LOVE Margaret Chillemi Entre a música, as risadas e o haxixe, não havia barulho. Uma cotovia cantava no campo; dois namorados beijavam-se embaixo de um viaduto de uma grande cidade; um pescador solitário distraia-se com a sua própria imagem refletida no lago, enquanto acendia o seu camel; um outdoor piscava para os passantes numa auto-estrada. Todos os acontecimentos do mundo se davam ao mesmo tempo, silenciosamente, ali, naquela sala. Ela estava parada, de pé, ao lado do aparelho de som, olhando o sorriso e a dança de Augusto. De repente, lembrou-se: aquela era a última noite que passariam juntos e quis lhe falar tudo. Contudo, apenas conseguiu se mover de um jeito desajeitado pela sala e dizer: - Ah, não deveria ter fumado. Na verdade, tudo caía naquele momento. O mundo nunca mais seria o mesmo. Mas ela não sabia de nada disso. Não imaginava que aquilo tudo ainda se desdobraria em outras e novas sensações. Experimentava algo que não pertencia nem a ela, nem a ele. Sabia do seu encanto pelos mundos para os quais ele lhe arrastava, especialmente, através das músicas que Augusto costumava escutar e do seu olhar nas imagens fotográficas. Passar por essas sensações a fazia lembrar de uma música do Arnaldo Antunes e do Paulo Tati: O seu olhar me olha/ O seu olhar no meu/ O seu olhar é seu/ O seu olhar seu olhar melhora/ Melhora o meu/ Melhora o meu. Mas, era como se Helena desconhecesse a experiência de um encontro num campo aberto, com contornos móveis e aberturas para outras formas não previstas. Não percebia que o seu encontro com Augusto era a própria música, 2 os sabores dos vinhos, as imagens contempladas nos livros de fotografia. Era a própria energia, ondulante, disforme, em constante movimento. Não era então, Augusto, um homem e, sim, um devir no corpo de Helena. Ele era alguém que pensava ser melhor arder intensamente, como um fogo alimentado por uma corrente de ar, do que ser um fogo fraco, de pouca lenha. Acreditava que a vida valia a pena e nutria-se do silêncio das notas musicais e dos reflexos das luzes das fotografias. A chama da vida era a própria fonte por onde escorria a sua existência. Fugia das criaturas medíocres e dos valores que poderiam lhe sugar a alma. Era capaz de ausentar-se por horas a fio e permanecer mergulhado em seus pensamentos, tecendo curvaturas e alinhavando espaços impenetráveis. Helena sabia disso. Ele desconhecia o que ela jamais lhe pediria. Helena não pretendia nunca lhe roubar a liberdade, nem o silêncio. Pois, a liberdade e o silêncio eram os alicerces sobre os quais se sustentava o corpo ágil daquele homem. Além do mais, percebia que, como para ela, a liberdade era para ele o dom maior da vida. Dessa forma, silenciosamente, sem ele sequer suspeitar, lhe fazia companhia. Era capaz de estar junto dele, lá onde ninguém penetrava, nem ela. Apenas lhe bastava estar, como na noite anterior, quando voltavam de um passeio. Augusto dirigia o carro com cuidado, devagar demais para a estrada que andava. Um certo medo lhe acometia. Ele estava ausente e, como fazia nessas horas, ficava mexendo na barba com os dedos. Seus pensamentos eram tecidos através de pequenos movimentos dançantes, delicados e solitários dos 3 dedos. Uma estrada, um caminho, longas ausências e o ser mais solitário que se podia imaginar estava ali, ao seu lado, conduzindo-a, como se fosse uma melodia. Enquanto o carro avançava, lentamente pela noite, ela olhava para o seu perfil no escuro. Por vezes, olhava sorrateiramente, para aquele cortejo em câmera lenta, aquela escolta dos pensamentos tecida pelos dedos longos e finos da mão dele na barba. Até que o esqueceu, o seu olhar perdeu-se na escuridão e tudo se fez um nada. Depois de um longo silêncio, ele pergunta: - Onde está Helena? - Estou aqui. - Não parece, disse ele. Ela, então, retirou os sanduíches da mochila, lhe ofereceu um e começou a comer sem vontade. Precisava fazer muita força para mastigar, muito esforço para continuar suspensa por um fio, deixando-se embriagar pelas sensações. Comia na tentativa ilusória de fortificar seu corpo. Era a própria maneira como Helena vivia. Seu jeito frágil, não fraco, alimentava-se das intensidades que perpassavam os reflexos das luzes, como aqueles que Augusto fotografava. Seguidamente, fragilizada, procurava recompor-se da visão das coisas na sua mais pura beleza e crueldade. A vida pela vida percorria-lhe a pele, enquanto o carro invadia a estrada. Era a vida maior. Não foram poucas as vezes em que ela pensou em lhe dizer como se sentia junto dele. Mas tinha a sensação de não manejar bem com as palavras. Com freqüência, quando tentava expressar algo, suspeitava da existência de uma 4 máquina que moia e embaralhava os códigos verbais antes deles saírem. Pensava ser enorme o descompasso existente entre aquilo que pretendia dizer e os sons das palavras. E, nesses momentos, todo o seu ser caia num vazio, num buraco, no qual ali, também, ninguém entrava. Angustiava-se, queria muito dizer palavras semelhantes às expressões que pulavam dos seus olhos. Entretanto, se ela achava que Augusto não era capaz de saber como ela se sentia com a proximidade entre os dois, ele era capaz de invadir o seu olhar e registrar com a sua câmera fotográfica o que habitava em sua alma. Foi assim numa das noites em que jantavam juntos. De repente, ele lhe disse: - Não se mexa; enquanto Helena ameaçava desconstruir a postura do seu corpo. Estava sentada, com os braços levantados, entrelaçando as mãos atrás da cabeça, sorrindo. As palavras dele paralisaram os seus movimentos no ar; mas não lhe roubaram a vida. Nunca antes o seu sorriso ganhou tanta força num instantâneo. Augusto tinha esse dom, o de puxar-lhe a alma, fazendo-a se expressar. Foi no encontro com aquele homem de movimentos rápidos, flexíveis, andar desenvolto, de cabelos grandes e macios, nos quais ela gostava de mergulhar os dedos e sentir o toque dos seus cabelos na pele de sua mão que aprendera a abrigar em seu corpo a divindade dos movimentos da vida, os quais não cessam jamais. No corpo daquele homem vestido de jeans desbotados, botinas, mochila nas costas, câmera fotográfica pendurada no ombro, era 5 gestado e se movia uma força só visível no inumano da música. Ali, na radicalidade da vida, ela aprendera a importância de esquecer de si. Augusto era algo totalmente diferente, a maior parte do que lhe dominava não era humano. Era um animal distinto de tudo que ela já tinha visto em sua vida. Era impossível fazer alguém compreender a força daquele homem, era a própria música do encontro entre um raio triste e um raio alegre. Só ela, que estivera tão perto dele, passeara com os dedos entre os seus cabelos e se enroscara em seu corpo, como se fosse uma trepadeira, para depois ver emergir a carne macia do coração em meio às ervas molhadas do suor que lhe escorria pelas costas, experimentara nadar em meio à imensidão, lá onde a ausência e o vazio são feitos do silêncio de melodias invisíveis. Quando faziam amor, era a própria intensidade. Ela sentia-se indefesa. O que não quer dizer que ficasse fraca ou se sentisse desprotegida. Ele não lhe sugava nenhuma energia. Apenas nutria cada poro da sua pele com amor. Despidos dos seus próprios corpos, o amor tornava-se força física e nenhum dos dois possuía mais a si mesmo. Era o desejo tecendo a si mesmo num fio sem fim. A mais bela e trágica sensação: a de um desejo estendido no tempo e no espaço. Um desejo vivo e vibrante. Não, à vontade de viver não estava em outro lugar, estava ali, em toda a sua potência, pulsando. Um desejo impossível de ser agarrado, não localizável, pairava como uma bruma entre os seus corpos. Naquela última noite, o relógio continuava marcando as horas, desrespeitando o desejo que insistia em se estender. A crua nitidez de que a vida estava viva e 6 assim continuaria. A fina constatação de que a vida transcorria além dos arquipélagos. A própria vida sonhada estava ali, silenciosa, agitando. Um campo de possibilidades abria-se e assombrava o restante daquela noite. Ambos começaram a sentir um certo mal-estar: experimentavam o abismo que separa dois corpos, sempre depois da ilusória união entre eles. Como suportar aquele encontro cujos traços eram de uma precisão extraordinária e, ao mesmo tempo, continuavam escorrendo, criando novas e outras paisagens com os seus próprios corpos? Como bancar ver seus corpos sendo desenhados por finos rabiscos, cuja delicadeza violentava todas as formas conhecidas de uma existência fixa no chão? Os dois estavam ali, soltos, no meio daquela sala, sendo contaminados por todas aquelas forças invisíveis. Como a bailarina Pina Bausch, e seu próprio duplo diferenciado, no Café Müller: a bailarina dançando enquanto um homem afasta as cadeiras do café, abrindo-lhe espaços e, ao mesmo tempo, tirandolhe toda a possibilidade de encontrar um apoio. Em meio à clareira das ausências, do nada, Augusto e Helena queriam encontrar um lugar, um sossego, um abrigo, naquela última noite. Foi quando ele deitou no sofá, acendeu o seu cigarro e, em seguida, como de costume, estendeu a mão lhe oferecendo um. Ela não viu o cigarro, mas uma mão sendo estendida em sua direção. Aceitou como quem aceita um suporte, uma alavanca para tirar-lhe do vazio. Sim, estava ali a possibilidade de uma cadeira, uma coluna, um lugar para descansar o seu corpo embriagado pelo trânsito entre tantos mundos. 7 Sentou-se ao seu lado e, com os olhos cheios de angústia, o olhou. Ele fixou seus olhos no dela; e, com uma voz triste e assustada, lhe reservou as seguintes palavras: - Eu não consigo dizer o que sinto. Não sei fazer isso. Não sei o que fazer. Helena tragou o cigarro e baixou os olhos. Nenhum dos dois se moveu. Cada um, possuído pelos seus limites, refugiou-se solitariamente nos seus próprios pensamentos. Talvez nunca teriam imaginado chegar neste ponto, na região onde o amor não se esgota e nem cria raízes. Estavam unidos por uma cumplicidade íntima e invisível. Seus corpos sabiam que tinham ainda muitas coisas para experimentar, não para esgotá-las nem esvaziá-las, apenas viver um desejo, o qual não morre através da descarga do prazer. Assim, Helena recolheu-se em si e deixou as coisas simplesmente transcorrerem. Sentiu o seu corpo se rasgando e, com esse mesmo corpo, fez amor com ele pela última vez. Entrelaçou e deslizou os dedos nos fios dos cabelos de Augusto e deixou os olhos claros e brilhantes entrar no seu corpo e, novamente, lhe engravidar mais e mais de amor. As músicas e as imagens de Augusto ficaram com Helena. Mas não é mais a música dele, nem as imagens fotografadas por ele. Já são outras coisas. O esquecimento abre as portas para a liberdade. 8 Carolina assistiu sozinha em sua casa ao vídeo do filme O Poder dos Sentimentos, de Alexander Kluge. Não conseguiu dormir à noite inteira: uma das passagens do filme se repetia nos seus pensamentos. Uma pequena cena: uma mão acende a luz de um abajur; e, em seguida, a câmera parada mostra a luz de um abajur vermelho com pedestal de cobre iluminando uma pequena mesa redonda, de madeira escura, sobre a qual está o abajur e o telefone. Através da janela se vê que o dia está amanhecendo. A câmera insiste em continuar mostrando a persistente luz da luminária clareando a mesa e os seus objetos, como se ela atravessasse acesa noite e dia. Sob a imagem, o seguinte escrito: Os objetos são o oposto dos sentimentos... Esta lâmpada foi acesa antes das férias e foi esquecida. Ela já brilha há seis semanas. Carolina perdeu o brilho depois de esperar tanto por Itamar. Carolina apagou, ficou fosca, pálida. Parou de comer. Passou a fumar dois maços de cigarro por dia; quase não se mexia. A angústia da espera fez Carolina ficar sentada numa poltrona, ao lado do telefone, sem fazer nada. Carolina, aprisionada em suas lembranças, recordou infinitamente o primeiro encontro com Itamar: ele levando o olhar para o chão, com indecisão, uma ou duas vezes, antes de buscar os seus olhos de novo. Naquele momento, ela teve certeza que se amariam. E o esperou, como se nunca tivesse escutado o Chico Buarque cantando: Carolina/ nos seus olhos fundos/ guarda tanta dor/ a dor de todo esse mundo/ eu já lhe expliquei que não vai dar/ seu pranto não vai nada mudar/ eu já convidei para dançar/ é hora, já sei, de aproveitar/ lá fora, amor/ 9 uma rosa nasceu/ todo mundo sambou/ uma estrela caiu/ eu bem que mostrei sorrindo/ pela janela, ói que lindo/ mas Carolina não viu/ (...) o tempo passou na janela/ só Carolina não viu. O telefone não tocou. Carolina entristeceu, tentando compreender o que aconteceu: Itamar se distraiu? Itamar se perdeu; ou morreu? Ele casou com outra? Ele a esqueceu ainda enquanto brilhava o pan cake no rosto de Carolina? Ela, abandonada, tentou compreender, se fazer compreender; sonhou ser amada e levada por alguém. O pan cake sobre a pele do seu rosto ressecou. Carolina ressecou; colocou o amor num lugar escuro, debaixo de uma lâmpada e ao lado do telefone. Ela costuma levantar muito cedo, quando o sol começa a nascer, para assistir aos movimentos nos apartamentos dos seus vizinhos. Entretanto, hoje ela foi para a janela ainda noite. No escuro da madrugada, visualizou nas luzes da cidade, diversas vezes, o abajur aceso. Agora, lá fora, aos poucos a cidade acorda. Algumas pessoas já andam pelas ruas e um limitado número de carros passam pela avenida apressados. Só nesse instante, Carolina observa que a janela da sala do apartamento de Helena está aberta. Tudo parece fora do lugar; várias peças, xícaras, copos, pratos, jornais, livros, cds e roupas, estão espalhados. Como se várias pessoas tivessem passado por ali, habitado aquele ambiente por um tempo, e o abandonado, apressadas, sem tempo e preocupação em deixar as coisas em ordem. O que ela não vê é que o computador sobre a mesa do escritório ainda 10 está ligado. Na tela um romance que fora recém terminado: Os amores, suas músicas e alegrias. A janela do escritório está semi-aberta e por ela entra a tímida claridade do sol amanhecendo. ! Margaret Chillemi é psicóloga; terapeuta; especialista em estudos de grupos e análise institucional; doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP), através do Núcleo de Subjetividades Contemporâneas, cuja tese intitula-se Tirando a poeira da palavra amor: experimentações no cinema e na clínica; e, segue desenvolvendo estudos no cruzamento entre subjetividade, clínica, amor e cinema. E-mail: [email protected] www.alegrar.com.br