O Um existe em si ou é uma exigência da razão? * Expositor: Miguel Spinelli 1 - A proposta ontológica de Parmênides repercutiu extensamente pelo mundo grego. As suas teses se tornaram fonte de discussão para seus discípulos imediatos, mas principalmente para Platão e Aristóteles. Platão, além de dedicar-lhe um diálogo, o Parmênides, chamou-o, respeitosamente, no Sofista, de “nosso pai”1. A sua Cosmologia, mais precisamente o seu discurso sobre a phýsis, está amparado no princípio da imobilidade defendido por Parmênides. Não só Platão, mas também Aristóteles, se envolveu profundamente com a doutrina dos eleatas. Diz, inclusive, a tradição, que ele também “escreveu um livro especialmente consagrado à refutação da doutrina de Parmênides”2. Mas esse livro infelizmente se perdeu. No entanto, quer na Física quanto na Metafísica, há vários indícios de tal refutação. Mas ela não se apresenta isolada, uma vez que Aristóteles, na medida em que refuta, também se mostra concordante em vários pontos em relação a Parmênides3: * Professor de História da Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Endereço para correspondência: Cx. Postal, 5032 – Campus Universitário – CEP 97.111/970 Santa Maria, RS. E-mail: [email protected] 1 PLATÃO. Sofista. 241d 2 João Filopon. Comentários sobre a “Física” de Aristóteles, 65, 23; DK 28 A 21 3 “Os postulados de Parmênides enquanto contraditório da Física e ponto de partida da Metafísica de Aristóteles”. Revista O que nos faz Pensar. PUC/Rio de Janeiro, v. XI, n. 02, Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 66 Miguel Spinelli a) Aristóteles concorda, de um modo geral, que o discurso por excelência é aquele que expressa, na proposição, um juízo de existência (ou seja, que diz o que as coisas são). Nesse sentido, ele concorda que as coisas são, para si mesmas, aquilo que são (segundo a phýsis), mas acrescenta que esse seu ser, para nós, antes de o predicarmos no discurso, não nos diz nada. Ele argumenta que todo discurso é de fato discurso do que ou do como “é”, mas as coisas, para nós, são também aquilo pelo qual dizemos que são, e, portanto, a necessidade de construirmos uma estrutura significante de dicção (dos modos pelos quais podemos dizer ou afirmar algo consistente sobre elas); b) Aristóteles também concorda com Parmênides que o que é (na medida em que comporta um sentido tanto interrogativo quanto afirmativo) é um pressuposto eficiente no que diz respeito ao nosso conhecimento das coisas, entretanto acrescenta que o “é” não pode reduzir-se a um sentido unívoco de existência (afirmar simplesmente que algo existe), sem levar em conta outros significados... Na busca de modos de dizer o que é tal coisa ou como as coisas são, Aristóteles construiu (a partir da fórmula de Parmênides) o que ele denominou de esquema ou de figuras de predicações <tà schêmatas tês kategorías>. Foi em função desse esquema que ele passou a insistir em que o ente “tem vários significados”4 – do seguinte modo: “Posto que os predicados <kategoreumé- nôn>, uns significam substância, outros qualidade, outros quantidade, outros relação, outros ação ou paixão, outros lugar e outros tempo, o ente significa o mesmo que cada um desses predicados”5. Mas nem todos do mesmo modo, já que somente a substância enuncia o modo de ser como verdadeiro, pois todas as outras predicam modos acidentais de ser (ou seja, expressam o ser da mudança, o que muda constantemente). Concebida por um ponto de vista ontológico, a substância tem como função expressar não o modo como as coisas existem para nós, mas o modo 1992: 135-145; “O Exame de Aristóteles da Proposição Ontológica de Parmênides”, in Revista Portuguesa de Filosofia. Braga, t. 53, f. 2, 1997: 323-350. 4 ARISTÓTELES. Metafísica.XIV, 2, 1089a 7-10. Ele concebeu dez kategorías: a da substância, da qualidade, da quantidade, da relação, do lugar, do tempo, da posição, da possessão, da ação, e da afetação ou paixão... 5 ARISTÓTELES. Metafísica. V, 7, 1017a 24-27 Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. O Um existe em si ou é uma exigência da razão 67 como elas existem em si mesmas, o seu ser assim. Nesse sentido, todos os predicados que Parmênides atribuiu ao “é” (univocamente considerado: um, imutável, ingênito, imperecível, todo inteiro, contínuo, indivisível6), Aristóteles transferiu à substância... Concebida, no entanto, por um ponto de vista semântico, a substância não diz respeito estritamente ao modo como as coisas existem, mas ao modo como as predicamos; não propriamente ao modo de ser do existente, mas ao modo como dizemos algo sobre ele. Nesse sentido, a substância expressa tão-somente um predicado, ou seja, diz respeito simplesmente a uma palavra proferida no lugar do ser. Segue-se que, por esse ponto de vista semântico, a substância não tem validade enquanto ente objetivo, visto que só existem homens singulares, este ou aquele homem em particular, ao passo que, Homem (um universal) tem somente existência lógica; trata-se somente de uma determinação conceitual-predicativa daquilo que dizemos ou inferimos como existente... 2 - Aristóteles reconstitui o um de Parmênides, dando-lhe um sentido expressamente gnosiológico. Nesse sentido, o Um de que fala Aristóteles significa o singular e o universal. Este é o seu postulado: o Múltiplo é uma exigência dos sentidos (pelos quais nos vemos obrigados a admitir os fenômenos, que os entes são mais de um, que existem múltiplas diferenças entre eles, etc.), enquanto que o Um é uma exigência da razão. “Parmênides, com efeito, parece referir-se ao Um segundo o enunciado (tòn lógon)...”7, e em algum momento (e mesmo que não os levasse em conta) se viu “obrigado a admitir os fenômenos, e a opinar que o Um, segundo o enunciado, é múltiplo segundo os sentidos...”8. Ser “um”, segundo o enunciado, é o mesmo que ser um em essência, e, como tal, indivisível, não podendo ser diferenciado nem no tempo, nem no espaço e nem no conceito9. Esta, com efeito, teria sido a tese de Parmênides (o comentá6 “.... não sendo gerado <agénêton>, é imperecível <anôlethrón>, um todo inteiro <oulomelés>, inabalável <atremés> e sem fim <atéleston>“ (DK 28 B 8). 7 ARISTÓTELES , Metafísica, I, 5, 986b l8-l9 8 ARISTÓTELES , Metafísica, I, 5, 986b 31-33 9 “Em geral, aquelas coisas cuja intelecção, a que designa a essência, é indivisível e não pode produzir separação nem temporal, nem local e nem conceitual, essas coisas princi- Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 68 Miguel Spinelli rio é de Élias): “o ser é um do ponto de vista da forma, e, os existentes são múltiplos do ponto de vista da evidência sensível”10. Mas Aristóteles insiste em que essa tese não diz respeito só a Parmênides, como também aos pitagóricos e aos platônicos, uma vez que, ao defenderem princípio semelhante, admitiram o mesmo: acreditaram que todos os entes não deveriam formar senão uma realidade única. Aliás (esse é o ponto crucial da crítica de Aristóteles), eles foram levados a admitir que o ser é um do ponto de vista da forma (ou seja, que todos os entes são um, o Ente em si), porque não conseguiram resolver e refutar o argumento de Parmênides, segundo o qual “nunca se demonstrará que são as coisas que não são”11; quer dizer, apoiados no dito de Parmênides, naquele que diz que “o distinto do Ente não existe”, sucedeu-lhes necessariamente que todos os entes seriam Um e que o Um seria o Ente12. Esta teria sido, portanto, (segundo Aristóteles) a lógica do raciocínio deles: “todas as coisas Uma, e, o Ente, idêntico para todas”, e desse modo apregoavam (de modo muito abstrato) a existência do Ente enquanto um Um “em si”, fora dos singulares, como se tivesse existência própria, ou como se fosse uma substância eterna e separada. Os que têm “existência separada (diz Aristóteles na Ética a Nicômacos) são como outros eus”, ou seja, têm uma identidade própria e existem como indivíduos13. Entretanto, eles se referiam ao Um como se fosse um primeiro princípio (prótôn archên) e, ao mesmo tempo, uma substância. Ora, “como é possível (perguntase Aristóteles), que falam a verdade os que dizem que o Um é o primeiro princípio e também uma substância...?”14. palmente são unas, e, delas, sobretudo as que são substâncias. Pois, em geral, tudo o que não tem divisão, na medida em que não a tem, se diz um; por exemplo, se algo não tem divisão enquanto homem, é um só homem, e, se não a tem enquanto animal, é um só animal...” (Aristóteles, Metafísica, V, 6, l0l6b 1-6). 10 ÉLIAS, Comentário sobre as 'Categorias' de Aristóteles, l09, 6; DK 29 A 15 11 ARISTÓTELES , Metafísica, XIV, 2, l089a 1- 4 12 “Pois o distinto do Ente não existe; de sorte que, segundo o dito de Parmênides, sucederá necessariamente que todos os entes serão Um e que este será o Ente” (Aristóteles, Metafísica, III, 4, l00la 33-35). 13 ARISTÓTELES , Ética a Nicômacos, VIII, 12, l161b 28-29 14 ARISTÓTELES , Metafísica, XI, 2, l060b 6-7 Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. O Um existe em si ou é uma exigência da razão 69 Há um ponto, porém, em que Aristóteles concorda com Parmênides, com Platão e os pitagóricos. Pois constata, a bem da verdade, que eles tiveram razão em separar, ou em estabelecer um corte entre o ser real e o inteligível, mas não em converter o inteligível em protótipo (exemplar ou modelo) generante de todas as coisas. “Os partidários das eídê(*) têm razão em separá-las, se é que são substâncias, mas não em converter em eîdos o Um aplicado a muitos”15. Este é o seu ponto de vista: efetivamente a nossa percepção sensível (para ele, ela é fonte inquestionável do processo cognoscitivo) nos obriga a admitir que os entes são mais de um; além disso, ela também nos assinala entre eles inúmeras diferenças e nos leva a reconhecer que os princípios (nas coisas sensíveis) são distintos para cada um... Entretanto, ele reconhece que isso não é razoável a nível de conhecimento. “Pois como será possível o saber, se não há alguma unidade comum a uma totalidade?”16. “Todas as coisas que chegamos a conhecer, as conhecemos enquanto têm certa unidade e identidade, e certo caráter universal”17. É por isso que ele admite que eles tiveram razão. Pois se, efetivamente, “não há nada fora dos singulares, nada haverá de inteligível”; todas as coisas seriam sensíveis, e, portanto, não haveria ciência de nada, “a não ser que alguém diga que a sensação é ciência”18. Aristóteles, portanto, admite que Parmênides, assim como os platônicos que adotaram o seu pensamento, tiveram razão por um ponto de vista, mas não por um outro. Por um ponto de vista eles tiveram razão, porque o conhecimento exige, sim, um Um enquanto princípio de inteligibilidade (um “Um inteligível”), mas não do modo como eles o conceberam: a) eles admitiram que o Ente, além de eterno e imóvel (e em cujo postulado se encontra negado o movimento ou a mudança) é também uma “realidade” generante, primeira e única (sempre a mesma), e de caráter homogêneo (idêntica para todas as coisas), e, portanto, a par da primeira, estaria igualmente negado o múltiplo de toda evidência sensível; estaria negado, porque, além do Ente, nenhuma outra coisa distinta poderia (*) 15 16 17 18 idéias, espécies, formas ARISTÓTELES, Metafísica, VII, 16, 1040b 27-29 ARISTÓTELES, Metafísica, III, 4, 999b 26-27 ARISTÓTELES, Metafísica, III, 4, 999a, 28-29 ARISTÓTELES, Metafísica, III, 4, 999b 3-7 Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 70 Miguel Spinelli existir; b) o Ente de que falam é o Um em si, independente dos fenômenos, e, portanto, fora dos singulares. É daqui, porém, que decorre a maior causa do erro deles: a dificuldade de explicar a natureza das substâncias por eles tidas como incorruptíveis. “E a causa é que não podem dizer quais são estas substâncias incorruptíveis existentes fora das singulares e sensíveis. As fazem, com efeito, da mesma espécie que as corruptíveis (pois essas as conhecemos): Ho- mem em si e Cavalo em si, acrescentando às coisas sensíveis a expressão em si”19. “E alguém, inclusive, poderia fazer-lhes esta pergunta: que entendem, afinal, por esse em si de cada coisa, já que para o homem em si e para um homem em particular a definição de homem é a mesma?”20. Se o Homem em si não difere em nada do homem particular e sensível, falar do homem em si e do homem, é falar da mesma coisa, pois, na medida em que forem “homem”, não diferirão em coisa alguma. 3 - Enfim, Aristóteles admite a existência lógica do Universal em referência à pluralidade, mas não um Um fora da pluralidade. Sem nenhuma correlação com o múltiplo, o Um expressaria tão somente o que é em si mesmo ou o que é indivisível em ordem a si mesmo, e isso, em termos de conhecimento, seria demasiadamente extensivo, pois se aplica a qualquer indivíduo ou coisa indistintamente. Além disso, sem qualquer referência cum uma pluralidade, um indivíduo, unívoca e indistintamente considerado, enquanto uma unidade isolada e sem nenhuma relação a um ou mais indivíduos semelhantes, não teríamos como conhecê-lo. Se é assim, se o conhecimento pressupõe analogia, então somente conhecemos este indivíduo em relação a uma multiplicidade de indivíduos; damos como conhecido, por exemplo, este homem, em relação a outros homens (por analogia), mas também e principalmente (e esta é a questão fundamental) em razão de um ou mais princípios gerais de atribuição única, válidos para todos os indivíduos da mesma espécie. 19 ARISTÓTELES, Metafísica, VII, 16, 1040b 30-35 ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, I, 6, 1096a 34-35. Veja também Ética a Eudemos, I, 8,1218a 10 20 Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001.