pequenos e médios casais, em
que o proprietário e os membros da família assumem
directamente a gestão e a realização de grande parte
dos trabalhos vitícolas, a quinta recorre com maior
frequência ao trabalho assalariado. A par de algum
pessoal permanente, utiliza um grande número de trabalhadores à jorna ou em regime de empreitada nos
grandes trabalhos agrícolas das surribas, das plantações, das podas, das cavas e das vindimas, ou na
construção e reparação de paredes dos socalcos. No
passado, algumas grandes quintas chegavam a contar
com centenas de trabalhadores diários. Porém, o mais
vulgar era — e continua a ser, em alguns casos — o
recurso a trabalhadores à jorna das aldeias vizinhas, o
que constituía uma oportunidade de rendimentos ocasionais para alguns membros das famílias de pequenos
lavradores. A par da oferta de trabalho, na viticultura
tradicional duriense, as quintas absorviam também
parte da produção dos pequenos e médios lavradores vizinhos, introduziam e difundiam as novidades
técnicas na cultura da vinha e na vinificação, fixavam
preços e salários, definiam práticas e calendários que
acabavam por ser seguidos pelos pequenos e médios
viticultores das redondezas. A data da vindima, por
exemplo, era marcada tradicionalmente pelas grandes quintas. Pode dizer-se que, no sistema do vinho
do Porto, a grande quinta constituiu sempre um lugar
de confluência de poderes, reais e simbólicos, da elite
vinhateira regional.
3. UM PATRIMÓNIO PLURAL
P
18 Veja-se PEREIRA, 1984 e 1998. Para períodos anteriores, o vazio historiográfico é ainda maior; havendo apenas um ou outro apontamento, como o que foi publicado sobre a Quinta da Vacaria por MARTINS, 1997.
ela sua história e pelas suas características, as quintas do Douro concentram, no
seu conjunto, um vasto património material e imaterial, que importa inventariar,
estudar e divulgar, quer como valor de memória e de
identidade quer como valor de recurso, essencial para
o desenvolvimento das actividades económicas, a começar pela viticultura e pelo enoturismo.
O mais evidente património das quintas reside nas
arquitecturas, eruditas ou vernaculares, das casas, capelas, centros de vinificação, mas também das arquitecturas da paisagem, socalcos, caminhos, cais, muros
apiários, fornos, laranjais e outras estruturas construídas, por vezes seculares. Será sobre esse património
que incidirá a comunicação da Dr.ª Natália Fauvrelle, autora de importantes estudos neste domínio20. É
conhecida a espessura histórica de diversas quintas,
remontando as suas origens a finais do período medieval, como acontece com as dos Frades, Mosteirô,
Tourais, Pacheca, Ventozelo, Paço de Monsul (de que
nos falará a Dr.ª Carlota Cabral) e outras, pertencentes
aos mosteiros cistercienses de Santa Maria de Salzedas,
S. João de Tarouca e S. Pedro das Águias. Em algumas
quintas subsistem ainda vestígios de ocupação mais
antiga, nomeadamente da época romana. É verdade
que a intensidade da exploração vitícola e sucessivas
remodelações apagaram muitos vestígios, mas creio
que a arqueologia pode desvendar, em certos casos,
alguns traços das ocupações mais antigas, como, certamente, evocarão aqui os arqueólogos Dr. Gonçalves
Guimarães, Dr. Paulo Amaral e Doutor Pedro Pereira. Porém, como tive oportunidade de referir, a maior
parte das quintas data da época áurea de expansão vitícola no século XVIII. No Douro Superior, a cronologia
é diferente. As quintas mais célebres, como as do Silho,
19 Para as quintas de D. Antónia Adelaide Ferreira, veja-se
PEREIRA; OLAZÁBAL, 1996.
20 Em especial, FAUVRELLE, 2001.
14
do Vesúvio, de Vale Meão, de Santiago, da Terrincha,
etc., são todas do século XIX.
Por outro lado, não devem desprezar-se os elementos do património natural, desde as espécies vitícolas
ao conjunto da flora autóctone, com algumas espécies
raras, por vezes concentradas em bosquetes e matas de
vegetação primitiva, a que se associam diversas espécies da fauna local, algumas com valor cinegético.
Na perspectiva que aqui nos reúne, importa talvez realçar outros tipos de patrimónios associados a
muitas das mais antigas quintas do Douro. Em certos
casos, a condição de propriedades vinculadas, ligadas
a famílias fidalgas, bem como a instituição de capelas,
fez com que se transmitissem de geração em geração,
pelo menos até à abolição dos vínculos, em 1863, reunindo, por vezes, importantes acervos documentais.
Mesmo com posteriores transferências da propriedade, algumas quintas conservam antigos arquivos familiares, com cronologias que chegam a remontar à
Idade Média (como acontece com as quintas de Paço
de Monsul21 e da Pacheca22). Além destes exemplos,
poder-se-iam referir muitas outras quintas que conservam um maior ou menor acervo de documentação antiga, embora só excepcionalmente tenha sido
objecto de inventariação, mesmo que sumária, como
aconteceu com o Arquivo da Quinta de Santa Júlia de
Loureiro23. Em diversos casos, os processos de herança
ou de transferência de propriedade fizeram dispersar
esses fundos documentais, o que não quer dizer que se
tenham perdido. Por exemplo, importante documentação relacionada com a Quinta de Ventozelo, no concelho de S. João da Pesqueira, que esteve aforada desde
o século XVI pela Casa do Poço de Lamego ao Mosteiro de S. Pedro das Águias, encontra-se no Paço de Gominhães, em Caldas de Vizela24. Muitos documentos
da Quinta do Vesúvio foram integrados no Arquivo do
Grupo Symington, que comprou essa quinta à família
Ferreira em 1987. E o mesmo aconteceu, mais recentemente, com documentação da Quinta de Roriz, adquirida em 2009, embora parte da documentação familiar
tenha continuado nas mãos da família van Zeller.
Tratando-se de uma das mais importantes regiões
vitícolas do mundo, quer pela antiguidade do investimento vinhateiro quer pelas características que sin-
gularizam a sua produção, a Região Demarcada do
Douro, reconhecida pela UNESCO como Património
Mundial, desde 2001, merece a atenção dos organismos responsáveis relativamente ao seu património
documental, em particular o que se relaciona mais directamente com a produção vitivinícola. Disperso, desorganizado, na sua maior parte vedado aos investigadores e, em certos casos, em risco, a importância desse
património justifica medidas urgentes de preservação
e valorização, quer através do seu tratamento especializado quer através do seu estudo. A meu ver, deve,
no entanto, promover-se, sempre que possível, a sua
conservação nas casas ou quintas que os produziram,
já que a sua descontextualização pode representar
perdas de significado e de função. Em relação a estas
colecções privadas, sejam familiares ou de empresas,
penso que seria de todo o interesse promover acções
de cooperação entre os respectivos proprietários, os
organismos responsáveis pelo património arquivístico, centros de investigação e universidades, com vista
a mobilizar recursos técnicos e humanos qualificados
para a preservação, estudo e divulgação desses acervos. Foi isso que defendi, há uma boa dúzia de anos,
no Museu do Douro, enfrentando a incompreensão de
alguns museólogos. A meu ver, era (e é) evidente que
o Museu do Douro, no âmbito das suas competências
e de acordo com a Lei da sua criação, deveria tornar-se um parceiro activo nesse trabalho de preservação e
valorização do património arquivístico da região, através do respectivo núcleo de Arquivo Histórico25. Mas
sobre os arquivos das quintas do Douro teremos oportunidade de ouvir aqui alguns conferencistas, nomeadamente a Dr.ª Paula Montes Leal, o Dr. Pedro Peixoto
e a Doutora Otília Lage.
Outros importantes patrimónios das quintas do
Douro merecem a atenção especializada dos investigadores: por exemplo, a arte sacra, que será abordada
pelo Doutor Nuno Resende. Poderia referir ainda as
riquíssimas colecções de baixela e outros objectos de
prata, algumas delas hoje dispersas pelo país, como
nos revela o notável trabalho que o Doutor Gonçalo
Vasconcelos e Sousa realizou, em colaboração com a
Dr.ª Alexandra Braga, para a Bienal da Prata26.
Seria impossível abordar, no tempo limitado desta edição das Conferências, todos os aspectos do património das quintas do Douro. Além dos diversos
21 CABRAL, 2011: 30-31.
22 BARROS; LEAL, 2001.
23 FAUVRELLE; LEAL, 1997: 377-385.
25 PEREIRA, 2003: 139-143.
24 PEREIRA, 2002.
26 SOUSA, 2001.
15
tipos de património material, não podemos desprezar a importância do património imaterial, tradições,
crenças e memórias específicas, que necessitam do
mesmo trabalho de inventariação, estudo e divulgação, para não se perderem, dado que, na maior parte
dos casos, se conservam apenas na memória dos mais
velhos. Acrescentaria as representações literárias, algumas bem conhecidas, como a da Quinta da Cavadinha, celebrizada no romance de Miguel Torga, Vindima, publicado em 1945, ou o mais recente Vale Abraão
(1991), de Agustina Bessa-Luís, que Manoel de Oliveira estendeu ao registo cinematográfico. Muitas outras
obras da literatura duriense oferecem representações
mais ou menos pormenorizadas da vida das quintas
em diversas épocas. Vejam-se, por exemplo, os romances de Sousa Costa, Ressurreição dos mortos (cenas da
vida do Douro) e As filhas do pecado. Na Terra do Vinho, publicados, respectivamente, em 1917 e 1946. Ou
Ervamoïra, de Suzanne Chantal, publicado em Paris
em 1982, só recentemente traduzido para português
(Civilização, 2011). E muitos mais. Ainda em Janeiro
deste ano, Artur Vaz publicou o seu livro Vintage para
uma Vida, que cruza a história de uma quinta de Santa Marta de Penaguião com os percursos de vida dos
seus proprietários, desde a época da filoxera até à crise
actual.
4. AS QUINTAS DO DOURO COMO VECTORES DE DESENVOLVIMENTO
E
m grande parte dos casos, pela sua posição estratégica, a sua dimensão espacial
e económica, a sua estrutura integrada,
por vezes com importantes núcleos arquitectónicos, as quintas aparecem, hoje, dotadas quer
de maiores condições de sustentabilidade económica,
quer de maior relevo do ponto de vista do património histórico-cultural. Mais ainda quando, na lógica
do desenvolvimento regional, se afirma a tendência
crescente de articulação entre a vitivinicultura e o enoturismo e o turismo cultural. Nesse sentido, o sucesso de algumas experiências de turismo de habitação
e de turismo em espaço rural, a par de um ou outro
exemplo de musealização, reforça o papel central das
quintas, como agentes de desenvolvimento regional. É
certo que, apesar dos investimentos realizados, há ainda muito a fazer, sobretudo numa melhor articulação
e funcionamento das rotas turísticas temáticas (Rota
do Vinho do Porto, Rota das Vinhas de Cister), bem
como de programação atraente e de qualidade, apoiada em bons instrumentos de divulgação. A meu ver,
podemos aprender com experiências de sucesso de
outras regiões vitícolas históricas, mas devemos fugir
de modelos estereotipados e sofisticados, apostando
na simplicidade, identidade e autenticidade, sem deixar de visar a excelência. Neste domínio, as experiências do Dr. António Martinho e da Dr.ª Celeste Pereira
poderão ser extremamente úteis para uma reflexão
mais fundamentada.
O desenvolvimento do enoturismo não pode deixar de se fazer em estreita articulação com o sistema
socioeconómico dos vinhos do Porto e Douro e com a
sociedade duriense em geral. A região possui bastantes
e bons exemplos de iniciativas empresariais privadas,
quer de empresas exportadoras quer de produtores-engarrafadores. Diversas empresas exportadoras têm
revelado um crescente interesse na manutenção e valorização (e mesmo fundação) de quintas no Douro. Em
certos casos, têm realizado investimentos importantes
não só no domínio das estruturas de vinificação, mas
também de acolhimento turístico. Tais investimentos
decorrem do interesse em qualificar as massas vínicas
de origem, em aumentar a competitividade através do
controlo de espaços produtivos estratégicos e suas relações com pequenos e médios produtores, em garantir
o prestígio para vinhos topo de gama (Vintage, Vinhos
de Quinta, etc.) e, em complementaridade, em associar a tradição histórica e cultural de casas de quinta
ao acolhimento de clientes importantes. Actualmente,
as empresas exportadoras possuem perto de uma centena de quintas, localizando-se as mais importantes
do ponto de vista histórico no Cima Corgo, embora se
tenha verificado um grande investimento na formação
de quintas novas, algumas de grande beleza paisagística, como a Quinta da Ervamoira ou a Quinta da Leda,
no Douro Superior.
Não menos importantes e com maior abertura quer
ao turismo quer à sociedade envolvente têm sido as
experiências de valorização de quintas históricas por
parte de diversos produtores-engarrafadores. Em vários casos, algumas delas articularam projectos de
turismo de habitação e actividades de enoturismo
com projectos de desenvolvimento vitivinícola, que
passaram pela reconversão das vinhas, pelo reapetrechamento tecnológico e pela inserção no circuito de
comercialização de vinhos de qualidade.
O número e a diversidade de experiências de sucesso, tanto no sector vitivinícola como no do enotu-
16
rismo, permitem afirmar que não há caminhos únicos.
Mas creio que, nestes como em outros sectores necessários ao desenvolvimento regional (turismo fluvial,
agroindústria, gastronomia e hotelaria, actividades de
mediação e dinamização cultural, etc.), há ainda muito
trabalho a fazer na perspectiva de uma maior articulação e integração. Para nos falarem sobre o papel das
quintas do Douro no desenvolvimento regional, segundo diferentes perspectivas, convidámos o Dr. Manuel Carvalho, o Professor Luís Ramos e o Professor
Nuno Magalhães.
NOTAS FINAIS
A
o longo destes dois dias em que decorrerão estas Conferências, teremos
oportunidade de ouvir especialistas das
diversas áreas que nos irão apresentar
resultados dos seus estudos e reflexões sobre aspectos
específicos da história, dos patrimónios e de questões
relacionadas com o desenvolvimento do Douro, centrando-se nas quintas.
Neste sentido, afirmar a centralidade das quintas do
Douro não deve entender-se como figura de retórica.
Ressalta da convicção de que o reforço dessa centralidade no tecido socioeconómico regional é indispensável a qualquer estratégia eficaz de desenvolvimento.
Também por isso quisemos ter entre nós diversos responsáveis de quintas, não apenas com a função de dirigirem as várias sessões destas Conferências mas também para contribuírem com a sua experiência e as suas
ideias nos debates — a Dr.ª Laura Regueiro, da Quinta
da Casa Amarela, o Eng. António Carlos Sobral Pinto
Ribeiro, da Casa de Santo António de Britiande, o Professor Eduardo Coutinho, da Quinta de Mosteirô, e o
Dr. Luís de Barros, da Quinta da Avessada.
Resta-me, na qualidade de co-organizador destas
Conferências, agradecer a Vossa presença e participação e desejar que as intervenções provoquem uma
frutuosa troca de ideias, debates animados, que tragam novas pistas e questões de pesquisas. E que, em
contrapartida, os resultados de investigações aqui
apresentados possam contribuir para estratégias locais
e regionais de valorização da memória e da sua operacionalização como recurso de desenvolvimento.
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18
19
Mesa Redonda
Quintas
do Douro:
Memória
e Recurso
António Martinho
Celeste Pereira
20
21
Quintas do Douro:
A história e o património das quintas do Douro como
valor de recurso para o Turismo
texto: António Martinho
Nota biográfica:
António Martinho Nasceu em Santa Eugénia, Alijó, reside em Vila Real, tendo integrado como
professor o Quadro da Escola Monsenhor Jerónimo do Amaral.
Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
fez uma Pós-graduação em Estudos Europeus no Instituto Superior de Economia
e Gestão e frequentou com aproveitamento a componente curricular do Mestrado
em Gestão Pública e Autárquica, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Foi membro do Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, de Dezembro de 2009 a Outubro de 2012.
De 27 de Janeiro de 2009 a 30 de Agosto de 2013 presidiu à Direção da Entidade
Regional Turismo do Douro. Foi Vice-Presidente da Associação de Turismo do
Porto/Agência Regional, de Outubro de 2011 a Agosto de 2013. Antes, havia sido
Vogal da Direção da mesma associação – Março de 2010 a Junho de 2011.
Desempenhou as funções de Governador Civil do Distrito de Vila Real,
de Abril de 2005 a Janeiro de 2009. Enquanto tal, colaborou na preparação de
iniciativas legislativas relativas à região; colaborou e chamou à colaboração os
Governadores Civis de Bragança, Guarda e Viseu, nas Comemorações dos 250
Anos da Região Demarcada do Douro; colaborou, desde início, com a AETUR,
entidade que candidatou o Douro a Maravilha da Natureza, dando o apoio
institucional, imprescindível para a sua oficialização. Disponibilizou apoio
institucional na organização do Centenário do Nascimento de Miguel Torga.
Organizou conferências sobre Desenvolvimento Regional, sobre Proteção Civil,
em colaboração com a UTAD, onde se destaca o seminário «INCÊNDIOS
FLORESTAIS: (re)Pensar a Especificidade Portuguesa» e, com o Regimento de
Infantaria nº 19 (Chaves), lançou as comemorações do Bicentenário das Invasões
Francesas, tendo, nesse contexto, publicado uma biografia do General Silveira –
“Uma Espada de Brilhantes para o General Silveira”, da autoria de Maria do Carmo
Serén.
Foi Deputado à Assembleia da República de 1991 a 2002, tendo integrado
a Comissão de Educação, Ciência e Cultura, no âmbito da qual coordenou a
22
Subcomissão do Ensino Secundário e integrado a Subcomissão de Cultura. Integrou
também a Comissão de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, à qual
presidiu de 1999 a 2002. Participou em fóruns internacionais, nomeadamente, em
Conferências da União Interparlamentar, onde apresentou várias comunicações.
Foi Presidente da Assembleia Municipal de Alijó, 1993 - 97.
Colaborou com a Estrutura do Projeto do Museu do Douro, tendo trabalhado na
criação do Serviço Educativo para a exposição “Jardins Suspensos”. Ajudou a criar
a Associação dos Amigos do Museu do Douro, de que foi Presidente. É membro
fundador da “Douro Generation – Associação de Desenvolvimento”
Tem artigos publicados em diversos jornais nacionais e regionais. Colaborou
com a revista “I Like This” com artigos subordinados à temática da valorização do
território. Publicou o livro “Do Parlamento – O Meu Testemunho”, nas Edições
Tribuna. Coordenou e prefaciou o livro ”Comemorações Oficiais dos 250 Anos da
Região Demarcada do Douro”, em edição dos GC de Bragança, Guarda, Vila Real
e Viseu. Redigiu a Apresentação da Biografia do General Francisco da Silveira,
assim como prefaciou o Guia Turístico da Natureza do Douro, o Guia Das Aldeias
Vinhateiras e o Catálogo Prestige A Região Vinhateira do Douro, de Gaspar
Martins Pereira.
Resumo
As quintas, como unidades territoriais e
estruturantes do Douro, têm uma história própria,
encerram expressões de património material e
imaterial que ajudam a compreender melhor o Douro,
enquanto região vinhateira, assim como a comunidade
que a edificou através dos tempos, nomeadamente,
no decorrer do último milénio. Elas são já recursos
turísticos. Mas, com tão elevado património e com
uma história que, de algum modo, sintetiza a história
do Douro, elas podem ser aproveitadas de um modo
ainda mais vantajoso para a região, integrando-as com
oportunidade no cluster do enoturismo.
Saibam os responsáveis locais, regionais e nacionais
do Turismo reconhecer as suas potencialidades e as da
região que, de certo modo sintetizam. Saibamos todos
preservar, valorizar e promover as marcas distintivas
da identidade duriense.
Abstract:
Being territorial and structural units of the Douro,
the “quintas” have their unique history containing
expressions of material and immaterial heritage that
help to better understand the Douro as a wine region
as well as the community that built it through the
ages, particularly during the last millennium. They are
already considered to be a touristic resource. However,
because they have such a rich patrimony and a story
that somehow summarizes the history of the Douro,
the “quintas” can be exploited in a more advantageous
way for the region if they are appropriately integrated
in the wine tourism cluster.
May the local, regional and national authorities for
the Tourism recognize the potential of the “quintas”
and that of the region that somehow they synthesize.
Let us all preserve, value and promote the distinctive
marks of the Douro identity.
23
A
“quinta” é «uma unidade territorial,
composta por terras cultivadas
maioritariamente por vinha, com casa
de habitação e construções anexas
indispensáveis às tarefas agrícolas nela desenvolvidas.»
É, assim, «entendida como um fenómeno territorial,
histórico, social e patrimonial». 27
A definição de turismo, do “lado da procura”
«encerra, (…) o estudo do movimento de pessoas
para fora das suas áreas habituais de residência e por
períodos superiores a vinte e quatro horas, (…) tendo
por base um conjunto de motivações (…) que dizem
respeito a factores sociais, culturais, patrimoniais,
ambientais e económicos.»28 Por sua vez, entendido
do “lado da oferta” «este deve ser perspectivado como
um agregado de actividades de negócios que directa
ou indirectamente fornecem bens ou serviços que
suportam as actividades de lazer e recreio realizadas
pelas pessoas fora dos seus locais de residência
habitual», agrupando «um conjunto de actividades
que se estruturam em sete eixos principais de oferta:
(i) alojamento; (ii) restauração; (iii) transportes; (iv)
serviços de agências de viagens e operadores turísticos;
(v) rent-a-car; (vi) serviços culturais; (vii) serviços
recreativos e de lazer.» 29
Os conceitos que aqui trazemos introduzem bem
o tema que nos propomos abordar num contributo
para as II CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO/
CITCEM. E não estivéssemos nós em Lamego, por
onde passou Rui Fernandes na 1ª metade do século
XVI, tendo deixado nota dos «306.700 almudes» que
se produziam nestas terras, sendo «os mais excelentes
vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar
e mais cheirantes». Estamos, aliás, perante um
enoturista, verdadeiramente interessado pelas coisas
do vinho. Registe-se que o seu interesse, para além dos
almudes que refere e da qualificação dos vinhos, vai
ao ponto de justificar as suas palavras especificando,
«porque há vinhos de 4, 5 e 6 anos e de quantos mais
anos é tanto mais excelente e mais cheiroso», referindo,
ainda, as localidades em que se produz e os mercados
de destino, nacionais e internacionais. 30
27 Fauvrelle, 2001: 23.
28 Costa, 2005: 283
29 Costa, 2005: 284
30 Fonseca et alii, 1987: 17
Falemos de quintas e da importância da sua história
e do seu património como recurso para o turismo.
Estamos a falar de economia, num caso como no
outro. Daí que devamos começar por referir a vinha.
E aqui, é bom lembrar que foi a criação de condições
para se poder plantar a vinha e produzir o vinho que
deu origem à paisagem vinhateira, obra do Homem,
construída através dos séculos, hoje, Património da
Humanidade. O lavrador substituiu a Natureza e foi
transformando as encostas pedregosas, muitas vezes,
íngremes, em «terraços ajardinados sustentados por
muros de pedra»,31 os “jardins suspensos”, nas palavras
de Jaime Cortesão. As várias soluções que se foram
encontrando, no decorrer dos tempos, quer na armação
do terreno, quer na condução da vinha, são aspetos a
realçar, que podem constituir motivo de visita, parte
importante do património que recebemos através das
quintas: a vinha pré e pós-filoxérica, os patamares
horizontais, ou terraços com taludes de terra e a vinha
ao alto. Há quintas onde é possível encontrar estes
variados tipos de plantação, ou, então, encontram-se
esses casos, em vinhas contíguas. Os pilheiros, que
permitiam o aproveitamento dos terraços para outras
culturas, a condução da vinha com recurso a tutores
de madeira – a erguida de espera, em que a videira se
encosta a um chantão, a erguida de rodilha em que a
vide era presa na própria cepa, ou a condução através
de fiadas de arame zincado, preso a esteios de pedra,
ou de madeira, modo de condução que torna mais fácil
o trabalho da vinha. Enfim, as diferentes formas de
construir as escadas para subir as encostas, as escadas
de salta-cão, as rampas calçadas com pedras de xisto
até aos caminhos em terra batida em calçada ou em
alcatrão que hoje facilitam o transporte das uvas por
carrinhas ou tratores, assim como a passagem destes
nos diferentes trabalhos levados a cabo durante
o ano. Os aspetos referenciados proporcionavam
melhorar e aumentar a produção, ou as produções da
quinta. Mas testemunham uma interação harmoniosa
com a natureza. Hoje, há quintas, abertas a visitas –
algumas criam programas de enoturismo –, em que
o proprietário faz questão de disponibilizar o passeio
pela vinha para que o visitante possa conhecer de
perto a paisagem, a forma como foi construída, as
técnicas utilizadas, ontem e hoje, que constituem
parte significativa do património cultural duriense. A
inclinação dos terraços, que facilite o escoamento das
31 Fauvrelle, 2003: 195.
24
águas pluviais e evite a erosão, é hoje definida com o
recurso a raios laser, por exemplo.
A vinha não é tudo, porque se pretendia que a
quinta fosse autossuficiente. Daí, as hortas, os olivais,
os amendoais, os pomares, os jardins, as matas, numa
grande complementaridade, mas onde se encontram,
também, «patrimónios botânicos excepcionais».32
Importa ter presente que muitas destas produções
não se restringiam a autoabastecimento, destinandose de igual modo à comercialização.33 E ainda, como
diz Agustina no seu “Jóia de Família”, para obviar ao
problema de a quinta ser um “ermo do Douro”.
Não são menos importantes as casas, as de
habitação e as restantes, que também constituem parte
essencial da quinta. Temos, assim, a casa de habitação
do proprietário, como «elemento mais visível na
estrutura de uma quinta duriense»,34 a capela, a
significar importância, ou um ex-voto,35 a casa do
caseiro, o cardenho, «principalmente ocupados pelas
rogas durante as vindimas e pelos galegos contratados
para a construção dos muros».36 É interessante
constatar uma certa hierarquia na ocupação dos
espaços destinados aos trabalhadores. Encontram-se
de igual modo, instalações destinadas a tarefas próprias
da exploração agrária, tais como os lagares e a adega,
estrategicamente localizados para se poder aproveitar
a inclinação do terreno. Existem outros espaços, com
funcionalidades, também elas, necessárias ao bom
funcionamento da quinta: casa para animais, nitreiras,
telheiros, pombais, frasqueiras ou garrafeiras. Nestas
garrafeiras guardam-se alguns dos melhores vinhos,
que fazem parte da reserva de família.
A quinta, como se constata, é um recurso turístico,
mas, com precisão, é um conjunto de recursos,
testemunhos de uma vida, ou de muitas vidas que ali
viam suceder-se os dias, ou que com ela estabeleciam
algum tipo de relação. Tudo isto pode dar ocasião a
mostrar (vender) melhor o Douro ao turista. Basta
recorrer à parcela de inteligência que nos tocou em
sorte, como nos disse há alguns anos João de Araújo
Correia.
A quinta surge e desenvolve-se no quadro da
necessidade de organizar e desenvolver a produção
vinícola. A sua evolução está intimamente ligada à
própria história do Douro que, aliás, de algum modo,
se confunde com a história da vinha e do vinho que
aqui se produz. Daí que Gaspar Martins Pereira
conclua que
o vinho impôs transformações evidentes nas formas
de povoamento, fazendo surgir, pelas encostas vinhateiras,
casais e quintas dispersas, criando ou desenvolvendo
povoados ribeirinhos. Com o domínio da vinha, cultura
que necessita de mão-de-obra abundante e especializada,
acentuaram-se os processos de proletarização e de
mobilidade das gentes. Mobilidade também de produtos e de
capitais, que envolveu a relação privilegiada com o Porto (e
Vila nova de Gaia) centro de armazenamento e escoamento
do vinho, relação que foi facilitada e imposta pelo rio.
32 Fauvrelle, 2001: 81.
33 Pereira, 1991: 61
34 Fauvrelle, 2001: 65
35 Fauvrelle, 2001: 78
As quintas são dispersas, com necessidade de
muita mão-de-obra, em processos de proletariado
e mobilidade das pessoas – algumas habitam
precisamente os casais –, produtos e capitais,
estabelecendo-se uma relação privilegiada com o Porto
e Gaia. E observa, ainda, que esta relação do Douro
com o Porto evoluiu de relação comercial para política
e social, exprimindo cada vez mais uma dependência
da região em relação à cidade que acabou por dar o
nome ao produto mais importante e valioso que dela
saía.37
Coisas da história, dir-se-á. Hoje e na perspetiva
do turismo, pessoalmente, prefiro realçar a relação de
complementaridade que existe entre os dois destinos,
que pode e deve ser potenciada em benefício de ambos.
Pela notoriedade que a denominação de origem Porto
lhes dá, mas, de igual modo, pelo facto de o vinho objeto
da mesma ser produzido no Douro e ter dado azo ao
«prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força
de se desmedir» (Torga, Diário XII). Porque o Porto e
o Douro são Património da Humanidade. Por outro
lado, porque o Porto, cidade ou área metropolitana, é
hoje uma verdadeira porta de entrada para quem vem
ao Douro, pelo rio, pelo aeroporto, pelo caminho-deferro.
As quintas, que foram de grandes proprietários,
ingleses, ou portugueses, do clero, regular ou secular,
– é interessante reter que havia quintas, propriedade
de mosteiros muito distantes do Douro –, enfim, de
ordens militares, mostram-se como propriedades
rentáveis, são centros autónomos, com produção,
transformação e armazenamento do vinho e de
outros produtos, com habitação e outras estruturas de
36 Fauvrelle, 2001: 88
37 Pereira, 2003: 105
25
apoio, centros estratégicos de combate às pragas que
apareceram na região e polos de inovação. As quintas
ou as casas grandes são referência para os preços da
pipa e das jornas. Podemos considerar que as quintas
são a célula da organização económica e social do
Douro e que, pese embora a evolução que se verificou
por força das circunstâncias, essa forma organizativa
persistiu através dos tempos. Hoje, quando o turismo
aparece no quadro da economia como uma importante
atividade, também no Douro – basta ter presente
o Plano de Desenvolvimento Turístico do Vale do
Douro (PDTVD) – a quinta, como recurso turístico,
deve ser, claramente, valorizada e aproveitada. Como
recurso, ou como conjunto de recursos, para sermos
mais precisos. Ligada ao enoturismo, ou turismo
vitivinícola, como alguns preferem chamar-lhe.
Não se pode dizer que o enoturismo esteja já muito
desenvolvido, é um facto. Aliás, alguns dos passos
que se deram na região foram tão titubeantes que não
evitaram a queda de algumas instituições. Também
é verdade que os estudos sobre esta problemática se
iniciaram há relativamente pouco tempo – nos últimos
anos do século passado. Getz, citado por Ricardo
Correia na sua Tese de Mestrado subordinada ao tema
“MARKETING TURÍSTICO - UMA ABORDAGEM
DE REDE” considera dever ter-se em atenção no
enoturismo três diferentes perspetivas:
a dos produtores, que poderão aí encontrar uma
oportunidade para se diferenciarem, “educarem” os
consumidores e venderem directamente o seu produto, as
das agências ou regiões turísticas, que poderão desenvolver
um destino em torno da mais valia associada à envolvente
e tradição vitivinícola, e a dos consumidores que poderão
encontrar um produto diversificado e usufruir de novas
experiências.38
Temos, assim, a perspetiva do produtor, a
dos responsáveis pela gestão dos destinos e a do
consumidor. Como dizíamos, do “lado da procura e
do lado da oferta”.
O turismo vitivinícola consiste, exatamente,
em potenciar os recursos do território ligados às
tradições, cultura, atividades e paisagem associados à
vitivinicultura, sendo indispensável uma coordenação
entre as diversas componentes do produto turístico
sob uma perspetiva de marketing.39 É este o sentido
que atribuo a enoturismo, que também deve ser visto
38 Correia, 2005: 85
39 Correia, 2005: 86
de forma integrada, tal como o turismo, no seu todo.
É por isso que, quando falamos de turismo no Douro,
devemos ter presente os três produtos estratégicos que
o Plano Estratégico Nacional de Turismo (PENT),
aprovado em 2007, atribui ao destino Douro, criando,
em coerência, um polo de desenvolvimento turístico:
touring cultural e paisagístico, Gastronomia e Vinhos
e Turismo da Natureza.
Tive esta realidade bem presente quando
desempenhei as funções de Presidente da Entidade
Regional de Turismo do Douro. Assim aconteceu
na elaboração de suportes informativos ao turista
– o Guia Turístico do Douro, o Guia Turístico da
Natureza do Douro, na preparação e execução do
protocolo com a National Geographic Society (Map
guide e Website), integrando o Douro nos sítios do
Geoturismo, a brochura das Quintas e Miradouros, os
filmes promocionais, as coleções fotográficas, assim
como em alguns eventos, de que destaco o Douro Film
Harvest e o Festival da Rede de Aldeias Vinhateiras
(RAV), ou o Estudo de Mercado e Plano de Marketing
da RAV e o Plano de Marketing Estratégico da Turismo
do Douro.)
A tomada progressiva de consciência de que as
condições que o Douro oferece se poderiam tornar
em oportunidades, motivou vários proprietários das
quintas a investir na sua valorização, no alojamento,
nos centros de vinificação e de armazenamento,
convidando arquitetos de renome - alguns deles,
Prémios Pritzker -, para requalificarem essas infraestruturas, organizando pacotes especiais de vindimas,
de degustação de vinhos e iguarias tradicionais, e
ainda ofertas “spa” com base nas propriedades da uva.
Este esforço tem sido muitas vezes recompensado
com a atribuição de muitos prémios, nacionais e
estrangeiros. De igual modo, também tem vindo a
verificar-se a assunção da imagem da Quinta como
um recurso. Assim, recorrendo a apoios específicos,
muitos proprietários procuram manter ou reconstituir
os muros de xisto, que foram essenciais à classificação
da UNESCO. Algumas quintas e instituições
investiram em escavações arqueológicas – o caso
Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa, que
criou também um museu e a Quinta das Aveleiras,
que musealizou a sua Oficina Vinária, em Torre
de Moncorvo. O Museu do Douro tem publicado
trabalhos sobre a temática das quintas. Por outro lado,
a importância crescente que se vem atribuindo às
questões do património, a maior atenção da opinião
26
pública para a valorização da identidade e da memória
tem feito surgir na sociedade respostas organizativas
com vista a preservar, valorizar e promover as variadas
expressões de património cultural. Com este espírito,
mas também com o intuito de criar condições para a
partilha de saberes entre regiões, povos e gerações, tendo
presente que o património deve ser impulsionador
de desenvolvimento criou-se na região a Associação
Douro Generation – Associação de Desenvolvimento.
Sou sócio fundador desta associação e como tal me
encontro a participar nesta Conferência.
Dados do PENT apontavam no sentido de um
aumento de 7 a 12% de viagens no domínio do produto
Gastronomia e Vinhos. Estudo recente da Qmetris
para a CCDR-N, conclui que “as atividades ligadas ao
vinho e à gastronomia são, no Douro, das atividades
que mais tempos tomam ao turista, superadas apenas
por visitas a locais históricos”. Este facto merece
uma atenção especial. É mesmo caso para perguntar
de que falamos quando falamos de enoturismo no
Douro? Porque, efetivamente, o Douro possui todos
os ingredientes para se tornar um destino atrativo,
na perspetiva do enoturismo e numa visão global
com uma riqueza histórica e patrimonial muito clara.
É errado, também aqui, isolar produtos, dispensar
recursos. O País Vinhateiro, como era chamado no
tempo dos Paladinos, ou o Alto Douro Vinhateiro,
como foi apresentado na candidatura à UNESCO
como Património da Humanidade, na tipologia de
“paisagem cultural evolutiva viva” contém «uma
herança milenar, duramente construída em torno da
vinha e do vinho».40 Efetivamente, os trabalhadores da
vinha transformaram a montanha deserta em jardins
suspensos, no dizer de Jaime Cortesão, ou aqueles que
construíram os mosteiros cistercienses, bem como, já
antes, os soldados romanos que, na Fonte do Milho,
cavaram na rocha os seus lagares, ou os artistas que
gravaram as rochas do Vale do Côa, é a todos eles
que devemos este Douro. Estamos perante aspetos
do património que nos deixaram as gerações que nos
precederam. Como facilmente se verifica, no Douro,
não é fácil separar turismo de eno, ou, para ser mais
preciso, de oînos (vinho).
Concluiu também o estudo da Qmetris que
a internet é o segundo meio mais referido para
conhecimento do destino Douro. Grande desafio este,
para todos os que têm a ver com o turismo no Douro,
agentes do setor público ou do privado. Efetivamente,
não se pode manter a situação atual por mais tempo.
Porque é indispensável utilizar todos os meios para
se poder chegar mais longe, da forma mais rápida e
eficaz. São aqueles que nos visitam que no-lo dizem.
Importante, pois, o esforço para corresponder a esta
constatação. Sabe-se que a fibra ótica acompanha
a linha do caminho-de-ferro. Quantas quintas e
povoados, nas proximidades podem beneficiar desse
recurso? Aliás, como estamos servidos na região? Nas
vilas e aldeias? É difícil, depois, o Turismo Rural.
Tudo isto tem mais sentido se tomarmos
consciência dos muitos investimentos que se têm
vindo a fazer, designadamente nos últimos 9/10 anos,
em novas unidades de hotelaria ou na reconversão
de outras. O Douro possui agora três unidades de 5
estrelas e várias de 4 estrelas. O Douro possui cerca
de 3200 camas (unidade hoteleiras, apart-hotéis,
Turismo de Habitação e Turismo Rural), muitas delas
em unidades criadas em quintas. Paralelamente, têmse desenvolvido ações de animação de diversa índole
e procurando estendê-las por todo o ano, tentando
atenuar a sazonalidade e procurando encontrar formas
de aumentar a taxa de permanência dos turistas. A
realização do Douro Film Harvest, desde 2009, que
tem na sua génese a ligação ao produto “Gastronomia
e Vinhos”, além de afirmar o Douro como destino
turístico de cariz cultural, mostra os cenários durienses
à indústria do cinema e motiva os realizadores para a
produção de filmes sobre o Douro. O filme “Life on
the Douro”, de Zev Robinson, da iniciativa de um
proprietário de uma quinta com a adesão de outros,
é um bom exemplo. A secção “Curtas da Casa” é
mais um a acrescentar ao anterior. No decorrer do
festival, vários filmes são exibidos em adegas e quintas,
valorizando esses espaços.
Dizíamos que mais que noutro destino, no Douro
não é fácil separar turismo do oinos. Ora acontece
que o PENT revisto em 2013 considera o produto
“Gastronomia e Vinhos” como complementar.
Convenhamos. Não me parece muito objetiva e
realista esta opção. O documento publicado não
consegue esconder alguma contradição. Define-se aí
como objetivo o seguinte:
40 41 Pereira: 2009, 78
«Promover a riqueza e qualidade da gastronomia
e vinhos como complemento da experiência turística,
estimulando a aplicação da marca/conceito Prove Portugal
em produtos, equipamentos e serviços»41
PENT, 2013: 18
27
Ora, nas três frases seguintes deteta-se claramente
uma contradição entre a 1ª e as 2ª e 3ª:
«Subjacente está a convicção de que este é um produto
turístico de nicho quando avaliado como motivação
primária. Contudo, a maior parte dos turistas considera
a gastronomia aquando do planeamento e organização da
viagem, assumindo-se como importante fator de avaliação.
Este produto tem registado um crescimento anual de 5% a
8% desde 2000, valores que se perspetivam poder situar-se
nos 8% a 10% nos próximos anos».42
Humanidade, numa região que integra o Parque
Arqueológico do Vale do Côa, que pertence à Rede
de Patrimónios Douro/Duero, num total de 10 sítios
classificados, englobando ou muito próximo da Rede
de Aldeias Vinhateiras. Deve ter-se em consideração
que os principais mercados turísticos externos do
Douro, para além do mercado Espanhol, o primeiro,
também pela proximidade, o mercado Britânico,
Francês, Alemão, Holandês e Italiano são mercados
com níveis educacionais, maioritariamente, elevados.
Os turistas que daí veem residem, essencialmente, nas
cidades. É, pois, natural, que as motivações da área da
cultura e do património estejam presentes nas suas
deslocações.43
Temos, pois, tudo ou quase tudo para afirmar
o Douro como destino turístico de grande valor,
mantendo e reforçando a ideia subjacente ao objetivo
do Plano de Desenvolvimento Turístico do Vale do
Douro, assim sintetizado: «Tornar o Vale do Douro um
destino turístico de referência através de um processo
dinâmico de desenvolvimento sustentável».44
Quando estamos a falar de “A história e o
património das quintas do Douro como valor de recurso
para o Turismo” temos presente a cultura como
fator de desenvolvimento, o que significa valorizar
identidades individuais e coletivas, promover a
autoestima e a coesão das comunidades, bem como
ter presente que as expressões da cultura podem ser
um fator de crescimento em determinado território,
como é o caso das regiões rurais com os seus produtos
agrícolas, seus costumes e tradições, suas paisagens,
hoje recursos turísticos claros. Impõe-se-nos, pois,
que saibamos aproveitar os recursos que a natureza e
os que nos antecederam puseram ao nosso dispor, que
sejamos capazes de preservar e valorizar as marcas da
identidade e que, por fim, saibamos dedicar atenção
crescente ao que distingue o Douro pela autenticidade
e pela excelência. Estaremos, deste modo, a utilizar
bem a “história e o património das quintas”.
Os números são um pouco diferentes, não muito,
do documento originário. No entanto, não deixam
de ser significativos e de merecerem ser valorizados
para quem tem responsabilidades de planeamento
do turismo. Já vimos em cima o estudo da Qmetris
para a CCDR-N, onde é explícita a importância deste
produto para os turistas que procuram o Norte do
país. E estamos a analisar uma região que vive do
vinho e à volta da vinha, com uma história em que a
vida das pessoas se confunde com tudo o que respeita
à sua produção, armazenamento, comercialização e
transporte.
Acresce que quando se valoriza a riqueza que
reside na “diversidade concentrada” existente no
destino Portugal, alguns responsáveis pelo turismo
nacional já consideraram o Douro como a melhor
expressão dessa realidade numa área especialmente
reduzida. E se considerarmos, como se afirma no
Plano de Marketing Estratégico do Turismo do Douro,
que o destino Douro «apresenta uma oferta turística
diversificada, capaz de potenciar o desenvolvimento
integral do setor do turismo, a partir dos recursos
endógenos», então temos o Rio Douro, o Património
Natural e Cultural e a Gastronomia e Vinhos como
três recursos estratégicos, de que decorrem o Touring
Cultural, o Turismo da Natureza, a Gastronomia e
Vinhos, o Turismo Rural e o Turismo Náutico (note-se
que o cruzeiro fluvial é considerado nos documentos
oficiais no Touring Cultural e Paisagístico) como
Produtos Estratégicos Primários.
Ora, as quintas têm (algumas, ainda têm), paisagem
natural e humanizada, possuem tudo o que pode e deve
ser aproveitado como recurso de enoturismo, julgo que
bem patente nesta comunicação, cada uma sintetiza
de forma mais ou menos perfeita o destino Douro,
com os produtos estratégicos que o potenciam. Em si
mesmas, são a expressão da paisagem que a UNESCO
incluiu a partir de 2001 na lista dos Patrimónios da
43 Costa, 2005: 289
42 44 PDTVD, 2004: 91
PENT: 2013, 18 e 19
28
BIBLIOGRAFIA:
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Turístico do Vale do Douro – Porto.
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colaboração com Câmara Municipal de S. João da
Pesqueira.
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saber fazer – Tecnologias tradicionais na Região do
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Tecnologia. Porto: Instituto do Vinho do Porto.
PEREIRA, Gaspar Martins (1991) – O Douro e
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PEREIRA, Caspar Martins (2003) – A evolução
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Estudos preliminares. Peso da Régua: Museu do Douro,
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PEREIRA, Gaspar Martins (2009) - Douro:
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António Barros, DUBIANO, Claudine, GONÇALVES,
Eduardo Cordeiro, Coord. - Enoturismo e Turismo em
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Turistas na Região do Norte, Resultados Globais 20102011. Estudo realizado para a CCDR-N. Porto.
TURISMO DE PORTUGAL (2013) – Plano
Estratégico Nacional de Turismo (revisto). Lisboa.
29
A importância
do Vinho do Porto
na valorização do enoturismo
e do território Douro
texto: Celeste Carvalho Pereira,
Greengrape – consultoria
([email protected])
Nota biográfica:
Celeste Pereira
Nasceu em Vila Nova de Famalicão, em 1970, é casada e tem 4 filhos. Vive em
Vila Real há 22 anos. É licenciada em Comunicação Social pela Escola Superior
de Jornalismo do Porto. Foi jornalista durante 18 anos, 14 dos quais no jornal
Público. Trabalhou também na Antena 1, na extinta Rádio Press, Comércio do
Porto, Rádio Renascença, Primeiro de Janeiro e Semanário Transmontano. Desde
2007, trabalha na comunicação e promoção de projetos ligados ao Alto Douro
Vinhateiro Património da Humanidade, estando a desenvolver um projeto de
agregação no Douro, o alltodouro.com, cujo objetivo é trabalhar a afirmação
internacional desta região vinhateira.
É fundadora da empresa Greengrape, que desenvolve comunicação em quatro
áreas específicas: turismo, vinhos, gastronomia e cultura, e autora do livro “Rui
Paula – Uma Cozinha no Douro”, publicado pela editora Quidnovi e com fotos
de Nelson Garrido, que conquistou o 1ª Prémio “Best in the World”, na categoria
“Best First Cookbook” (Melhor Primeira Obra de Gastronomia).
Resumo
A importância do Vinho do Porto na valorização
do enoturismo e do território Douro, tema da presente
comunicação, compreende-se, antes de mais, pela sua
dimensão de marca internacionalmente reconhecida,
sua singularidade e valor histórico. Do Vinho do Porto
como produto de valorização do território duriense,
impõe-se igualmente destacar a sua relação de simbiose com as quintas do Douro, elementos cruciais do
enoturismo da região. Este é, enfim, o enquadramento
do estudo que é apresentado na presente comunicação, intitulado “Estudo estratégico para a promoção e
dinamização das vendas de Vinho do Porto”, de abril
de 2012, realizado por Nicolas Boulanger, especialista
francês em luxo/bens de consumo.
Palavras-chave: Vinho do Porto, enoturismo, Douro, Quintas do Douro
30
Abstract:
The importance of Port wine in the appreciation
of wine tourism and Douro territory, subject of this
present communication, is understood, first of all, by
its dimension of internationally recognized brand, its
uniqueness and historical value. Port wine as a product of valuing Douro territory, imposes itself in highlight its symbiotic relationship with Douro farms,
crucial elements of wine tourism in the region. This is
S
aúdo os participantes destas conferências
sobre a história e o património das quintas
do Douro, bem como o seu papel no desenvolvimento da região, deixando a salvaguarda, antes de mais, que a intervenção que vos apresento
não resulta de uma atividade de investigação académica, área a que sou alheia. É antes um documento
fundado no meu envolvimento profissional e emotivo
na comunicação do Douro, enquanto território de exceção, Património Mundial da UNESCO e berço do
Vinho do Porto, ícone das exportações portuguesas,
com forte reconhecimento internacional.
A importância do Vinho do Porto na valorização
do enoturismo e do território Douro, tema da presente
comunicação, compreende-se, antes de mais, pela sua
dimensão de marca internacionalmente reconhecida.
O Vinho do Porto é atualmente vendido em 110 países, o que, só por si, faz deste produto um cartão de
visita privilegiado para a divulgação do Douro e de
Portugal. Acresce a esta identificação internacional,
a singularidade e o património histórico deste vinho,
características que permitem associar à visibilidade da
marca a notoriedade.
Do Vinho do Porto como produto de valorização
do território duriense, impõe-se igualmente destacar
a sua relação profunda com as quintas do Douro. Elementos cruciais do enoturismo da região, as quintas
são igualmente berço do Vinho do Porto, revelando
uma relação de simbiose de forte potencial turístico. Seguindo na linha da analogia com a natureza, as
quintas do Douro e o Vinho do Porto são duas realidades indissociáveis, de vida em comum, acabando
por formar um único organismo. Se outros motivos
não existissem – que existem! – bastava esta associa-
the framework of the study presented in this communication, entitled “Strategic Study for the promotion
and development of Port Wine sales”, April 2012, directed by Nicolas Boulanger, French specialist in luxury /consumer goods
Key words: Port wine ,wine tourism, Douro region, Douro farms
ção histórica para justificar a pertinência de iniciativas
de promoção do Vinho do Porto e do enoturismo em
conjunto.
Definir e concretizar uma estratégia coletiva de
longo prazo para promover e valorizar o Vinho do
Porto e o enoturismo é reconhecido pelos players do
sector como essencial, mas a realidade teima em mostrar que esta é uma emergência do Douro muitas vezes
adiada. A dificuldade de agregação tem seguramente
razões que os participantes destas conferências saberão estudar e explicar. Nesta comunicação, no entanto,
ambicionamos apenas lembrar a importância de uma
dinâmica agregadora de promoção tendo o Vinho do
Porto como embaixador.
Este é, enfim, o enquadramento do estudo que seguidamente é apresentado, com o título “Estudo estratégico para a promoção e dinamização das vendas de
Vinho do Porto”, de abril de 2012 e promovido no âmbito do projeto de agregação alltodouro.com, ao qual
estou envolvida. Encomendado à Eurostaf e realizado
por Nicolas Boulanger, especialista francês em luxo/
bens de consumo, o estudo começa por apresentar um
diagnóstico duro sobre o Vinho do Porto, assinalando a tendência de queda de vendas, em volume e em
valor, deste produto histórico do Douro, não tendo o
mesmo beneficiado da dinâmica dos mercados de vinhos e bebidas espirituosas premium que registaram
uma subida a nível mundial (dados de 2011). Entre
2006 e 2011, as vendas de Vinho do Porto registaram
uma queda tendencial de aproximadamente 11%, enquanto que os vinhos e espirituosos premium beneficiaram de um crescimento nas vendas de 8,8% (dados
do ano de 2011).
Dados de 2013, apresentados pelo Instituto dos Vi-
31
nhos do Douro e do Porto (IVDP), confirmam a tendência de decréscimo do volume de vendas, embora
menor (menos 3% face a 2012), mas revelam uma inversão positiva no tocante ao valor das vendas (crescimento de 4%). Este bom desempenho resulta do peso
crescente das categorias especiais que impulsionaram
o preço médio de venda para 4,6 euros o litro (+7,4%).
Assim, a receita das categorias especiais (Vintage, LBV,
Reservas ou Colheitas) cresceram 18% e representam
37% do negócio global do Vinho do Porto, em 2013.
Voltando ao estudo da Eurostaf, referente ao período 2006-2011, o mesmo aponta também a forte dependência do Vinho do Porto dos mercados tradicionais,
onde é considerado produto mass market banalizado,
e a pouca abertura a outros mercados. França, Portugal e Holanda concentram 49,2% do valor de vendas
e 56,2% do volume (nos primeiros 11 meses de 2013,
segundo estatísticas do IVDP, entre os três principais
mercados para o Vinho do Porto está o Reino Unido,
mantendo-se a França como maior mercado - 22,8% -,
seguido de Portugal - 14% -, Reino Unido - 13,7% -, e
Holanda -11%)
PRODUTO DE LUXO
A
pesar desta situação, o Vinho do Porto
tem pontos fortes a valorizar e capitalizar: história e identidade, denominação de origem e experiência do ponto
de vista da produção. Três fatores, como sublinha o
estudo, para o sucesso no mercado de luxo, aos quais
o autor acrescenta a produção de qualidade, a notoriedade e imagem e uma boa distribuição (assegurar a
sua seletividade).
Assim, os grandes desafios do Vinho do Porto passam também pela dinamização das vendas nos principais mercados, através do desenvolvimento/promoção
de uma oferta premium/luxo e o aumento do preço de
venda por litro, bem como pela modernização da imagem (tal como fez a região de Bordéus ou Borgonha).
Outro grande desafio é o de encontrar novas formas de
crescimento externo, aproveitando o dinamismo das
economias emergentes com capacidade para pagar e a
tendência positiva dos consumidores face a produtos
alcoólicos premium.
ASSOCIAÇÃO AO ENOTURISMO
O
desenvolvimento de uma estratégia coletiva de longo prazo visando aumentar
as vendas pressupõe, no entender de
Boulanger, a criação de uma estrutura
profissional de apoio, coordenação e animação; forte
envolvimento das empresas, que represente a massa
crítica empresarial da região, criada num movimento
bottom-up, não apenas restrito às empresas de Vinho
do Porto, mas incluindo outros agentes regionais (turismo, universidades).
Na promoção do Vinho do Porto, refere o estudo,
é essencial a associação ao enoturismo, atividade largamente explorada pelas regiões produtoras de vinho,
tenham ou não tradição vínica. De facto, o enoturismo
permite encaminhar uma clientela informada e dar-lhe a conhecer os produtos locais e o saber-fazer que
valoriza a experiência de quem procura um turismo
ligado ao vinho.
Neste domínio, a região do Douro revela ter um
caminho a percorrer. Segundo dados apresentados
no estudo referentes ao portal online TripAvisor, os
10 principais destinos de enoturismo não incluem o
Douro – Bordeaux, em França, é apresentado como o
principal destino, seguido de Napa Valley, na Califórnia, La Toscane, em Itália, La Champagne, em França,
La Barrosa Valley, na Austrália, La Rioja, em Espanha
e Les Vignobles do Chile, da África do Sul e de Nova
Zelândia.
NOVOS CIRCUITOS DE VENDA
A
o nível da distribuição, a aposta deve
passar pela diversificação e conquista
de novos circuitos de venda, nos novos
mercados de grande consumo, na criação de filiais de distribuição. E, ainda, na aposta em
lojas de viagens/dutty free de modo a atrair clientes internacionais, com grande poder de compra.
No caso de vendas a retalho, o estudo salienta que
a distribuição de vinhos e bebidas espirituosas está dominada pelas multimarcas, e que as marcas não têm
contacto direto com o cliente. No segmento premium
emerge a tendência de novos conceitos de distribuição
como os bares de marcas de bebidas com representação internacional. Depois, os modelos de solares do
32
Porto e Lisboa poderiam ser recriados internacionalmente, valorizando a identidade exclusiva do conceito.
Segundo Nicolas Boulanger, estes conceitos permitiriam familiarizar o cliente, confrontando-o com o
produto e a marca, estabelecendo contacto direto com
este, “educando-o” para o produto; e, ainda, promover
outros produtos relacionados com o Douro, como a
gastronomia. Afinal, a região tem um potencial privilegiado: boas infraestruturas hoteleiras, qualidade da
paisagem do vale do Douro, museus e um património
vinhateiro único com adegas e quintas históricas.
Durante os últimos anos tenho vindo a desafiar o
sector do Vinho do Porto e respetivo território para a
definição de uma estratégia de dinâmica coletiva. Apesar das dificuldades, continuo a acreditar ser possível
reunir parceiros ligados aos vinhos, enoturismo e cultura em torno de um projeto voltado para a exportação e para a afirmação internacional da única região de
vinhos do Velho Mundo que ainda está por descobrir.
33
Painel 1
O Património
das Quintas
do Douro
Natalia Fauvrelle
Carlota Cabral
Nuno Resende
Gonçalves Guimarães
34
35
As quintas vinhateiras
na construção do património paisagístico do Douro
texto: Natália Fauvrelle
Museu do Douro - Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença)
Bolseira de doutoramento FCT/MD. Investigadora do CITCEM
([email protected])
Nota biográfica:
Natália Fauvrelle Mestre em História da Arte na área de património e restauro, tendo obtido
o grau de mestre com uma tese sobre a arquitetura das quintas do Douro, e a
frequentar o doutoramento em museologia, centrando a sua investigação na
paisagem classificada do Alto Douro Vinhateiro e os desafios da gestão deste
património.
É coordenadora dos serviços de museologia do Museu do Douro, projeto no
qual tem colaborado desde 2002, estando presentemente em licença com uma
bolsa de Doutoramento em Empresas da FCT. É investigadora do CITCEM,
Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», com sede
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Publicou vários livros e artigos sobre o património duriense e sobre a sua
história, centrando as suas investigações no património arquitectónico e na
paisagem rural, em particular no património associado à vitivinicultura. Integrou
a equipa responsável pela candidatura a Património Mundial do Alto Douro
Vinhateiro.
Resumo
Pela qualidade excepcional da sua paisagem cultural a Região Demarcada do Douro viu inscrita na lista do Património Mundial parte do seu território, em
2001. Esta paisagem resulta de um processo histórico
de adaptação de um território de montanha, de condições adversas, à viticultura, constituindo os testemunhos desta prática a malha patrimonial que sustenta a
classificação. Neste artigo discute-se qual o papel das
quintas vinhateiras na construção da paisagem duriense, tendo em conta o património vernacular que conservam e a forma como a sua acção sobre o território
condiciona a transformação do terreno em paisagem.
Abstract
Due to the exceptional quality of its cultural landscape, the Douro Wine Region saw part of its territory
inscribed on the World Heritage Site list in 2001. This
landscape is the result of a historical process of adapting a mountain region to viticulture. Testifying this
practice are different types of heritage. In this paper
we examine the role of the quintas (wine producing
estates) in the construction of the Douro winescape,
taking into account the role on preservation of vernacular heritage and how its action on the territory affects the transformation of the land into landscape.
36
Palavras-chave
Paisagem vinhateira, Arquitectura do vinho, Quintas
A
classificação de uma parte da paisagem
do Douro, o Alto Douro Vinhateiro
(ADV), como Património Mundial, em
2001, veio validar culturalmente a qualidade de um espaço cuja história, já longa, se encontra
associada à produção de vinho. Incluída na Lista da
UNESCO na categoria de “paisagem cultural evolutiva
e viva”, a área do ADV (24.600 ha) pretende represen-
Key words
Winescape, Wine Architecture, Port Wine Quintas
tar a Região Demarcada do Douro (RDD) (250.000
ha), a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo, cuja paisagem resulta «de um processo
multissecular de adaptação de técnicas e saberes específicos de cultivo da vinha em solos de especiais potencialidades para a produção de vinhos de qualidade
e tipicidade mundialmente reconhecidas»45.
Fig. 1 - Mapa do Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial. Fonte CCDR-N
45 AGUIAR, 2000: 7
37
O
s testemunhos deste processo inscrevem-se no próprio território, já que
a constituição montanhosa da região
duriense obrigou a transformar as encostas para possibilitar o cultivo da vinha. Criou-se
solo a partir da pedra e construíram-se socalcos para o
sustentar. Mas, além dos muros, que alteraram profundamente a configuração natural do espaço, o viticultor
duriense acrescentou outros elementos, como os diferentes edifícios de apoio à actividade agrícola, pomares, bordaduras de árvores, sistemas de retenção e condução de água, etc. Todas estas estruturas, resultantes
da actividade agrícola, integram a paisagem do ADV,
sendo agora consideradas património, tal como os saber-fazer tradicionais associados às diferentes práticas.
A agricultura é assim geradora de património, material e imaterial, que se conserva na paisagem de forma
cumulativa, coexistindo práticas seculares com rotinas
contemporâneas do amanho da terra. Estamos perante
uma “paisagem de trabalho” no sentido descrito por
Elias Pastor, autor que associa o trabalho, que mantém
e transforma o espaço agrícola, como o motor da paisagem, a origem das modificações territoriais.46
A exploração deste território vitícola é feita, essencialmente, através de duas formas: pequenas parcelas
46 ELIAS PASTOR, 2011: 85
Fig. 2 - Quinta do Arnozelo (Vila Nova de Foz Côa) © Museu do Douro
de vinha dispersas ou quintas. As vinhas isoladas, por
vezes, organizadas em casais com sede nos povoados,
marcam a paisagem através de bordaduras de árvores,
muros de delimitação dos caminhos e pequenas estruturas arquitectónicas, como abrigos para guardar as
alfaias ou armazéns de média dimensão, onde se fazia
e guardava o vinho, espaços maioritariamente desativados no presente. Muitas vezes a vinha surge a par
de pomares, hortas ou zonas de mata, servindo estes
cultivos complementares essencialmente para o consumo local.
As quintas são propriedades de maior dimensão,
composta por número alargado de estruturas arquitectónicas, destinadas à habitação e à produção, que
lhe permitem uma gestão autónoma da actividade vitivinícola. Impondo-se como ícones emblemáticos da
RDD, ocupam um papel importante na modelação do
território enquanto paisagem cultural. É devido a esta
complexidade estrutural que aqui se interroga o seu
papel na construção da paisagem do ADV e na forma
como a sua gestão afecta a conservação do próprio bem
classificado. Refira-se, desde logo, que a área Património Mundial, com excepção da zona do Baixo Corgo
até aos rios Corgo e Varosa, é marcada por quintas de
média a grande dimensão, algumas com grande simbolismo para a história da Região.
38
E
nquanto unidade de exploração agrícola
deste território, a quinta evidencia-se pela
sua organização funcional associada à vitivinicultura, sobressaindo em local estratégico, entre as áreas de cultivo e de monte, um núcleo
de edifícios estruturados entre caminhos e pátios fechados, onde se concentram as principais estruturas
de habitação e de produção, na sua maioria associadas
à actividade vinhateira, mas também adaptadas a outras culturas. Lembre-se que a monocultura da vinha
é um fenómeno recente, pois até meados do século
XX o isolamento da maioria das quintas obrigava ao
desenvolvimento de outros cultivos e actividades, que
garantiam a subsistência de quem lá habitava e trabalhava.
As estruturas habitacionais organizam-se também em função do trabalho, reflectindo a hierarquia
laboral. Associados a uma época de trabalho essencialmente manual, que exigia grande quantidade de
mão-de-obra para a execução da maioria das tarefas,
os edifícios dividem-se de acordo com o tipo de ocupantes, havendo casa para o proprietário, para o caseiro e para os trabalhadores. Nestes últimos, nota-se em
alguns casos uma estratificação dos espaços de acordo com a categoria do trabalhador, reservando-se aos
operários especializados, como podadores, enxertadores, artistas e tanoeiros, espaços próprios e individuais
(FAUVRELLE, 2001: 89), distintos dos cardenhos, camaratas comuns destinadas aos jornaleiros, com diminutas condições de higiene e conforto.
Fig. 3 – Casa do proprietário da Quinta dos Frades (Armamar) © Museu do Douro
39
E
sta relação estreita com o trabalho é notória na casa do proprietário. Representativa do status social e económico da família
ou empresa que a possui, aqui se agregavam inicialmente as funções produtivas, associadas à
transformação das uvas — o piso térreo era destinado
a adega de armazenamento e o sobrado a habitação,
implantando-se o edifício dos lagares na cota superior
Fig. 4 –Quinta do Noval (Alijó) © Museu do Douro
junto à casa. Este esquema evolui com o crescimento
do negócio do vinho do Porto, que ditou a separação
entre a casa e as funções produtivas. O volume de vinhos e a importância dada ao seu armazenamento implicou a construção autónoma da oficina vinária, onde
se reúnem lagares e armazém de vinho. Afastando-se
da casa, implanta-se junto a vias de comunicação,
como os caminhos e o rio, facilitando a condução do
vinho para fora da Região.
40
R
eflectindo o desenvolvimento da dinâmica agrícola ao longo do tempo, a quinta
comporta uma grande diversidade de
arquitecturas de produção, cuja forma
mais evidente é a que resulta dos sistemas de armação
do terreno, em particular para a cultura da vinha, de
que se fala mais à frente. Não tão monumentais como
os muros de vinha, as estruturas de apoio e transformação são construções vernaculares que enformam a
paisagem duriense e que contribuem para a sua diversidade. Nem sempre directamente associados à vitivinicultura, como referido, são testemunhos materiais
de uma dinâmica agrícola passada, a memória de um
Douro mais diverso, que gerava os produtos necessários ao funcionamento do dia-a-dia, como o azeite, a
farinha, a telha, a cal ou os próprios instrumentos de
trabalho.
Não cabendo nesta análise o tratamento individual
e detalhado de cada produção e seus ciclos produtivos,
elencam-se aqui apenas alguns dos vestígios materiais
que se conservam nas quintas pela sua importância
enquanto patrimónios a (re)conhecer na paisagem
duriense. Neste contexto inserem-se as construções
para animais, como cavalariças, pocilgas, galinheiros,
Fig. 5 – Abrigo na Quinta do Paço (Mesão Frio) © Museu do Douro
pombais e os mais diversos cobertos a elas associadas,
para armazenamento de alimentos ou abrigo dos trabalhadores que deles cuidavam. Na sua maioria são
construções simples e precárias, mas que em alguns
casos se evidenciam pela qualidade, como no caso dos
galinheiros da Quinta da Pacheca47 ou da Quinta da
Eira Velha, onde cada espécie animal é sinalizada por
azulejo de figura avulsa e a pocilga está equipada com
chuveiro de água quente e fria.48
Igual estrutura rudimentar apresentam as oficinas
ou telheiros destinadas aos artesãos especializados,
que se deslocavam às quintas para produzir e reparar
ferramentas, vasilhas, cestos e outros instrumentos necessários no dia-a-dia. Ao registo destas construções é
importante juntar o reconhecimento quer dos objectos
produzidos, quer dos saber-fazer associados, já largamente descontinuados. O mesmo se aplica a outras estruturas de transformação, como os fornos de telha ou
cal, associados à construção dos edifícios da própria
quinta, agora já sem qualquer uso, sendo condenados
ao desaparecimento, muitas vezes por desconhecimento da sua importância enquanto memória.
47 FAUVRELLE, 2001: 101
48 AGUIAR, 2000: A-16
41
T
odas as estruturas de transformação associadas a outras culturas que não a vinha têm idêntico destino, já que a sua
pouca rentabilidade e obsolescência ditou o abandono. Refiram-se a esse propósito as construções associadas à cultura dos cereais, à secagem de
frutas ou à cultura da oliveira. Se esta última continua
activa, marcando presença na paisagem duriense, já
as estruturas ligadas à transformação da azeitona, que
muitas quintas possuíam, estão na sua maioria em desuso, como é o caso dos lagares tradicionais, de tracção
animal ou mecânicos, conhecidos pelos seus “carrinhos”, por não corresponderem às exigências higienistas actuais. De igual forma deixou de fazer sentido
manter grandes armazéns para guardar azeite, como se
conservam em quintas como os Aciprestes, o Arnozelo
ou o Monte Meão. O mesmo sucede com a secagem
de frutos como o figo ou a amêndoa – se os cultivos
persistem a sua transformação não é feita localmente
mas em unidades industriais apropriadas, levando ao
abandono dos fornos de figos ou das estruturas secagem da amêndoa.
Fig. 7 – Eira na Quinta do Boucal (Mesão Frio) © Museu do Douro
Fig. 6 – Forno de secar figos (Alijó) ©Museu do Douro
A
s culturas que desapareceram da paisagem, como é o caso do cereal, vêem o
seu património ainda menos protegido.
Se as eiras de debulha parecem sobreviver por entre outras estruturas, já as unidades de
moagem, particularmente as situadas nas margens do
Douro, foram condenadas ao desaparecimento devido
à alteração do leito do rio provocada pela construção
de barragens.
42
E
sses vestígios estão igualmente presentes na transformação do solo que cada
actividade determinou, como os socalcos e bordaduras criadas pela cultura da
oliveira, as estruturas muradas para o resguardo dos
laranjais e apiários, os socalcos compartilhados por
espécies hortícolas ou as manchas de vegetação densa
formadas por matas, espontâneas ou plantadas. Todas
estas intervenções alteram o território e contribuem
para a sua polimorfia, característica fundamental da
paisagem duriense.
Fig. 8 – Quinta das Sopas, onde sobressai o laranjal circular murado (Sabrosa) © Museu do Douro
Fig. 9 – Entrada do laranjal da Quinta das Peixotas (Peso da
Régua) © Museu do Douro
43
U
ns mais monumentais e complexos que
outros, estes elementos testificam um
período da história agrotécnica duriense, presente também nos diferentes
instrumentos e utensílios necessários para o desenvolvimento de cada actividade, bem como nos saber-fazer
associados. Só um olhar global do património permite
o entendimento das cadeias operatórias de cada ciclo
produtivo, sendo a frequente descontextualização dos
objectos um impedimento para o conhecimento efectivo da realidade. Esta questão tanto se aplica a culturas descontinuadas, como o cereal, como à própria
vitivinicultura, onde a evolução/inovação técnica rapidamente põe de parte muitos instrumentos e práticas,
como é o caso dos antigos lagares de pedra, preteridos
por modernos sistemas de vinificação.
Uma das características mais peculiares, e que confere autenticidade à paisagem vinhateira duriense, é a
constante transformação a que está sujeita, gerando
diferentes sistemas de armação do terreno de acordo
com as contingências de cada momento. O território
torna-se um “livro” onde as marcas da identidade se
revelam pela metamorfose do espaço e do tempo. Neste aspecto, o papel das quintas é fundamental, pois a
gestão de cada unidade, em função do contexto social
e económico, tem o seu maior reflexo na paisagem,
sendo a intervenção mais visível a da armação do terreno para o plantio da vinha.
44
D
e forma sumária, consideram-se dois
tipos de técnicas de armação do terreno, as históricas e as contemporâneas
ou modernas segundo Nuno Maga49
lhães , sendo as primeiras associadas ao trabalho manual e as mais recentes à introdução de meios mecânicos. As formas de armação históricas, praticadas até às
décadas de 1960/1970, têm como principal característica o recurso a muros de pedra, xisto ou granito consoante a zona, para a contenção do solo, exigindo uma
grande quantidade de mão-de-obra, que manipulava
uma variedade limitada de ferramentas, como a marra
ou o ferro de desmonte, recorrendo-se ocasionalmente
à dinamite para desfazer rochas de maior dimensão, se
a disponibilidade financeira assim o permitisse. Quando tal não era possível, estas fragas eram incorporadas
na própria parede.
49 MAGALHÃES, 2011
Ainda que já não se edifiquem na actualidade, a
sua manutenção vem sendo estimulada, dado o estatuto de Património Mundial da região, conservando-se algum do saber-fazer associado às técnicas de
construção vernacular. O antropólogo Elias Pastor nomeia este tipo de paisagem de “paisagens vinhateiras
esquecidas”, isto é, aquelas que, pela introdução de novas tecnologias, se estão perdendo e das quais restam
poucos exemplos a nível mundial50. Este termo poderá
ter significado em regiões onde a presença do terraceamento com muros de pedra é marginal. Contudo,
no caso do Douro, adequa-se melhor o termo “paisagens vinhateiras históricas” dada a sua forte presença,
testemunhando um momento do passado, associado
a processos considerados históricos para a viticultura,
mas cuja manutenção é ainda activa.
50 ELIAS PASTOR, 2011: 145
Fig. 11 – Socalcos pré-filoxera. Quinta do Síbio (Alijó) © Museu do Douro
45
D
entro das formas históricas podemos
ainda distinguir dois tipos de armação,
os socalcos pré-filoxera e pós-filoxera,
cuja utilização está marcada pela devastação provocada pela filoxera na região, na segunda
metade do século XIX. Estes sistemas têm em comum
o uso da pedra saída do terreno de cultivo, quer para
erguer os muros de sustentação, quer para a construção de abrigos, tanques e outras estruturas de apoio. A
pedra torna-se a «linguagem complementar do vinhedo»51, cuja gramática se foi aperfeiçoando ao longo do
tempo nas diferentes construções vernaculares agrícolas já referenciadas.
Assim, até meados do século XIX, antes do aparecimento da filoxera, o solo era sustido por muros
baixos de pedra-seca, por norma de construção tosca,
formando terraços planos e estreitos, cujo desenho se-
guia as curvas de nível. O solo disponível era limitado,
comportando uma a duas fiadas de vinha, verificando-se por vezes o uso dos próprios muros para plantio da
vinha com a abertura de “pilheiros”. Em alguns casos
este sistema permitia a ocupação do solo com hortícolas ou cereais, maximizando assim o espaço arável.
51 ELIAS PASTOR, 2011: 127
Fig. 12 – Mortório. Quinta de D. Matilde (Peso da Régua) © Museu do Douro
46
E
nquadram-se neste tipo pré-filoxera a
maioria dos “mortórios” vinhas mortas
cujo abandono se associa à falta de meios
dos seus proprietários para as replantar
depois da destruição da filoxera. Alguns foram apro-
veitados para outras culturas, como a oliveira, e outros
foram recolonizados com vegetação arbórea e arbustiva autóctone. Sendo facilmente identificados pelas
marcas dos muros, por vezes o forte crescimento da
vegetação pode camuflar os vestígios do cultivo da vinha, sendo estas áreas confundidas com matas.
Fig. 13 – Vinha pós-filoxera. Quinta de Valcovo (Vila Real) © Museu do Douro
E
m meados da segunda metade do século XIX, foi adoptado um novo modo de
armar o terreno, o sistema pós-filoxera,
como forma de combate à filoxera, que
impôs o uso de porta-enxertos de videira americana,
a única resistente ao insecto. Por esta planta necessitar
de mais solo, efectuam-se surribas mais fundas, cuja
terra exige muros mais sólidos, com paredes mais largas e altas, formando terraços amplos e ligeiramente
inclinados, que comportam um maior número de fiadas de vinha. O traçado das encostas passa a ser rectilí-
neo e compartimentado. Este sistema manteve-se até
às décadas de 1960/70 e entrou em declínio pela falta
de mão-de-obra e custo de construção.
O aumento do tamanho dos muros permitiu o desenvolvimento das arquitecturas de água, que se tornam mais complexas, e dos elementos de circulação,
que, acompanhando as paredes, ganham monumentalidade e se impõem na paisagem. Juntamente com este
sistema, outras inovações alteraram a leitura da paisagem, nomeadamente o plantio da vinha em bardos,
em vez da condução individual e desordenada das videiras. É a própria arquitectura da videira que se altera.
47
A partir dos anos 1970 começam as primeiras experiências com novas formas de armação do terreno,
resultantes da mecanização do trabalho. Estas formas
contemporâneas surgem em parte devido à crescente
falta de mão-de-obra, mas também graças ao avanço
tecnológico, que permitiu não só a utilização de meios
mecânicos na construção da paisagem como a mecanização de várias operações culturais, como a aplicação de fitossanitários, as mobilizações do terreno ou o
transporte de uvas na vindima52.
52 MAGALHÃES, 2011: 65
Fig. 14 – Vinha em patamares. Quinta da Soalheira (S. João da Pesqueira) © Museu do Douro
D
entro destas novas técnicas de armação
distinguem-se os patamares e a vinha
ao alto, implementadas de forma sistemática na região a partir dos anos
1980. No primeiro sistema a videira é plantada em
plataformas horizontais e estreitas, traçadas segundo
as curvas de nível, comportando em média uma a três
fiadas de vinha, cujo resultado é um desenho ondulante semelhante aos socalcos pré-filoxera. Estes terraços
são sustentados por taludes de terra, cuja exposição à
erosão constitui um inconveniente.
Fig. 15 – Vinha ao alto. Quinta do Bonfim (Alijó) © Museu do Douro
48
N
o sistema da vinha ao alto as videiras são plantadas seguindo a linha de
maior declive do terreno, armação que
altera profundamente a leitura da paisagem, até então unicamente horizontal. Permitindo
um maior aproveitamento do terreno e maior eficácia
da mecanização das operações culturais, esta armação,
quando correctamente instalada, apresenta menor risco de erosão que os patamares.
Estes novos métodos acarretaram não só alguns
problemas de conservação dos sistemas tradicionais,
mas também de salvaguarda das próprias encostas,
mais sujeitas aos fenómenos erosivos. Implementados
durante séculos, fruto do saber acumulado de gerações, os sistemas de armação com recurso a muros de
pedra criaram uma paisagem equilibrada, em que o
Homem se soube adaptar às exigências da Natureza.
Intervenções agressivas, sem respeito pelas linhas de
água, nem pela inclinação do terreno, revelaram-se,
por vezes, desastrosas em termos ambientais, para o
que também contribui certamente o desaparecimento de zonas arborizadas no cimo dos montes ou nas
bordaduras dos caminhos, quando não dos próprios
caminhos. Os sucessivos deslizamentos de terras não
significam apenas a perda da plantação e do que nela se
investiu; a este valor acresce a destruição do património público, como os caminhos e as estradas, e do património paisagístico. Esta situação levou a que se procurasse aperfeiçoar os novos métodos de sistematização
Fig. 16 – Quinta da Soalheira, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP
na procura de uma maior harmonia com a Natureza.
Paralelamente, a crescente valorização da paisagem
tradicional conduziu a uma relação de compromisso
entre as diferentes formas de armação, permitindo a
manutenção da polimorfia da paisagem. A este facto
não é alheia a classificação como Património Mundial,
que contribuiu para um aumento da sensibilização
e protecção. No caso das vinhas em patamares, se as
primeiras instalações apresentavam taludes com uma
dimensão elevada, as plantações actuais utilizam taludes mais baixos, optimizando assim o aproveitamento
do terreno e diminuindo os riscos de desgaste, havendo paralelamente uma maior integração paisagística.
Passou igualmente a ser frequente instalar a vinha em
micropatamares, sistematização que permite a mecanização evitando a destruição dos antigos socalcos.
Refira-se que esta opção de compromisso pode ser
um tanto enviesada, no que se refere às políticas de
conservação patrimonial, uma vez que qualquer intervenção implica uma alteração na leitura da paisagem
– essa é uma condição inerente a um património vivo.
Aquilo a que se assiste frequentemente é à manutenção
dos muros por si só, destruindo-se sistemas de condução de águas, alterando-se ou mesmo eliminando formas de circulação. Por outro lado, as intervenções nos
muros nem sempre respeitam a sua estrutura original,
utilizando-se técnicas e materiais que não respeitam a
estrutura original. Os muros são “objectificados”, destruindo-se a sua ligação a um sistema vivo e activo de
produção.
Fig. 17 – Quinta da Soalheira, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira
Evolução da paisagem da Quinta da Soalheira, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pré-filoxera e zonas de mata
deu lugar a áreas de patamares, desaparecendo as zonas de vegetação arbórea.
49
Fig. 18 – Quinta Nova do Rio
Torto, foto Casa Alvão (c. 1940)
© IVDP
Fig. 19 – Quinta Nova do Rio Torto, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira
Evolução da paisagem da Quinta Nova do Rio Torto, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pós-filoxera foi parcialmente substituída por micropatamares e patamares. Além das alterações visíveis no volume dos edifícios da quinta, note-se o desaparecimento dos caminhos murados, mortórios e áreas de olival.
50
A
questão reside no modo como o bem
“paisagem” é percepcionado, pois tal
condiciona a forma como se age sobre
o mesmo. Grande parte da política de
gestão tem-se centrado na manutenção dos muros,
esquecendo-se, por vezes, que fazem parte de um
conjunto mais alargado e que o seu entendimento necessita desse contexto significante. Exemplo disso são
as quintas, onde todo o património vernacular que a
compõe está intimamente ligado, onde arquitecturas
produtivas e de habitação criam paisagem. No caso do
espaço agricultado, quando se altera uma forma histórica de sistematização do terreno nem sempre se olha
para os elementos circundantes, e que marcam o espaço, como as estruturas de circulação, os tanques para
caldas, os telheiros ou as formas antigas de plantio, isto
já para não falar nas questões do património genético
vitícola ou nos já referidos elementos de património
vernacular que se disseminam pelo espaço agrícola.
Fig. 20 – Tanque para recolha de águas e preparação de caldas.
Quinta da Corredoura (Peso da Régua) © Museu do Douro
Fig. 21 – Sistema de condução de vinha em pilheiros. Quinta do
Valado de Cima (Peso da Régua) © Museu do Douro
Fig. 22 – Sistema de suporte para vinha em
pilheiros (Mesão Frio) © Museu do Douro
51
A
o ser fruto do trabalho, de uma actividade específica, a paisagem duriense
define-se a partir dos elementos que
estruturam esse contexto. A paisagem
cultural é pois uma obra combinada da Natureza e do
Homem, resultando quer dos componentes de ordem
natural, como o solo, relevo ou vegetação, quer dos
factores humanos como as actividades económicas ou
as relações sociais, que modificam e alteram o ambiente53. Ao mesmo tempo, a paisagem é um fenómeno
53 GARGUREVICH GONZÁLEZ, 2013: 39
complexo, cuja percepção varia de acordo com quem
a vê e com a vive. É uma abstracção que depende do
olhar, mas «cujo carácter resulta da acção e interacção
de factores naturais e/ou humanos», como definido na
Convenção Europeia da Paisagem (EUROPE, 2000: 5).
Mais do que a imagem que retemos, a percepção visual, a paisagem contém a identidade da região através
de formas de ocupação do solo, da arquitectura, das
redes viárias, das devoções, em suma, a vida e os costumes das gentes que habitam o território.
A “patrimonialização” da paisagem, isto é, a sua
valorização cultural e transformação em património,
Fig. 23 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Casa Alvão (c.
1940) © IVDP
Evolução da paisagem das Quintas de S. Martinho e Banco, situadas em Soutelo do Douro, em que além das mudanças provocadas
pela alteração do rio Douro, se assinalam as alterações provocadas pelos avanços e recuos dos cultivos e a transformação das
arquitecturas de habitação e produção.
Fig. 24 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira
52
insere-se numa necessidade da sociedade contemporânea de preservar o passado em face do progresso
acelerado e dos ímpetos consumistas que a caracterizam. No caso do Douro, a valorização centra-se especialmente nos elementos produzidos pelo plantio da
vinha, mas cuja existência está associada um universo
patrimonial mais vasto, também ele transformador
da paisagem. Sem o (re)conhecimento deste suporte
as formas de armação do terreno correm o risco de
serem elementos quase isolados, quando na verdade
se inserem numa realidade mais complexa, da qual as
quintas são um excelente repositório.
Estas unidades de exploração agrária são o elemento mais dinâmico da paisagem cultural do Douro, alterando as suas estruturas em função dos ciclos produtivos e das lógicas de rendimento. O (re)conhecimento
desta realidade é um ponto de partida para a valorização integrada do património paisagístico, evitando a
perda de importantes valores patrimoniais da história
regional duriense. Porque associada a épocas de trabalho duro e mal recompensado, a importância desta
paisagem nem sempre é reconhecida pelos seus construtores. Para a generalidade dos durienses a modernidade é sinónimo de melhoria de vida e de colheitas
mais compensadoras. Se a sensibilização da população
é um processo demorado, os grandes viticultores e empresas têm já consciência do valor deste património e
da necessidade de o conservar. Visto como um recurso, a imagem da quinta serve para promover os produtos aí preparados, aliando modernidade e tradição.
BIBLIOGRAFIA
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Vol. II, p. 42-79.
53
Quinta do Paço do Monsul
um património Singular
texto: Carlota Cabral,
Mestre pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
([email protected])
Nota biográfica:
Carlota Vasconcelos Porto Cabral
Nascida a 9 de Março de 1986, na cidade do Porto.
Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
mestre em Património Histórico pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa com a tese de mestrado “Quinta do Paço do Monsuluma proposta de classificação” com a média final de 15 valores.
De Abril a Setembro de 2011 estagiou na Câmara Municipal de Peso da Régua,
no Sector de Cultura e Turismo.
De setembro de 2011 a dezembro de 2013 exerceu as funções de coordenadora
do Centro Local de Aprendizagem de Peso da Régua, da Universidade Aberta.
Resumo
As Quintas Vinhateiras são um importante
património, constituindo um insubstituível repositório
das vivências e do saber fazer duriense. Neste artigo
apresenta-se um caso exemplar: a Quinta do Paço do
Monsul, situada na freguesia de Cambres, no concelho
de Lamego, que reúne um assinalável conjunto
de valores históricos, culturais, arquitetónicos e
paisagísticos. Analisa-se ainda a contribuição para
a preservação deste importante património da sua
eventual classificação como imóvel de interesse
público.
Abstract
The Quintas are an important heritage, an
irreplaceable repository of the experience and
know-how of Douro. This paper addresses a unique
example: the Quinta do Paço do Monsul, located in
Cambres, Lamego, which encompasses a remarkable
set of historical, cultural, architectural and landscape
heritage. The possible contribution for the preservation
of this important heritage through its eventual
classification as an imóvel de interesse público (public
interest building) is analysed.
Palavras-chave:
Património,
Alto
vinhateiro, Classificação, Quintas durienses
Keywords: Heritage, Alto Douro vinhateiro,
Classification, Quintas of Douro
Douro
54
1. INTRODUÇÃO
A
s “quintas” são um importante
património imóvel, espelho das
vicissitudes da evolução do Douro,
constituindo
um
insubstituível
repositório das vivências e do saber fazer duriense.
São testemunhos históricos e culturais da construção
de uma paisagem, onde se alia ao património material
um inestimável repositório do saber e dos costumes
associados à cultura da vinha e do vinho.
É este o caso da quinta do Paço do Monsul,
situada na freguesia de Cambres, no concelho de
Lamego. Através da pesquisa realizada sobre os
fundos documentais existentes na propriedade, bem
como sobre a bibliografia disponível, obtiveramse os dados que permitem considerar este conjunto
como um exemplo muito interessante e significativo
de uma unidade de exploração e produção agrícola
que carateriza um espaço indissociável do território
e paisagem duriense Património da Humanidade: a
quinta vinhateira.
Adicionalmente, tendo em conta o carácter
histórico da Quinta, a sua evolução e importância ao
longo dos séculos, a sua relação com a zona onde se
insere, o património construído e o bom estado de
conservação atual, discute-se a vantagem de propor
a sua classificação como imóvel de interesse público.
A classificação é encarada como fator positivo para
a sua manutenção e conservação, sem adulterações
significativas, garantindo às gerações vindouras o
conhecimento de um dos elementos fundamentais da
construção da paisagem do Douro vinhateiro.
2. A QUINTA DO PAÇO DO MONSUL
2.1 Antecedentes históricos
Quinta do Paço do Monsul situa-se no Alto
Douro, na margem esquerda do rio Douro,
precisamente na sub-região mais ocidental, o Baixo
Corgo, na freguesia de Cambres, lugar de Rio Bom,
conselho da Lamego. Assenta numa elevação de
terreno, com o seu perímetro marcado por ciprestes,
traçando um recorte nítido no panorama geral, de
onde se destaca.
O primeiro proprietário da Quinta do Monsul
foi Pedro Viegas, que a vendeu a D. Teresa Afonso,
em 116354. Por sua vez, esta doou-a ao mosteiro
cisterciense de Santa Maria de Salzedas, do qual foi
fundadora55. Como método de exploração, os monges
cistercienses recorriam aos aforamentos, sistema que
mediante o pagamento de rendas, entregavam as terras
a explorar a pessoas individualizadas ou a um coletivo
de pessoas56.
Essa situação ocorreu na Quinta do Paço do
Monsul em 1331, data em que é emprazada ao conde
de Penela. Este ato é assinalado num documento
referindo-se a Granja do Moçullo (FAUVRELLE, N.,
2001, p.135), e nele se fazendo alusão ao Paço e à Torre.
Em 1469, a Quinta é novamente emprazada, desta vez
a Gonçalo Afonso Coutinho e a sua mulher, Beatriz
Dias. Nesse emprazamento fazem-se já referências
à existência de lagares57. Outro prazo feito a Paulo
Rodrigues, em 1541, contém uma breve exposição da
Quinta e refere-se à Caza do Paço e a dittas moradas
que forão emprazadas a Gonçallo Affonso58.
No prazo datado de 12 de Abril de 1578, a Quinta
é descrita de forma mais pormenorizada. O prazo é
igualmente efetuado pelo Mosteiro de Santa Maria
de Salzedas a D. Anna Rodrigues e, a partir deste
A
54 No documento consta a data de 1201. Porém, o autor deste
livro apresenta-nos a explicação: “ […] quem foram os seus primeiros
pessoidores desde a era de Cezar 1201 que vem a ser anno de Christo
de 1163…”. História das propriedades da Caza do Mosnul: Índice destas
Memórias anno de 1862. fl.1 AHQPM, Museu do Douro.
55 FAUVRELLE, N., 2001, p.135
56 RODRÌGUEZ, J. I. T.,1999, p.157
57 […] que por diante pague o Foro dellas herdades Vinhas Souttoss,
e huma parte Olivaes, e Lagares e Pumares, mais a Vinha que trazia Joao
Gonçalves, e Soutto com seu Bacello, assim como parte a Vinha de Antonio
Fernandes com o lagar de Gonçallo Lopes e com o Cabbido e com Gonçallo
Affonso, e mais o Lagar da Molher do dito Antonio Fernandes […].Cit. por
FAUVRELLE, N. (2001), p.142.
58 FAUVRELLE, N., 2001, p. 136
55
documento, percebe-se a clara diferença existente
entre os edifícios da Quinta e dão-se pormenores
sobre as suas dimensões: haveria uma casa sobrada,
outra casa serviria de cozinha, outra casa sobrada a que
chamavam Torre e outra maior a que chamavam Paço.
Descrevem-se igualmente os lagares, o que seriam os
armazéns e “a cozinha de fora”, edifícios contíguos uns
aos outros59.
Mais tarde, em 1599, Gaspar de Carvalho de
Lucena, genro da Ana Rodrigues, e sua mulher,
Leonor Gouveia Leitão, instituem no Monsul uma
capela de invocação a Santo António. Esta capela será
mencionada no prazo de 1691, feito a D. Antónia
Salema60. Outros contratos de emprazamento que
pertencem ao Arquivo Histórico da Quinta do Paço
do Monsul revelam a tentativa de manter a Quinta
na mesma família ao longo dos tempos, neste caso a
família Guedes de Vasconcelos.
A 20 de Junho 1888, a Quinta do Paço do Monsul foi
vendida por Afonso Guedes de Carvalho, descendente
dos referidos Guedes de Vasconcelos, a Artur Mendes
de Magalhães Ramalho, ficando durante nove anos fora
da família Guedes. Em 1897, volta a ser recuperada por
Afonso do Vale Coelho Pereira Cabral61 e sua mulher
Inês Guedes de Carvalho62, que realizaram, então,
obras de alguma envergadura nas infraestruturas da
propriedade. Note-se que a Quinta mantém atualmente
praticamente as mesmas estruturas e o aspeto que lhe
59 […] Emprazarão humas cazas que estão na Quinta do Moçullo.
Primeiramente huma caza sobrada que tem em comprimento seis varas e
de largo quatro; Outra caza que serve de Cozinha a qual he terreira que tem
sette varas de comprido e quatro varas de largo; Outra caza sobrada que
chamão Torre que tem sette varas de comprido e sinco de largo. Uma outra
caza que chamão Paço que tem sette varas de comprido e de largo sinco.
Outra caza terreira com hum pardieiro que tem tudo de comprido treze varas
de largo quatro. Outras cazas sobradas com suas lojas que tem de comprimdo
nove varas e de largo seis varas. Huma caza que tem dous lagares que tem
de comprido sinco varas e meia e de largo sette. Hum pardieiro pegado a
esta caza que tem sette varas de comprido e oito de largo. Mais outra caza
derrobada que tem seis varas de comprido três de largo, partem estas cazas,
digo outra cozinha sobradada que tem sinco varas craveiras em comprido
e três e meia de largo, partem estas cazas com Anna Gonçalves moradora
na mesma Quinta e com Pantalião Francisco morador em Sande, tem estas
cazas huma serventia para hum terreiro que esta adiante dos portaes das
dittas cazas… Cit. por FAUVRELLE, N. (2001), pp. 136-137.
60 “Ittem o Casco da Quinta que emche em si dezacette Olliveiras e
arvores do Espinho e Pumar e huma Horta, e huma Capêlla […]” Cit. por
FAUVRELLE, N.(2001), p. 153.
61 Homem com grande ligação ao Douro, proprietário da Quinta do
Cachão e filho de Constantino António do Vale Pereira Cabral, também
ele detentor de importantes quintas, como sejam a do Seixo em Valença do
Douro, do Cachão em Vale da Figueira e de Trevões em Sarzedinho.
62 Sobrinha de Afonso Guedes de Carvalho. CABRAL, A.V.C.P.
– Livro de vários apontamentos começado em 20 de Fevereiro de 1899,
AHQPM.
foi dado no final de século XIX por esses proprietários.
2.1 Breve descrição da Quinta
a breve descrição da Quinta que é efetuada
em seguida dá-se maior ênfase à casa do
proprietário, dada a sua dimensão, à capela, pela
sua importância e à parte agrícola e de recreio, por
constituírem espaços que valorizam grandemente
o edificado. Baseando-nos nos prazos acima
mencionados, depreendemos que as construções
que atualmente compõem a Quinta seriam, na sua
maioria, as mesmas que aí estão referidas, já que a sua
disposição e utilização se mantêm no presente.
No sopé de uma encosta, na Estrada Nacional 1069
em direção a Rio Bom, situa-se a entrada da quinta
que se faz por um caminho, até há poucos anos de
terra batida, hoje empedrado, que vai dar a uma
exótica alameda de grandes palmeiras, plantadas nos
primeiros anos do século XX.
Como é habitual, a casa do proprietário fica situada
numa zona mais elevada, marcando o estatuto e a
função social dos seus donos. É composta por rés-dochão – incluindo uma pequena adega e armazém –
sobrado e piso superior, constituindo estes últimos os
espaços habitacionais. O sobrado é o piso “nobre”, onde
se encontram as dependências de maior importância,
como a sala da entrada onde se recebem as visitas,
a sala de jantar, o escritório, os melhores quartos de
dormir e a cozinha. À casa, de traça simples, junta-se
um elemento de algum prestígio, a escadaria de pedra,
que termina num balcão de acesso à entrada principal.
A casa foi objeto de vários e consecutivos
acrescentos, com alas que datam do século XVI e outras
já do século XIX63. Ao longo dos anos, a evolução foi
decorrendo de acordo com os recursos financeiros dos
proprietários, sendo que a mais recente – a construção
do terceiro piso (acrescentado entre o final de século
XIX e o início do século XX) se deveu às necessidades
de alojamento da família (Afonso Pereira Cabral e
Inês Guedes de Carvalho tiveram 14 filhos). Quanto
à Torre referida nos prazos acima transcritos, muito
provavelmente constituiria a parte norte da casa, a
chamada torre medieval64.
N
63 FAUVRELLE, N., 2001, p.71
64 FAUVRELLE, N., 2001, p.140. O Dr. António Vasco Rebelo
Valente (genro de Afonso Pereira Cabral e Inês Guedes de Carvalho)
executou, em 1927, numa parede interior da casa uma pintura mural
reconstituindo a Caza do Paço e Torre do Moçulo efetuada com base nas
descrições contidas nos referidos prazos. Essa pintura mural mantém-se
atualmente em razoáveis condições de conservação.
56
A fachada da casa ergue-se de frente para o pátio
da Quinta. O pátio é um elemento comum nas quintas
do Douro sendo que, neste caso, todas as estruturas
de apoio agrícola, lagares, adegas, assim como a casa
dos caseiros e a Capela estão voltadas para ele. Desta
forma, torna-se um elemento agregador das várias
construções, permitindo uma maior unidade e, ao
mesmo tempo, isolando-as do exterior através de
portões e portinholas de ferro. No pátio, em lugar
central, encontra-se um grande tanque com a data de
1469.
A casa dos caseiros, com uma estrutura idêntica
à casa principal, mas mais modesta em termos de
espaço, situa-se afastada da casa dos senhores. É este o
primeiro edifício com que se depara ao entrar no pátio,
do lado direito. Tem dois pisos e o acesso ao primeiro
andar faz-se por uma escada exterior.
Entre a casa do proprietário e a dos caseiros – as
construções de maior dimensão – rodeando e fechando
o pátio, existem outras importantes estruturas
destinadas à atividade agrícola. São os armazéns, as
adegas e os lagares, que funcionaram regularmente
até meados do século XX, constituindo equipamentos
essenciais para todo o processo de preparação de
vinho e o azeite, que era também produzido na Quinta
até 1940.
Elemento de grande importância nas quintas
durienses é a cozinha. Na Quinta do Paço do
Monsul existem duas cozinhas, estando uma delas
localizada na casa principal e a outra num edifício
distinto, junto dos lagares e adegas. Esta cozinha, que
mantém a tradicional lareira, elemento agregador de
convívio, é utilizada pelos caseiros e trabalhadores da
propriedade e é chamada a “cozinha de fora”. Muito
provavelmente é a mesma que vem mencionada no
prazo anteriormente referido de Abril de 1578 a D.
Anna Rodrigues. Salvo algumas modificações que
se tornaram obrigatórias, como é o caso de alguns
equipamentos e das canalizações de água e gás, a
cozinha da casa preserva toda a sua antiga disposição.
Também as cores foram mantidas – o amarelo ocre nas
paredes e o azul na madeira das portas e armários – o
que contribui para o ambiente tradicional, que ainda
hoje nela se respira.
Tal como a cozinha, outros espaços na casa do
proprietário têm interesse e merecem a nossa atenção.
Entrando pela porta principal, deparamo-nos com
uma ampla sala de receção, com um interessante teto
em masseira e um rústico travejamento em madeira.
Passando por este aposento, pode entrar-se quer na
sala de estar, com tetos em caixotões octogonais, quer
no escritório, onde está guardada grande parte da
biblioteca da Quinta. Neste escritório, que beneficia
de uma atmosfera muito particular, já que é mantido
praticamente com a mesma decoração, arrumação
e equipamentos com que Afonso Cabral o deixou
na data do seu falecimento em 1946, existe uma
escrivaninha do século XIX e um cofre dos princípios
do século XX65. Note-se que a maior parte do
mobiliário existente na Quinta foi adquirido em fins
do século XIX, mantendo-se atualmente praticamente
na mesma disposição.
De entre os edifícios que compõem a Quinta do Paço
do Monsul, destaca-se, pelo seu particular interesse, a
Capela, datada de 159966. Fica situado à esquerda de
quem entra no pátio da Quinta e no lado oposto à casa
principal, num local afastado, mais adaptado às suas
funções religiosas: em frente das Casas da mesma em
hum logar solitário próprio para a meditação e oração67.
Esta capela tinha o privilégio de possuir o
Santíssimo Sacramento68, como se pode ler nas
memórias de Afonso Cabral: Concluídas estas obras,
estabeleceu-se novamente a capellania n’este santuário,
que desde estes annos se achava interrompida com
sensível prejuízo para a visinha povoação de Rio Bom, a
qual pela distância da sede da freguesia se achava muito
desprovida de recursos espirituais. Todo o povo de Rio
Bom frequentou sempre a Capela do Monsul nos dias
santificados (…)69. Na própria Capela, e reafirmando
este aspeto, podemos ler numa das suas inscrições
o seguinte: Os administradores desta Capella tem
permissão de aqui poderem ter sempre o santíssimo
sacramento, e a despeza da sua lâmpada é a custo do
grande patrimonio que esta mesma Capella lhe fizerão
em 1679.
A capela foi objeto de algumas obras de conservação
65 Cofre de 1911 da fábrica João Thomaz Cardoso de Villa Nova
de Gaya.
66 Em huma inscripçao que esta levantada á direita do arco da capella
dis seg: Esta Capella foi Edificada por Gaspar de Carvalho de Lucena Fidalgo
da Caza de Sua Magestade filho de Luis de Carvalho Souza Guedes Fidalgo
Cavalleiro de El Rei e de sua Molher D. Anna Carreiro no anno de 1599.”
História das propriedades da Caza do Monsul: Índice destas Memórias anno
de 1862. AHQPM, fl. 101.
67 História das propriedades da Caza do Monsul, 1862. AHQPM,
fl. 101.
66.
70.
68 CABRAL, A.V.P.C. – Livro de vários apontamentos, AHQPM, p.
69 CABRAL, A.V.P.C. - Livro de vários apontamentos, AHQPM, p.
57
e restauro, sendo as mais importantes efetuadas
por ocasião do seu retorno para a família de Afonso
Cabral, em 189770. Registe-se que estando aberta a
toda a população, a capela de Santo António tem tido
um papel importante no reforço da função social e
agregadora da Quinta71, neste caso no plano religioso.
No que se refere à parte agrícola e desde que há
memória, a Quinta do Paço do Monsul tem mantido
como função primordial a produção vinícola,
particularmente a produção de vinhos generosos.
Dos seus 22 hectares, cerca de metade são ocupados
por vinha. Note-se que no princípio do século XX
os seus vinhos já obtinham 12 a 13 graus de álcool e
chegava a produzir vinhos com 15 graus 72. No entanto,
a Quinta possui também pomares, horta, olival e
mata, elementos hoje pouco frequentes nas Quintas
vinhateiras. Ao longo dos tempos, por todo o Alto
Douro esses plantios têm vindo a ser abandonados
ou modificados a favor do vinhedo. No Monsul, ao
contrário do que ocorreu na maior parte do território
duriense, estes espaços foram mantidos e conservados.
Nas traseiras da casa, ocupando patamares
sucessivos ao longo da encosta que lhe está adjacente,
estende-se o pomar, com o seu grande laranjal,
limoeiros e árvores de frutos variados, às quais se
acrescentam as nogueiras, árvore bem característica
da região do Alto Douro vinhateiro. Durante muitos
anos, este espaço acumulou a função de lazer e passeio,
normalmente prestada pelo jardim73.
Este terreno, em declive, tem na sua base a horta. É
de salientar o complexo e extenso sistema de irrigação
que a serve. Iniciando-se na parte superior do pomar
no local onde existe uma mina, a água é canalizada
através de regos em granito e decantada com recurso
a curiosas pequenas bacias retangulares, também
talhadas em granito, espaçadas regularmente em
intervalos de cerca de 12 metros. A esta rede de canais,
70 “A primeira obra que tratei de fazer ao tomar posse deste casal foi
a reforma da Capela a qual se achava em estado de abandono, desde de que
a casa deixara de pertencer à família…Esta capela de modesta architectura
como todas as d’aquella epocha na província tem o cunho característico do
santuário d’aquele tempo, acentuado no campanário encimado pela cruz
de ferro e cata-vento, a porta em arco, as ameias laterais ou “grandezas”,
o interior baixo e sem coro, os azulejos, qb” CABRAL, A.V.P.C – Livro de
vários apontamentos. p. 70.
71 Exemplo disso é a Missa Pontifical celebrada no dia 12 de
Outubro de 1913, pelo então Arcebispo Bispo da Guarda, em que, pela
ocasião, foram crismadas duzentas pessoas da freguesia. Cfr CABRAL,
A.V.P.C, Memórias de família, p.136.
72 BRITO, F. A., 1916, p.12
73 FAUVRELLE, N., 2001, p. 84
que no seu conjunto tem mais de 400 metros, estão
associados alguns tanques que servem toda a zona do
jardim, pomar e horta. Há também minas e tanques
na zona da mata. É esta mesma rede que alimenta de
água o já referido tanque do pátio da entrada. Aliás,
a Quinta beneficia de um abundante número de
nascentes e fontes, facto nada comum na região do
Douro, de clima seco e solos xistosos, pobres.
Exemplificativo da fertilidade e capacidade
produtiva da Quinta é o comentário efetuado por
Manuel Monteiro, historiador de arte e etnógrafo, que
nos inícios do século XX, descreveu a Quinta do Paço
do Monsul como um mostruário experimental, um
resumo prático da capacidade produtora do Douro74.
Esta característica parece acompanhar a Quinta em
toda a sua história.
No lado poente da Quinta do Paço do Monsul,
em terreno de certa elevação, encontra-se a mata,
elemento hoje em dia pouco comum nas quintas do
Douro. Como se viu, esta situação ocorreu sobretudo
devido à desbravação que foi efetuada em grande
escala a partir do século XVIII para dar lugar às vinhas
e quase à monocultura vinícola. A mata é composta
por diversas espécies arbóreas de tipo mediterrâneo,
predominando os cedros, os pinheiros, mansos e
bravos, os medronheiros e os castanheiros. Note-se que
na Quinta existem mais árvores do tipo mediterrâneo
(oliveiras e azinheiras, por exemplo), em conjunto
com outras de cariz exótico, tais como o castanheiroda-índia, a palmeira, o eucalipto e a olaia.
Toda a mata, assim como toda a propriedade, são
recortadas por caminhos, todos com um nome. Um
marco de pedra à entrada de cada “rua”, ou junto a
um largo ou uma fonte, tem inscrito o nome de um
familiar – a mulher, filhas e filhos, noras e genros
de Afonso Cabral. Foi uma maneira do proprietário
prestar homenagem aos seus mais próximos, tendo
escolhido o olival para evocar, coletivamente, os netos
e dedicando uma azinhaga aos bisnetos. Na verdade,
ninguém foi esquecido e raras inscrições dizem
respeito a não familiares. É exceção a “rua” dedicada
ao santo de especial devoção dos proprietários, a “rua”
de Santo António, e uma outra que perpetua a data
do casamento de Afonso Cabral com Inês Guedes
Carvalho em 1881, a “rua” 25 de Abril75.
74 MONTEIRO, M., 1998, p. 136
75 Há um terceiro e último caso, o Largo da Ínsua, que exprime a
forte ligação à famosa Casa com o mesmo nome, situada em Penalva do
Castelo, Mangualde, pertencentes a parentes próximos de Afonso Cabral.
58
Desta forma, a mata ilustra exemplarmente a cultura
e o pensamento romântico do proprietário, marcado
pelos ideais românticos dos jardins ingleses do século
XIX. De facto, juntamente com as palmeiras que
ladeiam a alameda principal da Quinta, a propriedade
possui os elementos fundamentais e característicos
das modas que influenciaram o ordenamento de
espaços recreativos da época. Para a construção destes
espaços recorreu-se à plantação de espécies arbóreas
e arbustivas exóticas, nomeadamente, o castanheiroda-índia e a olaia (ARAÙJO, I., 1979, pp. 375-387).
Ao longo dos séculos XIX e XX, a mata destinavase ao passeio e recreio, tendo mesmo existido, à sua
entrada, um campo de ténis e um largo arranjado com
uma mesa e bancos de xisto, para pic-nic. Também o
“caramanchão” - isto é, um recanto com mesa e bancos
coberto por ripas revestidas de trepadeira, onde se
tomava o chá, muito ao gosto inglês, hoje em desuso,
era um lugar reservado para convívio nas tardes de
canícula.
Atualmente, alguns destes lugares de lazer
desapareceram e parte do respetivo terreno foi
utilizado para o cultivo de oliveiras e laranjeiras
(este é o caso do campo de ténis). No entanto, a mata
mantém-se intacta e permanece como local de passeio
e convívio, mantendo-se também as fontes76 e os
tanques espalhados por toda a horta, pomar e mata.
Presentemente a Quinta pertence aos herdeiros
de Afonso Cabral que mantêm a administração da
casa e das atividades agrícolas. No entanto, e segundo
o costume de há muitos anos77, a Quinta continua a
manter caseiros, que aí habitam, e que ao longo do ano
se responsabilizam pelos trabalhos agrícolas.
A propriedade mantém-se indivisível e possui
correntemente cerca de 40 proprietários que a utilizam
de acordo com um peculiar sistema de rotatividade,
usufruindo da casa principal, que possui atualmente
condições razoáveis de conforto.
É importante sublinhar que Quinta do Paço do
Monsul não pode ser apreciada apenas por um ou
outro dos seus edifícios, por um dos seus aspetos, por
uma só parte, separadamente. A Quinta é indissociável
da sua história, a casa é inseparável do pomar, o pomar
da mata, a mata da vinha e assim por diante.
76 Ornamentadas com gárgulas e carrancas.
77 Note-se que A Separata da revista “ A Vinha Portuguesa”, de 1916,
faz referência ao caseiro Manuel Pascoal, que dirigia os trabalhos no Paço
do Monsul, ao serviço de Afonso do Vale Coelho Pereira Cabral.
3. A CLASSIFICAÇÃO DA QUINTA
A
Quinta do Paço do Monsul situase numa zona classificada como
Património Mundial da Humanidade,
podendo suscitar o argumento de
que a paisagem onde se insere é, por isso, objeto de
grande valorização, levantando-se a dúvida se, neste
caso, seria ou não vantajosa a sua classificação. Por
diferentes motivos, aquele território vai sofrendo
pequenas e mesmo grandes alterações, desde as de
natureza estrutural às de carácter estético. As quintas
vinhateiras não escapam a esta tendência, correndo
o risco de perder a sua importância e identidade
próprias, de ficarem expostas à desvalorização do seu
património construído e mesmo à sua deterioração
progressiva.
Sendo a “quinta” um elemento central e
representativo da estrutura daquele território,
testemunho do desenvolvimento agrícola e técnico
da região78, justifica-se que, pelo menos algumas
das mais representativas, recebam uma classificação
independente. Além da consequente proteção e
valorização, este estatuto permitiria uma divulgação
mais abrangente do interesse cultural e social destas
quintas. No entanto, são em número muito reduzido
as quintas vinhateiras classificadas ou em vias de
classificação na região do Alto Douro Vinhateiro. No
Baixo Corgo, onde se situa a Quinta, apenas existem
neste momento quintas ou casas classificadas como
imóvel de interesse municipal. Este facto reforça o
interesse de existirem propriedades representativas
daquele território valorizadas através da classificação
de imóvel de interesse público.
As exigências e pressões de rentabilidade
económica que, no período corrente, se fazem sentir
sobre os proprietários destas quintas, constituem um
risco adicional para a salvaguarda do património.
Na verdade, para além da eventual ignorância dos
proprietários sobre o valor patrimonial dos seus bens
ou da melhor forma de efetuar a respetiva conservação
e manutenção, a corrente renovação dos métodos
vitícolas e enológicos têm, infelizmente, conduzido à
descaracterização de edifícios, estruturas e terrenos de
quintas durienses, alterando radicalmente as técnicas
de plantação e modificando a paisagem.
78 FAUVRELLE, N., 2001, p. 208
59
Ao longo dos séculos e tomada no seu conjunto,
a quinta do Paço do Monsul (com uma área total
de 22 hectares e, desses, apenas cerca de metade
plantados com vinha), conseguiu manter uma
identidade própria, quase inalterada. Esta identidade
está obviamente ameaçada pela necessidade de
sustentabilidade económica. Para ilustrar o risco que a
situação representa para a salvaguarda do património
basta referir a corrente adesão ao turismo rural ou
ao enoturismo e a renovação extensiva dos métodos
vitícolas e enológicos.
Neste cenário, a classificação como imóvel de
interesse público permitiria uma garantia adicional
de que a eventual reforma dos edificados poderia
ser efetuada sem danificar o valor histórico,
patrimonial, arquitetónico e paisagístico das quintas.
No caso da Quinta do Paço do Monsul este aspeto
é particularmente pertinente pois nela ainda se
podem apreciar o “espírito” e os ideais arquitetónicos
e paisagísticos do século XIX português, já que
não sofreu remodelações significativas desde essa
época. Por outro lado, considerando os avultados
custos financeiros que acarreta a manutenção destas
propriedades, a classificação permitiria usufruir dos
correspondentes benefícios fiscais. Adicionalmente,
e segundo a Lei do Património Cultural Português, o
Estado promove apoio financeiro aos proprietários de
bens classificados ou inventariados, concedendo-lhes
condições especiais de crédito para que estes possam
realizar obras de proteção e conservação dos imóveis79.
A classificação seria ainda um obstáculo à tentação
de se introduzirem alterações profundas, quer no
património construído, quer nas práticas de cultivo80,
quer na sua funcionalidade81, que acabariam por o
adulterar e ofender o seu contexto e a sua conceção
inicial.
A Quinta do Paço do Monsul não será a única
propriedade na sua região a merecer um destaque
especial. Mas é, seguramente, uma das muito poucas
que reúne, numa só unidade, um assinalável conjunto
de valores históricos, culturais, arquitetónicos e
paisagísticos que faz todo o sentido preservar. Na
nossa perspetiva, pela sua longa história, pelo raro
08).
79 Artigo 99º do Decreto-Lei nº 107/01 D.R. I Série-A 209 (01-09-
80 Desde o início do século XX, vinhas da Quinta mantêm-se
plantadas de acordo com as práticas da época, incompatíveis com as atuais
exigências de mecanização.
81 Por exemplo, transformar a Quinta para um hotel ou turismo
rural.
conjunto de valências que possui e porque continua a
ser, no meio em que se insere, um testemunho vivo de
múltiplas relações culturais de vasta memória que são
importantes para o presente e para o futuro, merece
obter a classificação de imóvel de interesse público.
4. BIBLIOGRAFIA
Fontes Manuscritas
AHQPM - Arquivo Histórico da Quinta do Paço
do Monsul: História das propriedades da Caza do
Monsul, 1862, Museu do Douro.
CABRAL, Afonso do Vale Coelho Pereira – Livro
de vários apontamentos, começado a 20 de Fevereiro
de 1899, Arquivo Histórico da Quinta do Paço do
Monsul.
CABRAL, Afonso do Vale Coelho Pereira –
Memórias de Família. Porto, 1892-1945.
Referências Bibliográficas
BRITO, F. d’ Almeida e (1916) – A Quinta do Paço
do Monsul no Alto Douro. Revista agrícola “A Vinha
Portuguesa”. Porto, Novembro.
FAUVRELLE, Natália (2001) – Quintas do Douro.
As arquitecturas do Vinho do Porto. Porto: GEHVID Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense
e do Vinho do Porto.
ARAÚJO, Ilídio (1979) – Jardins, parques e quintas
de recreio no aro do Porto. Revista de História. Vol. II.
Porto, pp. 375-387
MONTEIRO, Manuel (1998) – O Douro e as
Principaes Quintas, Navegação, Culturas, Paisagens e
Costumes. Edições Livro Branco, Lda.
RODRÍGUEZ, José Ignacio de la Torre (coord.)
(1999) – Cister no Vale do Douro. Grupo de Estudos
de História da Viticultura Duriense e do Vinho do
Porto. Edições Afrontamento, Lda.
60
61
Santos da casa:
Capelas, devoção e poderes a sul do Douro
no memorialismo paroquial de 1758.
texto: Nuno Resende,
DCTP – Faculdade de Letras da U. Porto
([email protected])
Nota bio-curricular:
Nuno Miguel de Resende Jorge Mendes (Nuno Resende)
Nuno Resende nasceu em Cinfães, a 29-8-1978. É doutor em História da Arte
Portuguesa (2012) e mestre em Estudos Locais (especialização em construção de
Memórias Históricas) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2005)
tendo concluído a licenciatura em História (variante científica) pela Universidade
do Minho no ano de 2001. Foi investigador do Museu Nacional Soares dos Reis
(2003-2004) onde participou na elaboração de várias exposições temporárias. Em
2006 foi convidado pela Diocese de Lamego para coordenar a 2ª fase do Inventário
do património religioso e cultural nos arciprestados de Lamego e Tarouca tendo
então comissariado duas exposições sob o tema do património religioso no vale
do Douro («A Montante do Tempo», 2006 e «A Palavra e o Espírito», 2007).
Foi, ainda, coordenador editorial e científico de diversas publicações editadas
pela Diocese de Lamego, nomeadamente os 2 volumes do catálogo resultante
do projecto de inventariação: «O Compasso da Terra», em que participaram 24
investigadores nas áreas da História e História de Arte de diversas universidades
nacionais. Foi bolseiro FCT tendo apresentado, em Setembro de 2011, a sua tese
de doutoramento em História da Arte Portuguesa (bolseiro FCT) que versava a
temática da hagiotopografia no território de Montemuro entre os séculos XVI e
XVIII. Foi investigador-bolseiro ao serviço da Universidade do Porto/VALSOUSA,
onde efectuou trabalho de investigação e concebeu material propedêutico no
âmbito do projecto Rota do Românico. Exerce actualmente o cargo de professor
auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Património. É membro do
Secretariado Diocesano dos Bens Culturais da Diocese de Lamego e integra, ainda,
o conjunto de investigadores do CITCEM – Centro de Estudos de População e
Sociedade. Entre os vários trabalhos publicados contam-se artigos e obras nas
áreas dos estudos de população, sociedade e família, fotografia e retrato histórico,
arte religiosa, biografia e micro-história, entre outros temas, num período que
baliza entre a Idade Moderna e a contemporaneidade.
Contacto institucional: [email protected]; contacto pessoal: [email protected]
62
Resumo:
Esta comunicação pretende abordar algumas
questões ainda emergentes, quer no âmbito da
historiografia, quer no contexto da historiografia
da arte sobre as capelas - templos de pequena ou
média dimensão isolados, adossados a templos
maiores, incorporados ou vinculados a habitações
senhoriais. Em primeiro lugar: de que forma arte e
o património religiosos se impuseram no território,
fora das igrejas e a cargo de particulares? Como se
articulavam, no território e no contexto hierárquico
e legalista português de setecentos as capelas, os seus
instituidores e (ou) administradores e os poderes
locais e regionais? A região de Montemuro a que
nos reportamos, considerada nas suas paróquias e
divisões menores – no caso o distrito eclesiástico do
Douro - apresenta na geografia e na documentação
memorialista de 1758 que se lhe refere (a nossa fonte
principal de análise) aspectos que permitem, se
não responder, pelo menos aflorar alguns aspectos
relacionados com estas problemáticas. Procuraremos
assim dar expressão visual ao fenómeno de construção
do património religioso por particulares e a escolha
das devoções - contextualizando a sua fundação e
gestão num período pós-Tridentino, quando a Igreja
adoptou novas medidas de controlo sobre legados,
óbitos e fundações pias - mundo jurídico em que se
enquadram aquelas estruturas.
Palavras-chave:
Capela,
casa,
hagiotopografia, memorialismo, paróquia.
devoção,
Abstract
With this article we pretend to focus on some emerging issues within the historiography and historiography of art about chapels – catholic temples of small
or medium size, isolated or linked to manor houses.
How was religious art brought outside churches and
other public religious buildings by individuals? How
was articulated within the territory and within the
hierarchy of the Catholic Church the construction
and management of chapels by laic founders within
a local and regional context? The region to which we
refer – Montemuro - , considered in its parishes and
smaller divisions - in this case the ecclesiastical district
of Douro - presents in its geography aspects that allow,
if not to answer, at least touch on some aspects of that
issues. As so we will try to answer those questions and
others about these religious heritage buildings, addressing private devotions and the motives related to
their choice - contextualizing founding and management of chapels in post-Tridentine period, when the
Church adopted new control measures on legacies and
pious foundations. For that we use a specific historic
source called Memórias Paroquiais, dating from 1758,
that document and characterize through a series of
questions the heritage within parishes.
Keywords: Chapel, manor house, nobility, hagiotopograhy, historical memory, parish.
63
INTRODUÇÃO
O
nosso projecto de doutoramento levou-nos a procurar elementos para a
compreensão sobre a fundação, implantação e desenvolvimento de templos católicos comunitários, vulgarmente designados
por capelas ou ermidas82. Estruturas de dimensões
menores (por comparação com a igreja matriz) edificadas em contexto urbano ou isolado serviam as populações, distantes da matriz, nos ofícios religiosos ou
para-religiosos estimulando – nomeadamente através
da escolha de uma entidade patronal – o fortalecimento de laços vicinais e marcando a paisagem enquanto
eixos de atracção social.
Embora centrássemos a nossa atenção no período
moderno (sécs. XVI-XVIII), depressa constatámos
que aquele fenómeno e o seu desenvolvimento em determinadas geografias repetia um modelo iniciado na
Idade Média: a autonomização de comunidades mais
afastadas da igreja matriz. Para maior comodidade no
acesso aos ofícios (ou até dando expressão a desejos
colectivos) as comunidades alcançavam, através da
construção de uma ermida, depois elevada a curato,
a qualidade de paróquia. Este processo, designado por
A. Almeida Fernandes como das igrejas filiais, ocorreu
ao longo da Idade Média assente num esquema aparentemente simples: a partir de um templo principal
criavam-se desdobramentos regionais, concêntricos,
de igrejas menores que recebiam oragos iguais aos
templos matriciais ou cultos induzidos pelos indivíduos à frente das instituições ligadas aos templos principais83. Tal processo de filiação foi estudado no aro
de Lamego pelo referido historiador, mas o fenómeno
não se esgotou nos limites da Idade Média, como podemos aferir pelo nosso estudo. De facto a complexidade deste fenómeno, entre a escolha do orago até à
82 RESENDE, 2012a.
83 FERNANDES, 1963. Acrescentámos alguns dados
referents ao estudo deste processo em estudos locais: RESENDE, Nuno (2010a) – «Lamego e a sua catedral no Códice 390 da colecção António Capucho (1679-1712): espaços
e dinâmicas segundo um livro de despesas do Cabido lamecense». In BRAGA, Alexandra; SARAIVA, Anísio - Espaço,
Poder e Memória. A Catedral de Lamego. Lisboa: CEHR. E
ainda em: RESENDE, Nuno - O concelho de Magueija. Lamego: União das Freguesias de Bigorne, Magueija e Pretarouca, 2014. 978-989-20-5006-5
fundação e por vezes à extinção das ermidas ou daí à
transformação em curato e igreja não permitia cingíssemos a nossa atenção num edifício cronologicamente
limitado a um breve período e pudemos acompanhar
a evolução estrutural e jurídica destes templos num
tempo dilatado, extrapolando assim para o período
moderno, o que parecia ter ocorrido apenas ao longo
da Idade Média e que A. Almeida Fernandes explica
numa base puramente documental.
Recorrendo à colação de dados estatísticos, à observação directa e à análise documental constituímos
uma base de dados composta por 206 edifícios distribuídos geograficamente pelo território designado
por maciço de Montemuro, conjunto montanhoso na
margem sul do Douro, entre os rios Paiva e Balsemão.
A escolha do território fundamentou-se na homogeneidade geográfica cujos limites naturais serviam de
fronteira a várias unidades administrativas e eclesiásticas, entre paróquias, municípios, coutos, honras e os
distritos eclesiásticos – elementos importantes para
compreendermos a administração temporal e religiosa
da Diocese de Lamego no período moderno84.
Ao longo dos dois séculos a topografia religiosa sofreu alterações profundas no maciço de Montemuro.
Acompanhando o sentido ascendente da humanização – dos vales aos planaltos – as ermidas foram sendo
edificadas no espaço comunal das aldeias, cumprindo
a sua função de casa de oração e acolhimento espiritual, mas também marco visual na paisagem e eixo de
novos percursos que o aumento demográfico determinava, criando ou fortalecendo comunidades distantes
da velha igreja matriz e estabelecendo novos locais de
culto relacionados com as necessidades colectivas das
populações. O estudo da implantação destes edifícios
e a relação da entidade com o território e a comunidade veneradora, designado como hierotopografia ou
hagiotopografia85, permitiu-nos aproximar da razão ou
razões inerentes a tais fundações: a protecção do espaço agrícola, a salvaguarda do património humano e a
intervenção no território do ponto de vista urbanístico
ou social, através da criação de santuários e centros de
romagem – pólos de atracção religiosa e comercial.
A geografia de Montemuro permitiu-nos, outrossim, avaliar de vários níveis ou tipologias de implantação, não apenas dentro da esfera das categorias de
urbano, periférico ou isolado, mas procurando esta84 Cf. Capítulo II, em RESENDE, 2012a.
85 Sobre estas definições ver Ibid: 208 ss.
64
belecer relações entre os cultos, a orografia, a exploração dos recursos naturais e a percepção do Homem
sobre a paisagem.
Nesse sentido foi necessário determinar com o rigor possível dentro da complexidade do tema exposto
o limite do nosso objecto de estudo, nomeadamente
através da utilização de uma designação lhe conferisse
um âmbito de modo algum redutor no espaço ou no
tempo. As denominações genéricas que, de resto, já
utilizámos – ermida ou capela – constituem-se como
a forma mais comum para designar o templo de culto católico, de pequenas dimensões, aberto à devoção
pública, frequentemente associado ao mundo rural.
Assim o plasmou a historiografia local que através dos
seus cultores nem sempre se mostrou interessada na
boa aplicação terminológica, ignorando a raiz vocabular ou a polissemia das palavras.
Uma busca pela dicionarística portuguesa permitiu confirmar uma utilização recente e mais abrangente dos termos, mas a sua origem e aplicação ao longo
da Idade Média e da época Moderna parecia menos
polissémica: ermida aludindo a qualquer templo público, erguido em espaço urbano ou isolado e capela
no sentido de espaço interior associado a património
particular86.
Conquanto nos interessassem as ermidas e a sua
posição em contextos devocionais colectivos e como
marcos-eixos na paisagem e no território, apenas fizemos uma breve incursão pelo universo das capelas87.
Dos dados recolhidos nas fontes disponíveis elaborámos algumas comparações entre ermidas e capelas,
nomeadamente quanto à distribuição dos oragos e
cultos – que expressam efectivamente a distância entre
o colectivo e o privado (ver ponto 4 deste trabalho)88.
Mas as problemáticas associadas às capelas e ao seu
universo não nos suscitaram questões imediatas. De
resto, as capelas - amiúde associadas a uma estrutura
maior, habitacional ou religiosa -, distanciam-se da ermida exactamente por essa dependência ou vínculo a
património individual ou linhagístico que desde logo
justificaria a sua construção e o local de implantação.
À partida o posicionamento das capelas no território
devia submeter-se aos desejos e estratégias dos indivíduos ou das instituições que, através de vontades particulares, indicavam o local de edificação e explicavam
86 Cf. capítulo I, ibid.
87 Cf. mapa 21, p. 235, ibid. Reproduzido neste ensaio.
88 ibid.
Cf. Quadro 4, hagiologias patronais nas ermidas de Montemuro,
muitas vezes as razões subjacentes a tal escolha.
Assim ficaram de fora do nosso estudo mais de uma
centena e meia de edifícios (153) que não couberam na
designação de ermida e cuja amostragem utilizaremos
agora para aferir da extensão, importância e função
deste tipo de património na construção da paisagem
e urbanismo na sociedade a sul do Douro, nos séculos
XVI a XVIII.
Para tal utilizámos como fonte primária e principal o memorialismo de 175889, aceitando as limitações
desta fonte - fundamentalmente quantitativa mas com
possibilidades descritivas que é necessário explorar
não obstante o condicionalismo ditado pela grelha
do inquérito e as lacunas culturais dos redactores que
responderam. As memórias paroquiais integram-se na
categoria documental de inquéritos epistolográficos
que marcaram o estudo académico e o conhecimento
do território nos séculos XVII-XVIII. Apesar da sua riqueza contabilística e descritiva a ausência de estudos
comparativos, a análise vocabular e do seu potencial
qualitativo tem sido arredado dos estudos elaborados
sobre esta fonte90.
89 As vulgarmente designadas Memórias Paroquias inscrevem-se
num projecto academista iniciado pelo padre Luís Cardoso, da Congregação do Oratório que entre 1747-1751 iniciou a publicação de um Dicionário Geográfico, interrompido pela catástrofe de 1755. Três anos depois em
1758, a partir da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, e pela mão de
Sebastião José de Carvalho e Melo foi posto a circular pelas dioceses portuguesas um inquérito que procurava, através das paróquias, conhecer o país
nos seus eixos Terra, da Serra e Rio – três pontos ao longo dos quais se organiza o questionário. Para o nosso estudo utilizamos as questões número
13 do ponto I («Se tem algumas ermidas e de que santos e se estão dentro,
ou fora do lugar a que pertencem»), 9 do ponto II («Se há na serra alguns
mosteiros, igrejas de romagem ou imagens milagrosas»). As memórias
estão disponíveis em PORTUGAL. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo - TTOnline [em linha]. Lisboa: IAN/TT, 2005- . [consult. 29
Dez. 2006]. Memórias Paroquias. Disponível em http://ttonline.iantt.pt.
Optámos por indicar ao longo do texto apenas as citações directas da fonte, remetendo para a consulta directa na plataforma IAN/TT as paróquias
referidas no quadro I em anexo.
90 Sobre esta questão veja-se o que escrevemos em RESENDE,
2010: 14-17.
65
II. AS CAPELAS: ESPAÇO E PODER(ES)
E
mbora no caso das ermidas tivéssemos
centrado a nossa atenção no próprio edifício, na sua implantação territorial e no
cruzamento de dados estatísticos com
a documentação que nos foi possível levantar, o universo das capelas possibilita o acesso a um conjunto
mais expressivo de fontes históricas. A documentação
produzida a este respeito reflecte o cuidado posto pela
Igreja no controlo e fiscalização quer deste tipo de fundações/construções, quer na vigilância dos espaços,
dos seus proprietários e nos rendimentos afectos ao
pecúlio religioso administrado.
Desde o início que a Igreja tentou refrear o acesso de leigos ao património eclesiástico. Na passagem
do mundo romano ao cristianismo, eram os fiéis que
custeavam a edificação de templos particulares (de
resto costume de herança clássica) que resultaram em
espaços comunitários - alguns deles catalisadores da
população rural dispersa. Nasceram assim basílicas e
outras estruturas de culto que acabariam por definir a
genealogia de algumas igrejas paroquiais. Inalcançável
pelo braço da Igreja de Roma - porque em formação e
portanto pouco vigilante e incapaz de punir com celeridade - muitos daqueles templos tornaram-se proveitosa fonte de rendimento para leigos91. O próprio
direito do padroado, instituído sobre aquele preceito,
permitiu que ao longo da Idade Média famílias e linhagens «comessem» (a expressão é da época) nos bens de
igrejas e mosteiros, onde dominavam como senhores
de quase pleno direito92.
91 Viterbo discorre (Elucidário, entrada «Igreja») abundantemente
sobre estas e outras questões, que demonstram a preocupação da Igreja em
conter os abusos de leigos quanto à construção e administração de edifícios
religiosos, cf. VITERBO, 1798: 32 ss (vol. II).
92 A este respeito cabe referir a primeira obra que no caso historiográfico português se debruçou sobre estas temáticas: Oliveira, Miguel - As
paróquias rurais portuguesas. Lisboa: [União Gráfica], 1950. Outrossim a
obra de Pierre David é fundamental para compreender, na passagem da
Antiguidade Clássica para a Idade Média e no período da Reconquista o
processo de formação de paróquias, cf. David, Pierre - Études sur la Galice
et le Portugal du VIe au XIe siècle. [Coimbra]: Institut Français au Portugal, 1947. Mais recentemente e para o período paleocristão salientamos os
estudos de Maciel, M. Justino - Antiguidade tardia e paleocristianismo em
Portugal. Lisboa: [edição do autor], 1996, 972-96934-0-4. Estudos pontuais
têm surgido, normalmente associados à arqueologia e que permitem acrescentar alguns dados à problemática do nascimento de templos cristãos e
o seu dimensionamento ou a sua implantação em função de estruturas
anteriores – tema complexo e ainda desconhecido que tem dado origem
a teorias pouco sustentadas sobre a persistência de cultos, sincretismo e
continuidades cultuais, cf., por exemplo, Lima, António Manuel Carvalho
- Os mosaicos da igreja de Santa Maria do Freixo e a ecclesia de Tongobriga.
Marco de Canaveses: DRCN/Estação Arqueológica do Freixo, 2012.
Mas se papas, bispos e sacerdotes tentaram combater este domínio laico sobre os bens eclesiásticos, a necessidade de assegurar o rendimento necessário para
a fábrica e dotação de um número crescente de edifícios (construções em parte motivadas pelo aumento
demográfico) determinou que não houvesse uma cisão completa entre padroeiros, hierarquias e estrutura
eclesiástica. O crescente medo de uma morte impreparada e do próprio esquecimento pós-morte determinou que, por volta dos séculos XIII-XIV a fundação de
capelas (e a própria definição) se adequasse ao quadro
político, religioso e jurídico da época – de que a planimetria eclesial gótica é particularmente reveladora.
De facto, às igrejas românicas de planta simples onde
o espaço acusa um poder homogéneo e centralizado,
sucederam-se as complexas construções góticas, marcadas pela justaposição de espaços menores adossados
à nave: espaços particulares que senhores, leigos ou
eclesiásticos, patrocinavam para sua memória e dos
seus.
Não obstante este modelo os senhores leigos não
deixaram de, nos seus domínios, quererem aceder
directamente ao espaço sagrado, movendo para isso
esforços políticos e económicos para o fazer. Desde
oratórios integrados na estrutura habitacional a edifícios isolados mas enquadrados em contexto fundiário,
ainda durante a Idade Média alta e pequena nobreza
usaram os seus recursos para aproximar o divino ao
seu mundo quotidiano e doméstico. A mudança de paradigmas familiares, a volubilidade das relações sociais
determinadas pela proximidade da morte e, naturalmente razões de teor económico, tiveram influência na
conquista do património religioso pelos leigos, como
se prova pela crescente instituição de vínculos – morgadios e capelas – que canalizaram para muitos espaços de culto dotes e legados aplicados não apenas em
ofícios religiosos perpétuos, outrossim na construção
e gestão daqueles espaços93.
Estas dotações sobre as quais não existem estudos
estatísticos parecem ter aumentado ao longo dos séculos XV e XVI, de tal forma que no decurso da época
moderna constituem uma preocupação para alguns
tratadistas, como Manuel Severim de Faria que, na sua
obra Notícias de Portugal (publicado em 1655), disser93 Sobre esta problemática, do ponto de vista jurídico, salientámos
para o caso português os estudos de: ROSA, Maria de Lurdes Pereira – O
morgadio em Portugal: sécs. XIC-XV. Lisboa: Editorial estampa, 1995 e Id.
- «As almas herdeiras». Fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma
como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521). Lisboa: Imprensa Nacional
da Casa da Moeda, 2011, 978-972-27-1938-4.
66
ta sobre os morgadios e a sua importância na república94.
A Igreja saída de Trento (concílio 1545-1563) preocupou-se em legislar devidamente sobre a fundação de
capelas e outros edifícios salientando, na Sessão XIV,
capitulo XII do referido concílio, que:
«Ninguem, de qualquer Dignidade Ecclesiastica,
ou Secular que seja, possa, nem deva adquirir, ou obter direito de Padroado, por qualquer razão que seja,
senão fundando, erigindo de novo alguma Igreja, Beneficio, ou Capella; ou estando já erigida, mas sem
dote sufficiente, dos seus proprios bens patrimoniaes
a dotar competentemente. Mas em caso de Fundação,
e Dotação, a Instituição será reservada ao Bispo, e não
a outro»95.
Centralizando na figura do prelado a autorização
sobre a fundação de «igrejas, benefícios e capelas», o
Concílio pretendia cercear as fundações particulares
limitando o seu número e colocando-as sob a vigilância eclesiástica. De resto, à autorização da criação de
capelas ou oratórios nas casas nobres, devia implementar-se um verdadeiro plano burocrático para garantir a boa contabilidade do espaço de culto, devendo
o administrador recorrer a várias tipologias de livros
de registo.
A legislação tridentina ecoou no conjunto de normativas diocesanas portuguesas, como no caso de Lamego a que se reporta o nosso estudo. Este bispado,
muito embora veicule já nas Constituições de 1563 um
conjunto expressivo de legislação sobre os edifícios de
culto96 apenas no sínodo de 1682 definiu plenamente
a reforma católica de Trento. Aqui se determina que:
Conforme a Direito, todas as ofertas que se põem
em cada uma das Igrejas Paroquiais, ou Ermidas e
Oratórios que estiverem em seu limite e freguesia, pertencem aos párocos, a cada um na sua. […] E portanto
mandamos, sob pena de excomunhão maior ipso facto, que nenhuma outra pessoa secular ou Eclesiástica
usurpe as ditas oblações ou ofertas como direito seu,
nem se intrometerá por si, ou por outrem, as arrecadar
para si, ou para outra pessoa, por o dito título. E quanto aos leigos, lhe não aproveitará prescrição e posse,
94 ainda que seja muito antiga, por quanto são incapazes
desse direito […] 97.
À data da produção das memórias (1758), vigorava ainda este sistema legislativo, sustentado em
visitações cíclicas que pugnavam pelo cumprimento
dos cânones – muito embora estivéssemos já perto
das intervenções pombalinas para refreamento das
instituições vinculares que terão impacto na administração de locais de culto associados a tais fundações98.
Cf. FARIA, 2003, Discurso Primeiro, §8, p. 34 (desta edição).
95 IGREJA CATOLICA. Concílio de Trento [15451563] - O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento, 1781,
Sessão XIV, capitulo XII, p. 391
96 Aqui definidos em três tipologias: igrejas, ermidas e oratórios –
sendo que esta última designação pode ter o duplo sentido de capela ou
igreja monástica, cf. VITERBO, 1798: 31 (vol. II).
97 LAMEGO, DIOCESE DE - Constituiçoens synodaes, 1683, Título
VI, cap. 3, p. 147. No capítulo 4 refere-se ainda «Que as ofertas se não arrendem a leigos, nem eles possam tirar do altar».
98 Ver RESENDE, 2012: 49 (vol. I).
67
III. OS INDIVÍDUOS E AS INSTITUIÇÕES:
DEVOÇÃO E (OU) ESTRATÉGIA?
D
evemos, antes de mais, distinguir instituidores e administradores.
Por instituidor entende-se o indivíduo que funda a capela ou a vincula a
determinado património (dotação) necessário ao sustento do espaço religioso. Por vezes este acto coincide
com a fundação de um vínculo associando à capela
um nome e (ou) uma linhagem.
O administrador, normalmente descendente ou
parente do instituidor é aquele a quem cabe o encargo
de gerir o património herdado, fazendo cumprir óbitos e legados, providenciando a fábrica do edifício e
procedendo à tomada de contas a prestar ante visitadores eclesiásticos e outras entidades.
Existem poucas referências a instituidores nas memórias de 1758 – de certa forma um indicador cronológico da fundação das capelas. Colhemos apenas
três notas sobre edifícios concluídos, pouco antes ou
à data da redacção da memória: a capela episcopal de
São Miguel, no paço de Lamego; a capela dedicada a
Virgem da Conceição em Picão (f. Oliveira do Douro)
e a de São José, no lugar da Porta (F. São Cristóvão de
Nogueira) que o reitor diz achar-se «finda mas não em
termos de Se celebrar, por não ter ahinda alcançado
Licença he ordinario»99.
Dos padroeiros ou administradores das 153 capelas registadas em Montemuro em 1758 vinte e um
eram eclesiásticos, setenta e cinco leigos, três instituições religiosas, três instituições laicas e cinquenta e
três cuja qualidade não é especificada. É expressiva a
percentagem de administradores leigos (48 por cento)
que nos remete para um mundo laico e senhoril, embora não exclusivamente masculino. De facto dentre o
conjunto dos setenta e cinco padroeiros, dez eram do
sexo feminino. No rol de senhoras contava-se uma religiosa de São Bento que administrava a capela dedicada à Virgem da Graça no lugar do Picão e um conjunto
de irmãs que tinham a seu cargo a capela de São Bento
no lugar de Louredo da freguesia de São Cristóvão de
Nogueira (ver quadro em anexo).
Os clérigos desempenhariam, contudo, um papel
nuclear, quer na fundação, dotação e administração
99 GOUVEIA, José da Cunha e - São Cristóvão de Nogueira [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://
digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4240942>.
destas capelas, quer na participação nos ofícios litúrgicos ali celebrados, função que exerciam na qualidade de capelães100. Se é certo que, como no caso do
Padre Manuel Teixeira Cardoso (n. 1687), de Oliveira
do Douro, a capela da casa onde habitava serviu para
ilustrar a memória e o nome da sua família através da
instituição de um vínculo em 1740, noutras situações
os sacerdotes aparecem referidos como funcionários
(capelães) ao serviço de certo senhor101.
Embora desconheçamos a identificação de quase metade do número de administradores, a fatia de
quarenta e oito por cento dos padroeiros permite-nos
uma incursão no mundo dos apelidos nobiliárquicos
portugueses. Estão aqui representados indivíduos das
famílias dos Pereiras (oito), dos Fonsecas (cinco), dos
Melos (quatro), dos Vasconcelos (quatro), dos Carvalhos (três), dos Pintos (três), dos Coutinhos (dois) e
dos Barros (dois) entre outros (ver quadro I em anexo).
São, contudo, parcas as descrições dos memorialistas quanto à origem e estatuto social dos administradores, assim como à natureza do património assinalado.
Se no caso das ermidas existe com alguma frequência
uma alusão à sua implantação ou localização na geografia local e regional, apenas de forma esporádica o
relator nos oferece um breve relance sobre a posição
da capela no território ou a descrição da sua estrutura. Todavia a memória não esquece os ilustres da terra que muitas vezes integravam as principais famílias
locais proprietárias de grande parte das casas e capelas que lhe eram contíguas ou lhe estavam vinculadas.
Homens das governanças, clérigos e devotas senhoras
incluíam-se como instituidores, administradores e
benfeitores do património eclesiástico das freguesias,
associando à obra o perfil piedoso e caritativo que
lhes impunha o estatuto e a sociedade. Efectivamente a algumas destas capelas associavam-se estruturas
e espaços de auxílio a quem buscava lenitivos, como
no caso das Caldas de Aregos que, embora não fosse
uma capela de família, era de administração particular
e tinha associada uma albergaria e barca para ajuda a
viandantes, administrada por leigos.
Sobre a implantação das capelas no território colhemos no entanto algumas referências que convém
elencar, mormente pelas expressões utilizadas pelos
100 Como especifica Bluteau, capelão era «o sacredotte assalariado
que tem obrigação de dizer missa em oratório ou igreja», cf. BLUTEAU,
1712-1728: 122 (vol. II).
101 RESENDE, 2012b: 119.
68
memorialistas para situar os edifícios segundo o seu
conhecimento e percepção visual sobre o território
que paroquiavam.
Em Ferreiros de Tendais o abade indica-nos localização de algumas das capelas no território paroquial: a
de São Roque em Covelas estava «fora do lugar» e a de
São Francisco, na mesma povoação, «dentro do lugar».
No lugar de Ferreiros, sede da freguesia, encontravam-se as de Santo António, «ao pé» e a da Senhora da
Assunção «dentro» do lugar 102. Na vizinha freguesia
de Oliveira do Douro em Boassas erguia-se a capela da
Senhora do Amparo, «no meyo do Povo», a de Passô,
dedicada a São Francisco, «alguma couza fora da povoação»103. E em Fornelos a capela de São Sebastião
na quinta das Carvalhas estava «fora do lugar de Villa
Nova»104 (ver quadro 1 em anexo).
Não sabemos se por tratar-se do senso comum, se
por descuido dos redactores são parcas as referências
às casas senhoriais onde algumas das capelas se localizariam. Em S. Cristóvão o abade é particularmente
completo na indicação de habitações às quais estavam
associadas quer a família dos administradores, quer
as suas capelas, aludindo a quintas: a da Grova, a da
Granja, a da Raposeira e a do Bacelo, ligadas respectivamente às devoções de São Libório, São Miguel Arcanjo, Virgem da Conceição e São Bento105. Em Piães
o abade é particularmente exaustivo na indicação
de quintas, referindo as de Sequeiros, da Ribeira, da
Póvoa, de Antemil (onde existiam duas capelas) e de
Souto Juste quase todas à «beyra douro»106. O memorialista de Espadanedo generaliza afirmando que «em
todas ellas [capelas ou ermidas] se diz missa a do povo
está em hum monte as outras estão nas quintas dos
sobreditos donos»107. Por outro lado, o pároco de San102 ANTUNES, Manuel - Ferreiros de Tendais [Memória Paroquial]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.
dgarq.gov.pt/viewer?id=4240074>.
103 TEIXEIRA, Baltazar Manuel de Carvalho Pinto - Oliveira do
Douro [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4240984>.
104 RANGEL, Manuel José Carneiro - Fornelos [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=4240140>.
105 GOUVEIA, José da Cunha e - São Cristóvão de Nogueira [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4240942>.
106 SILVA, Manuel Ferreira da - Santiago de Piães [Memória Paroquial de]. Ibid.IANT/TT. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4241215>.
107 CARVALHO, Manuel Salter Rios de - Espadanedo [Memória
Paroquial de]. Ibid.IAN/TT. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4239960>.
ta Maria de Nespereira alude a «casas», uma de Ana
Monteira e outra de Gonçalo Vaz Leitão, às quais pertenciam duas capelas dedicadas a Santo António – sem
contudo percebamos o local de implantação das mesmas, se contíguas às habitações ou apenas dentro da
propriedade108. Outrossim em Resende refere-se um
«casa particular» e as quintas da Crujeiras, de Safões,
do Paço, de Vila Pouca, de Terra Nova, de Rendulfe, e
de Semelião, todas com a sua capela109.
No conjunto das memórias analisadas as mais
completas quanto à localização e descrição das capelas
são as que dizem respeito às freguesias da sé de Lamego e de Almacave110. Ambos os memorialistas têm o
cuidado de indicar no urbanismo o posicionamento
daquelas estruturas, aludindo a capelas adossadas a
igrejas (como a do Espírito Santo em Almacave) ou
interiores, como nos exemplos do Hospital, do Paço
Episcopal e da casa de Almedina. Surge pertinente a
informação sobre a capela desta casa, dedicada à Virgem da Conceição, dentro da habitação, mas «com
porta para a Rua» - sobretudo porque através da legislação da época sabemos ser esta uma das condições
que se impunha para distinguir a capela ou oratório da
ermida111.
Sobre a qualidade e naturalidade dos administradores resgatámos também algumas notas que na documentação que ajudam a traçar o perfil de homens
e mulheres a quem cabia zelar pelo património das
capelas.
O pároco de Ester alude ao proprietário da capela
de Ester de Baixo, dizendo-o «sacerdotte de virtude,
e exemplo» e descreve a situação do edifício que não
sendo cabeça de vínculo «que este o tem na freguesia de Parada de Ester», era «grandeza da sua quinta e
Religioso Lustre da sua honorifica casa»112. Tais encómios são reveladores da importância destes edifícios
108 Podendo ser entendida, neste contexto, a expressão casa, como
património linhagístico ou familiar que extravasava os limites do edifício
habitacional.
109 PINTO, Luís de Siqueira - Resende [Memória Paroquial de].
Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.
pt/viewer?id=4241433>.
110 TAVEIRO, José de Sousa Maria Evangelista - Almacave [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4240473 e VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=4240472>.
111 A propósito desta questão ver o que escrevemos em RESENDE,
2012a: 68 ss.
112 COSTA, Bernardo Ferreira da - Ester [Memória Paroquial
de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4239992>. O abade não refere o orago da capela.
69
como espaços de promoção individual e linhagística,
geralmente associados ao nome, à família e ao solar do
administrador.
Na vizinha freguesia do Pinheiro uma tradição local revelava em 1758 outra função para aquela tipologia de espaços religiosos. No lugar da Desfeita a capela
dedicada à Virgem da Piedade «instituída e fabricada
por tradição antiga por hum homem que foj ao Brazil» tinha associada uma albergaria tendo sido dotada pelo instituidor com vários legados destinados aos
passageiros e pobres que deviam ser agraciados com
esmolas pela Santa Cruz de Maio e no Dia da exaltação de Setembro113. A alusão à qualidade do instituidor
– brasileiro de torna viagem – parece querer associar
uma ideia subjacente às obras públicas destes beneméritos: providenciar, no regresso à pátria, recursos e
meios para sustento dos mais necessitados. No entanto, e como frisa o memorialista, não se tratava de um
burguês como os de oitocentos sobejamente glosados
pelos romances da época, outrossim um irmão do «Secretario do Palacio Real»114.
Às portas de Lamego um cónego capitular mandara erigir uma capela, não com intuitos caritativos,
mas como forma de expurgar o mal que ali se manifestaria: «consta que naquele sitio sucediam muitas
mortes, muytas disgrassas, e nella se cometiam muito
pecados»115. Assim, sobre uma notável laje mandou
o eclesiástico Miguel Freire erguer uma capela como
presença sagrada e espiritual de um perigoso lugar
de passagem, marginal à urbe lamecense. Não se enquadrando no plano caritativo das capelas da Desfeita
ou de Caldas de Aregos, não deixa de constituir uma
intervenção particular no urbanismo e na paisagem
como expressão de auxílio colectivo – se quisermos
uma forma de auxílio espiritual.
Na região de Cinfães eram vários os capitães e sargentos-mores administradores de capelas e muitos os
que, em 1758 e a partir de outras paragens, procediam
à gestão deste património. No património religioso
particular daquela freguesia intervinham nobres naturais ou moradores em Resende, na Vila de Viana, no
Couto de Ancede ou da cidade do Porto – sinal expressivo de uma sociedade de várias casas que se articula113 FERRÃO, Manuel Correia - Pinheiro [Memória Paroquial
de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4241235PT/TT/MPRQ/29/187>. O pároco desconhece o nome do
instituidor, mas indica o do administrador àquela data: Tomé Cardoso, da
Desfeita.
114 Cf. Ibid.
115 VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Ibid.
va, entre negócios e casamentos, por outras partes do
reino, nomeadamente pelo norte litoral116. Outrossim
em Oliveira do Douro, São Cristóvão de Nogueira, Escamarão, Souselo, Penajóia, Freigil também se referem
outras proveniências, grande parte delas distribuídas
ao longo do vale duriense, por lugares ou termos como
Benviver, Mesão Frio e Lamego.
O mapa 1 é importante testemunho gráfico da relação das capelas com o Douro, por onde no século
XVIII se movimentariam interesses familiares, repartidos entre negócios «do sangue», do vinho e de outras
indústrias117.
116 Cf. RESENDE, 2012b, onde apresentamos alguns casos de famílias que se movimentam ao longo do vale, articulando vários negócios.
117 Por negócios do sangue queremos dizer as relações sociais, afinitivas e consanguíneas que alavancariam o mercado matrimonial na região duriense. Das relações sociais, familiares e naturalmente económicas
ao longo do hinterland duriense destacamos a investigação sobre o patriciado urbano do Porto que catalisava este movimento: BRITO, Pedro - Patriciado urbano quinhentista. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal
do Porto, 1997.
70
Mapa 1 – Capelas em Montemuro: distribuição geográfica. Extraído de RESENDE, 2012a.
Associadas a instituições religiosas existiam capelas junto a recolhimentos, como no caso de Fonseca na
freguesia de Fontoura (hoje do concelho de Resende)
onde as «recolhidas [eram] senhoras e padroeiras do
mesmo recolhimento»118 e em implantação urbana ou
isolada, como em Lamego e Cambres, locais onde os
cistercienses detinham administração sobre as capelas
da Virgem da Graça (no Arco da Porta do Sol) e de São
Bernardo em Cambres119.
Embora uma parte dos memorialistas não identifique o(s) instituidor(es) ou administrador(es) das capelas, algumas das suas notas permitem compreender
a natureza jurídica deste tipo de património. Salien-
támos o caso da capela de Santo Amaro, no lugar das
Caldas de Aregos onde afluíam romeiros em busca de
alívio para as suas maleitas, não obstante ser, em 1758,
um edifício em ruínas da administração do Conde de
S. Miguel que, segundo o memorialista, não a queria
reedificar120. Noutro exemplo, diverso do anterior,
ao povo de Porcas retirou o padre José de Azevedo,
para si, a administração da capela de São Domingos
que então dotara e venerava121. Embora escassos estes
exemplos juntam-se aos inúmeros casos registados na
118 AZEVEDO, José - São João de Fontoura [Memória Paroquial
de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4240130>.
120 «[…] nesta já não existe a imagem do mesmo santo nem nela se
diz já missa por estar a maior parte dela caída por terra, sem que o Ex.mo
Conde de S. Miguel a queira reedificar sendo senhor dela como Comendador da Comenda de S. Miguel de Anreade da Ordem de Cristo não obstante ser a dita imagem antigamente tão milagrosa e tão venerada pelos fiéis
ainda de partes bem longínquas, que se diz saíam na sua dita Ermida sa
pernas e braços de … insígnias dos prodígios que o Santo obrava, às cargas
por não caberem dentro dela»- cf. Anreade [Memória Paroquial de]. Ibid.
119 ARAÚJO, João Veloso de - Cambres [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=4239417>.
121 Estava «pegada ao lugar de Porcas» […] «que agora dotou
e venera o padre José de Azevedo que de primeiro, nos princípios era
do povo», AZEVEDO, José Mendes - Barrô [Memória Paroquial de]. Ibid.
71
documentação da época moderna, nomeadamente em
visitações que apontam o complexo panorama de jurisdições e vicissitudes legalistas a que estavam sujeitas
as capelas122.
122 Apontamos dois exemplos deste tipo de fonte para o caso de
Lamego; os livros de visitação dos distritos eclesiásticos e os registos de
instituições fundacionais ou vinculares. Na primeira categoria destacamos
o códice Douro Capellas e Confrarias, datado de 1725 e hoje desaparecido
dos fundos do Arquivo Diocesano. Consultámo-lo para a região de Cinfães em finais da década de 1990 e vários autores o citam em monografias
regionais, tendo sido documento privilegiado para o estudo da fundação e
administração de capelas e ermidas existentes no primeiro quartel do século XVIII no distrito do Douro (correspondente sensivelmente aos actuais
concelhos de Cinfães, Resende e Lamego). Regista-se ainda o livro das Instituições de capelas para o distrito da Serra, cf. ADL [Arquivo Diocesano
de Lamego], [Fundo Geral], Instituisoens […].
IV. O PATRIMÓNIO: ALGUNS CASOS
M
enos comuns na documentação
memorialística, mais focada nas
coisas da terra e aos espaços eminentemente «públicos», aparecem
pela mão de alguns párocos informações respeitantes
à estrutura das capelas, ao seu recheio e até a alguns
aspectos do património a uso cultual ou litúrgico. Outrossim, surgem por vezes referências à administração
do espaço, nomeadamente na questão de dotação e
vínculos associados, e até a difíceis situações de carácter jurisdicional, como as que atrás referimos.
Entre o conjunto de memórias paroquiais destacam-se as das freguesias da sé de Lamego e São Cristóvão de Nogueira que merecem, pelas informações disponibilizadas uma atenção e uma análise mais cuidada.
Em São Cristóvão de Nogueira, paróquia situada
junto ao Douro o reitor é particularmente minucioso
na descrição do património das capelas, referindo o
número de altares ( por retábulos) e de imagens neles
expostas à veneração.
O reitor da sé concede uma atenção particular ao
património religioso da sua freguesia, procurando,
pela descrição dos edifícios, do seu recheio e pela natureza dos seus administradores, acentuar o poder e
a majestade da cidade. Assinala, embora em termos
latos, características e dimensões dos edifícios, o número de retábulos e algumas das imagens expostas –
fazendo inclusa menção a materiais, tipologias e técnicas de produção. São particularmente expressivas
as suas descrições da capela do Hospital e as do Paço
Episcopal, hoje inexistentes ou alteradas na sua estrutura setecentista, tal qual as descreve em 1758 o reitor
Diogo António Vieira.
Sobre a capela do Hospital escreve:
Nos lados desta Salla da parte da mam Esquerda,
fica huma Cappella que toma o mesmo ambito com
seo altar , e Retabolo dourado, e nelle a Imagem de
Nossa Senhora Pranhe (advogada das mulheres pejadas) tem tem por Lados em nichos dourados as Imagens de Nossa Senhora, e Sam Pedro de vulto estofadas:
he meya azolejada, e o tecto apaynelado, e Ricamente
dourado, com duas grandes janellas de Vidraças que
Caem sobre o rio Coura; desta Capella vay o Santissimo aos Enfermos do Hospital, e nella se espoem os
defuntos do mesmo, que vão para a Sepultura […]123
123 VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Lisboa:
IAN/TT, 1758. Ibid.
72
Acerca do paço episcopal de Lamego refere:
[…] tem formozas Sallas, e bons commodos, e hua
Cappella intreor aonde os Prelados ouvem, e dizem
missa com hum magestozo paynel do Nascimento de
Cristo Senhor Nosso, e largas molduras de tella, primorozamente douradas124.
Referia-se o reitor à capela titulada da Natividade,
uma das duas existentes no paço. E quanto à de São
Miguel, acrescenta:
Tem outra Capella admiravel e publica: para esta
se entra pelo primeyro Salláo; tem esta seo Retabulo
maravilhozamente dourado, e pintado fingindo pedra;
e no meyo um paynel, em que se vé ricamente pintada
a Imagem do glorioso Arcanjo Sáo Miguel (nesta está
huma cadeyra episcopal debayzo de hum docel). Tem
trez frestas de vidraças, e sua sacristia; cuja capella
mandou fazer este Excellentissimo Prelado o Senhor
Dom Frey Feliciano de Nossa Senhora, para effeyto de
nella dar ordens […]125.
Ao longo da cidade e seu termo levantavam-se
várias casas nobres a cujas capelas e senhores o memorialista alude, fazendo questão de salientar os ricos
ornamentos, alfaias, relíquias126 e imagens – algumas
delas de «muyta devoção» como a de Cristo crucificado que existia numa casa da rua dos Fornos, instituída por Martinho Álvaro Pinto da Fonseca e em 1758
administrada por D. Maria Inácia Pinto de Vilhena127.
São também pertinentes as descrições sobre a decoração artística dos espaços religiosos como no caso
da capela de São João Baptista, na rua Direita, administrada por António de Araújo Freire de Sousa Borges da Veiga. Segundo a leitura do reitor da Sé, possuía
um «noblissimo retabulo, dourado, e pintado fingindo
pedra»128.
124 Ibid.
125 Ibid.
IV. O SANTORAL FAMILIAR: SANTOS DAS
CASAS.
R
esta-nos fazer uma incursão pelo património devocional destas capelas. Em
que se distingue do património espiritual
das ermidas, à partida determinado por
necessidades colectivas? Poderá a distribuição das devoções particulares fornecer-nos elementos para uma
divisão social das devoções?
Vejamos os seguintes gráficos:
Gráfico 1. Fonte: Memórias, 1758.
126 Sobre relíquias na posse de particulares há a destacar, no território da diocese de Lamego, a alusão ao corpo de São Plácido, «que mandou
vir de Roma o Exc.mº Snr. D. Manoel de Vasconcellos Pereira, Bispo de
Lamego; mas chegando de Roma depois de sua morte, o recebeu seu sobrinho Caetano Alexandre, filho da irmã do dito Snr. Bispo, e do Snr. Capitão
–mor de Trancoso, assistente n’esta villa de Moimenta [da Beira], aonde
casou, e o guarda com toda a decência no oratório doméstico, aonde tem
sido visitado dos povos com fama de milagres, e se lhe anda preparando
uma capella magnifica», cf. AZEVEDO, 1877: 153
127 A imagem tinha o título de Senhor dos Aflitos e dez palmos
de estatura. A capela tinha anexa uma sacristia e «ricos ornamentos», cf.
VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT,
1758. Ibid..
128 «No meyo da baquetta está dentro de hum Sacrario hua especial, e grande Reliquia do Santo lenho, que antigamente tinha sido da Caza
dos Duques de Bragança», cf. VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Pa-
Gráfico 2. Fonte: Memórias, 1758.
roquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Ibid.
73
Embora a distribuição percentual das tipologias de
invocações se aproxime entre capelas e ermidas, uma
primeira análise notamos a primazia às devoções masculinas entre os cultos mais disseminados na região.
Efectivamente quer nas titulaturas das ermidas, quer
na das capelas a escolha de santos como patronos oscila entre, respectivamente os 43 e 48 por cento.
Todavia é claro o peso do marianismo, expresso em
fatias de 40 (capelas) e 26 (ermidas) por cento. E se
somadas as percentagens entre santas e as invocações
marianas quase em ambos os casos se atingem valores que ombreiam com os das titulaturas hagiológicas
masculinas.
Ainda mais aproximadas em percentagem são as
invocações cristológicas (5/6 por cento), sendo residuais as invocações aos anjos (estando Miguel à cabeça) e ao Divino Espírito Santo, quer no caso das ermidas, quer no das capelas.
Este panorama parece revelar uma consistência territorial ao nível das escolhas de oragos titulares entre
comunidades e indivíduos ou famílias. Talvez as mesmas necessidades, decorrentes da geografia, da capacidade de gerir recursos para subsistência ou de enfrentar os mesmos medos colectivos conduzisse a escolhas
semelhantes, fosse no plano espiritual individual, ou
num plano comunitário.
Todavia uma aproximação às devoções, aos vocativos cristológicos e marianos permite-nos observar
uma dissonância entre oragos de capelas e patronos
comunais. Tendo em conta as frequências de títulos
que registámos para as ermidas de Montemuro, os
oragos das capelas desta região divergem claramente
sobretudo no que respeita aos Santos e Santas mais venerados:
Tabela 1 - Principais patronos hagiológicos de ermidas e capelas.
Montemuro, 1758. Fonte: Memórias, 1758.
Ermidas
São Sebastião
(25)
São Pedro
(13)
Santa Luzia
(8)
Santa Bárbara (7)
Santo António (10)
Santa Catarina (3)
São Lourenço
(6)
Santa Ana
(2)
Capelas
Santo António (21)
São João
Baptista
(10)
São Francisco (7)
São José (6)
Santa
Ana (3)
Santa
Bárbara
(2)
Santa
Eufémia
(1)
Santa
Maria
Madalena (1)
Revela-se aqui uma contenda entre Sebastião, o
Mártir por excelência, preferido pelas comunidades e
Santo António, escolhido para culto maior nas capelas. O primeiro, já tivemos oportunidade para o referir,
aparece na topografia religiosa junto às entradas e saídas das povoações, junto a lugares de trânsito ou pelo
menos à vista destes129. Cabia-lhe defender as populações das pestes que viajavam pelos caminhos.
Santo António não deixa de assumir-se como terceira devoção entre os oragos escolhidos para as ermidas, assumindo aqui um papel que consideramos
de protector dos recursos, nomeadamente da pecuária
(numa região marcada pela transumância). Mas a escolha para titular das capelas deste franciscano revela,
talvez, uma curiosa associação com o mundo linhagístico130, não apenas por se tratar, na linguagem comum
de um santo casamenteiro, mas pela própria ligação
do taumaturgo à nobreza portuguesa. Não devemos
também excluir a simbologia nacionalista que lhe foi
imputada depois de 1640, juntamente com a devoção
à Imaculada Conceição.
É, aliás, no que respeita a invocações marianas e
cristológicas marianas que parece verificar-se uma
maior constância entre as devoções de ermidas e capelas:
Tabela 2 – Principais patronos cristológicos e marianos de ermidas e capelas. Montemuro, 1758. Fonte: Memórias, 1758.
Ermidas
Senhor Jesus
(2)
Senhor Jesus
(2)
Ascensão do
Senhor (1)
Ascensão do
Senhor (1)
Menino Jesus
(1)
Senhor da
Agonia (1)
Santo Cristo
(1)
Menino Jesus
(1)
Senhor da
Agonia (1)
Santo Cristo
(1)
Capelas
Virgem da
Conceição
(14)
Virgem do
Amparo
(4)
Virgem (3)
Virgem da
Graça (3)
Virgem da
Guia (3)
Virgem da
Conceição
(14)
Virgem do
Amparo (4)
Virgem da
Assunção (3)
Virgem do
Desterro (3)
Virgem da
Graça (3)
Mas estes quadros - que apenas apresentam o conjunto dos cinco títulos mais devocionados entre capelas e ermidas em Montemuro - , podem iludir-nos.
Efectivamente cremos que, ao contrário das Santas e
Santos cultuados, é nos vocativos mais extravagantes
129 RESENDE, 2012a: 229, 242
130 O autor da Historia Eclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego
recorda o parentesco dos Bulhões com a família do taumaturgo, cf. AZEVEDO, 1877: 288.
74
e menos vezes escolhidos que podemos ter uma ideia
mais completa da «função» dos patronos particulares.
Detenhamo-nos na análise dos vocativos marianos
das capelas em Montemuro:
Tabela 3 – Invocações marianas de capelas em Montemuro, 1758.
Fonte: Memórias paroquiais, 1758.
Virgem de/da/do
Ajuda (1)
Amparo (4)
Conceição
(14)
Desterro (3)
Aravera (1)
Graça (3)
Assunção (3)
Guia (3)
Oliveira
(1)
Piedade
(3)
Pilar (2)
Boa Hora (2)
Lapa (1)
Pranto (1)
Boa Morte (1)
Luz (3)
Prazeres
(2)
Preces (2)
Boa Nova (1)
Nazaré (1)
Remédios
(2)
Repouso
(1)
Ribeira (1)
Rosário (1)
Virtudes
(1)
Bom Sucesso (1)
Sem referências (3)
Excluindo as devoções de carácter regional ou
mesmo internacional (ligadas a afamados santuários
católicos), como a Virgem da Lapa e a Virgem dos Remédios, a Virgem do Pilar e a Virgem da Oliveira, a
devoção nacionalista à Virgem da Conceição e o culto
ao Rosário de difusão mendicante, um conjunto muito
significativo de vocativos apela para momentos particulares da vida dos indivíduos e das casas nobres,
como o nascimento (Boa Hora, Bom Sucesso, Boa
Nova, Ajuda e Guia), o casamento e a família (Desterro, Nazaré) e a morte (Boa Morte, Pranto, Preces).
Tal como as comunidades da época moderna substituíram muitos dos seus santuários hagioterapêuticos
colectivos (dedicados a obscuros mártires) por invocações marianas, também as famílias procuraram para
as suas capelas títulos protectores para os momentos
mais cruciais do seu percurso genético e social. O papel de Mãe e guia acalentado por uma Igreja reformada contribuiu para esta disseminação de cultos e até,
(um estudo na longa duração com certeza o permitiria
observar), a feminização da espiritualidade colectiva e
individual desde a Idade Média.
Sobre a aproximação das casas e famílias a estas invocações, a fonte que tomamos como elemento principal de análise é omissa. Porém, tendo em consideração
a titulatura hagiológica masculina e feminina - São
Francisco (de Assis), «São» Gonçalo, Santo Inácio, São
Bento, São Bernardo e São Domingos, Santa Quitéria
e Santa Rosa de Lima, entre outros – este tipo de invocações poderá indicar o contacto com ordens religiosas quer através da missionação, quer através dos
laços familiares e sociais das casas cujos proprietários
ora dependiam, como foreiros dos mosteiros, ora lhes
entregavam os filhos e filhas para carreira eclesiástica
e para assegurar nas igrejas monásticas o seu panteão
familiar.
75
CONCLUSÃO
Embora limitados pela grelha esquemática do
questionário e pela diversidade das respostas - condicionadas pela bagagem cultural dos inquiridos - o memorialismo de 1758 permite uma articulação regional
para perspectivas de comparação e análise abrangente
de várias temáticas. No presente trabalho colhemos algumas notas sobre a capela enquanto espaço devocional particular e estabelecemos, dentro de uma linguagem estatística, a procura de padrões que nos possam
ajudar a colmatar o silêncio da fonte sobre escolhas,
percursos e razões inerentes à edificação e gestão de
tais estruturas.
Neste sentido não obtivemos respostas directas
para questões que ainda nos assomam sobre a tipologia, dimensão e posição daquelas estruturas ou até
sobre a sua articulação com o urbanismo. Cingindo-se a respostas concretas sobre a existência, ou não, de
capelas e ermidas, os memorialistas apenas remetem
para indicações que resumem a factualidade destes
edifícios.
Ainda assim, o cruzamento de vários elementos de
teor contabilístico (nome, número e identificação do
administrador da capela) permitiu-nos uma incursão
sobre a origem, identificação (ainda que parcelar) da
origem e estatuto social dos administradores; um co-
nhecimento sobre a implantação das capelas no território em estudo (Montemuro) e até uma aproximação
ao património arquitectónico e artístico de alguns dos
espaços.
Mas neste conjunto de 153 capelas surge um factor importante que tivemos em conta e que a fonte regista com rigor: a devoção. Através da contabilização
das invocações e a sua categorização, posteriormente
comparada com os oragos comunitários, foi possível
estabelecer escalas de escolhas individuais ou familiares que manifestam o dos senhores das casas em colocar-se ante a protecção de uma entidade com características próprias e favoráveis a certos momentos da sua
vida ou do seu percurso social.
Outrossim, conhecer este tipo de património do
ponto de vista territorial e devocional contribui, cremos, para o conhecimento menos superficial das motivações inerentes à fundação, incremento e até desaparecimento destes edifícios, compreendidos num
contexto familiar e economicamente diverso dos espaços religiosos públicos.
De resto, a escolha da devoção e do local são fundamentais para se compreender a construção e a articulação do edifício no urbanismo, ou as estratégias dos
seus mentores - se perspectivarmos estes espaços não
apenas como simples locais de culto mas também formas de expressão e promoção familiar e linhagística.
76
ANEXO
Quadro 1 – Resultado do levantamento sobre capelas, administração e devoções em Montemuro
Distrito
Paróquia
Termo do lugar
Orago
Cidade
Almacave
Igreja
Divino Espírito Santo
Cidade
Almacave
Fafel
Santo António
Implantação
periférica
isolada
Padroeiro: instituidor/administrador
Pedro Cardoso Coutinho
Arcediago do Côa
Cidade
Almacave
Foz de Baixo
São João Baptista
[sem dados]
António Guedes de Magalhães Osório
Cidade
Almacave
Almedina
Virgem da Conceição
[sem dados]
José Pacheco de Mendonça
Douro
Alvarenga
Vila
São Francisco
Douro
Alvarenga
Miudal
São João Baptista
Douro
Alvarenga
Várzeas
São José
Douro
Alvarenga
Miudal
Virgem da Conceição
Douro
Alvarenga
Vila
Virgem do Desterro
urbana
Caetano Luís de Barros
periférica
Pedro Mendes Tristão
urbana
Padre José de Morais
urbana
periférica
Bernardo Freire de Andrade
António Caetano de Montenegro
Douro
Anreade
Palma
Santa Ana
[sem dados]
Alexandre Pinto Pereira, sargento-mor
Douro
Anreade
Caldas
Santo Amaro
[sem dados]
Comenda de São Miguel
Douro
Anreade
São Pedro
Douro
Anreade
Fornelos
Virgem da Luz
Douro
Anreade
Outeiro-Adega
Virgem do Bom Sucesso
isolada
isolada
Beneficiado
Família da casa de Fornelos
[sem dados]
António Teixeira
Padre António José
Douro
Anreade
Granja
Virgem dos Remédios
[sem dados]
Serra
Arneirós
Arneirós
Santo António
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Arneirós
Arneirós
Virgem da Conceição
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Arneirós
Arneirós
Virgem da Oliveira
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Arneirós
Arneirós
Virgem do Pilar
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Baltar de Cabril
Dornelas
São Macário
urbana
[Eclesiástico]
Douro
Baltar de Cabril
Avitoreira
Virgem da Piedade
urbana
[Eclesiástico]
Douro
Barrô
Porcas
Santa Bárbara
[sem dados]
Francisco Monteiro Montenegro
Douro
Barrô
Vilar de Suso
Santo António
[sem dados]
João Mourão de Carvalho
Douro
Barrô
Quinta do Torrão
Santo António
[sem dados]
Miguel António
Douro
Barrô
Vilar
São João Baptista
[sem dados]
Jorge Pereira de Albuquerque
António Correia
Douro
Barrô
Quinta da Torre
São Pelágio
[sem dados]
Douro
Barrô
Torre/Pousadouro
São Pelágio
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Barrô
Vila Verde
Virgem da Boa Nova
[sem dados]
Constantino Gomes de Azevedo
Douro
Barrô
Quinta de Pardelhas
Virgem da Conceição
[sem dados]
Domingos de Azevedo
Douro
Barrô
Quinta da Granja
Virgem da Guia
[sem dados]
Padre Estêvão Gomes
Douro
Barrô
Vila Verde
Virgem da Nazaré
[sem dados]
Mosteiro de Salzedas
Douro
Barrô
Ribeira
Virgem do Amparo
[sem dados]
Padre Cónego José Cardoso
Serra
Cambres
Barosa
Santa Ana
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Portelo
Santa Cruz
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Quintião
Santo António
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Mosteiró
Santo António
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Azenha
Santo António
[sem dados]
Serra
Cambres
Quinta dos Religiosos de Salzedas
São Bernardo
[sem dados]
[não identificado/a]
Mosteiro de Salzedas
Serra
Cambres
Lamelas/Portela/Pomarelhe
São Caetano
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Felgueiras
São Domingos
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Rio Bom
São João Baptista
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Mosteiró
São João Baptista
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Rio Bom
São José
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Bouçós
São Pedro
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Mosteiró
Virgem da Assunção
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Selada
Virgem da Boa Nova
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Portelo
Virgem da Conceição
[sem dados]
[não identificado/a]
77
Serra
Cambres
Quinta
Virgem da Ribeira
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Bugalheira
Virgem das Preces
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Mourela
Virgem das Preces
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Bugalheira
Virgem do Desterro
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Estrada
Virgem do Pilar
[sem dados]
[não identificado/a]
Serra
Cambres
Monsul
Virgem do Repouso
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Cinfães
Quinta da Quintã
Menino Jesus
Douro
Cinfães
Ruivas
Santa Quitéria
Douro
Cinfães
Cinfães
Santo António
isolada
[sem dados]
urbana
Manuel Mendes de Vasconcelos
Manuel Pinto Bravo
José Perestrelo de Melo
Douro
Cinfães
Açoreira
Santo António
[sem dados]
Padre António Caldeira de Barros
Douro
Cinfães
Teixeirô
Santo António
[sem dados]
Francisco de Lacerda Pereira
[sem dados]
Douro
Cinfães
Vila Pouca
São Francisco
Douro
Cinfães
Pias
São Gonçalo
urbana
Padre Bernardo Cardoso Amaral
Padre Manuel Pereira
Douro
Cinfães
Fontaínhas
São João Evangelista
isolada
Bartolomeu Dias de Figueiredo
Douro
Cinfães
Quinta de Tintureiros
Senhor Jesus
isolada
João da Cunha Soutomaior
Douro
Cinfães
Souto do Rio
Virgem da Conceição
[sem dados]
Padre Tomás Cardoso de Vasconcelos
Douro
Cinfães
Quinta da Ribeira
Virgem da Conceição
[sem dados]
Francisco de Lacerda Pereira
Douro
Cinfães
Ventuzela
Virgem da Conceição
[sem dados]
Luís Soares de Avelar
Douro
Cinfães
Cidadelhe
Virgem da Guia
[sem dados]
João da Silva
Douro
Cinfães
Tubirais
Virgem da Luz
[sem dados]
Francisco de Lacerda Pereira
Douro
Cinfães
Sequeiro Longo
Virgem do Desterro
[sem dados]
Marcelina de Noronha e Mouta
Douro
Cinfães
Quinta do Pedregal
Virgem do Rosário
[sem dados]
Luís Osório Pereira
Douro
Cinfães
Cinfães
Virgem dos Prazeres
urbana
Domingos Vieira de Melo
Douro
Ermida do Douro
Picão
Virgem da Conceição
isolada
Padre Manuel Teixeira
Douro
Escamarão
Vila Meã
Douro
Espadanedo
Douro
Espadanedo
Douro
Ester
Ester de Baixo
São João Baptista
[sem dados]
Joana Antunes de Guimarães
Virgem da Conceição
[sem dados]
António de Sousa e Vasconcelos
Virgem da Graça
[sem dados]
[sem referência]
urbana
António Peixoto
Padre Manuel Mota da Fonseca
Douro
Felgueiras
Ferrós
São José
[sem dados]
Douro
Ferreiros de Tendais
Crasto de Cio
Santa Bárbara
[sem dados]
D. Catarina
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Covelas
Santo António
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Chã
Santo António
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Ferreiros
Santo António
periférica
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Ribeira
Santo Inácio
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Covelas
São Francisco
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Ferreiros de Tendais
Covelas
São Roque
Douro
Ferreiros de Tendais
Verdozedo
Virgem da Ajuda
Douro
Ferreiros de Tendais
Ferreiros
Virgem da Assunção
Douro
Ferreiros de Tendais
Chã
Virgem dos Prazeres
periférica
[não identificado/a]
[sem dados]
[não identificado/a]
urbana
[sem dados]
Douro
Fornelos
Quinta das Carvalhas
São Sebastião
[sem dados]
Douro
Freigil
Vigião
Divino Espírito Santo
[sem dados]
Douro
Freigil
Caldas
Santa Maria Madalena
[sem dados]
Douro
Freigil
Vigião
Santo António
[sem dados]
[sem dados]
Douro
Freigil
Vinhais
Virgem do Amparo
Douro
Oliveira do Douro
Passô
São Francisco
Douro
Oliveira do Douro
Quinta dos Gravatos
Virgem da Luz
Douro
Oliveira do Douro
Boassas
Virgem do Amparo
Douro
Oliveira do Douro
Quinta de Passô
Virgem dos Remédios
periférica
[sem dados]
urbana
[sem dados]
Não localizada
Não localizada
[não identificado/a]
António Pereira Pinto
[não identificado/a]
José de Melo
Lourenço Ramalho Botelho
Manuel Pereira
José Campelo
António do Amaral Semblano
Afonso Botelho Pinto
Douro
Parada de Ester
Vila
São Francisco
isolada
Padre Manuel Mota da Fonseca
Serra
Penajóia
Molães
Sagrada Família
urbana
Bernardo José Cerqueira de Queirós
Serra
Penajóia
Quinta do Pombal
Santo António
isolada
José Correia da Fonseca
78
Serra
Penajóia
Torre
Santo António
urbana
Clara Maria, viúva
Serra
Penajóia
Pousada
Santo António
urbana
Bernardo José Cerqueira de Queirós
Serra
Penajóia
Fornos
Santo António
urbana
António Cardoso da Fonseca
Serra
Penajóia
Estremadouro
São Francisco
urbana
Padre Álvaro Leite Pereira
Serra
Penajóia
Quinta das Adegas
São João Baptista
isolada
Domingos Francisco Chaves
Serra
Penajóia
Portela
São José
urbana
José Carneiro Tavares
Serra
Penajóia
Quinta de Penim
Virgem da Aravera
isolada
Carlos António
Serra
Penajóia
Corvaceira
Virgem da Lapa
urbana
Domingos Rodrigues
Douro
Picão
Picão
Virgem da Graça
urbana
Religiosa de São Bento
Douro
Pinheiro
Desfeita
Virgem da Piedade
Serra
Samodães
Igreja
Virgem da Assunção
[sem dados]
isolada
Tomé Cardoso
Pedro Cardoso Coutinho
Serra
Sande
Santo André
[sem dados]
José Pacheco de Mendonça
Serra
Sande
Virgem da Guia
[sem dados]
José Gomes
Serra
Sande
Virgem da Piedade
[sem dados]
António Gomes Ramalho
Douro
Santa Marinha de
Nespereira
Paradela
Santo António
[sem dados]
Ana Monteira
Douro
Santa Marinha de
Nespereira
Ervilhais (lugar grande)
Santo António
periférica
Douro
Santo Erício de
Nespereira
Figueiredo
São Francisco
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Santo Erício de
Nespereira
Granja
São Vicente
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Santo Erício de
Nespereira
Pindelo
Virgem da Conceição
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Louredo
São Bento
[sem dados]
Doroteia e irmãs
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Porta
São José
[sem dados]
José António de Oliveira
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Quinta da Grova
São Libório
periférica
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Quinta da Granja
São Miguel
isolada
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Valbom
Senhor Jesus
[sem dados]
Manuel de Lacerda e Vasconcelos
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Outeiro
Virgem
[sem dados]
Úrsula Maria
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Mourilhe
Virgem da Boa Hora
[sem dados]
José Libório de Melo
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Vila Nova
Virgem da Conceição
[sem dados]
António Pinto da Fonseca
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Quinta da Raposeira
Virgem da Conceição
[sem dados]
António Azevedo Leitão
Douro
São Cristóvão de
Nogueira
Temporão
Virgem do Pranto
[sem dados]
Inocêncio Cardoso
Gonçalo Vaz Leitão
Padre Tomás António de Noronha
Inácio Correia de Sousa
Douro
São Tiago de Piães
Cosconhe
Ascensão do Senhor
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta de Antemil
Divino Espírito Santo
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Concela
Santa Ana
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta de Souto Juste
Santa Rosa de Lima
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta de Sequeiros
São Gonçalo
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta da Póvoa
São Gonçalo
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta da Ribeira
São José
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
São Tiago de Piães
Quinta de Antemil
Virgem da Conceição
[sem dados]
[não identificado/a]
Cidade
Sé
Rua Direita
São João Baptista
[sem dados]
António de Araújo Freire de Sousa Borges da
Veiga
Cidade
Sé
Rua do Castelo
Virgem da Boa Morte
[sem dados]
Sebastiana Teresa
Cidade
Sé
Arco da Porta do Sol
Virgem da Graça
[sem dados]
Mosteiro de Salzedas
Cidade
Sé
Lages
Virgem das Virtudes
[sem dados]
Morgado de Balsemão
79
Cidade
Sé
Rua dos Fornos
Virgem do Amparo
[sem dados]
Maria Inácia Pinto de Vilhena
Cidade
Sé
Hospital
[sem referência]
[sem dados]
Hospital
Cidade
Sé
Paço episcopal
[sem referência]
[sem dados]
Bispo
Cidade
Sé
Paço episcopal
[sem referência]
[sem dados]
Bispo
Vilela
Douro
Souselo
Douro
Souselo
Douro
Tarouquela
Igreja
Santo Cristo
[sem dados]
António Vieira Pinto
São Sebastião
[sem dados]
Padre Manuel de Sousa Lima
São João Baptista
isolada
Patrício Manuel Coelho Peixoto
Douro
Tendais
Granja
São Pedro
[sem dados]
Douro
Tendais
Vila de Muros
Senhor da Agonia
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Tendais
Meridãos
Virgem
[sem dados]
[não identificado/a]
Douro
Tendais
Vila de Muros
Virgem
[sem dados]
Douro
Travanca do Douro
Quinta de Miragaia
Santa Eufémia
[sem dados]
Comendador da Ermida
[não identificado/a]
Lourenço José Carneiro Rangel
Douro
Travanca do Douro
Quinta de Loureiro
Santo António
[sem dados]
António de Castro Soutomaior
Douro
Travanca do Douro
Quinta
São João Baptista
[sem dados]
Francisco António Camelo Falcão Pereira da
Silva
80
BIBLIOGRAFIA:
AZEVEDO, Joaquim de (1877) - Historia
Eclesiastica da cidade e Bispado de Lamego. Porto:
[Typographia do Jornal do Porto], 1877.
BLUTEAU, Raphael (1712-1728) – Vocabulario
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Companhia de Jesus.
DAVID, Pierre (1947) - Études sur la Galice et
le Portugal du VIe au XIe siècle. [Coimbra]: Institut
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Lourenço, introd., act. e notas (2003) - Notícias de
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para uma releitura das memórias paroquiais de 1758».
Invenire. n.º 1, 14-17.
RESENDE, Nuno (2012a)- Fervor & Devoção:
Património, culto e espiritualidade nas ermidas de
Montemuro (séculos XVI a XVIII). Porto: Universidade
do Porto.
RESENDE, Nuno (2012b)- Vínculos quebrantáveis.
Coimbra: Palimage. ISBN: 978-989-703-052-9.
VITERBO, J. de Santa Rosa (1798) - Elucidario das
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IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.
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ARAÚJO, João Veloso de - Cambres [Memória
Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível
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WWW:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/
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AZEVEDO, José - São João de Fontoura
[Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758.
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AZEVEDO, José Mendes - Barrô [Memória
Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível
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<http://digitarq.dgarq.gov.pt/
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CARVALHO, Manuel Salter Rios de - Espadanedo
[Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758.
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COSTA, Bernardo Ferreira da - Ester [Memória
Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível
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FERRÃO, Manuel Correia - Pinheiro [Memória
Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível
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<http://digitarq.dgarq.gov.pt/
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GOUVEIA, José da Cunha e - São Cristóvão de
Nogueira [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT,
1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
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PINTO, Luís de Siqueira - Resende [Memória
Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível
em
WWW:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=4241433>.
RANGEL, Manuel José Carneiro - Fornelos
[Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758.
Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
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SILVA, Manuel Ferreira da - Santiago de Piães
[Memória Paroquial de]. Lisboa: IANT/TT, 1758.
Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=4241215>.
TAVEIRA, José de Sousa Maria Evangelista Almacave [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT,
1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.dgarq.
gov.pt/viewer?id=4240473>.
TEIXEIRA, Baltazar Manuel de Carvalho Pinto Oliveira do Douro [Memória Paroquial de]. Lisboa:
IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: <http://digitarq.
dgarq.gov.pt/viewer?id=4240984>.
VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial
de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4240472>.
81
Da intervenção arqueológica ao
Museu de Sítio:
a experiência da Quinta da Ervamoira
texto: J. A. Gonçalves Guimarães
Arqueólogo; coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património
(ASCR-CQ);
( [email protected].)
Nota biográfica:
Joaquim António Gonçalves Guimarães
Nasceu em Mafamude, Vila Nova de Gaia em 1951. Atualmente é secretário
da associação cultural Amigos do Solar Condes de Resende e mesário-mor da sua
Confraria Queirosiana, diretor do Gabinete de História, Arqueologia e Património
e membro da Academia Eça de Queirós. É também membro fundador do Instituto
Português de Sinologia, investigador convidado do Grupo de Estudos de História
da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto da Associação Portuguesa de História
da Vinha e do Vinho (APHVIN/GEHVID), confrade das Confrarias do Vinho do
Porto e do Rabelo, sócio de honra da Sociedade Eça de Queiroz do Recife (Brasil)
e membro de outras instituições culturais e científicas. Recebeu as Medalhas de
Mérito Cultural e Científico do Município de Gaia e da Junta de Freguesia de
Santa Marinha. Desde 1983 é técnico superior da Câmara Municipal de Gaia com
a categoria de arqueólogo assessor principal e desde 1987 director do Solar Condes
de Resende, a casa queirosiana gaiense,
Licenciado em História, mestre em Arqueologia, curso de doutoramento pela
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1991 ingressou com Assistente
no corpo docente da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, onde
lecionou, em período pós laboral até 2004, no Curso de Ciências Históricas e
outros, desde 1994 como Professor Auxiliar convidado; desde então tem igualmente
lecionado neste e noutros estabelecimentos de ensino e organizado cursos livres
do Solar Condes de Resende onde têm colaborado alguns dos maiores especialistas
portugueses nas áreas da Arqueologia, História, Literatura, Arte e Património.
Tem igualmente dirigido levantamentos de Património, orientado seminários
nesta área e do Turismo Cultural, dirigido a montagem de exposições e de núcleos
museológicos e a realização de congressos e outras manifestações culturais.
Concebeu e dirigiu a montagem do programa do Museu de Sítio de Ervamoira no
Vale do Côa inaugurado em 1997.
Participou na fundação de publicações periódicas, tendo colaboração dispersa
por vários títulos da imprensa universitária e também da imprensa local, regional
83
e nacional. Em 1983 obteve o cartão de equiparado a jornalista do Sindicato
dos Jornalistas, actualmente Carteira Profissional de Jornalista (TE-638).
Presentemente é director-adjunto da Revista de Portugal, IIIª série, e do Boletim
Cultural Amigos de Gaia, e responsável pela página “Eça & Outras” publicada ao
dia 25 de cada mês, desde 25 de Novembro de 2004 e presentemente editada em
eca-e-outras.blogspot.com, e no jornal As Artes entre as Letras.
Publicou mais de duzentos trabalhos de investigação, entre eles os livros: Um
português em Londres – cartas de J. M. Virginiano, correspondente dos Ferreiras
da Régua no período pós-napoleónico (edição bilingue, português e inglês). Vila
Nova de Gaia: Casa Ferreira, 1988; Sessenta séculos sobre rodas. Vila Nova de Gaia:
Fundação Salvador Caetano, 1996; Memória histórica dos antigos comerciantes
e industriais de Vila Nova de Gaia: ACIGAIA, 1997; Serra do Pilar Património
Cultural da Humanidade. Vila Nova de Gaia: Fundação Salvador Caetano, 1999;
Prontuário Histórico do Vinho do Porto (com Susana Guimarães), Vila Nova de
Gaia: Gabinete de História e Arqueologia, 2001; São Salvador do Mundo santuário
duriense. São João da Pesqueira: Município e Edições Gailivro, 2007; Marquês de
Soveral Homem do Douro e do Mundo (edição bilingue, português e inglês). São
João da Pesqueira: Município e Edições Gailivro, 2008; Republicanos, monárquicos
e outros. As vereações gaienses durante a 1.ª República (1910-1926). Vila Nova de
Gaia: Confraria Queirosiana; Adriano Ramos Pinto Vinhos e Arte (com Graça
Nicolau de Almeida).Vila Nova de Gaia, Adriano Ramos Pinto, 2013.
[email protected] ; 2014.09.03
Resumo
Em 1974 a Casa Ramos Pinto adquiriu a Quinta de
Santa Maria situada na margem esquerda do Rio Côa,
atravessada pelo caminho que, a vau, ligava as Chãs a
Castelo Melhor.
Rebatizada em 1983 como Quinta da Ervamoira,
das culturas de sequeiro e alguma horticultura
passou a ser uma quinta de vinha plantada segundo
inovadores métodos que se refletiram na qualidade
dos seus vinhos. Em 1984, quando se pensava
aumentar a área do plantio, apareceu um sarcófago em
pedra que desencadeou a intervenção arqueológica no
verão, entre 1985 e 2004 e, a partir de 1996 e até àquele
último ano, uma semana de estudos interdisciplinares
na primavera.
Entretanto ocorre na sua periferia a descoberta da
Arte Rupestre do Côa e desencadeia-se o processo do
seu estudo, valorização e classificação, o qual chamou
a atenção internacional para o Património da região.
Daquela atividade arqueológica e patrimonial
ficaram o Museu de Sítio de Ervamoira e dezenas de
trabalhos publicados sobre esta outra arqueologia do
Vale do Côa.
Abstract
In 1974 Casa Ramos Pinto bought Quinta de Santa
Maria, placed in the left bank of Côa river, crossed by
the path which, by wading, connected Chãs to Castelo
Melhor.
Renamed in 1983 as Quinta da Ervamoira, cereal
cultures and some horticulture were replaced by
vineyards planted according to innovative methods
reflecting in the quality of its wines. In 1984, when the
planting area was about to grow, a stone sarcophagus
appeared, leading to archaeological intervention in
Summer between 1985 and 2004 and, since 1996 until
that same last year, a week of interdisciplinary studies
in Spring.
Meanwhile, on its periphery, Côa Valley Rock Art
was discovered and its study and classification started
catching international attention to the heritage of the
region.
That archaeological and patrimonial activity
resulted in the Museu de Sítio de Ervamoira and many
studies published about this and other archaeology of
the Côa Valley.
Palavras-chave: Côa; Ervamoira; Antiguidade
Tardia; Museu.
Key-words: Côa; Ervamoira; Late Antiquity;
Museum.
84
1. LOCALIZAÇÃO E HISTÓRIA DO SÍTIO
A
Quinta da Ervamoira, antes de 1983
designada como Quinta de Santa
Maria, fica localizada na margem
direita do Rio Côa, com terrenos que
se distribuem pelas freguesias de Chãs e de Muxagata,
concelho de Vila Nova de Foz Côa131.
O seu suporte geomorfológico são as formações
do complexo xisto-grauváquico (RIBEIRO, 2001).
As restantes características físicas, climáticas,
paisagísticas, etnográficas e administrativas estão
já bem descritas em diversa bibliografia do vale e da
região, razão pela qual nos dispensamos de as repetir
aqui, sendo interessante confrontar os relatos existentes
das diversas épocas para se verificar como, mesmo em
região tão remota, e que permaneceu relativamente
isolada e afastada dos grandes centros urbanos até a
chegada do comboio ao Pocinho em 1887, as atividades
primordiais da caça, pastorícia, agricultura, moagem,
produção de cerâmica, navegação, almocrevaria e
exploração de pedreiras e minas, se foram modificando
ao longo dos tempos, sobretudo depois da 2.ª Grande
Guerra, acabando por se extinguirem algumas delas
e outras estão em vias de acelerado desaparecimento
em virtude da omnipresença recente da economia do
vinho e do turismo132.
131 Sobre a sua localização e limites ver TRABULO, 2000
e idem, 2008, pagela que teve a gentileza de me enviar a
28.04.2008; sobre a evolução administrativa da região ver
COIXÃO & TRABULO, 1995.
132 Ver os textos dos anos 30 do século passado
publicados em MARQUES, 1995; sobre a atividade olárica
ver PINTO, 1998, e idem 2000; sobre a atividade moageira
ver TRABULO, 1992: 203-206, GUIMARÃES, 2000 a e
TRABULO, 2000: 79 e seg.s; sobre a rentabilização dos
recursos da região, nomeadamente os culturais, ainda
que parcelar e sob discussão, ver ROSAS, 2006; sobre as
condições climáticas e de Património Natural ver, entre
outros, alguns textos publicados em LIMA, 1998, e TOMÉ
& CATRY, 2008.
FIG. 1 – A Quinta da Ervamoira no Parque Arqueológico do Vale
do Côa.
Antes da nossa intervenção arqueológica nesta
quinta a sua história era vaga, para não dizer ignorada
e reduzida a escritos eclesiásticos que pouco mais
referiam que a sua capela, datados de 1733, 1758 e finais
do século XVIII133. Abandonada esta, a sua imagem
de roca de Nossa Senhora foi levada para a igreja das
Chãs, onde ainda hoje de encontra (TRABULO, 1992:
126 e 163; GUIMARÃES, 1997: 26/27; TRABULO,
2000: 94). Da sua antiga implantação ficou um
terreiro socalcado, com vestígios das suas paredes e,
no lado oposto, a norte, as de um telheiro para abrigo
dos animais dos romeiros, área que escavamos com
133 ANTT, Tombo da Comenda de St.ª Maria de Longroiva,
Meda e Muxagata, de 1773; ANTT, Memórias Paroquiais,
1758; História Eclesiástica da Cidade e Bispado de Lamego,
de D. Joaquim de Azevedo, 1877; excertos transcritos em
TRABULO, 2000: 51/52; 53/54 e 55; e GUIMARÂES, 2003:
73.
85
resultados já parcialmente publicados (GUIMARÃES,
2010: 162-174).
Subsistindo alguma memória oral recente pelo
facto de se encontrar arrendada há várias gerações à
família Sobral das Chãs, sendo propriedade de uma
outra família de Valongo dos Azeites, São João da
Pesqueira, foi a sua compra pela Casa Ramos Pinto
em 1974 que lhe mudou o rumo produtivo dos cereais
e hortícolas de subsistência para a grande produção
vinícola, passando a ser uma das propriedades de
referência do Douro Superior e de toda a região
demarcada para a produção de vinho de mesa e do
Porto134. O antigo rendeiro foi mantido como feitor,
tendo alertado os novos proprietários para a existência
na quinta de vestígios «dos antigos» que importava
respeitar aquando da surriba dos terrenos para as
novas plantações, o que veio a acontecer135. A história
recente da propriedade está contada numa obra
entretanto publicada em que somos um dos autores
(ALMEIDA & GUIMARÃES, 2013: 284-295).
A quinta tem uma casa antiga, construída no estilo
da região, com paredes de xisto rematadas por cunhais
e padieiras de granito, a qual poderá ter sido refeita e
alargada ao longo dos tempos com silharia proveniente
de outras construções nas redondezas, desde materiais
romanos até cantarias de uma ponte localizada para
montante perto da quinta e há muito tempo derruída.
No lado sul, separada da casa principal, fica a casa
do forno, com o dito no interior, tendo sido também
utilizados na sua construção antigos silhares e cantarias
de granito. Como entretanto foi construída uma outra
casa recente na quinta ainda nos anos oitenta, aquela
foi ficando abandonada e destituída de funções, pelo
que em 1996 foi decidido transformá-la em Museu de
Sítio (GUIMARÃES, 1998a: 149-185 e idem, 1998b:
205-208).
134 Sobre
as potencialidades vinícolas da região ver, entre
outros, ALMEIDA, 1990: 17-30 e CARVALHO, 2005.
135 Deixo aqui as minhas homenagens, e as de toda a
equipa, a esse homem probo e infatigável, o Senhor José
do Nascimento Sobral, feitor de Ervamoira, que por entre
os infinitos afazeres da quinta, sempre acompanhou os
trabalhos arqueológicos e outros, proporcionando-nos as
melhores condições de alojamento, alimentação, transportes
e conhecimento da região.
2. A ARQUEOLOGIA NA REGIÃO ANTES DA
CRIAÇÃO DO PARQUE ARQUEOLÓGICO DO
VALE DO CÔA (PAVC)
P
or volta de 1939 o médico e autarca
fozcoense, Dr. José Silvério de Andrade,
que habitualmente «calcorreava os sítios
isolados do Vale do Côa», terá reparado
que as suas rochas apresentavam gravuras que terá
divulgado em meios restritos, sem qualquer resultado
para o seu estudo (BAPTISTA, 1999: 42 Nota 3). A
sua existência, ainda que precariamente conhecida,
e a ocorrência de outros objetos avulsos que iam
aparecendo, levaram o arqueólogo e professor Adriano
Vasco Rodrigues, profundo conhecedor da região de
onde é natural, a equacionar, logo nos anos cinquenta
do século passado, o enorme potencial arqueológico
pré-histórico do vale do Côa, aspeto para o qual foi
chamando a atenção em vários trabalhos que foi
publicando136. Entretanto em 1960, D. Domingos
de Pinho Brandão, que se dedicava ao estudo da
epigrafia romana, às vezes em colaboração com o
referido arqueólogo no que diz respeito a esta região,
publica a ara dedicada a Júpiter da igreja de Vila Nova
de Foz Côa (BRANDÃO, 1960: 66-70), iniciandose aqui os estudos de arqueologia romana por parte
destes dois investigadores, o segundo dos quais tem
vindo a publicar também as suas antigas recolhas
de instrumentos e vestígios pré-históricos da região
(RODRIGUES, 2003: 159-167; idem, 2005:179-184).
Em 1977, Nelson Campos Rebanda, ainda
estudante, toma conhecimento da existência, na
margem direita do Rio Douro, do grupo de gravuras
do cavalo do Mazouco, que haveria de revisitar e
anotar já como aluno da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (FLUP) em 1981, dando de tal
conhecimento aos seus professores que de imediato ali
se deslocam e publicam os primeiros artigos sobre o
achado (REBANDA, 1998: 145-147; JORGE; JORGE;
ALMEIDA, SANCHES & SOEIRO, 1981 e idem,
1982; JORGE; JORGE; SANCHES & RIBEIRO, 1982).
Estava iniciado o estudo da Arte Paleolítica na região
que haveria de conhecer dias deslumbrantes.
136 Cf. RODRIGUES, 1976: 6; RODRIGUES, 1983: 21 e
seg.s; para os trabalhos deste autor e os de outros arqueólogos
citados neste trabalho, ver a sua relação em OLIVEIRA
1984, e idem 1985.
86
Em meados de 1982, uma equipa da Unidade de
Arqueologia da Universidade do Minho desloca-se
para a região para realizar «os trabalhos de prospecção
das zonas que em breve seriam submersas pelas águas
da albufeira da barragem do Pocinho» e descobre
«um primeiro grupo de 5 rochas insculturadas na
margem esquerda do rio Douro, no sítio do Vale da
Casa (freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa)»,
depois estudadas e publicadas por António Martinho
Baptista (BAPTISTA, 1983: 57-69), tendo então este
arqueólogo concluído que este sítio «teve pelo menos
duas fases distintas de ocupação», preconizando
estes primeiros achados o que na década de noventa
haveria de ser detetado ao longo do Vale do Côa. Mas
a prospeção não teve então imediata continuidade.
Ainda em 1980, em Freixo de Numão, é fundada,
por António do Nascimento Sá Coixão, professor
e arqueólogo, e alguns mais, a Associação Cultural,
Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão
(ACDR), que tinha em vista, entre outros propósitos,
a elaboração da Carta Arqueológica do concelho, que
virá a realizar. O referido arqueólogo inicia escavações
naquela localidade em 1982, e depois noutras estações
romanas da região, as quais tiveram continuidade até
aos dias de hoje, estando algumas delas já musealizadas
(COIXÃO, 2013).
Do outro lado do rio Douro, em Moncorvo, em
1983, também fundado por alunos da FLUP, tinha
nascido o Projecto Arqueológico da Região de
Moncorvo (PARM), que oficializou a sua existência
em 1986, o qual faria diversas intervenções na área
também até à atualidade, estando na origem da criação
do Museu do Ferro (CAMPOS, 2013).
Em novembro de 1984, o autor deste texto, como
membro do Gabinete de História e Arqueologia de
Vila Nova de Gaia (GHAVNG), fundado em 1982, a
pedido de José Ramos-Pinto Rosas, administrador
da Casa Ramos Pinto, com o administrador Ricardo
Nicolau de Almeida e a arqueóloga Maria da Graça
Peixoto, visitou na Quinta da Ervamoira o local onde
o feitor tinha alertado para a existência de uma «caixa
de pedra dos antigos» que importava avaliar. No ano
seguinte, logo na primavera, iniciamos o seu estudo,
o que daria origem no verão seguinte, à descoberta
da estação arqueológica aí existente, cujos primeiros
resultados foram apresentados numa sessão do 1.º
Congresso Internacional sobre o Rio Douro realizada
na Universidade de Vila Real a 29 de abril de 1986.
Desde 1985 decorreu naquela quinta uma campanha
anual no verão até 2004, complementada desde 1997,
com as Semanas de Estudos Especializados realizadas
nas férias da primavera, também organizadas pelo
GHAVNG com a colaboração da Universidade
Portucalense Infante D. Henrique (UPT), onde
exercíamos a docência, em horário pós-laboral desde
1991, e do Departamento de Biologia da Faculdade
de Ciências da Universidade do Porto (FCUP);
(GUIMARÃES & PEIXOTO, 1988; idem, idem, 1994:
235-262; GUIMARÃES, 2004: 141-151)137.
FIG. 2 – Início da intervenção arqueológica em Ervamoira, abril
de 1985; fotografia de J. A. G. G..
Entretanto Sá Coixão prosseguia o seu trabalho
nas estações arqueológicas que ia descobrindo em
volta de Freixo de Numão, enquanto completava o
levantamento da Carta Arqueológica do Concelho de
Vila Nova de Foz Côa, com alargamento aos vizinhos
concelhos da Meda e de S. João da Pesqueira, o qual
lhe vinha revelando novos sítios da Pré-história
Recente que importava estudar. Consciente de que não
o podia, nem devia, fazer sozinho, em 1989 convida
a deslocarem-se ao concelho os professores da FLUP,
Susana Oliveira Jorge e Vítor Oliveira Jorge, a quem
entrega nesse ano o estudo do chamado Castelo Velho,
a que se seguiria o de Castanheiro do Vento, a partir
de 1998, ao segundo daqueles professores. O primeiro
local, depois de intervencionado, foi musealizado
e aberto ao público em 2005; o segundo, tendo
137 De
que é diretor o Prof. Doutor Talhadas dos Santos,
que dirigiu várias destas semanas entusiasmando os seus
alunos no estudo da fauna, da flora e da ecologia do Vale
do Côa.
87
começado a ser intervencionado em 2003, continuou a
ser estudado até à atualidade. Entretanto, compilando
todas as informações orais, recolha de materiais,
conhecimento pessoal dos sítios, resultados das
prospeções e escavações, Sá Coixão apresenta naquela
Faculdade a sua dissertação de mestrado sobre “A
ocupação humana na Pré-história Recente na Região
de Entre Côa e Távora”, publicada em 1999 (COIXÃO,
1999 a; JORGE; CARDOSO; PEREIRA & COIXÂO;
JORGE, 2013: 143-158).
Com a nossa intervenção em Ervamoira a decorrer,
íamos percebendo que o sítio tinha ocupação tardoromana e vestígios da Antiguidade Tardia, mas
também medievais, pelo que passamos a redobrar a
atenção para os dados sobre a ocupação medieva da
região, nomeadamente algumas referências sobre a
história dos castelos138, enquanto decorriam já algumas
intervenções arqueológicas para esta época no adro da
igreja de Freixo de Numão (1985-1986), na igreja e
necrópole medieval do Prazo (1995-1996), e em outras
necrópoles e templos medievais da região (COIXÃO,
1999b). Pelo menos desde 1993 que Michael Mathias,
arqueólogo da Universidade da Beira Interior, se vinha
também interessando pelo povoamento medieval
da região de Riba Côa, tendo em 1997 iniciado o
levantamento do Castelo Melhor, e realizado aí
sondagens arqueológicas, que se prolongaram até 2000
(MATHIAS, 1995 p. 495-501; idem 2000: 35-46).
FIG. 3 – Quinta da Ervamoira: estação romana e medieval (A);
área da antiga capela (B): casada quinta (C); fotografia de J: A.
G. G..
138 Em outubro de 1987 apresentamos no IV Congresso sobre
Monumentos Militares Portugueses, que decorreu em Santarém,
uma comunicação sobre castelologia medieval da Terra de Numão
(GUIMARÃES, 1987), mas as atas não foram publicadas, pelo que
tencionamos publicar esse trabalho, devidamente atualizado, noutra
publicação. Entretanto, ver BARROCA, 1991: 88- 136.
A partir de 1993 torna-se pública a decisão de
avançar com a construção da barragem do Côa, a qual,
se fosse feita, ia alterar completamente o clima da região
e submergir grande parte do Património Natural,
Vitivinícola e Arqueológico do Vale numa extensa área,
tendo-se iniciado os trabalhos para a sua construção.
Anteriormente tinha havido um levantamento do
Património Arqueológico do Vale para o Estudo do
Impacto Ambiental, com a identificação de sítios com
arte rupestre pré-histórica e outros vestígios de outras
épocas, o suficiente para indiciar que deveria ser feito
um levantamento muito mais exaustivo da área a
submergir. Em consequência, a 22 de março de 1993 é
formalizado um protocolo entre o Instituto Português
do Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAR)
e a Electricidade de Portugal (EDP), o qual institui
uma equipa para tal liderada pelo arqueólogo Nelson
Campos Rebanda que, à medida que os seus trabalhos
vão revelando mais e mais gravuras, rapidamente
descobre «que este conjunto de arte rupestre
paleolítica é, de momento, o maior que se conhece ao
ar livre na Europa Ocidental, o que rompe com a ideia
de uma arte essencialmente cavernícola» (REBANDA,
1995: 15). Entretanto vai apresentando o resultado do
seu levantamento e da, até aí, insuspeitada riqueza
cultural das gravuras à sua tutela do IPPAR, que, quer
a nível nacional, quer regional, era então dirigida por
arquitetos sem qualquer sensibilidade e currículo
para entenderem a importância destes achados, não
só por parte de quem então dirigia o IPPAR-Norte,
como também dos engenheiros da EDP, que davam a
construção da barragem como facto consumado e os
resultados complementares do levantamento um mero
pro forma “para memória futura”139. Proporão depois o
corte das pedras com gravuras e a sua arrecadação no
Museu a construir. Perante esse panorama, o referido
arqueólogo consegue que seja aprovada a ida ao Côa
de vários arqueólogos especialistas em arte rupestre9,
os quais não só confirmam a importância mundial dos
achados, como de imediato apelam à suspensão dos
trabalhos da barragem que os ia submergir. O processo,
a partir daí, passa para a opinião pública através dos
media, tendo sido em 1994 e 1995, um caso singular
de debate generalizado na sociedade portuguesa sobre
139 Foram convidados a ir ao Côa reavaliar o interesse das gravuras,
por proposta de Nelson Rebanda, ainda em novembro de 1994, entre
outros, os arqueólogos Mário Varela Gomes, António Martinho Baptista
e a geóloga Mila Abreu, ficando os dois primeiros encarregados de a
partir daí passarem a orientar os levantamentos artísticas das gravuras; cf.
BAPTISTA, 1999: 9 e 43 Nota 4.
88
a importância do Património Cultural e a valorização
de um sítio com enorme carga cultural face aos
interesses da política do betão, da metalomecânica e
da energia dita limpa, que na realidade suja e mata,
biologicamente falando, a área das albufeiras e altera
o clima da região circundante, tendo-se já então vindo
a questionar a sua rentabilidade económica face à
produção de energia em Portugal e na Europa140.
A 17 de janeiro de 1996 o governo decidiu suspender
os trabalhos da construção da barragem, mas já antes
a classe profissional dos arqueólogos se preparava
para apresentar planos alternativos. Assim, logo no
primeiro semestre de 1995 a Pro APA – Associação
Profissional de Arqueólogos, apresenta a sua proposta
“Parque Arqueológico do Côa. Ideias e Propostas
para um projeto” (LIMA; CORREIA & SILVA 1995,
também publicada em JORGE 1995: 225-258), a qual
contemplava não apenas o Património Pré-histórico,
mas também todo o restante de todas as outras épocas,
como evidência a considerar e valorizar na área do
parque, através de centros de acolhimento, articulados
com o Museu/ Núcleo Central, política essa que não
foi seguida após a inauguração do PAVC a 10 de agosto
de 1996 e da sua inclusão na lei orgânica do entretanto
criado Instituto Português de Arqueologia (IPA) a
14 de maio de 1997, da declaração de Património
Cultural da Humanidade a 5 de dezembro de 1998,
nem da inauguração do Museu Arqueológico do Côa a
30 de julho de 2010, pois todo o trabalho desenvolvido
pela sua institucionalização foi sempre voltado para
o Paleolítico e para a Pré-história, com algumas
manifestações muito pontuais sobre outros aspetos
da arqueologia de outras épocas na região, nas quais o
PACV fatalmente tropeça, porque estão lá141.
Face a este panorama, quer os projetos de Sá Coixão,
140 Ver vários depoimentos, de profissionais de diversas áreas, em
JORGE, 1995 (Dossier Côa editado pela SPAE), todos eles aqui a favor
da suspensão da barragem. A favor da sua construção foram também
publicados diversos textos, quer pela EDP, quer por outras entidades,
nomeadamente a Universidade do Porto, que no seu Boletim n.º 25, ano
V, 1995, publica um artigo de um professor de Engenharia a favor da
construção da barragem.
141 O PAVC tentou, pelo menos em alguns momentos, reunir toda a
informação arqueológica e histórica sobre o Vale do Côa: veja-me, por
exemplo, LIMA, 1998; mas quer o programa do Museu do Côa quer as
ações concretas no terreno, estiveram sempre maioritariamente voltadas
para o Paleolítico e a Pré-História, o mesmo acontecendo noutras
intervenções realizadas na região fora do programa do PAVC, em que a
lição pré-histórica foi hipervalorizada em desfavor da evidente arqueologia
de outras épocas. Tal limitação tem passado para as universidades e
institutos estatais, nomeadamente a UTAD e o Instituto Politécnico de
Tomar, conforme se pode ver em RODRIGUES & SANTOS, 2011.
em volta de Freixo de Numão, mas também noutros
sítios do território, quer o projeto de Ervamoira,
continuaram pois a ser desenvolvidos pelos respetivos
titulares, tentando adaptar-se às novas circunstâncias,
mas pouco beneficiando delas, a não ser, talvez, mais
alguma visibilidade142.
Foi assim que também logo em 1995, afastado que
estava o espectro da barragem, quando interrogado
pela administração da Casa Ramos Pinto sobre
que destino dar ao trabalho em volta das ruínas
arqueológicas, já então com uma década, propusemos
e começamos de imediato a desenvolver um projeto
para a transformação da velha casa da quinta num
Museu de Sítio que mostrasse o espólio daquela granja
agrícola no contexto da arqueologia da região, com um
programa de interpretação desde a geologia, passando
pela flora e fauna, e as diversas épocas históricas até
à contemporaneidade, que desse apoio institucional
à prossecução dos trabalhos de estudo dos materiais
e outros saídos do labor científico desenvolvido ao
longo destes anos (GUIMARÃES, 1997; idem 1998a;
idem 1998b; idem 1999; idem 2000 b; idem 2000 c;
idem 2003; idem 2010). Na área que então a quinta
abrangia, embora tivesse aparecido alguma cerâmica
pré-romana descontextualizada no entulhamento das
ruínas, não tinham então sido descobertas quaisquer
gravuras ou outros vestígios pré-históricos143, a não ser
na vizinha Ribeira de Piscos, a norte e na Quinta da
Barca, a sul, fora portanto da sua área.
142 Conforme consta dos respetivos relatórios sobre a nossa intervenção
em Ervamoira, para além do apoio logístico da Casa Ramos Pinto às
escavações, estas tiveram também algum apoio financeiro para materiais,
equipamentos e pagamento a arqueólogos de campo, por parte dos
serviços, com sucessivos nomes, do Ministério da Cultura que tutelavam
a atividade arqueológica.
143 Em 2000 foram feitas nas Olgas de Ervamoira, em patamares de
acumulação de sedimentos do Côa, várias e profundas sondagens pelos
arqueólogos do PAVC, que se revelaram interessantes para o estudo da
geologia e geomorfologia ribeirinhas e datação destes depósitos fluviais,
que noutros locais do vale têm apresentado vestígios da ocupação humana,
mas que aqui foram uma total frustração, pois os vestígios encontrados
foram poucos e frustes; cf. AUBRY; DIMMUCCIO; SAMPAIO & SANTOS,
2010:133-143.
89
FIG. 4
Considerando que até aí, a equipa, na sua maior
parte constituída por alunos de Arqueologia da
FLUP e pelos nossos alunos de Ciências Históricas
– Ramo Património da UPT, além de um geólogo e
outros, se tinha quase exclusivamente debruçado
sobre as escavações e que importava alargar-lhe os
horizontes interdisciplinares, na primavera de 1997
iniciamos as Semanas de Estudos Especializados
(SEE); (GUIMARÃES; 2004 a), com equipas
alargadas à participação de geólogos, biológicos
e patrimoniólogos e, pontualmente, engenheiros
topógrafos, uma paleopatologista para os restos
humanos esqueletizados (MENDONÇA; AFONSO
& GUIMARÃES, 1999), um pintor, e alguns outros
estudantes de outras áreas. Estas semanas produziram
bibliografia sobre trabalhos específicos, quer sobre a
90
quinta, quer sobre a região, dos quais salientamos, os
sobre a olaria tradicional (PINTO, 1998, e idem 2000),
entomologia144, para além, naturalmente, dos estudos
sobre os vestígios e materiais exumados na estação145.
Enquanto concebíamos o programa da criação do
Museu de Sítio de Ervamoira (MSE), em harmonioso
diálogo com o Arq.to Arnaldo Pimentel Barbosa, autor
do projeto de adaptação da velha casa, a sua primeira
versão foi apresentada pela administração ao então
primeiro-ministro, Eng.º António Guterres, em visita
à quinta a 12 de outubro de 1996, e depois aos chefes
de estado, Dr. Jorge Sampaio, presidente da República
Portuguesa e D. Juan Carlos I, rei de Espanha, e
também ao presidente da UNESCO, Federico Mayor,
que os acompanhou na visita ao Côa a 7 de julho
de 1997. Tivemos depois apenas um ano, em parttime, fora do nosso trabalho com diretor do Solar
Condes de Resende e para além do tempo dedicado à
docência em horário pós-laboral, para concebermos e
concretizarmos o discurso expositivo do Museu, o qual
foi montado em tempo recorde, com a colaboração
de alguns elementos da equipa de Ervamoira e de
alguns funcionários do Solar Condes de Resende a
título pessoal, que trabalhando dia e noite aos fins
de semana, ao lado do pessoal da construção civil, o
tiveram pronto para a inauguração a 1 de novembro
de 1997 pelo ministro da Cultura, Professor Doutor
Manuel Maria Carrilho. Tínhamos já então também
sugerido a musealização das ruínas arqueológicas,
então em fase final de intervenção na área descoberta,
criando um circuito de visita à quinta, por via fluvial
ou terrestre, complementado com a visita ao Museu de
Sítio e articulado com as visitas aos núcleos de gravuras
organizadas pelo PAVC (GUIMARÃES, 2003), o que
não viria a acontecer, até porque, entretanto, a Casa
Ramos Pinto tinha sido adquirida por uma empresa
vinícola francesa, a Casa Roederer, que embora
continuasse a apoiar o projeto do Museu de Sítio,
não tinha exatamente o mesmo background cultural
da empresa portuguesa que entretanto adquirira. Em
França, por exemplo, sendo uma empresa centenária,
nem sequer tinha arquivo histórico, por contraste com
a empresa portuguesa, uma das poucas que têm o
arquivo em fase de organização, denominado Arquivo
144 CF. GROSSO-SILVA, 2003: 6-25, onde este entomólogo apresenta
diversas espécies de insetos referenciados em Ervamoira e no Vale do
Côa, tendo ainda outra bibliografia sobre espécies endémicas na região
publicada no Boletim da Sociedade Entomologica Aragonesa, Saragoça.
145 Uma bibliografia sobre os trabalhos nesta estação, embora
incompleta, pode ser vista em ALMEIDA & GUIMARÃES, 2013: 355-358.
Histórico Adriano Ramos Pinto (AHARP).
Para nós a estação arqueológica da Quinta da
Ervamoira, e os trabalhos a que ia dando origem, só
faziam sentido se articulados com o conhecimento
da região e a sua complementaridade em franca
colaboração com todos os seus agentes culturais e,
em primeiro lugar, com os arqueólogos por motivos
óbvios. Os trabalhos interdisciplinares que ali
promovemos foram sempre disponibilizados a todos
os que os procuraram. Creio que também por todos
estes motivos, foi classificada como monumento
nacional, com os restantes sítios arqueológicos já
então conhecidos no Vale do Côa, através de despacho
do Ministro da Cultura de 13 de agosto de 1996.
FIG. 5 – Apresentação do projeto do Museu de Sítio de Ervamoira
ao Presidente da República Portuguesa e ao Rei de Espanha no
Vale do Côa a 6 de junho de 1997; fotografia do AHARP.
91
3. APÓS A CRIAÇÃO DO PAVC
A
institucionalização do PAVC, com
todas as contradições que possa
ter tido, foi um momento alto da
Arqueologia portuguesa. Mas não
precisava de ter cometido as injustiças que cometeu
contra alguns daqueles que contribuíram para o
desenrolar do processo, enquanto que alguns outros
com responsabilidades na área da Cultura, que até
alinharam com os seus detratores, passaram incólumes
a uma situação de esquecimento confortável. Ao longo
destes anos é indubitável que a instituição produziu
um muito bom trabalho no que diz respeito à Arte
Rupestre do Côa, da Pré-história nacional, peninsular
e mundial, nos aspetos da prospeção, interpretação
e musealização, que já serviram de paradigma para
outras manifestações noutras latitudes. (RODRIGUES;
LIMA & SANTOS 2011, artigos de vários autores).
Mas a restante arqueologia, da proto-história à
industrial, foi deixada a outras entidades, como foi
o caso de Ervamoira, até porque é propriedade de
uma entidade privada, não tendo os nossos trabalhos
recebido qualquer apoio do programa PROCÔA,
entretanto implementado, nem sequer para publicar
os textos entretanto produzidos, que têm vindo a
ser disponibilizados em várias revistas nacionais e
estrangeiras, mas dispersos.
FIG. 6 – Inauguração do Museu de Sítio de Ervamoira pelo Ministro da Cultura a 1 de novembro de 1997; fotografia do AHARP.
Antes e após a inauguração do MSE, e enquanto as
escavações e as SEE prosseguiam para lhe aumentar
os conteúdos, tivemos o grato prazer de acompanhar
a visita ao local de diversas personalidades do mundo
académico que deixaram expresso no Livro de Honra
da quinta palavras de apreço e incentivo. Logo a
22 de abril de 1955 tivemos a visita de estudo pelos
professores e alunos de geologia da FCUP conjunta
com os de Património da UPT, que visitaram, entre
castelos, pedreiras e o Museu do Ferro de Moncorvo,
as ruínas de Ervamoira e as gravuras da Ribeira dos
Piscos guiados por Nelson Rebanda, a que se seguiu
o último grande almoço na casa velha da quinta antes
da sua remodelação. Já depois da abertura do Museu
ao público aí recebemos o Professor Henry Cleere do
ICOMOS, trazido pela Universidade Portucalense
a 20 de novembro de 1998, de que recordamos o
seu entusiasmo com as gravuras que viu então pela
primeira vez in situ, mas também pelo conteúdo e
funcionamento do Museu de Ervamoira e pelos vinhos
que a quinta produz, aos quais teceu encomiásticos
louvores. Também aí decorreu o almoço e uma das
sessões do Encontro Anual de Paleopatologia Ibérica,
com alguns dos maiores especialistas ibéricos na
matéria trazidos pela Professora Doutora Maria
Cristina de Mendonça a ver a mandíbula humana a 29
de maio de 2000 e no dia seguinte o Museu da Casa
Grande de Freixo de Numão, que apresenta nas suas
coleções alguns esqueletos (COIXÃO, 1999 b).
A 16 de novembro de 2001 foi a vez dos professores
Gaspar Martins Pereira, da FLUP, e François Guichard
e Philippe Roudié de Bordéus, tendo-me este último
pedido autorização para copiar a ideia deste Museu de
Sítio para instalar um semelhante numa quinta daquela
região vinícola francesa. E a estas prestigiosas visitas
outras se seguiram, também de escritores, políticos,
artistas, jornalistas e público anónimo, pois o Museu
encontra-se sempre disponível para acolher visitas de
grupos, com marcação prévia devido à necessidade de
assegurar o transporte e as refeições, se for o caso.
Por sua vez a ACDR de Freixo de Numão, também
numa postura de boa colaboração com o PAVC desde a
sua criação, continuou a desenvolver os seus trabalhos,
vindo a equipa de Sá Coixão em 2003 a descobrir a
notável vila romana de Vale do Mouro, Coriscada,
Meda, desde aí intervencionada com notável proveito
para a arqueologia nacional, estando já em parte
musealizada, numa política de valorização de vários
92
núcleos espalhados pela região, como complemento,
ainda que não institucional, do Museu do Côa e do
PAVC, pois são geridos e rentabilizados por outras
entidades (COIXÃO & NALDINHO 2011: 479-506).
Por sua vez, no que diz respeito a grandes
encontros profissionais sobre a região, o 1.º Congresso
Internacional sobre o Rio Douro, com a presença de
estudos sobre arqueologia, foi realizado em 1986 pelo
Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de
Gaia, que em 1996 realizou o segundo, em colaboração
com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
(UTAD). Aí virá também a decorrer o 3º Congresso
de Arqueologia Peninsular, em setembro de 1999,
organizado pela Associação para o Desenvolvimento
da Cooperação em Arqueologia Peninsular
(ADECAP). A própria ACDR, em colaboração com
diversas entidades da região, realizou já desde 2004
cinco Congressos de Arqueologia, com diferentes
amplitudes e incidências. Todos estes aspetos, e
muitos outros, a que devemos juntar as realizações
do PARM, transformaram Vila Nova de Foz Côa
num local obrigatório da arqueologia nacional, ao
lado de Braga, Coimbra, Lisboa, Mértola e Silves,
pelo menos. A Arqueologia, aliada à Vitivinicultura, à
Olivicultura, à Gastronomia e ao Turismo, contribuiu
assim para o progresso e o desenvolvimento da região,
o que infelizmente ainda não aconteceu com outros
setores, que só lentamente irão despertando, como é o
caso da agricultura de outras produções que já foram
tradicionais, como a amêndoa, os figos, o sumagre ou
os melões, que hoje quase aqui não existem ou são
residuais em termos de produção.
Mas há quem não goste de Arqueologia ou não
entenda a sua função cultural e social. Isso ficou bem
patente na discussão sobre o interesse mundial das
gravuras do Côa que se desenvolveu ao longo de 1994
e 1995; isso tem vindo a ficar evidente em algumas
declarações de alguns políticos, jornalistas e outros
opinion makers, mal informados, mal instruídos ou ao
serviço de outros interesses. Este já longo arrazoado,
apesar do que foi dito, breve e lacunar, mais não
se destina senão a ser uma possível moldura para
enquadramento dos trabalhos de Ervamoira, e dos
outros sítios arqueológicos por nós estudados ou
escavados na região146.
146 Sobre os nossos trabalhos noutras estações arqueológicas do Vale
do Douro, veja-se GUIMARÃES, 2006 a; idem 2006 b; idem 2007; idem
2008 a; idem 2008 b, idem 2009; idem 2013; SILVA & GUIMARÃES, 2013;
e GUIMARÃES, 2014.
4. A ESTAÇÃO ARQUEOLÓGICA DE
ERVAMOIRA
A
pós as campanhas realizadas entre
1984 e 2004, e as Semanas de Estudos
Especializados entre 1996 e 2004,
pelas quais passaram 174 pessoas
diferentes, entre as quais o diretor da escavação 20
anos e alguns outros membros da equipa pelo menos
10, ora seguidos, ora interpolados, e que, em alguns
casos, terão decidido o seu futuro profissional ainda
enquanto estudantes, importa agora aqui escrever, em
resumo, o que ficou desse labor.
Para além da experiência pessoal de muitos, antes
e depois da descoberta das gravuras, ficaram, antes de
mais, a bibliografia publicada e o Museu de Sítio, onde
se exibe o principal espólio da estação num discurso
claro para seu entendimento e a sua relação com a
região e outros locais mais distantes, cuja exposição,
após o primeiro programa de 1997, foi por nós refeita
e ampliada em 2004. No terreno ficaram as ruínas
romanas e medievais, que propusemos consolidar
e musealizar, mas que, até hoje, tal não foi possível
(GUIMARÃES, 2003).
93
FIG. 7 – A estação arqueológica ainda em fase de intervenção, 1996; fotografia de Paulo Magalhães.
A primeira área a ser intervencionada foi o local
no alto da colina da estação onde apareceu o sarcófago
de pedra, partido e deslocado, mas que, curiosamente,
tinha sido colocado sobre uma sepultura aberta e
talhada no xisto, com rebaixamento lateral em toda a
bordadura e que em tempos esteve coberta por placas
de xisto, que o peso do sarcófago partiu, mas que não
tinha qualquer espólio. Seria uma zona de necrópole
para os poucos habitantes do local (GUIMARÃES &
PEIXOTO, 1988; GUIMARÃES, 2000 b).
Note-se que, à época do início da intervenção, era
a única escavação romana no Vale do Baixo Côa e
não havia então paralelos diretos para a região, o que
felizmente hoje não acontece (PERESTRELO, 2003;
COSME, 2013). Pelo facto de esta estação apresentar,
logo no início dos trabalhos, abundantes fragmentos
de sigillata, vidros e elementos arquitetónicos clássicos
talhados em aplito, chegamos a pensar tratar-se de uma
villa, mas com o desenrolar da escavação verificamos
que o conjunto edificado romano, composto
essencialmente por três edifícios justapostos, ocupava
apenas uma área de cerca de 2000 m2, o primeiro
medindo 18,8x7 metros, orientado no sentido NO/
SE, e que designamos como taberna por apresentar no
interior, e sob a queda da cobertura de tegulae, muitos
fragmentos de louça de copa e de cozinha; o segundo,
um grande edifício com alguma evidência de ter
tido algumas divisões internas, com 31x15,3 metros,
orientado no sentido SO/NE, infelizmente muito
destruído em algumas pates pela lavra do sítio durante
anos ou décadas, tinha no interior algum material
cerâmico de armazenagem. Finalmente um terceiro
edifício, alinhado com o primeiro, mas ligeiramente
mais largo, com 15,2x9,7 metros, orientado no sentido
NO/SE e que interpretamos como sendo uma basílica
paleocristã pelos seguintes motivos: no interior não
tinha louça de cozinha, copa ou armazenamento,
mas apenas tegulae; uma delas tinha um chrismon
cruzado gravado na pasta; havia no interior um
pequeno muro de um dos lados, junto à cabeceira,
perpendicular à parede exterior, que interpretamos
como a base do iconostasis; a outra parte, que seria
obviamente simétrica, estava destruída pelo arado;
apareceu aqui uma moeda de Teodósio, o que nos
remete para o final do século IV ou mesmo já século
V. Apareceu também aqui uma mandíbula humana, o
94
que nos levou a associar a estas ruínas o sarcófago de
granito deslocado que está na origem da descoberta
desta estação, o qual conteria os restos mortais de que
a peça faria parte e seria talvez coberto pela tegulae
com o chrismon gravado, e outras decoradas com
meandros e círculos que aqui apareceram, pois no
telhado não fariam muito sentido, pois não se veria
aquele símbolo e a decoração. Por outro lado, o saimel
de dupla curvatura e as aduelas de granito de arcos
ultrapassados que fomos encontrando um pouco por
toda a área, desde a casa do forno, onde algumas ainda
estão embutidas na frontaria do dito, até aos muros de
Ervamoira B, não seriam daqui, da monumentalização
deste suposto iconostasis? Mas, nesse caso, o edifício
teria de ser mais tardio, já do século V ou VI, sendo
estes arcos ultrapassados bem precoces na região e no
tempo (GUIMARÂES, 2000 b). Também pensamos
a sua reconstituição no Museu, mas para tal também
ainda não houve oportunidade.
Não temos certezas para a datação romana do
telheiro de fundição encontrado a SO das estruturas
anteriores, embora o mesmo apresentasse vestígios
de um formo de fundição arcaico (GUIMARÃES
& BAPTISTA, 2004). Uma das peças fundidas que
apareceram num outro local da estação, sem sinal de
desgaste de uso, foi um espigão de cinturão visigótico
em forma de “violino”, além de outras peças, o que
prova que aqui se fundiu bronze. Este tipo de fuzilhões
aparecem em outras estações do período visigótico,
como é o caso da necrópole de El Pelicano na meseta
(VIGIL-ESCALERA, 20011:53)
Por sua vez, no telheiro da ferraria a nascente deste
outro, adossado ao grande edifício romano, mas com
cerâmica medieval, foi encontrado um cubo de pedra
com buraco cónico para encaixe do cepo da bigorna e
nas suas faces laterais rebaixos para o encaixe de rodas
de carroças. Pode ser uma peça romana reaproveitada
ou uma ferramenta que foi copiada durante séculos. Daí
o também acharmos que aqui funcionou uma mutatio,
talvez ao longo de todas as épocas de ocupação, onde
sempre foi preciso fundir metais e rebitar arcos de
rodas de carroça. A metalurgia de Ervamoira já foi
objeto de publicação em dois estudos (GUIMARÃES;
BAPTISTA, 2004; idem; idem, 2006).
Um segundo, ou terceiro, momento de ocupação
do lugar, que ignorou pelo menos em parte algumas
estruturas do primeiro, o que mostra algum
distanciamento no tempo, está documentado
pela existência de dois outros edifícios, um muito
completo, com planta quadrangular com quase 10
metros de comprimento, construído sobre o edifício
romano que designamos como taberna, mas que,
pelo desalinhamento das paredes de ambos, ignorou
completamente a sua pré-existência. Com a porta
voltada a SSE, tem no interior no canto oposto um
murete em quarto de círculo que pode ter tido várias
funções. Em frente à porta foi encontrada uma
estrutura de moagem constituída por um murete em
angulo reto que protegia do vento uma mó manuária
de que estava presente a parte dormente, a qual teria
a ver com a primeira e não a segunda construção.
Em diversos locais da estação apareceram mós ou
fragmentos, uns certamente para moerem grãos de
cereal, mas outras, devido à textura grosseira do
granito em que foram talhadas, seriam antes para
moer minerais para fundição.
Ao contrário dos edifícios romanos, que tinham
cobertura de tegulae, estes outros teriam cobertura
de colmo. Sobre o canto SO do grande edifício
romano, foram também encontrados os restos de uma
construção semelhante, que parece ter aqui aproveitado
parte do alicerce e das paredes do edifício anterior.
Relacionados com uma grande lareira próxima, tal
como o anterior, será um edifício do século XIII, do
período em que o Côa era fronteira.
A NE de todos estes edifícios e a uma cota mais baixa,
escavamos um outro edifício de dois compartimentos,
bem construído com grandes silhares de xisto e que
em tempos foi coberto por grandes placas do mesmo
material que entretanto tinham derruído, voltado ao
Côa e de onde se controlava o seu curso, quer para
jusante, quer para montante. Face ao pouco espólio
recolhido, que pode ser posterior à sua construção,
pois pode ter sido utilizado durante muito tempo
por pastores ou os moleiros que tinham os moinhos
do outro lado do rio (GUIMARÃES, 2000 a), não
conseguimos datá-lo com precisão. Pensamos tratarse de uma construção já da Época Moderna.
Outra área entretanto intervencionada, que
designamos por Ervamoira B, foi o local de implantação
da antiga capela, uma vasta plataforma socalcada,
talhada no xisto, perto da nascente de água e inserida
numa área de socalcos antigos, com alguns silhares
de granito reaproveitados, nomeadamente aduelas
dos arcos de que já falámos, proporcionava o cultivo
de horta e pomar. O patamar da capela, orientado no
sentido norte/sul, voltado a nascente, apresenta-nos
na extremidade norte dois muros justapostos que
95
terão feito parte de um telheiro aberto para recolha de
animais. Na sua periferia nascente existiu um denso
núcleo de negrilhos anões, mas com vestígios de
outros de maior porte, talvez o que restava a justificar
a denominação setecentista de Nossa Senhora dos
Carvalhais. Na extremidade sul da plataforma, restava
parte de uma parede da capela e restos das restantes,
muito derruídas.
FIG. 8 – Vista exterior do Museu de Sítio de Ervamoira em 1997;
fotografia de J. A. G. G..
FIG. 9 – Escavações em Ervamoira B, 2002; fotografia de J. A. G. G..
Quanto à cronologia da ocupação da quinta
cremos que ela pode ser dada, em boa parte conjugada
com outros elementos, pelos numismas encontrados.
Se é certo que aqui apareceu cerâmica pré-histórica
descontextualizada, um machado neolítico, e um
ou outro vestígio que nos apontam para tempos
pré-romanos, o facto de aqui aparecer um bronze
de Cláudio, ele é consentâneo com outros achados
na região, e com outros vestígios, nomeadamente
cerâmica, desta própria estação. Estaríamos pois num
seu primeiro momento de ocupação, no século I d.
C.; seguem-se duas moedas do século III e cinco do
século IV, devendo estas corresponder ao período
áureo de ocupação do sítio, que se terá prolongado
para os séculos V e VI, a avaliar por outros vestígios de
que já falámos. Uma peça cerâmica decorada do século
IX ou X, com decoração de inspiração magrebina,
corresponderá a uma ocupação esporádica do sítio,
pois que não deixou muitos mais vestígios, os quais
voltam a acentuar-se, como dissemos em termos de
estruturas, mas também em cerâmica e metalurgia, no
século XIII, avalizados por um dinheiro de Afonso III.
Depois deste último o testemunho numismático
desaparece e só volta no final do século XIX, quer em
Ervamoira B, quer na área de implantação da Casa da
Quinta, prosseguindo já pelo século XX com alguns
exemplares (GUIMARÃES & GUIMARÃES, 2005).
96
O espólio mais estudado e divulgado desta estação,
se bem que longe de o estar na totalidade, é o cerâmico, o
qual engloba materiais de construção, tegulae e tijolos,
cerâmica de fundição, tubeira, cerâmica de cozinha
e copa e cerâmica de armazenagem. No primeiro
caso, logo nos primeiros anos, tentamos um estudo
comparativo entre as tegulae desta estação e outras
que entretanto íamos visitando na margem sul do Rio
Douro (GUIMARÃES, 1993). De um modo geral, a
cerâmica desta estação exposta no Museu encontrase já estudada e publicada, quer no que diz respeito à
cerâmica de cozinha e copa romanas, quer aos grandes
vasos de armazenagem medievais e também alguma
cerâmica de cozinha e copa medievais (GUIMARÃES,
1999; idem, 2000 c).
Falta-nos, contudo, comparar as cerâmicas e outras
evidências arqueológicas desta estação com as de
algumas outras recentemente escavadas na meseta
hispânica onde aparecem, para a mesma época, peças
muito idênticas, para percebermos melhor a circulação
de pessoas e bens na Hispânia visigótica dos séculos V
e VI que aqui chegaram e permaneceram (CATALÁN;
FUENTES & SASTRE, 2014).
Publicamos entretanto o estudo das cerâmicas
vidradas de Ervamoira B, porque elas vieram avivar a
questão do vidrado, uma velha discussão relacionada
com a cerâmica tradicional da região. Eram todas
importadas da região litoral, de Barcelos, e posteriores
à chegada do comboio ao Pocinho (GUIMARÃES,
2010).
Neste universo ceramológico estão por estudar as
cerâmicas pré-romanas, as sigillata147, e a cerâmica
da Alta Idade Média, de Ervamoira A (estação
arqueológica romana e medieval), bem assim como
a cerâmica tradicional da região e as faianças de
Ervamoira B (área da capela).
FIG. 10 – Tratamento informático do espólio de Ervamoira, 2002: fotografia de J. A. G. G..
147 As sigillata desta estação foram já desenhadas por Susana Guimarães
e encontram-se presentemente a serem estudadas pela nossa colega Prof.
Teresa Pires de Carvalho.
97
5. CONCLUSÃO
A
ntes de terminar, permitam-me aqui
uma saudosa evocação: no já distante
dia 31 de julho de 1996, estando em
Ervamoira, recebi um telefonema de
Nelson Rebanda a informar-me do falecimento de
Carlos Alberto Ferreira de Almeida148, em férias lá
longe. O silêncio, a inutilidade das palavras gelaram
o fio do telefone e ficamos ambos suspensos daquela
infausta notícia. Tinha acabado dois anos antes o
meu mestrado que aquele professor orientara e já
tínhamos conversado sobre a minha proposta de tese
de doutoramento sobre a Antiguidade Tardia no Vale
do Douro, que eu muito desejava que igualmente
viesse a orientar, e a que ele anuiu com aquela dose
necessária de entusiasmo que punha em todos os
projetos que abraçava. Com aquela notícia este projeto
morreu ali, não porque deixasse de me interessar, não
porque não houvesse outros orientadores capazes, mas
porque há no mundo do saber cumplicidades difíceis
de substituir e esta era uma delas. Mudei de rumo no
que diz respeito à época e tema, mas o Douro e o seu
Vale permanecerão para sempre no centro da minha
investigação. A procura do entendimento sobre a Alta
Idade Média na região tenho-a continuado para meu
contentamento, mas também em memória daquele
Professor que permanece querido na lembrança dos
seus discípulos, entre os quais eu me assumo.
A estação de Ervamoira, que me prometera
que haveria de visitar quando voltasse, foi uma das
primeiras granjas agrícolas a ser completamente
estudada na região e a única até à data que tem um
museu monográfico. Depois do final dos trabalhos aí
desenvolvidos até 2004, continuou não só o interesse
pela romanização do Vale do Côa e regiões adjacentes,
como mesmo pelo estudo de outras granjas na região,
procurando os diversos autores investigar se elas
caberiam numa grelha de povoamento importado,
tendo presente a estandardização da matriz romana,
ou se, pelo contrário, as especialidades da região –
mineração, agricultura, criação de gado – poderiam
ter-lhe dado um fácies regional próprio, assunto que
permanece na ordem do dia até que a investigação
148 Carlos Alberto Ferreira de Almeida, professor catedrático da FLUP,
faleceu na Venezuela, onde se encontrava de férias com a esposa e filho,
após os ter salvado das ondas do mar, a 27 de julho de1996. Jaz sepultado
em jazigo próprio no cemitério paroquial de Santa Marinha, Vila Nova de
Gaia.
sobre a presença romana aqui avance para a produção
de uma grande síntese, para a qual Ervamoira terá
dado o seu contributo.
FIG. 11 – Sala da Arqueologia do Museu de Sítio de Ervamoira;
fotografia do AHARP:
98
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103
Painel 2
Quintas
do Douro:
Património
vitinícola,
enoturismo e
desenvolvimento regional
Nuno Magalhães
104
105
O papel e importância das
“QUINTAS”
na investigação e desenvolvimento
da vitinicultura durience
texto: Nuno Magalhães,
UTAD
([email protected])
Nota biográfica:
Nuno Pizarro de Campos Magalhães
Licenciado em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia
(Universidade Técnica de Lisboa), iniciou a sua carreira profissional na Divisão de
Viticultura da Estação Agrária do Porto, onde trabalhou durante 3 anos. Em 1977
ingressou no Instituto Politécnico de Vila Real (IPVR), como assistente convidado
para a área de Viticultura.
Desde essa data até 2006 foi responsável no IPVR e depois na Universidade de
Trás-os- Montes e Alto Douro (UTAD), pelas disciplinas de Viticultura dos cursos
de Licenciatura em Engenharia Agrícola, em Enologia e em Ciência Alimentar.
Em 1990 obteve o grau de Doutor em Engenharia Agrícola, tendo tomado
posse como Professor Associado em 1991. De 1999 a 2002 foi coordenador do
Curso de Enologia da UTAD. Desde 2000 que integra a Comissão Organizadora
do “International Master of Science VINTAGE – VITIVINICULTURA”,
tendo participado na docência, e na Comissão Pedagógica deste Mestrado e
posteriormente quando o mesmo passou a Erasmus/Mundus em 2006, até à data.
Foi coordenador de diversos projectos de investigação incluindo uma das
acções no âmbito do PDRITM, e tem publicados cerca de 100 trabalhos técnicocientíficos e de investigação.
Em 2008 publicou o “Tratado de Viticultura – A videira, a vinha, o terroir”
(Ed. Chaves Ferreira), que obteve em 2010 o prémio da melhor obra do ano sobre
viticultura, atribuído pelo Office Internacional de la Vigne et du Vin (OIV).
Em Maio de 2010 recebeu do Senhor Presidente da Republica a Comenda de
Ordem de Mérito Agrícola.
Em 2013 recebeu o prémio OIV na categoria “Monografias e estudos
especializados” pela obra “Francisco Girão – An innovator in vitiviniculture in
North of Portugal – Vol I / Vol II”, de que foi coordenador e co-autor.
Encontra-se actualmente na qualidade de Professor Emérito da UTAD,
continuando a colaborar com a Universidade, nomeadamente no âmbito daquele
Mestrado, do qual é Coordenador em representação da mesma, assim como na
107
PORVID (Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira) como membro
da Assembleia Geral.
Para além da actividade de docência e de investigação na Universidade, desde
1980 até á data, tem prestado serviços de consultoria vitícola a diversas empresas
com vinhas nas regiões do Douro, Vinhos Verdes, Bairrada, Dão, Alentejo,
Ribatejo e Algarve, mantendo actualmente consultoria à CARM, Casa de Mateus,
Lavradores de Feitoria, Noval e Romaneira, na Região do Douro, Quinta do Romeu
em Trás-os-Montes, Casa de Vila Verde, na Região dos Vinhos Verdes, Quinta da
Murta, em Bucelas, Herdade do Vau no Alentejo, num projecto no Namibe (Sul de
Angola) e noutro em Beijing.
Resumo
Esta apresentação subdivide-se em quatro partes:
breve abordagem sobre as Quintas do Douro e sua viticultura desde o início da nacionalidade até meados
do século XIX; a crise vitícola da 2ª metade do século
XIX, aspectos da sua resolução e alterações na viticultura; as técnicas vitícolas até à década de 70 do século
XX; posterior papel dos Organismos e Empresas na
inovação e experimentação nas Quintas face aos novos
sistemas de cultivo, incluindo as formas de armação
do terreno, a mecanização, as técnicas de condução da
vinha, a adaptação das castas e sua selecção varietal e
clonal
Abstract
This presentation is divided into four parts: a brief
overview on the Douro Quintas and its viticulture
since the beginning of nationality until the mid-nineteenth century; the wine crisis in the 2nd half of the
19th century, aspects of its resolution and changes that
occurred in viticulture; winegrowing techniques until
the 70s of the 20th century; the subsequent role of Organizations and Companies on innovation and experimentation in the Quintas in the presence of new farming systems, including the construction of terraces,
mechanization, training of the vine, the adaptation of
variety and its varietal and clonal selection.
Palavras-chave: Douro; Quintas; sistemas de condução; experimentação vitícola
Keywords: Douro; Quintas; training systems; viticultural experimentation.
108
1 - NOTAS PRELIMINARES
P
ese embora o facto da cultura da vinha
ter tido, desde o início da Nacionalidade,
certa importância no sistema agrícola da
Região do Douro, tinha maior expressão
na zona da Beira Douro correspondente parcialmente à agora designada por Baixo Corgo. Já nessa época
surgem Quintas de grande dimensão, pertencentes às
Ordens Religiosas, tais como a da Folgosa, hoje Quinta
dos Frades, do Paço do Monsul, do Mosteirô, e mais
tarde da Vacaria (Martins Pereira, G 1998). Ruy Fernandes (1531) refere também a existência de Quintas
na zona de Lamego. Contudo, só a partir de finais do
século XVII e durante o século XVIII a viticultura
toma um desenvolvimento geográfico muito significativo pela criação e comercialização do Vinho do Porto
e pela Demarcação da Região do Douro (RDD). Será
por essa altura que as Quintas tomam particular relevância em número de explorações e importância na
produção e imagem do Vinho do Porto, cuja dimensão
implica a permanência de caseiros, de feitores e nalguns casos dos próprios proprietários, que orientam
trabalhadores permanentes, ou sazonais quando o volume de trabalhos implica a sua contratação (“rogas”)
em particular para a realização das podas e para as vindimas. Até meados do século XIX não se dispõe de documentação suficiente para que se possa assegurar que
tenham ocorrido alterações significativas nas técnicas
vitícolas. É possível que Quintas de origem antiga tais
como a de Ventozelo, das Carvalhas e em particular a
de Roriz (Martins Pereira, 2011), embora praticando
uma viticultura tradicional e rotineira, tenham trazido
inovação, nomeadamente a nível de encepamentos de
maior qualidade. Também na Quinta do Vesúvio (ou
das Figueiras), o sogro de D. Antónia Adelaide Ferreira a qual viria a ser proprietária de mais de 25 Quintas afamadas, procedeu em 1823 a grandes plantações
(Barreto A., 2014), que provavelmente terão sido objecto de algumas inovações de carácter técnico, embora tal aspecto não esteja devidamente documentado.
De resto, a forma de implantação da vinha de acordo
com a sistematização do terreno e surribas, os granjeios anuais, as formas de condução da videira ter-se-ão mantido mais ou menos inalteráveis, estabelecendo
um equilíbrio entre as condições naturais, as videiras
e o viticultor. Apenas é de supor, tal como já referido,
que os encepamentos tenham vindo a ser enriquecidos
ou modificados, traduzidos pelo elevadíssimo número
de castas autóctones ou nascidas por cruzamentos naturais (caso da Touriga Franca, resultante de hibridação espontânea entre Touriga Nacional e Mourisco), e
de outras introduzidas. Mais de uma centena de castas
figura nos vinhedos Durienses, cuja adaptação de cada
está associada à diversidade de mesoclimas, fruto de
uma orografia diversificada pela altitude, exposições
e declives. Para além das Quintas, umas de exploração absentista, outras de gestão presencial dos seus
proprietários, uma miríade de pequenas explorações
(hoje em dia ainda superiores a 90% do total) constituíam o tecido fundiário para a produção de Vinho do
Porto. O restante vinho não tinha relevância no mercado externo, restringindo-se globalmente para consumo interno na região e também para as tabernas do
Porto vendido como “vinho de ramo”.
109
2 – A VITICULTURA DURANTE A CRISE DA
2ª METADE DO SÉCULO XIX
A
partir de meados do século XIX até seu
final surge grave crise no Douro pela
contaminação sequencial dos vinhedos, pelo oídio (1851), pela filoxera,
insecto introduzido acidentalmente a partir do continente Americano e detectado pela 1ª vez na Quinta dos Montes da freguesia de Gouvinhas em 1863
(Martins Pereira, G., 2011), e do míldio em 1893.
Quer a filoxera quer aquelas doenças, a acrescentar a
antracnose, de menor impacto, elas também oriundas
da América, tiveram um efeito destruidor da maioria
dos vinhedos, cujos efeitos de natureza económica e
social, e sua resolução, se prolongaram até finais daquele século. Para debelar a crise, foram constituídas
comissões de trabalho a par de iniciativas individuais,
para investigar soluções eficazes no controlo daqueles
agentes perniciosos para a vitivinicultura da Região.
Relativamente ao oídio e ao míldio passou a ser prática
corrente nos granjeios da vinha, para o seu controlo,
respectivamente o enxofre em pó e soluções cúpricas
sob a forma da designada “calda bordalesa”. Já relativamente ao combate à filoxera, a sua solução foi mais
complexa, pois tratando-se de uma praga que se instala nomeadamente no solo, destrói rapidamente as raízes da videira, conduzindo à sua morte e consequente
abandono das vinhas, de que são testemunho hoje em
dia alguns milhares de hectares de antigos vinhedos,
agora ocupados pela flora arbóreo-arbustiva e herbácea característica dos matagais Durienses, assertivamente designados de “mortórios”. Para esse efeito foi
criada a “Comissão anti-filoxera”, que realizou numerosas experiências pela aplicação de sulfureto de carbono ao solo, tendo sido a primeira no ano de 1876
na Quinta de Chanceleiros, em Covas do Douro, propriedade do Visconde de Chanceleiros (Martins Pereira G., 1998). A resolução do problema filoxera não foi
contudo obtido por esta via, mas sim pela plantação de
porta-enxertos oriundos de espécies do género Vitis,
espontâneas em diversas partes do continente Americano, e consequentemente resistentes àquela praga, sobre os quais era (e ainda é) enxertado um garfo de uma
casta europeia para a futura vinha. Neste contexto são
de realçar as primeiras experiências de plantação de
“bacelo” americano, na Quinta da Boavista em 1888,
e a concretização da eficácia da enxertia de varieda-
des europeias (castas) sobre o dito bacelo, da qual foi
pioneiro Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite, de Provezende, que as concretizou, em 1876, na Quinta de
Vale de Figueira, perto do Pinhão (Martins Pereira, G.,
1998). Também outras personalidades da época, geralmente proprietárias de Quintas no Douro, conhecedoras da viticultura e particularmente sensibilizadas para
estes problemas, tiveram, através da escrita, papel não
negligenciável na contribuição para o combate à crise
que assolava a Região, sendo de referir, entre outros,
Pinto de Menezes e Marques de Carvalho (no Boletim
da Direcção Geral da Agricultura), Cincinato da Costa
(Portugal Vitícola), Visconde de Villa Maior (Manual
de Viticultura Prática). É de referir também o nome
de Quintas emblemáticas, embora de antiguidade
distinta, que se debateram com a crise, e que de certo
modo contribuíram para que ela fosse ultrapassada,
até porque resistiram até então. A título de exemplo:
Paços do Monsul, Quinta dos Frades, Quinta da Romaneira, Quinta do Retiro, Quinta do Convento de S.
Pedro das Águias, Quinta de Santa Eufémia, Quinta
da Casa Amarela, Quinta da Pacheca, Quinta da Eira
Velha, Quinta de S. Luiz, Quinta de Roriz, Quinta do
Seixo, Quinta das Carvalhas, Quinta do Sairrão, Quinta do Caêdo, Quinta da Foz, Quinta do Fojo, Quinta de
Santa Bárbara,… Também é oportuno referir que, na
mesma época, D. Antónia Adelaide Ferreira (a Ferreirinha, como ficou conhecida) herdou e sobretudo adquiriu numerosas Quintas, totalizando cerca de uma
trintena, das quais são de citar entre outras pela sua
maior relevância, a dos Montes e do Rodo, adquiridas
pelo seu avô José Bernardo Ferreira, as de Travassos,
dos Aciprestes, do Vesúvio, da Boavista, da Granja,
do Porto, de Vilamaior, das Nogueiras, do Vallado, do
Vale do Meão, esta última a ser desbravada e por si
construída (Barreto A., 2014). Em qualquer delas, não
é de supor que tenha sido efectuada investigação vitícola no sentido actual do termo, mas por outro lado é
seguramente admissível que aperfeiçoamentos técnicos (na aplicação de produtos fitossanitários, na construção de muros e de terraços, no controlo da erosão
hídrica), tenham sido implementados.
110
3 – PERÍODO PÓS-FILOXÉRICO ATÉ À
DÉCADA DE 70 DO SÉCULO XX
D
urante este período, ao nível do papel
das Quintas na inovação e contribuição para a produtividade vitivinícola
da RDD são de referir os seguintes aspectos de maior relevância:
- Numa parte delas, a gestão é assumida directamente pelos proprietários, que nelas habitam em permanência;
- Outras estão entregues, no dia-a-dia, a administradores, caseiros e feitores, com visitas periódicas dos
seus proprietários, em particular no tempo de vindimas, já que habitam na cidade;
- As empresas exportadoras de Vinho do Porto, sediadas em Gaia, possuem Quintas em geral de pequena dimensão e sem objectivos directos de produção,
com a finalidade fundamental de servirem de apoio
aos seus responsáveis durante o período das vindimas,
para o controlo quer da entrega de uvas dos Lavradores, e respectiva vinificação na adega da Quinta, quer
para a compra de vinhos elaborados em adegas daqueles.
Quanto à viticultura, processam-se alterações ao
nível da implantação das vinhas, subsequentes à crise que assolou a Região e à redução de mão-de-obra,
pelo que deixou de ser possível reconstruir os geios
pré-filoxéricos. A implantação da vinha passa então a
ser executada em plataformas com alguma inclinação
(designadas por “geias” segundo a terminologia regional), comportando um número variável de linhas (ou
bardos), entre cerca de 10 a 20, consoante a inclinação
da encosta. Relativamente às formas de condução da
vinha e das videiras, em alternativa às formas livres
em vara e talão apoiadas por tutores de madeira, são
introduzidos esteios de xisto que suportam 2 ou 3 fiadas de arames para condução das varas de poda e da
vegetação. Em continuação das técnicas introduzidas
em consequência da crise dos finais do século precedente, a enxertia sobre bacelo e os tratamentos contra o oídio e míldio, passam a ser práticas obrigatórias
(Magalhães N., 2011). A paisagem Duriense sofre assim transformações, nas quais estão obviamente a das
Quintas, estas provavelmente com maior impacto, não
só devido à sua dimensão mas também pela necessidade de superior rigor e capacidade económica e técnica
(esta mesmo quando confiada aos caseiros, feitores e
também aos próprios proprietários).
Mas, já neste período se desenvolvem acções de
experimentação (ensaios, estudos e reflexões) especificamente a cargo do Centro de Estudo Vitivinícolas
do Douro (CEVD) no qual um dos seus Directores,
Eng. Gastão Taborda teve um papel muito importante na experimentação vitícola e enológica, e da Casa
do Douro através do exaustivo trabalho de Cadastro
das parcelas de vinha e da implementação do Método
de Pontuação concebido pelo Eng. Moreira da Fonseca nos finais da década de 40, ainda hoje utilizado na
classificação das diferentes categorias das parcelas para
produção de Vinho do Porto. Dos estudos vitícolas desenvolvidos pelo CEVD, destacam-se: os das relações
entre diferentes castas e porta-enxertos, cujos campos
de ensaio se instalaram em Quintas, a maioria privadas, nas sub-regiões do Baixo Corgo, Cima Corgo e
Douro Superior; estudos sobre fertilizantes químicos
de síntese; estudos sobre o controlo de infestantes através de diferentes tipos de herbicidas; microvinificações
das principais castas representativas da RDD. Já no
início dos anos 70, com a criação da “Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro” é dado início aos
primeiros estudos da mecanização de vinhas implantadas segundo patamares com taludes em terra, pela
utilização de tractores “pernaltas” - “enjambeurs”. Tais
ensaios foram conduzidos sob orientação dos Serviços
Oficiais, nas Quintas de Varjelas (Taylor’s), Quinta da
Roeda (Croft) e Quinta da Varanda (anexa à da Pacheca), no Baixo Corgo.
111
4 – A NOVA VITIVINICULTURA NASCIDA
NA DÉCADA DE 1970
M
odificações profundas na viticultura
e na paisagem Duriense registam-se
a partir desta época, em constante evolução, fruto das necessidades
de adaptação a novos sistemas de cultivo da vinha e
exigências dos diferentes mercados, quer para o Vinho
do Porto, quer para os DOC Douro que vêm a surgir
a partir da década de 80, com crescente implantação
e qualidade. A causa primeira do nascimento de uma
nova viticultura assentou no facto da escassez crescente de mão-de-obra e sua remuneração, implicando a
necessidade de mecanizar as diversas operações culturais. Assim, após os ensaios logrados com os tractores
“pernaltas”, que pela sua estrutura não se consideraram adaptáveis à orografia da região, iniciou-se a armação da encosta segundo patamares de dois bardos
e talude em terra, permitindo a circulação e trabalho
de tractores vinhateiros na entrelinha das fiadas de videiras, as quais conduzidas agora segundo formas de
condução em Cordão Royat (muito distintas das conduções tradicionais), com parede vegetativa mais alta
e com significativa redução da densidade de plantação.
Nestas novas plantações, contrariamente ao tradicional, as castas foram dispostas em talhões independentes. Embora já no início do século XX, alguns produtores tivessem adoptado por esta solução em situações
muito pontuais, no período a que agora nos referimos
foi pioneiro Mr. Smith, proprietário da empresa Cockburn, nas novas plantações da Quinta do Ataide sita
no vale da Vilariça (Barreto A., 2014). Esta redução
do número de castas deveu-se a estudos enológicos de
castas anteriormente feitos pelo CEVD (Eng. Gastão
Taborda) em colaboração com o Instituto do Vinho do
Porto, e sobretudo pelos conduzidos por José António
Rosas e João Nicolau de Almeida, nas Quintas da empresa Ramos Pinto, situadas no Douro Superior (Ervamoira), no Cima Corgo (Bom Retiro) e Baixo Corgo
(Quinta de Murças da Sociedade Pinto de Azevedo).
Outra forma de sistematização do terreno, embora na
altura de muito reduzida expressão, consistiu em dispor as linhas de videiras segundo o maior declive “vinha ao alto”. A instalação de vinhas segundo esta solução decorreu, em meados da década de 70 na Quinta
de Ervamoira da empresa Ramos Pinto, e entre 1979 e
1981/2 nas Quintas de Murças, do Bom Retiro, do Sei-
xo, do Crasto e posteriormente noutras Quintas particulares e de empresas exportadoras. A implementação
das vinhas mecanizadas foi apoiada financeiramente
através do Plano para o Desenvolvimento Regional de
Trás-os-Montes e Alto Douro (PDRITM). Refira-se
também o facto, da enorme importância para o desenvolvimento da viticultura duriense, de a esmagadora
maioria das empresas exportadoras de Vinho do Porto passarem a adquirir Quintas no Douro, geralmente de grande dimensão, para um melhor controlo de
parte da matéria-prima para produção de vinhos de
alta qualidade. Tal implicou a contratação de técnicos
de viticultura e de jovens enólogos (grande parte deles formados pela Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro), pois que novas técnicas tiveram de ser
adaptadas a uma outra viticultura, bem distinta da
tradicional. A especificidade da viticultura de montanha, associada à mecanização, à adaptação das castas
a múltiplas situações edafo-climáticas da região e ao
stress hídrico e térmico, às formas de condução da videira e a novas técnicas em geral, levaram à criação
da Associação para o Desenvolvimento da Viticultura
Duriense (ADVID), fundada em 1982 sob a Administradores de empresas de Vinho do Porto (José Rosas,
Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe). Inclui
actualmente 180 associados, efectivos, colectivos, individuais e honorários, pertencendo aos primeiros as
empresas, Adriano Ramos Pinto, Real Companhia Velha, Churchil Grahm, Nieport Vinhos S.A., Quinta do
Noval-Vinhos S.A., Rosés S.A., Sogevinus Fine Wines
S.A., Sogrape Vinhos S.A.,W & J Grahm Ca., Sociedade Vinícola Terras de Valdigem S.A e Symington
Family. A equipa técnica da ADVID é composta por
um(a) director geral, um técnico administrativo, um
responsável pela comunicação e divulgação e cinco licenciados responsáveis pela investigação/experimentação vitivinícola, actuando quer em estudos e ensaios
de Quintas dos associados, quer em laboratório. Referem-se as seguintes linhas de trabalho que entretanto
a ADVID vem desenvolvendo, muitas delas através de
projectos em colaboração com Universidades e outros
Organismos nacionais e estrangeiros:
1. Alterações Climáticas
- Impacto das Alterações Climáticas na Vitivinicultura da Região Demarcada do Douro;
- Modelização da Evolução da Qualidade do Vinho
da RDD;
- Estratégias, de curto prazo, para mitigação das al-
112
terações climáticas na viticultura (ClimVineSafe);
- Gestão do stress hídrico e térmico da videira;
- Projecto Euporias.
2. Biodiversidade Funcional em Viticultura
- EcoVitis – Maximização dos serviços do ecossistema, através da monitorização da presença de infra-estruturas ecológicas na população de insectos e
aranhas, e de parasitóides da traça-da-uva; prospecção
de parasitóides da traça-da-uva, de cochonillas e eventuais inimigos do vector da Flavescência Dourada; implementação da confusão sexual; avaliação da presença de outras traças da uva; identificação de fungos e
nematodes entomopatogénicos; identificação da flora,
das aves, dos morcegos e das libélulas;
- Biodivine – Demonstração da Biodiversidade
Funcional em paisagens vitícolas, através de acções de
monitorização da flora, da avifauna, dos mamíferos e
da actividade dos invertebrados em solos com e sem
enrelvamento. E ainda através da implementação de
acções de conservação como, enrelvamento, instalação de sebes, promoção da biodiversidade nos muros,
confusão sexual e reorganização das cabeceiras.
3. Racionalização da Vinha de Encosta
- Cartografia dos movimentos de vertente;
- GreenVitis;
- Laboratório de produtos e serviços, com a constituição de 6 Focus Group: Pulverização; Máquinas
adaptadas a trabalhar em patamares estreitos e pendentes elevados; Limpeza de taludes; Sensorização
e instrumentação; Tratamento e valorização de resíduos; Eco-eficiência.
tas
4. Preservação da Variabilidade Genética das Cas-
- Prospecção e recolha de material vegetativo na
RDD e Trás-os-Montes;
- Acompanhamento dos campos de selecção clonal.
5. Produção Sustentada em Viticultura
- Controlo da traça da uva pelo método da confusão sexual;
- Avaliação do comportamento de castas e porta-enxertos;
- Prospecção do insecto vector da Flavescência
Dourada (Scaphoideus Titanus Ball);
- Colaboração com a BIOCANT no projecto INOV
WINE 2 (doenças do lenho e oídio);
lo;
- Monitorização da evolução do Aranhiço Amare-
- Avaliação da eficácia de tratamentos no combate
ao oídio da videira em fases precoces do ciclo vegetativo da videira;
- Contributo para a caracterização das populações
do oídio da videira em diferentes castas de Vitis vinífera em Portugal;
- Previsão do potencial de colheita - Método Polínico;
- Monitorização das resistências de infestantes aos
herbicidas
A experimentação vitivinícola é assegurada através
de ensaios e outros estudos em Quintas, quer de associados efectivos quer de outros individuais ou colectivos, sendo de referir pela sua importância, as Quintas
dos Aciprestes, da Granja, das Carvalhas e do Cidrô,
da Real Companhia Velha, as Quintas do Ataíde, da
Sra. da Ribeira, do Bonfim, do Vesúvio e da Cavadinha
da Symington Familly, as Quintas de Sta. Bárbara/Caedo e de Vale de Cavalos/Numão da Sociedade Vitícola
Terras de Valdigem, as Quintas do Grifo, do Enxudo,
da Canameira e do Pêgo, da Rozés, as Quintas do Seixo, da Granja/Almendra, do Cavernelho e da Leda, da
Sogrape, as Quintas do Bom Retiro e de Ervamoira,
da Ramos Pinto, as Quintas do Bairro, de S. Luiz e do
Arnozelo, da Sogevinus, a Quinta do Noval, a Quinta
do Vallado, a Quinta de Nápoles, da Nieport, e ainda
as Quintas de outros associados não efectivos, a de D.
Matilde, a de Castelo Melhor, da Duorum, a Quinta
Nova de N. Sra. do Carmo, a do Vale do Meão, a dos
Avidagos, a da Casa Amarela, a do Vale de Dona Maria, a de Vale Flôr, a do Tedo, da Quinta Velha das Apegadas e a do Crasto (ADVID, 2013).
A experimentação nas Quintas do Douro, não se
restringe ao papel e acções da ADVID. Desde a criação
do CEVD, este Organismo muito contribuiu, conforme já referido, para o desenvolvimento da viticultura
Duriense, através de ensaios, de estudos ampelográficos na Quinta de S. Bárbara, da mecanização da vinha
de encosta, e outros. Hoje em dia são de referir e salientar as investigações no campo da fitossanidade, no
Serviço de Avisos, que implicou a instalação de uma
rede de estações meteorológicas em diversas Quintas
privadas, e colaborações com outros Organismos oficiais e privados. A Universidade do Porto, em interligação com o CEVD, ISA e a empresa Taylor’s Yetman
and Fladegate, promoveu vários estudos sobre formas
de instalação da vinha, condução e intervenções em
113
verde, nas Quintas de S. António e do Panascal, pertencentes àquela empresa. Aliás, são de salientar numerosos estudos sobre viticultura de precisão em vinhas de encosta, desta empresa, também noutras suas
propriedades sob a responsabilidade de David Guimaraens e de António José Magalhães, que muito contribuíram para a resolução de formas correctas de instalação e condução de vinhas e do controlo da erosão na
RDD. Também a UTAD beneficiou da disponibilidade
de muitas Quintas, para instalação de campos experimentais e de ensaios de índole diversa. São de referir
nomeadamente os referentes ao estudo do comportamento de castas em diversas condições ecológicas,
em particular da Touriga Nacional, com observações,
determinações e colheitas de bagos em muitas Quintas
ao longo da Região; ensaios de rega (Quintas de S. Luiz
e Vale do Meão; ensaios sobre o comportamento ecofisiológico de castas (Quintas de Sta. Bárbara do CEVD,
da Leda e do Seixo, da Ferreira/Sogrape e S. Luiz da
Soogevinus); estudos sobre condução e sobre vingamento/desavinho, que muito contribuíram para a recuperação da casta Touriga Nacional (Quintas do Seixo e da Roeda); selecção clonal de castas de videira. Os
trabalhos relativos a esta última acção foram iniciados
em 1979 entre a UTAD e o ISA, com a colaboração da
Casa do Douro, e um pouco mais tarde com a participação do CEVD e da ADVID. Numa primeira fase foram efectuadas prospecções nas vinhas um pouco por
toda a Região do Douro, em várias dezenas de parcelas
de vinhas velhas, algumas incluídas em Quintas (Côtto da Montez Champalimaud, Sta. Maria em Sta. Marta de Penaguião, Seixo, Foz, Ventozelo e Noval na zona
do Pinhão, Lodeiro em S. João da Pesqueira, Batoca
em Barca d’Alva). Na sequência desta 1ªfase de selecção foram instalados diversos campos de experimentação clonal de várias castas importantes cultivadas na
RDD (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz,
Tinta Barroca, Tinto Cão, Tinta Francisca, Bastardo,
Cerceal do Douro, Moscatel Galego, Malvasia Fina,
Gouveio, Viosinho e Rabigato) pela disponibilidade
de várias Quintas (do Ataíde da Cockburn, da Leda e
do Seixo da Ferreira/Sogrape, Granja da Real Companhia Velha, de Murças da Sociedade Pinto de Azevedo, de N. Sra de Lourdes da UTAD, em Vila Real, de
Matamaceda em S.J. da Pesqueira, e de Valmôr). Após
tratamento de dados vitícolas e de análise de mosto
dos clones destas castas, foram eleitos os considerados
melhores, para efeito da sua posterior homologação e
instalação de parcelas de multiplicação a disponibili-
zar à viticultura e à actividade viveirista. Mais uma vez,
empresas exportadoras de Vinho do Porto e Quintas
particulares, puseram à disposição parcelas das suas
propriedades para instalação dos referidos campos de
multiplicação de materiais clonais estando de momento em produção cerca de 60 distribuídas por 20 Quintas ao longo da RDD.
Em conclusão, tem sido de extraordinária importância o papel das Quintas do Douro, ao longo da história, e com maior expressão durante o último período
iniciado na década de 1970, até à data, cuja ausência do
seu contributo na experimentação e desenvolvimento
da vitivinicultura Duriense, não teria sido possível desenvolvê-la, modernizá-la e alcançar os resultados até
então obtidos, e que se prevê venham a ser enriquecidos no futuro, através da continuação de colaboração
entre organismos públicos e privados e das empresas
vitivinícolas do sector.
BIBLIOGRAFIA:
- ADVID (2013) – Relatório de actividades de 2013.
[Disponível em http//www.advid.pt].
- BARRETO, António (2014) – Douro, Gente e Vinho. Relógio de Água Editores.
- MAGALHÃES, Nuno (2011) – A viticultura na
Região do Douro – dos primórdios às grandes mudanças
no virar do século. In “Francisco Girão – um inovador
da vitivinicultura no norte de Portugal”, pp. 42-79.
- MARTINS PEREIRA, Gaspar (1998) – Enciclopédia dos Vinhos de Portugal. O Vinho do Porto – Vinhos
do Douro. Ed. Chaves Ferreira, pp 38-77.
- MARTINS PEREIRA, Gaspar (2011) – Quinta de
Roriz. História de uma Quinta no coração do Douro.
Ed. Afrontamento.
114
115
Painel 3
Quintas
do Douro:
dos arquivos
à História
Paula Montes Real
Pedro Peixoto
Otília Lage
116
117
Arquivos de quintas do Douro:
os casos de Santa Júlia e da Pacheca
texto: Paula Montes Real
CITCEM
Nota biográfica:
Paula Montes Leal
É licenciada em História, variante Arte pela FLUP, pós-graduada em Ciências
Documentais – Arquivo pela FLUP, e mestre em Ciências da Informação e da
Documentação – Área de Arquivos pela Universidade de Évora. Integrou o grupo
de trabalho formado para a instalação do Museu do Douro, tendo participado
no «Projecto de Inventariação do Arquivo Histórico do Instituto do Vinho do
Porto». Ainda neste âmbito, coordenou o «Projecto de Inventariação do Arquivo
da Casa do Douro», ocupando o cargo de coordenadora do Centro de Informação
do Museu do Douro. Foi docente no Curso de Especialização em Ciências
Documentais – Arquivos da Universidade Portucalense e responsável técnica
pelo Arquivo Histórico Casa Ferreirinha. Actualmente, coordena projectos de
organização de arquivos nas empresas Symington e Unicer. Foi investigadora do
GEHVID – Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho
do Porto. É investigadora do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar
«Cultura, Espaço e Memória», na linha de Memória, Património e Construção de
Identidades.
Resumo
Ao apresentarmos este trabalho, focámo-nos, essencialmente, em três questões: a importância dos arquivos privados, em geral, para o avanço do conhecimento histórico, económico e social; a relevância dos
arquivos pessoais/familiares, em particular, no âmbito
desse extenso património documental que se encontra
disperso por numerosos arquivos públicos e privados,
nomeadamente de diversas famílias do Douro, ligadas
à produção ou ao comércio de vinhos; e, finalmente,
Abstract
In presenting this paper, we focused primarily on
three issues: in general, the significance of private archives to the advance of historical, economic and social
knowledge; more specifically, in the relevance of personal/family archives, within the massive documental heritage that is dispersed in countless archives, both public
and private, namely in the archives of several families
from Douro that are linked to the production and commerce of wines; and finally the presentation of the cases
118
na apresentação dos casos das quintas da Pacheca e
de Santa Júlia de Loureiro, exemplos da boa prática
de colaboração entre famílias e investigadores. Mais
do que dar conta do espólio documental destas duas
quintas, a nossa intenção é a de chamar a atenção para
os esforços individuais a que se tem assistido para a
preservação e divulgação deste tipo de arquivos, de incontornável importância para a história do sector do
vinho do Porto e para a história da própria região.
Palavras-chave: Arquivos Privados; Arquivos Pessoais e Familiares; Vinho do Porto; Douro.
of Quinta da Pacheca and Quinta de Santa Julia Loureiro, both examples of best practices of collaboration
between families and researchers. More important than
describing the documental heritage of these two quintas,
our aim is to draw attention to the individual endeavours that have been made to preserve and disseminate this
information that is of essence for the history of Port wine
and the history of the Douro region itself.
Keywords: Private Archives; Personal and Family
Archives; Port wine; Douro.
IMPORTÂNCIA DOS ARQUIVOS PRIVADOS
O
s arquivos privados comportam uma
parte relevante da memória humana.
Ao longo da História, se, por um lado,
o desenvolvimento social resultou de
uma inter-relação entre autoridades públicas e partes
privadas, por outro, nem sempre a realidade retratada
nos documentos públicos espelha a verdade dos factos.
Além disto, «muitos dos arquivos privados contêm
documentação de natureza pública, em consequência
de funções ocupadas pelos seus produtores que
quiseram conservar perto de si os seus documentos
oficiais […]. Os documentos privados são, portanto,
o complemento necessário dos arquivos públicos,
dado que permitem muitas vezes rectificar uma
visão do passado que, sem eles, seria excessivamente
administrativa»149.
Sem os arquivos privados, as fontes da história
comum estão incompletas; por isso, a investigação
científica (histórica ou outra) só tem a ganhar, desenvolvendo-se e adquirindo novos contornos, perante
a possibilidade de acesso à informação contida neste
tipo de arquivos. A hipótese que nos é dada, através
da documentação privada, de ter acesso ao domínio
da vida das famílias e dos indivíduos – de outra forma
invisível – permite-nos apreciar não só as relações que
se desenvolvem internamente mas também a dinâmica das relações com a sociedade, em geral. E a grande
variedade documental existente nos arquivos pessoais
e familiares, ao ser cruzada com as fontes do domínio público, complementa e enriquece a percepção do
funcionamento de uma sociedade.
Sendo incontestável que, ao entrarmos no campo
das biografias e das histórias de família, avançamos
para uma nova dimensão do estudo das sociedades,
verificamos, também, que, se considerarmos a
história dos indivíduos ou das famílias, esta nos abre
os horizontes para outros contextos (económicos
e políticos, mas também das mentalidades, da
demografia, da genealogia, da história local...) e,
sobretudo, para novos campos da história, como a
história da vida privada, a história das mulheres, a
história da criança, etc. É nos arquivos pessoais e
familiares que frequentemente podemos encontrar a
explicação para comportamentos públicos – sociais
ou políticos – doutra forma incompreensíveis. E essa
informação pode estar contida em documentos tão
insuspeitos como um diário pessoal, uma carta trocada
entre amigos, um registo de receitas e despesas de uma
casa ou as memórias genealógicas de uma família150.
É de enfatizar a importante contribuição que os
arquivos privados – pessoais, familiares, empresariais,
religiosos – «podem trazer, com a possibilidade que
abrem de aprofundamento e renovação de aspectos e
temas pouco explorados...»151 e com a «pluralização»
da memória: em vez de contarmos com uma só memória – a oficial, «unipolar e de pensamento único»152
–, os documentos privados dão-nos acesso a uma pluralidade de memórias.
149 HILDESHEIMER, 1990.
150 MACEDO, 1996:101-110.
151 LAGE, 1996:45-96.
152 HILDESHEIMER, 1990.
119
ARQUIVOS PESSOAIS E FAMILIARES NO
SECTOR DO VINHO DO PORTO
O
vinho do Porto representou, durante
mais de trezentos anos, um dos mais
importantes, senão o mais importante, produto da economia portuguesa.
Com uma forte e precoce vocação mercantil, dominou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as exportações
de origem nacional e determinou políticas específicas
de defesa e controlo da marca. Da produção ao comércio, passando pelas actividades de transporte, envelhecimento e lotações, ou ainda pela acção das entidades
reguladoras e pelas diversas formas de controlo e fiscalidade, os vinhos generosos produzidos na região
vinhateira do Douro e exportados pelo Porto foram
objecto de uma vastíssima documentação. Mais ainda
se considerarmos a documentação anterior ao aparecimento da denominação «Porto» e à difusão de tecnologias específicas de produção vitivinícola, entre finais
do século XVII e inícios do século XVIII153.
Esse extenso património documental encontra-se
disperso por numerosos arquivos públicos e privados. Incluídos nos últimos encontram-se os arquivos
pessoais ou familiares, nomeadamente de diversas famílias do Douro, ligadas à produção ou ao comércio
de vinhos. Muitas casas e quintas do Douro possuem
importantes conjuntos documentais, com maior ou
menor organização, que têm vindo a ser utilizados por
diversos investigadores, contribuindo para o desenvolvimento dos estudos históricos sobre a região, as quintas e as famílias. Refiram-se, por exemplo, os arquivos
familiares existentes nas quintas do Paço de Mônsul154,
de Roriz155 ou no Casal de Paradelinha, onde se encontra o arquivo da família de Torcato de Magalhães156.
Em certos casos, com o apoio de técnicos de arquivos públicos, têm sido tratados e organizados. Foi o
que aconteceu com o Arquivo do Paço de Cidadelhe,
153 PEREIRA & LEAL, 2006: 69-76.
154 Conf. FERREIRA, 2001.
organizado pelo Arquivo Distrital de Vila Real157. Técnicos deste arquivo organizaram e inventariaram, também, o arquivo da Casa da Calçada, de Provesende158.
Outro caso importante, mais recente, é o da Casa
de Mateus, actualmente Fundação Casa de Mateus,
cujo arquivo, além de tratado e organizado foi microfilmado e digitalizado (documentação desde 1577159,
relativa às 13 gerações familiares que ocuparam a casa)160.
Noutras ocasiões, foram investigadores, a título
pessoal ou inseridos em unidades de investigação que
levaram a cabo esta tarefa. Foi esse o caso das quintas
da Pacheca e de Santa Júlia de Loureiro, exemplos da
boa prática de colaboração entre famílias e investigadores.
155 PEREIRA, 2011. O arquivo da Quinta de Roriz, em particular, tem
a vantagem de reunir documentação relativa à gestão da propriedade (diários da quinta, contas dos caseiros e administradores da quinta, correspondência, etc.), documentação das famílias proprietárias da quinta (em
especial, Köpke e van Zellers, desde finais do século XVIII) assim como
alguma documentação das empresas comerciais detidas por essas famílias.
157 ARQUIVO DISTRITAL DE VILA REAL, 1996.
158 GONÇALVES, 2005.
156 160 Conf. SEQUEIRA, 2006.
159 Conf. <http://www.slideshare.net/FernandaGoncalves/da-memria-ao-acesso-informao-na-casa-de-mateus-as-bases-e-objectivos-de-um-projecto-sistmico>. [Consulta realizada em 04.03.2011].
Ver ALBUQUERQUE, et al., 2005.
120
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
N
este trabalho, mais do que dar conta do
espólio documental destas duas quintas, a nossa intenção é a de simplesmente referir os esforços individuais a
que se tem assistido para a preservação e divulgação
deste tipo de arquivos, de incontornável importância
para a história do sector do vinho do Porto e para a
história e a cultura da própria região.
Muitos dos arquivos privados são ainda completamente desconhecidos da comunidade científica.
«Dispersos por inúmeras casas, quintas e solares encontram-se um sem número de documentos da maior
importância, não só para os seus proprietários mas,
acima de tudo, para a nossa história colectiva. Documentos que nos falam das relações que determinada
família manteve com o poder real ou com os poderes
locais; da acção dos seus membros enquanto figuras
de interesse local ou nacional; das estratégias familiares de aquisição de património; das estratégias de
ascensão e promoção social; dos percursos sócio-profissionais trilhados; enfim, das diferentes intervenções
registadas em campos tão diversos, de âmbito social,
político, económico e cultural. Infelizmente, a esmagadora maioria desses valiosos arquivos é inacessível
aos investigadores: principalmente devido a constrangimentos, na maior parte dos casos injustificados, de
ordem social, porque muitos dos seus possuidores não
estão consciencializados para esta realidade ou, pura e
simplesmente, por falta de informação que os sensibilize para ela»161. Mesmo quando os detentores permitem a consulta, tal tarefa pode tornar-se difícil dada a
não existência de qualquer instrumento descritivo do
seu conteúdo. Ultrapassada essa dificuldade, há, ainda,
o problema da acessibilidade – não se pode esquecer
que os documentos se encontram, muitas vezes, em
residências particulares -, e da preservação (incluindo
a instalação, acondicionamento e conservação) destes
documentos que, em muitos casos, não por má vontade dos proprietários mas por desconhecimento, se encontram em situações de risco. Infelizmente, «é também por algumas destas razões que, tal como sucedeu
com diversos arquivos de organismos oficiais, ao fim
de algumas gerações, muitos deles são queimados ou
vendidos a peso, porque é necessário arranjar espaço
161 Citando Amândio Barros em BARROS & LEAL, 2001.
em casa e os documentos são vistos como papel velho,
inútil»162.
Felizmente, não foi este o caso da Quinta de Santa Júlia de Loureiro (situada na freguesia de Loureiro,
concelho do Peso da Régua), nem da Quinta da Pacheca (situada na freguesia de Cambres, concelho de
Lamego) – unidas por laços familiares – onde não só a
herança documental foi preservada como foi colocada
à disposição da comunidade científica.
Valendo-nos do estudo de Natália Fauvrelle163, podemos dizer que a primeira referência que se conhece
à Quinta de Santa Júlia de Loureiro – então conhecida
como Quinta de S. Gião – data de 1682, ano em que a
Comenda de Moura Morta a empraza a Matias Correia Coelho, casado com Maria de Mesquita Pereira164.
No século XVII, a propriedade passa para as mãos da
família Mesquita e Vasconcelos, através do casamento da filha dos emprazadores – Luísa Pereira Coelho
de Cerqueira Mansilha – com José Inácio Pimentel de
Mesquita e Vasconcelos, capitão-mor da vila de Gouveia. O último descendente será José Pimentel Freire
Machado de Mesquita e Vasconcelos, 1º visconde de
Gouveia, que morre sem descendência directa, sendo
a sua sucessão assegurada por um acordo pré-nupcial
que unia duas famílias. Assim, a 1ª viscondessa – Ana
Emília Oliveira Maia – doa os seus bens a sua sobrinha, Júlia Petronilha Pereira Leitão Carvalho, doando
o visconde o título e bens de Gouveia a seu sobrinho,
José Freire de Serpa Pimentel. O 1º e o 2º visconde de
Gouveia vão ter um papel preponderante na história
da quinta, empreendendo uma série de obras que alteram profundamente a propriedade, não só pelo seu
alargamento como pela transformação da casa agrícola original na casa que hoje conhecemos165.
Em 1996, ainda antes de iniciarmos a pós-graduação em Ciências Documentais, mas no âmbito
das investigações do GEHVID166, trabalhámos com
a então estudante de mestrado em História da Arte,
Natália Fauvrelle, sobre o arquivo da Quinta de Santa
Júlia de Loureiro167, na posse da família Costa Seixas.
162 Idem.
163 Para mais sobre esta quinta ver FERREIRA, 2001.
164 AHQSJL, cx. 7.
165 AHQSJL, cx. 38, doc. 15.
166 GEHVID – Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense
e do Vinho do Porto, unidade de investigação da FCT que funcionou na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 1994 e 2009.
167 O arquivo da Quinta de Santa Júlia é composto por 40 unidades
de instalação, com as datas extremas de 1596-1959. É formado, essencial-
121
Como dissemos então, os nossos objectivos pessoais
eram diferentes: uma procurava fazer um levantamento dos arquivos privados no Douro, enquanto outra
investigava as quintas da região, sob o ponto de vista do património arquitectónico. Por vários motivos,
a que não era estranho o facto de se tratar da nossa
primeira intervenção sobre um arquivo, mas também
pelo peso que sentimos por termos à nossa responsabilidade documentos que não nos pertenciam, a nossa
intervenção foi muito cuidadosa e não invasiva. Assim
– e para nosso descanso - , uma vez que a maior parte
da documentação deste acervo tinha já uma organização própria (provavelmente dada pelo 2º Visconde
de Gouveia, José Freire de Serpa Pimentel), usámos
essa organização inclusivamente para classificar os
documentos avulsos. A nossa intervenção física sobre
os documentos limitou-se, desta forma, à sua limpeza e acondicionamento em material adequado para
conservação. Não obstante, levámos a cabo o recenseamento que resultou na publicação de um pequeno
instrumento de descrição168 e na disponibilização da
base de dados realizada tanto aos proprietários como
ao Arquivo Distrital de Vila Real (neste caso, com ordem para a sua inclusão nos instrumentos de pesquisa
que são disponibilizados ao público pelo ADVR).
Quanto à Quinta da Pacheca169, o primeiro nome
que se conhece relacionado com esta propriedade, é
o de Bastião Pereira, de Pomarelhe, que empraza ao
mosteiro de S. João de Tarouca, em Maio de 1551, a
«vinha da Peradanta»170, abaixo de Tourais. A denominação «Pacheca» será referida unicamente a partir
do século XVIII, provavelmente ligada à figura de Mariana Pacheco Pereira171. O casco da Quinta era prazo
do mosteiro de Santa Maria de Salzedas172, tendo senmente, por documentação económica — documentos de aquisição, prazos,
contabilidade —, alguma documentação familiar e um pequeno grupo de
documentos valiosos para a História da Arte. A documentação abrange os
séculos XVI a XX e, na sua maioria, diz respeito às famílias Mesquita de
Vasconcelos e Serpa Pimentel.
168 FAUVRELLE & LEAL, 1997: 377-385.
169 Também segundo Natália Fauvrelle (conf. FERREIRA, 2001).
170 AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 1.
171 Existe, no arquivo da Quinta, um documento datado de 1750 que
refere a propriedade pertencente «à Comenda de S. Martinho de Cambres
junto à quinta de Tourais, chamada da Pacheca» (AHQP, Fundo Pachecos
Pereira, doc. n.º 22).
172 O primeiro prazo conhecido data de 1659, tendo sido dado a José
Pereira Pacheco, filho de Manuel Pereira Pacheco e Joana Pacheco (AHQP,
Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 11). Note-se a importância deste documento, uma vez que o arquivo do Mosteiro de Salzedas desapareceu num
incêndio.
do sido alargado ao longo do século XIX por sucessivas compras de prazos e propriedades dispersas pelas
imediações de Tourais. A Quinta foi incluída logo nas
primeiras demarcações, sendo considerada apta para
produzir vinhos de feitoria destinados à exportação
para Inglaterra. Posteriormente, viu a sua situação degradar-se fruto das sucessivas pragas do século XIX,
tendo sido vendida em Setembro de 1903 a José Freire
de Serpa Leitão Pimentel e a António Machado Mendia. Os novos donos investiram na recuperação das vinhas, das áreas construídas e no alargamento da propriedade173. Embora tendo sofrido diversas alterações
ao longo do século XX, a casa de habitação tem origem
no século XVIIII, seguindo um padrão tradicional de
organização que foi mantido nos séculos seguintes.
Ainda no âmbito das investigações do GEHVID,
trabalhámos com o então estudante de Doutoramento em História, Amândio Barros, sobre o arquivo da
Quinta da Pacheca174, da família Serpa Pimentel. Neste
caso, foi estudada unicamente uma parte da documentação. No geral, os documentos foram limpos e acondicionados em material estável, tendo os pergaminhos
avulsos sido alvo de restauro (no essencial, limpeza e
planificação). Da documentação tratada, foi realizado o recenseamento, com uma descrição simples, em
base de dados, que, embora não tendo sido publicado,
foi disponibilizado à família. Desses documentos, foi
dado particular realce ao estudo dos cerca de 110 pergaminhos existentes, a maioria produzida no século
XV, uma parte na primeira metade do século XVI e
três deles, provenientes da chancelaria pontifícia, no
século XVII. Como referiu Amândio Barros, «estes
números, por si só, bastam para demonstrar a riqueza
e a importância deste arquivo. Muitos oficiais não se
podem gabar de possuir espólio tão rico»175.
O trabalho começou pela leitura e publicação176 dos
pergaminhos avulsos que, contudo, não dizem respeito à Quinta da Pacheca, tratando-se, antes, «de documentação relativa a outras terras a que os diferentes
173 AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 39 a 43.
174 O arquivo tem documentação a partir do século XV, em papel e
pergaminho, essencialmente relativa às famílias Pacheco Pereira, Serpa Pimentel, Mendia e Pereira Leitão. Desta, foram tratados os pergaminhos que
se incluem no núcleo pertencente à família Pereira Leitão, assim como um
pequeno grupo de documentos em suporte papel, pertencente ao núcleo
Pacheco Pereira.
175 Citando Amândio Barros em BARROS & LEAL, 2001.
176 Os pergaminhos avulsos (39) foram transcritos e publicados em ordem cronológica (datas limites de 1430-1557), com estudo introdutório de
Amândio Barros (BARROS & LEAL, 2001) e índices de pesquisa onomásticos e toponímicos.
122
ramos e gerações da família se encontraram ligados
ao longo dos tempos». O estudo destes documentos
permitiu «conhecer muitos dos passos da evolução patrimonial, das estratégias de aquisição de terras e das
formas de acumulação de propriedade por parte dessa
mesma família desde os tempos medievos»177. Numa
segunda fase, foram estudados os pergaminhos que
se encontram encadernados entre outra documentação manuscrita, contendo treslados dos séculos XVII
e XVIII de diplomas cronologicamente mais antigos,
entre os quais algumas cópias dos restantes pergaminhos178.
Deste arquivo muito há ainda para conhecer como
mostrou, recentemente, Amândio de Barros com a
publicação da obra «Cartas da Índia», sobre a figura de Jorge de Amaral e Vasconcelos, Ouvidor Geral
do Crime do Estado da Índia nos conturbados anos
de 1650 a 1656 (no pós-Restauração, numa época de
reconstituição dos quadros administrativos mas ainda
de guerra na fronteira), falecido (assassinado?) na Índia em 1656179.
Um excelente exemplo para regressarmos ao ponto
de partida sobre a importância dos arquivos privados,
em geral, para o avanço do conhecimento histórico,
económico e social e sobre a relevância dos arquivos
pessoais/familiares, em particular, dispersos por numerosos arquivos públicos e privados, nomeadamente
de diversas famílias do Douro, e que constituem um
património único e insubstituível.
177 Segundo Amândio Barros na obra citada.
178 Foram lidos 41 documentos (datas limites entre 14301562), que se encontram inclusos nas unidades de instalação «Livro de Compras I», «Livro de Compras III», «Livro
de Sentenças I», «Livro Inventários Cartas de Partilhas I»,
«Testamentos», «Doações e dotes», «Miscelânea Insignificante», «Papéis vários», Serviços e Mercês» (Projecto de
Investigação SAPIENS POCTI/HAR/47219/2002 «Os Pergaminhos da Quinta da Pacheca». Investigador responsável:
Prof. Doutor José Marques; investigadores Amândio Barros,
Paula Montes Leal), trabalho publicado em relatório final
para a FCT, datado de 2005 (transcrição e catálogo dos documentos, e índices de pesquisa onomásticos e toponímicos).
179 Ver o estudo e a transcrição das cartas em BARROS,
2011. Com base em documentos pertencentes ao núcleo dos
Pereira Leitão.
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Mesão Frio.
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Afrontamento. (Colecção «Fontes», n.º 1).
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123
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Porto. «Arqueologia Industrial», 4ª série. Vol. II, n.º
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da Região Demarcada do Douro/Câmara Municipal
de Alijó.
124
125
Quintas do Douro:
História, Património e Desenvolvimento
texto: Pedro Abreu Peixoto
Arquivo Municipal de Vila Real
Diretor
[email protected]
Nota biográfica:
Pedro Abreu Peixoto
É licenciado em História pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e pósgraduado em Ciências Documentais pela Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
Desde 1988 que, no âmbito do Instituto Português de Arquivos, desenvolve
estudos na área dos Arquivos de Família, tendo publicado várias monografias,
instrumentos de descrição e artigos sobre a matéria.
Em 2004 assume a direcção do Arquivo Municipal de Vila Real, tendo
implementado o sistema de gestão arquivístico actual, o qual, através de
regulamento próprio, leva às primeiras actividades de selecção, avaliação e
eliminação documental.
No âmbito do Arquivo Municipal, tem dado particular importância à actividade
da difusão da informação no quadro da transparência da administração pública e
da sua proficiência, bem como às parcerias entre o público e o privado no que
respeita aos arquivos privados.
É investigador na área da selecção e avaliação documental e da história
administrativa e política portuguesa do século XIX.
Resumo
A salvaguarda dos arquivos das Quintas do Douro
passa pelo reconhecimento da primazia do valor da
informação através do seu cruzamento com outras
fontes documentais, públicas e privadas, e pelo
desenvolvimento de parcerias entre os proprietários
dos fundos documentais e dos Arquivos Municipais,
enquanto arquivos de proximidade e como forma de
aceder a cuidados técnicos especializados.
Abstract
The preservation of the archives of Quintas do Douro
(Douro farms) implies acknowledging the primacy of
the value of information through its junction with
other documentary sources, public and private, and
the development of partnerships between the owners
of the documentation and Municipal Archives, while
institutions of proximity and as a means of access to
qualified care.
126
A
s sociedades organizadas têm a
necessidade de conservar a sua
memória histórica. Uma memória cujo
melhor garante é o arquivo, depositário
de prova das atividades desenvolvidas pelo ser humano.
O património documental é um dos mais
importantes de toda a sociedade. O seu valor atinge
todo o potencial através de programas de organização
e difusão dos fundos documentais, aproximando a
comunidade dos arquivos.
Tal torna-se possível organizando atividades
de conteúdo cultural, que levam conhecimento à
sociedade, permitindo-lhe valorizar o seu passado,
despertando uma atitude de reflexão crítica, perante
as realidades passadas e presentes da comunidade.
A experiência em países com grande tradição
arquivística, sobre a ativa função cultural dos arquivos,
remonta a algumas décadas atrás.
Superado o debate sobre a oportunidade de
incluir no trabalho arquivístico a faceta da difusão
cultural e aceite esta como de uma importância
similar aos trabalhos descritivos ou de conservação
dos fundos documentais, encontros teóricos e
práticas arquivísticas neste sentido sucedem-se a nível
internacional desde os anos cinquenta, momento a
partir do qual o Conselho Internacional de Arquivos
começa a tomar posições claras neste campo.
Juntam-se uma série de atividades e publicações
em países como a França, Itália, Grã-Bretanha e nos
antigos países socialistas, que permitirão avançar e
refletir sobre as ações postas em marcha, procurando
fórmulas mais de acordo com as novas teorias sobre a
ação cultural nos arquivos.
Veremos surgir junto das instituições de arquivo,
também em Portugal, serviços com denominações
variadas como de “educação”, de “extensão”, de “ação
cultural” ou outras, que pretendem ir para além da
missão base atribuída aos arquivos.
Estes serviços, - por vezes apenas simples ações
conforme a dimensão das instituições -, são a
concretização da inclusão da faceta da difusão cultural,
enquanto fazendo parte da missão dos arquivos, junto
da comunidade onde se inserem.
Esta dinâmica de ação e difusão cultural esteve
desde o início presente nos Arquivos Municipais.
Os arquivos dos municípios conheceram um
desenvolvimento muito diferenciado ao longo do
tempo, sofrendo um impulso decisivo na última
década, através da implementação do PARAM nos
seus diversos eixos de apoio.
Este programa de apoio aos arquivos municipais
dotará o país de uma rede de arquivos que, para além da
sua modernidade em infraestruturas e equipamentos,
revelar-se-á de enorme importância em termos da sua
proximidade aos cidadãos.
Ao exigir a dotação dos serviços de arquivo de
profissionais da área, o programa de apoio concorre
para que, pouco a pouco, as atividades dos arquivos
municipais passem a ser vistas numa perspetiva
integradora. Se, por um lado, a sua principal missão
é a gestão da informação documental do município,
na qual assume uma ação técnica e administrativa,
compete-lhe igualmente atuar enquanto agente
cultural.
No papel de agente cultural, a ação do arquivo
promove uma atividade que, de acordo com as
estratégias do município, procura proporcionar aos
cidadãos melhores conhecimentos para se situarem de
forma consciente no contexto social que lhes é próprio,
com o intuito de contribuir para a sua evolução. A
ação cultural dos arquivos municipais deve, assim,
transmitir o valor do património documental comum,
como parte fundamental da herança cultural do
município, e converter-se num centro de ação cultural,
que possa oferecer aos cidadãos elementos úteis para
a valorização e análise da sociedade atual e das suas
possibilidades futuras.
Os projetos de salvaguarda do património
documental produzido no espaço privado
devem incluir-se nesta vertente de ação cultural,
estrategicamente assumida no decorrer da missão
dos arquivos municipais enquanto arquivos de
proximidade.
Partindo das premissas de apoio à salvaguarda,
mas também à divulgação do património documental
produzido no espaço privado - onde se inserem
os arquivos das Quintas do Douro - e no apoio
à investigação e divulgação da história local,
continuamos a conviver com um grande número de
fundos e coleções privadas que, por razões de vária
índole, se encontram inacessíveis e/ou em risco.
Considerando a existência de diálogo entre o
interesse público e o interesse dos proprietários destes
fundos documentais, os arquivos municipais deverão
desenvolver projetos cujas premissas se baseiem na
importância vital da informação e da sua comunicação,
libertando-se da parte patrimonial e dos aportes mais
127
ou menos subjetivos que transportam, reservando aos
proprietários o direito a ficar com a documentação,
sendo que os mesmos devem assegurar as condições
físicas para a sua salvaguarda.
Num encontro de interesse público/privado,
os arquivos municipais deverão disponibilizar o
tratamento técnico dos fundos documentais, enquanto
os proprietários asseguram a disponibilização integral
da informação e a possibilidade de comunicação da
mesma.
Com o desenvolvimento de projetos com estas
premissas, os proprietários de fundos documentais
privados asseguram a valorização da informação e, em
parceria com os arquivos municipais, desenvolvem uma
estratégia de salvaguarda e divulgação do património
documental, apoiando igualmente a investigação e a
história local, bem como preparam as fontes primárias
para a escrita da história das instituições.
128
129
Dos Arquivos Particulares,
património a preservar, à História da Quinta da Alegria
(Carrazeda de Ansiães, 1800 - 2014)
Maria Otilia Pereira Lage
Investigadora do CITCEM – FLUP
[email protected]
Nota biográfica:
Maria Otilia Pereira Lage
Maria Otilia Pereira Lage é Licenciada em História (U. Porto, 1976),
Mestre em História das Populações (1995) e Doutora em História Moderna e
Contemporânea de Portugal (U.Minho, 2001), onde foi investigadora e docente,
tem pós doutoramento, pelo Centro de Estudos Sociais (Univ. de Coimbra, 2009).
É Pós Graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (1979)
pela Universidade de Coimbra e Especializada em Administração Escolar (IPPInstituto Politécnico do Porto,1992).
Docente, bibliotecária e documentalista, foi membro da Direcção da BAD Norte de 1995 a 1998 e, entre 1995 e 2009, chefe de divisão e directora de serviços
de documentação e publicações no IPP e coordenadora da Rede de Bibliotecas IPP.
Docente do Curso de Gestão de Património da Escola Superior de Educação do
Porto em 1995-1998, foi autora, coordenadora e docente do Curso de Tecnologias
de Documentação e Informação da ESEIG e membro dos Conselhos Pedagógico e
Científico, de 2001 a 2003.
Coordenou e participou em projectos nacionais, europeus e internacionais
nas áreas de documentação e informação científica e técnica, telemática e
bibliotecas digitais e virtuais, sendo desde 2001, orientadora e arguente de teses de
doutoramento e de mestrado em Demografia Histórica, História das Populações e
Educação e Bibliotecas.
É autora de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais, conferências
e comunicações a encontros, seminários e congressos nacionais e internacionais,
nas áreas de Estudos Sociais e Históricos, Ciências da Educação, Ciência da
Documentação e Informação.
131
Foi investigadora e membro da direcção e comissão científica do NEPS
(Núcleo de Estudos de População e Sociedade) da U. Minho de 1995 a 2008 e
é Investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura,
Espaço e Memória), Faculdade de Letras da U. Porto, Foi coordenadora e docente
do mestrado em Educação e Bibliotecas da Univ. Lusófona do Porto (2009-2012)
e Coordenadora do Centro de Língua e Cultura Chinesa do IPP e dos seus Cursos
de Mandarim, de 2001 a 2009, sendo Presidente do Centro de Estudos Chineses
do IPP.
Membro de várias associações nacionais e estrangeiras das áreas de sua
especialidade, é referenciada na “Bibliografia do Distrito de Bragança – Série
Escritores Jornalistas Artistas” de Hirondino Fernandes, Vol. IV (2012).
Resumo
A presente intervenção tem por objectivos reflectir
sobre os arquivos privados e novas práticas historiográficas, em função do interesse deste património arquivístico regional para o estudo das quintas durienses
e fazer uma primeira abordagem à história da Quinta
da Alegria, produtora de Vinho do Porto, fundada em
1800, na freguesia de Linhares do concelho de Carrazeda de Ansiães, cuja propriedade sempre se manteve
nas mãos de uma mesma família da elite local. Faz-se
uma primeira aproximação inédita, no quadro conceptual e metodológico da micro-história, com recurso a fontes directas, a esta antiga quinta, próxima do
histórico Cachão da Valeira e das gravuras rupestres
pré-históricas do Cachão da Rapa, património arqueológico nacional, junto ao apeadeiro da Alegria da linha
do Douro.
Palavras-chave: Quinta da Alegria; Douro Superior; Arquivos Privados; Carrazeda de Ansiães
Abstract
This intervention aims to reflect on the interest of
private archives and new historiographical practices
by reference to the importance of this kind of regional
papers for research and analysis of Douro estates and
make a first approach to the history of Quinta da Alegria, founded in 1800, in the parish of Linhares of Carrazeda Ansiães and whose property has always remained in the hands of the same family. Located on the
right bank of the Douro, on the border of the Upper
Douro and Douro Superior and the counties of Carrazeda and S. João da Pesqueira, this former farmhouse
is near the historic Cachão Valeira and the dam of the
same name, as well as the famous rock carvings the
prehistoric Rapa Cachão the national archaeological
heritage, situated along the way station of Alegria of
line Douro, near the Foz Tua station.
This is a first approach to this unprecedented farm
which follows on from our previous articles on other
Douro Thursday of the county, under an extended
case study on Carrazeda Ansiães, as a producer of Port
wine and develops an aspect of this work on conceptual and methodological framework of micro-history,
using direct sources, setting up its development from
the search of your private files.
Key words: Private archives; Quinta da Alegria;
Quintas do Douro (Douro Farms)
132
INTRODUÇÃO
E
nsaia-se uma breve reflexão sobre os arquivos privados das quintas durienses e,
prosseguindo a aproximação que temos
vindo a fazer a algumas quintas durienses
emblemáticas do concelho de Carrazeda de Ansiães180,
faz-se uma primeira abordagem histórica à Quinta da
Alegria de Cima, unidade produtiva rural propriedade
desde o inicio do século XIX da antiga família Mariz,
elite de proprietários locais, no concelho.
Foi possível iniciar este trabalho monográfico, graças à abertura intelectual e disponibilidade do seu actual proprietário, o Eng. Alexandre Mariz, quadro do
Grupo Simyngton e responsável técnico superior de
algumas das suas mais importantes quintas do Douro
neste concelho (Quintas dos Canais, do Tua, da Chousa...) e em Vila Flor. Para além da reduzida bibliografia
sobre esta vertente da história do concelho, os arquivos, fontes directas e informações locais/regionais disponíveis, no caso de Carrazeda de Ansiães, registam
uma grande carência e enorme dispersão, risco de
conservação, deficiente organização e inacessibilidade. Daí que se trate previamente o tópico dos arquivos
privados e sua relação com novas práticas historiográficas, em particular sobre as quintas durienses. Estas,
complexas unidades agrícolas de importante dinâmica
local e vocação comercial de escala nacional e internacional, enformam decisivamente a história milenar
do Douro cujo conhecimento mais denso e profundo
ganhará com o contributo de estudos monográficos
de quintas durienses da periferia e zona de fronteira,
como Carrazeda.
Configura-se o estudo da Quinta da Alegria, à luz
dos melhores trabalhos sobre as quintas do Douro181,
que entendemos como constructo transdisciplinar,
microcosmos de valor patrimonial e sócio-cultural,
a observar numa perspectiva interescalar e na longa
diacronia, sem perder de vista a hipótese de eventuais
afinidades com as unidades agrícolas monásticas medievais e, mais remotamente, com os casais rurais romanos.
Recorrendo à ainda reduzida bibliografia específica disponível, desenvolve-se o estudo desta quinta, na
180 Ver bibliografia final.
181 PEREIRA, Gaspar Martins - Roriz; história de uma quinta no coração
do Douro Porto: Edições Afrontamento, 2011. Prefácio de António Barreto
e textos introdutórios de Paul Symington e João Van Zeller, co-editores.
continuidade do que já se esboçou para a Quinta dos
Canais, a maior e uma das mais importantes quintas
do Douro deste concelho, em dois eixos: sua posição
e papel à escala local e, adensando a abordagem, sua
representatividade numa escala mais ampla, enquanto
fenómeno económico, social e cultural de produção
vitivinícola em meio rural na fronteira do Douro Superior.
1. ARQUIVOS PARTICULARES DAS QUINTAS
DURIENSES E MICRO-HISTÓRIA
A
importância dos arquivos particulares
das quintas durienses e a especial relevância dos arquivos pessoais dos seus
proprietários, tornam essa massa documental incontornável para o conhecimento da história
intensiva destas unidades económicas originalmente
de matriz familiar e seus respectivos impactos locais
e regionais.
Pela história das quintas do Douro e dos seus arquivos privados passa uma parte fundamental da história
da vinha, do Vinho do Porto e da Região do Douro
Vinhateiro, Património Mundial. Por aí poderá passar
também uma renovação das práticas historiográficas e
uma revivificação da história económica, social, cultural e rural ao nível local, da região duriense e do comércio globalizado do Vinho do Porto. É inegável o
seu contributo para novas pistas de investigação, para
além do esclarecimento de temas tradicionais: “produção e comércio vitivinícola, geografia dos vinhedos,
técnicas e tecnologias de fabrico, evolução dos processos produtivos, racionalização do trabalho, questões
de propriedade, gestão e administração destas unidades económicas, etc.”182
Por sua vez, o estado e importância do património
documental das quintas durienses, é assim resumido,
nesta revisão da literatura de Gaspar Martins Pereira
fez (2002):
“Disperso, na sua maior parte vedado aos investigadores, desorganizado e, em certos casos, em risco,
a importância desse património justifica medidas urgentes de preservação e valorização, quer através do
seu tratamento especializado, quer através do seu estudo. Deve, no entanto, sempre que possível, promover-se a sua conservação nas casas ou quintas que os
182 PEREIRA, Gaspar Martins – Quintas do Douro - Arquivos e Investigação Histórica. Régua, 2002. “ População e sociedade”, Porto, CEPESE, n.º 10, 2003,
p.139-143.
133
produziram, já que a sua descontextualização poderá
representar perdas de significado e de função.”183
Convém não ignorar a bibliografia especializada
entretanto produzida sobre a preservação e organização técnica arquivística, em desenvolvimento desde
2001/2002, com o novo estatuto académico da Ciência da Informação, trabalhos arquivísticos e historiográficos sobre alguns arquivos de quintas históricas
durienses184, para além da atenção dada, por exemplo,
pelo Grupo Symington185, à conservação e organização técnica de arquivos de quintas do Douro, diluídos
embora nos arquivos de grandes empresas. Deve ainda referir-se, no caso de Carrazeda, o bom estado de
conservação do arquivo privado da família Mariz da
Quinta da Alegria, e a manifestação da sua disponibilidade de acesso, por parte do seu actual proprietário.
Mas o conhecimento, localização, análise da produção administrativa e do teor informativo, organização
técnico-arquivística e acesso dos historiadores aos arquivos privados da maior parte das quintas durienses
do concelho de Carrazeda186, continuam a revelar-se,
na generalidade, um obstáculo intransponível. Para
isso concorrem, entre outros factores, as dificuldades
de acesso aos arquivos privados, dada a sua natureza
de propriedade particular, em que as frequentes mudanças de propriedade das próprias quintas, originadas em heranças, casamentos, compras e vendas, acarretam, frequentemente, impossibilidades reais de sua
guarda e transmissão orgânica. A salvaguarda destes
fundos de importância histórica requer para além de
estratégias oficiais de sensibilização dos respectivos
proprietários, mudanças efectivas das políticas nacionais de preservação deste património arquivístico e
ainda mudanças da legislação nacional arquivística187
183 PEREIRA, Gaspar Martins (2002), ob cit.
que pouco ou nada dispõe sobre a declaração de utilidade social e pública dos arquivos privados, ou sobre
a salvaguarda/ingresso destes acervos em arquivos públicos, para sua protecção como património arquivístico e cultural de interesse público para a memória da
região e valor de investigação histórica.
Genericamente considerados, os arquivos particulares podem ser técnicos, privados e comerciais (Prado, 1968:154) mas também familiares, empresariais e
mistos. Constituem em regra miscelâneas de uma diversidade de documentos que fazem parte do trajecto de vida das unidades produtoras e das entidades e
pessoas a elas ligadas. Estão em regra organizados segundo critérios individuais e encontram-se em estado
“in-orgânico” de arquivo privado, por vezes esquecidos em locais pouco apropriados à sua conservação,
sendo mesmo difícil localizá-los, aos seus possuidores
actuais.
É toda uma história internalista que por eles perpassa. Tendendo a registar aspectos relativos à história
das famílias proprietárias dominantes, as memórias aí
depositadas revelam experiências e vivências de pessoas destacadas e/ou comuns. Pendem em geral, para
a intimidade, pois não foram chamados no momento
da sua elaboração a atingir um nível de oficialidade ou
de notoriedade que caracteriza outros tipos de arquivos. Não é fácil, assim, para o historiador da história
vivida, romper os múltiplos segredos da privacidade
(Vincent, 1992: 157).
No caso concreto das quintas durienses, firmas e
famílias proprietárias, as memórias, identidade e cultura que os seus arquivos permitem revelar, podem
transformar a sua história em potencialidade estratégica competitiva face a concorrentes no mercado,
como aliás, a história das empresas feita com base nos
seus arquivos tem evidenciado. 188
184 Ob cit. Ver também a recente produção no domínio arquivístico publicada no âmbito da BAD e no contexto de licenciaturas, mestrados e doutoramentos de algumas universidades e politécnicos nacionais com formação superior e pós-graduada em ciências da informação e documentação.
185 Realce, neste âmbito, para o trabalho arquivístico desenvolvido por
Paula Montes e Marlene Cruz, arquivistas e investigadoras do CITCEM.
186 Não dispõe ainda o concelho de Carrazeda de Arquivo Municipal
próprio e a documentação referente à sua história e ao antigo concelho de
Ansiães que ele vem substituir na primeira metade do século XVIII, encontra-se genericamente mal acautelada em termos de preservação e organização, para além de muito dispersa e pouco acessível em vários arquivos
distritais designadamente de Bragança, Braga e Vila Real, Museu do Abade
de Baçal, em Bragança, AN/TT, Biblioteca Nacional, arquivos pessoais e
mesmo nas mãos de vários particulares.
187 Pesem embora, as amplas atribuições na preservação, organização e
acesso público a todo o património arquivístico nacional, consignadas ao
AN/TT na Portaria n.º 192/2012 de 19 de Junho, e Despacho n.º 9339/2012
de 11 de Julho, e as competências formais dos arquivos distritais, de incorporação, preservação, inventariação, catalogação e difusão do património
documental de cada Distrito, conforme Despacho n.º 18 834/2007, de 22
de Junho.
188 Mendes, José Amado – “Arquivos empresariais: História, memória e
Cultura de Empresa.” Revista Portuguesa de História, t. xxxv (2001-2002),
p. 379-388. Ressalve-se a propósito, que a preocupação com a protecção
dos arquivos privados relativos às empresas foi já alvo de publicação de
legislação especifica - ver Decreto-Lei nº 429/77, de 15 de Outubro.
134
2. A QUINTA DA ALEGRIA EM LINHARES, CARRAZEDA DE ANSIÃES
Fig. 1 – Vista panorâmica da Quinta da Alegria (foto do proprietário da quinta)
Fig. 2 – Vista aérea da Quinta da Alegria (foto do proprietário
da quinta)
Fig. 3 – Mapa do País Vinhateiro e património arqueológico (foto
do proprietário da Quinta.)
2.1 Localização espácio-temporal e origens da
Quinta da Alegria de Cima
Salvador do Mundo; d´aquem dá-se um imprevisto des-
A Quinta da Alegria de Cima surge-nos como uma
espécie de pequeno oásis na região de Carrazeda onde
é referência de uma propriedade bem cultivada, cuidada e rentável, nas mãos de abastados proprietários
locais da família Mariz, há mais de 200 anos.
A sua localização espacio-temporal, assim como as
suas origens encontram-se já documentadas, sumariamente, em alguma bibliografia.
lapide comemmorativa do rompimento dos rochedos do
“O vértice reintrante do angulo que o Douro aqui forma e onde está o ponto do Cachão approxima-se: d’além
a verticalidade irregular e sinistra prolonga-se e sobe
indefinidamente para os ápices em que se encarrapita S.
vio na linha de projecção e os penhascos tisnados e pardos aparecem… Numa fraga da esquerda já se apercebe a
Cachão no último quartel do século XVIII que interceptavam a navegabilidade do rio. Descreve-se uma curva e
o leito alarga, amplifica-se, desafoga-se mais, além de que,
na reintrancia, volta a apparecer a côr sorridente das cepas
pertencentes à quinta da Alegria que possue também terrenos de sementeira e horta e dá o nome ao apeadeiro do
caminho de ferro”189
Esta a localização da Quinta da Alegria nos alvores da 1ª República. No Estado Novo, início dos anos
189 MONTEIRO, Manuel – O Douro: principais quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes. Fac –Simile da Edição de 1911 Emilio Biel & Cª
Editores. Edições Livro Branco, Ldª, 1998, p. 24-25.
135
1940, uma exaustiva relação das Quintas do Douro 190
que identifica e descreve, abreviadamente, em Carrazeda de Ansiães, 29 quintas, algumas propriedade das
Firmas Cockburn & Smithes e Silva & Cosens, referencia assim, na freguesia de Linhares, concelho de Carrazeda a Quinta da Alegria de Cima:
“Proprietário: Sr Alexandre Augusto Mariz. Foi fundada em
1800 pelo sr. Luíz António Sampaio; em 1869 pertencia ao sr. Joao
Baptista de Morais e a sua produção em vinho era de 30 pipas”
Na mesma freguesia e concelho é assim também
referida a Quinta da Alegria de Baixo:
“Proprietário: Sr. Dr. Álvaro Ferreira Pontes, residente em Val-
digem. ´E servida por caminho de acesso à estação de Alegria, a
mais próxima. A sua produção é de 15 pipas de vinho (tinto) e 10
pipas de azeite, cereais e frutas diversas. Tem azenha, alambique
para destilação de bagaço e armazém com vasilhame na capacidade de 120 pipas. Esta quinta foi fundada em 1800 pelo Sr. Luiz António Sampaio e em 1869 era propriedade da filha do fundador, Srª
D. Flora de Sampaio e Melo, casada com o Sr. A. J. Ferreira Pontes.
A sua produção nessa data era de 50 pipas de vinho.”
Estamos assim originariamente em presença de
uma única e mesma quinta, a Quinta da Alegria, fundada em 1800 por Luiz António Sampaio, devendo-se
a sua divisão a casamentos e heranças e as designações
complementares “de cima” e “de baixo”, à localização
geográfica na encosta que desce do planalto de Carrazeda de Ansiães, para a margem direita do rio Douro.
A Quinta da Alegria de Cima é actualmente propriedade do Eng. Alexandre Mariz e sempre se manteve nas mãos da sua família, pelo lado paterno, a família
Mariz.191 Recebeu-a por herança de seu pai, António
Augusto Fernandes Mariz que, por sua vez, a herdara já também do pai, Alexandre Augusto Mariz, proprietário da Quinta Alegria de Cima, nos anos 1940 e
filho de João António Sampaio Mariz descendente do
fundador da Quinta da Alegria no início do séc. XIX.
Aliás, ainda nos nossos dias a actual Quinta da Alegria
de Baixo é propriedade de descendentes do Dr. Morais
Fernandes antigo médico, natural de Linhares, fundador do Colégio em Carrazeda, na década de 1960, e
190 CORDEIRO, J. Alcino - Quintas do Douro. Régua, 1941, p.3
191 Esta família com ligações ao ramo Mariz da freguesia do Amedo e
á família Sampaio da freguesia da Fontelonga do mesmo concelho, tem as
suas origens na casa-mãe na freguesia de Água Revés, concelho de Valpaços, distrito de Vila Real, hoje designada por Casa de Mariz e Sarmento,
restaurada e classificada, em 2012, como património de interesse publico,
pela Direcção Geral do Património Cultural, sendo propriedade da família Taveira de São Payo ou São Payo Alcoforado, grandes proprietários da
região que se uniram por matrimónio aos Mariz Sarmento Pimentel por
volta de 1720.
Fig. 4– Quinta da Alegria de Cima - casa e cardanhos remodelados (Foto do proprietário da Quinta)
que era ainda primo da família Mariz192. Actualmente,
descendentes dos Morais Fernandes, pela linha materna, encontram-se ligados à família Costa que em S.
João da Pesqueira, vila fronteiriça a Carrazeda de Ansiães, se mantém na produção de vinho, não tendo já
no entanto, hoje, nada a ver com a família do presente
proprietário da Quinta da Alegria de Cima que, modernizada, se encontra em plena actividade, enquanto
que a quinta da Alegria de Baixo, está agora desactivada e em ruínas.
A Quinta da Alegria de Cima entrou directamente
na posse da família Mariz através do casamento do avô,
Alexandre Augusto Mariz com Adelaide Fernandes da
família Morais Fernandes, de Linhares, cuja principal
propriedade era a Quinta da Alegria, atravessada pela
linha do Douro, junto ao apeadeiro homónimo.
2.2 Caracterização evolutiva da Quinta da Alegria de Cima
Esta quinta, que sofreu ao longo dos tempos e na
sequência de uma sucessão de casamentos, partilhas,
compras e vendas, divisões e transformações, era inicialmente uma única e grande propriedade, com mais
de 80 ha, confinando com um caminho que ligava a
terrenos da família Morais Fernandes de que descendia a avó, por linha paterna, do actual proprietário.
Teve como protagonista emblemático e tutelar,
Alexandre Augusto Mariz (1896-1978), avô por ascendência paterna do Eng. Alexandre Mariz, e principal
responsável pelos destinos e aumento do património
da casa agrícola da família, desde jovem, produtor
192 Informação do Engenheiro Alexandre Mariz.
136
excepcionalmente empreendedor e inovador, republicano convicto e amigo de longa data do sr. Smith da
Cockburn (ver fig. 6).
Na verdade, e ainda quanto à história da Quinta da
Alegria de Cima, com traços idênticos aos de outras
quintas durienses e elites locais, conforme nos conta o
neto, seu actual proprietário,193 esse seu avô:
da filoxera …que também atacou a Quinta da Alegria que apesar
de atingida e dizimada se manteve…é que a recuperação precisava
de dinheiro e o dinheiro tinha de vir de algum lado…veio dos têxteis
dos condes de Vizela os mais antigos donos de Serralves… a quinta
dos Malvedos foi comprada pelos indivíduos da Vista Alegre… a elite
do Porto…os comerciantes do principio do século vêm para o Douro… fazia parte do status ter uma quinta no Douro…
“ficou órfão de pais, aos 16 anos, deixou de estudar e começou
…mas voltando ao meu avô …ele já tinha electricidade em casa
a tomar conta das propriedades, ajudado pelo tio que era o dono da
há mais de 100 anos, produzida por um aerodínamo que mandou
casa grande de Marzagão, junto à igreja, no centro da aldeia [vizi-
vir directamente da América …lia muito e estava sempre bem infor-
nha de Linhares] que foi o que deu a casa de meus pais em Linhares,
mado… também mandava vir directamente do estrangeiro as má-
onde eu ainda vivo…todos os anos ia comprando propriedades e fez
quinas de que precisava para a casa agrícola que já era grande …
o património da casa agrícola grande . A Quinta da Alegria vem
era um agricultor já muito moderno, empreendedor e inventivo …
do lado da minha avó Adelaide Fernandes e por casamento passou
sempre trabalhou bastante mas também se resguardava…todos os
para a família Mariz. Lembro-me de que o meu avô me contava que
anos ia para as termas para Vidago. …o Sr. Smith gostava muito
havia no meio das duas partes da quinta da Alegria terrenos dos
de conversar com ele e ficava admirado do que ele fazia e sabia…
Fernandes, em que havia um senhor, irmão da minha avó que gasta-
era um visionário… excepcional… uma pessoa muito engraçada e
va tudo quanto tinha e então os terrenos foram a praça pública e ele
extraordinária…
pediu então ao meu avô para comprar todos os terrenos…aquilo foi
muito dividido porque eram famílias extensas… pelo contrário, quer
o meu pai quer o meu avô foram filhos únicos…a família era mais
restrita, ao contrário do lado materno que era mais extensa … a
minha mãe era da família Sampaio … eu até costumo dizer que sou
Sampaio ao quadrado, pois a família do meu avô paterno também
era Sampaio … o pai do meu avô era João António Sampaio Mariz
…mas dos Sampaios da Fontelonga…sim do Dr. Cabral, médico….
[a antiga família Sampaio e Melo] … o Victor Aguilar ainda começou por comprar parte desses terrenos …o Dr. Morais [da família
Morais Fernandes] era casado com uma irmã desse Victor Aguilar
cuja família esteve muito tempo em África ou no Brasil…muitas das
quintas no Douro foram compradas por gente que ganhou dinheiro
nas roças de cacau e café de S. Tomé, dinheiros vindos do Brasil … o
que explica esses chalés que aparecem no Douro … dinheiro das minas…por exemplo, a mulher do Eng. Ramiro Sobral da Quinta dos
Canais era inglesa e o pai dela dono das minas de Penedono donde
veio o dinheiro para os Canais…porque o engenheiro Ramiro Sobral
natural de Arranhados era de família muito pobre e foi criado por
uma senhora que tomou conta dele na Senhora da Ribeira [lugar de
Carrazeda de Ansiães, junto ao rio Douro, com grande concentração de quintas] …sim a antiga Quinta do Mariz, com capela,
integrada na Quinta dos Canais foi vendida por um Mariz mas do
ramo do Amedo, já em ruínas e comprada por outro Mariz que a
recuperou e depois a vendeu ao dono da quinta dos Canais…eles
como nós somos originários da casa mãe em Água Revés, cuja casa e
capela foram recentemente restauradas pela família…
...o que aconteceu no Douro depois de 1870 com as falências
193 Entrevista que me foi concedida em Carrazeda de Ansiães, dia 17 de
Maio de 2014 pelo Eng. Alexandre Mariz, natural e residente em Linhares,
casado e com a idade de 60 anos.
A acção deste seu ascendente, cuja biografia importará fazer, é seguida como exemplo pelo Eng. Alexandre Mariz, herdeiro directo e dono de toda a casa agrícola da família, agora com uma área de 99 ha, a qual
seu avô impulsionara, decisivamente, seu pai manteve
e ele tem vindo a aumentar e enriquecer o património,
restaurando antigos edifícios, replantando nova vinha
e modernizando instalações e equipamentos, sempre
investindo capitais próprios.
A Quinta da Alegria de Cima que desde sempre
teve, para além de sementeiras e horta, plantio de vinha, cedo começou a produzir vinho generoso da melhor qualidade, tem uma produção actual de 120 pipas
(vinho tinto, generoso e de mesa). A produção de Vinho do Porto é de 100 pipas, todo para exportação,
e é hoje exclusivamente vendido à Symington Family
States, como antes o fora à firma Silva & Cosens, de
inicio, e depois, durante 73 anos consecutivos, à Cockburn & Smith.
O vinho é, e sempre foi, todo feito na quinta, desde os tempos do avô, em lagares tradicionais mantidos
e recuperados, sendo actualmente a pisa já feita com
robô.
Com uma área de per si, inferior à da Quinta da
Alegria de Baixo, (que rondará os 40/50ha), tem hoje
uma área de 20 ha registados (terrenos de vinha, área
de caça, culturas e propriedades anexas) e 15 ha de vinha cujas castas seleccionadas são: Touriga Nacional
de que o avô era fã e que passou de 72% para 63%,
Touriga Francesa, Tinta Roriz e Bastardo.
A sua evolução tem sido constante, sem rupturas,
137
nem crises, desde finais do séc. XIX. Parte das vinhas
plantadas na quinta com o antigo proprietário Alexandre Augusto Mariz, e seu filho, foram já mecanizadas
pelo actual dono da quinta.
No que se refere aos vinhos de mesa, a Quinta da
Alegria de Cima tem hoje duas marcas registadas e
afirmadas no mercado nacional: o “Inquieto” (vinho
tinto) e o “Tranquilo” (vinho, branco, feito com uvas
da produção mais próxima do planalto).
O pessoal da quinta é actualmente de quatro trabalhadores permanentes, mas ocupa, na época das vindimas, mais dez trabalhadores sazonais.
Dispõe de lagares tradicionais, de pedra de granito
mas já modernizados e informatizados, com pisa mecânica, adega com a capacidade de seis tonéis antigos,
recuperados, e cubas inox, lagar de azeite antigo em
recuperação, casas de habitação, cozinha, cardanhos e
cavalariças antigas já remodelados.
O sentido de toda esta evolução assente em constantes investimentos e numa forte dinâmica de modernidade aliada à preservação actualizada da tradi-
ção ancorada em memórias e saberes ancestrais, que
se mantém desde os tempos do grande agricultor e
empreendedor de craveira invulgar, avô do presente
proprietário, é uma marca de forte identidade familiar,
local e mesmo regional, denotando grande consistência o que permite que esta unidade económica se configure como um case study.
Fig. 5- Alexandre Augusto Mariz (esquerda), J.H.Smithes (centro)
e António Pizarro (direita), 1963, ano vintage. (Foto, proprietário da Quinta)
Fig. 6- Escultura de S. Vicente colocada na Quinta da Alegria em
2004, ano de vintage (foto do proprietário da quinta)
A estreita relação estabelecida desde longa data entre o conceituado produtor da elite local e o representante de uma das mais antigas firmas exportadoras de
Vinho do Porto194 assente no respeito mútuo e consideração recíproca está representada na fotografia, cujo
194 J. H. Smithes (1910-1999), personagem marcante no comércio do
Vinho do Porto, era uma lenda entre os vinhateiros do Alto Douro e nos
gabinetes de provas em V.N. de Gaia, e está ligado ao sucesso das marcas Cockburn, na vertente da produção e provas. Entrou para a firma Cockburn em Londres em 1930, foi sócio da Companhia do Porto, a partir de
1938, e quando deflagrou a II Guerra Mundial, regressou a Inglaterra e alistou-se na RAF (Força Aérea Real). Regressou a Portugal em 1946, tendo-se
tornado um dos melhores provadores do Porto. Com o seu pai, Archie e
sócios Reggi Cobb e Félix Vigne criaram o “Estilo Cockburn” de Vinho do
Porto que permitiu à firma dominar o mercado inglês.
138
simbolismo, é também visível na data comemorativa
da mesma.
A mesma filosofia de construção identitária assente na qualidade da produção, na manutenção de um
património familiar e antigas alianças e no desenvolvimento modernizado da Quinta, é também seguida
pelo Eng. Alexandre Mariz que preserva activas ligações entre a produção local e o comércio globalizado
do Vinho do Porto, para além de manter e reinventar
práticas simbólicas de uma secular identidade vitivinícola, local e regional.
Nesse plano simbólico, surge-nos na Quinta da
Alegria de Cima, a escultura de S. Vicente (missal na
mão direita e cacho de uvas na esquerda),195 padroeiro
dos viticultores e vinicultores, peça artística mandada
construir e colocar na Quinta pelo seu actual proprietário, em 2004, ano vintage, declarado como de superior qualidade.
Poder-se-á dizer que tal decisão representa e simboliza, ainda, em si própria, a actual linha estratégica
de desenvolvimento da Quinta pautada pela procura
de uma simbiose entre tradição e modernidade. Mas
esta orientação estratégica de desenvolvimento integrado que o actual proprietário da quinta continua a
prosseguir, manifesta-se também a outros níveis, mais
pragmáticos, desde a aplicação de novas técnicas de
cultivo da vinha, à introdução de modernas tecnologias de produção e fabrico do vinho.
195 Cristão mártir do império romano, no inicio do séc. IV, seu nome é
invocado há séculos, estando também ligado aos vários trabalhos da vinha
e do vinho, ao longo do ano, segundo as variações nos hemisférios norte
e sul. O seu culto encontra-se associado à igreja St. Germain-des-Prés em
Paris.
Fig 7 – Qª da Alegria - Lagar com sistema informatizado e pisa
mecânica (foto do proprietário da Quinta)
2.3 Significado da quinta no contexto do concelho e da Região do Douro
A Quinta da Alegria, uma das quintas históricas do
Douro Superior é, por algumas das suas características
Fig 8 – Qª da Alegria - Lagares tradicionais recuperados e modernizados (foto do proprietário da quinta)
já introduzidas, uma das mais singulares na zona da
ribeira de Carrazeda e hoje ainda uma das quintas do
concelho, mais modernizadas, cuja produção vinícola de elevada qualidade, leva a que se diga localmente
que o seu vinho fino, todo para exportação, é de consumo habitual na casa real inglesa.
Marca registada da Quinta os tintos “Inquieto”, são
apreciados na restauração de qualidade, garrafeiras
de topo e lojas gourmet. A sua promoção publicitária
combina elegante marketing, e informação rigorosa e
técnica, apelativas da tradição histórica.
Todo o processo de produção, bem organizado
continua a ser feito integralmente na Quinta, sendo a
sua gestão, administração e comercialização, asseguradas pela empresa “Douro Prime, Ldª”, constituída em
2008, por quatro sócios, ex-funcionários da Cockburn
&Smith: Miguel Côrte-Real (produção e comercialização), Manuel Matos de Carvalho (director de enologia), Alexandra Martins (área financeira) e Alexandre
Mariz, (área da produção), que trabalham em equipa
multidisciplinar. Os principais produtos vinícolas da
empresa são feitos com uvas da Quinta da Alegria de
Cima e de outros fornecedores seleccionados na sub-região do Douro Superior, e lançados no mercado nacional com implantação nos mercados internacionais.
A sede da empresa, criativa e de conhecimento inten-
139
sivo, é no Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto (UPTEC), onde beneficia das sinergias
de inovação empresarial.
CONCLUSÃO
A história da Quinta da Alegria de Cima, propriedade longeva da família Mariz, é referência no concelho
de Carrazeda, pela sua continuada solidez económica
e superior qualidade de produção de vinho generoso
comercializado ao longo dos tempos por algumas das
mais históricas firmas de exportação inglesas de Vinho do Porto. Caracteriza-se pela equilibrada articulação entre tradição e inovação, notável estabilidade,
estratégias de gestão e desenvolvimento autónomo,
práticas e técnicas modernas de vitivinicultura, no que
concerne aos últimos 100 anos. A reprodução familiar
de sua posse durante dois séculos, nas mãos da mesma família, é fruto da capacidade para acompanhar
continuadamente as mudanças, contra uma geral tendência para a frequente transferência de propriedade
verificada no território duriense, associada a compras
e vendas em épocas de crise seguidas de novos investimentos. O seu actual proprietário, importante quadro
técnico de históricas firmas de produção e exportação
de Vinho do Porto, e produtor empreendedor com
vasto conhecimento da Região Vinhateira Duriense, à
qual se mantém ligado, por relações de trabalho e de
vida, é parceiro fundamental no processo de investigação histórica que se prossegue.
BIBLIOGRAFIA:
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Régua: Edição de autor.
LAGE, Maria Otília Pereira (2011) – Construção de
materiais de memórias na Região Demarcada do Douro: Narrativas orais de antigos trabalhadores da Quinta
dos Canais. «CEM, Cultura, Espaço &Memória: Revista do CITCEM», nº 2, p. 51-74.
LAGE, Maria Otília Pereira (2012-2013) – Carrazeda de Ansiães como produtor de Vinho do Porto: Memórias e identidades conjunturais em espaço de fronteira.
Um estudo de caso alargado na Região Demarcada do
Douro (I República). «Brigantia: Revista de Cultura»
(separata), vol. XXXII. Bragança, p. 291 -315.
LAGE, Maria Otília Pereira (2013) – Os ‘Canais’ e
outras quintas em Carrazeda de Ansiães da Cockburn
Texto de intervenção na Oficina de Investigação Científica CITCEM - «Da produção à marca: um case study
no Vinho do Porto (Cockburn)».
MENDES, José Amado (2001-2002) –Arquivos
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MONTEIRO, Manuel (1998) – O Douro: principais
quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes. Fac
–Simile da Edição de 1911 Emílio Biel & Cª Editores.
Ed. Livro Branco.
PEREIRA, Gaspar Martins (2011) – Roriz: história
de uma quinta no coração do Douro. Porto: Edições
Afrontamento.
PEREIRA, Gaspar Martins (2003) – Quintas do
Douro - Arquivos e Investigação Histórica. Régua, «População e sociedade», Porto: CEPESE, n.º 10, p. 139143.
Fontes
Entrevista a Eng. Alexandre Mariz, proprietário da
Quinta da Alegria. Carrazeda de Ansiães, Maio 2014.
Fotografias de arquivo particular da família Mariz.
140
141
Painel 4
Arqueologia
das Quintas
do Douro
Pedro Pereira
143
A importância da Arqueologia
para a história da vinha e do vinho na região do Douro
Pedro Pereira
Investigador do CITCEM – FLUP
Nota biográfica:
Pedro Pereira
Licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto
e realizou um Master em Histoire, Archeologie et Langues Anciennes na Maison
de l’Orient et de la Mediterranée, em Lyon, sobre a Economia e Produção de
vinho romano na bacia do Douro e um Doutoramento em Histoire, Archeologie
et Langues Anciennes na Université Lumière-Lyon II, com o título “Economie et
production du vin dans la Lusitanie dans l’Antiquité Tardive”.
Investigador do UMR 5138 Archéologie et Archeonometrie (CNRS) e
do CITCEM-FLUP (FCT). Trabalha enquanto arqueólogo independente e,
actualmente, co-director de três projectos de investigação arqueológica na região
do Douro.
Resumo
O impacto da Arqueologia na história do vinho
no Douro apenas é possível aferir compreendendo a
História da Arqueologia em Portugal e em Espanha,
como ela se desenvolve nestes países e, em concreto,
na região.
Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Ricardo Severo ou Fernando de Russel Cortez,
entre tantos outros, nenhum deles arqueólogo de formação per se, iniciarão a investigação arqueológica na
região, através de estudos etnográficos e escavações
que hoje consideramos serem o nascimento da Arqueologia na região.
Abstract
Archaeology’s impact on the Douro wine history
can only be understood through the History of Archaeology, in Portugal and in Spain, how it develops
as a science in these countries and, specifically, in this
region.
Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Ricardo Severo or Fernando de Russel Cortez,
among many others, none of them archaeologists per
se, have begun their research in the region, through
ethnographic studies and excavations. We consider today that these mark the birth of the Douro’s archaeology.
144
Desde cedo que a historiografia tradicional, muitas
vezes partindo de lendas locais, idealismos políticos
ou puro “bairrismo” associa a vitivinicultura a tempos imemoriais na região duriense. Os primeiros a dar
os passos numa “recolecção” de elementos antigos e
“curiosidades” não são historiadores ou arqueólogos,
mas simplesmente pessoas interessadas em saber algo
mais sobre a história da sua região e que lançarão as
fundações para a História do Vinho no Douro.
Palavras chave: História do Vinho; Douro;
Since early on, traditional historiography has associated the birth of viticulture in the Douro to the very
early stages of human evolution, may this be through
local legends, political ideology or simply parochialism. Nevertheless, the first people responsible for the
first steps on the formation of Douro’s history were not
historians or archaeologists. They were simply curious
about the Douro’s history and, through recollecting
ancient remains and curiosities, they would unwillingly launch the foundations for the Douro’s wine history.
Keywords: Wine history; Douro
OS PRIMEIROS ARQUEÓLOGOS NO NORTE
E NO DOURO
A
Arqueologia em Portugal tem vindo a
ser alvo de análise historiográfica nas
últimas décadas por vários investigadores196. Todavia, a maioria dos trabalhos
de síntese centram-se nos arqueólogos “do Sul”, dos
trabalhos em torno de Lisboa ou no Alentejo. No Norte do país, com a excepção de alguns artigos dispersos,
deve ainda ser feito um trabalho de análise profunda
sobre como se forma e evolui a Arqueologia enquanto
ciência social e humana.
No âmbito de trabalhos académicos que temos
vindo a desenvolver nos últimos anos e sobre os quais
tivemos também que debruçar sobre a história da investigação arqueológica, deparamo-nos com a pouca
informação sobre o desenvolvimento da arqueologia
no Norte, sobretudo no que concerne o Vale do Douro.
A História da Arqueologia no Norte de Portugal
encontra as suas fontes no trabalho de André de Resende, considerado como o pai da Arqueologia Portuguesa, que no século XVII trabalha sobre os vestígios
antigos de Braga. Todavia, será sobretudo com a disseminação de associações arqueológicas na segunda metade do século XIX, concomitantemente com a ascenção de ideologias nacionalistas, que o Norte começará
196 Podemos aqui citar os trabalhos de Francisco de Sande Lemos
(2001) ou Carlos Fabião (2011).
a ser alvo de estudos arqueológicos mais aprofundados. É neste contexto que se iniciam os trabalhos, por
exemplo, de Martins Sarmento na zona de Guimarães.
Porém, quando referimos especificamente os primeiros estudos da Arqueologia no Douro, poderíamos
citar inúmeros nomes mas alguns adquirem especial
relevo. Leite de Vasconcellos, médico e arqueólogo,
que publica pela primeira vez uma referência à Quinta
da Ribeira em 1900, Henrique Botelho, que desenvolve um trabalho extenso sobre a história e arqueologia
da região em torno de Vila Real, focando-se sobretudo
na zona de Alijó ou ainda Ricardo Severo. Este último, engenheiro de formação, inicia-se muito cedo na
Arqueologia. A sua primeira publicação, aos 17 anos,
sobre as ruínas da Cividade de Bagunte, é disso mesmo exemplo. Fundador da Sociedade Carlos Ribeiro,
viria a ser um escritor profuso sobre as mais variadas
cronologias e temas dentro da Arqueologia. Quando
em 1898 funda a revista Portugália marca definitivamente o panorama arqueológico do Norte de Portugal. Será nesta revista que serão publicados os achados
da Quinta da Ribeira, em Tralhariz, em 1903. Infelizmente, a publicação termina em 1908, devido à falta
de financiamento. Divergências políticas fazem com
que Severo parta para o Brasil ainda nesse ano, ficando
nesse país até à data da sua morte na década de 1940.
145
Fig. 1 - Sessão inaugural da IX Sessão do Congresso Internacional de Antropologia e de Arqueologia Pré-Históricas, na sala
da biblioteca da Real Academia das Ciências de Lisboa, em 20 de
Setembro de 1880, perante D. Fernando e D. Luís (in "Occidente",
15 de Outubro de 1880).
Um arqueólogo que aparenta fazer a ponte entre
as investigações iniciadas por Leite de Vasconcellos e
Severo é Fernando de Russel Cortez. Embora topógrafo de formação, Cortez terá um papel preponderante
na investigação arqueológica no Norte de Portugal na
sua época, sobretudo na região do Douro. A partir de
uma bolsa concedida pelo IVP em 1946, este arqueólogo inicia uma série de prospecções na região duriense, como provam os relatórios enviados ao director da
instituição197. Em 1947, inicia a escavação do Alto da
Fonte do Milho. Embora este sítio já tivesse sido visitado anteriormente e, inclusivé, publicado198, será Cortez que encontrará a estrutura que mais nos interessa
aqui: o primeiro lagar romano integralmente escavado
em Portugal. O Alto da Fonte do Milho será posteriormente referenciado e várias vezes discutido na bibliografia científica199, embora nunca tenha sido alvo de
um processo de re-escavação ou de estudo concreto
dos materiais daí provenientes. Estes estudos elaboram, muitas vezes, observações menos positivas, tanto
ao nível do processo de escavação do sítio tal como das
interpretações de Cortez.
Em 2010, iniciaram-se trabalhos de re-escavação,
promovidos pela Direcção Regional da Cultura Norte,
que acabaram por comprovar uma série das interpretações de Cortez, tais como a designação de castellum,
uma vez que o arqueólogo suspeitava estar perante um
sistema defensivo, ou ainda as datações realizadas na
época, que atribuía uma datação variável entre os séculos III e IV da nossa Era. Efectivamente, foram detectadas estruturas defensivas no perímetro exterior
do sítio. Da mesma forma, a interpretação actual é que
estaremos perante um sítio que foi construído durante
a Proto-História e que foi extensivamente re-ocupado
e reformatado no patamar mais alto durante a Romanização, área onde os trabalhos de Cortez se concentraram.
197 CORTEZ, 1947.
198 TEIXEIRA, 1939.
199 ALARCÃO, 1988; ALMEIDA, 2006.
146
O ESQUECIMENTO E O RE-APARECIMENTO DA ARQUEOLOGIA NO DOURO
E
ntre a década de 1950 e meados da década de 1970 aparenta dar-se um vazio na
investigação no Douro. As intervenções
arqueológicas rareiam e as publicações
acabam por se centrar em análises e re-análises do que
já antes se havia feito.
A realidade é que nos trinta anos que se seguiram
às intervenções de Russel Cortez no Alto da Fonte do
Milho, poucos avanços se sentiram na investigação arqueológica do vinho no Douro. Um factor, que a nosso
ver, é fulcral para este vazio na investigação aparenta
ser a nova ordem política vigente em Portugal.
O mesmo que observamos com os estados dictatoriais europeus de meados do século XX, desde as
expedições à América do Sul pela Ahnenerbe nazi até
ao trabalho da SNEA franquista em Manzanares é lisível nos documentos da época em Portugal. O estado, centralizador e repressivo, tem neste momento um
objectivo claro na construção do discurso científico:
Fig. 2 Escavação da Fonte do Milho (in Cortez, 1947). Mais tarde,
a estrutura será identificada como a cella vinaria.
enaltecer a Nação e a identidade nacional. A atribuição da coordenação e direcção da tutela ao director do
Museu Nacional de Arqueologia, em 1932 (decreto-lei
21117 de 18/IV/1932), contribui para um estrangulamento da investigação a nível nacional e um fecho da
Arqueologia portuguesa sobre si mesma. Da mesma
Fig. 3 - 1º Congresso de Arqueologia do Norte de Portugal (espólio da família Cortez, c. 1940).
147
forma, a suspensão da maior publicação nacional da
especialidade, O Arqueólogo Português, entre os anos
20 e 50, a sua re-abertura e crescente centralização em
torno de Lisboa, aumenta a insularidade da investigação no Norte, sobretudo aquela realizada no Vale do
Douro.
A revista Trabalhos de Antropologia e Etnologia
da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, associada ao Instituto de Antropologia Dr. Mendes Corrêa, corta com o isolamento da investigação
arqueológica do Norte de Portugal a partir dos anos
60, mas sobretudo nos anos 70 e 80 do século passado.
A título de exemplo, o director desta publicação, Joaquim Santos Júnior200, faz uma série de paralelos entre
o culto do vinho na época e desde as publicações do
Abade de Baçal, ao culto do vinho romano, uma perspectiva inovadora que apenas será repertoriada décadas mais tarde201.
Nas décadas de 1980 e 1990, o aparecimento esporádico de associações culturais na região duriense,
como a Associação Cultural do Douro, pelas mãos do
padre Parente, renova algum interesse na Arqueologia
da região, iniciando processos de escavação e localização de sítios, embora, na maioria dos casos, sem
grande rigor científico. Serão projectos como o da Associação Cultural Desportiva e Recriativa de Freixo
de Numão, pelas mãos de António de Sá Coixão ou o
Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo, pelas
mãos de um pequeno grupo de estudantes de História,
variante Arqueologia da Universidade do Porto, que
vingam até aos nossos dias, que conseguiram contribuír largamente para o nosso conhecimento arqueológico do Douro na atualidade. Nestas duas décadas,
também as Universidades desempenham um papel
fulcral, sobretudo sobre a investigação sobre a Arqueologia do Vinho. O projecto “Lagares escavados na
rocha”, as escavações na Quinta de Ervamoira ou em
São João da Pesqueira, da Universidade Portucalense
ou o Grupo de Estudos sobre a História da Vinha e do
Vinho do Vale do Douro da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, fundado em 1994, que promoveu dezenas de intervenções arqueológicas pelo Vale
do Douro e Trás-os-Montes, desenvolvendo projectos
que deram azo a centenas de publicações sobre a Arqueologia do e no Douro e mais especificamente sobre
a Arqueologia do Vinho na Região.
200 SANTOS-JÚNIOR, 1964.
201 CASQUERO, 2004; PEREIRA, 2008; PEREIRA, 2014a.
A Arqueologia empresarial, fruto em larga medida do processo de construção e abandono do projecto
de construção da barragem de Foz Côa, em meados
da década de 1990, tem também fornecido novos elementos para a história do Douro, tanto em Portugal
como em Espanha. Todavia, a falta de publicação de
muitos destes resultados e os constragimentos económicos e temporais a que muitas vezes os arqueólogos
responsáveis estão sujeitos, levam a que os frutos deste
trabalho acabem por ser conhecidos apenas dentro da
comunidade científica, quando o são.
148
A ARQUEOLOGIA DO VINHO NO DOURO
NOS NOSSOS DIAS
A
ctualmente, a investigação sobre a Arqueologia e História do Vinho no Douro tem vindo a desenvolver-se moderadamente. Infelizmente, continua-se a
citar trabalhos com componentes empíricas raras ou
nulas, sendo percepção generalizada de que o vinho
do Douro tem ligações aos romanos, mas faltando,
em grande medida, trabalhos de escavação e, sobretudo, trabalhos de análise, associando-se a outras áreas
como a antracologia, química e engenharia, e sobretudo, de síntese.
O trabalho desenvolvido em Píntia, na Necrópole
de Las Ruedas, é exemplo disto. Fruto de um projecto
da Universidad de Valladolid, o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela equipa liderada por Carlos Sanz é notável, sobretudo para a compreensão de
como é que as comunidades indígenas da proto-história consumiam o vinho quando este era uma novidade no Vale do Douro. No decurso de uma escavação sem precedentes na zona, foram detectadas quasi
10.000 sepulturas, sendo que Sanz afirma estarmos
perante uma área continuadamente utilizada para enterramentos em inceneração durante mais de quinze
gerações202. Nesta escavação foram detectadas peças
de cozinha, de imitação, normalmente associadas ao
banquete grego, mais especificamente ao consumo de
vinho, como as oikonoe ou as kernos.
Em Portugal, o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido nas áreas da Mêda e Foz Côa pela ACDR-FN tem vindo a demonstrar dados muito interessantes para a compreensão de como evolui a organização
social e humana no período romano. Neste trabalho
tem-se analisado de sobremaneira a componente económica do estabelecimento romano, inclusivamente
a história e evolução da viticultura no Sul do Douro.
Escavações de sítios como o Prazo, Rumansil II, Vale
do Mouro, Área Urbana de Freixo de Numão ou a Colodreira tem aumentado o conhecimento sobre as tecnologias de produção, transporte e armazenamento de
vinho durante o Império no Vale do Douro de forma
excepcional. A forte ligação desta associação à população local tem permitido ainda uma divulgação sem
paralelos da cultura do vinho, desde a romanização até
202 GÁNAN, 2010.
aos nossos dias na região.
Todavia, a história económica do vinho não tem
sido esquecida, com vários trabalhos realizados, sobretudo na perspectiva da Arqueologia de salvamento
ou empresarial na zona do Porto, por exemplo. Podemos citar aqui o trabalho realizado na Casa do Infante, que tem vindo a dar contributos preciosos para a
economia, do vinho e não só, desde a época medieval.
Na perspectiva mercantil do período romano, novos projectos tem vindo à tona, como o do projecto de
Castr’Uima (2010-2014) em Crestuma, Vila Nova de
Gaia. Neste contexto, foi descoberta uma estrutura de
embarcadouro tardo-antigo no qual foram descobertas ânforas vinárias tardias, de importação de vários
pontos do Império no Vale do Douro.
A par e passo com a evolução dos projectos de investigação, também a Arqueologia Empresarial inicia
a aumentar o volume e qualidade das suas publicações.
Deste facto é fruto as inumeras apresentações resultantes do empreendimento hidro-eléctricos do Baixo Sabor, do Vale do Tua, dos acompanhamentos da
ampliação da A4 e da construção do IC5, entre tantos
outros.
A legislação torna-se aqui incontornável como protecção do património cultural e também do próprio
trabalho dos arqueólogos. Após várias reformulações
a legislação actualmente em vigor é de 2001, a Lei de
107/2001 de 8 de Setembro, que “estabelece as bases da
política e do regime de protecção e valorização do património cultural”, estando o património arqueológico
considerado nos artigos 74 a 79, que considera que todos os “bens provenientes da realização de trabalhos
arqueológicos constituem património nacional” (Art.
74, nº 3) e que “aos bens arqueológicos será desde logo
aplicável, nos termos da lei, o princípio da conservação pelo registo científico” (Art. 75, nº 1). Encontra-se
igualmente consagrado que “os promotores das obras
ficam obrigados a suportar, por meio das entidades
competentes, os custos das operações de arqueologia
preventiva e de salvamento tornadas necessárias pela
realização dos seus projectos” (Art. 79, nº 3).
Infelizmente, muitos dos trabalhos realizados no
âmbito da arqueologia empresarial acabam por ser
muito dispares, sendo que a larga maioria dos trabalhos são extremamente circunscritos, com identificações sumárias e sem publicação, científica ou, simplesmente, de divulgação. Assim, as visões de conjunto e
os estudos de território saídos de trabalhos arqueológicos de salvamento acabam por ser muito diminutos,
149
Fig. 4 - Localização das explorações agrícolas romanas com produção de vinho na Região Demarcada do Douro (a partir de mapa criado por M. Nogueira, 2007).
com uma grande quantidade de informação em bruto
que sai do campo e acaba por não ser alvo de estudos
aprofundados.
A evolução da Arqueologia do Vinho no Douro das
últimas décadas tem-se regido por uma aproximação
à etnografia e à história local, intrinsecas para a compreensão de como é que a viticultura surge e evolui. O
exemplo de trabalhos como “As arquitecturas do Douro”203, que estuda as estruturas de vinificação e armazenamento existentes e permanentes no Vale do Douro desde a época romana204. Efectivamente, escavações
recentes, como é o caso de Vale do Mouro ou Prazo,
revelam que a probabilidade de se terem utilizado estruturas muito similares já no período romano é extremamente alta205, em contraste para com a perspectiva
tradicional da utilização exclusiva de dolia para o armazenamento de vinho no Douro romano206.
Nos nossos dias, um dos problemas mais comuns
para a compreensão de como é que a viticultura evolui
203 FAUVRELLE, 2005.
204 PEREIRA, 2007.
205 PEREIRA, 2014b.
206 FABIÃO, 2011.
e floresce no Vale do Douro prende-se com a agricultura intensiva de vinha no Vale, desde o século XVIII,
com as demarcações pombalinas. Embora esse período marque um interesse exponenciado no cultivo da
vinha, serão destruídos inúmeros sítios arqueológicos com os arroteamentos e construção de socalcos
no Vale, conservando-se apenas alguns sítios em zonas mais remotas ou de maior dificuldade de acesso,
como sucede com o Alto da Fonte do Milho. Noutros
casos, como sucede com a Quinta de Nossa Senhora
da Ribeira, em Tralhariz ou com a Quinta do Noval,
em Alijó, a conservação parcial de sítios de exploração
agrícola de períodos mais recuados deveu-se a meros
acasos, mas cuja existência nos tem vindo a auxiliar a
compreender como e quando é que o vinho surge no
Vale do Douro.
A escavação de explorações agrícolas de época
romana nas últimas décadas tem-nos proporcionado uma melhor compreensão sobre como é que o vinho era produzido, armazenado e dado indicações de
como ele seria plantado e comercializado.
O caso da escavação do sítio do Prazo, em Freixo de
Numão, que tem sido prolífica em dados para a compreensão de como se estruturava a ocupação humana
150
na região do Douro, é exemplo disto mesmo. O estabelecimento de exploração rural que existia neste sítio
na época romana é o segundo com produção de vinho
descoberto na região e o primeiro com uma estrutura de produção típica: cella vinaria rectangular com,
na extremidade Norte, uma estrutura de prensagem e
uma bateria de tanques.
Infelizmente, a re-ocupação e reformulação do
sítio durante a época medieval destruíu uma grande
parte dos vestígios que formavam parte das estruturas
ligadas à produção de vinho.
Intimamente ligado ao Prazo encontramos Rumansil I. Com uma cronologia útil entre os séculos III e Vº
d.C., esta exploração agrícola poderá ser uma anexo
do Prazo. Todas as estruturas deste sítio são dedicadas
à produção e transformação de vinha.
Outro caso de uma exploração agrícola de época
romana vocacionada para o vinho, Vale do Mouro,
foi alvo de um primeiro processo de escavação entre
2003 e 2011. Um dos principais frutos deste estudo foi
a descoberta de uma villa romana de peristilo numa
zona do Império onde se pensava não existir este tipo
de estrutura. Para além disso, a escavação permitiu
descobrir uma cella vinaria extremamente completa e
com uma re-ocupação muito limitada. Assim, foi possível realizar um estudo sintomático da produção de
vinho durante os séculos IIº e IIIº d.C.
As diversas escavações realizadas na zona têem
vindo a detectar uma realidade similar, embora com
as suas sinergias e especifidades locais, ao que sucede
no resto do Mediterrâneo. Um ponto interessante é a
aparente combinação de elementos de várias culturas
nos processos de transformação das uvas, como é o
caso do Alto da Fonte do Milho, onde a estrutura de
lagar é algo anómala relativamente aos preceitos arquitectónicos das escolas clássicas207, possívelmente devido à geologia local, compreendendo sobretudo xisto
na sua construção. Da mesma forma, podemos citar
o caso de Rumansil I, onde uma bateria de tanques
aparentemente teria utilidades para tipos de colheitas
diferentes.
Vale do Mouro é outro caso à parte. Com uma estrutura de cella vinaria algo similar à do Prazo, este
sítio tem paralelos mais evidentes para com Torre
de Palma ou Pardigon III, onde se a cave de vinho
se desenvolvia em dois andares, um utilizado para a
produção em massa enquanto que outro seria utiliza207 VITRUVIUS, VI, 6.
do para a conservação de vinhos velhos. Nesta villa
encontramos mesmo um tipo de estrutura que, até
ao momento, aparenta não ter paralelo no território
peninsular: uma sala de provas, onde os visitantes e
eventuais compradores seriam convidados a provar as
produções locais.
As recentes escavações no Vale do Sabor teem permitido aumentar o conhecimento sobre o período de
transição entre o período romano e o período medieval. Escavações de sítios como Crestelos ou Cemitério
dos Mouros tem fornecido dados importantes para
entender como é que a actividade agrícola e vinicola
continua a expandir-se no Vale do Douro. Os dados
disponibilizados por testamentos é também essencia,
pelo menos para compreender como é que se espalhou
o fenómeno da viticultura no Douro, embora esta informação esteja ainda, na sua maioria, em bruto: se no
século II d.C. as populações locais têm um contacto
algo restricto com o vinho, este produto generaliza-se
a um ponto em que é de facto corrente a transmissão
de propriedades com vinha é comum apenas cinco séculos mais tarde. Todavia, será sobretudo a partir do
século XIV que possuímos uma grande quantidade de
informações escritas sobre a viticultura no Douro.
Actualmente, há ainda muito trabalho a desenvolver. É premente uma revisão integral e concertada
de escavações e estudos realizados no Vale do Douro,
conciliando a perspectiva da etnografia, sistemas de
informação geográficos e ciências como a química,
para se ter uma perspectiva clara de como é que evoluiu a história do vinho e da vinha nesta região. Infelizmente, a inexistência de projectos de investigação de
amplitude verdadeiramente regional, questão já visivel
desde o período de F.R. Cortez208 e muitas vezes ligada
a questões de bairrismo ou idealismos políticos fazem
com que esta seja uma questão de difícil resolução.
208 Este investigador tenta, na década de 1960, criar um primeiro “Museu do Douro”, baseado na Casa do Douro. Infelizmente, apenas 50 anos
mais tarde é que este projecto será levado avante.
151
Fig. 5 - Plano da escavação de Vale do Mouro, 2013 (Damien Tourgon)
152
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272
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2ªs Atas do Museu de Lamego PDF