Victor Marques dos Santos | Professor Associado ISCSP – UTL
Portugal, a CPLP e a Lusofonia
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Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política
1 – Introdução A língua e a cultura constituem elementos patrimoniais da matriz identitária
das nações. A sua defesa e promoção representam, por isso, uma expressão
operatória inequívoca do conceito de interesse nacional permanente acentuando, ao
mesmo tempo, a relevância decisiva da dimensão cultural da Política Externa.
Considerando a imperatividade da defesa e da promoção da identidade cultural
portuguesa, através de uma política externa centrada na concretização de objectivos
consensualizados em termos de interesse nacional, torna-se pertinente e oportuno,
reflectirmos sobre a dimensão cultural da política externa portuguesa, como vector
estratégico específico, da afirmação de Portugal no mundo.
Estas reflexões revestem-se, aqui e agora, de um significado especial. Em
primeiro lugar porque, dentro de um ano, celebraremos o primeiro centenário da
fundação do nosso Instituto, cujos antecedentes remontam à criação da Escola
Colonial, fundada a 18 de Janeiro de 1906, na Sociedade de Geografia de Lisboa,
pelo Senhor Dom Carlos I, Rei de Portugal.
Em segundo lugar, porque a nossa Escola é também a expressão concreta dos
esforços desenvolvidos pelo Professor Adriano Moreira, que ao longo de mais de
cinco décadas, tem procurado acentuar a importância e o significado da dimensão
cultural e linguística dos relacionamentos entre as comunidades lusófonas. A atribuição do seu nome ao auditório em que nos encontramos constitui, para além da
homenagem, o reconhecimento da simbiose operada entre uma figura de
referência incontornável da vida pública, académica e científica portuguesa, e a
instituição universitária secular, à qual se dedicou desde 1950, e que projecta, hoje,
a sua dinâmica na sociedade portuguesa, ao serviço da Ciência, da Comunidade e
do País.
Finalmente, porque entrámos num novo século, num novo milénio, e os
tempos que atravessamos, e ainda mais os que se adivinham, adquirem contornos
inesperados, difusos e preocupantes. Perante a inevitabilidade de os enfrentarmos,
*
Texto da Oração de Sapiência da Sessão Solene de Abertura do Ano Lectivo de 2004/2005 do Instituto
Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, proferida no Auditório
Adriano Moreira, do ISCSP – UTL, em 12 de Janeiro de 2005.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
Externa*
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torna-se imperativo e urgente um exercício de reflexão individual e colectiva sobre
o que significa ser português, e sobre o que queremos que Portugal seja hoje e no
futuro, enquanto estado soberano integrado na comunidade internacional.
Para vencermos os desafios que se perfilam no horizonte imediato será necessária a mobilização de todos os recursos disponíveis e de todos os esforços. Neste
contexto, a língua e a cultura portuguesas constituem áreas de potencialidades
estratégicas inexploradas, aguardando apenas que as vontades políticas se
conciliem com a imaginação criativa e a ousadia inovadora dos portugueses e dos
luso-falantes espalhados pelo mundo, no sentido de as transformarem em
realizações concretas, através de projectos de acção, que visem a presença activa e
a participação consequente dos povos de expressão lusófona, no seio de uma
comunidade humana, em processo de mudança acelerada. Pensamos que a
Universidade, em geral, e o ISCSP, em particular, deverão assumir um desempenho
fundamental nesse processo.
Iniciaremos estas breves reflexões descrevendo a génese da ideia que esteve na
origem da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Referiremos, o
papel da organização na defesa da lusofonia, bem como a problemática da sua
identidade cultural e política. Desenvolveremos uma perspectiva sobre a CPLP e a
lusofonia, enquanto factores da dimensão cultural da política externa portuguesa,
e enquanto vectores potenciais de projecção estratégica, num plano alargado de
realização do interesse nacional.
2 – A génese de uma ideia O relacionamento informal estabelecido, ao longo de vários
séculos, entre os povos que utilizam a língua portuguesa como vector comunicacional, constitui o embrião da CPLP. No entanto, o “espírito de comunidade”
que inspirou a sua génese precedeu, de mais de um século, a fase constitutiva actual.
Talvez possamos considerar como uma das primeiras manifestações concretas
desse “espírito de comunidade”, o interesse demonstrado pela Sociedade de Geografia
de Lisboa sobre o acompanhamento da diáspora lusíada, através da recolha e do
tratamento de dados sobre as comunidades portuguesas residentes no estrangeiro,
processo cuja origem remonta à proposta de criação de um “curso colonial”, avançada
em 1878, e ao inquérito lançado, no ano seguinte, por Luciano Cordeiro 1.
Em 1956, o Professor Agostinho da Silva recomendava que Portugal e o Brasil
promovessem a criação de uma associação “com base linguística e de afecto cultural
1
Cfr. Óscar Soares Barata, “Adriano Moreira: Quarenta Anos de Docência e Acção Pública”, in Estudos em
Homenagem ao Professor Adriano Moreira, 2 vols., Lisboa, ISCSP-UTL, 1995, vol. I, pp. 67-68.
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2
Cfr. João Domingues, “CPLP. Génese de um Novo Bloco Económico-Cultual”, resumo de dissertação de
mestrado, in www.terravista.pt /portosanto/ 1646/politica_cultural_vs politic_ec.htm
3
Cfr. José Adelino Maltez, “Sobre a Estratégia Cultural Portuguesa”, separata do Boletim da AICP, n.º 18, Lisboa,
1991, p.129 e notas 14 e 15.
4
Cfr. Adriano Moreira, apud Óscar Soares Barata, ob. cit., p. 69 e nota 62.
5
Cfr, Óscar Soares Barata, ob. cit., p. 71.
6
Ver, Adriano Moreira, “Instituto Internacional da Língua Portuguesa” in, idem, Comentários, Lisboa
Instituto de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa,
1992, pp. 61-68.
7
Cfr. Maria Regina Marchueta, A CPLP e seu Enquadramento, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
Janeiro de 2003, p. 116 e nota, 108.
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comum” 2. O “contexto de afinidades” transatlânticas deveria projectar-se através da
formalização, conferindo expressão institucional à realidade que o Professor José
Adelino Maltez identificou como uma “comunidade de significações partilhadas” 3,
consensualmente reconhecida. Durante a década de 1960, o Professor Adriano
Moreira, na Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa, empenhou-se nesse
sentido, promovendo o desenvolvimento de acções junto das comunidades de
emigrantes portugueses.
Em 1964, na Sessão de Encerramento da Semana do Ultramar, o Professor Adriano
Moreira proferia uma conferência sobre o tema “Congregação Geral das Comunidades
Portuguesas”. E a 8 de Dezembro desse ano, na Sessão Inaugural do I Congresso das
Comunidades Portuguesas, resumia a sua proposta na seguinte passagem: “devemos
tentar unir-nos para, mais fortes, defendermos os valores que até aqui temos
sustentado isoladamente. Nada se pede ou deseja de novo que não seja trabalhar em
comum: sejamos exactamente os mesmos, mas sejamos companheiros” 4. O Congresso
aprovaria, entre outras resoluções, a criação de uma União das Comunidades de
Cultura Portuguesa e de uma Academia Internacional da Cultura Portugesa.
O II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa realizou-se em
Moçambique, em Julho de 1967. Nas respectivas conclusões, recomendava-se a
criação, do Instituto Camões, vocacionado para os estudos sobre a língua
portuguesa 5, e sugeria-se ainda a criação de um Instituto Nacional do Livro, para
além de gabinetes de estudos económicos, centros de documentação e publicações
periódicas.
Ao longo deste processo, são particularmente significativas as propostas do
Professor Adriano Moreira sobre a criação da Universidade Internacional Luís de
Camões e, sobretudo, a sua proposta de organização de um Instituto Internacional
da Língua Portuguesa6, ideia esta que seria, posteriormente, “rebuscada” e “reinventada” por “outros arquitectos do edíficio lusófono” 7. Com efeito, a proposta seria
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retomada e reformulada pelo Embaixador José Aparecido de Oliveira, e concretizada
pelo Presidente do Brasil, José Sarney, antes mesmo, do próprio governo português
ter lançado as bases do Instituto Camões, o que viria a acontecer em 1992 8.
Como escreveu Dário de Castro Alves, “[a] ideia da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa surgiu de considerações de natureza linguística e histórico-cultural. Por considerações de natureza linguística entendem-se as referentes à
importância e à valorização da língua portuguesa, isto é, da lusofonia. Para delimitar
o espaço em que se fala o português, devemos percorrer os quatro continentes na
companhia de populações as mais variadas, por vezes imensas, por vezes diminutas
(...)A ideia de uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nasce, assim, da
percepção desses elementos de união, entre os quais avulta, naturalmente, o suporte
do idioma comum” 9.
A CPLP afirma-se, actualmente, como uma comunidade plural, enriquecida pela
diversidade, unida em torno do factor linguístico comum, funcionando como
fórum de encontro e de cruzamento das culturas da lusofonia. Ao mesmo tempo, a
CPLP constitui a expressão institucionalizada do mundo lusófono, convencionalmente formalizada pelos respectivos estados membros, através dos quais se
articula, também, com as numerosas comunidades de luso-falantes espalhadas pelo
mundo.
Todas estas realidades sócio-culturais espacialmente dispersas, se desenvolvem
indiferentes às fronteiras territoriais que a cartografia reproduz, inequivocamente
ligadas pelo idioma comum, irmanadas por tradições, usos e costumes integrados
em expressões culturais próprias e diferenciadas, aproximadas por afectos, lealdades
e sentimentos de pertença, que a geografia ignora, mas que se inscrevem na alma
dos povos e na “gramática das civilizações”.
Esta dimensão social e humana da realidade geocultural lusófona, adquire
expressão em termos de uma projecção extensa e diversificada, que o Professor
Óscar Soares Barata reconhece e identifica “[na] área onde se aceita o português
como língua de referência, quer por ser a língua de todos, quer por ser a língua
oficial, quer por ser a língua da localidade de origem da linhagem, a da escola ou a
do culto ou a que a família usa em casa, ou ainda por ser aquela que se sente ser a
base da comunhão num longo percurso histórico com Portugal, espalha-se pelo
mundo, abrange muitas terras que em tempos antigos ou recentes estiveram sob o
8
9
Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., pp. 129-130.
Cfr. Dário de Castro Alves, “A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, in Nação e Defesa, n.º 74, Lisboa,
Instituto da Defesa Nacional, Abril-Junho de 1995, pp. 77-91, p. 81.
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3 – A CPLP e a Defesa da Lusofonia A Declaração Constitutiva da CPLP, assinada em Lisboa,
a 17 de Julho de 1996, reconhece explicitamente a importância matricial da língua
portuguesa, referindo o “relacionamento especial” e “a experiência acumulada em
anos de profícua concertação e cooperação”, como realidades legitimadoras da
vontade política comum. Os estados signatários propõem-se conjugar iniciativas
para a “promoção do desenvolvimento económico e social dos seus Povos e para a
afirmação e divulgação cada vez maior da língua portuguesa”.
Relativamente à defesa da língua portuguesa, considerada como “vínculo
histórico” e “património comum”, como “instrumento de comunicação e de
trabalho”, como “meio privilegiado de difusão da criação cultural entre os povos
que falam português e de projecção internacional dos seus valores culturais”, bem
como “fundamento de uma actução conjunta”, os países membros declaram, entre
outros objectivos, “incentivar a difusão e o enriquecimento da Língua Portuguesa
potenciando as instituições já criadas ou a criar com esse propósito, nomeadamente o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)”, para além de
“envidar esforços no sentido do estabelecimento (...) de formas de cooperação
entre a Língua Portuguesa e outras línguas nacionais nos domínios da investigação
e da sua valorização”.
A defesa da lusofonia transcende, no entanto, a sua área de concretização
específica, devendo ser perspectivada numa dimensão de transversalidade relativamente às áreas da cooperação multilateral e da concertação político-diplomática
internacional dos estados membros. O multilateralismo caracteriza o método
funcional de actuação da CPLP no plano da concertação internacional. Neste âmbito,
as acções mais directamente relacionadas com a defesa da lusofonia, são as
actividades institucionais de articulação e da celebração de acordos com organizações
10
Cfr. Óscar Soares Barata, “As Bases Demográficas da Lusofonia”, in O Mundo Lusófono, Sociedade de Geografia
de Lisboa, 1994, p. 9.
11
Cfr. Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 220.
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controlo político português, outras em que o cristianismo ou o conhecimento da
Europa e da sua civilização chegaram por intermédio dos portugueses, outras ainda
em que o português entrou como língua de imigrantes” 10.
Neste sentido, deveremos reconhecer que “Portugal, enquanto nação cultural,
ultrapassou a pátria portugesa, dos limites portucalenses e, neste momento, para
além da nação portuguesa, gerida pelo Estado da República Portuguesa, existe uma
super-nação, mais cultural do que política” 11.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
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congéneres, fundadas com base na representação e na defesa de outras comunidades
linguísticas. Neste contexto, tem sido significativa a participação da CPLP na União
Latina e, designadamente, na iniciativa dos “Três Espaços Linguísticos”.
Ainda no plano da concertação internacional, e com o objectivo específico da
defesa da lusofonia, deveremos assinalar o reconhecimento da língua portuguesa
como idioma de trabalho de várias organizações internacionais, prosseguindo
actualmente os esforços no mesmo sentido, em relação aos Acordos de Cotonou e a
algumas agências especializadas da ONU, prevendo-se também a instalação de um
Centro de Língua Portuguesa e Cultura Lusófona na sede da União Africana, em Adis
Abeba. Esta iniciativa, proposta pelo Instituto Camões, reveste-se também de um elevado significado estratégico, perante as ofensivas anglófona e francófona, em África.
Mas é no plano fundamental da sociedade civil que se regista a transnacionalização das comunidades luso-falantes e, entre estas, das comunidades de
emigrantes lusófonos espalhadas pelo mundo, articuladas numa rede de
solidariedades informais, ao longo de uma fronteira de expressão territorial difusa,
mas de contornos humanos concretos e bem definidos nas suas componentes social,
linguística e cultural.
Esta dimensão sócio-cultural da lusofonia constitui um potencial estratégico
praticamente inexplorado, mas cuja realidade, transcende a expressão espacial e
geopolítica de cada estado signatário da CPLP, superando as percepções nacionais
sobre a respectiva inserção geoeconómica e de relacionamento político-diplomático, conferindo um significado próprio e um peso específico à organização dos estados lusófonos no contexto internacional, traduzindo-se num
“espaço de influência cultural bem mais vasto do que a dimensão territorial do
conjunto dos seus Membros” 12.
Com efeito, os objectivos de defesa da lusofonia alargam-se para além do
espaço territorial da CPLP, reconhecendo-se que a “difusão e a valorização internacional” da língua portuguesa deverão constituir interesses nacionais permanentes
dos seus estados membros, numa perspectiva de projecção estratégica e de
influência geocultural globalizante.
Inserindo-se num movimento de formação tendencial de “grandes espaços”, a
CPLP “institucionaliza e alarga” o conteúdo operacional do conceito de lusofonia. Por
um lado, a organização baseia-se nos factores linguístico e histórico-cultural comuns,
enquanto elementos fundamentais potenciadores da coesão da matriz aglutinadora,
dos princípios de coerência da acção e das dinâmicas internas da organização.
12
Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p.143.
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13
Cfr. Vamireh Chacon, O Futuro Político da Lusofonia, Lisboa, Verbo, Dezembro de 2002, p. 25.
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Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
Mas, ao mesmo tempo, a CPLP institui-se como um fórum de defesa da lusofonia,
não só pelo reconhecimento unânime dos argumentos referidos, mas porque se
verifica um processo de consciencialização entre os vários sectores da sociedade civil,
designadamente, dos representantes do tecido económico-empresarial, dos
responsáveis da educação, da formação universitária e politécnica especializada, e das
ONGD’s, sobre o facto de que a lusofonia constitui um instrumento de projecção
estratégica, de afirmação e defesa de interesses incomparavelmente mais vastos e
diversificados, do que aqueles que adquirem conteúdo nos conceitos operatórios
estritos de política cultural externa ou de defesa nacional.
Porém, sobre esta perspectiva alargada das potencialidades da lusofonia,
considerada como vector cultural no plano destas políticas, não existe conceito
estratégico de convergência, operacionalmente definido. Talvez pela noção tácita de
que a dimensão política da defesa nacional que transcende a componente militar,
atenua o significado dos seus efeitos de longo prazo, por entre tantas outras políticas
sectoriais inerentes às actividades diversificadas da vida política do quotidiano dos
estados, pressionados pela exigência imperativa da gestão das circunstâncias e dos
planos de contingência.
Na ausência de uma perspectiva integradora das coerências políticas e das
acções, as componentes não militares da defesa nacional, apesar de reconhecidas na
singularidade de cada política sectorial, apresentam-se desarticuladas, quer pela
diversidade dos objectivos, quer pelo primado dos interesses particulares das
entidades intervenientes nos processos decisionais.
À descoordenação subjacente, corresponde a falta de um planeamento estratégico integrador das políticas, polarizador e orientador das linhas de acção, no
sentido da promoção permanente de uma estratégia coerente e consistente da defesa
da lusofonia. Esta deveria, por sua vez, adquirir expressão através de uma política
externa estruturada em torno de desígnios nacionais convertidos em objectivos
concretos e, neste contexto, numa política cultural exogenamente dirigida, de
promoção activa e consequente, da língua e da cultura portuguesas, perspectivadas
como instrumentos decisivos no processo de concretização desses objectivos, logo,
de realização do interesse nacional.
O Professor Vamireh Chacon reconhecia, recentemente, que ”[a] lusofonia tem
como primeira lição a firmeza da vontade nacional portuguesa, maior que a galega ou
a catalã, incorporadas por Castela, mesmo numa Espanha de regiões autónomas e
semifederalista. Vontade nacional de independência e de projecção transoceânica...” 13
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
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Subsiste, desde então, um facto incontornável: a defesa da lusofonia confunde-se
com a defesa da própria identidade cultural portuguesa, inserindo-se, por
consequência, num conceito extenso de defesa nacional.
Mas a defesa da lusofonia transcende o contexto referido, constituindo também
parte integrante da defesa nacional de todos os estados signatários da CPLP, porque
faz parte do seu património cultural e linguístico, definindo-se como factor
identitário e de coesão interna e, ao mesmo tempo, como vector de projecção
estratégica, no plano das respectivas políticas externas, facto este, que é reconhecido
no próprio acto fundador da organização dos estados lusófonos.
Neste contexto, a lusofonia deve constituir, também, a primeira linha de defesa
numa frente de acção alargada, amplamente reconhecida pelas várias entidades da
sociedade civil portuguesa, ligadas às mais diversas actividades do sector
económico, como o I Fórum Empresarial da CPLP claramente afirmou.
Também outros estados já entenderam a importância de lusofonia como vector
de projecção estratégica. Neste plano, o caso de China torna-se paradigmático ao
realizar, em Macau, em Outubro de 2003, o Fórum para a Cooperação Económica
entre a China e os Países de Língua Portuguesa, elgendo assim, aquela Região
Administrativa Especial, como “a placa giratória” a partir da qual, se promovem as
relações privilegiadas com os países africanos lusófonos e com Portugal, através do
elemento cultural comum que é a língua portuguesa.
Com efeito, a convergência sinérgica entre as vertentes económica e cultural, permite rectificar a perspectiva dicotómica e falsamente dilemática, das escolhas políticas
entre economia e cultura. A este propósito, o Professor Adriano Moreira referia, ainda
no início da década de 80, que “[é] o poder cultural, e não outro, que devidamente
ajudado deve presidir aos esforços e acompanhar a evolução” 14. E nas vésperas de
formalização institucional da CPLP, o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso
reconhecia na futura organização, “a primeira comunidade onde a produção cultural”
induziria toda a dinâmica do desenvolvimento económico e político 15.
Neste sentido, as estratégias de afirmação identitária e de projecção potenciada da
lusofonia na comunidade internacional, através da CPLP, e das políticas externas dos
estados que a compõem, e que adquirem expressão, tanto no plano da cooperação
multilateral, como no plano da concertação internacional, exigem também um
14
Cfr. Adriano Moreira, “O Poder Cultural”, in Nação e Defesa, n.º 18, Lisboa, Instituto da Defesa Nacional,
Abril-Junho de 1981, p. 51.
15
Cfr. Fernando Henriques Cardoso, em entrevista ao semanário Expresso, conduzida por Iza Sales de Freaza,
13 de Julho de 1996.
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16
17
Cfr. João Domingues, ob. cit.
Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 144.
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Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
projecto comum. As acções sectoriais desse projecto, devem incluir a definição e a
concretização de objectivos, designadamente, de articulação comunicacional e partilha
de informação, de programas educacionais, de sistemas de ensino, de formação de
recursos humanos, de intercâmbio cultural, universitário, científico e tecnológico.
Por outro lado, e tal como referido, a diáspora cultural e linguística da lusofonia
estende-se a comunidades espacialmente dispersas, que se situam fora das áreas
territoriais dos países lusófonos. Mas também neste plano, deverá ser a CPLP a
promover uma política de cooperação sustentada com os países onde essas
comunidades se encontram radicadas, tal como considera João Domingues, por
forma a “fomentar novos incentivos na área cultural e a desenvolver as potencialidades aí existentes. A CPLP deverá ter uma visão de enquadramento e de futuro
no que respeita a essa política..(...) [Cabe-lhe] a liderança desse processo de
investimento, sob pena de outras comunidades congéneres o fazerem em seu
próprio proveito”16. De facto, a participação da CPLP na referida iniciativa dos “Três
Espaços Linguísticos”, tem facultado uma experiência institucional inequívoca,
sobre a assertividade das estratégias de penetração cultural do espaço lusófono, por
parte da francofonia e da hispanofonia.
Esta preocupação acentua o significado, a importância e as dimensões diversificadas que a defesa da lusofonia envolve. O aumento da capacidade de exercício
de influência por parte dos estados membros da CPLP no plano internacional passa,
imperativamente, pela afirmação e pela consolidação de uma imagem caracterizada,
não apenas pela credibilidade e coerência da acção política mas, sobretudo, pela
consistência de uma identidade cultural e linguística.
Neste sentido, torna-se admissível considerar que “[a] conjugação de uma
diplomacia tradicional oficial com fórmulas de diálogo multilateral, sectorial e
especializado, permite tornar a (...) intervenção [da CPLP] mais abrangente” 17. Ao
mesmo tempo, esta dimensão da lusofonia torna-se decisiva na defesa da
individualidade identitária, independentemente do estatuto político-jurídico das
áreas territoriais nas quais se inserem, e dos contextos nacionais, étnicos ou religiosos em que essas identidades específicas adquirem expressão social, e a partir dos
quais desenvolvem interacções com outros povos.
É nesta perspectiva que João Domingues afirma que “as novas comunidades
linguísticas (...) têm, no seio da globalização, o papel de moderadoras, de
reconciliação entre o nacional e o mundial, (...) de espaço de identificação e de
80
convergência de ideais...” 18. Neste contexto, as acções de Portugal e da CPLP, deverão
desenvolver-se também no sentido da construção de um espaço cultural de expressão
geograficamente diversificada, mas de coerência linguística concreta e sustentada.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
4 – A Identidade Cultural e Política da CPLP A noção de comunidade refere-se, geral-
mente, a uma realidade grupal, da qual se faz parte por natureza, à qual se pertence
mais por inevitabilidade, do que por escolha ou decisão própria. Rege-se mais pelo
afecto e pelo sentimento de pertença, pela informalidade das normas, das práticas e
dos costumes, pelos laços que interligam os indivíduos de uma geração e as
sucessivas gerações entre si. Mas a noção implica também a realização de um
conjunto de interesses próprios e comuns que, em última análise, a definem 19.
No caso da CPLP, a língua portuguesa e a vivência histórico-cultural, multi-secular, de experiências partilhadas, de contactos e interacções, de relações
complexas, de transacções assimétricas, que os tempos e as circunstâncias, as vontades e as capacidades dos homens determinaram, constituem esse denominador
cultural comum, cuja expressão transcende o idioma e se afirma no entrosamento
de elementos culturais lusófonos, com os traços específicos de cada uma das outras
culturas, estabelecendo um vínculo de pertença comum, entre as expressões
diversificadas que caracterizam o mundo da lusofonia.
Apesar disso, a existência da CPLP tem evoluido através de uma circunstancialidade política altamente condicionante, sendo considerada por alguns, como mera
realidade virtual ou pura ficção, sendo perspectivada por outros, como a expressão
institucional de um mundo lusófono que urge desenvolver e potenciar. Ao longo do
curto período da sua existência, tem-se verificado um processo de aquisição progressiva de maturidade organizacional e política, própria de uma instituição que
adquire experiência através da prática de uma multilateralidade baseada no idioma
comum.
Por outro lado, dadas as características muito diferenciadas entre as realidades
geoeconómicas, geopolíticas e sócio-culturais dos estados membros, e dos inerentes
processos específicos de aproximação de cada um desses estados à realidade política e
institucional da organização, verifica-se que o equilíbrio instável dos contextos domésticos, frequentemente determinado pela indução exógena da mudança, tem originado
prioritizações diferenciadas quanto à CPLP, no âmbito das agendas de política externa
18
19
Cfr. João Domingues, ob. cit..
Ver, Carlos Lopes, “Entre o Regional e o Global”, in “CPLP. Entre Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em
Português, n.º 45 / 47, Lisboa, Princípia / Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Junho-Setembro
de 2003.
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20
Cfr. Vicente Pinto de Andrade, “Uma Perspectiva Africana”, in O Mundo Lusófono, Sociedade de Geografia de
Lisboa, 1994, pp. 39-40.
21
Cfr. Carlos Lopes, ob. cit.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
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Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
dos estados membros, atenuando e desvalorizando a percepção sobre as sinergias
que se desenvolvem entre a defesa da lusofonia, e os outros interesses nacionais.
Daqui resultam, por sua vez, processos de participação assimétrica, de intensidade, consistência e geometria variáveis, segundo ritmos diferenciados, ao nível
das vertentes sectoriais que transcendem o plano linguístico-cultural. Essa
participação parece resultar mais dos interesses unilaterais considerados prioritários, do que de uma coordenação efectiva e motivada pelos interesses multilaterais
reconhecidos, e de objectivos comuns, no plano dos sectores envolvidos. Regista-se,
de facto, a ausência de uma percepção generalizada sobre os interesses partilhados
que transcendem o plano do denominador cultural comum, no sentido da materialização de benefícios concretos, para os estados e para os povos da CPLP.
Com efeito, o funcionamento normal da organização através das actividades
inerentes às suas três áreas de actuação fundamentais, deveria processar-se no sentido de conferir um peso específico crescente à CPLP, em termos de reconhecimento
internacional e de projecção de influência dos seus estados membros, nos
respectivos contextos geopolíticos, geoeconómicos e institucionais.
Considerava-se, ainda em 1994, que a falta de vontade política e a lógica do
primado absoluto dos interesses nacionais, contribuíam para esta disfunção. Vicente
Pinto de Andrade afirmava, então: “[c]reio que tudo isto acontece porque não há
um projecto de grande folgo que consubstancie os interesses de curto e longo prazo
dos sete países de língua portuguesa. A criação e funcionamento de uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, para vingar e frutificar, terá de envolver não
só os políticos dos nossos países, mas também – e principalmente – as nossas
sociedades civis. Temos que, antes de tudo, compreender essa necessidade e interiorizá-la, a fim de servir de motor propulsor das nossas respectivas políticas
nacionais em todos os domínios” 20.
Neste contexto, o peso económico e demográfico do Brasil no seio dos oito,
torna-se decisivo. Carlos Lopes reconhecia, recentemente, que “[q]ualquer política
de expansão da língua portuguesa tem de ter uma razão e um substracto económico
que só o Brasil está em condições de proporcionar (...). As exigências da globalização requerem uma utilização dinâmica das línguas. O investimento nas novas
tecnologias de comunicação é indispensável para não relegar o legado linguístico e
cultural para um localismo curioso. A força do Brasil é mais uma vez indispensável
para tal investimento” 21.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
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No plano dos interesses nacionais brasileiros, a realidade dos factos aponta, no
entanto, para outras prioridades, relativamente ao Atlântico Sul e à África 22. Em
Fevereiro de 2003, o ministro da Cultura do Brasil abordava esta questão, considerando que “a língua portuguesa é (...) o elemento fundamental para a transmissão e
para a permuta”, o “meio de comunicação” e o “mais importante” “ente do espírito
de todos os entes espirituais que nos dizem respeito, que constituem e ligam os nossos
povos a todos esses povos”. E concordava com a necessidade de um “desígnio político
novo”, definindo o relacionamento do Brasil com África, como um objectivo
estratégico, e reconhecendo que “[m]uito pouca coisa tem sido feita” 23. É significativo
que o ministro da Cultura do Brasil não se tenha referido à CPLP, nem enquanto
organização dos estados lusófonos que o seu país integra, nem em termos de
prioridade da política externa brasileira, enquadrada no contexto dos respectivos
interesses estratégicos.
Apesar de tudo, a CPLP afirma-se, no plano internacional, como uma “realidade
política” concreta. Por um lado, a organização promove a convergência dos indivíduos e dos povos, atenuando o efeito separador das fronteiras convencionais,
estabelecendo um novo quadro de referências sócio-culturais, definindo-se como
elemento politicamente estabilizador dos contextos regionais de relacionamento, integrando espaços e territórios identificados segundo uma lógica de coerência própria,
construindo um grande espaço desterritorializado, definido por uma fronteira cultural
e linguística comum, transversal e solidária, de expressão afectiva, social e humana.
Por outro lado, a CPLP regista um processo evolutivo de influência crescente e
multifacetada, como factor de ponderação e espaço de alternativas, nas políticas
internas e externas dos estados membros. O seu peso político constitui um elemento
potencialmente determinante das alterações de atitude e de comportamento dos
outros estados, nos seus relacionamentos intra-regionais com os países signatários,
tornando-se, por isso, um factor estrutural e estruturante do sistema internacional 24.
No entanto, como reconhece Maria Regina Marchueta, “[e]m quase todos os sectores de intervenção, mesmo no sector estratégico da língua portuguesa, a dinâmica
interna da CPLP pode considerar-se ainda incipiente e dispersa, verificando-se algum
desajustamento entre os objectivos enunciados e a realidade dos factos” 25. E, tal como
afirma Carlos Lopes, as agendas políticas dos estados membros da CPLP “estão longe
22
Cfr. Luís Fontoura, “CPLP. A Importância do Brasil no Espaço Lusófono”, separata do Boletim da Academia
Internacional da Cultura Portuguesa, n.º 28, 2001, p. 237.
23
Gilberto Gil em entrevista ao jornal Público, Lisboa, 2 de Março de 2003.
24
Ver, Cláudio Alves Furtado, “Cabo Verde e a CPLP. A Busca de uma Integração (Im)possível?” in “CPLP.
Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em Português, ob. cit.; Abdul Magide Osman, “CPLP. Que futuro”,
in idem, ibidem.
25
Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 159.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
5 – A CPLP e a Lusofonia na Política Externa Portuguesa A consolidação institucional e a
potenciação estratégica da CPLP, devem constituir objectivos de prioridade elevada
no contexto da política externa portuguesa, inserindo-se num projecto de realização
nacional, permanente e bem mais vasto. “Cumprir Portugal” implicará, necessariamente, definir e situar o Estado Português na comunidade internacional, e perspectivar o futuro de Portugal no Mundo.
26
Cfr. Carlos Lopes, ob. cit.
Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 141.
28
Cfr. idem, ibidem, p. 148.
29
Ver, para além dos vários autores citados, Fernando A. A, Mourão, “O Défice Político da CPLP” in “CPLP.
Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em Português, ob. cit.; Mário Pizarro, “Mais Mito que Realidade”,
in idem, ibidem.
30
Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 148.
27
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
83
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
de se compatibilizar (...) A falta de um conteúdo económico determina a fragilidade
institucional da CPLP. As agendas políticas, sobretudo em política externa, também têm
ditado as opções diferenciadas” 26. Neste sentido, a CPLP parece representar,
essencialmente, uma instância instrumental de recurso dos estados signatários, de
prioridade estratégica variável, dependente das conjunturas e das contingências.
A concertação político-diplomática sistematizada, a consolidação institucional e
a consistência política das decisões, tardam em evidenciar as vantagens do multilateralismo e em fortalecer a vontade política dos estados membros, sem a qual a CPLP
continuará a carecer de “um projecto que supere e subordine os interesses particulares dos Estados que a compõem” 27. Com efeito, “[t]em-lhe faltado, até agora,
(...) a coerência política, diplomática, económica e cultural, susceptível de delinear
um projecto comum” 28, como forma de afirmação construtiva, perante as exigências do ambiente internacional, e como forma de intervenção participativa e
consequente, perante os desafios da globalização, que transcendem o plano intergovernamental dos relacionamentos, adquirindo em ambos os casos, expressões
diversificadas aos níveis local, nacional, regional e global 29.
Neste contexto, talvez se torne admissível perspectivar actualmente a CPLP, não
tanto como uma comunidade de sociedades civis e de povos lusófonos projectada
na acção, mas como “uma comunidade imaginada, assente numa noção que tem de
essencial a ‘alma do povo português’, que se identifica com a diversidade cultural,
étnica e geográfica dos povos que a integram” 30, mas que se encontra limitada, em
termos de realização de interesses objectivos, pela variável dos regimes políticos,
pelas contingências e pelos interesses circunstanciais dos estados que os enquadram,
expressos nas motivações, nas vontades e nas decisões, dos indivíduos e das
instâncias políticas que os governam.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
84
Subjacente a estes objectivos, estará sempre, e em primeiro lugar, a imagem que
temos de nós próprios como nação, e a percepção que tivermos de Portugal nesse
Mundo que transcende a comunidade internacional, na afirmação da comunidade
humana. Trata-se, com efeito, de construir uma perspectiva sobre o lugar e a missão
de Portugal e dos portugueses, num contexto mundial globalizado. E é neste sentido
que “cumprir Portugal” significa imaginar, planear e realizar os “sonhos partilhados”
do seu povo, dessa “comunidade de sonhos”, em que Malraux reconheceu a nação.
Em termos de política externa, trata-se da gestão de um encontro de culturas e de
um contexto político-diplomático e negocial, caracterizado pela dinâmica entre competição e cooperação, pela dialéctica entre constrangimentos e oportunidades, nas mais
diversas instâncias e circunstâncias relacionais, num ambiente onde actores muito
diversificados se debatem pela aquisição ou pelo aumento das capacidades de exercício
de influência no plano internacional, através de uma afirmação identitária sustentada.
Perante as ameaças difusas a essa identidade, os factores fragmentários e as
múltiplas lealdades alternativas, aleatórias e efémeras, variando ao sabor de critérios
evolutivos e transitórios, de moda ou de conveniência, a defesa da identidade cultural
portuguesa reveste-se de uma importância crucial e de uma exigência de afirmação
activa e empenhada, metódica e estrategicamente planeada. A defesa intransigente dessa
identidade cultural, através do seu inerente vector linguístico, deverá, permanecer
como princípio orientador da coordenação das políticas sectoriais, adquirindo
expressão em termos de política de defesa nacional e de política externa.
É nesta “frente” que se registam os processos de erosão identitária, e que se
defrontam as dinâmicas determinantes das formas e das condições da existência
futura da nação que somos, na terra que é Portugal. É, de facto, no plano linguístico,
cultural e sócio-histórico, que os países de língua portuguesa, os seus cidadãos e a
lusofonia registam diariamente as mais frequentes agressões 31.
Trata-se de um processo permanente, do nosso quotidiano, através do qual, os
cidadãos são tendencialmente convertidos em veículos de promoção de estratégias
mediatizantes fragmentadoras, tacticamente integradas em contextos de competição
agressiva, desenvolvidas ao serviço de desígnios políticos alheios, mas inequivocamente
identificados. Esse processo traduz-se num fenómeno de erosão gradual do património
identitário nas suas dimensões linguística e cultural, frequentemente induzido pelos
próprios agentes processuais, na ausência de uma percepção correcta sobre a importância
da missão que desempenham e sobre a extensão e o significado dos interesses colectivos
envolvidos, em consequência de uma formação cívica, escolar e profissional deficiente.
31
Ver,Victor Marques dos Santos, Conhecimento e Mudança. Para uma Epistemologia da Globalização, ob. cit., pp. 130-131,
e o Capítulo VI, “Globalização e ‘Sociedade de Informação’ ”, notas e referências bibliográficas. Ver,
também, a obra de George Modelsky, principalmente, Long Cycles in World Politics, London, Macmillan, 1987.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
32
Cfr. José Adelino Maltez, “As Relações Internacionais, a Escola e a Vida”, in Óscar Soares Barata, coord.,
Primeira Avaliação do ISCSP, 1997/1998 – 1998/2000, 2 vols., vol. I, Lisboa, Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa, 2002, pp. 243-251, pp. 248-249.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
85
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
Neste contexto, torna-se admissível considerar que a defesa e a promoção da
língua e da cultura deverão constituir objectivos políticos prioritários do Estado
Português implicando, nesta perspectiva, acções a desenvolver, tanto no plano interno,
como no plano internacional. No primeiro caso, serão necessárias intervenções
coordenadas em três áreas de actuação. Desde logo, ao nível do ensino básico do
português nas escolas. Em segundo lugar no plano da formação específica dos
recursos humanos, dirigida a todo o tipo de funções desempenhadas pelos cidadãos
portugueses envolvidos em contactos internacionais. Neste plano, os professores de
português no estrangeiro adquirem, naturalmente, uma relevância específica.
Finalmente, ao nível da monitoração e da responsabilização efectiva de todas as
entidades públicas e privadas, no sentido da exigência de uma correcta utilização da
língua portuguesa falada e escrita, na comunicação e na divulgação pública de todo
o tipo de informação. O sucesso destas acções dependerá, no entanto, de uma
evolução das mentalidades, no sentido da procura da excelência sustentada do
desempenho, e da aquisição de uma cultura de avaliação sistemática dos resultados
concretos e dos efeitos prospectivos.
No plano dos relacionamentos internacionais, o ensino extensivo, sistemático e
sustentado da língua portuguesa às comunidades luso-falantes, e a preparação de
professores estrangeiros para o ensino do português, deverão constituir imperativos
políticos nacionais. Neste plano, verifica-se o reconhecimento inequívoco da
necessidade de uma atitude pró-activa que deverá materializar-se através de uma
política cultural exogenamente dirigida, que coordene a convergência das acções
potenciadoras da língua e da cultura portuguesas, como instrumentos da projecção
estratégica de Portugal. Só desta forma conseguiremos desenvolver uma participação
consequente nos processos de mudança transformacional em curso, e potenciar a
capacidade de realização dos interesses portugueses numa ordem mundial
globalizada.
Esta evolução de mentalidades e alteração de atitudes, serão cruciais para a
viabilização de Portugal como estado soberano. É neste sentido que “[o] nosso
presente e o nosso futuro, como entidade politicamente autónoma, com vontade de
ser independente, dotada de uma identidade cultural e de uma ordem concreta, o
nosso futuro como cultura, nação e Estado, está cada vez mais dependente da
capacidade que demonstrarmos para gerirmos as interdependências no plano das
Relações Internacionais” 32.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
86
Sofreremos, talvez, da “disfunção nacional”, que o Professor António José Telo
identificou 33 e que tem condicionado, através dos séculos, as formas e as capacidades de articulação de Portugal com o sistema internacional, determinando uma
influência exógena significativa, por vezes decisiva, do sistema internacional, sobre
as mudanças internas do País. Se é certo que a prospectiva nos habituou a um
elevado grau de incerteza quanto à indagação do futuro, afigura-se, no entanto,
como extremamente improvável que consigamos obter, do exterior, os meios e os
recursos que permitam a Portugal continuar a manter essa “disfunção nacional” e,
ao mesmo tempo, desempenhar um papel activo e consequente, ou mesmo subsistir
enquanto estado, no contexto sistémico e geopolítico em que nos inserimos 34.
Numa reflexão recente, o General Garcia Leandro considerava que “[o] desafio
que se nos impõe é a autocorrecção ou o definhamento e futuro desaparecimento” 35 e que, no sentido de vencer esse desafio, “[é] preciso reconstruir as razões
que permitam reforçar o orgulho de ser português (...). [ Torna-se, pois,]
“indispensável a construção de uma rede de interesses e oportunidades baseada na
cultura portuguesa, mas que ultrapasse as questões que por vezes limitam os
homens de cultura. Há que saber utilizar todos os meios disponíveis para organizar
um sistema que permita reforçar a capacidade de projecção da Cultura Portuguesa.
Esta é uma questão essencial...” 36.
É a partir deste contexto, e numa perspectiva de futuro, que se justifica pensar
Portugal e a sua política externa. Mas, ao pensarmos Portugal numa dimensão de
futuro, torna-se evidente que é também no plano da língua e da cultura que a
projecção da lusofonia e da identidade cultural da nação portuguesa servirá a defesa
dos interesses estratégicos nacionais 37, porque é também no “poder cultural que
reside o nosso poder funcional” 38.
Assim, perante as vicissitudes e as contingências, apesar das circunstâncias e das
evoluções do ambiente internacional, “cumprir Portugal” significa assegurar, em
33
Cfr. António José Telo, “Treze Teses sobre a Disfunção Nacional – Portugal no Sistema Internacional”, in
Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, n.º 142, 4.ª Série, vol. XXXII, Lisboa,
1997 – 3.º, pp. 649-683.
34
Cfr. António José Telo, “Treze Teses sobre a Disfunção Nacional – Portugal no Sistema Internacional”, in
Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, n.º 142, 4.ª Série, vol. XXXII, Lisboa,
1997 – 3.º, pp. 649-683, pp. 682-3.
35
Cfr. Garcia Leandro, “Portugal a Cultura Portuguesa e o Futuro”, comunicação apresentada à Academia
Internacional da Cultura Portuguesa, Sociedade de Geografia, Lisboa, 14 de Dezembro de 2003, p. 13.
Texto policopiado.
36
Cfr. idem ibidem, p. 13.
37
Ver, Adriano Moreira, “O Poder Cultural”, in Nação e Defesa, n.º 18, ob. cit..
38
Cfr. José Adlelino Maltez, ob. cit., p. 221.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
6 – Considerações Finais Assistimos, actualmente, a um processo inovador de redefinição de
lógicas e de critérios de coerência espacial, baseado em elementos valorativos imateriais, intangíveis, virtuais e tecnologicamente potenciados. Esses valores afirmam-se
pelo sentido de pertença e pelo afecto partilhado mas, ao mesmo tempo, definem-se
pela identificação de interesses materiais e do desenvolvimento de acções no sentido
da sua consequente concretização, baseadas nos factores cultural e linguístico.
A análise dos desenvolvimentos políticos internacionais contemporâneos, permite verificar que os realinhamentos políticos, diplomáticos, económicos e estratégicos, determinados pelas exigências inevitáveis das interdependências crescentes e
pela presença de novos actores e factores condicionantes, pressupõem a potenciação
das capacidades relacionais baseadas em coerências específicas e em lógicas preferenciais, de expressão cultural, bem como a criação de novas formas de intervenção,
modalidades e instrumentos de acção.
A globalização inclui uma dimensão processual de reformulação epistemológica
induzida pelas novas percepções inerentes, e derivadas do acesso generalizado à
informação e ao conhecimento, revelando novas formas de acção coordenada e de
cooperação, entre os actores que partilham interesses comuns, expressos na formação
convencionada de comunidades baseadas em identidades culturais e linguísticas.
Poderemos considerar que se, por um lado, a globalização implica comunicação
potenciada, por outro lado, a lusofonia tem estado presente desde o início dos
processos de mundialização, promovendo a comunicação entre indivíduos, povos e
culturas ao longo de mais de oito séculos. Como refere Carlos Lopes, “[n]enhum
outro povo ou país terá deixado tantos traços da sua presença no mundo quanto os
portugueses (...) [mas,] aos poucos tem-se registado uma evaporação da esfera de
projecção de Portugal e, por consequência, da língua e da cultura portuguesa” 39.
Portugal, enquanto estado soberano, insere-se hoje numa realidade mundial
globalizante, tanto através de pertenças histórico-culturais múltiplas e indeclináveis,
39
Cfr. Carlos Lopes, ob. cit..
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
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Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
permanência, as condições da existência e do pleno desenvolvimento de uma
realidade identitária sócio-histórica e geocultural, que transcende a lógica territorial das fronteiras políticas convencionadas pelas sucessivas ordens internacionais.
Será neste sentido, que parece admissível pautar as relações da nação com o
mundo, e de conceber a integração construtiva de Portugal numa comunidade internacional em processo de mudança acelerada. É também neste sentido, que entendemos o significado fundamental da defesa dos interesses estratégicos de Portugal.
Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
88
como através de compromissos políticos internacionalmente assumidos. No
entanto, parece tornar-se evidente que as suas capacidades intrínsecas, perspectivadas em termos de exercício de influência sobre um ambiente relacional evolutivo,
se encontram em processo de degradação contínua.
Reconhecem-se os seus efeitos no funcionamento questionado das instituições
e das estruturas, na consistência precária da sociedade civil e da capacidade do exercício da cidadania; nas formas incipientes de organização colectiva dos indivíduos e
dos grupos; no carácter aleatório e facultativo da responsabilização individual no
dever e na acção, afectando, necessariamente, os graus de participação cívica e de
coesão nacional. Os efeitos desse processo reflectem-se ainda em termos da imagem
externa do País, afectando a credibilidade e a capacidade de participação consequente de Portugal nos processos decisórios relevantes para a gestão da mudança
sistémica.
Numa apreciação concreta e objectiva, a reversão do processo, dependerá,
acima de tudo, e tal como referido, da evolução das mentalidades, da revisão das
atitudes e de um aferimento das perspectivas. Em última análise, dependará da
formação de uma vontade política baseada, e expressa, numa concepção activa, e
não reactiva, de participação nos processos transformacionais.
O reconhecimento do fenómeno regressivo das capacidades, implica a exigência de uma reflexão profunda e de uma percepção esclarecida sobre a articulação
entre o processo de “evaporação da esfera de projecção de Portugal”, e o processo
de erosão progressiva registado em relação à língua e à cultura portuguesas.
Apesar da correlação ser questionável na sua linearidade, trata-se de definir a
“esfera de projecção de Portugal”, de saber qual o interesse estratégico actual desse
espaço geocultural e, por outro lado, de determinar a valoração que atribuímos à
língua e à cultura portuguesas.
Esta valoração pressupõe uma dualidade de perspectivas convergentes no
critério único da excelência imperativa. Por um lado, trata-se de considerar a língua
e a cultura como vectores de projecção estratégica actuantes, no sentido da
potenciação dinâmica, sinérgica e evolutiva daquele espaço, logo, de desenvolvimento potencial dos interesses nacionais. Por outro lado, trata-se de perspectivar a
língua e a cultura como elementos matriciais do património genético identitário da
nação portuguesa, como factores fundamentais de coesão nacional e de coerência da
acção de Portugal no mundo.
Por todas estas razões, a língua e a cultura portuguesas, constituem factores
identitários cruciais, que deverão ser preservados e enriquecidos. O seu desenvolvimento sustentado deverá constituir um objectivo central, irrecusável e incontornável de qualquer conceito a que ousemos chamar estratégico, de defesa nacional.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
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Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa
E porque, neste sentido, a defesa nacional significa, antes de tudo, a defesa da identidade cultural portuguesa, torna-se urgente inverter o processo de erosão sustentada do património linguístico e cultural, comum e plural da lusofonia, no sentido
da superação activa dos desafios multidimensionais globalizantes.
Neste contexto, a CPLP define-se como o fórum internacional onde deverão ser
privilegiadas as acções no sentido da convergência e da articulação entre as políticas
externas e a políticas de defesa nacional. A potenciação estratégica da organização
dos países lusófonos, deverá ser reconhecida como um interesse nacional
inequívoco, e situar-se entre os objectivos de prioridade mais elevada, que aquelas
políticas necessariamente incluem e representam.
A sua base valorativa matricial, os princípios orientadores e o núcleo duro da
defesa dessas prioridades, interesses e objectivos, serão necessariamente consubstanciados na projecção das identidades culturais integrantes da lusofonia, através dos
seus elementos comuns sobre os quais se afirma no Mundo a diversidade cultural
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