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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
SUMÁRIO
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Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Playlist das músicas citadas
Créditos
As Autoras
“A única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível.”
– LEWIS CARROLL
PRÓLOGO
S
entia o corpo dormente, o que para ela era bom. Os dedos, sempre tensos, movimentavam-se devagar por conta da
sonolência.
Boiava em um lago violeta, os cabelos ruivos esparramados na superfície formavam uma imagem assustadora, e o
vestido escuro encharcado e colado quase a sufocava. Movia-se conforme o vento e ondas circundavam seu corpo suspenso.
A vontade de se mexer era nula. A água invadia as narinas e a boca, engasgando-a. Mas ela não se arrependeu. Quando
se deu conta de que engolira tudo aquilo, já sabia das consequências daquela aventura.
Entretanto, estava livre.
Notava a calmaria invadindo sua alma quase congelada pelo lago de cor exótica que a envolvia. Era como um abraço
da humanidade, que nunca a compreendera. Seus membros continuavam relaxados e a respiração começava a falhar.
O filósofo tinha razão: todas as coisas estão envenenadas. Não existe nada sem veneno, pensou enquanto o corpo era
sugado pelas águas.
Antes de afundar por inteiro, ouviu o som da fênix e lembrou onde estava. Dessa vez, não sabia identificar ao certo o
local. Encontrava-se na fronteira entre as dimensões.
O coração começava a parar e ela perdia a consciência. Conforme afundava de olhos abertos, via as criaturas daquele
santuário. Pessoas esverdeadas com guelras e caudas longas escamosas conversavam entre si por meio de sons que nunca
ouvira. Até nos olhos deles percebia decepção. Julgamentos que a condenavam. Ninguém entenderia sua decisão. Os pais e
amigos ignoraram seus diversos apelos. Os seres mágicos também fecharam os olhos e ouvidos para as vontades dela.
Queria viver no Reino. Estar em um lugar onde seria sempre querida. Por isso tomara a decisão drástica. Precisava
dormir eternamente. Ansiava por sorrir para os sereianos e dizer que estava tudo bem, que tudo daria certo.
Nos contos de fadas era assim...
Quando quase não enxergava mais a superfície, resolveu fechar os olhos e deixar-se engolir pela escuridão. Nada
melhor do que estar sozinha com seus pensamentos.
Despediu-se da Terra com a certeza de que iria para um lugar melhor. Moraria com pássaros gigantes, seres
mitológicos e pessoas bondosas capazes de amá-la até o fim.
Segundos depois, seu corpo desfalecido foi retirado da água pelos sereianos assustados e levado para a margem, onde
havia uma aglomeração. Sem vida, sua pele clara já começava a perder o brilho.
– Precisamos reanimá-la – afirmou, desesperado, um jovem de baixa estatura, que usava uma cartola diferente das
outras.
– Os médicos estão fazendo isso na outra dimensão – retrucou uma garota de cabelos platinados.
A senhora ao seu lado se ajoelhou no gramado e acariciou o rosto magro e sem vida. Tentou, aflita, secar a água
gelada dos cabelos avermelhados. Era difícil ser separada da pessoa que mais amava.
– Eles vão trazê-la de volta? – questionou.
Outra senhora, de pele manchada, se aproximou, e os habitantes abriram espaço para ela passar. Mesmo pequena,
aparentando carregar o mundo nas costas fragilizadas pela idade, a mulher exalava sabedoria e confiança, duas qualidades
bem-vindas naquele momento.
– Ela está passando pela etapa do Louco. Estava escrito. Precisamos ter fé em nossa princesa.Tudo dará certo.
Naquele momento, o corpo sem vida da jovem saltava com a brusquidão das descargas elétricas de duzentos joules de
um desfibrilador. Os médicos tentavam trazê-la de volta.
Mas o lugar dela não era mais aquele.
Precisava retornar ao Reino das vozes que não se calam.
Necessitava ser feliz.
1
T
udo era sempre cinzento.
Nunca havia cor nos lugares por onde passava, mesmo que existisse algum tipo de êxtase no
local. As pessoas comentavam sobre como se sentiam felizes, sobre o brilho presente em tudo e a magia
à sua volta. Mas não ela. Nunca ela. Sophie sempre via tudo em um único tom. Pálido, sem graça e
triste. O tipo de pigmento ignorado pelas outras pessoas.
Como se já não bastasse a falta de luz, também havia a dificuldade de ouvir as vozes ao redor e de
entender por que todos sorriam daquela maneira ao longo do corredor metalizado. No lugar de seres
humanos, via criaturas grotescas movendo bocas enormes tão depressa que mal conseguia acompanhar.
Tinham olhos capazes de observar os mínimos detalhes de seu ser, e ela sabia o quanto a analisavam.
Em alguns segundos, poderiam descrevê-la, entender todo o seu passado. Além disso, apontavam umas
para as outras as características que faziam delas uma espécie superior. Atitudes como essa reviravam
seu estômago. Se reclamasse, comentariam mais uma vez que precisava engordar. Ou se produzir mais.
Talvez parar de usar a cor do seu mundo: o cinza que a perseguia.
Mesmo não sendo a primeira vez, muito menos a última, tentava imaginar-se em uma vida mais
divertida. Mais compreensível. Menos sombria.
Por que não posso ser feliz?
Será que adiantava implorar aos céus? Nem sabia se existia alguém para ouvi-la. Seria capaz de
acabar com as criaturas subterrâneas que a encaravam com olhar de repúdio? Haveria algo de divino se
isso acontecesse? Mais uma vez, perdia-se em pensamentos minimalistas. Na caçada por respostas que
não encontraria. Na eterna busca do porquê de existirmos e do lugar de onde viemos. Enfim...
Ela só queria ser ela mesma.
Nem precisava necessariamente ser aceita. Já tinha passado dessa fase. Todo ser excluído sonha em
um dia fazer parte de um grupo. Mas ela era a excluída mais incluída da humanidade. Tudo porque,
no jardim de infância, emprestara seu giz de cera para uma menina de cabelos escuros sedosos, com as
bochechas rosadas e sorriso cativante. Por ironia do destino, essa beldade tornou-se sua melhor amiga e
podia ser considerada a rainha da escola – algo que Sophie nunca seria, pois desse cenário ela só
participava como fiel escudeira.
Sophie parou de bombardear sua mente e resolveu baixar o olhar daquela floresta sombria para
observar seu tênis All Star remendado e pintado com caneta hidrográfica. Gostava das caveiras
mexicanas em degradê que havia desenhado nas laterais. Então, um sorriso brotou nos lábios tensos e o
cenário pôde, pelo menos, voltar às cores habituais.
Ela continuava enxergando tudo do mesmo jeito. Contudo, não via mais criaturas com cabeças e
olhos gigantes, bocas escancaradas salivantes e dedos finos alongados capazes de estrangular facilmente
um pescoço. Via apenas os mesmos colegas de classe, o corredor que interligava as salas de aula e a vida
chata de sempre.
O sinal tocou anunciando o fim do intervalo. Por que não posso ser feliz?
Mais uma tarde chegava. Quem no ensino médio não gosta de aproveitar o tempo livre para ignorar a
lição de casa e se jogar no sofá da sala após uma estressante manhã no colégio? Ela adorava. Pelo menos
por duas horas aquele era o seu hobby favorito. Chegava do colégio, deixava o material jogado na cama,
lavava as mãos e corria para a mesa da cozinha. Com a mesma empolgação com que assistia a uma aula
de física, engolia qualquer grude que a mãe preparava e depois se atirava com a roupa suja no
convidativo amontoado de almofadas.
Todos os dias recebia lambidas da pequena língua cor-de-rosa de seu buldogue francês, Dior, e ria
ao lembrar que o cachorro realmente tinha o nome de uma grife. Aquilo refletia tão pouco dela.
– Que tipo de garota não sabe o que é um Dior? – perguntou Anna, sua melhor amiga, certa vez.
– O tipo de garota que é acordada pela amiga no sábado às oito da manhã pra correr na esteira? –
Sophie devolveu a pergunta.
– E que sempre fica de preguiça na cama...
– Demonstrando ter bom senso.
– Ou que bom senso é exatamente o que ela precisa aprender a ter.
– Nisso você tem razão. Se ela tivesse bom senso, não andaria com alguém que a acorda às oito da
manhã de um sábado, ou que batiza seu cachorro de Dior!
– Batizar um cachorro de Dior já mostra a falta de bom senso! Esse é um nome sagrado! Deveriam
batizar santos com esse nome!
– Foi você quem batizou o nome do meu cachorro, sua maluca!
– Porque você trata o Dior como um santo, não porque um cachorro mereça esse nome. Isso não é
óbvio?
Às vezes, Sophie sentia vontade de quebrar um prato na cabeça da amiga. Mas depois se lembrava
de que a amava exatamente por isso.
– Não, não é óbvio! Você ainda é maluca!
– Eu sei, mas eu sou popular, não preciso ter bom senso! Você, ao contrário, deveria agradecer por
ter cruzado o meu caminho! No mínimo, um dia, vai aprender a se vestir melhor...
Elas riram. Aquela era a parte boa da vida.
Apesar da graça, a coisa do “se vestir melhor” tinha motivo: Sophie exibia uma magreza fora do
comum.
Para ela sempre fora mais fácil falar do negativo, e essa era uma palavra que a descrevia. Barriga
negativa. O tipo de corpo perfeito para supermodelos de Milão e odiado por garotas de cidades
pequenas. Como arranjar um namorado ou ganhar um mero olhar sendo magra daquele jeito? O curioso
era que ela não sabia de onde havia herdado o corpo esbelto e reto. De sua mãe não era. Morria de
inveja da “comissão de frente” dela. Sério! Laura despertava o desejo dos pais das amigas da filha.
Ruiva com peitões? Quase uma capa garantida de revista masculina. O fato de a família também exibir
uma pele alvíssima e sem marcas causava ira nas outras, mas as mães invejavam mais do que as filhas.
Além disso, com certeza não tinha puxado o físico do pai, George. Suas típicas pernas de graveto não
poderiam sustentar aquela famosa barriga de chope. Ele sempre fora o rechonchudo do trio. Parecia até
uma escala de oito a oitenta. Sophie sem dúvida era o oito. Mas quem olha para um oito? Por isso
adotou uma tática que achava infalível. Usava roupas largas. Adotava o estilo grunge. Shorts escuros e
soltos, camisas de bandas ou com símbolos sinistros, às vezes, uma camisa de flanela na cintura ou um
colete descolado. Nos pés, tênis baixos ou botas de couro. Aquilo lhe adicionava alguns quilos,
mostrava um pouco de seu gosto e diminuía os olhares de desaprovação. Ruiva grunge parecia um
pouco descolado, então, mesmo não sendo fashionista como as colegas, ao menos não era condenada.
De resto, a parte de que se orgulhava – e que também não sabia de onde havia surgido – era a sua voz.
Ela sabia cantar.
Ainda que só para si.
De volta à realidade, retomava o ritual no sofá. Olhava as sombras negras da lamparina esquisita da
mãe dançarem no teto bege e se questionava por que alguém pintaria um teto. Paredes, ok. Todo
mundo pinta paredes. Agora, teto? Ela só conhecia o dela. Depois, deixava aquele movimento
envolvente guiá-la para um estado zen, no qual finalmente se desprendia de sua vidinha mais ou menos
e era levada para bem longe, mesmo que por pouco tempo.
– Isso não pode estar acontecendo! – berrou a mãe ao telefone de repente, enquanto transitava pela
sala com passos exaltados.
Sophie achou estranho. Aquele era o momento em que a matriarca ficava no quarto assistindo à
novela, retocando o esmalte das unhas do pé ou passando as camisas cafonas de seu pai. Algo realmente
grave devia ter acontecido.
– Você sabe que eu me esforço aqui em casa! – bufou ela. – Eu também colaboro! Em que século
você pensa que estamos? Você sabe quanto custaria se eu exigisse uma diarista como as outras mulheres?
Além de cuidar de tudo por aqui, tenho o clube das mães, e desculpe-me se ele não acontece em um
estádio de futebol, mas isso ainda é importante pra mim, sabia?
Sophie tinha certeza de que, do outro lado da linha, o pai espumava de raiva apenas por ouvir isso.
Aquele era um hobby antigo levado muito a sério, típico de mãe com muito tempo livre. Quando
Sophie tinha cinco anos, Laura se juntou a um grupo de mães do bairro que se ajudavam para melhorar
as condições do local para as crianças. A mãe de Anna também participava dele, e a amiga o
considerava a etapa que vinha logo antes do futuro bingo da terceira idade. Ao contrário do que
costumava acontecer com Sophie, Laura a cada ano conquistava mais espaço e poder na organização.
Naquele momento, era presidente e sabia tanto sobre o bairro e como educar crianças que as novatas nem
cogitavam tirá-la dessa posição.
Deviam vê-la agora, pensou a filha em tom sarcástico.
Amava a mãe. Era louca por ela. Gostava da forma como enrolava a ponta dos cabelos ruivos com
os dedos de unhas impecáveis e como enrugava a testa quando franzia os olhos azuis para o pai,
brincando. Entretanto, isso não impedia Sophie de recriminá-la quando tomava atitudes bestas. O
clube das mães era uma delas, mas a família já havia aprendido que o melhor era tentar ignorar – algo
impossível de fazer naquele dia, por causa do constante falatório ao telefone.
Sophie levantou a cabeça apenas um pouco a fim de ver se a mãe ao menos caminhava em direção à
porta. Sem indícios. Só conseguiu identificar a mesma expressão franzida, mas dessa vez não parecia ser
brincadeira.
– Seu pai quer uma reunião familiar hoje, então me faça o favor de não se trancar no quarto na hora
do jantar – advertiu a mãe após finalmente desligar o telefone.
– Tenho mesmo que participar? – resmungou Sophie com voz de sono.
– Eu disse que é de família, não disse? Na última vez que chequei, você ainda fazia parte desta.
Sophie atirou uma almofada na direção da mãe, que desviou no último segundo.
– Você vai ter que pegar essa almofada! Agora, volte para Mármia, vou deixar você em paz.
– O nome é Nárnia, mãe! – retrucou ela, rindo.
– Tanto faz! Tem sorte de eu não chamar o leão de Simba.
Pior que a filha tinha sorte mesmo.
– Você é tão “porforona”.
– E você, senhorita, também é um amor de pessoa – complementou na intimidade que fazia delas
mãe e filha.
– Então, eu tive a quem puxar!
Sophie tinha aquela mania. Sempre criava seus próprios termos para as coisas. Assim vivia em seu
próprio mundo, ditando as próprias regras. “Porforona” era um deles. Depois a palavra seria esquecida
e só Sophie entenderia. Um código secreto só dela.
Assim que a mãe saiu, pôde voltar para o ritual. Em poucos minutos, estaria no mundo dos sonhos.
Depois da soneca, estava guardando os cadernos na mochila quando ouviu a porta de entrada se abrir,
produzindo o tradicional rangido. O pai chegara em casa.
– Hora de encarar a realidade, não é, molengo? – perguntou ela, olhando para o cachorro
esparramado de barriga para cima no chão do quarto.
Enquanto George se livrava do terno e da gravata, Sophie tomou um banho e vestiu o pijama
favorito: uma camiseta preta antiga do pai e uma bermuda de algodão furada de alguns anos. O jantar
era peixe ao molho de limão.
– Assaltou o mendigo? – perguntou a mãe ao vê-la entrar.
Sophie mostrou a língua e se acomodou na mesa. Dior era proibido de chegar perto da comida.
– Me compre algo com algumas caveiras, que eu até posso usar.
– Eu comprei um pijama da Monster High – retrucou Laura.
– Ela está mesmo de sacanagem comigo, não é? – perguntou Sophie para o pai.
Entretanto, aquela reunião não era um encontro feliz. Algo havia acontecido.
– Vamos dar nome ao defunto? – começou Sophie, quebrando o silêncio.
A mãe lançou seu típico olhar franzido e a filha percebeu a gravidade da situação. Era realmente
com ela.
– Filha...
– Pai...
– Não é fácil falar disso com você.
– Nunca é fácil falar nada comigo.
– É sério, Sophie! – exclamou a mãe esmurrando a mesa.
Choque. Quando ela tomava aquele tipo de atitude era porque o crime daria passagem para a
prisão de segurança máxima.
– Eu já vou dizendo que não fiz nada – resmungou a garota.
– Ninguém aqui está dizendo que você fez alguma coisa...
– É exatamente isso que vocês estão dizendo, pai.
O clima ficou tenso. O nervosismo de Sophie a fez fechar os punhos e perder o apetite.
– Você ainda não tocou no seu peixe – comentou George de forma sutil.
– Pai, desabafa logo, que eu quero dormir mais cedo.
O casal trocou olhares e Sophie odiou aquilo. Era como um carimbo de exclusão, um atestado de
dúvida sobre a maturidade dela para entender problemas mais sérios. O silêncio impregnou o ambiente
antes de o pai continuar:
– A diretora ligou. Ela disse que alguns pais andam preocupados com a sua aparência.
Era só o que me faltava, pensou a menina.
– Eles não têm filhos com quem se preocupar?
O pai encolheu os ombros.
– Foi exatamente o que eu disse! – revoltou-se a mãe. – Nós sabemos que sua estrutura física é
assim, e ninguém mandou as filhas deles serem umas orcas!
– Sem exageros, Laura! – recriminou George.
O comentário pelo menos melhorou um pouco o ânimo de Sophie.
– Estou encrencada?
– Claro que não! – responderam os dois ao mesmo tempo.
– Então por que ainda estamos falando disso?
O pai pegou a mão da filha. Parecia que iam lhe contar que um parente havia morrido. “Preciso lhe
dizer, minha filha, que a sua saúde faleceu hoje! Ela foi encontrada pelas mães dos alunos no terreno
baldio atrás da escola...”
– Como sua mãe disse, nós conhecemos você – falava o pai quando Sophie voltou a prestar atenção.
– Sabemos que não há nada de errado...
– Tirando o fato de me chamarem de “graveto” quando uso uma calça mais apertada...
– Expliquei seus hábitos alimentares para a diretora e disse que estava ofendido por ela entrar em
contato conosco para falar algo tão sem fundamento.
– Eles chamam você de “graveto”? – perguntou a mãe aflita, de repente.
– Tem coisas piores. – Sophie riu, o que era melhor do que chorar.
– Por exemplo?
– Ah, sei lá! Mumm-Rá, The Walking Dead, Olívia Palito, E o vento levou, professor Girafales,
louva-a-deus, desentupidor de pia, bandeira de pirata...
– Mas que horror! – exclamou a mãe.
– O que quer dizer “bandeira de pirata”? – perguntou George, surpreso.
– Só pano e osso.
Eles voltaram a murmurar. Para Sophie até que era engraçado ver a reação dos dois a algo que ela já
havia se acostumado a sentir doer.
– Isso tem nome, sabia? É bullying! E isso agora é crime!
– Ih, mãe, então o colégio inteiro vai pra cadeia desse jeito...
– Algum deles é filho de alguém que eu conheço? Eu coloco logo a lambisgoia contra a parede lá no
clube!
– Não, mãe, porque estou no ensino médio, não no maternal.
Sophie sentiu outra vez a mão do pai sobre a sua. O toque agora era diferente. Não era um toque
que excluía, mas que conectava.
– Sabe, eu também sofria na época do colégio...
– É mesmo?
– Sim, eu sempre fui gordinho. Naqueles tempos eu era bem mais, e as pessoas diziam que eu era tão
gordo, mas tão gordo, que quando viajava as empresas me faziam um desconto de grupo!
Sophie riu.
– É mesmo, pai? Já comigo eles dizem que eu sou tão magra, mas tão magra, que sou a única mulher
do mundo com duas costas!
A mãe só abria a boca e balançava a cabeça em choque.
– Isso não é nada! Eles diziam que eu era tão gordo, tão gordo, que quando caía da cama eu caía
pros dois lados!
– Grande coisa! Eu já ouvi que sou tão magra que, se eu colocasse um casaco de pele, ficaria
parecendo um cachimbo!
Os dois suspiraram juntos em um momento de cumplicidade.
– Obrigada por me defender, pai.
Foi a vez dele de sentir o toque dela de maneira diferente. Aquilo foi bom.
– Só não entendo por que vocês trouxeram à tona uma conversa que claramente resolveram com a
diretora – comentou Sophie, soltando a mão dele.
– Bem, apenas achei melhor compartilhar o que andam falando da nossa família... – continuou
George, voltando a ficar sério.
– Não sabia que você ligava para o que as pessoas dizem – retrucou a filha.
– Eu sou advogado. É meu trabalho ligar para o que as pessoas dizem.
– Assim como inocentar as vítimas e tirá-las de situações constrangedoras.
Aquilo bateu forte. A menina era inteligente. Única. E triste. Era uma parte dele. E fazia parte dele
ser daquela maneira também.
– Nem sempre um advogado ganha a causa, meu amor – sussurrou o pai.
– Obrigada por tentar. – Ela suspirou. – Eu já vi fotos suas na época do colégio. Você nunca foi
gordo.
Inteligente. Única.
E triste.
Sophie deu uma garfada no prato e levou o pedaço à boca. Mastigou por poucos segundos e engoliu
em silêncio. Em seguida, levantou-se pedindo licença e deu um beijo na cabeça dos pais.
– Não deixe de ouvir seus verdadeiros instintos, advogado – finalizou a filha, antes de se retirar
para o quarto.
Faria o que fazia de melhor.
Dormir.
2
T
odo dia ela batalhava.
Sentia-se uma guerreira medieval e se imaginava em um campo sangrento, fedendo a suor,
onde não importava de onde vinha ou quem era, pois o objetivo maior era continuar viva – pensamento
sombrio demais para uma garota tão jovem, mas natural de acordo com seus livros de histórias, fossem
elas mágicas ou reais. No passado, os jovens costumavam lidar com temas sérios, como guerras e pragas.
Os jovens de hoje se preocupavam mais com haters na internet e pais ausentes. Quando lia passagens
violentas e trágicas nos livros que pegava emprestado na biblioteca vazia, percebia o quanto se irritava
por pouca coisa. Seria besteira continuar agoniada com o fato de alguns pais reclamarem sobre seu
peso. Não ficaria naquele colégio por muito mais tempo. Mas como esquecer que envergonhava seus
pais com algo que simplesmente não podia controlar? O estranho era que ela não se incomodava com
sua aparência nem tinha problemas com o próprio corpo.
Quer saber... dane-se o mundo, falou para si mesma. Adotava o lema do “dane-se” para poder
sobreviver.
– É sério! Blush não é um bicho de sete cabeças nem tomaria muito do seu tempo – comentou Anna ao
encontrá-la no corredor da escola. – Você deveria usar pelo menos de vez em quando. Está com uma
cara péssima!
– Bom dia pra você também – respondeu Sophie, tentando aguentar o peso da mochila em um
ombro só.
– O pessoal está ali no pátio. Vamos lá falar com eles e vê se coloca um sorriso nesse rosto acabado!
Falar com eles e colocar um sorriso no rosto, pensou ela.
– Claro! Por que não gravar um CD e ganhar um Grammy?
Anna se esforçava para ignorar o fato de ter uma amiga antissocial, mas às vezes os comentários de
Sophie soavam tão engraçados que valia a pena o esforço.
– Você sabe que devem ter sido os pais deles que foram fofocar com a diretora, não sabe? –
resmungou a ruiva no caminho.
– Sua mãe não é cristã? Você deveria ouvir o que ela diz e praticar o perdão!
– Minha mãe nunca foi cristã! E, se eu fosse seguir o que ela diz, o colégio inteiro ia preso!
– Ela não coordena um grupo cristão com a minha mãe?
– É um clube filantrópico a favor da boa educação das crianças!
– Ah, então! E isso não é cristão?
Sophie suspirou, desistindo. Ao se aproximarem do grupo, seu humor logo se esvaiu. Todos os dias
pareciam iguais: uma repetição monótona de eventos obrigatórios nos quais nunca se sentiria à vontade.
Ela cumprimentou de uma única vez as cinco pessoas.
Julia, Daniel, Rick, Sasha e Erik.
Os melhores amigos da melhor amiga dela.
Quando estava com eles, preferia ficar à margem do grupo, rabiscando letras de músicas nas páginas
em branco. Ela ficava abismada com o poder de persuasão de Anna no grupo. Nenhum dos cinco
gostava de Sophie, mas Anna a adorava. E eles queriam agradar Anna. Andavam juntos cinco dias por
semana, e isso quando não havia festas ou eventos no fim de semana, dos quais Anna a liberava. Quase
nunca aparecia em ocasiões sociais ou reuniões dos grupos de estudos. O bom era que tentavam ser
educados. Não a xingavam – ao menos pela frente – nem a ignoravam cem por cento. Havia uma
tentativa de camaradagem deste tipo: eu sei que você é esquisita, mas a gente perdoa, sabe-se lá até
quando.
– Alguém fez o dever de matemática? – perguntou Daniel, também conhecido como o namorado gato
da Anna, popular pelo corpo atlético e cabelo de surfista.
– Típico de você não fazer o trabalho, amor!
– Alguém realmente conseguiu resolver as contas desse professor? – questionou Rick. Era um rapaz
forte, de cabelo raspado e expressão carrancuda.
– Eu resolvi... – respondeu Sophie, sussurrando sem querer.
O clima ficou constrangedor. O pior era que mal tinham chegado. Tentando salvar mais uma vez a
situação, Anna cruzou seus braços no de Julia, uma loira baixinha e delicada como uma boneca, e disse:
– Como é bom ter uma pessoa inteligente nesse grupo, não? Do contrário, não sei quem iria nos
salvar hoje...
– É verdade! Empresta a lição pra gente, Sophie! – complementou Erik, o namorado de Sasha. O
casal era muito parecido. Ambos tinham o cabelo escuro, perfil de modelo, eram magros, de aparência
saudável, e sorridentes.
– É... – Sophie suspirou, olhando para Anna. – Como é bom ter alguém inteligente por perto, não
é?
Anna piscou para ela. A ruiva emprestou sua lição para eles. Aquela era a primeira vez que se sentia
importante no grupo.
Situação estranha. O dia estava bom.
As semanas transcorreram sem problemas. Escola, casa, almoço, soneca, tarefas, jantar, canto, internet e
cama. Alimentação e descanso apareciam duas vezes em seu dia. Dessa maneira deixava a vida passar
vagarosamente e sonhava em um dia se sentir diferente.
– Você precisa de um namorado – comentou Anna ao telefone, em uma das tardes de conversas
quase monossilábicas da parte de Sophie.
Sophie adorava seu telefone, principalmente os sistemas de mensagens instantâneas e aplicativos de
internet, mas detestava falar no aparelho. Anna adorava.
– Certo – debochou Sophie. – É exatamente do que eu superpreciso.
Anna ignorou a resposta seca e começou a tratar daquilo como a missão da sua vida, a fim de
ajudar a amiga a sair do casulo em que se encontrava.
– Sério! O Rick está sozinho. Seria lindo se tivéssemos três casais no grupo.
Troglodita + Varapau. Ela deve estar bêbada para falar uma coisa dessas.
– Claro! – respondeu Sophie. – Por que não?
– Eu estou falando de um assunto sério, e você está sendo sonsa comigo, né?
– De onde você tirou isso?
– Você está fazendo voz de sonsa!
– Eu não faço voz de sonsa!
– Claro que faz! E já falei pra parar de fazer isso comigo!
– Como é uma voz de sonsa? – perguntou Sophie, dividida entre a graça e a ofensa.
– Como a sua! Só que sonsa!
A ruiva começou a rir e suspirou. De novo.
– Tá bom, sua perturbada mental! Rick me engoliria com um abraço. Já viu o tamanho daquele
moleque?
– Ué! Vai que o tamanho dele confere... – soltou a amiga.
Do outro lado do telefone, a ruiva ficou da cor do cabelo. Tinha dezessete anos e nunca havia se
relacionado seriamente com ninguém. Muitos na escola pensavam que fosse lésbica. Não tinha
problemas com isso, porque, ainda que fosse verdade, continuaria tímida do mesmo jeito, mas sabia que
gostava de meninos. Por anos sentira uma paixonite platônica por um cantor de rock com longos
cabelos escuros e olhos tão verde-esmeralda que a faziam passar mal. Claro que não conseguia se
envolver com ninguém porque idealizava aquele vocalista. Contudo, os anos foram passando, e ela se
envergonhava de seu histórico.
– Nem pense em tocar nesse assunto – resmungou Sophie, abalada. – Te ligo daqui a pouco.
Anna ficou chateada, mas havia tocado em um ponto delicado.
Sophie se envolvera sexualmente com apenas um rapaz durante toda a vida. Demorou meses até contar
para a melhor amiga. Acontecera em um acampamento de férias dois anos antes. Ela já considerava ter
idade suficiente, e foi quase da maneira como sempre imaginou: em um lugar um tanto isolado e com
uma pessoa parecida com ela.
Tudo se passou em uma noite em que estava sentada à beira do cais. Para sua surpresa, um dos
rapazes da turma resolveu se juntar a ela. Era bonitinho e fazia o tipo nerd, vinha de um estado distante
e aceitou participar do acampamento por não ter para onde ir e porque não queria se sentir só naquele
período em que as pessoas supostamente deviam se divertir. Situação parecida com a dela. Anna viajara
com a família para a Austrália, e Sophie não queria passar semanas dentro do quarto tendo apenas os
pais como referência social de um período de férias. Renderia uma péssima redação na volta às aulas.
Devido à afinidade, eles conversaram um pouco sobre música, videogames de ação, e ela até
comentou sobre o seu vício antigo por Counter Strike. O garoto gostou daquilo e começou a se
aproximar. Uma menina bonita, descolada e jogadora de CS. Parecia que ele estava sonhando. Para
deixar aquilo ainda mais marcante, exatamente quando o relógio dele despertou à meia-noite o garoto
tomou coragem e a beijou.
Não foi nada do tipo “ah, meu Deus, que beijo”, mas ambos apreciaram o momento delicado.
Sophie notou as mãos trêmulas dele segurando-lhe o rosto fino e, percebendo o clima, suspeitou ser
a primeira vez dele também. No início, foi algo quase infantil. Toques de lábios meio esquisitos,
entortando as bocas. Ao relaxarem, as coisas mudaram, o beijo intensificou-se, e por alguns minutos ela
sentiu as mãos dele apalparem levemente o seu corpo. Era esquisito, mas, para quem nunca havia feito
aquilo, até que passava. Quando as mãos subiram pelas coxas dela, ele encarou o vestido preto folgado
como um convite. Ela estava assustada, mas sabia que um dia teria que passar por aquela experiência.
Ao menos seria com um cara que não contaria vantagem no dia seguinte. Era uma boa qualidade.
Ela o ajudou a abaixar um pouco as calças, viu a embalagem da proteção ser rasgada com os dentes
em três tentativas e pensou que, em poucos segundos, seria considerada mulher. Quando ele a deitou na
madeira úmida do cais, Sophie se lembrou de onde estavam. Qualquer um poderia passar por ali. Iriam
vê-la e rir. Mas, ao olhar para o garoto, tão assustado quanto ela, não sentiu medo e lhe entregou mais
um beijo intenso, em um consentimento final.
Assim que terminaram, disfarçaram a vergonha e se despediram com a desculpa de que poderiam ser
descobertos. Ela ainda se lembrava do último selinho que ele lhe dera ao deixá-la perto da área
feminina.
Ao desligar o telefone, Sophie continuava a relembrar aqueles dias.
Recordou-se de que, justamente no dia seguinte à perda de sua virgindade, o garoto havia se inscrito
em uma caminhada pelas montanhas que duraria o dia inteiro. À noite, descobriu que um grupo
brincaria de “verdade ou desafio” ao redor da fogueira. Aquele era o único jogo não envolvendo bebida
alcoólica em que poderiam fazer coisas mais provocativas. Quando ouviu algumas meninas de seu
alojamento comentarem a respeito, Sophie arriscou perguntar quem participaria e, para sua surpresa, foi
convidada. Um frio invadiu seu corpo e bambeou seus sentidos. Ele provavelmente estaria lá.
Contrariando todos os seus instintos, vestiu uma calça jeans e uma regata preta dos Ramones e foi para
a famosa fogueira, ao redor da qual os instrutores geralmente contavam histórias de terror pelas quais só
ela se interessava.
Chegando ao local, percebeu o rosto do rapaz corar, mas nada comparado ao dela. Não notou
nenhum movimento por parte dele. Quase não trocaram olhares, e ela tentou superar aquilo para se
sentar na roda.
Algumas pessoas se surpreenderam com a presença de Sophie. Normalmente, ela passava o tempo
livre jogada embaixo de uma árvore com seu violão. Naquela noite, sentou-se com todos os outros
jovens.
Diversas vezes a garrafa girou ao lado do fogo. Diversas vezes eles ouviram perguntas e respostas e
assistiram aos desafios. Muitas envolviam pegação, partes do corpo humano e histórias nojentas. Na
hora em que a garrafa apontou para Sophie, ela pediu verdade.
– É verdade que você nunca foi beijada? – indagou uma garota sorridente demais. Ela exalava um
cheiro que denunciava o uso de substâncias não autorizadas.
O garoto ficou vermelho. Em vez de olhá-la com afeto, simplesmente desviou o olhar e fingiu
brincar com um graveto na terra. Qual o problema dele? Será que não havia notado o sangue? Será que não havia
notado o significado daquilo? A vontade dela era de gritar que não, que na noite passada havia perdido a
virgindade com o nerd da turma, mas a coragem estava longe. Além disso, ainda não sabia se ele era
apenas tímido ou se estava se sentindo pressionado.
– Não! – respondeu, seca. – Eu já fui beijada.
A roda soltou interjeições na cara dela.
– Mas já perdeu a virgindade? – complementou a garota.
Os burburinhos diminuíram, porque aquela seria uma resposta mais interessante.
Sophie demorou um pouco a responder. Percebeu que o garoto parou de brincar com o graveto
quando ouviu a pergunta e que ele arriscou levantar os olhos para observá-la. Ao notar que ele não ia
mais reagir, ela resolveu responder:
– Você vai precisar girar a garrafa novamente e, quem sabe, ter um pouco mais de sorte para
descobrir.
O estardalhaço foi geral. A garota que havia perguntado teve seu momento de vergonha e o jogo
continuou.
Sophie lembrava-se de outras perguntas, momentos constrangedores, baderna e respostas. Até que a
garrafa apontou para ela novamente e, dessa vez, para evitar a questão, pediu por desafio.
– Desafio você a beijar o garoto mais gato da roda.
As interjeições aumentaram em proporções estratosféricas. Alguns riam, outros se gabavam, mas
havia quem se encolhesse por medo ou nojo de ser escolhido. E foi naquele momento que ela entendeu
que sua primeira vez não havia sido delicada como imaginara.
– Coitado do cara! – exclamou o nerd, até então calado, saindo da roda e indo em direção à mesa
de comida.
O clima ficou tenso.
Sophie não acreditou no que ouviu. Tinha mesmo sido humilhada publicamente pelo garoto que
acabara de tirar sua virgindade? Aquilo lhe partiu o coração. Ela se guardara por anos, esperando por
um cantor de rock lindo e famoso. Acabara se contentando com um nerd antissocial como ela, para ser
esnobada logo após a primeira vez. Mas, tratando-se de um grupo de adolescentes empolgados, logo
deixaram o comentário esquisito do garoto de lado e começaram a gritar “beija”. Com ódio em mente,
percebeu a oportunidade perfeita para dar o troco. O garoto voltou para a roda quando Sophie
terminava de lascar um beijão no melhor amigo dele, um gordinho de boné e poças de suor na camiseta
justa demais.
Como saldo final, ela não apenas passou o resto do acampamento no quarto, envergonhada e com
medo de ter milagrosamente engravidado, como também nunca mais falou com o garoto. Claro que foi
azucrinada por ter escolhido o mais feio da roda, mas isso, em parte, ela merecia.
Até aquele dia, ela não conseguia entender: por que não se vingara beijando o cara realmente mais
gato da roda? Teria magoado o garoto vê-la beijando o melhor amigo após terem passado uma noite
juntos?
Relembrando todo o episódio, Sophie constatou que não estava preparada para repetir a
experiência. Ficava sem jeito só de pensar no assunto.
Contudo, sentiu que devia retornar a ligação da amiga.
– O documento do Rick não me interessa – soltou quando a amiga atendeu, confusa. – Mas se for
para parar de me atazanar até aceito ir com você naquela festa de que estavam falando na escola.
Anna chegou a tossir de surpresa.
– Sério mesmo? Que maravilha! Todo mundo vai ficar superfeliz!
– Ahã! Com certeza ficarão...
– E já falei pra você parar com a voz de sonsa!
Sophie riu.
– Se você ficou feliz, é isso o que importa...
E era mesmo.
Laura ficou impressionada quando viu a filha deixar o quarto. Primeiro porque ela estava saindo para
uma festa em um fim de semana. Segundo por vê-la de saia. Isso mesmo: ela usava saia preta de pregas
acima do joelho. Desde que voltara de um acampamento havia alguns anos, a filha abandonara saias e
vestidos. Por isso, vê-la usando algo assim novamente era motivo para comemorar.
Complementando o look, Sophie vestia a tradicional camisa de banda com alças largas, mas, ao
menos, combinava com o visual. Ainda usava meias três-quartos pretas e botas de cano baixo vermelhas
para combinar com o símbolo da banda.
– Quem é o sortudo? – perguntou Laura.
– Por que sempre precisa haver um sortudo?
– É por essas que tenho orgulho de você, minha filha – intrometeu-se o pai. – Vamos, vou lhe dar
uma carona.
Ao chegar ao local da festa, ela percebeu que o clube na verdade era quase uma mansão. Sendo
menores de idade, Sophie e Anna não podiam frequentar boates, e clubes como aquele eram perfeitos
para comemorações. O evento fora organizado por Angélica, uma garota popular do colégio. Mesmo
sendo de anos escolares diferentes, ela e Anna eram comparadas constantemente pelos alunos, mas
fingiam não se importar. As duas mantinham certo respeito uma pela outra; não eram melhores amigas
nem inimigas, o que já era algo bom.
Sophie achava a situação estranha. Nem dois minutos na festa e já estava arrependida. Aquele tipo
de pessoa era quem ela normalmente condenava.
Ou quem a condenava.
Entrou naquele lugar luxuoso com uma bota de três anos e apenas lápis preto no olho, o que ali era
o mesmo que berrar: sem maquiagem. Sentia-se a mais cafona da festa. Por algum motivo, naquela noite
a situação a incomodava, e ela percebia que queria deixar o episódio da virgindade para trás. Quem
sabe não podia conhecer um garoto descolado no local. Ela tinha certeza de que não seria Rick, mas
existiam outros.
– Você veio! – celebrou Anna ao encontrá-la perdida na entrada.
– Eu disse que vinha – respondeu, encolhendo os ombros.
– Você diz muitas coisas, senhorita resolvi-ser-gostosa-hoje!
Sophie se engasgou com a expressão da amiga. Ficava feliz de alegrar a noite de alguém.
– Você sabe que, no dia em que eu for considerada gostosa, Sofia Vergara vai ser considerada gorda,
certo?
Dessa vez, Sophie viu a amiga engasgar com a bebida.
– Por Prada! – exclamou enquanto tentava respirar. – Nunca diga a palavra ‘gorda’ perto do nome
da Sofia.
– É ‘nome santo’ também? – cutucou Sophie.
– Há-há, muito engraçado! – zombou Anna, puxando-a para o centro da pista de dança.
Anna e sua mania de dançar de forma provocante em festas comentadas. A ruiva já havia
testemunhado algumas performances, sempre se sentindo constrangida. Ela era mais ligada ao canto, e
dança não era tanto sua praia, ainda mais em público. Mas não havia uma festa em que a morena não
roubasse a atenção, balançando o corpo para os lados de modo envolvente e elevando os braços
conforme o ritmo. Jogava as madeixas para os lados ao toque das batidas, enquanto tentava engajar a
amiga na sintonia.
Ela vai mesmo me fazer dançar aqui?, se perguntava Sophie.
Conhecia a amiga: quando queria alguma coisa, ela conseguia. E foi no refrão de uma versão
remixada de “Royals” que a magrela também começou a jogar o corpo. Outra ironia do destino. Claro
que precisaria dançar justo aquela música. Mas o efeito da dança e da melodia parecia encher o seu
espírito. Ouvia a letra e a deixava entrar na alma, murmurando que nunca seria da realeza naquele
mundo.
Quando abria os olhos entre um movimento e outro, via a amiga sorrir, feliz por vê-la se soltar.
– Isso que dá colocar roupa de gostosa! – gritou Anna, na virada da música.
A ruiva só pôde rir.
– Agora vem, que o Rick está esperando...
– Eu não quero nada com ele, Anna – retrucou, tentando desacelerar a amiga, que a arrastava pelo
local. – E não estou sendo sonsa!
Enquanto andavam, Sophie via apenas vultos e flashes na paisagem escura com luzes coloridas.
Reconhecia poucos rostos. Quando cruzava o olhar com algum conhecido, tentava desviá-lo para não
ter que lidar com o fato de que estava com as coxas à mostra e ainda dançava como uma maluca. Mas,
no momento em que viu o olhar um pouco malicioso de um rapaz desconhecido, começou a acreditar
no poder da noite. Talvez estivesse mesmo gostosa.
– É sério! Quando Rick vir você desse jeito nem vai se lembrar da antiga Sophie – insistiu a amiga.
Antiga Sophie? Aquilo a intrigou. Havia mudado tanto assim só porque estava fora de casa em uma
festa? Grande coisa! Já tinha frequentado outras no passado. Havia ficado poucos minutos nelas, está
certo, mas ao menos ficaria mais tempo naquela.
Engano seu.
Quando chegaram à parte externa do casarão do clube, encontraram uma cena não esperada. Ela viu
o rosto suado da amiga explodir de raiva e não entendia o porquê dessa reação. Algo tinha dado errado.
– Poxa, Ricardo! Eu disse pra você colaborar no lance da Sophie hoje! – esbravejou Anna ao
encontrar Rick aos beijos com Angélica na beirada da piscina.
Muitos pararam de dançar para acompanhar a cena. A ruiva não sabia onde enfiar a cara. Lance da
Sophie? Desde quando ela fazia parte de um lance?
– Caramba, Anna! Sei lá. Acontece – ele tentou se explicar morrendo de medo da popular. – Você
sabe que nunca ia rolar com a Sophie, com todo o respeito.
A última frase foi dita olhando para ela.
Sentia-se humilhada. Toda a adrenalina trazida pela breve dança havia desaparecido.
– Claro – respondeu Sophie secamente.
Não sabia qual era a pior parte da história. Gastar seu tempo em uma festa em que não era bemvinda, aguentar o frio batendo nas pernas para agradar a amiga – e quem sabe algum menino – ou ver
seu suposto pretendente atracado com a loira mais escultural do colégio. Provavelmente, a descoberta
de que a amiga planejava forçar o rapaz a ficar com ela era pior. Sophie perguntava-se como Anna
tinha conseguido ser tão baixa.
– O que está acontecendo aqui? – questionou Angélica, colocando as mãos na cintura.
A ruiva não entendia por que garotas como aquela tinham essa mania.
– Baby, a Anna é uma das minhas melhores amigas. Ela me pediu pra dar atenção hoje pra amiga
dela e, quem sabe, ficar com ela, e eu tinha concordado.
Pra amiga dela, pensou Sophie, relembrando quantos dias havia passado ao lado dele nos intervalos.
– Eu não acredito que você fez isso comigo! – vociferou Anna, chamando mais atenção indesejada.
– Eu é que não acredito! – exclamou Sophie, envergonhada.
Ao escutar aquilo, a melhor amiga sentiu as palavras perfurando seu espírito e encontrando o
coração, que sangrava. Conhecia a ruiva. Sabia como Sophie guardava mágoa e como já não confiava
nas pessoas. Anna percebeu que, com aquele escândalo, acabava o último pingo de autoestima da garota
ao seu lado. E também o que restava de uma longa amizade.
– Não era pra isso acontecer – sussurrou a morena com medo de cada palavra.
– Talvez seja melhor que tenha acontecido.
Preparando-se para sair da festa, Sophie foi impedida por Angélica, que a segurou pelo braço.
– Espera aí! Você veio mesmo a uma festa minha e pensou que ficaria com meu namorado?
Sophie teve que suspirar. Como explicaria qualquer coisa para uma menina como aquela?
– Eu não pensei nada, Angélica. Não sabia de 'namorado' algum.
As reações foram diversas, e a festa parou. Anna segurava o choro entalado na garganta, percebendo
a humilhação que fazia a amiga passar, e Sophie olhava para todos vendo apenas a imensidão cinza e as
criaturas do pântano ao redor.
– A sonsa nem deveria estar aqui – completou, debochando de si própria.
– Não se chame assim – retrucou Anna, não conseguindo mais segurar as lágrimas.
Naquele momento, rompia-se uma amizade de anos. Anna sabia que, a partir dali, nada mais seria
igual.
– Quem sabe agora ela não se mata de tanto vomitar – finalizou Angélica.
Todos na festa riram. Anna apenas afundou o rosto no ombro do namorado recém-chegado, e
Sophie sentiu pena. Pena daquelas pessoas. Pena de si própria. Pena de não se sentir como eles.
Também tristeza.
E solidão.
Com o estômago ardendo, os nós dos dedos latejando de tanto apertá-los, os olhos coçando e com
vontade de chorar, ela saiu da festa, de um mundo do qual não fazia parte.
Por que não posso ser feliz?
Por que não posso ser feliz em algum lugar?
Naquela noite, ao se jogar na cama com o rosto manchado e o corpo tenso, aconteceu a mudança. Em
um instante, ela chorava de vergonha. No outro, não se encontrava mais em seu quarto.
Fora parar em outro lugar.
3
S
entiu-se sugada. Algo difícil de imaginar. Como alguém poderia ter essa sensação? O sentimento
estranho dominava seu corpo e ela percebeu que estava em uma superfície macia e molhada. Não
parecia sua cama, então pensou que poderiam ter colocado alguma substância em seu copo. Improvável.
Ela não havia bebido na festa. A explicação devia ser outra. Será que estava dormindo? Mesmo assim,
seria um sono diferente, porque nunca se sentira sugada antes e não parecia estar no Sonhar. Quando
finalmente focalizou o ambiente, viu algumas copas de árvores cobrindo um céu azul pincelado pelos
efeitos da luz do sol. Uma visão relativamente normal no seu mundo. Só que nele não havia árvores com
folhas douradas em caules negros como carvão, e era exatamente o que via: uma floresta dourada e
escura.
Ok, podia não parecer, mas ela estava dormindo.
– Fiquei louca de vez – comentou Sophie em voz alta, notando-se deitada em um gramado.
Ouviu um murmúrio coletivo. Escutou o vocábulo “vez” repetido por diversas vozes em um único
tom, com o final prolongado, como em um coral.
Deve ser só eco, pensou.
Entretanto, encontrava-se em uma floresta, não em uma caverna. Além disso, eco repete a palavra,
sem cantá-la. Caramba! Alguém cantava ao seu lado algo dito por ela. Quem seria? Sonhava com algum
conhecido? Aquilo tudo era estranho, e ela queria acordar. Só que, ainda assim, não parecia estar
dormindo.
Resolveu se sentar e sentiu-se zonza. Talvez por ter passado as últimas horas chorando em seu
quarto pela humilhação e traição sofridas. Devia ter capotado de cansaço e dor, sem sequer tirar as
botas. No caminho de volta para casa, não quisera compartilhar com o pai o acontecido, e ele não a
pressionou. No quarto, a fim de abafar o choro, havia colocado System of a Down para tocar, enquanto
se acabava em lágrimas agarrada ao travesseiro. Provavelmente a música a conduzira ao estado de
sonolência sem perceber. Necessitava relaxar. Aquilo tinha que ser um sonho lúcido. Já lera sobre esse
tipo de coisa, parecia normal.
Tonta e com dor de cabeça, notou um chacoalhar ao redor. Outro som esquisito além do coro
meloso repetindo suas palavras. Pareciam sereias em um canto sedutor e, ao mesmo tempo,
aterrorizante. As flores multicoloridas ao redor das árvores douradas dançavam de um lado para o outro
em um embalar próprio. O balançar não era produzido pelo vento, mas pelo caule que as vibrava de
acordo com o som vindo de dentro delas.
Aquilo era apavorante.
Não conseguia ver bocas se mexendo nem nada do gênero, mas tinha cem por cento de certeza de
que a flores cantavam, sussurravam ou sabe-se lá o nome daquilo. Se visse tulipas com lábios carnudos
cantando, diria estar revivendo algum filme da Disney ou ter entrado de vez no País das Maravilhas. Só
que não era o caso. Após longos minutos encarando o movimento e percebendo o som, ouviu cochichos
propagando-se e o eco cessou. A dança parecia diferente. A impressão era que aqueles seres
conversavam, e os pelos de Sophie se arrepiaram com a cena.
– Nossa Senhora, preciso realmente dormir – lamentou.
E o coro recomeçou. Dessa vez, murmurando “ir, ir, ir” e fazendo uma onda que indicava um
caminho comprido, cruzando diversas árvores. Estariam as flores lhe apontando uma direção?
Putz! Eu devo estar mesmo drogada, pensou a jovem. Contudo, nada tirava de sua cabeça que não era
um sonho ou efeito alucinógeno. Lembrava-se de se sentir sugada, como se tivesse sido levada para outra
dimensão por seu último pedido.
Por que não posso ser feliz em algum lugar?
A garota gelou. Será que seus apelos foram atendidos? Alguém no Cosmos a ouvia? Não tinha
respostas. Em vez de relaxar, sua mente ficava ainda mais pesada com todo o mistério.
Ficar sentada naquele local tão bonito quanto sinistro não adiantaria, por isso resolveu ouvir o
conselho das estranhas flores sussurrantes, seguindo o caminho indicado. Andou pelo que pareceram
horas e percebeu que estava faminta, algo novo pra variar.
Com a minha sorte, é bem capaz de eu cruzar com uma casa de doces de uma bruxa canibal...
Começou a ficar cansada daquele local, das cores vivas demais para seu gosto e do calor excessivo.
Foi aí que percebeu. Não estava mais vestindo as meias longas, as botas vermelhas, a saia ou a blusa. Ao
olhar para baixo, notou uma roupa que nunca usaria e voltou a achar tudo bizarro. Foi como se tudo
começasse a incomodá-la, pinicando ou machucando.
Mesmo assim, não podia negar que estava linda.
Usava um vestido assimétrico. O colo estava desnudo, algo raríssimo para ela, e vestia um espartilho
negro com decote de coração. Era bem justo, bordado com pequenas joias escuras, e ostentava um
trançado na frente e nas laterais. O cetim entrelaçado finalizava em um laço, dando um toque angelical
à peça. Uma longa saia de cetim e tule salmão com diversas camadas ligava-se ao espartilho. A cauda
arredondada era longa e arrastava-se pelo gramado, e Sophie realmente não entendia como não havia
pisado nela ao se levantar. Já na parte frontal, para seu total desespero, a saia era bem curta, cobria
menos da metade da coxa. Com toda aquela quantidade de tule o vestido parecia comportado, mesmo
sendo ainda algo bem escandaloso.
O tecido salmão drapeado era tão vivo e mágico que Sophie começava a se acostumar com o visual.
Nos pés, usava uma pequena bota de couro da mesma tonalidade da saia e rezou para o salto fino não
ficar preso em nenhum pedaço de terra. Contudo, além do vestido fora de época, algo mais a
incomodava. Levou as mãos à cabeça e tomou um susto.
Usava um chapéu.
Pôde sentir o mesmo material do espartilho em formato de cartola. Era muito pequena, só a
percebera porque o peso vinha de apenas um lado do couro cabeludo. Um pequeno acessório preso ao
seu cabelo ruivo. Nunca havia usado um chapéu antes, ainda mais um minúsculo que nem sequer servia
para proteger do sol. Quando tateou a frente do objeto, sentiu um material metálico com três pontas.
Tentou identificá-lo, mas foi impossível sem o uso de um espelho. Não estragaria o arranjo apenas por
curiosidade. Então, ainda com fome, resolveu andar mais rápido pela floresta obscura e mágica atrás de
alguma explicação.
Já podia considerar aquele o sonho mais realista de sua vida.
Quando a floresta ficou para trás, Sophie se deu conta de que não havia visto outro ser vivo além das
plantas. Nenhuma criatura do reino animal. Nem mesmo borboletas, mosquitos ou coelhos. Nada.
Naquele lugar, a princípio havia apenas árvores e diversos tipos de flores, de rosas a gardênias, com
diferentes formatos, cores e fragrâncias exóticas. Muitas folhas e o que pareciam bolhas voavam pelo
local, deixando-a confusa, mas fora isso continuava sem ver nada. Sentia-se só naquela imensidão. Se ao
menos um pássaro atravessasse seu caminho, teria alguma companhia.
Ao chegar ao final daquela região dourada, percebeu: estava no topo de uma montanha.
Isso mesmo: encontrava-se no alto de um monte elevado de cume bem largo e base extensa. Ao olhar
para baixo, uma névoa densa a impediu de ver a que altura estava. As nuvens pareciam pintadas por
aquarela, dando um toque angelical à paisagem. Do céu brotava uma espécie de cachoeira que se perdia
nas brumas espessas. Diante da visão panorâmica, Sophie observou diversos outros cumes com várias
florestas exibindo tons dourados e percebeu que devia estar no lugar mais bonito do mundo.
Os topos de ouro e os pequenos pontos coloridos nas bases se movimentavam em articulações
graciosas. O brilho do sol refletia em algumas folhas e fachos de luz cintilante espalhavam-se pelo ar,
revelando nuvens de poeira e bolhas. Até a névoa abaixo parecia de algodão. A base da cachoeira
despertou a curiosidade de Sophie. Como a jovem havia sido capaz de criar um lugar como aquele?
Acostumada a sempre enxergar o mundo cinza, será que agora construíra outro, colorido?
Será que fui eu mesma quem criou isso?
Sophie então percebeu. Tinha que ser. Até mesmo seu vestuário era um reflexo desse pensamento. Em
seu dia a dia, nunca mostraria o colo, por medo de ser julgada pelos outros. Ao olhar para baixo,
sentia-se bem, e a pele branca parecia brilhar. Também não usaria microssaias e cores claras, muito
menos tops justos, e no entanto aquele agora parecia o visual perfeito. Não se importava. Se ninguém
estivesse ali, poderia ser quem ela quisesse. Até mesmo uma maluca de minicartola passeando por uma
floresta de ouro no cume de uma montanha.
Eu posso ser feliz aqui.
Um sorriso se formou e cresceu a ponto de escancarar os dentes. Ela estava realmente feliz. E, pelo
gosto do batom na boca, também usava maquiagem. Tinha conseguido esse milagre? Não queria mais
acordar. Mesmo com fome, a alegria a fez querer explorar mais. Se fosse de fato um sonho, poderia
ignorar as próprias necessidades. Sabia que acordaria e correria para a cozinha. A mãe ficaria feliz e
mais tranquila porque encontraria a filha com um humor melhor.
No topo daquele mundo fantástico, quase não se lembrava de família, escola, amigos, inimigos e
traições. Só pensava em beleza e liberdade.
Sentia-se dona do mundo.
Enquanto observava as plantas ao redor com sua melodia sussurrada, ouviu um barulho distinto por
entre as árvores. Existia algo a mais naquela floresta. Sophie buscou o local de onde vinha o som,
andando pela beirada da montanha até um ponto em que havia um ninho de palha gigantesco, dentro
do qual viu algo parecido com um pássaro de enormes proporções.
No entanto, não podia ser uma ave. Era quase um filhote de dinossauro de tão grande. Um condordos-andes estava pousado exatamente no centro do ninho monstruoso. Podia definir aquele tipo de
pássaro por um motivo bizarro: na única vez em que deixara a TV sintonizada no History Channel
enquanto tentava dormir, eles exibiam um documentário sobre pássaros gigantes. Lembrava-se de ter
adormecido com a face enrugada do bicho povoando sua mente. Mais uma vez aquilo a assustou.
Ah, meu Deus! Eu realmente estou criando tudo isso, não é?
Encarou a criatura e as palpitações aumentaram. Lembrava-se de que ele era carnívoro, preferindo
ratos, esquilos, coiotes e até veados mortos. Com todo aquele tule, ela devia parecer uma caça apetitosa,
mesmo não tendo muita carne a oferecer. Seu alerta de perigo interno foi disparado. O animal devia ter
uns dois metros de altura por seis de envergadura e, em meio à plumagem preta, o colar e as partes
superiores das asas eram brancos. O bico curvado apresentava uma carúncula ao longo da face,
lembrando um urubu. As longas patas eram acinzentadas e enrugadas, com três garras afiadas.
Apesar de o animal ser assustador, no fundo teve a esperança de que ele se tornasse uma companhia.
Se, por um lado, ele exibia uma aparência intimidadora, por outro, Sophie sabia um pouco sobre seus
hábitos e, vendo-o de perto, não sentia agressividade alguma no comportamento do bicho. Havia certa
tranquilidade no olhar animalesco e em sua posição relaxada. Percebendo a possibilidade de ele não ser
uma ameaça, até cogitou que o bicho pudesse levá-la para debaixo da névoa. A curiosidade a havia
tomado. Não ficaria em paz se não tentasse explorar mais aquele mundo. Entretanto, sabia que era uma
situação complicada. Montar na ave não seria fácil, sem contar que o condor era considerado o
mensageiro de bons e maus presságios, e havia até o mito de que ele era o responsável pelo nascer do sol.
Aproximou-se da fera, ainda mantendo o olhar fixo. Se o desviasse, poderia mostrar fraqueza e virar
carcaça. Alguns passos à frente, Sophie resolveu fazer uma reverência ao gigante, abaixando a cabeça. O
mundo animal era muito parecido com o humano, e ela queria mostrar respeito ao condor.
– Pode me levar daqui?
O bicho não se moveu. Continuava a encará-la com os pequenos olhos calmos escondidos pelas
dobras do rosto, enquanto ela expunha o pescoço frágil.
– Por favor, nobre criatura...
Sophie teve medo naquele momento. Sentir-se analisada nunca havia sido seu forte. O pássaro era
como os colegas dela. Mas algo diferente do esperado aconteceu: o sol brilhou mais forte e reluziu nos
cabelos cacheados da menina. O feixe de luz fez a ave inquietar-se. Ao contrário de Sophie, parecia
entender a situação.
Por fim, abriu as asas mostrando sua imensidão. O peitoral quase tocava o solo quando a ruiva
subiu no animal, procurando não puxar com força as penas. Sentando-se atrás do colar de penugem
branca, Sophie verificou se ele aguentaria seu peso e, pela envergadura, notou que sim. Era incrível!
Estava prestes a voar.
Então, o condor deu um pulo...
E ela parou de respirar.
4
N
um primeiro momento, pensou que ia morrer. Tudo foi intenso. Nos segundos seguintes, não se
importava com mais nada – queria realmente ver o que havia debaixo da imensidão branca.
O pássaro, ao perceber que ela se encontrava segura, tomou impulso e saltou do alto da montanha.
Subiram um pouco em um voo bambo e, quando o corpo do animal embicou para baixo, ela levou um
susto. A ave de súbito fechou as asas e deixou-se cair em uma velocidade absurda. Surpresa, Sophie
quase não conseguiu se segurar à plumagem. Foram dois minutos sem pensar em inalar oxigênio,
entretanto pareceram cinco pela câmera lenta mental. Viu borrões e sentiu o estômago parar na boca.
Queria vomitar e até isso seria impossível.
Só então percebeu sua idiotice. Estava em um sonho. Não morreria na queda. O pássaro não era
real, nem o ambiente ao redor. Precisava acalmar-se e relaxar para, quem sabe, entrar em um estado zen
e parar de sentir tudo daquele sonho com tanta intensidade. Quando se acalmou, já afrouxando as
mãos vermelhas de tanto apertar as penas do bicho, observou o cenário.
E voltou a respirar.
Se havia achado a floresta mágica e assustadora, não tinha mais adjetivos para explicar o que via ali.
Alguns metros acima do chão, pôde ver o que a névoa escondia. O lugar revelava as mesmas árvores
douradas espalhadas pela região, formando grandes letras do alfabeto. Procurou lógica em meio a sua
experiência sobrenatural e soube que se sentiria uma idiota quando acordasse. Mesmo que parecesse
infantil, ela ainda tentava identificar algumas dessas letras. Conseguiu reconhecer apenas as letras “T” e
“U”. Havia outras, mas o pássaro inclinou o corpo na desaceleração e ela bambeou, preocupada
novamente em se manter viva.
Como se eu fosse morrer em um sonho.
Do alto, notou também um espaço púrpura entre as árvores. Pelo formato parecia um lago. Seria
possível existir água violeta naquele lugar? Viu outras formas como aquela ao voar para áreas mais à
frente, contudo a primeira aparentava ser a maior.
Também percebeu movimentação na terra.
A falta de habitantes no alto da montanha não se repetia ali. Visualizou pequenos pontos em
movimento, mas, pela distância do solo, não os distinguia com nitidez. Sua vontade era descer e
conversar com aquelas pessoas. Quase perdera o medo de se comunicar com estranhos. Sentia-se mais
corajosa após andar sozinha por uma floresta apavorante com trilha sonora especial e viajar
perigosamente nas costas daquela montaria alada. A ave sobrevoou outros lagos de águas púrpuras e
letras estranhas formadas por copas douradas. Sophie jurava que se repetiam. Não pareciam ser todas
iguais, e ainda não conseguia prestar atenção suficiente para desvendá-las.
Os pontos lá em baixo continuavam a se movimentar na mesma direção que a ave percorria. Pensou
se estariam surpresos de ver uma pessoa desconhecida naquele reino mágico. Mal sabiam que ela era a
criadora de tudo aquilo.
Ficariam felizes de saber que são fictícios?
Sophie começava a censurar seus pensamentos. Ela, uma pessoa que conhecia o bullying, já
começava a praticá-lo com desconhecidos só por ter o poder de decidir as regras daquele lugar.
Depois de alguns quilômetros, chegaram ao centro da civilização. Observou cerca de cinquenta
casinhas de dois andares pequenas e coloridas com telhados pontiagudos de madeira. Algumas
moradias mantinham um tom mais rosado, outras eram douradas, anis, verde-esmeralda, escarlates e
alaranjadas. Pareciam um arco-íris ao redor da maior construção de todas: o castelo.
A arquitetura de contos de fadas impressionava. Sete andares se acoplavam a três torres no formato
de foguetes. Sophie se concentrou nas estátuas de pedra cinzenta diante do monumento: dois dragões
talhados se encaravam, guardando a porta de entrada. Tinham uns quatro metros de altura e suas asas
ocupavam boa parte do espaço. No portão de ferro, com quase a mesma altura, diversas fadas haviam
sido esculpidas no metal. Estava fechado, entretanto a ruiva jurava ter visto um reflexo de luz passar
pela sacada acima da entrada. Após o choque inicial, observou o resto do castelo. Ao contrário da
cidade, a construção não trazia cores fortes e chamativas. Em sua maior parte, era composta de paredes
brancas quase gélidas em tom aquarelado. Ela não entendia como eles conseguiam mantê-las
impecavelmente limpas daquele jeito.
Sua idiota, é um sonho, é claro que conseguem!
O contraste destacava as cores. A madeira amarronzada, as paredes brancas, o portão escuro e os
dragões de pedra davam certo glamour ao aglomerado de casas coloridas, que combinavam com as
flores murmurantes. Era justamente o encontro daqueles mundos diferentes que a deixava mais
intrigada. Para complementar, no topo da torre central, em vez de uma janela como nas outras duas,
havia uma nota musical escura, do mesmo material do portão. Era um castelo perfeito para caixinhas
de músicas. Caixinhas como a que Sophie ganhara dos pais quando a ouviram cantar pela primeira vez.
– É, meu amigo – comentou ela para o pássaro –, parece que também criei meu castelo ideal.
O bicho soltou uma nota melódica alta, demonstrando concordar. A garota acariciou-o no topo da
cabeça.
No instante seguinte, sentiu uma onda de calor invadi-la como se estivesse próxima de uma fogueira.
Ao olhar para o lado, assustada, percebeu labaredas de quase dois metros passarem a poucos
centímetros da sua pele. O susto e o incômodo da sensação de queimação fizeram o condor se inclinar
rapidamente para a direita, jogando outra vez o corpo rumo ao chão. Sophie gritou desesperada.
Quando voltaram à posição de voo, ela entendeu o que havia acontecido: uma fênix passara por eles.
Uma fênix! O pássaro da mitologia grega que renasce das próprias cinzas. Assim que a ave pousou
alguns metros à frente do portão do castelo, as portas se abriram e o condor, procurando manter
equilíbrio, começou a descer ao encontro da multidão que se reunia no local. O estômago da garota
revirou, e ela finalmente voltou a sentir seu medo habitual. Chegou a um ponto em que não sabia se
conseguiria controlar seu sonho. Quando se aproximaram do solo, Sophie notou diversas pessoas com
roupas parecidas com a dela e minicartolas combinando com o visual. Todos usavam trajes formais em
um contraste de tons suaves e dramáticos, mas nenhum daqueles cidadãos se parecia com as pessoas que
conhecia. Ela não sabia se era por causa das roupas bufantes ou das diversas cartolas escuras, mas havia
algo diferente neles.
Além disso, ela se sentia querida.
Aquilo definitivamente não era natural.
Após pousarem na passarela principal do castelo, Sophie pôde enfim descer do pássaro e o
reverenciou mais uma vez. Ele devia ter reconhecido nela um bom presságio. Os habitantes ainda não
haviam chegado perto o suficiente. Imaginou que não seria atacada, afinal aquele era o seu sonho. Eles
pareciam saber quem ela era, como se conhecessem seu interior. Se conheciam seus mais obscuros
segredos, sabiam que não havia nada a temer. Ela era apenas uma garota como todas as outras.
Uma jovem com poucos amigos e uma grande criatividade.
Quando a criatura flamejante à frente abriu as asas e apontou o longo bico para o céu, o som das
flores ao redor aumentou de volume. Sophie caminhou lentamente pelos tijolos claros, tentando ver se
alguém apareceria no portão principal. Na verdade, não sabia o que poderia acontecer a partir daquele
momento.
De repente, algumas sombras surgiram, seguidas por uma luz. Um flash veio do alto, na sacada
principal. Uma jovem um pouco mais velha do que Sophie apareceu ao centro, brilhando como um ser
angelical. Os cabelos loiros eram longos e cacheados como os dela, mas um pouco mais soltos, e os
olhos castanhos combinavam com os telhados da cidade. Havia poder naquele olhar repleto de
segredos. Para sua surpresa, da cartola da garota saía um par de asas e a ruiva notou que em seu punho
esquerdo havia uma marca, talvez uma tatuagem, de uma caneta tinteiro de bico de pena. Achou a
imagem interessante e teve vontade de perguntar o que significava.
Em seguida, Sophie reparou no homem que caminhava ao lado da moça, com um andar imponente,
e a observava com orgulho. A cartola dele era tradicional, como a de todos os homens presentes, mas
apresentava um grande “M” estilizado na lateral. Usava um terno verde-escuro e gravata-borboleta
preta, combinando com o acessório da cabeça. O sorriso era verdadeiro, e a confiança que ele lhe
passava a fez respirar com mais calma.
Outra criatura vinha em sua direção. Como tudo naquele lugar, parecia mágica. Era um gato de
tom levemente amarronzado com a face escura e uma mancha parecendo uma máscara borrada de preto
das bochechas às orelhas. O mais incrível era que o animal andava apenas com as patas traseiras, agindo
como se fosse humano. Ele também usava uma cartola preta, gravata-borboleta e manejava um cetro
com a letra “M” na ponta, combinando com o figurino. Sophie pôde jurar que viu o gato estalar os
dedos no ritmo da música das flores ao seu redor e ouviu um som grave sair de seu miado baixo.
Por fim, enxergou a senhora que vinha mais atrás. Ao vislumbrar os cabelos curtos da mulher,
percebeu algo familiar nela. Uma lágrima escorreu involuntariamente. Observou as sobrancelhas claras,
o nariz fino e os braços rechonchudos. Muito familiar. O sorriso relaxado e as unhas vermelhas. A
sabedoria antiga que carregava em sua energia. Aquela mulher era especial. Sophie nunca a vira.
Contudo, sentiu que era um reencontro. Um acontecimento mágico. Quando os quatro pararam à sua
frente, escoltados pelos pássaros, notou a diferença na minicartola da senhora. Nela, havia uma coroa
de três pontas.
Lembrou-se de como era a sua e sorriu.
Estava em casa.
5
E
la acordou de supetão.
Ouviu batidas secas na porta do quarto, o que atrapalhou seu sono. Sentia como se tivesse
dormido por um dia inteiro, mas eram apenas cinco horas da manhã. O horário de sempre.
Por que foram me acordar logo agora?, perguntou-se enquanto tentava localizar o copo d’água na
cabeceira.
Não entendia como tinham sido capazes de acordá-la mesmo sabendo que tivera uma noite terrível.
Encontrar os colegas da escola era o que menos queria naquele dia. Nem sabia como reagiria ao ver a
ex-melhor amiga. Ainda sentia raiva pelo modo como fora tratada e desejava nunca mais ter que ir ao
colégio. Então, ela se lembrou da festa. Havia sido em um sábado. Ora, se ela tinha saído no sábado,
então era domingo, e não precisava acordar às cinco da manhã. Notou, em seguida, o “pm” ao lado do
horário e pulou da cama.
Tinha dormido quase o dia todo.
Ouviu outras batidas mais violentas, quase derrubando a porta frágil. Um toc toc irritante de
pesadelo do mundo real. Os pais deviam estar preocupados com seu sumiço. Ela não costumava dormir
direto por muitas horas. Gostava de dormir, mas curtia mais tirar a soneca da tarde do que estender o
sono da madrugada. Depois de voltar chateada da festa, é possível que sua permanência no quarto até
aquela hora tivesse angustiado o casal.
Só quando alguém tentou girar a maçaneta da porta resolveu responder aos apelos.
– Pode entrar – tentou dizer com a voz travada, enquanto levava a água até a boca seca.
Viu a mãe entrar cabisbaixa, com os olhos marejados e ombros encolhidos. Sophie conseguiu sentir
o clima de enterro. Realmente, pregara uma peça na família e sentiu-se culpada por isso.
– Filha, você está há muito tempo neste quarto – começou ela, sentando-se na beirada da cama. –
Está quase no horário do jantar! Não pode ficar perdendo refeições assim.
A filha tentou rir.
– Não vou emagrecer por ter perdido um almoço, mãe.
A mulher fechou ainda mais a expressão.
– Esse não é o motivo desta conversa!
– Eu sei – respondeu a garota, tentando se redimir. – Foi mal. Não escutei você chamar. Tive um
sonho estranho e, aparentemente, longo demais.
– Pelo visto, sonhou muito rápido também, já que nem teve tempo de tirar a roupa e os sapatos.
Sophie notou que ainda estava vestida como na noite anterior. Devia mesmo ter dormido exausta de
tanto chorar e, pelo olhar da mãe, precisaria lavar as roupas de cama sozinha.
– Fico feliz que tenha achado sua caixinha de música – comentou Laura, interrompendo os
pensamentos da filha. A mãe pegou o objeto com uma miniatura de castelo e deu corda.
Uma música muito semelhante aos sussurros das flores do sonho invadiu o quarto.
Como podia recordar tantos detalhes? Por que a caixinha estava em sua cabeceira? Não se lembrava
de tê-la tirado do armário. O presente a fazia lembrar da expectativa de seus pais em vê-la um dia
cantar em público. Nunca teria coragem, portanto preferia escondê-la a encará-la todos os dias. Achava
mais fácil simplesmente ignorar o problema.
– É. Apareceu do nada.
Pelo menos ela não estava mentindo.
Tentou relembrar detalhes de quando ficara no quarto sozinha, mas nada veio à mente. Recordou
alguns trechos da música de rock que tocava e dos olhos coçando por causa da maquiagem preta
escorrida. Nada mais.
Life is a waterfall. We’re one in the river and one again after the fall.
A música parecia certa: A vida é uma cachoeira. Nós somos um no rio e um novamente após a queda. A vida
era de fato como uma cachoeira. Somos de um modo antes de uma tragédia e depois voltamos a ser os
mesmos. Tinha motivos para ficar o dia todo na cama, contudo havia sonhado com um lugar
maravilhoso onde, por alguns segundos, percebera honestidade no olhar das pessoas. Sentira-se amada
apesar de ser uma estranha. Se, em suas loucas fantasias, era mais querida do que no mundo real, ansiava
por uma nova madrugada e um novo sono.
– Quer conversar? – perguntou Laura.
– Estou bem.
A mãe suspirou, sabendo que uma coisa ninguém tiraria da filha: ela era forte. Tinha orgulho da
personalidade dela, mas sabia da barreira necessária para ser tão imbatível.
Antes de sair do quarto, a mãe lhe passou um recado:
– Anna ligou. Parecia querer muito falar com você.
– Não quero falar com ela...
– Briga entre amigas?
– Melhor dizer traição de uma falsa amiga.
Era o máximo que Sophie diria.
Se Anna estava envolvida no acontecimento da noite anterior, então havia sido mesmo sério. George
passara o dia inteiro bebendo café, nervoso por saber que a filha sofrera mais. Para ele nunca fora fácil
lidar com o fato de que sua pequena diariamente sentia dor, vergonha ou tristeza. Nenhum pai desejava
aquilo. Vê-la com os olhos tristes havia quebrado seu coração em milhares de pedaços. Ela era preciosa
demais para todos eles, e tinha vontade de sofrer em seu lugar.
Depois que se alimentou e acalmou um pouco o coração do pai, Sophie resolveu fazer o que sabia
melhor: cantar.
Pegou o violão velho e deixou Dior segui-la até o jardim para aproveitar os últimos raios de sol.
Sabia que o cachorro devia ter sentido sua falta. Costumava passar todas as tardes ao seu lado e,
naquele dia, quebrara a tradição. O pequeno lambia seus dedos e latia, pulando de um lado para o
outro, empolgado. Todavia, Sophie não se queixava por ter tido o sonho psicodélico. Estivera em um
mundo colorido com pássaros gigantes, pessoas extravagantes e realezas. Queria muito poder continuar
naquela noite do ponto em que parou, mas sonhos não funcionavam assim. Poderia sonhar com
qualquer outra coisa. Não conseguiria controlar.
Por que os humanos não podem sonhar com o que querem?, perguntou-se.
Seria possível se conduzir a ter outro desses sonhos, mas de forma lúcida? Pensou em pesquisar mais
sobre o assunto na internet. Ainda queria acessar as redes sociais para conferir as fofocas da noite
anterior. Sua passagem pela festa renderia muitos posts dos colegas.
– Parece que agora você é meu único companheiro de verdade – disse a ruiva para o cachorro, que
ainda a perseguia enquanto andava descalça para um ponto afastado da casa.
Sentou-se na grama e encaixou o violão entre as pernas finas, dedilhando algumas notas e pensando
no local mágico.
– As letras, as flores, as cores. O nosso muito pouco... – cantou suavemente e sorriu.
O mundo mágico ainda inspiraria diversas canções.
A escuridão tomava conta da janela aberta, trazendo os segredos antigos do céu e uma brisa arrepiante.
Sentada na cama com o cabelo preso por um lápis e usando seu velho pijama, Sophie pegou o notebook
e respirou fundo antes de encarar a realidade. Dior dormia profundamente em cima de um dos seus pés,
alheio aos receios da dona.
Digitou a senha de seu perfil falso de rede social e esperou carregar a página. Com ele seguia todos
os alunos de sua classe, inclusive seu perfil verdadeiro quase não utilizado. Não queria chamar atenção.
Em sua rede oficial tinha pouquíssimos acessos, e ela mesma sentia certa vergonha de compartilhar seus
pensamentos. Na falsa, colocava sátiras engraçadas, ácidas e acompanhava os comentários absurdos dos
que a seguiam. Muitos que a ignoravam pessoalmente a acompanhavam naquele perfil e contavam
coisas que nunca diriam perto dela. Se alguém fosse falar sobre o episódio da festa, falaria com seu alter
ego. Para ela, ainda era uma incógnita a necessidade de manter uma válvula de escape como aquela,
afinal odiava aqueles indivíduos. Por outro lado, sentia a necessidade de ser um pouco mais “humana”
pelo menos na internet. As pessoas viviam cada vez mais por meio de caracteres em uma tela brilhante.
Se naquele mundo virtual pudesse ser alguém, isso valeria algo.
Recordou-se de novo daquele mundo onde se sentia importante, mas a imagem desapareceu em um
segundo ao ver uma foto sua postada por um dos alunos da classe. A legenda dizia: Acabaram com essa
esquisita no começo da festa. Existe alguém que ainda fala com ela? #epicfail.
Realmente, tinham acabado com ela. O mais irritante não era a multidão ao redor, o olhar metido
de Angélica, o babaca do Rick e sua expressão assustada. O pior era ver a vergonha estampada no rosto
de Anna e notar o quanto aquela menina, considerada uma irmã, parecia se sentir incomodada por ser
vista ao seu lado.
Apesar de normalmente gostar de saber da vida dos outros, agora era ela a envolvida; por isso
resolveu desistir de olhar. Se lesse os comentários abaixo da foto e os outros posts, poderia nunca mais
voltar para a escola e, infelizmente, precisava se formar. Somente com um diploma do ensino médio
poderia iniciar a faculdade de música. Se não tivesse coragem para cantar, poderia ao menos trabalhar
com produção musical e ser feliz. Conheceria pessoas diferentes como ela. Artistas de alma.
Ao se deslogar da rede social, aproveitou o navegador aberto para pesquisar em um site de busca a
questão do sonho lúcido. Nada lhe tirava o mundo mágico da cabeça. Nem as atitudes mesquinhas do
pessoal de sua escola nem a ingratidão da amiga depois de anos de convivência.
Abriu diversos links e começou a ler as páginas a fim de ver se em alguma existia uma fórmula
mágica para continuar seu sonho encantado. Era uma pena que aquele lugar não existisse. Preferia viver
em uma dimensão como aquela.
Parou de ler por alguns segundos, analisando suas reflexões.
E se tivesse ido mesmo parar em outra dimensão? Não se lembrava de ter dormido, e o sonho foi
real demais. Seria possível? Parecia ainda melhor do que ter um sonho lúcido. Contudo, ao continuar
lendo, percebeu que talvez tudo fosse empolgação excessiva da sua mente fértil. Outra invenção. Afinal,
ela era a garota que via a escola como uma floresta sombria, cheia de criaturas subterrâneas. Nada
anormal em sonhar com uma floresta dourada repleta de habitantes exóticos.
Aprendeu que um sonho lúcido era uma percepção consciente, mantida por uma pessoa durante o
sonho. Aquilo resultava em uma experiência da qual se teria uma recordação muito clara e nítida,
normalmente aparentando controle e capacidade direta sobre as ações. Leu que algumas vezes é possível
controlar até o próprio desenrolar do sonho. Sophie sentira tudo isso.
Ela descobriu o termo “onironauta” e concluiu que queria ser uma exploradora de sonhos. Aquele
desejo não parecia ser somente dela, pois muitos psicólogos falavam do tema, assim como escritores e
artistas. Tinha lido um livro sobre fadas que descrevia uma dessas experiências. Havia esquecido aquilo.
Por meio de vários relatos, descobriu que esses sonhos costumam ser coloridos e animados. Também
comentava-se o quanto aquela experiência fantástica mudava a maneira como o indivíduo enxergava o
mundo real. Parecia uma hiper-realidade, pois detalhes como sua caixinha de música e o fato de ter
visto um documentário sobre pássaros ligavam-na àquele sonho. Leu em um dos sites que a pessoa não
sofre danos psicológicos ou físicos por vivenciar algo forte assim, mas que aquilo significava que, dentro
dela, algo devia estar machucado. No caso de Sophie, o fato de aquele mundo ser diferente do seu a
deixava triste.
Em seguida, decidiu pesquisar sobre como podia realmente ter um sonho lúcido. Talvez fosse
possível voltar ao ponto em que seu sonho parou.
Encontrou diversos passos para seguir. Primeiro: precisava perguntar-se várias vezes ao dia se estava
sonhando. Várias vezes mesmo. Pela prática, afirmavam que ela se acostumaria a sempre se
autoquestionar e poderia explorar o sonho se fizesse a pergunta no curso de sua duração.
Agora sim vou ficar esquisita, pensou ao passar para a próxima etapa.
Também precisava manter um diário de sonhos. Aquele parecia ser um dos passos mais importantes
de todo o ritual. Sentia-se uma bruxa anotando aquelas instruções mágicas com muito carinho e
atenção. O cabelo ficara jogado e bagunçado após ter retirado o lápis a fim de anotar os detalhes.
Nada como o fiel papel em um mundo dependente do Word e do bloco de notas. Caso precisasse se
lembrar de algum dos tópicos, bastava retirar a anotação de dentro da bolsa.
Voltando ao diário, ela deveria mantê-lo ao lado da cama e relatar seu sonho sempre ao acordar.
Percebeu que já falhara na primeira experiência. Então, precisaria acordar alguns minutos mais cedo
antes de ir para a escola e começaria a usar a chave da gaveta da escrivaninha. Conhecendo a mãe
curiosa que tinha, não teria privacidade se o deixasse largado. Caso Laura lesse o conteúdo, acharia que
a filha finalmente enlouquecera de verdade. Exagerada como era, buscaria no clube das mães por respostas
para seus dilemas e pediria telefones de psicólogos chiques para tratar a filha. O objetivo de Sophie era
ficar longe de qualquer médico capaz de entrar em sua mente.
Ela podia substituir o diário por um gravador, mas sempre evitava gravar a voz em qualquer
situação. Lembrava-se da mãe tentando capturar seu canto, e aquilo lhe dava arrepios. Esses métodos
ajudariam Sophie a memorizar lugares e pessoas constantes. Podia até relatar sobre as três que já a
tinham marcado: a jovem com aura angelical, o homem de cartola e olhar confiante e a senhora que a
tocou de forma significativa.
Para sua tristeza, leu que aprenderia os horários de seus sonhos lúcidos. Já tinha uma grande vontade
de dormir e tentar praticar, mas talvez existisse um horário certo para aquilo. Para penetrar naquele
mundo.
Alguns especialistas acreditavam que um cochilo algumas horas depois de acordar podia se
transformar em um sonho lúcido. Ela, porém, não poderia simplesmente cochilar na classe. Mesmo se
conseguisse, seria estranho ver pessoas de roupas bufantes enquanto alunos idiotas jogavam bolinhas de
papel no seu cabelo.
Outros diziam que esse tipo de sonho era mais fácil no estágio final do sono, o famoso REM.
Notou algo preocupante em um dos parágrafos. Se o fenômeno REM fosse frequente no começo do
sono, talvez fosse preciso procurar ajuda médica. Ela definitivamente não queria aquilo. Só de falar
daquele tema lembrou-se de “Losing My Religion” e murmurou para a tela:
– That’s me in the corner. That’s me in the spotlight. Losing my religion.
Um sorriso brotou involuntariamente em seu rosto. Sou eu ali no canto, dizia a música. Sou eu no centro
das atenções. Perdendo minha religião.
Focou na leitura do texto detalhista demais e descobriu que os sonhos normalmente duravam
sessenta minutos e costumavam mudar sempre. Contudo, tinha certeza de que aquele havia durado uma
noite inteira e parte do dia. Um caso a ser estudado. Então aprendeu uma tática boa, porém incômoda.
– Não sei se vou conseguir cumprir essa, Dior – desabafou para o cachorro jogado na cama, que
fazia seu pé ficar cada vez mais dormente.
Precisaria se adaptar à técnica de indução mnemônica de sonhos lúcidos, conhecida pelos
especialistas como MILD. Preferia chamá-la daquela maneira. Mais fácil de decorar. Não sabia,
porém, se conseguiria praticá-la.
Teria que colocar o despertador do celular para tocar quatro minutos e meio depois de deitar, seis
minutos após e, então, sete minutos e meio depois. Toda vez que despertasse precisaria se lembrar do
que estava sonhando ou pensando. Até pegar no sono, repetiria para si própria que estava ciente de estar
sonhando.
– Será que vou me lembrar de tudo isso? – perguntava-se em voz alta, olhando para a tela branca.
Não sabia. Mesmo se tudo desse errado, havia ainda outra técnica: programar o relógio para
despertar seis horas depois que fosse para a cama. Quando ele tocasse, ela precisaria ficar uma hora
acordada, lembrando-se do mundo real, voltando e fixando-se na lucidez para, em seguida, praticar o
MILD. Se precisasse recorrer a essa técnica, teria sonecas mais longas durante a tarde e, assim, ficaria
acabada.
– Tudo bem por aqui? – quis saber o pai do lado de fora do quarto, após dar leves batidas na porta
com os nós dos dedos.
Sophie fechou o navegador com medo de revelar algum detalhe e o deixou entrar. Ver a filha de
pijama lembrou-o de que ela ainda era a sua menina. Crescia rápido, mas estava ali em seu quarto,
fazendo dever de casa. Pelo menos, era o que ele achava.
Não recebeu resposta e resolveu tentar outra abordagem:
– Alguma novidade na internet?
A jovem riu. Era engraçado ver o esforço do pai em tentar se enturmar.
– Nada demais.
– Em um mundo grande como este, nada lhe chamou a atenção?
Aquela era uma boa pergunta. Notícias corriam nas redes sociais e nas páginas de fofocas da web.
– Estava pesquisando sobre sonhos. Você já teve algum muito real?
O pai estranhou. Sabia da recente briga dela com a melhor amiga e da confusão no dia anterior e,
ainda assim, ela preferia focar em outros assuntos. Aquilo era bem a cara dela.
– Todo mundo já teve um sonho vívido. Eu tive alguns no decorrer da vida. Acho que são intensos
demais. Prefiro o meu sonho calmo de todo dia.
– Intensidade não é algo bom?
– Tudo que é exagerado tende a não ser, pelo menos na minha opinião. Até as coisas boas demais
têm o defeito de serem boas demais. Precisamos de equilíbrio.
A menina voltou a dar uma leve risada.
– Você é engraçado, pai.
– É o meu charme.
Terminando a conversa, Sophie resolveu sair do quarto e comer. Tinha passado tempo demais sem
se alimentar. Depois de engolir um misto-quente, pegou seu achocolatado tradicional e passou o tempo
assistindo a um documentário na televisão com a família. Quase se esquecera de que existiam momentos
gostosos como aquele. Por um instante, aquilo também foi como morar em um mundo colorido. Seu
mundo cinzento, naquela ocasião, tendia a um tom mais puxado para o claro, e, ao adormecer no
ombro do pai, foi levada para a cama.
Naquela noite, Sophie não passeou por nenhum lugar mágico.
Porém, a noite foi mágica por si própria.
6
O
s dias passaram em um flash. Sophie mal se lembrava de como outro domingo havia chegado.
Sua semana se resumira a horas a mais na biblioteca da escola tentando fugir dos comentários e
risos inoportunos. E também das tentativas da antiga amiga de conversar. Decidira não dar uma nova
chance àquela amizade. Sempre soubera da diferença de personalidade das duas, e aquele era o melhor
momento para elas encararem que pessoas muito diferentes não conseguem permanecer juntas por um
longo tempo. Elas já poderiam ganhar um troféu por ter convivido por quase toda a vida, mas a ruiva
preferia viver sozinha em seu canto reservado entre os livros a viver em um mundo no qual outras
pessoas eram forçadas a gostar dela por educação.
Dane-se a educação, pensou enquanto arrumava a seção de ficção científica do colégio.
Vivera pelas regras dos outros por tempo demais. Já havia sofrido uma grande humilhação e não era
possível ter um status social pior. Como consequência, permaneceu a semana inteira na biblioteca e, ao
voltar para casa, afundava-se em mais leituras. As tentativas de indução ao sono lúcido não davam
certo. Acreditava que os livros de fantasia lidos na escola inspiravam sua imaginação além do limite.
Por fim, tinha sonhos lindos, mas não aquele. Nunca aquele. O sentimento de ser sugada desapareceu, e
ela foi se acostumando.
Na noite de mais um fim de semana calmo, resolveu quebrar a rotina e voltou a logar em seu perfil
falso. Usara-o pela última vez havia exatamente uma semana. Seu receio era que, por ter se ausentado da
página, as pessoas tivessem se esquecido de seu personagem. Era normal nascerem e morrerem perfis
haters todos os dias.
Ao passar pelas mensagens deixadas em seu mural, percebeu que algumas pessoas ainda comentavam
o que ocorrera na semana anterior, no entanto, para seu alívio, a história já estava antiga. Alguns
reclamavam de seu desaparecimento do perfil, outros tentavam descobrir quem era o dono daquela
conta. Os palpites eram bem equivocados. Todos achavam que se tratava de alguma menina frustrada
querendo tomar o lugar de alguém mais popular, o que até fazia sentido, mas poderia ser qualquer um
dos diversos ignorados daquela sala pantanosa, repleta de sapos e ervas daninhas. Ela achava que só o
pensamento de que estavam falando com alguém antissocial devia parecer nojento demais para ser
verdade.
Cogitava sair da rede social sem sequer escrever uma mensagem de despedida quando notou algo
diferente: a foto de um garoto magro como ela, estiloso, com calça justa preta, camiseta de banda
amarela e cabelos escuros enrolados. Ele usava um cordão preto e comprido que ia quase até o umbigo e
deixava um cinto à mostra. Também dava para ver alguns anéis legais nos dedos finos. O rapaz tinha
um modo de se vestir totalmente diferente dos outros de seu colégio. Parecia meio perdido na
fotografia. Devia ser um aluno transferido. Talvez não fosse nem da cidade. Pelo post de Angélica, ele
era a mais nova sensação do lugar.
Sophie não sabia por que passara tanto tempo observando aquela imagem e lendo os elogios dados
ao rapaz. Alguns até a deixavam incomodada. Sim! Era o primeiro rapaz um pouco diferente daquele
lugar, e os gostos dele eram como os dela. Podia ver isso claramente naquela única fotografia tirada por
uma maluca metida. Entretanto, o fato de existir alguém como ela a deixava confusa, ainda mais por
ele ser tão popular.
Resolveu dar outra folga para o alter ego e desligou o computador. Passara o dia inteiro brincando
com Dior em um parque perto de casa, e agora era mais importante pensar na prova de álgebra do dia
seguinte do que analisar a foto de um desconhecido. Um desconhecido que a instigava, mas, ainda
assim, um desconhecido. Sophie dormiu e a sensação voltou.
Quando menos esperava, ela foi sugada.
Abriu os olhos e encontrou-se na mesma passarela em frente ao castelo da semana anterior.
Seus olhos demoraram para se acostumar com a claridade local. Quando pôde enxergar, percebeu
que os três humanos e os três animais continuavam a encará-la. A cena parecia a mesma. Curiosamente,
entretanto, nenhum deles vestia as roupas do encontro passado, nem ela própria. Os estilos bufantes e
melodramáticos continuavam os mesmos, mas os únicos detalhes iguais aos do outro sonho eram os
símbolos nas cartolas.
De resto, tudo se modificou no tempo em que estive fora, pensou. Em que estive fora. Como se eu estivesse agora em
algum lugar.
Não entendia como sua mente havia criado tudo aquilo, mas talvez as anotações no diário
estivessem produzindo efeito. Afinal, ela começara a escrever exatamente para tentar chegar àquele
pedaço de paraíso.
Parou para se observar e viu que continuava usando uma espécie de espartilho, dessa vez de tom
amarronzado com pontos dourados. A saia ainda era de tule, porém a cauda fora encurtada e
facilitava-lhe os movimentos. A cor salmão dera lugar a um tom creme, mantendo o estilo angelical.
– Pensei que não conseguiríamos mais trazê-la aqui – comentou a jovem loira aproximando-se dela.
O gesto repentino fez Sophie dar um passo para trás por reflexo. Após o movimento, notou que a
jovem com a minicartola de asas franziu a sobrancelha, curiosa. Talvez não entendesse as atitudes
humanas. Ela só poderia mesmo ser de outro mundo. Brilhava como se tivesse a pele coberta por pó de
diamante, e a voz calma carregava uma tranquilidade incomum.
– Acharam que eu não sonharia mais com vocês? – indagou Sophie.
A outra franziu ainda mais o cenho.
– Não entendi. Do que está falando, alteza?
– Do que você está falando, garota? – retrucou Sophie.
Aquele termo pairou em sua memória. Alteza. Por que ela a chamava assim?
– Demorou um pouco para localizarmos a sua energia. Esperamos muitos anos para conseguirmos
trazê-la de volta.
– De volta para onde?
– Para casa.
Como sempre, tudo parecia real. O perfume das flores murmurantes, o vento levando o aroma para
todos os lugares e os olhares bondosos encarando-a com esperança. Não entendia como caíra
novamente em um sonho lúcido, mas queria aproveitá-lo. Tentar entender como fora parar ali seria
inútil.
– E quem é você? – perguntou-lhe Sophie, sem deixar de notar os diversos outros seres ao redor.
Todos a olhavam com muita atenção.
– Meu nome verdadeiro é guardado pelas chaves reais. Um dia, jurei proteger todos os segredos
deste lugar sagrado, por isso tenho esta marca em meu pulso. Você reparou nela no primeiro dia –
disse, mostrando o bonito desenho da caneta-tinteiro. – Sou a pena que escreve o segredo de nossa
história.
Sophie ficou abismada por ela ter notado seu olhar naquele dia.
– Então a chamam de “nome verdadeiro guardado pelas chaves reais”?
Antes séria, a mulher não segurou um pequeno sorriso.
– Os habitantes me chamam de Sycreth – respondeu calmamente.
– Como em “segredo”?
– Pode-se dizer que sim.
– Nossa! Como estou criativa neste sonho – afirmou Sophie colocando a mão na cabeça.
Tentava não ser tão lógica, mas sempre se via nesse caminho.
– Você não está no Sonhar, minha alteza – voltou a falar a suposta protetora dos segredos.
Repetia pela segunda vez a sentença. Teimava em dizer que toda aquela maluquice não era um
sonho. Como poderia não ser? Sophie estava em um lugar esquisito com uma mulher falando sobre
localização de energia.
– Você é a princesa daqui? – perguntou Sophie de repente, entrando na loucura.
Então pôde notar a vermelhidão nas bochechas da outra.
– O que é isso, alteza? Sou apenas a Guardiã Real. Até a sua chegada, éramos guiados pelo Primeiro
Ministro e por sua avó, rainha de todo o mundo, que estão aqui presentes.
Após a deixa, os dois deram um passo à frente.
– Espero que não tome como grosseria, mas eu tive duas avós, e elas não se pareciam com a
senhora... – disse Sophie.
A mulher, que a observava com os olhos marejados, a abraçou sem dizer uma palavra. Aquilo foi
suficiente. Uma explosão de sentimentos bombardeou seu coração, e diversos flashbacks surgiram em sua
mente, sem controle. Várias informações e lembranças esquecidas havia muitas vidas. Ouviu vozes
familiares demais, viu rostos amáveis que a admiravam e sentiu abraços como aquele tantas vezes que
ela parecia não ser a mesma pessoa. Como era capaz de relembrar uma vida que nunca teve?
O abraço daquela senhora mostrou-lhe que, de algum modo, tinha reencontrado sua antepassada.
Juntas, precisavam nutrir os sentimentos de um lugar que, por tanto tempo, desejara a sua presença.
– Como é possível? – perguntou ela quando se separaram.
– Desde muito tempo sou rainha deste Reino, minha menina. Essa é uma tarefa nobre, mas, ao
mesmo tempo, difícil. Fui designada para cuidar de seres puros e amáveis e venho tentando fazê-los
felizes desde então. Um dia, consultei-me com uma sábia de nossa comunidade e descobri que, em
outra vida, tive uma filha, e ela havia dado à luz uma menina. Descobri que a alma dessa menina
reencarnara em uma humana e a procurei por muitos anos. Depois, soube que só conseguiria encontrá-la
quando estivesse preparada – respondeu a senhora, antes de uma pausa. – Agora, você está aqui.
Sophie lembrou-se da humilhação sofrida na festa.
– Sinto como se estivesse com saudade deste lugar – balbuciou a ruiva.
– Você passou muitos anos sem saber sua verdadeira identidade e só agora pode relembrar um
pouco sua conexão com a linhagem real. A saudade do que foi perdido começará a chamar – explicou
o suposto Primeiro Ministro. – Aos poucos, você se lembrará das pessoas e dos seres que ainda vai
conhecer. Entenderá que a magia realmente existe e que sua família agora está aqui.
A última frase mexeu com o coração dela.
Apesar de toda a dor que a Terra lhe trazia, seus pais estavam lá.
– Fique tranquila – consolou-a a Guardiã, segurando com firmeza seus ombros desnudos. – Você
logo vai se acostumar com as novidades.
Dizendo isso, pegou-a por um braço, e a avó a segurou pelo outro. Escoltadas pelos pássaros e pelo
gato quase humano, elas iniciaram a caminhada em direção ao castelo.
Sophie parou um instante e virou-se para trás a fim de encarar a multidão.
Boa parte dos habitantes era jovem, sem ter chegado ainda à idade adulta, e todos olhavam para ela
muito emocionados. Ela sentia que, apesar das dúvidas, não podia sair daquele lugar sem antes falar
com aquelas pessoas que pareciam tê-la esperado por tanto tempo. Notou também que existiam
criaturas diferentes no meio dos tules, das cartolas e dos fraques: seres verdes com asas transparentes que
refletiam a luz do sol, homens com dorsos que lembravam cascas de árvores e seres bege parecidos com
alienígenas. Muito mais criaturas deveriam existir naquele mundo mágico.
Agora, Sophie tinha uma certeza: não estava sonhando.
– Eu voltarei – pronunciou ela com firmeza.
– Nós sabemos – responderam todos.
As flores tornaram a murmurar. Para Sophie, a impressão final era a de que, naquele mundo, todos
tinham importância.
Aquele era o Reino das vozes que não se calam.
7
E
stava sentada em uma mesa peculiar, diferente de tudo que vira antes: de formato triangular, nela
cabiam duas pessoas sentadas de cada lado, com espaço suficiente para aproveitarem o banquete
daquele dia. Havia tortas, bolos e diversos quitutes de coloração muito mais forte do que a habitual.
Experimentou um bombom azul-marinho, cujo sabor equilibrava o doce com uma acidez acima do
comum. Sentiu prazer na refeição, porém, mais do que isso, ficou feliz ao notar como as pessoas
aproveitavam a festança e riam, enquanto os empregados serviam bandejas em formatos octogonais.
Havia ali desde humanos com roupas cor-de-rosa e aventais até abelhas de quase cinquenta quilos
carregando travessas gigantes com as patas.
Sophie tentava ignorar os detalhes mais excêntricos. Depois de ter sentido o abraço da avó, aos
poucos, tudo parecia se normalizar.
– Minha neta – chamou a idosa, limpando os lábios com um guardanapo verde-limão. – Você tem
alguma dúvida sobre tudo que está vivenciando?
A ruiva se surpreendeu com a pergunta. Estava entretida com as guloseimas, sozinha de um dos
lados da mesa larga. Do outro, encontravam-se sua avó e a Guardiã; na base, o Primeiro Ministro
sentava-se ao lado de seu gato. Por incrível que pareça, até o bichano portava-se com classe.
– Tenho uma dúvida sobre o gato! Gostaria de perguntar sobre ele ao Primeiro Ministro!
– Se tem uma dúvida sobre mim, deveria me perguntar diretamente – sugeriu o gato, para a surpresa
dela.
A expressão felina parecia constantemente mal-humorada ou sonolenta. Sua voz não era fina como
se esperaria, mas grossa feito a de um cantor de jazz. Percebeu a alma de artista do felino já na maneira
de se vestir. A cartola e o cetro não estavam ali à toa.
– Desculpe, senhor – disse ela. – Não sabia que podia falar.
– Todo gato pode. Eles apenas optam por ficar calados.
– É mesmo? – Ela estranhou. – E por que decidiu quebrar a regra?
– Porque gosto de ouvir minha voz. Posso até mesmo cantar se eu quiser.
Sophie sorriu. Aquilo era fantástico.
– Qual é o seu cantor humano favorito?
O felino aproximou-se da mesa, pousando nela uma das pequenas patas. Sophie notou que era
escura como a pelugem do rosto dele. O bichano apoiou-se levemente na pata e respondeu:
– Louis Armstrong, filhote! – afirmou com a voz áspera. – I see trees of green, red roses too. I see them
bloom for me and you. And I think to myself...
– What a wonderful world – cantou Sophie com ele.
Ela era perfeitamente adequada para aquele lugar. Tudo parecia belo. Como na música, ela via algo
parecido com “árvores verdes e rosas vermelhas. Via-as florescerem. E pensava consigo mesma: que
mundo maravilhoso”. Perfeição era possível, e vergonha era um sentimento do qual ela nem se lembrava.
– Vossa majestade tem uma alma maior do que o próprio tamanho – comentou o gato.
– Eu poderia dizer o mesmo de você.
Sophie voltou a pensar em viver ali para a eternidade. Esquecer os pais parecia cada vez mais fácil.
A Guardiã dirigiu-se a ela:
– Você vai se acostumar com este local, princesa.
– Tenho certeza de que sim, Sycreth. Mas tenho outra pergunta: que lugar é este?
Todas as faces traziam dúvida no olhar.
– Vou reformular: qual o nome deste mundo?
Todos pareceram sentir alívio. A garota sabia que era complexa demais para eles. Demorariam para
se acostumar.
– Aqui é o Reino – respondeu a avó.
– Que é um reino eu já entendi, mas como vocês o chamam?
– De Reino, alteza – insistiu a Guardiã.
Sophie engasgou. Será que eles eram tão ingênuos a ponto de não dar nome ao próprio país?
– Vocês não batizaram este lugar?
– Precisamos? – perguntou o Ministro, tirando um pergaminho do bolso junto com uma pena e
começando a anotar vários tópicos.
– Vocês têm um nome, certo?
– Sim! Todos nós temos um. O meu para vocês é Sycreth, o Ministro é Phix, seu companheiro
felino é Jhonx e, claro, temos a Rainha Ny.
Sophie tentava processar as informações e pensava em como podia ser mais clara.
– Mas quem são vocês?
– Nós somos os Tirus.
– E por que Tirus?
– Porque do alto é possível saber a verdade. Tudo que vem do céu é mais forte.
A menina se lembrou das letras formadas pelos topos das árvores douradas. Um “T” e um “U”.
Com elas, dava para formar a palavra “Tiru”.
– Como sabem que as copas das árvores formam essa palavra?
– Não sabemos. Essa é a diferença desta dimensão, Sophie. Aqui não precisamos fazer sentido.
Somos livres para sermos felizes do jeito que quisermos.
– Até para cantar – complementou o gato.
Se eu estivesse na Terra, diriam que estou louca, pensou Sophie.
Ela notou que Sycreth dera uma pequena risada, parecendo entendê-la, mas preferiu não dar bola.
– Então, se vocês são os Tirus, este Reino seria como uma Tirulândia?
– Este pode ser o reino que você quiser, princesa – disse o Ministro.
– Futura Rainha – complementou a avó.
No fim da refeição, decidiram ir para a sala dos tronos.
Entrando pelo grande salão, a jovem pôde reparar nos afrescos das paredes e do teto. Imagens de
criaturas divinas estavam desenhadas em traços leves, narrando as diferenças entre as espécies mágicas.
Ao contrário do resto do Reino, aquele recinto tinha uma coloração mais suave, combinando com o
exterior do castelo. No fundo, encontravam-se dois tronos metálicos no formato de uma flor
desabrochada. As pétalas laterais eram mais altas para servirem de apoio aos braços durante as longas
horas passadas ali em meio a decisões sobre o futuro dos habitantes do Reino.
Um extenso tapete felpudo azul-claro se estendia dos tronos até o portal de entrada. Nas laterais,
havia poltronas baixas e outras duas mais altas, logo abaixo dos assentos reais. Imaginou-se sentando
pela primeira vez em um trono real, mas, antes que pudesse seguir seu caminho, foi barrada.
Do lado de fora, a fênix bradava.
– Sophie, nossa maior vontade era que você não precisasse mais sair daqui – comentou o Ministro.
– Então me deixem ficar.
– Ainda existem coisas que você precisa resolver em sua dimensão – a Guardiã tomou a palavra.
– Eu não entendo... – balbuciou, confusa, duvidando se aquilo não era mesmo um sonho lúcido.
Depois se lembrou do abraço da avó e sanou a dúvida. – Eu serei capaz de voltar?
Todos ficaram em silêncio.
– O Reino sempre a receberá – respondeu a Rainha.
A consciência retornou de supetão quando o alarme despertou às cinco horas. Sentia o corpo
descansado e a mente tranquila, mas tinha certeza de que não havia sonhado. Acreditava que realmente
visitara outra dimensão. A sua verdadeira casa. Um Reino que poderia chamar de seu.
Enquanto tomava banho e se vestia, tentou não pensar na experiência. Demorava para processar os
detalhes e na escola teria tempo para relembrar cada passo. Antes disso, havia a maldita prova de
matemática no primeiro período.
Quando o pai a deixou na frente do prédio marrom de três andares, muitos alunos já haviam
entrado. Era normal encontrar grupos esperando o último toque do sinal, mas não em dias de prova.
Tentou apressar o passo, porém os cadarços de seus tênis eram compridos demais, o que tornava difícil
caminhar. De repente, tombou para a frente e uma mão forte segurou seu braço, restaurando seu
equilíbrio.
– Acho que você precisa dar uma olhada nesse cadarço – disse o rapaz novato da rede social. –
Você poderia fazer como eu. É só dar dois laços.
O garoto apontou para o próprio tênis largo com bordas vermelhas. Sophie notou os laços e
também a semelhança constrangedora entre o tênis dela e o dele.
– Obrigada – respondeu, tímida e ainda surpresa.
– Pela dica? – perguntou ele, esbanjando um sorriso franco. Ele emitia um charme natural. Até o
cabelo bagunçado demais o tornava atraente.
– Por me mostrar que uso um tênis muito masculino – sussurrou.
– Nada que você não pudesse descobrir sozinha na internet hoje em dia.
– Você não faz ideia do que tenho encontrado na internet hoje em dia.
Para variar, seu rosto estava tingido de vermelho. Conseguia sentir as bochechas pegando fogo e
pensou em correr.
– Eu achei legal termos o mesmo gosto. Sempre é bom encontrar uma menina de atitude.
Menina de atitude! O que ele quer dizer com isso? Um elogio de verdade ou um prêmio de consolação?
Sophie soltou um sorriso de canto de boca e, agachando, enfiou os laços para dentro do sapato. A
vergonha de seguir a dica do rapaz tomava forma na mesma intensidade em que a vontade de se matar
por justamente naquele dia ter escolhido aquele par para usar.
Tentando se recompor, Sophie deu um pequeno tchau para o garoto e evitou cruzar o olhar.
– Foi um prazer conhecê-la, AC/DC! – gritou ele, ficando para trás.
Quando entrou no colégio, ficou ainda mais envergonhada.
Claro! Um rapaz bonito ia superolhar para uma menina com blusa de banda e tênis masculino. Sou cheia de atitude
mesmo.
Entrou na sala e o último sinal tocou. Era hora de estudar.
Já tinha terminado todas as equações quando ouviu novamente o som ecoar pelos corredores daquela
floresta sombria. Os lamentos ao redor mostravam a insatisfação dos colegas com o término do tempo
de prova. Para seu alívio, não sentira tanta dificuldade. Os pais ficariam felizes no jantar.
Deixou a tensão passar e se concentrou na aula de português, que vinha em seguida. Para seu
pesadelo, logo seria o intervalo, e, a fim de se ocupar, pensou em usar esse tempo para escrever no diário
o sonho/realidade da noite passada.
Quando todos os alunos levantaram, ela pôde recolher o material e tirar o diário da mochila.
Encontraria um lugar tranquilo para relembrar a noite. Talvez não precisasse voltar à biblioteca. A
bibliotecária já estava se acostumando com os serviços de organização dela e começava a jogar algumas
indiretas bem diretas: Viu que os meninos bagunçaram a seção policial hoje? Está um horror.
Andando pelo pátio, viu um dos arcos mais afastados vazio e achou aquele um bom lugar para se
acomodar. Existia ali uma mureta com o encosto perfeito de uma pilastra. Enquanto caminhava para o
lugar foi interceptada por um toque em seu braço. Virou sorrindo, pensando ser novamente o rapaz.
Engano seu.
– Não dá mais pra você me evitar – disse Anna.
De longe, viu o grupo de sempre assistindo.
– O que você quer, Anna?
A antiga amiga mordeu o lábio inferior. Aquela separação parecia de alguma forma afetá-la, mas
Sophie não entendia por quê. Ela precisava agradecer aos santos da popularidade por terem-na
ajudado.
– Rick quer pedir desculpas por aquela noite. A Angélica é uma idiota! Foi tudo um malentendido.
– Sua traição também tem justificativa?
Conseguia sentir a tensão no ar e todos os olhares curiosos acompanhando seus lábios se mexendo.
Percebeu que não conseguiria ficar sentada escrevendo no pátio.
– Anna, posso seguir meu caminho?
Outra vez, o lábio tremeu, e dava para ver a raiva queimando no olhar da morena. Ela era a popular
do colégio. Sem ela, Sophie não era nada e, mesmo assim, continuava a se distanciar.
– Tem um garoto novo aqui no colégio. Ele parece muito com você. Acho que formariam um belo
casal – comentou Anna, tentando localizar o rapaz na multidão de alunos.
Sophie riu da situação. Aquele ciclo repetitivo a estressava profundamente.
– Sério que você continua sendo fútil assim? – irritou-se.
As pessoas em volta colocaram as mãos na boca. A menina excluída tinha mesmo se revelado?
Haveria outra briga pública de melhores amigas?
Sophie não ligava. Depois de compreender que realmente existia um lugar onde poderia ser ela
mesma, sentiu que não precisaria mais passar seus dias reclamando da falta de oportunidade para se
expressar. Resolveu enfrentar seus medos.
– Como é que é? – perguntou Anna, colocando a mão na cintura, visivelmente insultada.
Algumas meninas riram por perto, mas ela ignorou.
– A pessoa que esteve ao seu lado por mais de dez anos perde a vontade de olhar na sua cara e
depois de tudo o que passamos você vem me falar de garotos? Não estou nem aí se existe um menino
novo neste colégio! Deve ser um idiota como seus amigos. Você deveria rever suas prioridades em vez de
destruir as chances de retomar nossa amizade.
Pessoas soltaram interjeições. Uma inspetora se aproximou do grupo para ver o que acontecia.
– Você vai se arrepender de falar assim comigo. Eu salvei todos esses seus anos patéticos – retrucou
Anna, espumando de raiva. – Será que não percebeu? Sem mim você não passa de uma esquisita
solitária!
– Com você eu me sinto assim.
Uma exclamação coletiva ecoou no pátio, e alguns até torceram pela excluída. A língua dela parecia
afiada naquele dia.
– Meninas, isto aqui é uma instituição de ensino! É melhor pararem agora – advertiu a inspetora,
interpondo-se no meio delas.
Anna a fuzilou com o olhar e saiu da roda dizendo:
– Não tem problema, dona Jeniffer. Já fiz minha boa ação do dia.
O resto do grupo dispersou-se com o fim da briga. Sophie não havia desejado aquilo. Mesmo
sentindo certo orgulho por ter se defendido pela primeira vez, ainda preferia ter aproveitado o tempo
para descrever seu Reino no diário. Gastara quase todo o intervalo e resolveu voltar para a classe. Se a
porta estivesse aberta, ficaria por lá.
Saindo do meio dos últimos espectadores, viu o garoto do tênis encarando-a ao fundo. Seu olhar era
sério.
Droga, ele deve ter se sentido insultado, pensou.
No calor dos sentimentos, chamara-o de idiota mesmo sem conhecê-lo. Na verdade, só sabia que sua
roupa era legal e que ele tinha bom gosto para sapatos. Também sabia que seu sorriso era bonito e que
tinha senso de humor.
Sentiu-se mal ao ver que ele havia tomado a discussão como pessoal. Ela explodira com a maioria
masculina daquele colégio, não com ele. Contudo, precisava esquecer aquilo tudo. Ele seria apenas mais
um a odiá-la. Grande coisa! Superaria aquilo. Por tanto tempo havia seguido um grupo e agora preferia
os momentos de solidão. As idas para a escola sempre lhe traziam dor de estômago. Ao passar pelo
garoto, percebeu que os nós de seus dedos doíam pelo exagero no aperto.
Antes só do que mal acompanhada.
8
P
or que ela não conseguia sonhar com o Reino?
Aquilo a incomodou por semanas. Pensava que havia algo de errado. Estaria sendo punida por
ter brigado com Anna? Desde que descobrira fazer parte daquele mundo, nunca mais haviam permitido
sua entrada, apesar de terem dito que ela sempre seria recebida. Então, todas as noites ela chorava com
a cabeça enfiada no travesseiro para que os pais não a ouvissem. Como se a vida não estivesse difícil o
bastante.
– Filha, o jantar está na mesa – chamou a mãe do outro lado da porta. – Você não comeu nada no
almoço. Venha.
Sempre controlando o que eu como, pensou. Eram atitudes como aquela que a cansavam. Sentia
necessidade de voltar para o Reino o quanto antes, pois não queria mais ser julgada. Sua vontade era
fazer as malas e nunca mais voltar. Tinha chegado a um ponto de estresse que até os pais estavam
difíceis de engolir.
Mais uma noite, saía do quarto com o cabelo armado, roupa amarrotada e rosto vermelho de tanto
chorar. Tentava tacar uma base para disfarçar, mas todos percebiam o clima. Então, sentava-se perante
os pais para outra refeição. Eles teimavam em perguntar como havia sido seu dia, e ela sempre se
limitava a um murmúrio. Nunca aprendiam a deixá-la quieta.
– E as provas, Sophie? Tem ido bem? – quis saber George.
A garota concordou com a cabeça.
– Ele lhe fez uma pergunta. Custa muito responder com palavras?
Sophie lançou um olhar irritado para a mãe e respondeu:
– Sou aplicada e inteligente, pai. Ir bem nas provas não é novidade.
Todos suspiraram.
– Atitudes como essa estão virando hábito por aqui também, pelo visto – reclamou ele, olhando
para o prato, tentando entender em que havia errado com a filha.
A ruiva percebeu a mancada. Descontava na família os desgostos com a escola e a frustração com o
Reino. Eles eram os poucos que ainda se interessavam por ela.
– Foi mal, pai. Tenho ido bem sim. Os professores estão me elogiando.
Ela notou que o pai ficou feliz pela resposta e sentiu a mãe respirar com mais calma do outro lado.
Mastigaram por um tempo a refeição, enquanto o noticiário ligado na sala descrevia os
acontecimentos de um assassinato. Sophie nunca entendera a necessidade de comer com o aparelho
ligado. Pelo menos era algo que quebrava o silêncio constrangedor da noite.
– Comprei uma caneta nova para você – disse Laura amenizando o clima mórbido. – O vendedor
me disse que é bem macia e que a letra fica bonita. Deixei ao lado da sua cama. Acho que será melhor
para você escrever.
Do que ela está falando?, indagou-se.
Notando sua expressão, Laura continuou:
– Reparei que tem escrito em um diário. Não sei se começou a escrever um livro. Mas eu queria que
tivesse o melhor instrumento.
O pai pareceu interessado na novidade. Sabia que Sophie tinha alma de poeta, era capaz de criar
letras lindas, mas, para ele, era uma surpresa ela estar escrevendo um livro. A jovem achou aquilo uma
invasão de privacidade. Procurava deixá-lo sempre guardado na gaveta trancada e raramente o deixava
à vista. Como a mãe sabia todos os detalhes?
Preferindo não brigar, soltou um “obrigada” tímido e terminou a refeição. Aproveitaria o fim de
noite para finalizar algumas questões de história e tentaria aplicar a técnica MILD. Precisava sentir-se
querida novamente.
Necessitava do amor dos Tirus.
Abriu os olhos e percebeu que estava em outro quarto. Um sorriso enorme invadiu seu rosto. Tinha
conseguido.
– Não fique tão feliz assim, mocinha.
Na beirada de uma gigantesca cama, a avó encontrava-se sentada, olhando-a serenamente. Logo
acima da cabeça da jovem deitada havia um véu preto estrelado parecendo uma tenda sobre ela. Sophie
achou bonito. Combinava com o clima zen do que seria seu quarto naquele castelo.
– São lindas – comentou Sophie olhando para a constelação.
– É sempre necessária alguma escuridão para se ver estrelas.
A frase dela também era mágica.
– Sua vida na Terra é muito parecida com esse véu – complementou a senhora.
– Por isso disse para eu não ficar alegre por estar de volta? – perguntou Sophie, sentando-se no que
parecia uma nuvem flutuante.
– Quando nos encontramos da última vez, falamos que você ainda tinha algumas coisas para
aprender no mundo dos humanos.
– Eu não quero aprender mais nada lá.
– Mas, se quiser liderar as coisas por aqui, é o que precisa fazer – respondeu com firmeza. – Sua
vida está escura como esse tecido, embora você sempre brilhe no mar de lamentações de seus dias. Se
não existisse luz em você, seria impossível localizá-la.
– Eu não entendo – resmungou Sophie.
A avó aproximou-se da garota para segurar suas delicadas mãos. Mesmo tocando violão a vida
toda, Sophie sempre tivera dedos finos e macios.
– Você ficou desesperada para voltar, porém, quanto mais tenta, mais se afasta.
– Tenho que deixar rolar? – perguntou.
A Rainha riu com a expressão.
– O melhor é sempre deixar rolar.
As duas se encararam por um tempo e alisaram os braços uma da outra. Sophie gostava de como a
avó a olhava e admirava o esmalte vermelho vivo sempre usado pela carismática senhora, pois deixava-a
com um espírito aventureiro. Ela parecia uma grande mulher, alguém de atitude.
Lembrou-se do comentário do menino de seu colégio e foi sua vez de rir. Talvez aquele tivesse sido
mesmo um elogio.
– As criadas separaram uma roupa para você. Arrume-se, pois hoje explorará o Reino junto com a
Guardiã.
Ela sentiu uma pontada no peito e, por reflexo, comprimiu os dedos dos pés.
– Ainda vou conseguir ver a senhora?
A mulher compreendia o receio contido nas palavras. Sophie tinha medo de passar muito tempo
sem encontrar a avó.
– Você sempre será capaz de me ver em seu coração. Moro dentro dele.
A ruiva apenas sorriu. A mente dela, porém, não se acalmou.
Levantou-se para cuidar um pouco de sua aparência em um gigantesco banheiro e vestir os trajes:
uma saia rodada quase na altura do joelho, com cinco camadas de tule cinza, e um espartilho de busto
quadrado em tom de chumbo coberto de pedrinhas luminosas. Quando se olhou no espelho, percebeu
os detalhes da roupa. Seu rosto parecia estar sempre maquiado, mesmo sem produto algum. Havia um
rosado especial nos lábios, a pele parecia impecável e seu olhar estava mais marcado. Os cabelos tinham
ficado mais pesados, fazendo os cachos caírem pelas costas num comprimento um pouco mais longo, e
ela gostou do resultado. Por fim, ficou faltando apenas um item para que pudesse sair do quarto, mas
não sabia bem como colocá-lo.
Salva pelo gongo: ouviu uma batida na porta e autorizou a Guardiã a entrar. Gostava dela. Parecia
uma garota esforçada em manter a harmonia do Reino.
– Pelo visto, está tendo problemas com a cartola – comentou a jovem, aproximando-se da princesa.
Sophie percebeu o quanto a outra estava bonita. Usava um longo vestido rodado azul-claro, sua cor
favorita, com tules enfeitando apenas o babado. O bustiê subia até o pescoço, deixando apenas os
ombros, braços e um rasgo no colo à mostra. O longo cabelo loiro estava jogado para o lado esquerdo,
sobre o qual a cartola com asas pairava. A ruiva pôde notar então uma orelha alongada, em que se
destacavam dois brincos brilhantes.
– Acho fofo como todos aqui usam essas cartolinhas, mas não tenho a mínima noção de como
prender isso.
Sycreth mais uma vez riu com o comentário dela. Sophie começava a achar que tinha se tornado
mais engraçada no Reino, porque a Guardiã ria sempre que a encontrava.
– Eu disse alguma coisa errada? – perguntou a menina.
A outra parou ao seu lado encarando o largo espelho de moldura escura da cor do véu. Elas ficaram
um bom tempo se observando no reflexo, e Sophie jurava ter sido o período mais longo na vida que
tinha passado se olhando. Não era muito de se analisar dessa maneira. Por que pararia para perceber as
diversas coisas erradas com ela?
– Você é linda, princesa.
O elogio a surpreendeu, sobretudo porque foi espontâneo. As duas estavam conversando sobre
chapéus pequenos e como encaixá-los em seu cabelo milagrosamente arrumado. A ruiva nunca tinha
escutado algo assim. Claro que sua mãe e Anna a achavam bonita. No entanto, Sophie nunca aceitava
seus elogios. Havia escolhido o caminho mais difícil: o da autopunição.
– É sério que você me elogiou? – perguntou sem tirar a atenção de seus próprios olhos refletidos.
– No Reino, fazemos questão de mostrar a importância de uma pessoa e de dizer-lhe o quanto é
bela – respondeu a Guardiã, também olhando para sua figura. – E você, princesa, sabe ser uma joia
ainda mais brilhante.
Quem diria que um dia ela seria considerada bonita ou uma joia por uma criatura mágica como
aquela? A garota falava de brilho quando sua própria pele reluzia em pequenos pontos cósmicos.
Se os meninos babacas de sua escola ouvissem aquilo, pensariam besteira ou a chamariam de louca.
As meninas, por sua vez, nunca seriam francas como a Guardiã estava sendo naquele momento. O
mundo andava meio perdido.
– Quando você se olha no espelho, o que vê? – indagou a colecionadora de segredos.
O estômago da ruiva revirou-se com a pergunta. Não se sentia preparada para responder, mas, já
que estavam tendo um momento sincero, resolveu arriscar.
– Uma garota magra demais com uma genética bem esquisita, cabelos muito chamativos para uma
personalidade introvertida e ideias estranhas para o resto do mundo.
A Guardiã riu.
Será que ela está rindo da minha cara?, questionou-se. Partia sempre para a defensiva.
– Eu não perguntei como você acha que as pessoas a veem. Quero que se olhe de verdade e diga o
que você vê.
Mais uma vez, sentiu o estômago revirar. Sycreth ensinava-lhe uma lição que talvez ainda não
estivesse preparada para aprender. Contudo, quando realmente olhou dentro de seus olhos azuis, sentiu
uma rara paz. Percebeu ter no coração o mesmo sentimento de preenchimento contido no incrível
abraço da Rainha.
Começou a prestar atenção nos detalhes e, sem se importar com a presença da loira, foi dizendo as
peculiaridades de sua imagem:
– Eu vejo uma jovem um pouco perdida, talvez revoltada demais com o mundo. Não sei por que
razão. Redescubro uma garota com uma voz linda e uma facilidade incrível de transportar sentimentos
para melodias no papel. Uma pessoa que fala o que pensa e pensa o que sente, talvez madura demais
para a idade. Vejo uma pele difícil de ser esquecida e um sorriso que pode ser mágico quando quer.
Gosto dos meus lábios, porque lembram os da minha mãe. E das minhas sobrancelhas, parecidas com as
do meu pai. Mesmo achando que meu cabelo ruivo tem mais personalidade do que eu, ainda é legal o
modo como ele mostra o quanto minha alma é única. Acho que sinto isso. Que sou diferente, mas isso é
bom. Que quanto eu peso ou como me visto não importa se eu estiver bem comigo mesma.
– E você se sente bem consigo mesma, Sophie?
A garota apertou o olhar e teve certeza da resposta. Dessa vez, a Guardiã não riu, mas seu leve
sorriso mostrou orgulho.
– Agora você sabe por que está aqui?
– Porque não tenho mais medo de demonstrar quem eu realmente sou.
Mais um sorriso.
– As cartolas são fofas, mas também têm um significado aqui no Reino. Usamos porque
acreditamos que elas protegem nossa criatividade. Podemos sonhar e falar o que achamos da vida neste
mundo. Isso não quer dizer que não precisamos guardar com carinho nossos pensamentos.
Dizendo isso, Sycreth posicionou o acessório perto dos cachos avermelhados. Os fios se fixaram
magicamente ao chapéu.
– Agora, futura Rainha, chegou a hora de conhecer o seu destino.
9
A
ndava pelos corredores como se estivesse sozinha em um labirinto de flores, não importando com
qual parede fosse trombar. Não tinha um destino bem programado. Desde que acordara
novamente, sem poder dar continuidade à sua vida no Reino, agia como se estivesse no automático. Na
verdade, cumpria as tarefas do dia a dia normalmente, mas com uma sensação de liberdade. Um prazer
diferente em ver a vida sem perceber se as coisas que fazia a irritavam ou não.
Resolveu não se dirigir à biblioteca, calabouço onde se escondia dos agressores, pois queria algo
diferente. Precisava continuar naquele caminho de autodescoberta que começara a percorrer. Por isso,
andou sem rumo pelos andares da escola com o fone de ouvido no volume máximo. Ela se deixava
embalar pela banda Oasis enquanto tocava as paredes daquele local de sabedoria e estupidez. Era
difícil para ela se relacionar com os outros alunos, porém não negava o quanto amava aprender. Tinha
gosto pelo que os professores ensinavam e, um dia, gostaria de ter tanto conhecimento. Não sabia por
que havia escolhido aquela música de fundo, mas, com o fone e o celular, conectava-se a outro mundo.
Mesmo não sendo o encantado.
Enquanto passeava desgovernada, acompanhando baixinho a melodia, fechou os olhos e esqueceu-se
da possível presença de colegas.
– Because maybe. You’re gonna be the one that saves me.
Porque talvez... você vá ser aquele que vai me salvar, dizia a música. Mas, antes que o refrão terminasse,
sentiu um cutucão forte e retirou o fone.
– And after all. You’re my wonderwall…
Choque. Aquilo não podia ter acontecido. Alguém a escutara. Pior, completara sua música: Afinal,
você é minha proteção. Um verso com um significado e tanto.
A voz dela era seu templo imaculado. A beleza mais sagrada de seu ser, algo que pertencia somente
a Sophie. Saber que alguém daquela escola a havia escutado cantar quebrava todos os pedaços de seu
coração já machucado. Ver que tinha sido ele quem havia completado a música doía ainda mais. Não o
conhecia. Não sabia o que ele faria agora. Para quem contaria? Será que ele a zoaria por isso? Ouvir
críticas sobre seu canto seria quase como uma morte em vida, pois era a atividade que mais lhe dava
prazer. Ninguém podia tirar aquele ato de felicidade dela.
Por um momento, quase não raciocinou. A primeira coisa que fez foi descer as escadas correndo e
procurar o banheiro mais próximo. Tirando o casaco da cintura, abafou a boca com o tecido, enquanto
grossas lágrimas invadiram seu rosto, tingindo-o de um vermelho diferente da vergonha. Aquela
pigmentação devia-se à raiva e à tristeza por ter se esquecido do mundo real. Porque sim, toda vez que
acordava, não estava mais no Reino e precisava separar aquelas duas dimensões.
Toda a energia positiva ia embora enquanto tentava não chamar atenção indesejada. Sentada sobre
a privada fechada, apoiou as costas em uma parede e as botas de franjas pretas na outra.
Mas não podia negar que o tom dele era bonito.
Que era bacana ver um rapaz sabendo aquela letra.
E que, mesmo nos poucos segundos da troca de olhares, ela pôde notar a camiseta dos Beatles que
ele usava. Se não estivesse enganada, lera na blusa “While My Guitar Gently Weeps”, uma de suas
músicas favoritas da banda.
Ela era como aquela guitarra que suavemente chorava.
Saiu da cabine quando percebeu o banheiro vazio e encarou o próprio rosto. Apelou para a maquiagem,
enchendo a pele de base para disfarçar um pouco a vermelhidão. Enquanto se refazia, lembrou-se de
algumas horas antes e de como se sentira bonita. Orgulhosa de encontrar suas qualidades. Será que toda
jovem de sua idade sofria com essa constante mudança de humor?
Já devia ter perdido o horário da aula, então, preferiu ligar para a mãe e pedir que ela fosse buscá-la
na escola. Seria melhor tirar o resto da manhã para repensar sua vida.
Virando o corredor, encontrou uma garota que reconhecia ser um ano mais velha, pois estudava na
classe à frente da dela. Ela era um pouco baixinha, acima do peso, tinha um lindo rosto e belíssimos
olhos verdes escondidos atrás de uma armação pesada. Uma vez, escutara que o nome dela era Mônica
e vira uma garota imitar a dança que a Monica do seriado Friends havia feito quando estava acima do
peso. Lembrou como tinha achado aquilo uma idiotice. Mesmo não se encaixando nos padrões de
beleza da sociedade, a garota continuava sendo linda e era uma das poucas que pareciam ter bom gosto
naquele local, por sempre estar lendo livros como As brumas de Avalon.
– Você é Sophie, certo? – perguntou a garota.
Sophie aquiesceu, temendo o rumo da conversa.
– O Léo da minha classe me pediu para entregar esse papel se te encontrasse no banheiro.
Ela pegou o pequeno pedaço de papel dobrado sem saber se devia ler na frente da garota ou deixar
para mais tarde. Mônica pareceu notar, pois começou a virar para voltar para a sala. Antes de partir, a
menina resolveu complementar:
– Sabe, existem outras pessoas nesta escola. Nem todo mundo é o tipo de perdedor que você acha.
Talvez, se desse mais oportunidades às pessoas, conseguisse enxergar isso. Eu sei que você é legal.
As pessoas a surpreendiam cada vez mais.
– E como sabe disso?
Não podia deixar aquela pergunta passar. Convivia há um ano e meio com a menina, elas
frequentavam as aulas no mesmo corredor e nunca tinham trocado uma palavra.
– Porque um cara gente boa como o Léo não daria bola para uma fresca. A escola está achando que
ele é o novo mauricinho popular, mas já conversei com o garoto, e ele é mais pé no chão do que muita
gente que eu conheço.
– Mas ele não me conhece – disse Sophie quase gaguejando.
– Ele deve ter notado que você é uma garota descolada. Até eu reparei.
Dizendo aquilo, ela deu um meio sorriso e se afastou da ruiva, deixando-a confusa. Teria mesmo
acabado de fazer uma amizade?
Abriu o bilhete e leu:
Talvez, quem sabe, um dia aprendo a não mexer com quem não devo.
Tenta ficar em paz, AC/DC.
Quando entrou no sedan, Sophie reparou nos lábios finos de preocupação da mãe. Ela provavelmente
não entendia por que a filha, até então sorridente naquela manhã, tinha ligado dizendo estar doente.
Laura estava certa de que era apenas uma desculpa para a garota sair da escola mais cedo, mas, quando
as duas se encararam, viu a tristeza no olhar da jovem.
– Quer me dizer o que está acontecendo? – perguntou a mãe em um tom um pouco autoritário.
Sophie bufou ao seu lado. Precisava ficar sozinha com seus pensamentos. Falar sobre seus
sentimentos somente a deixaria mais confusa.
– Só me leva pra casa – pediu a garota. – Por favor.
Ela colocou o cinto de segurança e apoiou a cabeça no vidro da janela do carro. A sensação gélida
da superfície lhe dava certo aconchego. Fechou os olhos e relembrou o que acontecera poucos minutos
antes. Sua felicidade, a canção, a voz dele fazendo cosquinhas no seu ouvido e o próprio desespero.
Também repetiu diversas vezes na mente o pequeno bilhete ainda amassado na mão. Não conhecia o
garoto, porém sentia que ele queria conhecê-la. Usar Mônica para entregar um bilhete parecia exagerado
demais. O que será que ele realmente queria com ela?
– Você sabe que eu sempre estarei aqui para conversar, não é? – assegurou Laura.
A filha soltou um sorriso tímido e aquiesceu.
No fundo, ela sabia. Implicava com a mãe, mas sabia de suas boas intenções.
10
A
ndava pelos caminhos entre as casas coloridas, ainda com o vestido de antes e tendo a Guardiã ao
lado. Parecia que para Sycreth nada havia mudado. Era como se elas tivessem caminhado até ali
sem aquela longa pausa entre uma ação e outra. Para a garota, havia sido uma manhã inteira. Como
conseguia voltar àquele Reino e, ainda assim, não questionar o que acontecia com sua vida?
– Será que sempre que a trouxermos aqui você ficará analisando seus próprios pensamentos? –
perguntou Sycreth, entrelaçando o braço no de Sophie.
A jovem sentiu um pouco de vergonha. Pelo visto, a Guardiã realmente ouvia suas reflexões.
– Pensei que usássemos cartolas para proteger nossos pensamentos.
– Eu já expliquei que sei todos os segredos deste Reino. Nesse caso, acho que a proteção não conta.
As duas sorriram. Parecia sempre fácil conversar com ela, apesar de quase não ficarem juntas.
Sophie gostaria de ter encontrado uma amiga assim em seu mundo real.
– Devo ter dormido ao chegar em casa – comentou espontaneamente a ruiva, tentando outra vez
buscar a lógica para seu retorno ao lugar mágico.
– Você precisa esquecer a Terra toda vez que visitar o Reino, assim como não deveria pensar em nós
enquanto estiver por lá.
– Por que não? – indagou Sophie, curiosa.
A Guardiã deu um suspiro pesado, apertando ainda mais seu braço, como se não a quisesse soltar.
– Tenho medo de que se confunda e não saiba mais onde está vivendo. Preciso cuidar de seu bemestar. Acha que será fácil ter duas vidas paralelas? – questionou.
Elas continuavam a andar pelas ruas, enquanto habitantes espalhafatosos acenavam para a princesa
ao passarem. Todos pareciam animados. Às vezes, Sophie retribuía o gesto, mas ainda sentia-se estranha
por receber toda aquela atenção. Não estava acostumada a esse tipo de carinho.
– Se sou querida e importante aqui...
– Você vai querer descobrir por que ainda precisa aprender algo na Terra, certo?
A ruiva riu e completou:
– Você sabe de tudo mesmo, não é?
– Sei que você é persistente e não deixará o destino seguir sem controle.
– E vai ser o meu modo peculiar que vai me ajudar a entender por que sou a princesa dessa
dimensão?
Elas pararam de caminhar quando atingiram a margem de uma das florestas douradas. Pelo seu
formato parecia a letra “T”: dez árvores com copas largas encontravam-se enfileiradas e essa quantidade
alastrava-se por quilômetros até a fila abrir para mais dez árvores de cada lado.
– Persistência não é sempre uma qualidade. Entretanto, Mama Lala vai gostar dessa sua vontade de
saber mais.
– Mama Lala? – Sophie estranhou, mas acompanhou a Guardiã pela floresta, ouvindo os cochichos
das flores ao redor.
– Todo reino fantástico precisa ter uma bruxa morando em uma floresta mágica.
– Mas bruxas não são más?
– Não menos que os humanos, alteza.
Continuaram o caminho encantado observando o balançar das folhas e a dança exótica das tulipas.
Sophie estava prestes a conhecer uma bruxa e, com ela, aprenderia mais sobre aquele lugar. Até se
esquecera do encontro com Léo e do fato de ele tê-la visto cantar. Se quisesse soltar a voz naquele
Reino, não sentiria os mesmos medos. Preferia ter aquela sensação de autoconfiança.
– Ela sabe que estamos indo visitá-la? – perguntou Sophie para a jovem, vendo seu rosto ficar sério
conforme adentravam as partes mais fechadas da vegetação.
– Mama Lala sabe tudo. Sabe o que aconteceu ontem, as palavras que digo agora, e consegue ver até
a reação que virá depois. Para ela, não existe novidade.
– Seria um tipo de vidente?
A expressão da Guardiã continuava alterada. A suavidade de sempre ficara para trás.
– Ela é um tipo de enviada do Divino. Poucos têm tanto poder.
Por um momento, Sophie ficou preocupada com o encontro. Saberia o que falar para uma mulher
tão sábia? Nunca havia encontrado um enviado do Divino. Não sabia nem de que Divino ela poderia
estar falando. Tudo era uma incógnita naquele Reino, mas ainda assim sentia muito mais paz ali.
Talvez, quando recebesse mais respostas, pudesse relaxar.
Ao chegarem ao centro do topo da letra formada pelas árvores, encontraram uma casinha circular
com diversas runas desenhadas ao redor. Flores quase da cor do petróleo decoravam o entorno da
residência, e um barulho de tambores indígenas escapava pelas frestas. Também havia fumaça na
chaminé. Uma fumaça diferente, como tudo naquele lugar, mas mesmo a coloração avermelhada não a
deixava em pânico. Se, por um lado, estava preocupada, por outro, sentia-se grata por estar indo ao
encontro de alguém especial na companhia de outro ser mágico.
– Preparada? – perguntou a Guardiã.
Sophie parou e olhou para a porta ainda fechada. Suspirou e respondeu:
– Parece que nasci para isso.
Sua resposta fez a porta magicamente se abrir e os tambores cessarem. Até as flores pareceram se
calar. O clima da floresta ficou muito mais denso. Sycreth indicou que ela seguisse em frente e,
conforme o espaço permitia, a garota foi adentrando a casa.
Para sua surpresa, o interior era muito mais simples do que Sophie imaginava. De fora, pensara
haver amuletos e desenhos por todos os lados. Não era capaz de imaginar como uma pessoa conseguiria
viver em um lugar pequeno como aquele. Ali dentro era confortável e básico.
Havia uma cama de solteiro rústica no lado esquerdo com uma colcha estrelada. No outro lado, viu
um espaço fechado que provavelmente era o banheiro, além de uma grande pia cheia de fruteiras
carregadas. Ao centro, uma lareira, onde borbulhava um caldeirão e, à sua frente, uma mesa de madeira
com lascas visíveis e três cadeiras ao redor. A mulher que sentava no lugar central realmente parecia
estar à espera das duas.
– Bem-vinda, princesa dos Tirus!
Sophie deve ter dado a impressão de ser tímida ou mal-educada, pois não respondeu até parar de
analisar a senhora à sua frente. Mesmo sentada, era possível perceber sua estatura baixa e os ombros
curvados. Tinha a pele negra e algumas manchas claras nos braços. O jeito dela intrigava a garota. Os
cabelos crespos encontravam-se presos em um coque firme e o rosto arredondado exibia o que mais lhe
chamava a atenção: o sorriso mais meigo que Sophie já vira. Havia tanto poder naquele sorriso. Os
dentes não estavam à mostra e os olhos quase se escondiam atrás das bochechas. Ela passava uma
energia tão sábia que a menina não se arrependia um minuto de ter entrado naquele local. Sentou-se em
uma das cadeiras e foi acompanhada por Sycreth. A Guardiã permanecia muda e com o rosto
endurecido. Sophie notou a túnica arroxeada da anciã com pontos claros combinando com o colar de
conchas. Tentou responder que era uma honra estar na presença da vidente do Reino, mas sua voz
parecia ter sumido.
– As pessoas tendem a ficar estáticas perante mim. É normal – continuou a senhora ao perceber que
ninguém falava. – Hoje vocês vieram saber qual é o destino da princesa em nosso local sagrado. Querem
entender quando ela finalmente deixará a humanidade para se sentar eternamente no trono das pétalas.
Ambas aquiesceram.
– E realmente acharam que eu daria as respostas?
A pergunta levantada pela vidente foi jogada como um balde de água fria. Até a Guardiã não
pareceu preparada para aquilo. Elas trocaram olhares e sentiram-se quase bobas por terem cogitado que
a bruxa iria ajudá-las. Se antes Sophie não sabia o que dizer, naquele momento menos ainda.
– Com todo o perdão, Senhora da Sabedoria – iniciou Sycreth dirigindo-lhe a palavra. – A vidente
tem o poder de guiar os cidadãos do Reino em momentos de dificuldade. É a única com poder
suficiente para quebrar a barreira humana dos pensamentos de Sophie.
– E você é a responsável por guardar todos os segredos de nossa terra – retrucou Mama Lala. –
Agora me diga, protetora, segredos não precisam ser conquistados?
Silêncio.
Elas continuavam mudas e apenas o estalar da madeira embaixo do caldeirão embalava o ambiente.
– Como a princesa pode conquistar o direito de saber seu futuro em nosso Reino? – questionou a
Guardiã.
A mulher apoiou os braços manchados na mesa, fazendo com que percebessem um baralho de tarô
ao centro.
– A alteza não tem língua? – perguntou a anciã.
Sophie entendeu que permanecer quieta naquela situação não a ajudaria em nada. Precisava criar
coragem e merecer saber mais sobre eles.
– Como eu conquisto esse direito, minha senhora?
Novamente, o sorriso meigo capaz de iluminar o mundo. O clima até ficava mais suave com aquela
expressão.
– Corte o baralho – pediu a vidente.
Insegura, Sophie olhou para a amiga ao lado. Nunca tinha jogado tarô. Mas Sycreth apenas a
incentivou com um gesto e ela então dividiu o monte em dois.
Vendo as pilhas de cartas antigas e coloridas, a senhora continuou a dividi-las em mais dois grupos.
– Pegue uma carta de um dos caminhos.
Sophie entendeu que cada uma das seis pilhas indicavam caminhos que talvez ela precisasse
percorrer. Resolveu seguir sua intuição e pegou a primeira carta do monte à esquerda.
– Os Amantes – pronunciou a mulher. – Pode retirar mais duas de pilhas diferentes.
Amantes. Não tinha a mínima ideia do que aquilo significava.
Olhou para as outras pilhas e resolveu deixar-se mais uma vez ser guiada por seus instintos. Fechou
os olhos e concentrou-se: pegou uma da pilha da direita e outra do centro.
– O Louco e a Morte – anunciou a bruxa.
Aquilo não parecia bom na visão da garota. Os Amantes, o Louco e a Morte. Sua combinação de
cartas a deixava com medo, e ela começava a se arrepender de ter entrado na casa da vidente.
– Não fique com medo, alteza – consolou a Guardiã, provavelmente notando sua expressão e sua
mente assustadas.
A anciã voltou a sorrir olhando para as cartas selecionadas. Sabia a jornada que a jovem iniciaria e
sentia-se abençoada por guiá-la.
– Pode ser que tudo pareça estranho neste momento, mas essas cartas serão suas melhores amigas –
explicou a vidente. – Elas lhe indicaram três caminhos necessários para se tornar a pessoa completa que
precisa ser.
– Mas como posso seguir um caminho que não conheço? – perguntou Sophie chorosa.
Dessa vez, a bruxa escancarou os dentes ao sorrir.
– Acabei de lhe desenhar as direções. Estude as cartas e saberá como se encontrar. Após completar
essas três etapas, permanecerá como nossa princesa e, um dia, ocupará o trono quando enfim sua avó
completar o ciclo.
O som de uma fênix invadiu o ar, e Sophie reconheceu o sinal.
– Mas ainda tenho tantas dúvidas – reclamou.
– Minha menina – disse Mama Lala pegando-a de surpresa pelo carinho das palavras. – Você um
dia solucionará todas elas.
E ela despertou.
Por incrível que pareça, estava em sua cama, coberta até o pescoço e com uma toalha gelada na
testa. Sentiu-se estranha e um pouco dolorida. Talvez tivesse dormido de mau jeito. Não se lembrava de
ter chegado em casa.
Levantou-se e resolveu ir até o banheiro para checar seu estado e tentar descobrir as horas. Sua vida
andava esquisita, por isso muitas vezes se perdia no tempo. Naquele momento, entendeu o comentário
de Sycreth em relação à confusão de viver em dois mundos. Sentia-se meio John Carter naquela
trajetória.
Os Amantes, o Louco e a Morte, relembrou enquanto escovava os dentes observando o rosto um pouco
mais pálido do que de costume. Encarou os olhos azuis cinzentos e viu como precisava de uma noite
normal de sono. Já não se sentia descansada como nas primeiras vezes.
Depois de jogar água gelada na face para acordar, saiu do recinto e foi para a sala encontrar a mãe.
No trajeto, olhou pela janela e viu o céu escuro, entendendo ter anoitecido. Estranhou aquilo. Tinha
mesmo dormido o dia todo? Havia apagado em casa ou antes? O bom era que aquela confusão atestava
que ela não mentira ao falar que estava doente. Agora precisava entender os acontecimentos.
Na sala, encontrou Laura com o rosto cheio de rugas de preocupação, zapeando entre os diversos
canais da televisão sem prestar atenção em nada. O pai, sentado à mesa de jantar, estava rodeado de
processos e carregava um semblante igual.
Quando ela entrou, os dois pularam de seus lugares e levantaram-se na hora.
– Como está se sentindo? – quis saber o pai com uma expressão que a filha não sabia dizer se era de
preocupação ou irritação.
– Quer algum remédio? – complementou a mãe. – Eu disse que essa menina está precisando é ser
levada para um hospital, George.
O homem lançou-lhe um olhar de repreensão.
Sophie quase foi sufocada pelo misto de emoções que eles demonstravam enquanto tentava
raciocinar. Tinha mesmo apagado após a escola?
– Gente, eu estou viva! – exclamou, tentando sair do clima fúnebre. – Alguém pode me dizer o que
aconteceu comigo?
Os pais ficaram em silêncio por alguns segundos e lhe indicaram o sofá. A mãe aproveitou para
agarrar uma maçã da fruteira na mesa e entregá-la para a filha.
– Coma para recuperar um pouco as energias – pediu enquanto os três se sentavam. – O jantar está
pronto e quero ver você se alimentando.
A ruiva se irritou. O jantar estava longe de seus pensamentos, nem sentia fome. Dúvidas pairavam
em sua mente. Acreditava que eles precisavam simplesmente desabafar.
– Olha, dona Laura! – disse, dando uma mordida grande na fruta. – Estou comendo, beleza? Agora
podem me explicar por que acordei no meu quarto com um pano na cabeça?
A família suspirou e até Dior apareceu por lá batendo as patinhas no carpete de madeira como se
quisesse participar da reunião.
– Sua mãe foi buscá-la na escola, pois você não estava passando bem...
– Você entrou no carro, nós conversamos e não notei nada de errado com sua saúde. Pensei que só
tivesse passado uma manhã ruim.
– Entendi. Até me lembro disso. O que aconteceu depois?
Os dois se entreolharam.
– Você dormiu e pareceu sorrir durante o sono. Fiquei até surpresa com isso – contou Laura
enquanto olhava para o companheiro. – Mas, quando chegamos em casa, tentei acordá-la e foi
impossível. Você dormia feito uma pedra.
Estranho, pensou. Não sabia se, ao entrar no Reino, ela se isolava da Terra.
– Tentou buzinar? – perguntou Sophie.
Laura mostrou-se indignada com a pergunta.
– Acha que eu sairia buzinando para acordar minha filha cansada? Que tipo de mãe você acha que
eu sou?
A mesma que explode no telefone vendo que existem pessoas tentando dormir no recinto, lembrou com vontade de
rir.
– Ela preferiu me chamar – acrescentou o pai, tentando evitar uma briga quando claramente a
família estava nervosa. – Por sorte, esqueci alguns processos aqui e estava trabalhando em casa quando
sua mãe atendeu o telefonema da escola. Ela me chamou e fui buscar você no carro.
– Há alguma coisa que queira compartilhar conosco? – insistiu a mãe, ainda tentando saber sobre a
vida da filha.
Sophie sentia-se culpada. Entendia a preocupação dos pais, contudo não estava preparada para
falar que era a princesa de outra dimensão. Como explicaria que estava lá quando tentaram acordá-la?
Provavelmente a achariam uma maluca e tentariam encontrar um problema psicológico.
Percebendo o silêncio, o pai tentou ser mais rígido para ajudar a esposa. Ela não poderia ficar com
a fama de durona sempre.
– Filha, entendemos que está passando por uma fase difícil. Não querer compartilhar com os pais
os sentimentos é normal. Mas chegamos à conclusão de que vai ser melhor você conversar com um
profissional sobre o que está acontecendo.
Como eu imaginava.
– Vocês só podem estar de brincadeira, né?
– Gostaríamos de estar – completou Laura, não conseguindo mais ficar calada. – A senhorita quase
não come, vive dormindo, parece sempre cansada, fechada, tem mudanças de humor a cada segundo e
brigou com a sua melhor amiga.
Aquilo enfureceu a jovem.
– Claro! Só podia ser isso. Você está mais preocupada com sua amizade com a mãe dela do que
com o meu bem-estar! – explodiu Sophie.
George, normalmente defensor da filha, não gostou daquela reação.
– Não ouviu a lista de pontos importantes que citamos, meu amor? Sua briga com a Anna é só uma
das complicações. Óbvio que nós estamos preocupados com todo o resto. Estamos preocupados com
você.
Precisava correr para o banheiro, mas tinha medo de piorar a situação. A ânsia era tanta que o
embrulho no estômago a deixava tonta. Será que eles tinham razão?
– Credo! Devo ser uma péssima filha.
Não adiantava. Ela ouvia tudo deles ao contrário e vice-versa. Em um momento de briga ou tensão,
o melhor era sempre respirar e afastar-se. A vontade de aproveitar o momento para falar coisas
desnecessárias sempre piorava tudo.
– Você é uma bênção! – exclamou a mãe, segurando com força as mãos fechadas da filha. – É uma
menina linda, estudiosa, de opinião, independente, carinhosa e com uma belíssima voz. Somos sortudos
de tê-la em nossas vidas, por isso precisamos resgatá-la dessa solidão.
O discurso de Laura tocara o coração da filha, acostumada a considerá-los sempre os vilões da
história. Entretanto, toda aquela conversa a deixava confusa.
– Primeiro foi o papo dos pais dos alunos e agora isso. Eu só dormi demais um dia, cruzes! Não foi
como se me pegassem usando drogas.
BUM!
Estressado, George bateu o punho fechado na mesa de canto feita de madeira, fazendo ressoar um
barulho ensurdecedor.
– Nunca mais repita isso – ordenou, com a expressão fechada como nunca antes. – Repito: nunca
mais! Sua mãe procurará um psicólogo, e você vai às consultas sim. Não vou perder minha menina para
essa garota mimada que tomou conta dela.
Sophie tremia, tentando segurar as lágrimas. A vontade era de gritar a ponto de estourar qualquer
objeto delicado da casa.
Mimada?
Aquela era uma palavra que ela abominava.
Achava as outras pessoas mimadas. Ser definida assim pelo pai foi a pior sensação de todas. Era
ruim ao ponto de fazê-la se retirar da sala pelo insulto. Tentaria não cruzar o caminho deles pelos
próximos dias. Seria difícil, afinal vivia e dependia dos dois para tudo. Mas George, sempre querido,
quebrara seu espírito.
Anna, o pai, a mãe e provavelmente o garoto novo. Sophie afastava todo mundo de sua vida.
No fundo, mesmo triste e com vontade de ligar para a ex-amiga destrambelhada, percebeu que essa
seria a pior coisa a fazer. Precisaria cortar os laços se fosse um dia realmente abandonar toda aquela
realidade. Melhor começar o processo o quanto antes.
Odiar tudo ao redor devia ser o caminho mais seguro.
Esperava estar certa.
11
J
ogara-se nas almofadas velhas do canto da biblioteca. Tinha um período livre e queria colocar a
leitura em dia. Mesmo tentando, sentia dificuldade de manter o diário do sono e falhara
miseravelmente ao tentar a técnica MILD. Queria voltar para o Reino. Não sabia como.
– Pelo visto, meu bilhete não fez efeito – comentou o garoto novo, interrompendo sua leitura e
jogando a mochila no chão.
Em vez de responder, Sophie travou com a situação e a cara de pau do garoto. Ele simplesmente se
deitou ao lado dela e encostou a cabeça em uma almofada para ver o que ela estava lendo. Achou-o
muito abusado, mas, mesmo assim, quis descobrir o perfume que ele estava usando. Era uma fragrância
bem masculina, sem tons cítricos ou coisas do gênero. O típico cheiro de “cheguei e sou o dono do
lugar”.
A fragrância a invadia, mas, naquele momento, as almofadas pertenciam a ela. Ele era o intruso e ela
não cederia.
– Frequentador de bibliotecas? – perguntou, notando em sua voz o tom sonso de que a antiga amiga
costumava acusá-la.
Ela teve vontade de rir, mas depois se recriminou.
– Explorador de conversas interessantes...
Dessa vez, ela riu sem medo.
– Sim, porque essa está uma beleza.
Ele também riu com o cinismo dela.
– Sabia que fica linda sorrindo desse jeito? Devia fazer isso mais vezes.
A ruiva voltou à expressão normal, mesmo começando a corar.
– Eu estou sempre sorrindo. Meu sorriso é diferente do das outras pessoas.
– E gosta disso? Sorrir mostrando os dentes é tão mais bonito.
– Gosto, ué. Porque ele é único. E eu gosto de coisas únicas.
O rapaz ficou pensativo, refletindo sobre a resposta dela. Encaixara os braços atrás da cabeça e
parecia ainda mais másculo daquele jeito. Mesmo estando vestido como um moleque com sua calça
jeans desbotada.
– Gosto de coisas únicas também, mas isso não significa que seu sorriso escancarado não seja
encantador.
Outra vez, Sophie sentiu as bochechas arderem.
Tentou imaginar por que ele gastava seu tempo com ela em uma biblioteca antiga. Entendia o
recado de Mônica, porém não tinha interesse em ser amiga ou algo mais de ninguém.
– Acho seriamente que está perdendo a oportunidade de explorar diversas outras conversas. O pátio
deve estar cheio de pessoas a fim de conversar. Ainda mais com você.
Ele fechou os olhos enquanto a garota falava. Fazendo isso, parecia desprender-se do mundo.
Quando Sophie terminou, antes de ouvir a possível resposta, imaginou se o menino seria capaz de
conhecer o Reino ao dormir.
– Então a alteza não está a fim de conversar comigo? – o termo a fez tensionar os dedos. – Ótimo!
Vou aproveitar para tirar uma soneca aqui. Me acorda quando for a hora de ir para a próxima aula.
Foi bom saber que tínhamos o mesmo tempo livre.
Ótimo, pensou com sarcasmo. Percebeu então o interesse do jovem em manter contato com ela por
lá. Aquele devia ser o único espaço confortável na escola para descansar, por isso ele fora parar em seu
lugar de relaxamento. Não queria conversar com ela ou saber se responderia ao bilhete estúpido.
Por cerca de vinte minutos, ficou lendo enquanto ouvia os barulhos quase imperceptíveis do sono
dele. Na verdade, tentou ler, porque se pegou diversas vezes analisando o rosto do garoto com uma
atenção curiosa. As páginas amareladas perdiam a graça comparadas ao nariz fino e ao rosto com barba
por fazer.
Notou que, durante aquele tempo, ninguém mais entrara e a bibliotecária não ligou para o fato de
um menino e uma menina estarem deitados juntos. Talvez não se importasse por notar que era ela ali. A
menina estava tão em baixa no colégio que só um novato mesmo para não entender aquilo. Ficar ao
lado dela era quase um suicídio social.
Quando o relógio do celular despertou ao seu lado, acabou vibrando nas costelas do rapaz. Sophie
ficou extremamente encabulada. Podia tê-lo acordado de maneira mais branda. Antes que pudesse
desligá-lo, Léo foi mais rápido e agarrou o aparelho, parecendo um ninja daqueles capazes de capturar
uma mosca pelas asas.
– Bom dia, AC/DC! Obrigado por me fazer companhia.
Ela ainda estava chocada pela rapidez e pelo abuso.
– Nossa conversa foi realmente muito boa – completou ele.
Léo era engraçado. Claro que a suposta conversa tinha sido terrível, assim como as últimas que ela
tivera com qualquer pessoa, mas sentia-se um pouco mais confortável com a forma com que o garoto
levava tudo na brincadeira.
Seus pensamentos foram novamente interrompidos por ele.
– Aqui está meu telefone – comunicou enquanto já digitava na tela do aparelho, sem permissão. –
Não estou dando em cima de você nem nada disso, mas vou participar de um teste mais tarde para ser
guitarrista de uma banda. Gostaria que você me fizesse companhia. Acho que seria a melhor pessoa
para me acompanhar.
Ele está de sacanagem, não é?, indagou-se.
– Pensei que você só cantasse – comentou ela ao ajudá-lo a levantar para correrem até a classe.
Ele sorriu, mostrando todos os dentes alinhados.
– Notou meu timbre, safadinha?
O novato era engraçadinho demais para o gosto dela. Seu tom a fez novamente corar. Qual é o meu
problema?
– Prefiro o vocal, mas sei tocar guitarra também – completou ele, percebendo que Sophie corara. –
Mas não se pode ter tudo na vida e sinto falta de estar em uma banda.
Sophie percebeu pela última frase que talvez ele sentisse vontade de compartilhar algo do passado.
No entanto, quando ela conferiu as horas no aparelho que ele acabara de devolver, o clima foi cortado.
– Precisamos ir, AC/DC! Você curte perder uma aula, mas aluno novo não tem essas regalias.
Atravessaram a biblioteca, e a ruiva acenou para a mulher solitária atrás do balcão corroído.
Andando pelos corredores, por alguns segundos o típico tom cinzento da floresta sombria sob os olhos
de Sophie desapareceu. Era gostoso caminhar ao lado dele. Percebeu alguns olhares e tentou focar no
mocassim com estampa malhada que ela estava usando. Adorava aquele par, pois era diferente como
ela. Havia sido um presente da sua avó e, ao pensar nisso, recordou-se da Rainha.
Sua terceira avó.
Quando chegaram ao corredor que levava até as classes, a ruiva o interrompeu antes de entrar.
– É Sophie – sussurrou, tentando criar mais coragem. – Meu nome é Sophie.
Ele entendeu o gesto da garota. Finalmente sentia-se segura perto dele.
– Mandei uma mensagem de texto do seu telefone para o meu. Te mando o endereço quando chegar
em casa. Se não nos virmos na saída, até mais tarde, AC/DC!
Poucos minutos depois de chegar ao seu quarto, o celular vibrou e uma mensagem se abriu na tela. Era
o endereço. No final, havia uma carinha feliz. O emoticon a fez sorrir também.
Ao descer do carro do pai, percebeu as borboletas no estômago. Não era por pressão, mas por
ansiedade. Custava a acreditar que estava realmente em um endereço aleatório, indo ao encontro de um
garoto que mal conhecia, só para vê-lo tocar.
George assustou-se quando chegaram ao destino. Era uma casa normal de vizinhança de classe
média, mas um som alto de rock escapava abafado da garagem e alguns meninos de cabelos compridos
e roupas pretas andavam pelo jardim bem aparado. Ele se perguntou se deveria mesmo deixar sua
pequena naquele lugar, mas acreditava que ela continuava sendo a menina responsável de sempre.
Quando Sophie tocou a campainha da casa, para a sua surpresa, quem abriu a porta foi uma mulher
bonita e sorridente. Devia ser a dona da residência. Num lugar com fundo musical de guitarra, ela mais
parecia uma apreciadora de ópera com aquele coque preso, o colar de pérolas e o batom rosa-claro. O
suéter também entregava bastante seu refinamento.
– Que alívio! Uma garota! Sabe quantos meninos passaram por essa porta hoje? – desabafou a
mulher. – Aceita alguma coisa para beber, querida?
– O que tiver está bom – respondeu, tímida, ao olhar para os lados tentando localizar o novato.
Entendeu pela conversa que o nome da anfitriã era Isabella. O filho dela era cantor e realmente
precisava de um guitarrista. A senhora só repetia o quanto o filho andava chateado e como aquilo a
deixava de cabelos em pé.
A ruiva conseguia entender a angústia dela. Isabella queria ajudar o filho a se encontrar, mas, para
apoiá-lo, primeiro precisava se reinventar, aceitar o filho como ele era. Não se tratava de uma tarefa
fácil. Sophie achou bonita essa atitude. Perguntava-se se era assim que sua mãe se sentia.
A mulher serviu um copo grande de limonada para Sophie, que acabou aceitando também o
biscoito oferecido por ela. Já que estava ali, podia pelo menos encher o estômago. Quem sabe assim ele
não parasse de revirar.
– A senhora saberia me dizer se um rapaz chamado Léo chegou para a audição?
A anfitriã pareceu pensativa ao retirar uma forma de bolo do fogão. O cheiro de chocolate invadiu
a cozinha, e a garota até se esqueceu de que normalmente não comia muito.
– O do chapéu? – perguntou ela.
Chapéu?
Aquilo a perturbava. Toda vez que se lembrava de coisas parecidas com as do Reino, sentia uma
inquietação que levava horas para cessar. Provavelmente ele não estava usando uma cartola, mas só o
fato de usar um acessório diferente como aquele lhe provocava comichão.
– Não sei se está usando um chapéu. Nunca o vi com um.
Isabella continuava entretida com seu bolo, que decorava com uma pasta de chocolate e granulados
coloridos. Sophie se perguntava se estaria tão bom quanto o do banquete do Reino.
– Entrou um menino charmoso uns dez minutos antes de você. Ele tinha o cabelo meio
encaracolado, jogado para todos os lados embaixo de um chapéu preto de abas largas. Também tinha a
barba por fazer. Bem diferente, o garoto – comentou. – Claro que se fosse mãe dele já o teria obrigado a
cortar aquela juba.
A ruiva teve vontade de rir e compartilhar o comentário com alguém. Pelo que já ouvira, as meninas
do colégio achavam outra coisa daquele cabelo.
– Deve ser ele mesmo, ficamos de nos encontrar aqui.
A mulher percebeu então que estava prendendo Sophie.
– Me desculpe, querida! Eu e minhas tolices. Vou levá-la até a garagem.
Sophie sentiu-se aliviada. A mãe do líder da banda finalmente a acompanhou. No caminho, ela
explicou que os vizinhos brigavam e chamavam a polícia quando o filho tocava com o portão aberto.
Depois da segunda grande reclamação, decidiram deixar os meninos passarem por dentro da casa. Ela
também não se sentia à vontade, pois muitos deles eram estranhos que provavelmente nunca mais veria.
Sophie apenas respondia com educação, entediada.
Bateram à porta, mas o som lá dentro estava alto demais e não foram ouvidas.
– Mandamos revestir as paredes com espuma para abafar o barulho... – contou a dona da casa.
Parecia que seria difícil entrar. Não ficaria a noite toda batendo à porta.
A mulher tentou abrir, mas nada adiantou. Estava trancada. Ela não entendia por quê, já que havia
outras pessoas no jardim.
– Ele deve ter achado que eu tentaria bisbilhotar – comentou a mulher quase que para si mesma. A
garota sentiu a tristeza mascarada nas palavras.
– Com certeza foi para se concentrarem. – Sophie tentou melhorar a situação. – Não deve ter sido
por mal.
Isabella sorriu e um peso parecia ter sido tirado de seus ombros.
Colocando a cabeça para pensar, Sophie se lembrou de que Léo poderia estar com o celular. Ouvia
a banda ensaiando, mas não sabia se a audição havia começado. Se sentiria péssima se perdesse a
apresentação.
Digitou depressa que estava na porta e, poucos minutos depois, a maçaneta girou, revelando o
chapéu que a senhora descrevera.
– Você veio!
Encabulada, ela respondeu:
– Ué, você me chamou.
– Pois fez muito bem – disse sorrindo e indicando para que entrasse. – Sou o próximo.
Sophie se despediu da mulher e desceu os degraus que levavam ao grande espaço da garagem
coberta. No local, um palco com equipamentos de boa qualidade fora montado, e cinco garotos
vestidos com roupas inspiradas em bandas arrumavam os cabos e testavam instrumentos. Também
havia mais três garotos sentados em um sofá de canto velho e uma geladeira vermelha encostada na
outra parede. Os pais do garoto pareciam ter limpado mesmo o espaço para ele se dedicar à música.
Sophie achou bacana.
– Está nervoso? – perguntou ela, tentando puxar algum assunto.
Era a única menina em um ambiente cheio de rapazes sombrios.
– Eu fico animado – comentou ele com um brilho nos olhos. – Estava com saudade de levar essa
magrela para passear.
O rapaz se referia à guitarra vermelha em sua mão. Ela achou graça na maneira como ele falava,
principalmente porque também tinha a mania de apelidar as coisas.
– Vamos ver se é bom com ela...
A provocação pareceu animá-lo ainda mais, porque quando chamaram seu nome ele deu um pulo e
o chapéu quase caiu da cabeça.
Sophie achou algumas almofadas jogadas no chão e, para evitar sentar com os outros guitarristas,
resolveu aproveitá-las. Mesmo não entendendo por que estava naquela casa, ela se divertia com a
experiência fora de sua zona de conforto. Léo era simpático e diferente como ela. O clima rock’ n’ roll
sempre foi a sua praia. Podia relaxar.
Para sua surpresa, “Wish You Were Here” começou a ser tocada por Léo, e um sorriso brotou em
seu rosto.
A habilidade dele no dedilhar dava um toque de ternura à atmosfera – sentimento que ela raramente
testemunhava, ainda mais quando esperava algo mais pesado. Toda a angústia dos últimos tempos
desaparecia conforme o vocalista acompanhava os acordes da guitarra e da surpreendente segunda voz
de Léo. O rapaz, emocionado, acabava cantando junto com o garoto, mas mesmo assim o respeitava
como vocalista. A harmonia entre as vozes era surpreendente. Os outros concorrentes pareciam
desconfortáveis no sofá; muitos se remexiam durante a canção.
Sua alma parecia cantar junto com a letra do Pink Floyd. Estar lá para assistir havia sido um dos
melhores acontecimentos dos últimos meses, tirando as idas ao mundo mágico. Aquele momento
resgatava sua alma de artista. Tinha vontade de abraçar o mundo. De ir para o Reino e mostrar aquela
linda canção para os Tirus ouvirem. Seria possível? Um dia poderia cantar para eles?
What have we found? The same old fears. Wish you were here.
A dor contida naquela melodia era muito bonita. O que encontramos? Os mesmos velhos medos. Queria que
você estivesse aqui. Cada pergunta, cada entonação do vocalista lhe parecia universal. Naquele momento,
ficou óbvio que Léo havia ganhado a vaga na banda. Ao terminar o último acorde, o dono da casa
largou o microfone e foi dar os parabéns para o menino.
Deviam até estar constrangidos com a situação, pois ainda havia outros para testar. Provavelmente,
nenhum conseguiria tocar e cantar do modo como ele havia feito.
Saindo do palco e encontrando Sophie de pé, Léo a ouviu dizer:
– Somos apenas duas almas perdidas...
– Nadando num aquário – completou ele.
Ambos sorriram.
O sorriso dela foi tão escancarado quanto o dele.
Léo não se arrependia de ter chamado a garota triste para vê-lo tocar. Desde a primeira vez que a
vira, sabia que ela era como um passarinho com asas quebradas.
Não queria consertá-las.
Mas gostaria de tentar encorajá-la a se curar e voar.
12
M
esmo tendo a oportunidade de passar a noite como uma garota normal, capaz de aproveitar
uma bela canção e boa companhia, ela não tirava o Reino da cabeça. Ainda mais depois da
visita a Mama Lala.
As palavras da sábia senhora haviam penetrado em seu cérebro quase como se aqueles dizeres
estivessem gravados nos miolos cansados de tanto pensar. Sabia que deveria estudar as cartas
apresentadas a ela. Somente ao completar as três etapas seria a princesa daquele local mágico e ficaria
para sempre nele. Queria aquilo mais do que tudo. Precisava parar de enrolar e agir.
Sentia mais paz agora. Entretanto, a noite ao lado de Léo não a fizera mudar de ideia. Precisaria de
muito mais do que aquilo para sentir-se parte do mundo humano. Na verdade, vê-lo cantar despertou
nela o desejo de mostrar o próprio talento.
Sophie sabia cantar e tinha uma voz memorável, daquelas que, ao escutarmos pela primeira vez, nos
fazem levar um choque e procurar pela música em algum rádio ligado. Em momentos de solidão, ela
pegava o antigo violão e dedilhava acompanhando as notas saídas da garganta. Ficava horas e horas
conversando com o eterno amigo de madeira e compunha canções com tanta facilidade que um
profissional ficaria abismado. Definitivamente, tinha um dom, contudo não o compartilhava.
Aquele era um assunto controverso na casa. Um tópico maior do que as contas, o clube das mães ou
a magreza dela. Os pais achavam um absurdo a ruiva não mostrar seu dom para o mundo. George e
Laura a pressionavam sempre comentando que um talento como o dela deveria ser compartilhado com
outras pessoas, não só Dior, para quem normalmente cantava. Sophie acreditava que eles queriam
apenas exibi-la, talvez para mostrar que ela não era tão esquisita como os outros pensavam.
Aquele era o problema...
A pressão e a expectativa das outras pessoas.
Gostava de cantar, pois, cada vez que abria os lábios singelos, um espírito maior tomava conta de si.
Cada palavra no ar parecia ser escrita pela sua alma, e ela sentia a atmosfera se tornando mais mágica.
Quase feérica. Cantar sempre seria seu refúgio, e não perderia isso para simplesmente satisfazer os pais.
Não tinha pretensão de se tornar uma cantora profissional e gravar seu próprio CD. Imaginava que, se
mostrasse seu dom para os outros, sempre seria questionada sobre aquilo, então preferia ficar na dela.
Gostava mais de ver pessoas como Léo realizarem seus sonhos musicais. E não sentia tanta necessidade
de mostrar que sua voz era bonita.
– Se divertiu? – quis saber a mãe, entrando pela porta antes entreaberta.
A jovem apenas balançou a cabeça, mas o gesto pareceu suficiente. Era até uma evolução perante os
últimos acontecimentos. A filha parecia um pouco mais tranquila.
– Quer comer alguma coisa? – ofereceu Laura.
No computador ligado ao seu lado, Sophie olhou as anotações no lembrete digital aberto por cima
do papel de parede da sua tela, que exibia um “Okay?” em tom de azul vibrante.
– Temos banana, aveia e mel?
Laura estranhou a resposta dela. Havia perguntado por força do hábito, mas não imaginava que a
filha fosse realmente querer comer. Ainda mais banana. A garota costumava brincar que banana era a
fruta do demo. Era amarela, molenga e cheirava mal. Por conta disso, a mãe ficou surpresa.
– Temos, sim. Quer que eu traga amassadinha? – perguntou como se ela fosse um bebê.
Sophie confirmou, achando graça, e completou:
– Se tiver chá de camomila, também aceito.
Mesmo sendo uma combinação esquisita, a mulher resolveu não contrariar. Era melhor vê-la
comendo, ainda mais alimentos naturais, do que reclamando de ter que se alimentar.
Sophie checava o lembrete digital na tela, todo marcado com dicas para ter um sono melhor. Se
técnicas complicadas não funcionavam com ela, tentaria métodos mais simples. Talvez assim
conseguisse um resultado melhor. Sentia saudades da Rainha e até do gato cantor de jazz. A urgência
de ir para a outra dimensão era cada vez maior.
Voltou a ler na tela do computador que a camomila era conhecida como um calmante natural
capaz de ajudar até em casos graves de insônia. A outra receita tinha sido mais interessante aprender:
com aveia e mel, a banana ajudaria a liberar triptofano, um precursor da serotonina e da melatonina,
substâncias ligadas ao sono. Se aquilo tudo funcionaria era uma incógnita, contudo torcia para que sim.
A mãe voltou com a refeição saudável em uma bandeja, e a garota aproveitou para comer de luz
apagada, assistindo a um filme em preto e branco. Achava que as cenas monótonas a induziriam ao
sono. Apesar de a Guardiã ter dito que não devia pensar no Reino enquanto estivesse na Terra, Sophie
acreditava que só teria acesso a ele se pensasse no lugar.
Quando desligou o aparelho e deixou a bandeja no chão, pôde sentir a brisa do ventilador bater nos
pés fora do cobertor, e o zumbido que ele fazia a embalou. Poucos minutos depois, veio a sensação de
ser sugada.
Toda vez que era chamada para o Reino, assustava-se com o processo. Estava muito feliz de voltar para
as terras coloridas, mas nunca sabia aonde exatamente chegaria. Sua roupa tendia a mudar e também
quem a acompanhava. Ficava um pouco confusa. Um dia, precisaria se acostumar.
Quando abriu os olhos, não se encontrava mais na casa de Mama Lala, e Sycreth também não
estava ao seu lado. Pelo que podia reparar, havia fileiras e mais fileiras de livros com lombadas
coloridas ao redor, todos parecendo muito novos.
Deve ser uma biblioteca recém-inaugurada, pensou.
Como tudo no mundo mágico era limpo e organizado, talvez os livros também fossem. A aparência
mofada e antiga da maioria das bibliotecas não se aplicaria ao lugar. Ao manejar alguns, Sophie notou
que até preferia dessa forma. Amava ler, porém odiava a poeira áspera que ressecava os dedos após
manusear um exemplar antigo. Gostava mais das páginas lisas com cheirinho de livro novo compradas
com dinheiro contado.
– Uma coleção impressionante, não é? – perguntou o Ministro, girando numa poltrona vermelha
que, pouco antes, estava virada na direção da janela.
O susto foi grande. A ruiva nem tinha sentido a presença dele no local. Até aquele momento,
conversara pouco com Phix, e a ausência de seu fiel escudeiro parecia fazer diferença.
– É um lugar único mesmo – respondeu ela, abrindo mais um exemplar e notando os temas
estranhos abordados naquelas obras.
Como viver com os humanos?, leu em silêncio enquanto folheava um manual de sobrevivência. Nunca
pensou que veria algo parecido.
Também havia guias ensinando a limpar as asas de uma fada, contos sobre sereias e outros seres
aquáticos, guias de viagens por dimensões mágicas e livros com receitas de comidas mais do que
exóticas. O tipo de leitura nunca encontrada na biblioteca de seu colégio, a não ser que levasse em
consideração o único exemplar de Animais fantásticos e onde habitam.
– Quem escreveu todos esses livros? – quis saber, curiosa.
– Alguns já estavam aqui antes do meu nascimento. Outros foram escritos por moradores do Reino
conforme estudavam certos assuntos. Eu mesmo já escrevi alguns.
– Você é escritor?
O Ministro gargalhou, ajeitando a cartola.
– Todo ser humano tem a habilidade de escrever. Alguns sabem transformar isso em algo bom o
suficiente para se tornar uma profissão, e outros usam como passatempo.
– E qual seria o seu caso?
– As duas coisas – respondeu ele sorridente.
Sophie continuou lendo os títulos desenhados em caligrafia caprichada nas lombadas dos inúmeros
exemplares organizados. Sentia-se dentro de um arco-íris, devido à quantidade de cores ao redor, ou
então em uma loja de jujubas. O homem continuava sentado na poltrona, apenas observando a garota
passear de um lado para o outro movendo os olhos rapidamente por todos os cantos.
– E o que um Ministro faz?
– No seu mundo ou no meu?
– Que eu saiba sou princesa deste mundo, então acho que seria melhor dizer no nosso.
Ele foi pego de surpresa. A jovem tinha toda a razão. Por muitos anos, Phix exercera o cargo de
Ministro do Reino e lidara com isso. As tarefas quase o fizeram perder as forças para encontrar a
princesa desaparecida. Sem ela, sua vida seria muito mais complicada, e sentia-se aliviado de a Rainha
ter encontrado finalmente uma sucessora.
– Estou ao lado da Rainha há muito tempo. Até a gestão dela, nós nunca tivemos um Ministro,
porém ela achou necessário. Sua única sucessora fora enviada para os humanos, e não haveria alguém
para substituí-la caso algo acontecesse.
– Então você cuida do Reino? – perguntou ela.
– Ajudo a organizá-lo. Os Tirus são seres incríveis, mas, como pode ver, possuem uma voz muito
forte. Sozinha, a Rainha não conseguiria governá-los. Comigo, ela pode respirar com mais calma.
– E essa vai ser a minha função agora?
Ele ficou pensativo.
– Sua presença já mudou muito a dinâmica de nossas vidas...
– Isso foi meio vago. Em que sentido? – Sophie não conseguia calar as diversas perguntas que
invadiam sua mente. Queria saber tudo e fazer tudo. Se Phix era o Ministro daquele lugar, poderia
ajudá-la.
– Sempre fomos felizes. A Rainha Ny, assim como Sycreth e eu, nos preocupamos com os Tirus e as
necessidades do Reino. Contudo, faltava uma grande peça do quebra-cabeça. Apesar dos nossos
esforços, sempre havia um clima de luto escondido atrás dos sorrisos, e é por isso que você mudou a
nossa dinâmica...
– Porque agora eu preencho esse espaço – sussurrou ela, compreendendo.
Phix levantou-se da poltrona e foi até ela.
– Sempre soube que meu destino não era cuidar dessas almas afetivas – começou a falar, segurando
a mão de Sophie com uma força consoladora. – Eu sabia que havia algo mais nisso. Hoje, sei por que
estou aqui: para guiar a joia mais rara deste Reino e transformá-la na estrela que é.
Uma lágrima escorreu até o canto da boca rosada da menina. Sentia o carinho nas palavras dele.
Entendeu o quanto modificaria a vida dele e de todos ao redor. Ninguém mais ali tinha esperança no
retorno da sucessora do trono. Mas agora Sophie estava lá. Muita coisa mudava.
– Quero me encontrar com os Tirus – suplicou ela. – Preciso mostrar para eles o quanto essa
lealdade significa para mim. Mostrar como sou grata por todo esse amor que eu pensava não ser
possível.
O Ministro afrouxou o abraço ainda olhando-a fixamente nos olhos.
– Tudo tem seu tempo. Você pôde conversar com sua majestade, com Sycreth, Mama Lala e
comigo. Sabe que tem um caminho a percorrer.
Aquela enrolação a deixava ansiosa demais. Não conseguia compreender a necessidade de ficar
longe das pessoas que a amavam.
– Só poderei falar com eles quando completar as três etapas?
Phix conseguia sentir a angústia em seu tom. Para a felicidade dela, ele não seria tão cruel:
– Ao final da terceira etapa, você entenderá seu papel neste mundo. Mas, passando pelos Amantes,
conseguirá a permissão de conversar com os habitantes.
Aquilo já a aliviava. Não sabia por que havia tantas regras para ser princesa.
– Você pode me fazer um favor? – perguntou pela última vez.
Phix aquiesceu.
– Na próxima vez em que estiverem reunidos, poderia dizer que também me importo com eles?
Ele pareceu gostar do pedido, pois baixou a cabeça sorrindo e posicionou o punho direito fechado
sobre o coração. Ela entendeu o gesto como um sim.
Precisava finalmente conhecer o significado da carta dos Amantes.
13
U
m homem parado entre duas mulheres estava na mira de uma flecha, que parecia pronta para ser
disparada por um anjo.
Era aquilo que Sophie via.
Ela decidira passear pelo shopping depois da aula, buscando esfriar a cabeça de tantos
pensamentos. Precisava encontrar uma loja esotérica para comprar um tarô sem que a vissem. Andou
pelos corredores movimentados e encontrou um estabelecimento escondido. Havia miniaturas de bruxas
e fadas penduradas no teto, velas coloridas enfileiradas nas prateleiras e um aroma forte de incenso.
Para a sua felicidade, ela logo encontrou o que procurava. Sentada no banco diante da loja mística,
Sophie segurava a mesma carta mostrada por Mama Lala. Adquirira um manual de tarô. Com alguma
dedicação, entenderia um pouco mais daquele universo. Correu os olhos azuis pelo texto, tentando
captar o máximo de informação possível, até perceber que precisaria de mais tempo. Ninguém aprendia
a decodificar aquelas cartas de um dia para o outro, simplesmente passando os olhos pelas páginas
coloridas.
E como gostou do livro que vinha junto com o baralho! Parecia muito com os exemplares da
biblioteca do Reino. Cada página virada revelava uma gravura diferente e espalhafatosa, retratada em
cores primárias. Observava os detalhes como se estivesse vendo uma pintura de Leonardo da Vinci pela
primeira vez. Sabia o quanto aquelas cartas iriam ajudá-la.
Um dia vou conseguir passar por esses obstáculos e partirei deste mundo para ficar ao lado deles, pensou,
empolgada por aprender coisas novas.
Mas, em seguida, levou um susto.
– E não é que você anda me seguindo? – perguntou uma voz masculina conhecida.
Sophie deu um pulo do banco. Justificável.
Ela estava parada na frente de uma loja de bruxas com um baralho esotérico na mão.
Tentou colocar o livro e as cartas o mais discretamente possível dentro da mochila e virou-se
delicadamente para encarar seu perseguidor.
– Posso dizer o mesmo – respondeu com a voz seca.
– TPM? – Léo achou graça. Ela reparou que ele usava uma roupa diferente da que tinha visto pela
manhã no colégio.
– Sempre – brincou, mais relaxada.
A grosseria não era proposital, apenas força do hábito.
– E aí, AC/DC? Veio direto da escola para cá?
Ela achava graça por ele ainda chamá-la daquele jeito.
– Precisava comprar umas coisas...
– Eles vendem... Coisas para TPM em lojas como essa?
Em uma risada involuntária, a ruiva aos poucos conseguiu dizer, totalmente sem graça:
– Endoidou, garoto? Se eu quisesse coisas pra minha TPM procuraria uma farmácia.
– Ei, sem preconceitos com bruxas, ok? A minha carta também nunca chegou...
Os dois continuaram no clima descontraído.
– Você é mesmo maluca – completou Léo ainda sorrindo, mas a frase acabou não surtindo o efeito
certo e quebrou a magia do momento.
A expressão de Sophie endureceu em poucos segundos. Os olhos tornaram-se mais cinzentos e
comprimidos. A boca não passava de um risco que tremia levemente, e ela sentia as unhas roídas
machucarem a palma da mão.
– Muito engraçado – comentou ela, voltando à posição normal.
O novato percebeu o clima de enterro e resolveu se sentar ao lado dela, mesmo sabendo que não era
bem-vindo ali.
– Você é invocada, né? Sorte que é bonita. Ou nem mesmo eu falaria com você e a sua vida seria
ainda mais triste por isso.
Ela teve vontade de sorrir, mas não pretendia ceder.
– Lembre-se da noite passada – continuou ele olhando de lado, enquanto balançava as longas
pernas em um tique. – Nadando num aquário. Estamos nadando no mesmo aquário.
Era estranho, mas aquilo fazia sentido para ela. Eles estavam presos em um pequeno espaço
chamado vida.
– Gostou de ontem? – perguntou o garoto, insistindo no assunto.
Sophie ainda tentava se comunicar com ele, mas se sentia incomodada pelas cartas de baralho em
sua bolsa e pelo termo maluca, que lhe cutucava a mente. Acabou murmurando um “sim”, embora ele
esperasse mais.
– Sabe, você poderia conversar com a Mônica da minha turma – sugeriu ele, de supetão, pegando-a
desprevenida.
– Já se cansou de tentar ser meu amigo?
Foi a vez dele de ficar sério. O novato parecia realmente empenhado em ter um relacionamento com
ela, seja lá qual fosse. Ou por que motivo fosse.
– Você sabe que suas palavras machucam, não sabe?
– Ser chamada de maluca também dói.
– Eu compreendo. E você tem todo o direito de se sentir magoada. Mas isso não lhe dá o direito de
ser cruel.
Os dois pareciam alheios às pessoas andando pelo corredor movimentado do único shopping da
região. Quando conversavam, o mundo parecia limitado àquele espaço, apesar de ela não querer
admitir.
– Hoje completa um mês que meu pai foi transferido de cidade – desabafou o jovem. – Ele é muito
bom no que faz, sempre é requisitado por outras sedes e temos que segui-lo. Estávamos há dois anos na
cidade anterior. Você consegue imaginar como deve ser tudo isso para mim?
Sophie se lembrou do comentário de Mônica sobre o garoto não ser como os outros.
– Você tinha criado raízes...
– É, eu tinha criado raízes – repetiu ele, balançando lentamente a cabeça. – Estava com uma banda
ótima em que eu era o vocalista, frequentava uma boa escola com pessoas desencanadas, ajudava o
abrigo de cães da cidade sempre que podia... Eu tinha uma vida boa, Sophie.
– Ela não devia ser tão boa assim.
– Por quê?
– Nenhuma banda que se preze teria um vocalista com o seu visual.
O garoto riu e mostrou a língua para ela. Depois, suspirou.
– Sabe, eu descobri que amo meu pai mais do que a mim mesmo – continuou ele. – Vi que eu
poderia reclamar da minha situação e fazê-lo se sentir culpado pela minha infelicidade. Mas poderia
tentar me redescobrir nesta cidade e, quem sabe, transformar esta vida em uma boa também.
A cada conversa, Sophie percebia como ele era maduro para sua idade. Os meninos no colégio não
costumavam pensar daquela forma, pelo menos não os que ela conhecia. Eles normalmente reclamavam
da vida, assim como ela.
– Por que sugeriu que eu fizesse amizade com a Mônica? Acha que a minha vida não é boa?
Ele voltou a sorrir.
– Esse é um motivo – disse, erguendo a sobrancelha. – Mas também porque ela se amarra nesse tipo
de carta que você tentou esconder.
A ruiva não conseguiu disfarçar a vergonha de sempre ser desmascarada.
– Eu não sei do que você está falando... – retrucou, fingindo olhar para a vitrine da loja.
Ele imitou o modo dela de falar:
– Espero que eu não encontre o tal amante, mocinha! Este aquário não é grande o bastante para
mais um.
Antes que ela pudesse reagir, ele lhe lascou um beijo no rosto e saiu caminhando lentamente pelo
corredor, deixando-a parada e imaginando se aquilo era amizade ou algo a mais.
Uma parte dela desejou algo a mais.
Por dias, sentou-se sozinha pelos cantos estudando o livro de tarô devidamente encapado para esconder
o título. Quem visse de longe acharia que ela lia algo em um caderno escolar qualquer. Contudo,
mesmo estudando bastante, pouco compreendia daquelas cartas coloridas.
Apesar de todo o cuidado, ainda chamava uma atenção indesejada. Certo dia, enquanto estudava o
livro, uma garota de outra classe passou, viu as cartas e a chamou de bruxa. Por mais de uma semana,
Sophie ouviu burburinhos, e as pessoas começaram a chamá-la de macumbeira anoréxica. Ela não
entendia como conseguiam juntar uma coisa com a outra e até confundir as religiões. Durante algum
tempo, não ligou, mas os punhos cerrados sentiam a dor de seu coração conforme os apertava de raiva.
Tentava motivar-se pensando no Reino; por isso, observara diversas vezes a carta dos Amantes. O
homem no centro do grupo olhava para a mulher da esquerda. Sophie achava muita presunção definir o
homem como o culpado por uma traição, mas também acreditava que o artista da gravura não poderia
fazer duas versões diferentes. O galã da imagem tinha os cabelos loiros, as pernas estranhamente
descobertas e sua vestimenta era uma túnica de listras verticais de cores comuns, com mangas e cinto
amarelo. Parecia mais afeminado do que as mulheres, e ela achou graça dos detalhes. A mulher da
direita tinha os cabelos loiros soltos sobre os ombros. Seu rosto era jovem e delicado. A mão esquerda
pousava sobre o peito do homem, enquanto a direita apontava para baixo de um modo que seus braços
se cruzavam.
A outra mulher fora representada de costas, mas Sophie pôde notar que o rosto aparecia de perfil.
Tinha cabelos de tonalidade azul, os quais escapavam livremente de um chapéu esquisito, e a mão
direita estava apontada na direção da terra, enquanto pousava a esquerda sobre o ombro do jovem. Era
possível sentir a tensão nas feições dela.
O que a ruiva achava mais bonito na imagem, no entanto, era o anjo de cabelos loiros e asas azuis
segurando uma flecha branca com uma das mãos, enquanto a outra trazia um arco da mesma cor. Do
disco solar atrás dele, saíam vinte e quatro raios pontiagudos, um dos quais aparecia pouco, quase
escondido pela asa da figura angelical. Sophie repassara cada detalhe diversas vezes. Mas era difícil
identificar sua tarefa.
Revendo a página sobre a carta pela milésima vez, percebeu uma movimentação esquisita por perto.
Angélica, que agora preenchia seu lugar no antigo grupo de que fazia parte, apontava em sua direção.
Sophie não compreendia o motivo de tanta obsessão por ela. Notava nos pequenos relances o modo
como todos a olhavam. Rick parecia rir de alguma coisa que a namorada dissera, e aquilo lhe revirava o
estômago. Era por causa deles que não tinha mais a melhor amiga. Não que Anna não tivesse sua
parcela de culpa, mas, sem dúvidas, o casal havia ajudado na situação.
Prestando mais atenção ao grupo, percebeu a falta de dissimulação e a ausência de Anna e Daniel.
Onde eles se meteram?, perguntou-se.
Não entendia por que se incomodava com aquilo. Também não via Léo todos os dias da semana,
mesmo estudando a passos de distância dele. Além disso, desde que conversara com Phix, também não
havia sido chamada para o Reino. Naquela noite, tentaria ler madrugada adentro para ver se a leitura a
cansaria o suficiente. Em pouco tempo, precisaria fazer exercícios físicos antes de dormir para se cansar.
Seu sono habitual não fazia mais efeito. As sonecas vespertinas também não.
Angélica novamente a encarava, e Sophie percebeu que havia algo errado ali. Ao ver o casal popular
da escola discutindo em um dos cantos atrás dela, compreendeu. Houvera um desentendimento entre o
rei e a rainha daquele local, Anna e Daniel.
Em meu Reino, não preciso me preocupar com essas coisas, pensou, aliviada.
A mágoa ainda a corroía e, por muitas vezes, proibira-se de pensar na companheira de tantas
histórias. Contudo, agora ficava difícil ignorar a face borrada e visivelmente alterada da morena,
brigando com o namorado. Poucas vezes vira Anna chorar. Não sabia se só assistia ou se a consolava.
A dor deveria ser dividida, pensou. E, quando foi comigo, Anna não esteve ao meu lado.
Apesar de lamentar vê-la daquela forma, decidiu ignorar. Não era mais seu dever moral. No tempo
que se passara, as duas tinham tocado suas vidas normalmente. Havia dias em que Sophie chorava nos
banheiros, do jeito como Anna chorava naquele momento, mas nenhuma precisava de fato da outra.
Pelo menos queriam acreditar que não.
Percebeu que olhava demais para trás, procurando assistir à situação, e temeu que outros pudessem
também prestar atenção nela. Resolveu fazer o mais correto e saiu de onde estava. Deixaria os colegas se
divertirem com o show à vontade, mesmo porque talvez Anna gostasse da atenção. Desde que Angélica
e Rick tinham se transformado em um casal, sua relação deixara de ser o centro das atenções. Léo
também roubava bastante do brilho de Daniel. Os dias dela de pura popularidade estavam contados.
Sophie se lembrou de sua conta falsa na rede social e pensou que provavelmente comentariam sobre
aquilo com sua personagem.
Enquanto atravessava o pátio de cabeça baixa para evitar olhares, a mão de alguém pousou em seu
ombro. Por reflexo, Sophie segurou-a com força. Podia ser magra, porém sabia ser ágil quando
precisava.
– Ei, fica tranquila! – exclamou Mônica, sentindo o membro esmagado e perguntando-se como a
ruiva magricela tinha conseguido machucá-la.
– Perdão – respondeu Sophie, soltando a mão e evitando encará-la. – Não esperava ser abordada
por ninguém.
Mônica encaixou o braço no da ruiva do mesmo modo como Sycreth costumava fazer. O gesto fez
Sophie respirar com mais calma. As duas continuaram seguindo em direção às salas de aula.
– Foi cruel o que fez lá atrás – disse a menina dos olhos verdes.
– Eu não fiz nada! Estava lendo e resolvi voltar para a sala.
Sophie pôde identificar a própria voz de sonsa. Sentiu mais raiva de Anna por tê-la feito perceber
aquele detalhe. Não quero saber tanto assim sobre mim mesma.
– Ela deve estar precisando de você...
Sophie suspirou.
– Nem tudo que queremos este mundo nos dá.
Durante meses, Mônica tentara entender a amizade das duas a distância. Eram almas muito
diferentes, em estágios completamente opostos, e, mesmo assim, riam juntas. Notara também que não
era fácil fazer a ruiva rir, então a relação devia ser verdadeira. Achava aquilo bonito. Comentara com
Léo o quanto a falta de Anna devia afetar a jovem. Por mais que Sophie gostasse da companhia de Léo,
ele continuava sendo um garoto. Há horas em que uma mulher precisa de outra para desabafar. Sophie
havia perdido seu ponto de apoio.
– Vamos falar de coisas mais interessantes então – sugeriu Mônica.
– Isso quer dizer que não vamos mais falar da minha vida? – perguntou Sophie com ironia.
Mônica gostava de como ela sabia ser ríspida de uma maneira cômica.
– Ouvi dizer que está estudando o tarô de Marselha.
– Ouvi dizer que existe um garoto muito fofoqueiro neste colégio.
– Ouvi dizer que ele é muito bonito.
– Ouvi dizer que você enxerga muito mal.
A amiga riu.
– Você sabe que ele não faz por mal, né?
– Eu sei – respondeu Sophie, chegando à porta de sua sala. – A língua dele só é maior do que a
boca.
– Eu tinha me referido à beleza. Mas interessante você ter reparado na língua dele.
Sophie riu.
As duas pararam e finalmente desenlaçaram os braços. O sinal tocou, fazendo os alunos encherem o
corredor de gritos e bagunça. Elas acabaram sorrindo ao ver aquela insanidade percorrer o local. Não
poderiam mais falar sobre o assunto, mas Sophie entendia que Mônica estava lhe oferecendo ajuda com
as cartas. Talvez fosse a hora de aceitar.
– Você entende mesmo dessas coisas? – perguntou antes de entrar.
– Toda mulher tem um lado bruxa – respondeu Mônica passando um papel com seu telefone
anotado. – É só me ligar quando quiser exercer o seu.
Aquilo parecia interessante.
Mama Lala tinha lhe contado sobre o baralho. Se pudesse aprender com alguém o significado das
cartas, estaria mais próxima de voltar aos Tirus. Não sabia até que ponto era possível estudar magia no
mundo humano. Ouvira falar de religiões que cultuavam aquilo, porém via-as como excêntricas, sem
pensar que, a outros olhos, ela também era excêntrica. Mais até do que muitos outros, por saber ser a
princesa de outra dimensão.
Quando se despediram, viu o rapaz magro aparecer no corredor ao lado de um grupo de meninos e
meninas. Pelo modo como mexia as mãos, parecia empolgado com o que dizia. Sophie notou como ele
ficava ainda mais atraente se expressando daquela forma. Percebeu também o jeito como as outras
meninas o olhavam, admiradas. Havia um brilho diferente nele. Antes de virar as costas, ouviu uma das
garotas perto dele chamá-la de esquisita. Léo localizou-a e abriu seu sorriso típico, lançando-lhe uma
piscadela.
Ela até esqueceu que o grupo a olhava com repúdio.
Seu coração deu um pulo.
Sorrindo de volta, ela tentou deixar os outros pra lá.
14
D
esde que brigara com Anna, Sophie havia criado uma rotina na escola. A ausência da garota
tinha modificado vários elementos do seu dia a dia, mas o ponto principal era a saída do
colégio.
Antes, as mães se intercalavam nas caronas ou elas voltavam juntas de ônibus. Depois da briga,
Laura resolveu ir buscá-la sempre, e, com o tempo, notou uma mudança na filha. Era comum Sophie
demorar para guardar seu material e esperar todos saírem da sala e esvaziar o corredor. Sentava-se na
última carteira da fileira afastada da porta, assim evitava qualquer encontro indesejado. Desde o
primeiro ano naquela escola, já havia recolhido muitas vezes o estojo do chão por brincadeiras infantis.
Também já encontrara muitos bonecos de vareta desenhados em seu caderno. Estudar na mesma sala de
pessoas que chegava a odiar era um fardo, mas tentava carregá-lo da melhor maneira possível.
O fato de ser uma das últimas a sair também lhe dava a possibilidade de não cruzar tantas vezes
com o rapaz e sua amiga cartomante. Achava melhor evitar qualquer ligação com o mundo humano.
Sofreria ao deixá-los para trás. No fundo, não sabia nem mesmo como viveria sem os pais e Dior.
Após mais um fim de período, estava empolgada para chegar em casa e se preparar para aprender os
segredos das cartas. Se telefonasse para Mônica, talvez a conversa fosse menos pessoal.
Demorou-se na carteira, evitando os olhares e tentando não ficar no caminho de ninguém. Quando
um engraçadinho trombava com sua carteira ou mochila, ela apenas respirava fundo e continuava a
olhar para o material. Tinha a mania de deixar todos os itens do estojo alinhados na mesa e guardava
um por um antes de botá-los na bolsa.
Viu os colegas saírem e o professor de geografia deixar a aula carregando trabalhos para corrigir.
Outra pessoa parecia procrastinar a saída, para seu nervosismo. Era Anna.
O que ela quer comigo agora?
Aproveitou um grupo de meninas saindo e colocou a mochila nas costas para tomar seu rumo.
Nada lhe tiraria o gosto de passar no primeiro teste para conversar com os Tirus, mas, ao chegar à
porta, ouviu:
– Sophie...
Seu corpo gelou. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, e ela ficou estática por alguns segundos. O
que aconteceria se ela se virasse? A amiga lhe pediria desculpas? Desabaria em lágrimas pedindo a
amizade de volta? Ou a atacaria novamente?
Para sua surpresa, o assunto era outro.
– Daniel terminou comigo por sua causa.
A ruiva esperava ouvir qualquer coisa, menos aquilo.
– Se vocês terminaram, eu não tenho nada com isso – respondeu, tentando sair da sala.
– Não ouse sair enquanto estou falando com você! – gritou Anna. – Não você também.
Pela atitude dela, Sophie soube que algo mais sério que o término tinha acontecido.
– O que você quer de mim? – perguntou finalmente, virando-se.
Ao encará-la, Sophie percebeu os olhos ainda inchados de Anna. Mesmo o cabelo sempre brilhante
estava opaco.
– Quero que me dê minha vida de volta – continuou Anna. – Sempre fui popular neste colégio.
Ajudei você durante todos esses anos, mesmo com todos contra mim, e agora perdi meu lugar. Nós
éramos um time, e você acabou com ele.
O estômago de Sophie ardeu.
– Eu acabei com ele? Fui eu que tentei comprar um menino com favores para fingir gostar de uma
amiga? Sou eu que jogo na sua cara sempre que posso o quanto minha presença era um favor para você?
Sim, eu saí finalmente da sua vida. Agora você pode reinar o quanto quiser. Eu não preciso reinar aqui.
– Como se você conseguisse reinar em algum lugar.
A ruiva sentiu vontade de rir. Não precisava mais se preocupar com sua aceitação ali, pois agora só
precisava descobrir os significados das cartas e sumir.
– O que você quer que eu faça? – perguntou Sophie, segurando a raiva.
– Quero que vá até ele e diga que eu não me importo mais com você e que nossa briga não vai mais
afetar meu relacionamento com ele.
– MAS É MUITA CARA DE PAU! – gritou Sophie.
Em certas horas, é melhor sair do ambiente para não fazer algo impensado.
– Ele disse que não sou mais a mesma desde que você se foi... – revelou Anna chorando, enquanto
Sophie andava em direção à porta.
Aquilo doeu ainda mais. Em seu íntimo, sentia que Anna queria apenas mostrar que sentia sua falta.
Mesmo assim, saiu da sala e bateu a porta com força.
Só não contava com a presença da diretora no corredor.
– Posso saber o que está acontecendo aqui? – indagou a mulher.
Seu nome era Margareth e ela usava uma camisa social branca por dentro da calça escura e o cabelo
amarrado em um rabo de cavalo. Beirava os cinquenta anos, mas os óculos grossos a deixavam com uma
aparência mais velha. Tinha a reputação de exigente e implicante. Sophie não tinha boas recordações
envolvendo a mulher. Naquele ano, já incomodara o pai para reclamar de seu peso. Poderia agora achar
mais um motivo para azucriná-la.
– O vento acabou empurrando a porta.
– Eu ouvi gritos antes disso. Ouvi vozes saindo da sala. Há mais alguém aí?
Em uma questão de segundos, sem saber por que fazia aquilo, Sophie respondeu que não.
– Estava falando ao telefone – mentiu. – Fiquei estressada com algumas coisas e resolvi extravasar.
Imaginava que a desculpa não fosse colar com a mulher. Todavia, se ela e Anna levassem detenção,
acabariam ficando mais tempo juntas.
Os segundos se arrastaram e Sophie continuava calculando quanto seria penoso se a megera abrisse a
porta.
– Conversei com seu pai por telefone – murmurou a mulher, pegando-a pelo braço de uma forma
que não sabia se era legal. – Sua família precisa dar um jeito em você. Esta instituição carrega um
nome, e não gosto de vê-lo manchado.
Eu causo o término de namoros e mancho a reputação de escolas renomadas. Uau! Eu sou uma bad girl.
A nova situação só lhe dava mais vontade de fugir daquele lugar.
– Para onde a senhora está me levando? – perguntou Sophie, sentindo dor onde a mulher apertava.
– Reparei que sua mãe vem sempre buscá-la. Está na hora de trocar uma palavrinha com ela.
Andando em direção ao portão principal, pôde ver de relance que Anna havia saído da sala e as
acompanhava de longe.
Ao atravessarem o estacionamento, encontraram Laura já nervosa, com o celular na mão.
– Estou te ligando como uma louca há séculos – disse a mãe esbaforida, indo ao encontro da filha.
Laura parecia tão perturbada que nem reparou na mão endurecida segurando o braço fino da
garota. Sophie percebeu que Margareth a soltou rapidamente quando chegaram.
– Meu celular fica no silencioso enquanto estou na aula – argumentou a jovem, querendo entrar
logo no carro.
– Mas ela não estava mais em aula, disse até que estava ao telefone – declarou a diretora.
Laura parecia confusa. A presença de Margareth indicava encrenca, e sua paciência para situações
como aquela começava a se esgotar.
– Aconteceu alguma coisa, diretora?
A mulher pareceu apreciar o momento.
– Aconteceu, sim – respondeu a senhora. – Esta aluna estava aos berros pelo corredor da escola,
batendo portas por onde passava.
Como é que é? Sophie surpreendeu-se.
– Sei que sua filha está passando por uma situação delicada de saúde e cheguei a conversar com seu
marido sobre o assunto. Indiquei ótimos médicos que poderiam auxiliá-la na questão da anorexia.
– Você está maluca? – perguntou Sophie por impulso.
Parecia que estava em um sonho. A diretora estava mesmo inventando um bando de coisas a seu
respeito e ainda a julgava anoréxica? Nunca havia deixado de comer de propósito, não tinha problemas
com aparência e odiava vomitar até quando estava doente. As alegações eram abusivas e não entendia
por que a mãe não se pronunciava.
– Ela estava gritando? – murmurou Laura, tentando entender.
Enquanto Sophie tremia de raiva, Margareth continuava a falar sobre a necessidade de procurar
ajuda para ela. O olhar de Laura ficava cada vez mais distante. A filha sempre foi diferente, mas não
lhe causava grandes problemas. Passava apenas por uma fase de autodescoberta, e a mãe entendia isso.
Ela queria ter uma vida mais normal como a das outras mães de seu clube, contudo compreendia que o
que fazia dela uma grande mulher era aceitar as diferenças da filha. Ouvir sobre o comportamento
rebelde da menina a assustava.
Laura viu um rosto familiar ao fundo e entendeu.
Sophie havia gritado com Anna.
– A senhora precisa de mais alguma coisa? – perguntou a mãe para a diretora, que não parava de
falar.
– Preciso que você e seu marido venham para uma reunião formal sobre as condições de sua filha
neste colégio.
– Falarei com meu marido e marcaremos uma data.
Ao dizer aquilo, Laura acenou com a cabeça e lançou um olhar discreto para Anna, escondida atrás
de uma árvore. Andou com passos pesados e entrou no carro. A filha a acompanhou ao veículo abafado
pela exposição ao sol. Antes de ouvi-la dar a partida, Sophie teve que perguntar:
– Você realmente acredita que eu saio gritando sozinha pelos corredores batendo as portas e vomito
para ficar magra?
A dor presente na expressão de Laura era tanta que o ar parecia não existir.
– Eu não sei de mais nada.
Aquela foi a resposta da mãe. E o início do desespero da filha.
Ao chegarem em casa, Sophie resolveu honrar as palavras da diretora e saiu batendo a porta do carro na
direção do quarto. Decidira que, se seria tratada como revoltada, agiria como tal. Nunca tinha sido
uma pessoa fácil de lidar, mas pensava que pelo menos os pais estivessem do seu lado. Ver o desgosto
estampado no rosto da mãe havia quebrado qualquer sentimento bom existente nela.
Muitas vezes, pais, professores, psicólogos e parentes não conseguem entender as dificuldades
enfrentadas por um jovem. Esquecem-se dos sofrimentos por que passaram e das dúvidas que já tiveram
por acreditarem que hoje sentem mais dor e dúvida. Costumam tratar as fases obscuras de um filho
como um momento de “querer chamar a atenção”, o que não deixa de ser verdade. Sophie, porém,
acreditava que, se uma pessoa necessitava chamar atenção, provavelmente estava no fundo do poço.
Será que Anna precisava realmente de mim?, surpreendeu-se pensando do nada, enquanto se afogava em
lágrimas raivosas diante do estúpido teto bege da casa.
Humilhada. Era como ela se sentia. Pensara que, depois de ser a atração principal da última festa,
nunca mais se sentiria assim. Engano seu. Enquanto tirava a roupa com ódio, jogando as peças pelos
cantos do quarto, imaginava o que as pessoas diziam de sua aparência e como a condenavam.
Os Tirus nunca fariam isso comigo.
Era preciso passar pela etapa dos Amantes para se livrar de tudo. Tentou engolir o choro e resolveu
ligar para Mônica. Evitaria falar sobre o que acontecera na escola, até porque não imaginava o assunto
percorrendo os corredores. Anna não mancharia ainda mais sua reputação por causa dela. Apenas
perguntaria sobre a carta e desligaria com alguma desculpa.
Procurou pelo número da garota em seu celular e, ao encontrá-lo, resolveu ligar, ainda enxugando as
lágrimas.
– Pensei que fosse me ignorar – disse Mônica ao atender o telefone.
Sophie estranhou, mas imaginou que provavelmente Léo dera seu telefone para ela.
– É difícil ignorar uma bruxa – respondeu Sophie, tentando esconder o tom choroso da voz.
– Sei que falei que posso ajudar, mas queria dizer que não sou nenhuma expert. Brinquei na questão
da bruxa. Sei um pouco de tarô porque li e gostaria de dar uma força.
Será que ela está brincando comigo também?
– Você então não sabe se pode me ajudar?
Houve um minuto de silêncio.
– Não. Mas eu sei que gostaria de tentar.
Sophie ficou satisfeita.
– Eu sonhei com a carta dos Amantes algumas noites atrás e, desde então, estou meio encanada –
tentou explicar, mentindo descaradamente. – Você sabe o que essa carta faz ou se existe algum
significado para ela?
Mônica pediu um minuto do outro lado da linha para consultar seu livro e relembrar as coisas
aprendidas em um curso.
– Essa é uma carta interessante... – começou a colega.
– Por quê?
– É a carta do livre-arbítrio, que mexe com sentimentos e escolhas.
– Eu não entendo essas coisas – resmungou Sophie.
– É difícil explicar, mas vou tentar. Sabe quando temos um monte de coisas acumulando que vão se
desencadeando na vida?
Do outro lado da linha, a ruiva apenas concordava.
– Essa carta mostra o encadeamento das coisas. A luta do ser humano em buscar um equilíbrio ou
uma união.
– Mas isso que você está dizendo não me ajuda muito se eu precisar fazer algo com essa carta.
– Você sabe que esse seu comentário só faz sentido na sua cabeça, né? – perguntou Mônica.
Sophie esquecera que ela não sabia do Reino e de suas etapas para permanecer por lá.
– Acho que, se quiser fazer algo com base nessa carta, você precisará tomar uma decisão voluntária.
Será necessário mudar a sua vida, e não só achar que está mudando. Só assim vai conseguir realizar suas
aspirações e seus desejos. Mas você sabe que com isso vêm responsabilidades?
– Como assim?
– Se decidir mudar a sua vida, será por meio de dedicação e sacrifícios. Você vai deparar com um
momento de ruptura, separação, e precisará ser capaz de provar que pode suportar tudo.
– Acho que entendi. Essa carta parece não ser tão complicada quanto eu imaginava.
– Romper com o passado nunca é fácil, Sophie.
– Talvez você pense assim porque não conhece o meu.
Um clima pesado se instaurou entre elas, fazendo as duas perceberem que estava na hora de desligar.
Para não ser mal-educada, a ruiva agradeceu pela ajuda.
– A gente se fala amanhã na escola – concluiu.
– Nos falamos, sim – concordou Mônica. – Aliás, Léo está aqui te mandando um abraço.
Léo? O que o Léo estava fazendo na casa dela? E por que lhe mandava um abraço e não um beijo?
A garota chegou a esquecer que ainda estava ao telefone. Várias questões passaram por sua cabeça
apenas por causa daquela frase.
– Oi? Você ainda está aí?
A pergunta fez Sophie acordar do transe. Sentiu um embrulho no estômago ao perceber que o
menino estava mesmo na casa de outra garota.
– Boa tarde pra vocês – respondeu secamente.
O aquário tinha se quebrado.
A carta dos Amantes se completava.
15
E
la estava pronta. Decidira afinal deixar tudo para trás.
Atravessou o salão principal do castelo musical com passos decididos até o portal, onde
finalmente encontraria seus súditos e seus amigos, os verdadeiros. Andava com tanta paixão que se
esqueceu do dia terrível que tinha passado. Os resmungos de fome do estômago a incomodavam, porém
sentiu a certeza e o cansaço com tanta força que preferiu dormir a almoçar.
Naquele dia, precisava daquilo.
– Dia de muitas batalhas – comentou Sycreth, aparecendo ao seu lado quase como mágica. – Deve
estar sendo difícil para você, alteza.
– Mais do que eu imaginava – respondeu Sophie. Ainda sentia dor, mas saber que o Reino existia
lhe dava conforto.
Reparou que ambas usavam vestidos tomara que caia de saias rodadas em tons pastéis com cintos
escuros combinando com as minicartolas. A diferença principal era o comprimento. Enquanto a
princesa ainda trazia caudas assimétricas exibindo as longas pernas, a Guardiã parecia mais recatada
com um modelo até o chão.
– Eles estão preparados? – quis saber a menina.
A loira sorriu, indicando o portal e passando o encorajamento certo para aquele momento na vida
de Sophie: o instante em que finalmente conversaria com as pessoas que mais a amavam. Aqueles que
haviam esperado anos pela sua volta. No dia em que sua mãe a havia decepcionado, uma diretora a
humilhara, a antiga amiga a acusara e sua paquera estava com outra garota, ela precisava sentar-se com
pessoas que a fariam sorrir.
Precisava cruzar a barreira dos Amantes.
Um clarão deixou-a cega por alguns instantes e, ao recuperar a visão, pôde identificar pontos
brilhantes pelo ar. Normalmente, ela se assustaria por vê-los em tamanha quantidade, mas estava no
Reino e nada ali a assustava mais. O cenário tornava-se ainda mais intenso conforme as partículas
dançavam pela brisa, seguindo a música sussurrada pelas rosas que decoravam as laterais do castelo.
Após passar pelas estátuas dos dragões, pôde ver ao final do caminho um grupo de
aproximadamente trezentas pessoas aglomeradas. Entre elas, havia também criaturas exóticas, muitas
com tonalidades coloridas. Todas carregavam a mesma expressão no rosto: um misto de curiosidade e
felicidade.
Sophie observou a Rainha, que estava mais próxima, sentada em uma espécie de trono móvel, com
Jhonx sentado ao seu lado no chão, cruzando as patas enquanto rodopiava o cetro com apenas uma das
patas dianteiras. Também viu os funcionários do castelo entre os presentes naquela multidão e entendeu
que aquele grupo devia ser o seu Reino. A energia deles parecia a de milhões de pessoas.
O Ministro devia tê-los instruído antes da chegada dela. Provavelmente exercia seu papel tentando
controlar os ânimos dos habitantes para que nada de errado acontecesse naquela transição.
Sophie apenas ficou chateada de não ver Mama Lala, mas entendia a solidão da senhora em sua
cabana na floresta. Uma mulher com tamanha espiritualidade e tanto conhecimento devia sofrer por
não poder compartilhar tudo o que sabia.
– Ela lhe mandou isto – comentou Sycreth, estendendo a carta dos Amantes do baralho envelhecido
da vidente.
O gesto fez toda a mágoa daquele dia desaparecer. Mama Lala lembrara-se dela e, de algum modo,
aquele era um reconhecimento por estar rompendo barreiras e provando merecer o carinho daqueles
seres.
– Vamos?
Sophie respondeu à Guardiã com um de seus sorrisos singelos, que sabiam dizer muito para quem
quisesse desvendá-los.
E o tempo parou.
O som das flores também. Tudo ao redor estava em silêncio. O Ministro saiu do centro da escada
que dava acesso ao espaço amplo onde todos esperavam de pé. Um trono apareceu às suas costas. De
onde vinha, Sophie não sabia; no entanto, não necessitava daquele tipo de certeza. Na opinião dela, a
apresentação devia ser feita em chats de redes sociais, não em praça pública. Ela queria ser apenas uma
garota conversando com pessoas que não a condenavam. Pessoas que a queriam por perto. Segurou a
cauda do vestido, colocando-a de lado, e sentou-se no degrau mais alto, de onde pudesse ver todos.
– Vamos – foi sua primeira palavra. – Não fiquem tímidos.
Em um movimento uniforme, todos se sentaram, como em uma dança coreografada. Ela conseguia
ver uma imensidão de chapéus parados, esperando pela próxima ação.
– Ainda preciso aprender muito sobre nosso Reino.
O silêncio continuava.
– Não sei bem como vim parar aqui nem exatamente por que continuo sendo chamada.
Dúvidas pairavam no ar.
– Só sei que esta é a minha verdadeira casa e eu estava ansiosa para falar com a minha verdadeira
família. Por muitos anos, não fui compreendida pelas pessoas ao meu redor e sinto que, por vocês, eu
serei.
O silêncio permaneceu.
– Não sei se conseguirei responder a todas as perguntas de vocês – continuou ela, com a permissão
da Rainha. – Mas estou aqui para o que quiserem saber...
Os habitantes continuaram quietos perante a princesa, sem saber o que dizer, perguntar ou como
agir. Para eles, ela era intocável. Um ser perfeito que finalmente vinha para dar-lhes carinho e atenção.
Os questionamentos dela pareciam assustadores.
A fênix do primeiro dia singrou pelo céu em um risco mesclado de laranja e vermelho. Aquilo a fez
se lembrar do condor que a levara até o castelo. Perguntava-se onde ele estaria e se por acaso estava em
mais um topo inabitado de montanha. Devia se sentir solitário por lá. Não era sempre que princesas
desaparecidas iam parar em lugares como aquele.
Uma jovem resolveu levantar a mão e perguntar:
– Por onde andava, alteza?
Aquela era uma pergunta interessante. Nem Sophie sabia explicar direito onde esteve por todo
aquele tempo. Ficava confusa de saber que sua vida na Terra era o que a mantinha longe daquele lugar.
Resolveu ser honesta e compartilhar com eles o que sabia.
– Por muitos anos, morei em um lugar muito semelhante ao Reino. Mas, naquela dimensão, não
existem flores que cantam, pássaros mágicos, seres coloridos ou gatos falantes.
– E o que existe por lá para fazê-la ficar por tanto tempo longe daqui? – quis saber um garoto
curioso.
– Existe uma família que me criou por muito tempo, meu cachorro, que não canta, mas é muito
especial, e achocolatado, principalmente achocolatado!
Ela chegou a sorrir.
– Você se refere àquela água escura e adocicada? – indagou uma senhora.
– Isso mesmo! – ela se viu respondendo e achou graça por falar sobre achocolatado com seres de
outro mundo.
– Se construirmos uma fonte de achocolatado na praça principal, a alteza passaria mais tempo no
Reino? – perguntou um pai de família.
Aquilo lhe cortou o coração. Eles realmente sentiam sua falta. Conseguia entender o peso nos ombros
do Ministro e a situação difícil que a Rainha enfrentava. A ausência dela no mundo mágico parecia
afetar a todos.
– Eu quero ficar o máximo de tempo com vocês. Se possível, para sempre. Mas essas coisas não
dependem de mim.
– Para quem precisamos rezar para tê-la ao nosso lado? – indagou outra jovem, e Sophie pôde ver
as lágrimas dela.
A princesa apenas suspirou e, sentindo o olhar carinhoso de Sycreth ao seu lado, pronunciou:
– Vocês só precisam acreditar que sempre vou querer estar ao seu lado. Que a minha vida agora é
moldada na felicidade de vocês, que são minha felicidade. Não os abandonarei. Os Tirus já são especiais
demais para mim.
Houve gritos e expressões de um mundo que fazia a felicidade parecer comum.
– E agora deem três vivas para sua princesa – comandou Sycreth.
– VIVA! VIVA! VIVA!
Ela e Sycreth se abraçaram sob o eco enquanto o Ministro repousava a mão nos ombros cansados da
Rainha. Havia ainda um longo caminho a percorrer, porém Sophie tinha a força necessária para lutar
pelos seus objetivos.
Era a hora de partir para a carta do Louco.
Reuniões de família tinham virado um hábito desagradável para todos naquela casa. Ainda assim, eles
tentavam promover esses encontros, estimulados pela eterna batalha para determinar quem estava certo
e quem estava errado.
Sophie acordou outra vez sem ter se alimentado e sofrendo de dor de cabeça pelo estresse que o
mundo natural lhe causava. As experiências com os Tirus eram muito tocantes, mas, quando atravessou
o corredor e viu os pais preocupados na sala, relembrou como a realidade era menos prazerosa.
– Precisamos conversar – disse o pai ao vê-la passar com os cabelos despenteados, talvez por ter se
revirado na cama.
Sophie tinha feito o ritual. Tomou banho, escovou os dentes e deixou a água gelada refrescar o rosto
inchado latejante. Depois de finalmente ter colocado um pijama, pôde encará-los.
– Outra? – sussurrou a garota. – É sério que vamos precisar de outra conversa dessas? Não dá para
sermos uma família normal?
Laura lançou-lhe um olhar atravessado, antes marca de brincadeira com o pai e agora constante nos
momentos tensos aparentemente causados por ela.
– Acha que para nós é divertido? – perguntou a mãe.
Sophie viu George segurar a mão da mulher para acalmá-la, provavelmente por não querer mais
brigas.
– Pelo que eu soube, houve um incidente na escola hoje.
– Houve sim, pai! Uma diretora maluca e ditadora saiu me apertando o braço e me acusando de
coisas sérias. Sabe, eu já tinha ouvido sobre abuso de poder em escolas, mas passar por isso e não ser
defendida pela minha própria mãe está sendo demais!
Laura abaixou o olhar.
– Filha, temos ficado do seu lado, mas não podemos negar que você está precisando de ajuda. Anda
muito triste e sozinha. Isso não faz bem.
– Vocês querem que eu faça o quê? Que finja que tenho amigos? Que sorria quando não quero? Eu
fico quieta todos os dias e não tenho ganhado nada em troca.
Sophie sentiu vontade de socar a parede.
– Você estava gritando, minha filha. Isso não é normal – afirmou a mãe, receosa.
– Eu não estava gritando!
– Eu vi a Anna...
O coração de Sophie foi parar no estômago.
– Eu sei que vocês foram amigas por muitos anos e que agora estão sem se falar. Eu quase morri do
coração hoje te esperando e tive que ouvir barbaridades. Acha que estou feliz? – indagou a mãe com os
nervos à flor da pele.
O pai se ausentou da conversa. Todos pareciam confusos demais. Ela era muito jovem para passar
por tudo aquilo.
– Sabe por que não estou mais falando com a Anna, mãe? Porque fui a uma festa por causa dela e
acabei humilhada na frente de todo o colégio.
Os pais trocaram olhares, sem saber o que dizer.
– E agora estou aqui ouvindo sermão de vocês, enquanto ela deve estar fazendo as unhas.
A casa ficou em silêncio. Era possível ouvir as patinhas de Dior ressoando no pavimento. Quando
Sophie já estava cansada de olhar para o nada, esperando uma reação dos pais, George levantou-se e
finalizou o assunto:
– Marcamos para você uma consulta com um psicólogo amanhã às duas horas da tarde. Não quero
ouvir resmungos a esse respeito. Na próxima semana, sentaremos todos com a diretora e mostraremos
nosso plano de ação para mudar sua postura na escola. Eu te entendo e sempre entendi, mas essa
situação precisa acabar.
Ele saiu da sala, deixando-a desesperada diante da mãe. Sentia raiva de tudo aquilo. Não precisava
de um psicólogo. Entretanto, relembrou sua conversa com os Tirus e a próxima carta a ser desvendada.
Percebeu que estava no caminho certo.
16
F
oi preciso aceitar ir ao psicólogo. Em troca, não foi à aula. Laura devia estar se sentindo culpada,
pois, quando Sophie não se levantou na manhã seguinte, decidiu deixá-la dormindo. Para a
infelicidade da menina, ela não visitara o Reino durante a noite e tivera apenas um sonho normal,
daqueles que são completamente esquecidos ao acordar.
O celular tocou ao meio-dia. O número registrado era o de sua própria casa. Aquela era a forma
como sua mãe evitava entrar no quarto para encará-la. Desligando o aparelho, levantou-se com
dificuldade e escolheu uma roupa qualquer para usar. Não tinha forças nem para se arrumar. Ao
mover-se, sentiu-se zonza outra vez e percebeu que não comera no dia anterior e que já era hora do
almoço.
Ótimo! Vão achar mesmo que sou anoréxica.
Vestiu uma calça jeans com casaco de moletom do homem-aranha e calçou o primeiro tênis velho
que viu pela frente. Prendeu o cabelo em um coque desleixado e enfiou os óculos escuros no rosto para
evitar a claridade. Enfrentar aquele dia seria mais difícil do que imaginava.
Quando chegou à sala, viu algo que normalmente a faria sorrir: um barquinho com diversos tipos de
sushis e sashimis. Era sua comida predileta. A mãe empenhara-se mesmo em tentar compensá-la pelo
dia anterior, mas Sophie não esquecia que em algumas horas seria analisada por um estranho.
Quando chegaram em frente ao consultório, a garota se arrastou do carro parecendo um zumbi até a
sala de espera. Lá, encontrou uma senhora que parecia apavorada e perguntou-se se estava com o mesmo
jeito assustado. Ela não sentia medo do profissional que iria recebê-la, mas, pela forma como imaginava
as pessoas que frequentavam aquele local, não se julgava como elas. Ela precisava passar pela etapa do
Louco, mas não queria ser taxada assim.
– Pode entrar na sala um, senhorita – disse a jovem recepcionista, dirigindo-se a Sophie enquanto
ela fingia ler uma revista de fofoca.
Laura teria de ficar fora da sala. No caminho, a mãe explicara que aquela seria a primeira de várias
sessões e que, ao final de algumas delas, ela ou o pai entraria para conversar com o psicólogo. Sophie
somente ouvia, tendo vontade de matar a megera da diretora por ter armado tudo aquilo.
Mesmo a contragosto, entrou no consultório, encontrando uma sala diferente da dos outros médicos
que já visitara. O lugar parecia uma biblioteca: as paredes tinham prateleiras de madeira repletas de
livros e estatuetas de corpos sem membros. Entretanto, era diferente da biblioteca do Reino – seu estilo
era mais familiar ao mundo humano. Em um canto, havia uma mesa aparentemente pesada de madeira
escura, também repleta de livros, com um computador ao centro. Do outro lado, ficava um divã
visivelmente confortável. Ela deveria mesmo se deitar no divã? Não poderia somente se sentar e
responder às perguntas do tal psicólogo? Tinha tantas dúvidas sobre aquele momento que achou melhor
ficar calada e parada na porta. O receio que tomava conta dela se revelava em sua linguagem corporal.
– Sei que parece assustador – comentou o homem grisalho de cerca de cinquenta anos. – Vai ser
muito mais relaxante se você se deitar no divã.
Aquilo a fez apertar os dedos com força e sentiu, em uma fração de segundos, o psicólogo perceber
e anotar algo em uma prancheta.
Ótimo! Já estou sendo considerada lelé da cuca.
– Sou o dr. David, e vamos conversar durante algumas semanas para vermos como podemos alinhar
mais sua vida.
– Minha vida já é alinhada – soltou Sophie ao deitar-se no divã.
– Tenho certeza de que sim – respondeu o homem sem rir, deixando a garota confusa. – Só
queremos ver se existe algo que podemos trabalhar.
– Vamos partir então para o camelote?
O psicólogo pareceu não entender.
– É uma forma nova do termo “camelar”? – quis saber o dr. David.
– Sei lá...
– É um termo que você inventou?
A menina encolheu os ombros, indicando não saber o que dizer. Com isso, ele anotou mais uma
observação.
– Você gosta de criar palavras?
Sophie teve vontade de rir.
– Não sei. O senhor gosta de inventar perguntas?
Curiosamente, ele sorriu.
– Você julga que esta consulta será algo árduo ou desgastante? – indagou mais uma vez.
– Julgo que estou sendo indevidamente julgada. Pode anotar isso aí?
O psicólogo percebeu logo o padrão de Sophie. Um caso típico de alguém que recusava o
tratamento por não reconhecer o próprio quadro.
– Eu não quero julgar você. Gostaria de tentar entendê-la.
– Boa sorte então, companheiro.
Mais uma vez, ele sorriu.
Por que esse moço sorri tanto com minhas respostas?
Aquilo a irritava.
– Pelo visto, seus pais estão preocupados com você.
– Acho que todos os pais devem se preocupar com seus filhos...
– Mas nem todos os pais os levam para um psicólogo – respondeu ele, pegando-a de surpresa.
– Pelo visto, boa sorte pra mim.
Outro sorriso.
– Eu sou tão engraçada assim? – perguntou Sophie, confusa.
– Não é isso. Só percebo que você tem uma personalidade forte, e muitos pais se assustam com esse
tipo de poder.
– Deve ser isso mesmo. Devo assustar as pessoas daqui.
Dessa vez, foi ela que sorriu, mas ele pareceu não gostar, escrevendo mais um item em sua prancheta.
– Ei, foi brincadeira! – ela o recriminou ao perceber a anotação.
– Sei que foi – respondeu o dr. David.
Por alguns segundos, o clima ficou pesado. Até então, Sophie não achava o psicólogo ruim.
– Existem pessoas que você não assusta? – interrogou ele depois da breve pausa.
– Como assim?
– Você disse que as pessoas daqui deviam se assustar com você. Minha pergunta é: existem pessoas
que você não assusta?
Ele havia percebido muito depressa o seu ponto fraco. O seu segredo. Sophie ficou nervosa e, mais
uma vez, pressionou os dedos.
– Não existe outro lugar.
– Eu não disse que existia...
Ela não sabia se era porque estava deitada, se era porque a luz estava mais baixa que o normal ou
porque ele parecia um senhor bacana, mas, por um instante, teve vontade de compartilhar sobre o
Reino. Talvez desabafando não ficasse amargurada toda vez que voltava para a Terra. Contudo, sabia
que ele a acharia uma completa maluca e poderia tentar interná-la. Pensaria primeiro se valia mesmo a
pena antes de sair falando sobre castelos e fênix. Não suportaria viver em um hospício. Seria branco demais
para o meu gosto.
– Há alguma coisa que gostaria de falar comigo? Quem sabe desabafar sobre algum sentimento ou
questão que a esteja incomodando?
Tentação. No momento em que pensava em desabafar, ele lhe perguntava aquilo. Será que o
psicólogo era como Sycreth e conseguia ler sua mente?
– Eu estou bem.
Aquela era uma resposta mais tranquila.
– Pelo que sua mãe me informou, você foi pega gritando na escola com uma antiga amiga. Gostaria
de falar sobre isso?
Sophie levantou a sobrancelha, encarando-o. Sua expressão não era a de uma pessoa que gostaria de
falar sobre aquilo.
– Sem problemas – comentou o dr. David, levantando-se da cadeira. – Já nos conhecemos um
pouco e acho que está bom para uma primeira sessão.
– É sério? – duvidou a garota, confusa.
– Decepcionada?
– Surpresa.
– Muitos fantasiam que um psicólogo é um bicho de sete cabeças.
– Seria mais divertido se você fosse um.
Os dois acabaram rindo. Sophie não esperava se dar bem com seu suposto avaliador, mas se sentia
leve ao sair do consultório e, pela sua expressão, a mãe pôde perceber que estava tudo bem.
Na volta para casa, as duas evitaram conversar. Era mais fácil. Laura não queria estragar o
surpreendente bom humor da menina, e Sophie não queria voltar a pensar na sua vida. Afinal, o
psicólogo era mesmo um bicho de sete cabeças, pois não parecia daquele mundo.
Duas semanas se passaram e nada de ela conseguir voltar para o Reino mágico. Nesse meio-tempo,
tornou-se cada vez mais um fantasma na escola, evitando ficar mais de cinco segundos parada ou
exposta para que não a abordassem. Na última vez em que ficou de bobeira dentro da sala de aula,
acabou ouvindo de uma menina que ela deveria “ir procurar um banheiro para vomitar e sair da frente”.
Por causa de ataques como esse, passava intervalos inteiros escondida no banheiro abandonado do
último andar e andava somente com fones de ouvido tocando músicas em alto volume.
Em vários momentos, precisou desviar-se de Léo ou fingir não ver Mônica pelos corredores. Dentro
da classe, não tirava os olhos da carteira e desenvolveu uma dor na coluna por ter dificuldade de olhar
o quadro-negro daquela forma. Toda vez que sentia o olhar de Anna queimar seu pescoço, começava a
cantar em sua mente para fugir daquela situação. Pelo que via nas redes sociais, ainda mais em seu
perfil falso, o relacionamento de Anna e Daniel tinha realmente chegado ao fim. Havia rumores de que
ele estava ficando com uma menina de outro colégio, alguém do seu bairro. Por conta disso, o antigo
grupo se dividira e a morena parecia profundamente perturbada com aquilo. Fazia nove dias que ela
não postava em suas páginas, um verdadeiro recorde para uma pessoa completamente viciada em
internet.
Em casa, Sophie passava o dia inteiro dentro do quarto com Dior. Ele se tornara ainda mais
companheiro, ouvindo-a reclamar da vida e tentando consolá-la quando chorava baixinho ao som dos
Beatles. Ela até colocara as vasilhas do cachorro em seu quarto para que ele vivesse ali com ela o tempo
todo. Era o único carinho que sentia. O único sangue quente perto dela demonstrando preocupação ao
abanar o rabo e cutucá-la com o focinho.
Deixara de frequentar o jardim para cantar e havia aposentado por um tempo o violão. As músicas
de sua alma eram tristes, e não queria contaminar as melodias com aquela emoção. Ao mesmo tempo,
precisava se alimentar e a mãe a obrigava a comer, então brincava com os alimentos no prato por meia
hora em cada refeição sob a vista grossa de Laura. Era o único momento em família de que eles
desfrutavam.
Durante aquele tempo, fora duas outras vezes ao psicólogo. O dr. David continuava simpático e
inteligente, sempre procurando uma forma de conhecê-la melhor, mas Sophie também era esperta. E
teimosa. Não transformava a vida do homem em um inferno como esperavam, mas deixava de lado
qualquer informação valiosa.
Os pais haviam visitado a diretora na semana anterior para contar sobre as sessões de terapia, e a
mulher pareceu engolir por ora, jurando que, se Sophie aprontasse mais alguma, teria de agir. Naquele
dia, Laura e George voltaram brancos da reunião. Em quinze dias, foi o único momento em que Sophie
sentiu pena deles.
Apesar de estudar diariamente o livro de tarô, não conseguia entender a próxima etapa. Estava se
tratando com um “médico de loucos”, isso devia ser o suficiente. Entretanto, não parecia que era. A
nova dificuldade havia piorado seu humor e causava os choros escondidos. Entupia-se de chá,
alimentos saudáveis e técnicas de relaxamento, mas nada a fazia atravessar a linha entre as dimensões.
Até que um dia, para sua surpresa, recebeu uma ligação inesperada de um telefone diferente.
– Que lindo! Seu telefone funciona. Meu número pessoal deve estar com problema, afinal fiz dez
ligações e enviei vinte mensagens de texto.
Sophie travou na hora. Não sabia se desligava, fingindo que a ligação caíra, ou se respondia ao
garoto na outra linha. Léo tinha razão: seu telefone funcionava e o dele não estava com problema.
Durante aquelas semanas, além de evitá-lo a qualquer custo no colégio, não atendia a suas ligações nem
respondia aos SMS. Preferia ficar sozinha. Não entendia por que ele ainda a procurava se estava com
Mônica. Várias vezes, havia fuxicado a página do perfil dele e vira fotos dela nos ensaios do garoto ou
tomando milk-shake em lanchonetes descoladas.
O que ela tem que eu não tenho?, acabou se perguntando antes de responder à frase do garoto.
Depois se odiou por se preocupar com aquilo.
Fizera aquela pergunta a si mesma muitas outras vezes. Porém, ao longo dos dias, sempre chegava à
mesma conclusão: peitos. Mônica, até por ser mais cheinha, possuía o maior par de peitos de todo o
colégio. Via alguns meninos comentarem nas redes sociais e algumas meninas dizerem que eram sacos de
banha por cima do saco maior. Sophie só via algo que não tinha e nunca teria. Ao menos não
naturalmente.
Como eu queria ter peitos, pensou.
– Sério que nem vai fingir que a ligação caiu? – falou o garoto do outro lado da linha. – Dá pra
ouvir sua respiração.
Ela prendeu o fôlego no mesmo segundo. Contando até dez, criou coragem para falar:
– Ah, oi!
Ah, oi! Como eu sou retardada. A vontade era de se bater, mas precisava terminar a ligação.
– Oi pra você também, senhorita virei-bruxa-e-não-falo-mais-com-trouxas.
Ela teve vontade de rir e se condenou por isso. Léo sempre lhe dava motivos para rir e sentir
borboletas no estômago normalmente dolorido.
– Estou passando na sua casa pra te levar ao cinema, quer você queira ou não. Se não quiser, ficarei
plantado na sua porta até você sair. Sinceramente, acho que ficarei plantado na sua sala, pois sou
bonito e, com certeza, sua mãe vai me deixar entrar.
Ele está de sacanagem.
– Não posso ir. Tenho um trabalho pra fazer.
Ele riu do outro lado.
– Eu sei que não passaram trabalho algum pra sua turma. Não adianta fugir porque, mesmo você
sendo insuportável, vai ter que ir ao cinema comigo e pronto. Sabia que eles queimavam na fogueira as
bruxas mentirosas na Idade Média?
– Eles queimavam todas as bruxas na Idade Média.
– Então que bom pra você que nos tempos modernos eles só levam ao cinema.
Ela nunca sabia se o xingava ou simplesmente cedia para acabar com o constrangimento.
– Que saco! – exclamou a garota. – Vê se não demora porque eu tenho dormido cedo.
Ela conseguia visualizar o sorriso dele do outro lado da linha.
A vergonha ao ver a felicidade da mãe por receber um menino em casa era grande. Laura havia feito o
garoto se sentar e já o empanturrava com os biscoitos ignorados por Sophie naquela tarde. A menina
explicara que iriam perder a sessão do cinema, mas a mãe continuava sua animada conversa com Léo.
Os dois pareciam amigos de longa data e aquilo incomodou muito Sophie.
– Beleza! – resmungou quando viu que não adiantava tentar chamar a atenção deles. – Eu já não
queria ir a esse cinema mesmo. Tenho muita coisa pra fazer e vou voltar para o quarto.
A expressão constrangida da mãe fez Sophie comemorar por dentro. Era impressionante o quanto
sentia que precisava mendigar apenas para ser ouvida.
– Peço que desculpe o temperamento da minha filha. Nós tentamos dar-lhe educação, mas ela deve
ter caído de cabeça em algum momento da vida.
Léo riu do comentário.
– A AC/DC é assim mesmo, por isso gosto dela – respondeu ele.
Laura achava graça por aquele rapaz de tanta personalidade ter se interessado pela sua filha linda,
mas bem esquentadinha.
Os opostos realmente se atraem, pensou a mãe.
Sophie normalmente teria resmungado alguma coisa diante dos comentários de Léo. Entretanto,
naquele momento, sua mente só conseguia pensar: Ele disse mesmo que gosta de mim?
– Vamos, então? – perguntou ele empolgado, cortando seu pensamento.
Ela aquiesceu e pegou a jaqueta de couro jogada no sofá. Usava uma camiseta da personagem
Malévola da Disney e um short jeans comprido e desfiado.
– Você não vai precisar do casaco. O dia está quente.
– A sala de cinema é fria.
– Depende da companhia.
Eles caminharam um bom tempo em silêncio. Sophie tinha insistido em pegar um ônibus, mas Léo
argumentou que havia tempo para eles andarem. Ela achou aquilo nada romântico, mas deixou para lá.
Durante a caminhada, Léo respondeu a diversas mensagens em seu telefone. Aquilo a estressava. Não
entendia por que precisava caminhar e ficar no silêncio ouvindo o tec tec das teclas digitadas às pressas.
Enquanto ele a ignorava completamente, a ruiva só pensava em uma coisa: Mônica tem peitos.
– Nossa! Que legal esse nosso passeio – ironizou.
Ele continuou concentrado no aparelho.
– Sério! Eu vou tacar esse negócio na rua se você não parar de digitar.
Léo parou de caminhar e encarou-a, sério.
– Você é muito revoltada, sabia?
– Foi isso que disseram para o meu psicólogo... – respondeu ela.
– Você está visitando um psicólogo?
Sophie não soube o que dizer. Esquecera totalmente que não havia compartilhado com ninguém
sobre sua nova experiência obrigatória. Reconhecer que frequentava um consultório era um passo
estranho.
– E se eu estivesse, qual o problema?
O garoto parecia sem jeito.
– Não teria problema algum...
– Se eu dissesse que sou a princesa de um reino mágico e que uma bruxa em uma floresta me disse
que poderei viver lá para sempre, você pararia de falar comigo?
Ele ainda parecia surpreso com as revelações bizarras.
– Eu pediria pra você me levar até lá.
Sophie bufou por nunca saber como vencer uma disputa com ele.
– Você é esquisito, sabia?
– Estamos no mesmo aquário, maluca.
Os dois deixaram a tensão de lado e continuaram andando sem tocar nos celulares.
Alguns quarteirões à frente, ela notou que estavam bem longe do shopping e, provavelmente, o
garoto tinha outra ideia na cabeça. Não entendia por quê, mas eles não estavam indo ao cinema.
Quando pararam diante de uma casa amarela com um jardim cheio de estatuetas de gnomos, percebeu
o verdadeiro destino.
– Estamos indo pra sua casa? – indagou ela.
Ele apenas abriu o portão de madeira clara e ambos entraram na propriedade. Sophie nunca
imaginaria que aquele garoto descolado moraria em uma casa tão hippie. O clima do lugar até a fazia
lembrar dos Tirus, e uma saudade lhe invadiu o peito.
– Venha, seu chilique acabou atrasando a nossa sessão – disse ele em tom grave.
Será que foi ele quem bateu com a cabeça?
Atravessaram um corredor lateral da casa. Aos poucos anoitecia, o alaranjado do céu os iluminando
de uma forma angelical.
Ao chegarem aos fundos da casa, Sophie percebeu o que era a tal sessão de cinema para a qual fora
convidada. Mônica terminava de ajeitar algumas almofadas no chão em cima de uma canga colorida
comprida. Entre duas árvores, havia um lençol branco bem esticado e, por trás da suposta plateia, um
projetor apoiado em uma mesa de mosaico. Também havia uma bandeja com dois baldes de pipoca,
Coca-Cola e morangos com chocolate ao lado do espaço zen. Definitivamente, era a sessão de cinema
mais peculiar que ela já vira.
– O que é isso?
– É a forma que encontrei pra fazer você parar de ser grossa comigo – respondeu ele. – Ou pelo
menos tentar por duas horas.
Mônica parecia feliz por vê-los juntos. Ela carregava o celular na mão, e Sophie percebeu que
provavelmente os dois estavam se comunicando para ajustar os detalhes.
– Vou indo nessa – disse a menina, para espanto da ruiva.
– Você não vai ficar com a gente? – perguntou Sophie.
– E eu tenho cara de vela?
Tanto ela quanto o garoto riram do comentário. Apenas Sophie não compartilhava a mesma
descontração.
– Onde estão seus pais? – perguntou.
Só conseguia pensar em perguntas. Ficava difícil entender por que um garoto como Léo preparava
uma sessão romântica como aquela para ela. Não tinham nada um com o outro, e ela passara as últimas
semanas apenas fugindo dele. Parecia surreal demais. Tinha medo de ser uma pegadinha e acabar se
machucando.
Mônica foi embora e Sophie continuou esperando uma resposta. Léo tirou o chapéu que usava,
revelando o cabelo bagunçado. Em seguida, deitou-se nas almofadas e trouxe a bandeja para o meio da
canga.
– Meus pais viajaram para uma conferência de trabalho – explicou ele. – Mas fique tranquila,
AC/DC. Há uma bandeja enorme entre nós.
– Há muito mais do que uma bandeja, Léo.
A seriedade dela incomodou o rapaz.
– Eu sei que você não curte deixar as pessoas entrarem na sua vida. Você tem até razão pra fazer
isso, pelo que já ouvi falar. Só que eu não quero te machucar.
– Todo mundo diz isso da boca pra fora...
– Eu não sou como todo mundo, Sophie.
Ele disse meu nome.
Aquela era uma novidade. Não pensava em ouvir seu nome na voz dele. Ainda mais que seu objetivo
era nunca mais conversar com o garoto. Depois disso, desistiu de relutar e acabou sentando-se no chão.
Mônica havia mesmo feito um bom trabalho. As almofadas eram confortáveis. A posição acabava
sendo melhor do que muitas poltronas de cinema que conhecia.
– Você tinha razão – comentou ela.
– Sobre o quê? – perguntou ele, ligando o aparelho para projetar o filme.
– Eu não precisava trazer a jaqueta.
Foi assim que os dois ficaram deitados comendo as guloseimas e assistindo ao filme francês O
fabuloso destino de Amélie Poulain, algo novo para ela e, ao mesmo tempo, mágico para os dois. Sophie não
sabia onde aquilo terminaria, mas, no caos de sua vida, sentia um pouco mais de sangue quente ao seu
lado, e a sensação era boa.
17
A
quela seria uma visita diferente ao Reino.
Apesar de ele estar presente em todas as reuniões, durante todo aquele tempo, Sophie havia
dialogado apenas uma vez com o gato cantor de jazz, numa refeição ao lado de várias pessoas. Ela não
entendia ainda como ele era capaz de falar, ainda mais cantar, daquela maneira. Naquele dia, andavam
lado a lado por uma área nova. Um lugar que eles chamavam de Lago da Vida.
– Pensei que estivessem adiando um novo encontro nosso para que eu não enlouquecesse com esse
vaivém – comentou Sophie com Jhonx.
– A alteza tem razão em pensar assim – concordou com sua voz grossa habitual.
– Eles acham que eu não sou capaz de entender tudo que existe neste Reino?
– Nós achamos que outra pessoa já teria surtado por viver assim.
– Eu não sou como as outras pessoas...
– Aprendemos a reconhecer isso também.
Ao final da frase, o gato miou e balançou o cetro em que se apoiava.
– Existem outros animais que falam como você? – indagou ela, curiosa.
– Existem mais criaturas mágicas.
– Por que o condor e a fênix não falam?
Jhonx sentou-se com as patas esticadas à beira do lago, e Sophie se ajeitou para imitá-lo.
– Uma fênix é mágica por si só. Acho que não precisam falar para nos mostrar o quanto são
especiais. Mas o Condx sabe falar sim, apenas é preguiçoso.
– Condx é o condor-dos-andes que me trouxe aqui? – perguntou ela, achando graça do nome.
– Esse fanfarrão mesmo – disse ele, deixando-a ainda mais intrigada.
A vontade da princesa era de enchê-lo de perguntas sobre tudo o que via e sentia. Ele parecia ser o
mais indicado para respondê-las, afinal era uma criatura única. Uma coisa era conversar com Sycreth,
que parecia mágica, ou com o Ministro, que tinha um visual peculiar. Ter uma conversa com um
animal capaz de raciocinar e falar como um humano era inigualável.
– Que outras criaturas existem?
O gato coçou a cabeça com uma das patas e com a outra segurou a cartola.
– Neste momento, você deve estar com os pés na cabeça de um sereiano – disse ele, como se fosse
normal.
Sophie, que até então mantinha os pés dentro da água púrpura, retirou-os depressa, com medo.
– Como é que é? – perguntou desesperada.
– Sereianos – respondeu Jhonx com calma. – Vai dizer que em seu mundo não existem lendas de
sereias?
Como ela ainda não tinha visto tais criaturas, aquilo lhe parecia mais bizarro do que um gato de
cartola e gravata.
– Sim, mas, como você mesmo disse, são apenas lendas.
– Aqui muitas lendas são reais.
O medo se transformou em curiosidade. Sabia que o gato havia brincado com a história de que
estava com os pés na cabeça de um sereiano. Era óbvio que aquilo não era verdade. Se existissem
criaturas dentro daquele lago esquisito, deviam estar a metros de profundidade. Passado o susto, ela
começou a gostar ainda mais da conversa.
– Eu posso ver um sereiano?
– Pode, mas para isso precisaria morrer – revelou ele.
Esse gato não sabe ser muito sutil.
– Por que eu precisaria morrer?
– Porque eles são seres da escuridão profunda e a princesa não é capaz de mergulhar fundo o
bastante para conhecê-los.
– Então como sabe que eles existem?
Aquela era uma boa pergunta. O gato ficou por um tempo parado, pensando em como responder.
– Temos livros sobre eles na biblioteca do Reino. Se existem páginas escritas sobre eles, é porque são
reais.
– Existem páginas sobre sereias no meu mundo também – retrucou ela, tentando achar algum
sentido naquilo.
– Mas no seu reino não existem fênix nem gatos falantes.
Esse é um bom argumento.
Os dois voltaram a se concentrar no lago extenso, onde de vez em quando um peixe dourado
pulava, mergulhando novamente na imensidão. Toda vez Sophie olhava para Jhonx para ver se ele
tentaria caçar o animal.
– Eu não como peixes vivos – observou ele, parecendo achar graça. – Os felinos de seu mundo são
muito primitivos.
Foi a vez dela de rir.
– Será que um dia isso tudo será normal para mim? – perguntou a ruiva.
– Esperamos que sim, alteza – respondeu ele. – Muitos sonham com isso.
Agora Sophie tinha uma nova missão, mas o tempo passava sem que conseguisse resolvê-la. Mesmo
visitando o Reino com mais frequência e tendo dias normais, ela não conseguia se concentrar nos
dizeres da carta do Louco e se recusava a pedir novamente a ajuda de Mônica.
Desde o encontro com Léo, começou a passar alguns intervalos com eles. Por dois dias, até assistiu
ao ensaio da banda dele, junto com Mônica, que era a namorada do vocalista. Sophie agora entendia o
motivo de Léo estar com ela no dia em que havia ligado e de encontrar tantas fotos deles juntos. Pelo
que a menina contara, ele a apresentara para Hugo, e os dois se apaixonaram no mesmo dia. Desde
então, ficaram inseparáveis, por isso ela resolveu ajudá-lo a preparar o encontro no quintal.
A ruiva só não entendia qual era sua relação com Léo. Os dois nunca passavam da conversa, e não
era apenas porque ela sentia receio. Durante todos aqueles meses, ele nunca havia tentado algo a mais.
Sempre era respeitador até demais. Ouvir as histórias de Mônica a fazia pensar que ele gostava mesmo
dela, mas a incomodava ele ainda não ter tentado beijá-la.
Ainda que tivesse se soltado um pouco mais na escola e nas conversas com o dr. David, a ruiva
ainda não relaxara em casa. Na verdade, a família ficava cada vez mais distante. Os pais não se falavam
com frequência. George chegava em casa sempre mais tarde, Laura passava horas ao telefone jogando
toda a energia no clube das mães, e até Dior parecia infeliz. Sophie percebia o quanto impactava a
atmosfera da casa, mas ainda não engolia o que considerava ser a falta de lealdade dos pais com ela.
Todas as semanas, a visão da diretora e a lembrança do vexame que ela a fizera passar traziam ainda
mais à tona o sentimento de revolta.
Talvez, se eles se separarem, passem a entender o que é solidão, chegou a pensar um dia, arrependendo-se no
mesmo instante. Aquele pensamento era cruel demais para conter verdade.
Sentada na cama do quarto sempre fechado, com Dior mais uma vez dormindo a seus pés, Sophie
observou novamente a carta do Louco.
Ela viu que, ao contrário do que acontecia nos demais arcanos, a margem superior da carta não
tinha uma numeração, razão pela qual se atribuía a ela o valor de arcano zero, conforme descobriu em
suas pesquisas na internet.
A ilustração da carta era a de um homem que andava com um bastão em sua mão direita. Ele estava
de costas, contudo seu rosto fino era bem visível, aparecendo de perfil. Sobre o ombro direito, levava
uma vara em cuja extremidade havia uma pequena trouxa, como se estivesse fugindo para algum lugar.
O personagem se vestia ao estilo dos antigos bobos da corte medievais. A calça azul e rasgada
mostrava uma parte de seu corpo. Um animal que podia ser um felino parecia arranhar aquela parte
exposta; talvez fosse o responsável pelo rasgo. A garota não entendia por que Mama Lala havia lhe
mostrado uma carta em que era possível ver o traseiro de um bobo da corte. Não precisava daquela
cena.
Na imagem, brotavam de um chão árido, acidentado, cinco plantas verdinhas com várias folhas. O
homem tinha a cabeça coberta por um gorro que descia até a nuca e lhe cobria as orelhas. A estranha
touca transformava seu rosto barbudo em uma espécie de máscara. Ele vestia uma jaqueta vermelha
presa por um cinto amarelo, combinando com as mangas do traje, e usava calçados também
avermelhados. Aquela carta conseguia ser ainda mais bizarra do que a dos Amantes.
Sem conseguir desvendá-la, acabou não aguentando e ligou para a amiga. Mônica ainda era mais
estudada, e Sophie só estava perdendo tempo por conta de seu orgulho bobo.
– Fala, menina maluquinha! – disse a amiga ao atender a ligação.
– Você e o Léo com a mania de apelidar as pessoas – bufou Sophie do outro lado, ainda com a
carta na mão.
– Há! – Ela riu. – Bem que o Léo disse. Você é muito sensível!
Então é isso que ele diz para as pessoas.
– O que você sabe sobre a carta do Louco?
A colega pareceu confusa do outro lado.
– Você diz a do tarô de Marselha?
– E estaria falando sobre o quê?
– Melhor mudar esse tom, madame – comentou a amiga bem-humorada. – Senão vou começar a
cobrar por essas nossas sessões telefônicas de tarô. Sabia que esse troço dá dinheiro?
Sophie achava graça nos comentários dela. Nunca pensou em chamar de “troço” algo mágico como
um tarô, mas percebia que, alguns meses antes, nunca teria nem mesmo pensado em um tarô.
– E mais essa agora. A louca quer saber sobre o Louco... – provocou Mônica.
Sophie apenas bufou, fazendo a menina gargalhar.
Mônica começou a explicar que aquela era uma carta forte, de busca ao filho pródigo. A ruiva até
se ajeitou do outro lado do telefone ao ouvir aquilo, fazendo o cachorro acordar assustado pelo
movimento. A amiga continuou dizendo que a carta significava uma experiência capaz de ultrapassar
limites. Envolveria algo feito no impulso e na inconsciência. Talvez por alienação ao mundo externo.
Sophie não tinha a mínima ideia do que aquilo poderia significar.
– Você pode se sentir abandonada e, não resistindo ao sentimento, procurar uma forma de repousar
com uma inocência irresponsável.
– Caramba! Que difícil!
– Nem me diga. É superdifícil chegar a essa conclusão – comentou Mônica.
– Há mais alguma coisa que eu precise saber?
Mônica começou a murmurar, parecendo ler rapidamente o conteúdo de seu material de estudo.
Sophie sabia o quanto a amiga se esforçava para ajudá-la.
– Vejamos: diz aqui que, por conta de sua capacidade mediúnica, você seguirá seus instintos,
achando agir certo.
– Mas eu não sou médium – desabafou a ruiva.
– E eu não sou adivinha, filha pródiga! Estou só relatando os dizeres.
Sophie quis saber mais.
– Estou preocupada – comentou a suposta cartomante. – Preciso entender por que está me
perguntando novamente sobre uma carta. Da vez passada, foi por conta de um sonho, mas agora a
situação parece mais pesada. Essa não é uma carta qualquer. Ela sai para pessoas que passam por um
período de desordem, insegurança e desprazer, podendo sofrer transtornos nervosos. Aqui diz que, pela
incapacidade de raciocinar, você pode se castigar com uma ação insensata.
Sophie percebeu por que não deveria ter ligado para ela. A amiga tinha toda a experiência para
ajudar, contudo também a curiosidade para tentar entender o que acontecia à sua volta. Realmente, a
segunda carta indicada por Mama Lala era muito mais pesada, mas não poderia compartilhar com
Mônica suas razões.
– Não é nada. Gostei desse baralho, só que sou péssima em conseguir interpretá-lo. Você parece
lidar naturalmente com isso.
– Veja lá como está recebendo essas minhas interpretações, hein? Eu não sou nenhuma sabe-tudo e
não quero atrapalhar o seu quadro.
A palavra fez Sophie voltar a prestar atenção.
– Quadro? Que quadro?
Foi possível sentir pela respiração de Mônica que ela julgava ter falado demais. A garota muda
parecia perdida em relação ao que responder.
Óbvio que o matraqueiro foi espalhar para todo mundo que estou frequentando um psicólogo!
– Pode deixar, Nica! – Ela tentou ser simpática. – Você não tem culpa se ele não sabe preservar
minha imagem.
Desligando o telefone, Sophie percebeu que o cachorro voltara a dormir e sentiu inveja. Queria ter
todo o tempo do mundo como ele para poder apenas dormir e ir para o Reino todos os dias.
Gostava de Léo e sabia que os desabafos dele com outras pessoas não eram por maldade.
Entretanto, Sophie achava que sua atitude era muito parecida com a de Anna no passado. Afastara-se
da morena por conta daquilo. Deveria afastar-se dele também?
18
D
eitada no divã como fez em todas as últimas tardes de quarta-feira, Sophie não sabia mais como
agir. A necessidade de encontrar os Tirus continuava, mas tinha apenas sonhos normais. Nada
do que fazia dava certo e não achava uma solução para a carta do Louco.
– Tenho dificuldade de dormir – comentou com o psicólogo no começo da sessão.
O dr. David chegou a se assustar por conta da confissão, pois em geral ele tentava tirar informações
dela e quase nunca conseguia. Quando por um instante ela abria uma brecha, automaticamente se
fechava logo depois. Para Sophie desabafar sua dificuldade de dormir, devia realmente precisar de
ajuda.
– Você sente que é insônia? Tem passado a noite inteira em claro ou demorado muito para pegar no
sono?
Ela fez uma pausa antes de responder, porque sabia que a atenção dele estaria redobrada.
– Eu sempre dormi bem. Tiro minhas sonecas de tarde e durmo oito horas no período da noite.
– Isso parece perfeito – disse ele.
– Seria, se agora eu não acordasse tão facilmente e sempre preocupada. Depois me sinto cansada o
dia inteiro. Já tentei alguns métodos para dormir e relaxar, mas nada funciona.
O psicólogo ajeitou a prancheta, animado por finalmente poder ajudá-la de alguma forma.
– Quais métodos já tentou?
Sophie descreveu todos os hábitos alimentares de indução ao sono, todos os tipos de bebidas
quentes, compartilhou sobre tentar sempre ler durante a noite ou assistir a filmes chatos para ficar
cansada ou entediada.
Empolgada em também compartilhar um pouco de sua vida, acrescentou que tentou manter um
diário do sono sem sucesso e que até se exercitou antes de ir para a cama em busca de resultados.
– Exercício não é uma boa opção – comentou ele após os relatos. – Vai acabar apenas te
despertando. Funciona quase como café.
A ruiva percebeu que ele ficava feliz em ajudar, mas depois notou sua expressão se fechar.
– Como anda sua relação com seus pais?
Ela não tinha vontade de falar sobre o assunto e preferia continuar no tema do sono, mas percebeu
que de algum modo as duas coisas tinham conexão.
– Não tenho conversado muito com eles. Eles também não estão falando muito entre si.
– Você gosta da casa desse jeito?
Sophie pareceu ofendida com a pergunta. Nunca fora a única culpada por todo aquele drama. Os
pais tinham forçado a barra para chegar àquele estágio.
– Desde quando alguém gosta de ignorar a família? – perguntou ela para o psicólogo.
Ele acabou rindo.
– Muito mais do que você imagina. Muita gente considera essa situação satisfatória.
– As pessoas gostam mesmo de não se dar bem com as outras?
– Me diga você: pelo que me falou, você não conversa mais com os seus pais e nunca escuto sobre os
seus amigos. Também não me conta sobre namorados. Você gosta de não se dar bem com as outras
pessoas?
Ela continuava se sentindo ofendida. Nunca pensara daquele jeito. Somente percebia que, por ser
diferente, as pessoas tendiam a não gostar dela. Por isso, afastava-se para não se decepcionar depois.
– O senhor acredita que isso esteja afetando meu sono? – indagou ainda irritada, olhando para o
teto do escritório e agradecendo por não ser bege.
– Ao dormir, relaxamos e recarregamos nossas energias, produzindo nutrientes que fazem parte de
nosso crescimento e bem-estar. Se sua vida estiver um caos, com certeza isso refletirá no descanso.
– E se eu não quisesse dormir, mas apenas ter um sonho lúcido? Isso me afetaria? – Ela extrapolou
os limites, dando acesso ao doutor a questões não discutidas com ele.
– Isso tem a ver com as pessoas que não se assustam com você? – quis saber ele, desenterrando o
assunto da primeira consulta.
Ele não deixa passar uma, pensou.
Sabia que o próximo passo dele seria encaminhá-la para um psiquiatra. As constantes mudanças de
humor, as brigas em casa e na escola, as dúvidas e a falta de comprometimento com as pessoas a
classificavam como depressiva. Sabia disso desde que começara a ir para o Reino, mas, com a obsessão
em sempre voltar para lá, não conseguia mais relaxar. Lembrava-se, deitada no confortável divã, da
noite em que assistira ao filme com Léo e não conseguia focar a atenção nem em um momento como
aquele. Se mudaria mesmo de profissional, era melhor pelo menos desabafar um pouco mais.
– E se tivesse ligação? E se existissem pessoas que eu não assustasse e com quem me desse bem?
O homem ficou por um tempo analisando a prancheta, provavelmente pensando na próxima
pergunta.
– Se existem, gostaria de saber mais sobre elas – comentou.
Sophie tentava imaginar qual seria a reação do dr. David se ela começasse a realmente contar tudo
sobre sua vida. Ele agora abria o espaço necessário e, de alguma forma, estavam ligados ao sigilo
profissional, por isso seu segredo morreria ali. Buscando não assustá-lo de vez, resolveu procurar uma
maneira sutil de falar sobre o tema.
– Eu conheço um grupo de pessoas que me amam e que querem o meu bem. Tenho conversado com
elas de vez em quando. Principalmente com as mais ativas.
– Ativas nessa comunidade? – perguntou ele, em um tom de voz estável.
Ela sentiu vontade de rir por sua maluquice, mas tentou manter a seriedade.
– Isso! Elas têm papéis de liderança nesse grupo, mas na verdade quem está à frente de todas essas
pessoas sou eu.
O psicólogo resolveu fazer mais uma anotação na prancheta, mas Sophie o interrompeu:
– Será que podemos ter uma conversa normal? Você poderia deixar de anotar tudo isso ou talvez
anotar depois?
Ela sabia que nada daquela história era normal e provavelmente os dedos dele coçavam com uma
vontade louca de escrever tudo, para depois encaixá-la em algum padrão de doença mental. Não se
importava tanto com o fato de ser diagnosticada, mas ter tudo anotado enquanto desabafava era
constrangedor.
– E por que não se encontra sempre com essas pessoas? – indagou ele, deixando a prancheta de lado.
– Se elas lhe dão conforto, por que não estar sempre ao lado delas?
– Nem tudo o que queremos esse mundo nos dá...
– Você consegue sonhar com essas pessoas? – o psicólogo tentou perguntar de um modo brando.
Um ser humano podia sonhar com qualquer coisa. Aquilo não significava que era insano.
– Sempre que possível sonho com elas – respondeu ela, receosa.
A cabeça da ruiva tombou para a esquerda a fim de encarar o homem grisalho de jaleco e óculos de
grau. Enquanto se olhavam, ele tentava buscar a dor contida no azul-acinzentado dos olhos dela.
– Nesses sonhos, você se sente importante? Querida?
Mesmo triste, ela esboçou um sorriso antes de voltar a olhar para o teto.
– Eu sou... – sussurrou. – E é tão bom.
– Deve mesmo ser...
O tempo da consulta estava quase no fim, e ele desejou ter mais tempo com aquela paciente. Era a
primeira vez que faziam uma espécie de progresso. Ele finalmente conversaria com a mãe dela para que
buscasse um psiquiatra. Ao mesmo tempo, acreditava que ela precisava de mais consultas com ele.
– Antes de chamarmos sua mãe, eu gostaria de lhe perguntar mais uma coisa.
Sophie voltou a tombar a cabeça.
– Quando dorme e encontra essas pessoas que te amam, você acaba encontrando seres de outro
mundo?
A ruiva percebeu que ele tentava medir o tamanho de sua loucura. Sendo mais esperta, respondeu
entre risos irônicos:
– Seres de outro mundo, doutor? Aí eu precisaria mesmo falar com o senhor.
Em seguida, a secretária liberou a entrada de Laura no consultório, e o doutor explicou que, no caso
da filha dela, precisariam também passar por um profissional de outra área, mais especificamente a
psiquiatria. A mãe teve vontade de chorar com a informação, mas Sophie não se sentiu mal. Preferia
tomar um comprimido do que compartilhar coisas que não estava preparada para falar.
Quando afinal relaxou, abriu os olhos e soube que estava voando. A sensação do vento atravessando o
corpo como se levasse com ele toda a sua energia negativa era refrescante. Sentia-se livre na atmosfera
gélida ao redor, mesmo naquele dia ensolarado. O cheiro das diversas árvores e flores conseguia atingir
os céus e, de cima, tudo parecia ainda mais delicado.
– É muito bom vê-lo novamente – comentou Sophie para o pássaro gigante, enquanto alisava as
plumas brancas de seu pescoço.
Para sua surpresa, o animal perdeu a timidez ou preguiça e resolveu responder:
– É muito bom recebê-la outra vez, alteza.
Ainda alisando suas penas, os dois planaram pelos campos esverdeados repletos de florestas em
formatos de letras. Por um bom tempo, ela ficou apenas deitada sobre o dorso de Condx, conforme a
ave voava sem rumo.
– É muito tranquilo aqui em cima – murmurou ela tentando olhar para o sol, mas tendo
dificuldade pela luminosidade excessiva.
– Também muito solitário... – respondeu ele.
Sophie entendeu. Até um pássaro mágico era capaz de se sentir sozinho.
O mundo está mesmo perdido, pensou.
– Por que hoje cheguei pelo céu? – quis saber.
– Jhonx comentou com Sycreth que você estava curiosa sobre as criaturas mágicas. Ela pediu que eu
a levasse até a região das fadas. Algumas delas moram no Reino. A Rainha deve estar lá hoje para
recebê-la.
O pássaro que antes não falava agora fornecia detalhes necessários. Sophie sentia-se feliz por poder
encontrar com a avó e provavelmente ver fadas de verdade.
– Existem fadas que não moram aqui?
Condx fez uma curva à esquerda e acelerou o ritmo antes de responder.
– Elas têm uma dimensão própria e são de tantos tipos que eu mesmo não conheço todas.
– Nossa, existem espécies delas?
– Existem espécies de tudo, princesa. Acho que seria bom depois dar uma espiada na biblioteca real.
Por lá, há diversos livros sobre as criaturas mágicas do universo.
– E como você sabe disso?
– Quem disse que pássaros não sabem ler? Jhonx sempre me empresta alguns exemplares para que eu
possa dar uma olhada em meu ninho. Aquele onde você me encontrou no primeiro dia.
Sophie não acreditava que recebia sermão e indicações de uma ave. Tudo era diferente no Reino e,
às vezes, esquecia-se disso. Se, sendo um pássaro, Condx conhecia a biblioteca, ela, como governante,
precisava urgentemente visitá-la e saber mais sobre os seres fantásticos.
– Que tipo de fada vou encontrar? – quis saber.
– Está prestes a descobrir...
Fazendo uma manobra de cento e oitenta graus, ele os guiou para dentro de uma das florestas
douradas ao sul do Reino. A princesa nem imaginava que o lugar pudesse ser grande daquela forma,
afinal havia conhecido os Tirus, e eles não eram tantos assim. Talvez, com os seres mágicos espalhados
pelo lugar, a população fosse maior.
– Nunca vou me acostumar com as suas descidas, Condx.
A ave emitiu um grunhido que mais parecia uma risada.
Quando finalmente pousaram, Sophie foi orientada a andar até encontrar um círculo de pedra na
floresta. O pássaro explicou que era o local onde a Rainha teria uma audiência com Pys, a
representante das pixies locais. Sophie entendeu então serem as fadas do Reino.
Caminhou por poucos minutos, tomando cuidado para não tropeçar e receando prender a barra do
vestido em alguma raiz.
Chegou a uma espécie de círculo de pedras alaranjadas, mas não encontrou a avó e muito menos as
fadas. Achou estranho.
– Vovó... – gritou ela, tentando chamar a atenção da senhora.
Nenhuma resposta.
Foi até uma das pedras estranhas e, por curiosidade, alisou sua superfície para tentar identificá-la.
Não parecia uma pedra comum. Quando os dedos finos encostaram-se à superfície lisa, percebeu a
presença de uns cinquenta pares de asas ao seu redor, além de cinquenta pares de olhos a encarando.
Pequenos bichinhos um pouco maiores do que um beija-flor a olhavam com curiosidade, talvez por
nunca terem visto uma humana esfregando aquela pedra. Parada, tentando descobrir se era seguro se
mexer, Sophie tentou analisar possíveis rotas de fuga caso as criaturas resolvessem atacá-la.
As pixies tinham o corpo pequenino, porém todos os membros eram muito parecidos com os dos
humanos. Os cabelos delas eram de diversas tonalidades, mas todas usavam o mesmo corte curto.
Vestiam trajes simples de tecido verde quase da tonalidade do gramado, combinando com o material
dos ainda menores chapéus. A ruiva não acreditava que até as fadas daquele Reino usavam cartolas.
Estranhava o fato de os pássaros não precisarem cumprir com a exigência.
– Fique tranquila, elas são inofensivas – comentou a avó, saindo de trás de uma das árvores ali
perto.
Ao ouvirem a voz da Rainha, todas as fadas ao redor se afastaram, voando para as outras pedras e
começando a poli-las de alguma forma.
– O que elas estão fazendo? – perguntou Sophie.
A avó indicou para que elas se sentassem no centro do círculo misterioso.
– Estão polindo a nossa maior fonte de magia – explicou a Rainha. – Tirando a energia negativa ao
redor. Sempre soube que nossa dimensão era mágica porque essas pixies resolveram cuidar de nossa
magia.
– Eu não entendo...
– Um mundo precisa surgir de algum lugar ou alguma crença. Nós acreditamos que uma força
muito forte colocou este círculo de pedras aqui para atrair as pixies e outras criaturas. O equilíbrio
cósmico do Reino depende da vibração destas pedras, por isso precisam estar limpas.
– Você se lembra de quando os Tirus vieram para cá?
Sophie pôde perceber a confusão da avó com a sua pergunta. Talvez para ela fosse difícil responder
sobre o passado. A menina tinha dificuldade em assimilar que todo o Reino dependia de um círculo de
pedras poderosas, as quais fadas precisavam polir para que continuassem exalando poder.
Encarando novamente as fadas, teve a estranha sensação de já ter visto criaturas como aquelas e
também pedras muito parecidas. Tentou relembrar tudo que pudesse ser parecido com aquilo, porém,
nada vinha à mente.
– Minha neta, acho melhor deixarmos essa história para trás – recomendou.
Ela continuava a ver confusão no olhar da avó e perguntava-se até que ponto da história deles os
Tirus realmente sabiam. No começo, acreditava ter criado aquela dimensão. Naquele momento,
percebia que tudo existia antes dela, mas o que seria certo ou errado?
– Condx comentou que a senhora tem uma audiência com Pys.
Após a menina ter proferido o nome, uma das pixies parou de polir a pedra mais extrema e foi ao
encontro delas.
– Sophie, esta é a líder das pixies. Seu nome é Pys e, sem ela, não teríamos a energia necessária para
sobrevivermos.
A pequena criatura estendeu a mão para a princesa, que conseguiu cumprimentá-la ao estender o
dedinho. Agarrando-o com força, a líder pareceu feliz de conhecer a famosa herdeira do trono.
– Ela fala? – perguntou Sophie.
Uma voz agudíssima, lembrando sons desregulados por computadores, acabou se manifestando:
– É claro que eu falo! Aliás, eu também ouço!
A garota não sabia identificar se o tom bravo na fina voz era porque a julgara muda ou se algo
incomodava a pixie.
– O que está acontecendo, Pys? Você nunca me chamou antes – comentou a Rainha, o que deixou
Sophie ainda mais intrigada.
– Está acontecendo, senhora.
– Acontecendo o quê? – cortou a princesa.
A pequenina colocou as mãos na cintura e mostrou ainda mais raiva.
– Minhas companheiras e eu estamos trabalhando vinte e quatro horas nestas pedras, e elas parecem
nunca melhorar. Todos os dias, sentimos camadas e mais camadas de energia negativa soterrando-as e
precisamos esfregá-las constantemente. Não entendemos por que isso está acontecendo apesar do
retorno da princesa. Com a chegada dela, deveríamos ter menos trabalho. Ela nos traria equilíbrio, não
é?
Sophie não sabia o que dizer. De algum modo, sentia-se culpada. Não sabia como trazer mais
equilíbrio para uma dimensão inteira, mas julgava que o fato de os Tirus saberem de sua volta fosse
significativo o bastante.
– Vocês tentaram captar de onde estão vindo as energias negativas? – questionou Ny.
– É difícil localizar a fonte. Só sabemos que é externa, pois os dias têm sido lindos aqui no Reino,
totalmente ao contrário do que mostra a superfície das pedras.
– Será que estou afetando o Reino de alguma forma? – perguntou receosa a ruiva.
A Rainha ficou pensativa enquanto olhava as pobres fadas alisarem rapidamente as camadas.
– Sua presença no Reino será fundamental para nós, mas apenas quando completar as três etapas
dadas por Mama Lala – explicou a senhora.
A fada ficou ainda mais irritada com o comentário e falou gesticulando, esquecendo que se dirigia à
Rainha:
– Aquela velha bruxa está envolvida nisso? – gritou em um agudo constante – Só podia ter o dedo
podre daquela vidente de araque.
Sophie se assustou com a atitude da pixie. Ela continuava a condenar a senhora, dizendo palavras
horríveis.
– Controle-se, Pys! Não esqueça que está falando sobre a nossa guia espiritual e na presença da
realeza deste Reino.
– Mas... Ela fica interferindo no destino das pessoas, e sou eu que tenho que limpar a sujeira depois
– gaguejou a criatura.
Apesar de chateada com a situação, a Rainha pareceu compreender o desabafo da pequena.
Trabalhar sem parar devia ser desgastante.
– Sophie, você tem conseguido respostas para sua segunda etapa? – indagou a avó.
Sophie tinha medo de responder. Ela estava se esforçando para aprender e compreender tudo, mas
imaginava não ser o suficiente, afinal não tinha uma resposta.
– Eu sei que para os humanos eu já sou considerada louca.
Tanto a avó quanto a fada endureceram as expressões.
– Nós não gostamos dessa palavra por estas terras... – repreendeu-a a Rainha.
Pys balançou a cabeça, indignada. A fadinha, aparentemente, não tinha a melhor das impressões da
princesa.
– Mas foi essa a carta mostrada por Mama Lala. Estou na segunda etapa que ela propôs. Meu
dever é desvendar a carta do Louco.
A cada palavra dita, as fadinhas ao seu redor pareciam esfregar a superfície com mais força.
Minúsculas partículas brilhosas escorriam por suas pequenas faces, e Sophie teve pena.
– Nem sempre uma carta diz o que você é. Ela mostra o seu caminho. Nunca mais repita que é
louca...
– Eu disse que para os humanos eu já sou considerada louca – interrompeu Sophie, também
esquecendo que estava perante a soberana do Reino.
– Mas seu coração parece concordar com eles.
Sophie ficou desconcertada pela primeira vez naquela dimensão. Não podia negar que se sentia
perturbada, pois era difícil acreditar em sua sanidade em situações como aquela. Estava parada perante
dezenas de criaturas que diziam ser fadas e conversava com uma pessoa que sentia ser sua avó, apesar de
a mente lhe dizer que não era. Como tudo aquilo era possível? Deveria mesmo se considerar sã?
Teve vergonha de olhar para a avó e desejou voltar para o mundo humano.
Aquilo também nunca tinha acontecido.
19
D
eitara-se com as pernas para o alto, deixando o torso no sofá e a cabeça dependurada com os
cabelos arrastando ao chão. Posição estranha como tudo nela, mas Sophie sentia-se confortável
no canto da garagem ao lado de Mônica, ouvindo os meninos tocarem.
A colega parecia uma groupie, soltando gritinhos abafados a cada falsete do namorado, que tinha
metade de seu tamanho. A ruiva conseguia ver Léo segurar o riso toda vez que escutava ou via a amiga
se contorcer, empolgada. Ele e Sophie às vezes se perguntavam se ela deveria agir como a outra, contudo
ambos se repreendiam ao lembrar que eram apenas amigos e pelo menos estavam juntos, sob o mesmo
teto. A cada dia que passava, era mais raro Léo ver Sophie na escola, e dessa vez não era porque ela
estava fugindo, mas porque sua saúde na verdade não ia bem.
O estresse, a solidão e a falta de refeições regulares começavam a afetar Sophie, sempre a deixando
fraca demais para ir ao colégio. A visita ao psiquiatra também resultara em comprimidos para
depressão, os quais deveriam ajudá-la a sair daquele quadro. Pelo menos fora o que o doutor dissera,
mas seu corpo dizia o contrário. Apesar de continuar visitando o psicólogo, dia após dia Sophie
deixava de ser ela mesma. No começo, Laura e George acharam que era charme e só acreditaram na
gravidade de seu quadro quando certa manhã ela desmaiou.
O caso foi a fofoca da semana no colégio. Muitos comentavam que ela se desgastara no esforço
para vomitar tudo o que engolia e juravam tê-la escutado no banheiro em um dos intervalos. Outros
supunham que ela era viciada em cocaína, o que a deixara naquele estado de magreza. Mônica e Léo
perguntavam-se durante as aulas sobre como os outros alunos conseguiam ser cruéis a ponto de
acreditar em quaisquer daquelas mentiras. Ninguém percebia que em parte Sophie estava naquela
situação por culpa deles, do ambiente que a cercava.
Pelos posts na internet, a ruiva viu que até a antiga amiga a havia defendido em algumas discussões,
alegando que ela nunca induziria aquilo. Mas a lembrança de Anna só a fazia sentir-se mal. Recordava
o momento em que dançaram juntas pela última vez e como havia sido gostoso sentir o orgulho da
amiga.
– Eles são o máximo, não são? – perguntou Mônica de supetão, tirando-a de seus pensamentos. Os
olhos da amiga estavam brilhando e ela quase não prestava atenção à resposta. O importante para
Mônica era decorar cada letra cantada pelo namorado.
– São legais, sim... – respondeu Sophie, com a mente longe do ensaio.
Achava bacana que os novos amigos se empenhassem em tentar distraí-la. Sabia que a súbita
expressão cadavérica obtida nas últimas semanas assustava e que ela nunca havia sido a sensação de uma
festa, mas sempre pediam a opinião dela quanto ao repertório ou à maneira como conduziam as
músicas. Ela acabava se sentindo útil. Sentir-se envolta de música lhe fazia bem.
Desde que descobrira que sua energia atrapalhava a sinergia do Reino, não sabia controlar a forma
como aquilo a afetava. Não conseguia se fazer feliz e sentia-se ainda mais miserável por estar
prejudicando seus queridos Tirus.
Por muitas noites, desejou o colo da avó, os conselhos de Sycreth, o conforto de Phix e as melodias
de Jhonx, mas parecia cada vez mais complicado aparecer no mundo mágico. Eles esperavam que ela
conseguisse passar pela etapa do Louco, mesmo já estando na pior situação de sua vida. Não tinha
como surtar mais e não sabia como superar aquilo.
– Ei, Sophie! – gritou Léo do outro lado da garagem – Sabe essa música? Um, dois, três e já.
O garoto começou a assobiar ao ritmo de batidas em uma espécie de caixa de madeira. Os amigos
da banda, normalmente acostumados com rock, acabaram entrando no clima, pegando um antigo
chocalho jogado de lado para dar o ritmo.
– Garota, eu nunca amei ninguém como você – cantou ele, surpreendendo-a.
O ritmo continuou invadindo todos ao redor. Até o baterista, que fazia o tipo caladão, batia a
botina no chão no compasso da música.
– Vamos lá, Sophie! Cante com a gente – incentivou o garoto.
Ela ficou contente e confusa com a surpresa. Gostava da letra, e o som parecia contaminá-la na voz
de Léo e Hugo.
– Alabama, Arkansas. I do love my ma and pa. Not the way that I do love you – reiniciou o rapaz, tentando
encorajá-la a cantar.
Eu amo minha mãe e meu pai. Não do jeito como amo você, pensou Sophie, traduzindo a música. Será?,
perguntou-se, tomando coragem para cantar também.
Reunindo as únicas forças que lhe restavam, ela saiu daquela posição engraçada e, do outro lado,
completou a canção:
– Holy, Moley, me, oh my. You’re the apple of my eye. Boy, I’ve never loved one like you.
Sophie sorriu pensando no significado daqueles versos. Você é o menino dos meus olhos. Garoto, eu nunca
amei ninguém como amo você.
Ao seu lado, Mônica parecia perdida. Ouvira dizer que Sophie tinha uma voz bonita, mas, até
aquele momento, não a havia escutado.
Todos perceberam que ela trocou a letra para “garoto”. Entretanto, a sintonia era fantástica e eles
apenas se importavam com a magia que faziam juntos. Até Mônica entrou na harmonia e, se alguém de
fora tivesse filmado, a cena teria sido daquelas que as pessoas ficam encantadas ao assistir na internet.
Quando terminaram a canção, Hugo sinalizou que, por aquele dia, já estava bom e indicou para os
amigos o acompanharem, deixando Léo e Sophie sozinhos.
– Sua voz é incrível – comentou ele feliz, jogando-se ao lado dela no sofá. – Você é incrível.
A exaltação fez as pernas da garota bambearem. Não era todo dia que uma menina como ela ouvia
um elogio daqueles de um rapaz como ele.
– Não sei como consegue dizer isso... – respondeu ela, sem graça.
– Sendo sincero.
A reposta a fez sorrir.
Léo parecia cansado do ensaio, mesmo que visivelmente satisfeito com a noite. Remetendo-se a um
dos primeiros encontros deles, o garoto encostou a cabeça ao lado dela e fechou os olhos, aparentando
estar muito longe dali.
Sophie se viu desejando levá-lo para o Reino.
– Você tem se cuidado? – perguntou ele com receio.
– Sempre...
– Estou falando sério.
– Eu também. E não estou fazendo voz de sonsa – insistiu ela.
Ele não pareceu compreender totalmente, porém entendeu que ela estava sendo sincera. O garoto
não acreditava nos rumores que já ouvira sobre Sophie desde o primeiro dia em que pisara no novo
colégio.
Algo nela o encantava.
Talvez fosse a maneira como a menina olhava o mundo, parecendo duvidar de tudo. O modo como
apertava os dedos e mordia os lábios quando se sentia ameaçada. Ou como gostava de cantar sozinha e
ler deitada, algo diferente de noventa por cento da escola. Também admirava a força dela para
continuar aparecendo em um lugar que a condenava sem motivo algum. Podia ser também porque
amava os cachos avermelhados que caíam no rosto delicado e as roupas despojadas.
Mulheres como Sophie eram difíceis de encontrar. Desde que Léo a vira, tinha decidido que se
afastaria somente se ela lhe pedisse. Mesmo assim, teria dificuldades. Vê-la sofrer daquele jeito cortava
seu coração. Tentava animá-la ou quem sabe chegar a conquistar seu amor, mas a cada dia que passava
via o brilho da doce garota evaporar, e ela se transformava em um fantasma. Ainda que fosse um
fantasma, ele estaria ao lado dela.
– Pedi a uma garota da sua sala as anotações dos dias que você faltou. Tirei cópias pra você poder
estudar.
Como ele consegue ser tão perfeito?
– Não sei como agradecer...
– Se empenhando e tomando cuidado com sua saúde. Isso que importa.
A jovem tentou sorrir, mas não conseguiu.
– Você acha que estou fazendo isso comigo mesma? – perguntou ela, colocando-o em uma situação
difícil.
– Acho que existem doenças que tomam nosso corpo e, às vezes, não sabemos o que fazer com elas.
O importante é descobrir como lutar – respondeu.
Léo era mesmo perfeito.
Sophie encostou a cabeça no ombro dele e ficaram em silêncio. Talvez as coisas estivessem
melhorando.
A cabeça pesava a ponto de ter vontade de tirá-la do pescoço para nunca mais sentir tal incômodo. Os
olhos ardiam como se não existissem mais lágrimas capazes de suavizar o contato das pálpebras e da
íris. Ela sentia o estômago arder mais do que o habitual, e o remédio indicado pelo médico a deixava
grogue de uma forma não divertida. Não estava com sono, mas parar em pé era uma tarefa
incrivelmente difícil.
– Deve haver algum outro problema com você... – resmungou a mãe, e Sophie não soube se ela devia
ter ouvido o comentário ou não.
Tinham voltado da segunda visita ao psiquiatra, e ele continuava a prescrever-lhe os mesmos
remédios calmantes e antidepressivos. Apesar de o doutor indicar que o caso dela era claro e não havia
nada físico envolvido no quadro, Laura convenceu George a marcar uma consulta para a filha com um
clínico geral. A vontade dela era levá-la a um gastroenterologista, mas sabia que só mencionar o assunto
deixaria Sophie ainda mais estressada.
Os exames feitos nas consultas não apontaram nada mais grave. O estômago da garota andava
machucado, contudo nada que não pudesse ser curado com um simples remédio. O clínico reforçou
que o problema estava no emocional dela e que o corpo apenas refletia a confusão da garota.
– Eu queria conseguir te ajudar... – disse Laura mais uma vez no carro, enquanto se dirigiam para o
consultório do dr. David. – Se eu pudesse carregar a sua dor.
Sophie nunca havia escutado palavras como aquelas dos lábios da mãe. Ficou tocada pela
manifestação de carinho. Ao mesmo tempo, sentiu o desespero na voz da mulher que a educara. Era
outro ser que dependia dela, e a ruiva não sabia mais como fazer todas aquelas pessoas felizes.
Quando entrou no consultório do psicólogo, estava esgotada física e mentalmente. Sua vontade era
a de desentalar todas as coisas engasgadas durante todos aqueles meses. Ela já o visitava havia um bom
tempo e, mesmo gostando do doutor, não sentia resultados. Acreditava que boa parte daquilo devia-se
ao fato de ela não ser honesta.
– Eu sou a princesa de um Reino – soltou Sophie, caminhando até o divã. – E minha doença está
prejudicando meus súditos.
O psicólogo podia ter duas reações ao comunicado: rir, achando que era uma brincadeira, ou
interná-la por considerá-la transtornada.
Para a surpresa da jovem, ele apenas perguntou:
– Do Reino onde as pessoas te amam?
Seu desabafo estava repleto de receio, porém ela chegara a um limite impossível de ser prolongado.
– Visito outra dimensão há meses e lá converso com essas pessoas que me conhecem. Elas me
consideram sua princesa, e minha avó, atual Rainha, está me treinando para assumir o trono.
Ele poderia facilmente me levar para um hospício em três... dois... um...
O homem continuava a olhá-la. Por respeito a ela, sem a prancheta.
– Essas pessoas sabem que você não é do mundo deles? – continuou o dr. David, curioso.
– Eles sabem que estou na Terra, mas na verdade eu também não sou deste mundo. Tenho a mesma
origem que eles...
– E que origem é essa?
Ela não sabia responder.
Tinha consciência de que o lugar começara com o círculo de pedras alaranjadas e as pixies, e que
aqueles seres tinham dado início à construção da dimensão. Ainda não entendia o seu papel na história,
somente compreendia seu valor para todas aquelas criaturas.
– Uma vez, fiz uma pergunta e não acreditei na sua resposta. Posso fazê-la novamente? – pediu à
garota.
Sophie não fez objeção.
– Existem seres mágicos nessa outra dimensão?
A dor de cabeça e os olhos ardentes pareceram piorar em questão de segundos. Ela sabia o quanto
estava se arriscando em compartilhar tudo aquilo, mas o momento tinha que ser aquele.
– Sim... – respondeu. – Existem diversos deles.
Ele a olhou pensativo. Ela não sabia se gostava disso. Na verdade, teve vontade de começar a rir e
dizer que era mentira, mas não mentiria mais para si própria.
– E quando não está nesse Reino? Consegue ver criaturas mágicas?
Aquela era uma boa pergunta.
– Quando ando pelos corredores do colégio, consigo ver as pessoas pelas verdadeiras criaturas que
elas são. Muitas me lembram seres do pântano.
– Você já pensou no que vai acontecer com a sua vida se decidir ficar para sempre nesse Reino? –
indagou ele.
Sophie sempre pensava naquela questão. Certos dias, achava que sua partida não afetaria em nada a
sua vida nem a dos outros. Vinha machucando tanto os pais que poderia acabar sendo um alívio. Por
outro lado, em momentos como os que passava ao lado de Léo, sentia que seria difícil lidar com a
partida final.
– As pessoas vão precisar entender. Os Tirus precisam de mim.
– Os Tirus são o povo desse Reino?
Ela aquiesceu.
– E seus pais e amigos não precisam de você?
A garota sentiu um pouco de dor na indagação.
– Em geral, eu preciso mais deles do que eles de mim.
O terapeuta tinha muita vontade de anotar ou gravar aquela conversa. Em seus muitos anos de
profissão, já vira de tudo. Sophie falava com tanta convicção sobre o lugar mágico que ele ficava ainda
mais encantado com a mente humana. Ela era um caso especial.
– Quando foi a sua primeira visita a esse local?
Ela sentiu vergonha de revelar.
– Na noite em que fui humilhada pela minha ex-melhor amiga em uma festa. Foi quando fui levada
para o Reino.
– A mesma amiga que causou o incidente que fez você gritar e motivou sua mãe a trazê-la aqui?
Bingo. A mesma desgraçada que havia acabado com qualquer rastro de humanidade existente nela.
Sophie apenas concordou com a cabeça, deixando o psicólogo refletir.
– Essas criaturas que te amam não estariam agora suprindo a falta que você sente dessa menina?
Sophie franziu a sobrancelha com desdém.
– Eles me amam muito mais do que ela jamais amou...
Ela começou a perceber que ele usava a psicologia para tentar explicar o suposto surto dela. A ruiva
sabia que parecia ser um delírio. Mas seu Reino não era. Não podia ser.
– Eu preciso passar pela etapa do Louco e não consigo – comentou, deixando o dr. David ainda
mais confuso.
– Por isso não tem dormido direito?
– Eles querem que eu desvende uma carta que não consigo entender.
– E se você não fizer o que eles pedem?
Sophie suspirou e encarou o psicólogo:
– Continuarei sendo infeliz... dentro deste consultório e neste mundo.
20
A
pesar de ser boa aluna e manter notas exemplares, Sophie sentia que começava a ficar para trás na
turma, e até os professores já suspeitavam que a causa da mudança em seu desempenho eram
problemas mais profundos.
Praticamente alternava os dias em que ia à escola. Quando não ia, Léo levava as anotações do dia
para que ela pelo menos se mantivesse informada. Contudo, ela era o tipo de aluna que gostava de ouvir
os professores e sentia dificuldades naquele aprendizado quase autodidata. Também se questionava
sobre quem devia ser a alma boa que ajudava o garoto naquela empreitada.
Ao contrário dos seus colegas, os mestres ainda viam futuro na aluna e ofereciam ajuda quando
podiam. Não abonavam todas as faltas, mas tentavam corrigir suas lições das aulas não frequentadas,
que Léo lhes entregava. Para eles, era um desperdício não aproveitar uma das mentes mais ativas do
colégio.
Os antidepressivos não pareciam fazer efeito e só a deixavam ainda mais mal-humorada ou
distraída. Em algumas das tardes em que Léo a visitava, perdia-se nas histórias que ele contava por não
conseguir se concentrar. Nem a internet nem os livros de literatura fantástica conseguiam prender sua
atenção. Temia passar os últimos dias na Terra como um ser vegetativo. Não ouvira mais sobre o Reino
nem recebera uma ligação de urgência do psicólogo. Achava estranho o homem não ter surtado com
tudo o que ouvira. A reação dele ainda a deixava intrigada.
Sophie estava deitada no escuro às três horas da tarde. Ela passara a noite, a manhã e quase a tarde
toda acesa, sem descansar. A escuridão pelo menos diminuía a dor de cabeça.
Ouviu uma batida na porta e estranhou. Já havia aceitado tomar uma sopa de legumes no almoço.
– Léo está aqui – disse a mãe do outro lado da porta.
Laura sempre mostrava a empolgação na voz quando o garoto os visitava. De início, George não
havia concordado muito de Léo passar as tardes trancado no quarto de Sophie, mas, no final, acabou
cedendo ao ver que ao menos uma pessoa da idade dela parecia entendê-la.
O menino entrou com o celular na mão para iluminar o caminho.
– Virou criatura da noite? – indagou ele, tentando ser divertido.
– Combina mais comigo.
– Então posso fazer um topete e passar pó de arroz na cara.
Ele sempre tinha uma resposta pronta, mas nem sempre isso surtia efeito nela.
– Trouxe mais tarefas, mas ouvi dizer que você e seus pais precisarão ir até a escola para falar com a
megera...
Sophie tinha ouvido aquela conversa na noite anterior. Seu número de faltas não podia mais ser
ignorado, apesar das boas notas. A diretora alegava que não era possível fingir que a educação dela
estava acontecendo a distância e queria uma reunião.
– Vou adorar reencontrá-la – disse ela, sarcástica.
– Ah, agora eu conheço a voz de sonsa – completou Léo, bem-humorado.
A expressão fez seu coração apertar mais um pouco. Desde que conversara com o psicólogo sobre
Anna, começou a sentir um pouco de falta dela e, ao ouvir aquilo, a sensação piorava.
O garoto pediu por espaço e deitou-se ao lado dela, um tanto confortável demais. Sophie nunca
imaginou que um dia teria Léo ali, deitado em sua cama. O pior era que ela estava com o cabelo todo
embaraçado e ainda com a roupa do dia anterior. Ele pareceu não ligar, mantendo o mesmo sorriso
iluminado pela luz incandescente do celular.
– Posso te contar um segredo? – perguntou ele de repente.
O normal para ela costumava ser falar de si própria durante as conversas ou então de colegas da
escola. O fato de ele querer contar algo a animava um pouco.
– Meu pai aceitou a proposta de uma empresa concorrente aqui da cidade – começou a contar. –
Além de oferecerem um salário irrecusável, por contrato ele não terá mais obrigação de se mudar.
Sophie conseguia entender a felicidade do garoto.
– Agora a banda vai deslanchar... – comentou ela. – Mesmo com um guitarrista com o seu visual.
O sorriso dele se abriu um pouco mais. A música fazia dele uma pessoa melhor.
– Logo vamos ser ricos e famosos! Podemos até começar uma turnê – brincou Léo.
– Pensei que o objetivo fosse criar raízes.
O comentário desmanchou o sorriso. Ele tinha consciência de que ela não fizera por mal, mas não
entendia por que ela nunca podia simplesmente ficar feliz por ele.
– Estraguei tudo pra variar, né?
Ele conseguia ver que ela apertava o cobertor que a escondia quase até a cabeça.
– Tudo não. Só um pouco.
Tenho tanta sorte, pensou.
– Acho melhor eu ir – disse ele, levantando-se.
Sophie tinha vontade de pedir desculpas e falar para ele ficar mais um pouco. Talvez eles
conseguissem assistir a algum filme juntos. Contudo, ela nada disse ou sugeriu, apenas observou o
menino lhe dar um beijo na testa e sair pela porta do quarto, deixando-a novamente na escuridão.
Quando ouviu a melodia das flores ao seu redor, levantou do gramado e saiu correndo pela planície,
rindo e rodopiando por estar novamente em casa.
Alguns habitantes passaram ali perto e a cumprimentaram, pedindo abraços e beijos na testa. Ela os
retribuía de bom grado, em nada lembrando a pessoa que estava havia quase vinte e quatro horas
escondida sob um cobertor velho. A troca de energia a recarregava como se estivesse ligada a uma
tomada de amor puro.
Na correria desenfreada, ela ria à toa. O importante era que veria sua avó. Jhonx andava alguns
metros à frente, e Sophie fez sinal para o gato falante esperar. Iriam juntos ao castelo.
– Sentimos sua falta, alteza! – comentou o gato ao reverenciá-la.
– Posso dizer o mesmo.
Quis se olhar no espelho para saber se as bochechas afundadas e o pulso fino haviam sidos
preenchidos ao cruzar as barreiras das dimensões. Sentia-se saudável e atraente. Aquilo era cada vez
mais raro no mundo humano.
– Pronta para encontrá-los? – perguntou Jhonx.
Sophie pegou a pata do gato que não segurava o cetro, e juntos caminharam pela passarela até o
portão do castelo de cores pálidas.
Foram recebidos por Sycreth. A jovem pareceu surpresa ao vê-la, e Sophie a princípio não entendeu
o motivo do espanto.
– Sua alteza está bem! – comemorou a Guardiã.
– Claro que estou! Pensei que a senhorita soubesse todos os segredos do Reino. Não sabia de minha
vinda?
A felicidade da jovem sumiu de seu semblante.
– A Rainha conversará com você, princesa. – Sycreth tentou contornar a situação. – Mas sua figura
será para sempre um grande ponto de interrogação até mesmo para mim.
Aquilo foi um alívio, mas também a deixou preocupada.
– Este dia merece uma comemoração – anunciou o gato, chamando o Ministro para organizar uma
festa a céu aberto.
O homem se aproximou caminhando com sua velocidade própria, típica dos hiperativos.
– Este mundo não é o mesmo sem você.
Sophie sentiu vontade de revelar que sua ausência vinha do fato de não ouvir mais o chamado daquele
lugar. Eram eles que não a chamavam mais para atravessar o véu. Mal sabia como tinha aparecido ali
daquela vez. Provavelmente dormira depois que Léo havia saído de seu quarto.
– E onde está minha avó?
Todos lhe indicaram a sala dos tronos, e a comitiva se encaminhou para lá. Quando chegou, pôde
sentir a energia de longe. O poder da Rainha dos Tirus era tamanho, que as pessoas se sentiam
contaminadas pela presença da figura divina sentada no trono de pétalas.
– Minha neta – disse a voz experiente do outro lado do salão. – Minha herdeira.
A princesa correu, arrastando a cauda de tules esverdeados pelo caminho e deixando faíscas de
energia pelo ar.
– Você parece bem – suspirou a mulher.
– Por que todos estão dizendo isso?
A Rainha fez sinal para que Sophie se sentasse no outro trono de pétalas. Os presentes se
acomodaram nos devidos lugares. Um espantalho com touca e avental de cozinheiro aproveitou a
ocasião para trazer uma bandeja com aperitivos. O apetite de Sophie se abriu e ela abocanhou diversos
biscoitos.
– Peço que parem qualquer comemoração pela chegada de Sophie – ordenou a senhora para o
Ministro de repente. – Mesmo sabendo o quanto é difícil emitir uma ordem desse tipo, ainda não é o
momento de celebrarmos a vinda de minha neta.
– O que está acontecendo, vó?
Sycreth a observava com um olhar de consolo.
– Minha querida, você não desvendou a carta do Louco e está longe da carta da Morte. Não
podemos nos iludir sobre você estar pronta para governar se não cumprir o destino mostrado por
Mama Lala.
Aquilo a pegou de surpresa.
– Eu não estou iludindo ninguém – disse Sophie com rispidez, lembrando sua versão mortal. – E
estou começando a concordar com Pys que Mama Lala só tem me prejudicado.
Os presentes cobriram as bocas escancaradas, em murmúrios teatrais. Com exceção da líder das
pixies, nenhuma outra criatura em todo o Reino desafiava a palavra da vidente.
– Sei que a respeitam, mas parece que eu não estou recebendo mais o respeito necessário. Estou
sendo impedida de vir para cá todas as noites. E, quando consigo, fazem parecer que é minha culpa.
– Porque é – cortou a avó. – Você precisa desvendar as cartas. Tudo só fará sentido se cumprir seu
destino já traçado.
– MAS EU NÃO SEI FAZER ISSO! – exclamou a princesa.
Silêncio.
Foi quase como se aquele tivesse sido o primeiro grito de raiva presenciado pelos Tirus em toda a
sua existência. Sophie observou as expressões sensibilizadas das pessoas ao redor e sentiu-se
envergonhada, mesmo acreditando ter razão.
– Você nos deve uma desculpa – pronunciou-se a Rainha com um semblante diferente do habitual.
Assunto delicado para Sophie. Ela nunca fora muito de se desculpar. Estava brigada com a melhor
amiga e com os pais, magoara Léo, enfurecera a diretora, enlouquecera o psicólogo e, mesmo assim, não
tinha coragem de falar com nenhum deles sobre como sentia culpa pela dor coletiva.
Sentada naquele trono e olhando para as pessoas que confiavam nela, ela teve que admitir que
precisava fazer aquele gesto.
– Sei que exagerei e peço desculpas. Mas nenhum de vocês sabe como estão sendo meus dias fora
daqui. Rezo todas as noites para finalmente ser trazida de vez para cá. Mas essas malditas cartas não
me deixam.
– As cartas existem para uma lição de vida. Parece difícil, eu sei, mas logo verá que tudo é para o
seu bem e para o bem de todos nós.
A princesa sentiu que aquela seria outra visita rápida ao mundo tão desejado por ela. Não conseguia
acreditar que precisaria acordar na cama de sempre. Sozinha como sempre. Arriscou olhar para a
monarca mais uma vez antes de se sentir sugada e, quando abriu os olhos no quarto do mundo humano,
lágrimas involuntárias escorreram. Ouviu barulho do outro lado da porta e imaginou que a mãe tentava
ouvir seu sofrimento. Machucava todos ao seu redor, não apenas no mundo dos humanos.
Também não parava de machucar os Tirus.
– E se eu falhar, Rainha? – perguntou ela antes de voltar à realidade, utilizando o tratamento oficial
no lugar do familiar. – E se, em vez de vencer, eu cair?
– Então todos nós cairemos com você.
21
S
ophie chegou ao colégio em horário de aula e agradeceu a todo o panteão de deuses porque seus
colegas já estavam dentro das salas. Não queria ser vista com os pais naquele ambiente que
desprezava e se recriminava novamente pela falta de cuidado com a própria aparência quando estava
em casa. No reflexo de uma porta, visualizou a juba ruiva descontrolada e o moletom completamente
amassado com a inscrição: “Merlin é nosso rei”.
Eu nem sabia que era possível amassar esse tipo de roupa.
Ao caminhar pelos corredores, sentiu os pais nervosos ao seu lado. Eles tentavam disfarçar com
breves comentários sobre o recinto, mas nada adiantava. Suas roupas destoavam de maneira gritante das
de Sophie: pareciam mais estar indo a uma entrevista de emprego do que à sala de uma diretora
carrasca. Laura agia como se fosse, afinal, naquele dia descobririam se a filha continuaria na instituição
ou se seria afastada por seus problemas pessoais. Talvez até expulsa por ser um mau exemplo.
Sou ou não sou uma bad girl?, pensou.
Laura tinha dificuldade para lidar com o assunto. A família não conseguia compreender como tudo
havia chegado àquele estágio. Sophie era uma menina como outra qualquer. Passava por dificuldades
como qualquer um, mas sua necessidade de endireitar a vida acabara colocando tudo de cabeça para
baixo.
– Responda apenas o necessário – orientou a mãe, ainda caminhando a passos duros. – Esta será
uma conversa amigável, então não temos o que temer.
A falsa esperança da mãe acabou fazendo as duas suspirarem. A diretora queria usá-la como
exemplo, provavelmente para mostrar aos outros pais a necessidade de controlar os filhos e seguir toda
a “cartilha moral” de um programa para menores de dezoito anos que queria implementar. Para Sophie,
o engraçado era ser usada para uma campanha da qual não fazia parte. Os comprimidos tomados
diariamente tinham sido prescritos pelo psiquiatra, que os julgara necessário em seu caso. Ela não havia
pedido por nada daquilo. Apenas tinha consciência de que existia um Reino onde era aceita e pretendia
viver.
– Se precisar fazer uma pausa durante a conversa, é só nos avisar – completou o pai, aparentemente
receoso. – Estamos aqui para ajudá-la no que for preciso.
Sua explosão de antes, motivada por não ter contado com o apoio e a ajuda da mãe perante a
diretora, parecia tê-lo assustado. Sophie evitou dizer qualquer palavra. Pretendia ficar quieta durante
todo o processo.
No trajeto até a sala principal, evitou olhar para qualquer pessoa. Talvez uma delas pudesse
reconhecê-la e um falatório sobre sua presença começasse durante o intervalo, e muitos se questionariam
se ela seria expulsa do colégio. Precisava saber da resposta antes de enfrentar os burburinhos.
– Vamos lá – comentou George quando entraram no gabinete da diretora.
O escritório era simples e sóbrio. Havia uma grande mesa de madeira cheia de pilhas de papel e
pastas amarronzadas, com duas cadeiras pretas bem desgastadas para os convidados e uma poltrona
executiva acolchoada do outro lado para a diretora. A secretária tratou de acrescentar uma cadeira
mais simples para Sophie se sentar, ainda mais desgastada do que as outras.
Margareth mantinha o ar de soberba de sempre. Vestia uma saia escura até o joelho, sapatos baixos
e blusa social branca por dentro da saia. Usava o cabelo em um coque apertado, o que dava um ar
ainda mais sério à sua aparência. Ela se forçou a sorrir para os pais de Sophie, mas não conseguiu
estender tal gentileza para a ruiva.
O que será que eu tanto fiz para essa megera?, pensou.
– Podemos nos sentar – indicou a mulher, enquanto todos se acomodavam nas cadeiras.
Sophie mantinha a cabeça baixa e encobria as mãos com a manga do moletom para evitar machucar
os dedos pela tensão. A sensação de apertar o tecido fofo era boa.
– Estamos aqui hoje para conversar sobre a situação escolar de Sophie. Fico feliz que tenham
aceitado meu convite.
– Nós agradecemos sua atenção – disse o pai, segurando a mão da esposa. – Estamos nos
esforçando para tudo dar certo.
As palavras reviravam o estômago da garota. Aquela conversa fazia parecer que ela era uma
delinquente, e isso a magoava. Aquele estava sendo o ano mais louco de toda a sua vida.
– Compreendo que estejam se esforçando, e o colégio tem dado importância a esse assunto, mas há
um momento em que nós educadores precisamos interferir.
Ela está de sacanagem comigo?, resmungou para si mesma.
Sophie sabia que ninguém tinha cuidado ou carinho com nada e a diretora a atazanava havia muito
tempo. Tudo desandara a partir de uma ligação dela para os pais, na qual afirmava que a considerava
anoréxica. Após começar a tomar os remédios, ficara realmente abaixo do peso de uma forma
assustadora, mas antes era uma pessoa normal conforme sua estrutura física.
– O que podem me dizer do quadro médico de Sophie? – continuou a mulher.
Os pais se entreolharam, sem saber quem começaria o discurso.
– Nossa filha vem passando por um período difícil e acabou sendo diagnosticada com um quadro
de depressão. Ela já está consultando um psicólogo há alguns meses e começou um tratamento
psiquiátrico há algumas semanas. Estamos nos acostumando com as mudanças provocadas pelos
remédios, por isso as faltas dela, mas temos acompanhado seus estudos. Pelo que observamos, ela
continua sendo uma das melhores alunas, apesar de uma queda nas médias – respondeu a mãe.
– Mas ela não tem frequentado as aulas para receber os exercícios, correto? – perguntou a diretora.
– Pelo que fui informada, o aluno Leonardo Gomez é o responsável por levar e trazer esse material.
Percebendo o ponto delicado envolvendo o garoto, o pai de Sophie achou melhor tomar a dianteira
naquela questão.
– Leonardo tem sido um grande amigo para Sophie e nossa família. Os professores aceitaram falar
com ele no término de cada aula, e assim conseguimos que, mesmo indisposta, ela não perca o material.
Sophie levantou por alguns segundos o olhar antes fixo no tênis laranja. Viu a senhora esboçar um
sorriso duvidoso.
– Os senhores compreendem que não podemos enviar lições de casa para todos os alunos que se
sentirem indispostos, não é? Nós temos um limite de tolerância para o número de faltas de um aluno,
no caso de Sophie já mais do que extrapolado.
A garota viu a mãe ao seu lado apertar os dedos da forma como ela mesma costumava fazer e, por
alguns segundos, se sentiu amada.
– A indisposição dela é grave – argumentou Laura.
– O nosso regulamento também. Daqui a uma semana, completa-se um mês que Sophie não vem ao
colégio.
Os pais novamente se entreolharam, constrangidos. A situação era absurda, contudo precisavam
enfrentar a má vontade da diretora.
– Nós trouxemos atestados e uma carta de cada profissional que está trabalhando com ela.
– Nenhum nutricionista?
Mais uma vez.
– Os médicos ainda não a encaminharam para um nutricionista.
– Então talvez eu devesse lhes indicar outros médicos.
Ao ouvir aquilo, Laura trincou os dentes. Era difícil engolir tudo, porém o destino acadêmico da
filha estava em risco e seria melhor para todos se ela mudasse de escola apenas no ano seguinte.
– A senhora saberia nos orientar sobre como devemos agir a partir de agora? – questionou George
com um tom mais alterado.
A mulher levantou-se da poltrona e começou a vasculhar alguns papéis na mesa. Quando encontrou
o desejado, estendeu-o para os pais. De soslaio, a jovem conseguiu acompanhar a leitura e entendeu:
estavam trancando seu ano escolar para ela retornar apenas quando estivesse melhor, podendo também
repetir o ano. Não acreditava que aquilo estava acontecendo, mas, no fundo, preferia ficar em casa. Era
mais um ciclo de sua vida terrestre que chegava ao fim.
A família e a diretora discutiram ainda por mais dez minutos tentando encontrar outra solução. No
final, saíram com o mesmo resultado e com George ameaçando processar o colégio. Como advogado,
sabia que a escola estava agindo ilegalmente ao alegar que a anorexia, a depressão e os acessos de raiva,
somados à falta de frequência, não podiam mais afetar os outros alunos.
Queria sumir, pensou Sophie tentando segurar as lágrimas ao ver a tristeza dos pais.
Desejava com todas as forças poder fugir para o Reino. A caminhada da sala da diretora até o carro
pareceu-lhe interminável e podia contar os segundos para o intervalo. Seria horrível encontrar Léo ou
Mônica no corredor.
Mas o que encontrou foi pior.
– Anna... – sussurrou Laura ao ver a morena sair do banheiro feminino na hora em que o sinal tocou
e o lugar começou a encher.
Por um instante, as jovens se encararam. Nos olhos de Sophie, havia mágoa e raiva. Nos de Anna,
tristeza e pena. Muito foi dito naquela troca de olhares e, apesar de a cena ter feito a ruiva parar, Laura
sentiu que precisava impulsionar a filha a continuar andando. O ar pareceu congelar quando a família
cruzou seu caminho e todos passaram reto sem cumprimentá-la.
Do carro, George achou que era seu dever ligar para o celular de Léo e avisá-lo da decisão do
colégio, antes que o rapaz pudesse ouvir a notícia de outras pessoas. Sophie ficou deitada no banco
traseiro com os pés no vidro, apenas escutando. A mãe tomou o volante, e ela achou melhor não esperar
pela vinda do garoto. Na conversa, ouviu o pai convidá-lo para jantar e depois perguntar a ela se queria
falar com Léo, mas Sophie já tinha fechado os olhos, fingindo não estar mais naquele mundo.
Laura e George a observaram comer pedaços de carne e legumes. Tinham decidido no caminho que
perguntariam ao dr. David se ele conhecia algum nutricionista competente que ele pudesse indicar. Não
conseguiam mais ignorar a possibilidade de ela ter desenvolvido algum tipo de distúrbio alimentar.
Sophie ainda não voltara ao psicólogo desde que revelara sobre o Reino. Por conta dos novos
acontecimentos, a mãe achou melhor pelo menos colocar os dois ao telefone antes da próxima consulta.
Ao menos com ela, Sophie não podia reclamar de falta de atenção. Laura havia abandonado até mesmo
o clube das mães para se dedicar à filha. Todos queriam que seu quadro melhorasse. Todos menos
noventa por cento de sua escola.
E ela.
Em seu íntimo, temia que, se melhorasse, não teria mais coragem de ir de vez para o mundo mágico.
Para ela, era melhor culpar os humanos por toda a sua miséria.
Se eu morresse, ninguém se importaria tanto. Até meus pais se acostumariam a viver sem mim, pensou enquanto
aguardava o psicólogo na linha.
– Olá, Sophie! Sua mãe adiantou para a minha secretária o assunto. Estou vendo aqui se consigo
adiantar sua consulta esta semana.
– Ótimo... – disse ela com sua voz de sonsa.
– Então, pelo que eu entendi, teremos mais tempo para trabalhar seus sentimentos e nossos desafios?
– Gostei do otimismo, doutor. Vou anotar isso – ironizou a garota.
O psicólogo suspirou do outro lado. Tinha criado uma ligação especial com a garota.
– Eu acho que esse tempo vai ser bom para você. Sempre achei positivo para um jovem poder se
afastar um pouco do mundo para, quem sabe, conseguir se encontrar. Qual o problema de ficar seis
meses atrasada nos estudos, se puder melhorar toda a sua vida?
Havia lógica no argumento dele.
– Eu queria me afastar para sempre.
– Não é possível dormir para sempre, Sophie – acrescentou o psicólogo, para sobressalto dela. –
Nem tudo o que queremos este mundo nos dá.
– Ei, você está roubando as minhas frases! – protestou ela, mais animada.
– É a vantagem de se anotar as coisas.
Era difícil admitir, mas ela também gostava dele. Só não gostava da profissão dele e de ser o objeto
de suas anotações.
– Mas eu tenho um mundo em que as pessoas me dão o que eu quiser, doutor.
– Então peça a eles um espaço na sua agenda para nos encontrarmos em breve.
Sophie desligou. Algo ficava muito claro para ela. A carta do Louco se revelara por meio das
palavras dele, como em um passe de mágica.
Não é possível dormir para sempre, Sophie.
Era possível, sim. Ela precisava dormir para sempre, e havia uma coisa que pessoas consideradas
loucas faziam para atingir esse objetivo.
No quarto, sozinha, e com apenas a luminosidade do dia claro filtrada pelo vidro fechado da janela,
ela caminhou até o armário e pegou o pequeno retângulo de plástico azul que guardara ali.
Olhou para os quatro compartimentos contendo diferentes pílulas de tons claros. Aqueles eram os
seus comprimidos mensais. A mãe tinha acabado de abastecer o porta-remédios. Permaneceu por longos
minutos segurando o punhado de pontos arredondados na palma rosada, pensando se com aquilo teria
paz. Esqueceu os pais, Léo, os médicos e os colegas. Esqueceu que em algumas horas receberia visita e
que iriam querer vê-la acordada.
Ela não queria ficar acordada. Desejava apenas romper as linhas que a amarravam.
Você pode se sentir abandonada e, não resistindo ao sentimento, procurar uma forma de repousar com uma inocência
irresponsável, dissera Mônica sobre a carta do Louco.
Chegava o momento de repousar. Olhou para o rosto do bobo da corte e sorriu.
Entregava-se à loucura.
22
L
embrava-se da água violeta tocando seu corpo, da sensação reconfortante que aquilo passava, de
sentir o vestido colado e da dormência convidativa. Conseguia ainda observar os rostos bizarros
dos seres aquáticos jamais vistos até então e absorver a escuridão tão desejada. Cruzara a barreira.
Passara pela segunda etapa. No entanto, algo acontecia.
Quando acordou, sentiu pânico ao ver uma luz branca excessiva. Pensou ter sido encaminhada para
outro tipo de dimensão, talvez espiritual. Sua vontade era pular de onde estava deitada e procurar por
respostas, mas seu corpo e sua mente não responderam. Sentia-se lenta de um modo que ainda não
experimentara. Desde que começara a tomar seus remédios, não tinha mais total controle do corpo, mas
aquilo era diferente. Praticamente não estava mais no comando. Pensava, contudo não reagia.
Então viu os cabos, as máquinas, as pessoas ao redor e sentiu a mão que segurava a sua. Apesar de
querer tombar a cabeça para ver quem era, não conseguiu. Foi só pelo toque da pele que soube que era
sua mãe ao seu lado.
– Graças a Deus! – ouviu Laura falar, apertando ainda mais sua mão e se movimentando agitada
com o fato de a filha ter aberto os olhos.
Sophie entrou em pânico.
Acabara de atentar contra a própria vida com apenas dezessete anos e não tinha obtido sucesso. O
mais chocante era que a dor não vinha da consciência da tentativa, mas da falha. Por que fora mandada
de volta para a Terra? O que mais precisava aprender?
A Morte.
Havia ainda mais uma carta. Acreditara que a Morte estava conectada com o Louco. Tentara se
matar. Como poderia estar mais perto da morte do que isso?
A vontade de chorar a sufocava, mesmo não conseguindo expressar nenhum sentimento devido ao
efeito sedativo. Era como se os comprimidos ainda agissem em seu corpo. Tentava entender por que
não a haviam induzido ao coma. Por que não partira para o Reino. Onde estavam a Rainha, a Guardiã
e o Ministro quando precisava tanto?
Dúvidas. Pânico. Lentidão. Também havia o gosto ruim na boca e o incômodo no nariz. Acreditava
que tinha sofrido uma lavagem estomacal. Sentia-se grata por não estar consciente durante o
procedimento de irrigação e aspiração dos comprimidos. Só imaginar que uma mangueira havia sido
inserida em sua narina para chegar ao interior do estômago lhe dava arrepios.
Havia calculado mal o tempo. Acreditava ter mais de quatro horas para a visita de Léo, mas o
garoto devia ter chegado antes do horário do jantar. Só nesse caso teriam aberto a porta e a encontrado
tendo uma overdose.
Ela sentia dificuldade de abrir a boca para falar ou se movimentar. Cada gesto era muito difícil.
Perguntava-se se tinha sofrido uma sequela permanente, mas não acreditava que isso poderia acontecer
com ela. Sophie era a princesa do Reino mais puro de todas as dimensões e não podia trocar aquela
experiência por outra vegetativa junto aos humanos.
Ouviu barulhos mais fortes, e logo luzes eram jogadas em sua pupila e pessoas seguravam seu braço
para aferir a pressão. Não era divertido voltar de uma tentativa de suicídio. Sabia que ainda ouviria
horrores dos pais e dos médicos. Léo possivelmente não a olharia outra vez. Ao menos, não da mesma
maneira.
Ela não havia completado a etapa do Louco. Tinha escolhido receber tal título perante todos ao seu
redor.
Pensando nisso, adormeceu.
Estava novamente na cama sob o teto estrelado. Sentiu o conforto da colcha de seu aposento real.
Ainda que não estivesse rodeada de médicos e se sentisse menos dopada, não tinha forças para se
movimentar como queria. Pela primeira vez, não desejava usar a minicartola no Reino. Proteger os
pensamentos parecia pequeno demais para quem tomara uma atitude como a sua.
Virou-se para a esquerda e pôde ver Ny de costas, observando o Reino por uma janela de onde
soprava uma corrente de ar constante. Sophie não sabia, mas havia uma vigília sendo feita para ela por
toda a extensão daquelas terras. Todos os Tirus e as criaturas mágicas rezavam por sua alma, e a
presença da Rainha na janela mostrava aos súditos que a princesa ainda não havia acordado.
– Há algumas horas, as flores deste Reino pararam de cantar – comentou a senhora, ainda de costas
para a neta.
Ela nem sequer precisou mover o corpo para saber que Sophie acordara. A corrente de ar
proveniente da janela continuava forte.
– Elas pararam. E tudo está quieto demais – continuou a Rainha, com um grande peso no timbre
de voz.
A situação machucava. Cumprira mais um passo indicado por Mama Lala, a quem haviam lhe dito
para seguir.
– Mama Lala virá visitá-la com Sycreth quando eu sair deste quarto para acalmar nosso povo.
Como não estava usando a bendita cartola, sua avó devia conseguir ouvir seus pensamentos. Sophie
mal acreditava que a vidente iria mesmo deixar sua cabana na floresta para vê-la.
– Não queria que você fosse embora... – foram suas únicas palavras, pronunciadas com dificuldade.
– Eu não queria que as flores se calassem – disse a Rainha.
– Eu preciso de você.
– Nem tudo o que queremos este mundo nos dá.
Sophie sentiu-se traída.
Ver a avó deixar o quarto sem ao menos olhá-la nos olhos era a abertura que faltava para as portas
do próprio inferno.
Se não me querem na Terra e não me querem aqui, que eu desapareça de uma vez do universo.
A porta foi novamente aberta alguns segundos depois. Antes que Sophie pudesse se virar para ver
quem entrava, já esbravejava:
– Eu fiz a minha parte! – gritava. – Me pediram para passar por desafios, para provar que sou boa
o suficiente para estar aqui. Eu fiz isso! Eu passei nos desafios. Tentei romper com o passado. Agora ela
não olha na minha cara e eu supostamente fiz a droga das flores pararem de cantar!
Tentava descobrir de onde tirara tanta energia para se esgoelar daquela forma. Por sorte, sua
intuição estava certa. Era Sycreth quem entrara.
– Você está com raiva, é compreensível...
– É claro que estou! Está tudo errado!
A Guardiã aproximou-se da cama, sentando na beirada. Conseguia ver no rosto magro da princesa a
verdadeira face dela. Sophie estava ligada demais ao mundo humano. Não via mais a menina saudável e
bonita. Enxergava fragilidade e solidão. Sycreth não conseguia explicar os próprios sentimentos em
relação àquela situação.
– Não sentimos raiva aqui.
Talvez eles ainda não me odeiem.
Entretanto, aquilo podia mudar. Se trazia tanta raiva para aquela dimensão e se seus atos eram
capazes de silenciar vozes mágicas, era porque seu poder podia ser cada vez mais destrutivo.
– Você poderia fechar essa janela pra mim? – pediu Sophie, esfregando os braços.
– Hoje é melhor não.
Sophie não entendeu, mas decidiu não confrontar.
– Onde está o Ministro?
– Ele está controlando a crise enquanto a Rainha avisa sobre seu retorno e bem-estar. Convocamos
feiticeiros e seres mágicos para ajudar na questão das flores, mas parece que a situação é bem ruim. As
pixies desistiram de limpar o círculo alaranjado.
Pânico.
Desestruturara o Reino de uma maneira que não acreditava ser possível. Se as fadas não polissem as
pedras, a magia seria bloqueada, e um Reino mágico sem magia era o mesmo que um corpo sem vida.
– Você precisa voltar a cantar, princesa. Precisa reaprender a amar a vida.
– Eu amo vocês! – sussurrou ela, como se bastasse.
– Não é o suficiente.
Nada do que ela fazia parecia ser o suficiente.
– Onde está Mama Lala? Não era para eu estar enfrentando a morte agora? Por que até vocês me
condenam?
– A pessoa que mais a condena é você mesma, alteza.
Agora sinto raiva até dessa bruxa, pensou, enquanto a Guardiã ainda a olhava com pena.
Depois de alguns momentos em silêncio, o ar ficou mais efêmero, apesar de agora não poderem mais
sentir aquele tipo de vibração. Sophie sabia quem havia chegado. Precisava encarar a vidente e
perguntar por que sofria tanto para ser feliz.
– A felicidade só vale a pena quando a buscamos com fervor.
Mais uma pessoa parecia ouvir seus pensamentos. Cogitou voltar a usar a minicartola, mas sabia que
todas as coisas ditas a ela tinham fundamento.
– Parece decepcionada comigo... – começou a vidente.
– Não deveria estar? – indagou Sophie.
– Tanto quanto eu deveria estar com você, então.
Sycreth sentiu que era uma boa hora para sair do quarto. Ao contrário da avó, ela fez questão de se
aproximar da jovem e beijá-la na testa em sinal de carinho. Sophie tinha raiva de tudo, mas, ao mesmo
tempo, era grata pelo afeto.
– Nenhuma vitória é fácil. Já conheceu algum herói que não tenha sofrido? – perguntou Mama
Lala.
– Já conheceu uma princesa capaz de se matar pelo seu povo?
– Várias. E nenhuma delas teve um final feliz.
A resposta a assustou.
– Durante toda a eternidade, homens e mulheres se sacrificaram por um bem maior. Guerreiros e
amazonas lutaram por honra e liberdade. Seus atos estão muito distantes de feitos heroicos lendários
como os deles, mas suas verdadeiras intenções mostram o quanto se preocupa com o Reino.
– Eu amo esta dimensão.
– E todos aqui a amam também. Assim como na Terra, onde, neste momento, há um casal
morrendo de medo de você não retornar e um menino em desespero por talvez tê-la visto pela última
vez.
Sophie suspirou.
– Como você sabe disso?
Mama Lala esticou a mão como se estivesse manipulando a brisa que soprava da janela, deixando-a
com frio.
– Escute...
E então aconteceu. Ali aconteceu. Porque a brisa que entrava daquela janela era mais do que um
sopro comum. Sophie escutou. E, conforme continuava a escutar e permitir que aquela corrente a
abraçasse, o frio se tornou ardente.
– Isso é... São... – ela tentou concluir sem acreditar.
– As orações. As orações deles. As orações das pessoas que te amam na Terra.
A corrente de ar trazia sentimentos. Pedidos, desejos, desculpas, promessas. Tudo o que corria pela
energia de pessoas que nem sequer existiam naquela dimensão.
– A questão aqui, princesa, ainda é: você os ama?
Ela os amava. Por várias vezes, tentara esquecer aquele sentimento, contudo os amava tanto quanto
aos Tirus.
– Quando entender o significado da carta da Morte, as flores voltarão a cantar, as pixies polirão as
pedras mágicas, e o Reino viverá feliz graças à princesa. Graças à futura Rainha.
Sophie ficou em silêncio por alguns minutos.
– E eu vou conseguir viver feliz algum dia?
A bruxa acariciou o rosto dela. Também havia sentimentos naquele gesto. Por trás da tristeza, havia
uma pessoa capaz de realizar milagres. Capaz de encantar pessoas.
– Você merece ser feliz, alteza.
A brisa que entrava pela janela continuou a soprar.
23
O
utra vez o clarão.
– Até que você fica sexy com roupa de hospital, AC/DC.
Ela engasgou com o comentário. Não acreditava no que acabara de escutar. Só podia ter vindo dele.
Do humor sempre excessivo.
– Essa é a frase mais bizarra que este hospital já deve ter escutado.
Ele não fez esforço para se levantar nem para tocá-la, mas, por causa da leve inclinação do leito,
conseguiu ver o sorriso dele em sua direção.
– É bom ver todo esse seu bom humor de volta – disse Léo, jogado na poltrona do quarto.
Os dois riram, ela com mais dificuldade. Ainda estava fraca e sentia-se zonza. Os dedos estavam
dormentes, e a boca, seca. Deviam ser os efeitos dos remédios, mas estava grata por ele estar começando
uma conversa descontraída.
– Onde estão meus pais?
Ele acabou se endireitando e chegou a poltrona mais para perto para alisar a lateral do braço dela.
Percebendo que ela tentava molhar os lábios com a língua, levou um copo d’água até sua boca rachada.
– Os dois pareciam zumbis nesta enfermaria – explicou ele, ainda tentando forçar o bom humor. –
Como o médico disse que você já estava fora de perigo, falei para os seus pais irem pra casa descansar.
Meus pais me ligaram e vou precisar ir em breve.
Sophie sentiu vergonha por ser um peso para todos e se viu desejando que ele não tivesse que voltar
para casa.
– Mas então quer dizer que estou sexy?
A quebra de gelo o fez voltar a acariciá-la, tombando o corpo para mais perto. Involuntariamente,
os pelos dela se arrepiaram, e ele percebeu. A garota pôde ver pelo sorriso que Léo esboçou.
– Para uma lógica de filme pornô, sim – brincou ele, não percebendo que ela analisava a
proximidade deles. – Apesar de você estar tentando fazer cosplay de primo Itt.
Sophie teve um movimento involuntário e tentou passar a mão nos antigos cachos. O soro injetado
à sua veia não permitiu, e ela parou no meio do caminho, percebendo ainda estar sendo medicada.
– Meu cabelo está tão horroroso assim? – quis saber ela, entendendo a comparação com o
personagem da Família Addams, que mais parecia uma vassoura.
– O dele pelo menos é liso, então imagina o seu como está.
– Estilo socialite da Capital de Jogos vorazes?
– Quem dera! Está mais para Samara de O Chamado!
Voltaram a rir e ele inclinou ainda mais o corpo, segurando a mão dela e quase tocando os lábios
nos dedos frágeis. No fundo, Léo estava feliz por não ter acontecido o pior. Felizmente ainda não era a
hora dela.
– Eu já não devia ter sido liberada?
Sentia falta da presença de médicos no local. Não entendia ainda por que continuava ligada a
equipamentos se tinham feito a lavagem estomacal.
– Você não tem ideia do que aconteceu com você, não é?
De repente ele ficou sério, e a pergunta a fez sentir ainda mais vergonha. Ele se afastou da cama,
soltando o braço dela. Sophie lamentou. O pior momento de um suicida era voltar para a realidade e
ter que encarar seus entes queridos.
– Você teve uma overdose e sofreu uma parada cardíaca. Pela sua fragilidade, entrou em coma por
algumas horas. Eles aspiraram os comprimidos de seu estômago, mas precisaram ser cuidadosos por
você estar desacordada. Seu aparelho respiratório acabou sofrendo com esse processo, e o médico disse
que ainda sofrerá reflexos dessa atitude idiota pelas próximas semanas. Como você além de tudo estava
subnutrida, a deixaram em observação.
Atitude idiota.
Perguntava-se se um dia conseguiria deixar de magoar as pessoas que a amavam. Como ele ainda
consegue ficar ao meu lado?
– Quem me encontrou? – quis saber Sophie.
Léo pareceu sem jeito, como em poucas vezes.
– Foi você? – perguntou ela, em tom receoso.
Ele parecia querer dizer que não. Mas o silêncio e a expressão dele só lhe diziam “não se preocupe
com isso”.
– Ah, meu Deus...
Sophie sentiu ainda mais vontade de morrer. Nada podia ser pior do que imaginar o garoto
encontrando-a branca e dopada. Não pensara naquela parte. Em quem iria encontrá-la. A ideia de se
matar nunca tinha passado pela sua cabeça do mesmo modo. Havia sido a junção das explicações sobre
a carta e as palavras do psicólogo distorcidas por ela que a fizeram tomar a decisão precipitada,
baseada na vontade de viver em um lugar onde era amada incondicionalmente.
– Sua mãe me deixou entrar sem bater. Para minha surpresa, você estava dura e não respondia a
qualquer estímulo.
– Por quê?
– Como eu disse, era um reflexo dos remédios que você...
– Por que a minha mãe deixou você entrar sem bater?
Ele voltou a ficar sem jeito. Coçou a cabeça, como se aquela hesitação fosse fazê-la desistir do
assunto.
Mas só a fez querer saber mais.
– Eu resolvi fazer uma surpresa e cheguei com um buquê de rosas pra você. – Ele suspirou, sabendo
que aquilo pioraria o sentimento de culpa dela, que já devia ser grande.
Ele estava quase chorando. Ela notou. De repente, as lágrimas que ele não derramou escorreram do
rosto dela.
– Achei que teria que colocar o buquê em seu túmulo, Sophie – comentou ele, focando o olhar nela.
– Eu pensei que você tivesse morrido...
A última frase foi dita com tanta dor que ela não tinha coragem de encará-lo. Temia vê-lo prender
as lágrimas.
– Você me odeia, né? – indagou ela.
A pergunta fez o garoto fechar os olhos e chacoalhar os cabelos ondulados. Ele parecia muito
cansado. Sofrera muita pressão e, para um jovem, era admirável que tivesse enfrentado a situação em
vez de fugir dela.
– Não, não odeio! E quer saber? As flores nem eram tão bonitas! Eu sou péssimo para escolher essas
coisas...
Flores. Flores que não cantavam.
– Pare! – gritou ela. – Pare, Léo! Simplesmente pare com isso! Grite comigo de volta! Aponte o
dedo na minha cara! Faça um sermão! Deboche de mim como todos os outros! Mas pare de ser bom
comigo... – Sophie foi abaixando o tom de voz, como se na verdade dissesse “por favor, não pare
jamais”. – Eu não mereço. Eu não mereço você...
– Nós estamos nadando juntos neste aquário, Sophie – foi o que ele teve a dizer. – Não pare de
nadar. Por favor, não me deixe sozinho.
Então ela fechou os olhos, e as lágrimas que Léo estava segurando e ela já havia soltado de repente
escorreram pelo rosto dele. Por um momento, nenhum dos dois precisou parecer forte, e aquela
fragilidade os conectou. Ninguém nunca era forte o suficiente deitado na cama de um hospital. Aquele
lugar era capaz de quebrar a autoconfiança de qualquer pessoa.
Pela frase de Léo, Sophie conseguiu entender a vidente e seu questionamento sobre os amores dela na
Terra. Se tivesse conseguido tirar a própria vida, jamais olharia para o rosto daquele garoto novamente.
Ela sabia o quanto a presença dele a ajudava a respirar com mais calma. Não era como a mansidão do
Reino, mas se sentia mais segura ali.
– Somos apenas duas almas perdidas – completou ela. – Mas ao menos estamos perdidos juntos.
Sua coordenação motora não era mais a mesma desde que saíra do hospital. Tinha dificuldade de
andar, tremia incontrolavelmente por alguns minutos todos os dias, a voz teimava em falhar no meio
das frases e, toda vez que se olhava no espelho, notava que os olhos estavam diferentes. Seu olhar agora
era um pouco insano. Daquele tipo que assusta crianças. Parecia que a pupila tinha se dilatado durante
o processo e, de acordo com o médico do hospital, aquilo era normal. Passaria com o tempo. Mas a
intensidade daquele olhar estava gravada eternamente na sua memória. Sentia medo de si própria e
precisava ter.
Estava havia alguns dias em casa e, nas duas vezes em que tinha consultado as redes sociais,
percebera que sua tentativa de suicídio chegara aos ouvidos dos colegas. Encontrou durante as pesquisas
alguns comentários maldosos alternados com outros de preocupação, mas, quando Léo percebeu que ela
acessava aquele tipo de coisa, a fez prometer não entrar mais na internet para aquilo. Ela sentia que
devia alguma coisa a ele e cumpriu a promessa.
George trabalhava cada vez mais em casa. Às vezes, ao cruzar o corredor, conseguia ouvi-lo falar ao
telefone, em muitas das ocasiões explicando para o chefe por que não poderia ir para o foro ou a uma
reunião. Sempre que aquilo acontecia, ela se odiava mais um pouco por estar fazendo o pai arriscar seu
emprego.
Laura tentava fingir que tudo estava bem. Tinha a filha e o marido em casa, ambos fora de perigo, e
administrava os momentos em família com cuidado. Desde que Sophie fora liberada do hospital,
tomavam café da manhã, almoçavam e jantavam juntos na sala de estar. A televisão agora ficava sempre
desligada e eles conversavam durante as refeições. No início havia sido estranho, depois começaram a
aproveitar o momento, contudo não podiam negar que ficavam sem assunto. Dentro de casa vinte e
quatro horas, os três tinham poucas experiências novas.
Dior era o único realmente satisfeito. Nos últimos dias, criara o hábito de ficar deitado na barriga
de Sophie enquanto ela assistia a seriados na televisão do quarto, agora com a porta sempre aberta.
George ria quando via o buldogue francês esparramado, mais parecendo um poodle.
Léo sempre os visitava, mas a época de provas estava chegando e ele se sentia mal de ter que estudar
na frente da garota. Porém, ela insistia que preferia vê-lo estudar a não ter sua presença. Só ficava
tranquila de não vê-lo quando o garoto precisava ensaiar com a banda. Toda vez que se lembrava deles
cantando juntos, uma sensação de paz tomava conta do seu corpo e começava a desejar aquilo
novamente.
Certa tarde, recebeu uma visita diferente.
– Pensei que o chato do seu namorado nunca fosse me deixar visitá-la – reclamou Mônica, entrando
e colocando a bolsa em um dos pufes do quarto.
Sophie usava um pijama comportado e os cabelos estavam presos em um rabo de cavalo. Mesmo
não sendo a melhor maneira de receber uma pessoa, sentia-se feliz por ver Mônica em seu quarto.
– Não quis assistir ao ensaio da banda hoje?
– Consegue acreditar que estão me proibindo de ver o Hugo? Disseram que eu o distraio e que assim
nunca conseguirão ser famosos. Era só o que me faltava!
A experiência de fofocar com uma amiga como qualquer garota da idade dela fazia bem para seu
espírito.
– Que bom que isso aconteceu hoje, assim pudemos nos ver.
– Eu queria muito ter vindo antes, mas você conhece o senhor “minha namorada está debilitada e
precisa de descanso”. Ele não deixava. Quem escuta isso acha que eu vou levá-la para correr uma
maratona. Esses meninos não entendem que nós necessitamos de momentos femininos para relaxar!
Sophie riu e percebeu que nos últimos tempos só havia rido daquela maneira com Léo. Sentiu-se
bem com aquilo.
– Ele não é meu namorado – sussurrou a ruiva, entrando em um assunto que a incomodava.
Mônica mordeu a isca.
– Claro, porque é supernormal um cara gato, com todo o respeito, passar os dias enfurnado na casa
de uma garota porque só quer ser amigo dela!
– Mas nós somos amigos. Desde o começo.
A garota colocou as mãos na cintura e parecia prestes a lhe dar uma bronca.
– Tá, tá bom! Vocês são amigos. Mas há mais nessa história.
– Você acha?
Sophie achava graça da conversa porque a cada pergunta a amiga parecia querer socá-la.
– O garoto não saiu da sua cola desde que chegou na cidade, ora! Ele se preocupa com você a cada
segundo. Convida você para momentos especiais e canta em sua homenagem. Ele visita sua casa e
conversa com seus pais. Isso é raro, sabia? Ele a idolatra e lhe traz flores. O garoto passa horas ao lado
de um leito de hospital. Acha mesmo que um menino é capaz de fazer tudo isso porque quer ser
escoteiro na friend zone?
Sophie percebia o carinho especial do rapaz. Ela sabia que Léo gostava dela e já admitia para si
própria que também gostava dele. Contudo, precisava pensar muito nos próximos passos. Ainda era
uma garota que tentara se suicidar em duas dimensões.
– Mudando de assunto... – disse Sophie, tentando parar de pensar naquilo.
Mônica puxou um dos pufes e ajeitou os óculos. Usava o cabelo claro repartido em uma mariachiquinha. Parecia bem mais nova.
– Sim, eu sei! Eu trouxe meu baralho.
– Você tem talento, sabia? – comentou Sophie, animada.
– Por que será que eu imaginei que você iria querer saber mais, hein?
Mônica encarava a jovem debilitada, mas, ao ver o sorriso animado dela, tirou o livro da mochila.
– Sobre qual carta quer aprender agora?
Sophie hesitou antes de responder.
– Quero saber sobre a Morte.
A amiga já tinha suspeitado. Óbvio que aquela carta chamaria sua atenção.
Observaram o desenho da carta da Morte. Na realidade, no tarô de Marselha não havia nome
algum inscrito. No entanto, Mônica explicou que, em jogos similares franceses do século dezessete,
aquela imagem costumava vir na carta intitulada “La Mort”.
Um esqueleto revestido por uma espécie de pele com pedaços azuis e vermelhos trazia uma foice de
lâmina grande nas mãos. Do chão negro, brotavam plantas azuis e amarelas, além de restos humanos. O
fundo não era colorido, e a carta dava a impressão de ser bem mais séria do que as outras.
No primeiro plano, à esquerda, havia uma cabeça de mulher; à direita, uma cabeça de homem com
uma coroa dourada e simples. Um pé e uma mão também surgiam do chão, enquanto outras duas mãos
brotavam atrás, ultrapassando a linha do horizonte. O esqueleto estava de perfil e parecia se dirigir à
direita. Segurava a foice com as duas mãos. Analisando tudo, as duas sentiam que aquela imagem era
diferente.
– Vamos lá, garota esquisita! – chamou Mônica. – Só você pra me falar de morte mesmo.
Havia bom humor na voz dela, e Sophie sentiu-se mais uma vez grata por não estar sendo
condenada pelas pessoas. Elas pareciam querer ajudar. Só isso. Sabia o quanto momentos como aquele
eram raros. Um alívio comparado à dura lição de não receber o carinho da avó.
– Grandes transmutações e novos espaços de realização – continuou ela. – Já estou gostando.
Mônica explicou que aquele era um período de dominação e demonstração de força. A ruiva sabia
que, desta vez, a amiga lia a carta pensando no momento que ela passava. Não se tratava mais só de
curiosidade. Comentou que a morte podia ser vista de várias formas, mas também como um
renascimento, a criação de um novo eu e a destruição dos males passados.
– A fatalidade irredutível, porque um fim sempre é necessário. Entretanto, ele pode ser o fim de
uma fase, provavelmente o abandono de velhos hábitos – ainda explicava. – Sempre curti essa
possibilidade de abandonar o passado negro.
Sophie entendeu. Era reconfortante saber que, se o ser humano quisesse, poderia tentar se libertar de
mágoas passadas para seguir em frente em um novo eu.
Mônica continuou a análise da carta sombria. Ela dizia que seria um período de aprofundamento
intelectual e de reflexão metafísica, mas que a carta mostrava que ela tinha dom para enfrentar situações
difíceis. Sophie até riu com a interpretação. Completou dizendo que a renovação de ideias, total ou
parcial, interviria em seus planos e poderia transformar tudo.
Essa carta tem razão, pensou.
Ela precisava escolher com cuidado o caminho a percorrer, sobretudo diante do fato de que forças
maiores não a tiraram da Terra. Sophie poderia manter sua vida dupla, embora não soubesse por
quanto tempo aguentaria. Podia tentar novas maneiras de conseguir viver para sempre ao lado da avó
ou desistir do Reino para ficar com os pais e os amigos – um deles sendo o garoto de quem realmente
gostava.
– Pode ser que ocorra a destruição de um sentimento ou de uma esperança. É o momento de um
xeque-mate inevitável.
Ironia.
E ela pensava que tirar a própria vida fosse aquele tipo de jogada.
– Você está bem? – quis saber a colega preocupada.
A ruiva ficou pensativa por um momento.
– Na medida do possível, estou.
Mônica começou a estalar os dedos, provavelmente por nervosismo.
– Não vai nos pregar outra peça como essa, não é?
Sophie sentiu pena.
– E se eu dissesse que, no fundo, não queria ter pregado nem a primeira?
As duas ficaram em silêncio.
– Eu acreditaria. A dor nos impele a fazer coisas horrorosas. Se você percebeu que essa foi sua taxa
de monstruosidade, aprenda com ela e nunca mais a repita.
Sophie entendeu o recado. Não existem terceiras chances nem segundas amizades.
– Eu estou aprendendo – sussurrou, olhando a amiga nos olhos.
Nunca esqueceria aquele momento. Desde que voltara das águas violetas, percebia pontos de luz no
mundo humano que antes custava a enxergar. Não que a Terra tivesse se tornado um lugar mágico e
compreensível. Na verdade, sentia que não merecia compreensão. As pessoas não eram apenas monstros
do pântano. Havia fadas e anjos naquele lugar.
Estava rodeada por eles.
Aquilo seria o suficiente para ela querer viver por lá?
24
N
as conversas posteriores com o psicólogo, não mencionaram o assunto do Reino mágico. O dr.
David queria focar mais nos sentimentos que a levaram a tomar todos os comprimidos de uma
vez do que em possíveis ilusões criadas pela mente dela.
Sophie sentia que seria muito mais fácil se eles conversassem abertamente. Só assim ele perceberia a
conexão clara entre a realidade encantada e a tentativa de tirar sua vida. Para ela, a expressão era até
equivocada, pois sua intenção era conseguir dormir eternamente para viver com os Tirus.
Durante a análise, costumava colaborar com as questões abordadas pelo psicólogo, mas o doutor
estava cada vez mais distante. Talvez porque ela havia tentado se suicidar logo após conversarem pelo
telefone. No entanto, eles nunca tocaram diretamente no assunto.
Laura de início ficou com medo de mantê-la no mesmo profissional. Chegou a acusá-lo de várias
coisas, tentando passar um pouco da culpa que sentia para outras pessoas. A pedido da filha, acabou
marcando para ela outras consultas. Contudo, Sophie não sabia mais se tinha sido uma boa jogada e
duvidava de que valia a pena continuar a consultá-lo. Era como se não estivesse mais falando com o
mesmo psicólogo: ele se parecia cada vez mais com seus pais.
– Olá, Sophie! Bom vê-la novamente – cumprimentou o dr. David quando ela entrou no
consultório, semanas após o acontecido.
– Pois é! Ainda viva! – brincou ela. Entretanto, ele pareceu não gostar do comentário e limitou-se a
tossir, apanhando a prancheta.
– Como está se sentindo hoje? – perguntou.
– Ótima! – respondeu com voz de sonsa.
– Esse é o tom que uma vez você comentou que sua amiga a fez perceber?
Sophie ficou surpresa de o psicólogo ter notado.
– Eu preciso que fale comigo sobre o que realmente importa – explodiu a menina. – Eu tentei me
matar porque acreditei que cartas haviam me dito isso. Acreditei que, se eu tomasse os comprimidos,
dormiria profundamente e não precisaria voltar para a Terra. Você vai ignorar isso e simplesmente me
perguntar como estou?
Nenhum músculo do rosto dele se mexeu. Em seguida, Sophie o viu inspirar e expirar três vezes até
tomar coragem de falar:
– Você poderia me contar um pouco mais sobre o Reino que anda visitando?
Nos lábios dela brotou um sorriso, a alegria de ser ouvida transparecendo na maneira como se
endireitou na cadeira.
– Eu sei que meu caso é estranho e, infelizmente, não começa com um “era uma vez”, mas preciso
saber a sua opinião. Se precisar tomar uma atitude mais drástica após o meu relato, não hesite. Eu só
não quero magoar mais ninguém.
A jovem passou quase toda a sessão resumindo os acontecimentos dos últimos meses com o máximo
de detalhes de que se lembrava. Desde as primeiras visitas ao Reino até a sessão com Mama Lala, a
conversa com os membros da corte e a última carta necessária para finalmente ficar ao lado de seus
súditos.
Em nenhum momento o doutor a interrompeu. Durante todo o tempo, manteve o semblante sério,
mas interessado no conteúdo.
– Na sua opinião, a carta da Morte ainda indica que você não pode viver entre os humanos?
Dizer a palavra “humanos” o deixava receoso. Ele era um homem da ciência, mas passava tanto
tempo tentando entender as mentes das outras pessoas que às vezes era como se a ilusão delas pudesse
contaminá-lo.
Ela demorou para responder.
– Não.
A resposta, ainda que seca, aliviou um pouco o coração dele. Continuou em silêncio, esperando
para ver se ela completava o raciocínio.
– Pelo que eu entendi, essa é a carta responsável pelo fim de uma etapa e pela descoberta de um
novo caminho. Acredito que estou entrando no estágio final da minha amargura e que, a partir de
agora, não vou mais ficar só reclamando da vida e me sentindo mal. Quero acreditar que existe um
novo caminho que não vai me afastar das pessoas que amo aqui na Terra.
Aquilo era música para os ouvidos dele.
– Preciso de internação, doutor? – quis saber ela.
Aquela era uma pergunta pesada demais.
– O que precisamos fazer agora é achar sentido em tudo isso. Sentido em por que você está
visitando esse lugar. Acredito que precise conversar abertamente com as pessoas que ama e ganhar a
confiança delas para conseguir aproveitar sua nova vida.
Sophie entendia os argumentos e concordava com eles. Procuraria no Reino e na Terra pelas pessoas
que amava e buscaria neles o que lhe faltava.
– Acredito que em breve não vamos mais precisar nos falar – afirmou a garota.
Ele continuou sério, mesmo querendo sorrir por vê-la mais consciente.
– Espero que suas boas ações resultem nisso.
Ela também esperava.
Sentiu-se sugada e ouviu o típico barulho da fênix explodir em seus tímpanos. Estava no Reino. Para a
sua alegria, agora estava de pé, não mais confinada em uma cama. Seus pés estavam submersos nas águas
violetas do lago, e Phix e Jhonx a acompanhavam no que parecia ser uma bela tarde.
– É muito bom vê-la mais saudável, princesa – cumprimentou Jhonx, com a típica voz grossa capaz
de assustá-la e animá-la ao mesmo tempo.
– Sempre é bom estar aqui – respondeu ela, olhando contente para os lados por estar novamente em
casa.
O lugar mágico era seu lar, porém não sabia o suficiente sobre ele. Viu além do lago uma criatura
verde-musgo de asas transparentes, refletindo por todos os lados a coloração dourada das folhas ao
redor. Aquela era a segunda vez que notava a criatura peculiar. Não pensara até então em como ela não
conhecia todos os membros do Reino e em como ainda havia muito a aprender sobre sua dimensão.
– O que é aquela criatura do outro lado? – quis saber.
Os dois seres de cartola encararam a outra margem, observando a criatura sair voando.
– Ele é um ser da água e do ar, responsável pela manutenção das flores do Reino. Temos alguns
espalhados por aqui. São chamados de tirulipos e são capazes de limpar por dentro as partes sagradas do
Reino que foram obscurecidas. As flores cantam porque são alimentadas em suas raízes por amor puro.
Como os Tirus são seres sinceros e bons, elas sugam essa energia mágica para sempre se manterem livres
da escuridão. Os tirulipos ajudam na limpeza de uma flor infectada pelas sombras – explicou o
Ministro.
– Eles vêm sempre aqui? Eu já os vi uma vez no Reino.
O gato soltou um miado, o que para ele não era muito comum.
– Eles também vieram no dia de sua chegada porque gostam de frequentar os grandes
acontecimentos do Reino – esclareceu o felino. – Mas só costumam se expor em caso de necessidade.
Sophie percebeu o silêncio ao redor e entendeu que a situação devia ser grave. Ainda que ela já
estivesse melhor, as flores não haviam se recuperado.
– Isso ainda tem a ver comigo?
Os dois não sabiam como responder.
– Ok! – resmungou a garota. – Já percebi que vocês não vão contar. Mas fiquei curiosa com uma
coisa...
– Diga, alteza – pediu o Ministro.
– Lembro que, no dia da minha chegada, além do tirulipo vi outras duas criaturas mágicas. Até hoje
não as reencontrei.
– E talvez nem reencontre – completou o gato. – Existem diversas criaturas mágicas no Reino. Hoje
mesmo tive um ótimo desjejum enquanto conversava com um fauno. Nosso mundo é assim. Cheio de
surpresas. Mas você ainda não teve tempo de desfrutá-las.
– As fadas continuam sem trabalhar? – perguntou aos dois.
– Estive no círculo de pedras e entendi que é realmente difícil trabalhar nas condições delas. É
impossível limpar a energia negativa da superfície da pedra. Elas precisaram parar – disse o felino.
– Então estamos em um Reino onde nossas flores não se sentem amadas o suficiente para cantar e
onde não existe força braçal para polir pontos de energia necessários.
Tiveram que concordar.
– Vocês ainda me amam? – indagou a garota de supetão.
O homem olhou para o gato e ambos fizeram que sim com a cabeça.
– Até o infinito, alteza – confirmaram em coro.
– Preciso ir até as pixies – informou ela com urgência. – Como faço para localizar Condx?
A dupla achou graça na pergunta.
– É fácil – revelou Phix. – É só pensar no formato do bico dele que o encontrará.
– Que coisa inusitada!
– E não é? – concluiu o Ministro. – Uma pena você não poder passar mais tempo no Reino. Você
ainda não sabe um por cento do tamanho do poder que possui.
– Agradeça por ter que pensar no bico – acrescentou o gato.
Sophie riu. A magia ainda era estranha para ela. Após poucos minutos, a ave gigantesca pousou,
estendendo as asas pretas pelo gramado lateral do lago. Agitada pela corrente de vento trazida pelo
pássaro, a água se movimentou para todos os lados.
Antes de subir em seu dorso e partir até uma das florestas, ela olhou novamente para as águas e um
flashback de sua tentativa de suicídio lhe veio à mente. Conseguia se lembrar do céu daquele dia e era
capaz de sentir a temperatura do lago. Recordou-se dos sereianos e resolveu perguntar para o Ministro:
– Se eu pensasse no rosto dos sereianos que me salvaram, eles apareceriam?
O homem pareceu pensar na questão.
– Eu nunca tinha visto um ser das águas até aquele dia – comentou ele. – Todos nós ficamos
assustados com a presença deles. Até mesmo sua avó. Acredito que eles apareceram e arriscaram suas
existências com o único intuito de salvá-la. Não acho que arriscariam sair das profundezas novamente.
Ela ficou visivelmente desanimada com a resposta.
– Queria poder agradecer. Mesmo sabendo que eles foram os responsáveis por eu não ter podido
dormir profundamente para ficar com vocês, sei que foi o certo a fazer.
Jhonx gostou daquela conclusão.
– Princesa – disse o Ministro. – Se pensar em sua gratidão e na imagem de quem a ajudou, sem
dúvida seus pensamentos se unirão aos dos sereianos, e eles ficarão cientes do seu respeito.
Aquele poderia ser um bom passo para ela.
– Vocês são sempre maravilhosos, sabia? – elogiou ela, subindo na garupa.
– Você é nossa inspiração.
– Diva – corrigiu o gato, mostrando os dentes em um sorriso, apontando para ela os dois
indicadores em uma posição hilária. – O termo moderno hoje é diva!
Ainda sentada em Condx, Sophie acariciou as plumas da ave e deu impulso.
Onde quer que vocês estejam, dedico meus próximos passos a vocês por me manterem viva. Sophie pensou em uma
energia capaz de atravessar oceanos.
No fundo do coração ela se sentiu mais próxima deles, como se tivessem recebido a mensagem.
Era o que acontecia quando pensamentos se uniam.
Sobrevoaram alguns minutos antes de chegarem à localização exata do círculo. Do alto, Sophie apenas
observava o Reino e sua beleza mais do que divina. Não sabia muito bem por quê, mas tinha a sensação
de que não veria aquela maravilha por muito tempo. Ao menos pensar nisso não a deixava desesperada.
Havia certo conforto em perceber aquilo, mesmo sem compreender.
Quando chegaram à floresta, Sophie entendeu melhor a aflição do Reino. Depois de sua atitude
drástica, aquele se tornara outro lugar. Não havia mais vida no local antes mágico. As cantorias de fato
tinham cessado, as cores pareciam menos intensas, o ar era muito mais pesado e a garota ficou ainda
mais tensa ao ver as pixies.
Elas pareciam mortas.
Cansadas pelo esforço, todas traziam um semblante exausto e uma pele quase sem brilho. A garota
não conseguia acreditar no que via. Como fadas podiam ficar daquele jeito? Ela de fato acabara com a
energia positiva daquele local? Tudo era muito confuso, e a tristeza voltou a dominá-la.
– Não se sinta assim – a voz de Sycreth quebrou o silêncio quando ela saiu de trás de uma das
árvores.
Sophie se assustou, mas o rosto familiar da Guardiã trouxe um pouco de sossego ao seu coração.
– Fico feliz que esteja aqui.
– Eu também fico feliz em vê-la, mas gostaria que isso fosse suficiente...
Ouvir o desamparo na voz de Sycreth foi para Sophie um susto ainda maior. A Guardiã sempre se
mostrara a pessoa mais otimista e dedicada em todos os dias que passara no Reino: ela nunca
reclamava. A ruiva não imaginara que algum dia ouviria a voz da amiga abalada por um tom tão triste.
– Não sei como consertar tudo isso – desabafou Sophie. – Tenho pensado em meus pais, no Léo e
em todos vocês. Lamento que meus atos tenham ocasionado tanta tristeza. Mas agora não sei como agir
nem como fazer tudo voltar a funcionar.
A Guardiã pareceu entender.
– Ninguém previa algo assim, alteza. Nem mesmo Mama Lala ou a Rainha. Tudo está estranho
demais.
Sophie apenas aquiesceu.
– Posso ajudar em alguma coisa?
– Você sempre pode.
As duas olharam ao redor. Era impossível identificar as pedras alaranjadas. Onde antes elas estavam
havia agora apenas minerais cinzentos. E a princesa sabia que aquilo estava longe de ser normal. Aquele
era o cinza que tanto a perseguia. Conseguira levá-lo até mesmo para seu local mágico.
– Quando eu vim para este Reino, meu objetivo era voltar para as pessoas que me amam e ser feliz,
certo?
– Perfeitamente.
– Então, por que só estou prejudicando quem tanto me ama e por que não me sinto mais tão feliz
quando penso que terei de abandonar minha vida na Terra?
Aquelas eram boas perguntas. Nunca fora feliz no mundo dos humanos e continuava não sendo.
Porém, desde que sentira o carinho das pessoas por lá, percebera que talvez ficar para sempre no Reino
não fosse a melhor escolha.
– O que aconteceria se eu decidisse ficar também com meus pais?
Sophie notou o semblante sério de Sycreth.
– Não posso ajudá-la nessa questão. Isso nunca aconteceu conosco. Temos instruções claras.
– Que instruções?
– Um dia, receberíamos nossa princesa de volta e ela nos faria completamente felizes. Entretanto,
antes do final feliz, seria preciso que três etapas fossem cumpridas para que ela se tornasse nossa nova
Rainha.
– E as minhas dúvidas contrariam essas instruções...
– Na verdade, nada mais faz sentido. As flores e as pedras deixaram de ser mágicas. Nossa princesa
tentou tirar a própria vida. Os habitantes do Reino não estão sendo mais os mesmos. Onde está a
felicidade prometida?
Apesar da tranquilidade na voz da Guardiã, Sophie pressentiu que a outra estava prestes a chorar.
– Vamos encontrá-la – prometeu a princesa. – Passarei pela terceira etapa.
A jovem aproximou-se de Sycreth enquanto as pixies exaustas zanzavam de um lado para o outro.
No meio de um abraço solidário, sentiu-se novamente sugada e ouviu a fênix gritar pelos céus.
Era hora de encarar a mãe e o rapaz que começava a amar.
25
O
pai a compreendia melhor. Durante toda a vida, ele parecera ter mais paciência com ela – talvez
porque eles fossem parecidos ou se preocupassem menos com a opinião dos outros. Entretanto,
ela não era mais a menina que não se importava por ser diferente. Passara os últimos meses julgando a si
mesma e percebeu o quanto também era parecida com a mãe. No final, reconheceu ser uma mistura das
duas pessoas que a trouxeram ao mundo e que, nos últimos tempos, estavam lhe dando ainda mais
carinho e atenção que de costume.
Sophie sentia que sua fase negra precisava passar antes que pudesse salvar a outra dimensão. Decidiu
seguir o conselho do psicólogo criando coragem para uma conversa franca com a mãe. Não conseguia
se lembrar da última vez que realmente sentira vontade de estar e falar com ela. Sabia como Laura tinha
se esforçado e tinha noção de seu amor incondicional, mas para ela era difícil conversar com a mãe.
Contudo, naquele dia elas tinham muito a dizer uma para a outra.
Sophie andou pela casa e a encontrou em um lugar inusitado: o porão. Aquele era um local um
tanto claustrofóbico e cheio de caixas antigas que acumulavam poeira e ácaros. A garota não entendia
por que guardavam tantas coisas do passado naquele local abandonado. Mas, naquele dia, Laura
parecia ter encontrado um bom motivo para se enfurnar lá.
– Às vezes esqueço que este lugar existe – comentou ela, encontrando a mãe debruçada em uma das
caixas de papelão aberta à sua frente.
– E eu me esqueço de quantas coisas mágicas existem por aqui – suspirou a mãe, mostrando um
vestido cor-de-rosa do tamanho de seu antebraço.
A palavra “mágica” fez os pelos de Sophie se arrepiarem. Saber que a mãe remexia em suas roupas
de infância fez sua garganta fechar um pouco. Tentou ignorar, convencendo a si mesma de que era por
conta da poeira.
– Está há muito tempo aqui embaixo? – perguntou.
– O suficiente para lembrar como você já foi pequena.
– E obediente – brincou.
– Faz tempo mesmo, não é?
As duas riram.
Sophie buscou uma caixa firme na qual pudesse se sentar. A mãe não parecia ligar para a sujeira e
acomodara-se no chão. O ambiente contrastava muito com as pequenas roupas de lã e algodão claro.
Muitas ainda eram brancas e nem pareciam estar guardadas há tantos anos.
– Você está bem? – perguntou Sophie na tentativa de se aproximar da mãe.
Laura moveu a boca de modo hesitante, mas a fechou com receio.
– Não tenha medo. Sou mais forte do que pode imaginar, mãe.
– Mas é esse o meu medo... – cortou Laura.
Sophie não entendeu.
– Minha filha outro dia tentou se matar e hoje está na minha frente conversando comigo com
tranquilidade. Eu sei que você é forte, apesar do que as pessoas dizem dos suicidas. Minha pequena
tentou se afastar de mim, e eu não sei se tenho forças para superar isso.
Visivelmente abatida, Sophie tentou argumentar:
– Você sabe que o que eu fiz foi por livre e espontânea vontade. Não foi culpa sua. Não é culpa de
ninguém.
– Claro que foi, Sophie! – esbravejou ela enfim, segurando um sapatinho lilás entre os dedos.
Lágrimas ameaçavam cair. – Eu sou a sua mãe! Sua mãe! Como pude deixar algo assim acontecer?
Como durante todos esses anos não consegui fazer você feliz?
– Não existe uma fórmula para isso! – gritou Sophie.
Ambas se olharam por conta da intensidade da conversa.
– Eu queria fazer você feliz...
– Ninguém pode fazer outra pessoa feliz. Nós precisamos encontrar a nossa própria felicidade. Eu
nunca achei que fosse digna de ser feliz. Esse sempre foi o grande problema.
A mãe ficou angustiada ao escutar aquilo. Acreditava ser responsável pelos atos da filha.
– E agora você se sente digna?
– Estou trabalhando nisso.
Sophie contou que, para acabar com a fase negra de sua vida, precisava dedicar-se a conversar mais
com as pessoas que amava. Era difícil para ela, mas finalmente podia admitir para a mãe que precisava
de seu carinho durante a recuperação.
– Sei que às vezes pareço superficial e que não compartilhamos dos mesmos gostos. Só que eu te
amo e tenho muito orgulho de você ter se tornado essa menina inteligente e forte – desabafou a mãe. –
Você tomou uma atitude que corta profundamente meu coração, porém sei que superará isso e prometo
estar ao seu lado em cada passo.
Laura sentia estar aliviando a alma.
Sophie também.
Ela percorreu o cômodo com um olhar perdido enquanto Laura voltava a bisbilhotar as caixas,
emocionada com cada item que pegava e trazia ao peito.
Quando um som melódico de sinos tomou conta do lugar, Sophie, curiosa, voltou a atenção para a
mãe. Em suas mãos, havia um antigo móbile. Aquele objeto lhe dava uma sensação estranha. Como se o
reconhecesse de quando era criança.
– Não me lembrava de ter guardado isso... Ficava enfeitando seu berço – comentou Laura.
O enfeite tinha diversos fios resistentes espalhados pela estrutura de cinco pontas. Cada um dos fios
trazia graciosas pedras alaranjadas e imagens de pequenas fadas. Era confuso ver aquele objeto. Até a
música era parecida com os cochichos das flores que haviam se calado.
Era curioso descobrir que suas noites infantis tinham sido embaladas por pedras alaranjadas e
pequenas fadas.
Seria mesmo coincidência?
– Você passava a noite toda tentando tocar nessas fadas, sabia?
Sophie achou graça.
– Por muito tempo, pensei que você falasse com elas em sua linguagem infantil. Você as olhava com
tanta intensidade que pareciam suas amigas.
– Acho que minha esquisitice já começou nessa época – a jovem voltou a brincar. – Tendo fadas
como amigas seria mesmo difícil ter uma amizade normal.
A mãe tentou sorrir, mas tudo ainda era muito vivo em sua mente para isso.
– Queria que ao menos você tivesse tido fadas como amigas...
– Eu estou tendo agora.
Lembrou-se de Sycreth. Era bom ter uma Guardiã caminhando ao seu lado durante aquela jornada.
Aos poucos, começava a não saber mais distinguir as pessoas mágicas das comuns.
– Então, quando aprender a ser feliz, avise. Estaremos de braços abertos – completou Laura
fechando a caixa.
Sophie sabia.
Após muito repouso, cuidado e esforço, as sequelas de Sophie desapareceram. Os olhos deixaram de ter
a intensidade assustadora, as palavras não demoravam a sair e tinha uma aparência mais saudável, com
bochechas rosadas.
Apesar do tempo livre e de se sentir mais disposta, quase nunca deixava o quarto e permanecia horas
apenas encarando as páginas dos livros de fantasia que relia. Aquele era o seu mundo mágico fora do
Reino. Os personagens que conhecia nas sagas literárias lhe faziam companhia quando os pais não
estavam a seu lado e Léo e Mônica não vinham em uma de suas visitas constantes.
Desde que conversara com o psicólogo e a mãe, sentia-se pronta para desabafar com o garoto e
entender o que realmente se passava entre eles. Considerava-o seu namorado, ainda que não tivesse
ouvido dos lábios dele que o sentimento era recíproco.
Ainda que nem sequer o tivesse beijado.
De repente, aquilo lhe pareceu absurdo. Pensando no assunto, lembrava-se de que a carta da Morte
a desprenderia de tudo, e uma nova jornada começaria. Se essa nova jornada seria ao lado do garoto,
precisava ser completamente franca com ele, mas tinha certo receio. Não sabia como ele responderia ao
saber de sua vida paralela. Ainda estava surpresa pela reação do psicólogo. Acreditava que não teria a
mesma sorte com Léo.
Era sábado quando chegou no seu celular uma mensagem de Léo marcando um encontro. Só essa
palavra fez o estômago dela revirar de alegria. O garoto sabia preparar aquele tipo de ocasião e ela
esperava ter uma noite inesquecível. Quando fechou a mensagem e olhou para a tela do televisor, viu seu
reflexo. Estava bem, contudo ainda não se sentia bonita. Preferia sua aparência no Reino. Com esse
pensamento, resolveu se aventurar.
Andou na ponta dos pés até o quarto dos pais, que estavam na sala. Não queria ser percebida antes
da hora. Seu encontro seria à noite, por isso poderia escolher peças mais extravagantes do guarda-roupa
de sua mãe. Laura sempre fora mais antenada com moda do que ela.
Procurando algo semelhante ao que costumava usar no mundo mágico, encontrou uma saia preta
assimétrica que terminava no joelho e um top tomara que caia da mesma cor. Buscou um sapato cinza
com salto pump que a mãe sempre usava e, após encontrá-lo, conseguiu também achar um par de brincos
longos prateados. O visual continuava sombrio, mas sentia-se mais bonita para o garoto. Alisaria o
cabelo pela primeira vez e talvez usasse um pouco de maquiagem. Teve vontade de dar risada ao
imaginar a mãe e Léo vendo-a daquele jeito.
Quando Laura anunciou que Léo chegara, Sophie saiu do quarto respirando com dificuldade, ansiosa
pelo susto que iria pregar neles. Quando dobrou o corredor, pôde ver os olhos arregalados do pai, o
sorriso da mãe e o rosto corado de Leonardo.
Eles tinham gostado. Que bom.
– Esses encontros de vocês precisam ser mais frequentes – comentou a mãe. – Você está linda,
minha filha.
O melhor era que ela também se sentia assim.
George ainda estava chocado e apenas lançou um olhar carrancudo para o garoto, deixando claro
que não era para aproveitar o momento. No fundo, gostava de ver a filha redescobrindo sua beleza.
Sempre acreditara que tinha uma joia rara em casa. Duas, na verdade.
Léo havia chamado um táxi por meio de um aplicativo de celular, e o motorista já os esperava. No
carro, Sophie ficou cada vez mais nervosa com o silêncio do garoto. Esperava algum comentário. Até
que ela sentiu a mão dele apertar a sua e ouviu-o dizer num sussurro:
– Você é maravilhosa.
Aquilo encheu o espírito dela de alegria, a ponto de quase transbordar. Ele não dizia que ela estava
daquele jeito e sim que ela era. Como tinha encontrado um rapaz tão carinhoso?
Ela deitou a cabeça no ombro dele.
– Você é a minha melhor música, AC/DC.
O carro parou diante de um restaurante italiano e eles desceram. Léo não largava a mão dela. Ela
tentava controlar o nervosismo que fazia seu corpo tremer, feliz com a sensação de ser amada.
– Acho melhor ficarmos num lugar mais reservado. Lá fora está vazio – sugeriu ele.
Sentaram-se na parte externa da cantina, iluminada por postes de luz e velas acesas em todas as
mesas. A decoração a fazia se lembrar de Roma e teve saudade do dia em que passeara com os pais
pelas ruas próximas à Fontana di Trevi. Sentia falta de viajar e pensou que talvez o próximo passo fosse
fazer algo assim ao lado dele.
Os dois se acomodaram. Mesmo atencioso, o garoto estava com a mente em outro lugar. Parecia
preocupado e ela não entendia por quê. Estavam juntos, ela se sentia bem e aproveitariam uma linda
noite estrelada. O que poderia acontecer de ruim?
– Promete que não vai ficar brava comigo? – pediu ele, deixando-a mais preocupada.
– Eu tenho motivos para ficar assim com você?
O clima da mesa mudou, e ela começou a perder a coragem de falar com ele sobre o Reino.
– Lembra que, quando estava doente, eu pegava as matérias da sua turma e levava pra você?
Claro que ela lembrava.
– Por que está falando disso hoje?
Tinha um mau pressentimento sobre aquilo.
– Sei que está mudando e, pelo que ouvi da Mônica e da sua mãe, a mudança é para melhor. Fico
feliz que esteja encontrando um pouco de luz e gostaria de ajudar de alguma maneira...
– Mas você já está mais do que ajudando. Você está do meu lado. Não saiu do meu lado esse
tempo todo.
Ela torcia para não borrar a maquiagem. Não queria mostrar mais fraqueza.
– Existe uma ponta solta na sua história e hoje eu gostaria de tentar colocá-la no lugar certo. Há
uma pessoa que quer conversar com você e acho que deveria ouvi-la pelo menos por uns minutos. Ela
merece isso por ter nos ajudado a conseguir as matérias.
Sophie entendeu e desejou sair do restaurante. Já se sentia estúpida por ter se arrumado daquela
forma, achando que aquele era o dia em que ele diria que a amava.
– Eu não acredito que você a trouxe aqui.
Léo conseguia sentir a raiva em cada palavra.
– Confie em mim – pediu ele, enquanto a outra jovem caminhava até a mesa. – Vou deixá-las
conversando por alguns minutos e volto em seguida. Ela não vai ficar por muito tempo, mas acredito
que seria bom escutá-la.
Sophie sentiu vontade de gritar, dizer que não queria mais olhar para ela. Mas ele estava certo. Ela
precisava ao menos escutar o que a garota tinha a dizer.
– Olá, Anna – falou a ruiva num tom desanimado, vendo a antiga amiga se sentar à mesa.
Sophie notou que ela não era mais a jovem vívida de que se lembrava. Porém, quem era ela para
julgar alguém?
– Oi...
Ambas estavam confusas com a situação. A última vez que tinham conversado fora caótica, e a
jovem morena parecia um mau agouro na vida da ruiva. Ao mesmo tempo, desde que haviam se
separado, as duas apenas avançaram para caminhos piores.
– Como você está? – arriscou Anna.
– Neste momento, constrangida.
Para a surpresa de Sophie, a morena não escondeu que estava prestes a chorar.
– Você não entende...
– Não entendo o quê, Anna?
Anna não tinha mais forças para segurar as lágrimas.
– Que desde que você saiu da minha vida eu não sou mais a mesma.
Sophie por um instante também teve vontade de chorar. A maquiagem, lembre-se da maquiagem.
– Sabe como é descobrir por um desconhecido que uma das pessoas que mais amou na vida tentou
se matar?
Foi só então que ela compreendeu por que Anna estava no restaurante.
– Eu tenho visto sua dor de longe, e isso tem me matado um pouco também – continuou a examiga. – Sei que pisei na bola, mas nunca imaginei que passaríamos tanto tempo longe uma da outra.
Você sempre foi a minha outra metade.
– Eu continuo solitária. E duvido que mais alguém além do Léo me ache interessante.
– Não diga isso. – Anna encarou Sophie em um momento de franqueza. – Durante todo esse tempo
em que andamos juntas, sempre achei você a pessoa mais fascinante que conheci. Aprendi muito sobre a
vida e o valor da amizade ao seu lado. Sei que se considera solitária, mas, se pensar bem, nunca esteve
sozinha. Antes, você tinha a mim e o pessoal que andava comigo.
– Eles eram péssimos!
– Eram, né? Mas ao menos eles estavam lá.
Sophie deu o braço a torcer.
– E hoje tem o Léo e a Mônica – continuou Anna. – Você pode não se achar interessante, mas
todos que a conhecem querem ver o mundo pelos seus olhos.
Sophie não esperava ouvir tudo aquilo naquela noite. Era estranho estar com Anna e mais ainda vêla se abrir daquele jeito, admitindo que sentia sua falta. No fundo, sentia a dela também. E matava um
pouco dessa saudade ao lado de Dior, um presente da amiga.
– Sei que deve estar brava com Léo por ter me deixado vir até aqui. Queria te pedir para não brigar
com ele como eu briguei com o Daniel. Fui eu que insisti. Fiquei dias no pé da Mônica pedindo para
ajudar no plano deles de auxiliá-la nos estudos. Agora tive que implorar pra ele arriscar o
relacionamento de vocês pra eu poder falar contigo.
Sophie conseguia perceber que Anna falava sério.
– Eu não tenho bem um relacionamento com ele...
Anna riu do que ela disse. Pelo tom de voz quase sonso, sentiu a amiga de volta.
– Você já está casada com o menino e ainda nem percebeu – brincou ela, fazendo Sophie corar.
– Claro que não, sua “porforona”!
– Falou a menina que ainda não sabe o que é um Dior!
Elas dividiram um sorriso. Por um momento, aquilo as fez parecerem jovens preocupadas com
questões normais. Adolescentes que não pensavam em Reinos mágicos, cartas de tarô ou suicídio.
– Você está com roupa de “quero ser gostosa”. Qual foi a última vez em que se vestiu assim?
– Na festa da Angélica.
Elas suspiraram.
– Há muita mágoa em nossa relação – continuou Anna. – Várias coisas que precisam ser ditas e
pensadas. Não quero mais atrapalhar seu encontro, mas gostaria de pedir uma coisa. Podemos nos ver
novamente?
Sophie pôde ver naquela mesa a mesma garota carismática com quem um dia compartilhou seu giz
de cera quando criança.
– Por favor. Prometo que a gente pode passar uma tarde inteira falando mal da Angélica!
Sophie riu.
– Sem corridas na esteira às oito horas da manhã de sábado?
Anna beijou os indicadores cruzados duas vezes.
– Então tudo bem.
Anna pulou no pescoço dela, atraindo a atenção das pessoas no restaurante. Enquanto se abraçavam
feito irmãs, Sophie sentia um calor desejado há meses. Enfim enxergava com cada vez mais nitidez o
significado da carta da Morte. Antes de a amiga ir embora, notou o colar que ela usava. Nunca
reparara nele antes. O cordão fino carregava uma espécie de amuleto redondo com uma árvore
desenhada preenchendo todo o espaço. Seu formato lembrava a letra “T”. Ao vê-lo, teve vontade de
presentear Sycreth com um daqueles. A joia parecia ter sido feita pelos Tirus.
– Fiz muito mal? – perguntou Léo ao vê-la novamente sozinha na mesa.
– Você sempre me faz bem.
Aquilo era verdade.
As coisas estavam ficando claras, mas ainda não completamente.
Tudo parecia devidamente orquestrado por alguma força superior que ela não entendia. Desde que
conhecera o Reino pela primeira vez, sentira-se eternamente uma de seus habitantes. Agora não
conseguia mais viver sem as pessoas da Terra. Como poderia ficar sem ver os pais, conversar com
Mônica, acariciar Dior, falar ao telefone com Anna e sentir o calor de Léo?
– Sabe... Eu já não queria mais saber deste mundo. Estava cansada de ver tudo tão cinza. Mas foi só
eu te conhecer que o meu mundo virou, e tudo mudou, e eu descobri que é você a pessoa que eu quero
do meu lado.
Léo entendia o que Sophie queria dizer.
– Sei que foi tudo meio sem querer e que eu não sabia o que fazer no começo – acrescentou ele –,
mas o meu mundo também virou e tudo também mudou. E, bem, o que eu posso dizer? E é você.
Ela ficou louca e perdeu o ar sem querer. Sentiu que enfim podia gritar que ele a faria romper a
barreira de seu coração.
Então se beijaram. E se tocaram. Aproveitando aquele cenário mágico. Os dois sabiam que queriam
mais e desejavam poder mais.
Sophie completara a terceira etapa de Mama Lala e já sabia o que fazer.
O mundo girava.
26
N
ão acreditava que tinham se beijado.
Léo ainda caminhava ao seu lado pelas ruas desertas, as mãos entrelaçadas nas suas, e ela
sentia os lábios pulsarem ao recordar o momento mágico de algumas horas atrás. Tinha vontade de
sorrir cada vez que se lembrava da maciez da boca dele, do hálito de menta e de como ele a fitava com
paixão toda vez que seus olhos se encontravam. Era difícil acreditar que na mesma noite havia reatado
com sua amiga e finalmente baixara a guarda para se entregar ao sentimento do amor.
– Acho melhor chamarmos um táxi. Vou te deixar em casa...
Ela concordou, mas não esperava se afastar de Léo tão cedo. A conversa com Anna havia
demorado, e eles mal tinham se falado. Era cedo demais para terminarem a noite, sem contar que ainda
precisavam conversar sobre um assunto muito sério.
Ele só não sabia disso ainda.
Quando o táxi parou diante da casa dela, Sophie viu a luz do quarto dos pais acesa e perguntou:
– Você precisa voltar agora pra casa?
Léo ficou confuso. Também queria ficar com ela, mas, apesar de já ter estado diversas vezes lá,
agora era diferente. Eles tinham finalmente se entregado ao amor.
– Você não quer que eu volte?
Sophie notou um pouco de receio na voz dele. Parecia, na verdade, que Léo ficara nervoso ao pensar
em ficar a sós com ela. Talvez tivesse medo de ser impulsivo. Porém ele a conhecia, respeitava-a e
respeitava seus pais. Só queria que tudo fosse perfeito entre eles, e ela percebia isso.
– Preciso conversar com você. Acho que seria bom entrarmos.
As palavras dela acalmaram seus nervos, seus ombros tensos relaxaram, e ele parou de transpirar
loucamente.
Eles pagaram o táxi e entraram na casa.
– Vou falar com meus pais primeiro. Pode me esperar no meu quarto?
Léo concordou e ambos entraram em corredores diferentes.
Sophie assustou os pais ao entrar pela porta do quarto, abrindo de supetão. Não a esperavam tão cedo,
e por um instante temeram que algo que pudesse desequilibrá-la outra vez tivesse acontecido.
– Filha, já em casa? Está tudo bem?
Ei, bad girl, tudo bem? Não vá se matar de novo, hein?, pensou ao constatar que a mãe ainda se
preocupava com os últimos acontecimentos.
– Não. Está tranquilo – respondeu ela. – Eu só queria ver se está tudo bem se o Léo ficar lá no
quarto comigo. Não queria conversar sério com ele no restaurante.
A expressão de George se modificou na hora. Ele gostava do garoto, mas ainda tinha dificuldades
com aquele tipo de aproximação. Nem Laura pareceu preparada para aquilo, deixando transparecer sua
surpresa. Entretanto, queria pensar no que era melhor para a filha. Já tinha sido jovem e entendia os
dilemas que deviam passar na cabeça da garota.
– Você tem certeza de que é melhor conversarem no quarto?
Sophie não os condenava.
– Vocês conhecem o Léo e sabem que ele não faria nada que eu não quisesse, e eu só quero
conversar. É importante que seja aqui em casa. Preciso de um momento de privacidade.
Laura e George entenderam. Se a filha deles estava pedindo permissão, era porque agia de forma
responsável. Além do mais, se tivesse chegado a hora de ela dar um passo em direção à vida adulta, que
ao menos acontecesse em um ambiente seguro.
– Avise aos pais dele que ele está aqui, minha filha. Não é a situação mais confortável para a gente,
mas, se quiser que ele fique esta noite, tudo bem ele dormir aqui em casa.
– Eu só perguntei se podíamos conversar no quarto, mãe – respondeu a garota, envergonhada e
tentando não encará-los.
– E eu estou dando permissão para que ele passe a noite aqui se precisar. Léo foi um grande amigo
desta família. Sei que ele não vai nos magoar.
O pai continuava carrancudo e calado. Cortando a tensão, a mãe comentou:
– Pode ir, minha filha! Vai entrar em Mármia!
Sophie riu ao sair do quarto e gritou:
– É Nárnia, mãe!
Laura sabia que era.
Encontrou-o visivelmente abalado. Ele, que sempre exalava confiança, não parecia mais tão seguro. Na
verdade, até começara a apertar os dedos como ela fazia, ainda que inconscientemente.
– Falou com seus pais? – A voz dele estava trêmula.
– Eles pediram pra você avisar sua família que talvez durma aqui em casa se ficar tarde.
Sophie viu, para sua surpresa, que o rosto dele ficou branco como a moldura do quadro do Robert
De Niro na parede. Teve vontade de rir, mas sabia que seria pior. Aquela experiência estava sendo
muito diferente. Ela queria contar ao garoto sobre como visitava um Reino encantado nos últimos
meses. Ele e os pais agiam como se ela estivesse implorando por sexo. Sophie achava estranho pensar
naquilo. Seu objetivo não era se entregar fisicamente para ele, ao menos não naquele momento. Queria
se entregar mentalmente. Se ele resolvesse dormir ao seu lado, não veria problema. A presença de
Leonardo era sempre bem-vinda. Só não sabia se ele ficaria após sua confissão.
Será que ele aceitará uma namorada diferente como eu?, questionava-se.
– Vai ligar? – perguntou ela, tentando fazê-lo reagir.
Balbuciando, ele concordou e saiu do quarto. Provavelmente a conversa dele também não seria fácil.
– É a primeira vez que dorme na casa de uma menina? – quis saber ela, ainda achando graça ao vêlo retornar.
– É essa mesmo a pergunta que quer me fazer?
Seu tom não era de raiva ou desafio. Sophie entendia aonde ele queria chegar.
– Eu sei que você não é virgem – disse ela, lendo os pensamentos dele. – Já se olhou no espelho?
Os dois riram da situação.
– Mas você parece um, do jeito como está agindo.
Eles riram ainda mais e deixaram a tensão se dissipar. Sentaram-se na cama, tirando o sapato para
ficarem mais confortáveis.
– Seus pais deixaram?
– Mandaram um beijo – respondeu ele.
Sophie ficou feliz. Não tinha intimidade com os pais dele, apesar de Leonardo ser praticamente da
família. Seus pais já o tratavam como um filho. Ou um genro. Ver que a família dele lhe queria bem fez
com que se sentisse ainda melhor.
– E sim. Esta é a primeira vez que durmo na casa de uma menina.
Ela se sentiu especial.
Nenhum dos dois era mais virgem, mas ambos sabiam que no fundo o que importava era o fato de
estarem juntos. Compartilharem no final da noite um abraço apertado.
– Acho melhor ficarmos mais confortáveis – sugeriu ela, quase não acreditando que realmente
dissera aquilo.
O objetivo daquela noite era outro, mas se via pensando em cama, no corpo dele e em roupas
folgadas. Ou nenhuma roupa. Contudo, o que queria mesmo ao dizer aquilo era trocar a roupa da rua
por um moletom ou camisola, porque odiava qualquer roupa que a apertasse um pouco, ainda mais
dentro de casa.
Dessa vez não dá pra usar nada rasgado, pensou, vasculhando a gaveta de pijamas, ansiosa.
Para a sorte dele, o guarda-roupa de Sophie tinha muitas peças antigas do pai dela. Léo era muito
mais magro que George, mas uma bermuda azul-escura antiga serviu bem nele. Sophie estava lhe
estendendo uma camiseta cinza quando ele falou:
– Não consigo dormir de camiseta.
Ela ficou envergonhada pela primeira vez naquela noite.
Ele achou graça e sorriu de lado. Sua confiança típica estava de volta.
Sophie pediu que ele virasse de costas enquanto ela se vestia.
Os dois estavam no mesmo quarto e tudo indicava que de fato dormiriam juntos, porém a
intimidade ainda não fora conquistada. Léo virou-se e ficou encarando a televisão desligada enquanto
ela tirava uma camisola de algodão preta da gaveta. Pela tela escura, podia notar a silhueta dela.
Ele acompanhou seus movimentos enquanto a ruiva deslizava a saia para o chão e percebeu a
pequena curva abaixo do quadril. Achou fofa a calcinha de caveiras no estilo shortinho e teve vontade
de rir porque aquilo era bem a cara dela.
Sophie tirou o top em seguida, revelando o sutiã preto sem alças. Ele acompanhou o movimento das
mãos dela ao desabotoá-lo. Depois, ela vestiu a camisola e virou-se para a frente. Quando estava
completamente vestida, pediu que ele olhasse para ela. Léo ficou um pouco constrangido por não ter
desviado o olhar do reflexo.
– Eu trouxe você aqui porque queria conversar...
Não era bem o que ele imaginava. Tinha sido pego desprevenido. Ela já dissera aquilo antes, mas ele
não compreendia bem o que estava fazendo naquele quarto e com as roupas do pai dela. Tinha acabado
de ver de relance as curvas do corpo da garota. Não sabia muito bem se conseguiria se concentrar.
– É importante – afirmou ela, ao ver os olhos dele vagarem.
Léo percebeu que precisava parar de pensar na atração que sentia por ela. Tinha vontade de tê-la
nos braços e de beijá-la a noite toda, repetir diversas vezes que era com ela que ele queria ficar. Mas a
conhecia muito bem e entendeu que aquele não era o objetivo da noite.
– Estou sempre aqui pra te ouvir, AC/DC.
Isso a fez recordar a primeira vez que se viram.
Ela fez uma longa pausa antes de começar a falar.
– Eu nunca me aceitei – começou a dizer Sophie, voltando a se sentar na cama e dessa vez sendo
acompanhada por ele. – Sempre me achei menor do que os outros. É difícil ter autoestima quando as
pessoas dizem pra você todos os dias com palavras ou olhares que é magra demais, ruiva demais, dark
demais ou alguma outra coisa demais.
– Acho que sei um pouco como é se sentir assim...
Ela duvidava, mas gostava de ver que ele prestava atenção.
– Eu sempre me preocupei em tentar olhar o interior das pessoas. O humor delas, seus interesses e
como elas enxergam quem está ao seu redor. Mas me vi em um mundo em que o padrão estético fala
mais alto e fui me sentindo cobrada a seguir esse padrão. Cheguei por muito tempo a ter ciúmes da
minha própria mãe.
– Como assim? – perguntou Léo, abismado.
– Cresci tendo a minha mãe como um exemplo de mulher bonita e carismática. Uma combinação
com a qual é difícil competir. Ao longo dos anos, precisei escutar de familiares e conhecidos o quanto
eu não sou parecida com ela, e isso me deixava mal. Fui me sentindo inferior e não conseguia mais me
olhar no espelho. E antes eu nunca tinha feito questão de ser necessariamente uma pessoa bonita.
– Vocês duas são lindas... – Ele tentou consolá-la.
– Hoje eu sei, mas crescer com isso não foi fácil. Ainda sinto o olhar das pessoas sobre mim. Elas
acham que vou correr para o banheiro assim que eu terminar a sobremesa. Isso não é legal. Acho que
esquecem que sou humana, que tenho sentimentos.
– É triste ouvir isso. E ao longo da vida você não teve muitas pessoas ao seu lado, né?
– Quase ninguém. E por ironia fui ser amiga justamente da Anna, uma menina que podia ter sido
filha da minha mãe.
O garoto parecia entender aonde ela queria chegar com a conversa.
– Anna é muito mais comunicativa do que eu. Sei que sou inteligente e que até tenho conteúdo pra
falar, mas durante todo esse período escolar me escondi no brilho dela e deixei que ela falasse por mim.
– Nisso eu tenho que concordar. Sem dúvidas a Anna fala muito mais do que você – disse ele rindo
e jogando um travesseiro nela para tentar descontraí-la um pouco.
– Viu só? Até meu namorado acha isso – brincou ela, também rindo.
A palavra fez o clima mudar outra vez. Eles ficaram sem graça por alguns segundos, e seus olhares
brilhavam como se estivessem dominados por magia.
– Que sorte a sua de que ao menos o seu namorado quer ouvir o que você tem a dizer. Ele acha que
seu brilho é maior do que você imagina.
Ela se sentiu feliz e compreendida.
Eu teria sido mais feliz se o tivesse encontrado antes na minha vida.
Sophie então compartilhou mais de seu passado e falou de todos os anos ao lado da amiga.
Relembrou as festas de aniversário cansativas, os colegas que quase não a olhavam, as paqueras da amiga
e todas as fases passadas na juventude. Sophie descreveu como todas elas a haviam marcado de uma
forma negativa, deixando uma cicatriz que a atormentava.
Ela era diferente e sempre se recriminou por isso. Não só fisicamente, mas seu modo de ver o mundo
era mais triste do que o dos outros.
– Mas aí fomos a uma festa há alguns meses e nós brigamos. Você ficou sabendo?
Léo explicou que, no começo, quando ninguém o conhecia, tentaram colocá-lo entre os populares.
Os meninos mais bonitos e queridos da escola o chamaram para sair, para jogar bola. Em uma das
ocasiões, por conta do interesse nela, o garoto arriscou perguntar sobre ela. Nisso surgiu a história sobre
Anna, Rick e Angélica. Ele ainda revelou que tinham recomendado que ficasse longe dela.
– Claro que eu não poderia fazer isso! – completou, antes de Sophie se chatear. – Mas fiquei feliz
de saber que ao menos eles ficariam longe de você.
A ruiva outra vez sorriu. Ele sempre sabia escolher as palavras certas.
Voltando ao tom sério da conversa, ela continuou:
– Quando me vi humilhada por todos da escola, inclusive pela minha melhor amiga, percebi que
precisava ficar sozinha. Nada do que eu fazia adiantava, entende?
– Essa experiência deve ter sido difícil mesmo, mas ainda não entendo por que se fechou tanto.
– Porque você não tem ideia do que é ser rejeitada todo santo dia. Sabe, uma hora a gente passa a
acreditar que não merece companhia.
Léo ficou abalado e percebeu a angústia nas palavras dela. Segurou uma de suas mãos e a olhou nos
olhos.
– Só que algo maravilhoso aconteceu em minha vida e é sobre isso que eu gostaria de falar com você
– continuou ela, retribuindo o olhar.
O clima permaneceu misterioso por alguns segundos. Sophie precisava reunir coragem para
confessar. Sentia estar correndo muitos riscos. Caso Léo decidisse deixá-la, perderia o rumo.
– Você vai me dizer ou eu preciso chamar os universitários? – brincou ele, mas parecia sentir a
importância do que viria em seguida.
– Promete me escutar até o fim antes de formar qualquer opinião?
Ele achou aquela pergunta estranha. Será que os rumores de que ela se drogava eram verdadeiros?
Teria dificuldade de ouvir aquilo. Os calmantes já haviam sido pesados demais para sua filosofia de
vida.
– Você está me deixando preocupado agora.
– Eu que vou ficar se você não prometer – advertiu ela. – Tenho coisas sérias pra contar, mas
preciso que mantenha a mente aberta.
Por causa do estresse, a palma da mão do jovem voltou a suar. Ela notou quando ele a secou na
bermuda.
– Eu prometo, Sophie. Nunca dei motivo pra você duvidar do meu carinho. Ouvirei tudo que tem
pra me dizer.
Aquilo a fez respirar com mais calma. Confiava nele. Podia ser sincera.
– Na noite em que briguei com Anna na festa, eu fui sugada por uma força maior e levada pra outra
dimensão.
Quando ouviu as palavras ditas em voz alta, percebeu o quanto de insanidade havia nelas. Ela
acreditava em tudo que tinha acontecido, porém compreenderia se ele a achasse uma descontrolada.
– Como assim?
Pelo menos ele ainda não saiu correndo.
– Eu acordei em outro lugar, onde descobri ser uma princesa. Encontrei pessoas que me esperavam
há muito tempo e percebi que elas me amavam. Elas me admiravam. Por dentro e por fora.
Léo tentava absorver cada palavra dita, mesmo já estando confuso.
– Como percebeu que era uma princesa e estava em outra dimensão?
As perguntas dele a tranquilizaram.
Vai dar tudo certo. Precisa dar.
– Tudo lá é mais colorido e vivo do que aqui. Você precisa ver, Léo! Lá existem flores de todos os
formatos que cantam, árvores de ouro puro, criaturas como fênix e fadas. Há tanta magia e tanta alegria
naquele local que ele nunca poderia ser parte da Terra. Aqui não é como lá. Conforme fui conhecendo
esse lugar, aprendi que sou a herdeira do trono deles. Minha avó é a Rainha e ela me aguardava há
muito tempo.
– Você viu uma de suas falecidas avós por lá?
Mesmo sendo uma situação estranha, as perguntas dele demonstravam interesse.
– Na verdade, não. Ny, minha avó no Reino, não tem qualquer relação com meus pais. Mas,
quando a abracei pela primeira vez, tive certeza de que ela era da minha família.
Ele deu um longo suspiro.
– Dá pra ver que isso é bem confuso, né?
– Claro que dá – disse Sophie, compreensiva. – Tenho vivido essa situação caótica há meses. De
início, achei que tinha enlouquecido, mas hoje sei que é real. Sei que é difícil acreditar em tudo, Léo. Só
que também sei que não estou louca.
Por favor, acredite que não estou louca, pensou, temendo o pior.
– E quando você sabe que está nesse lugar?
Sophie ficou aliviada de ver que a conversa não terminara.
– Acontece quando eu durmo. Eu me sinto sugada e tenho certeza de que não estou sonhando, mas
visitando o Reino.
– Esse lugar não tem um nome? Você fica repetindo que estava no Reino – brincou ele.
– Não, não tem, acredita? Essa é a parte mais estranha.
– Claro – respondeu Léo, rindo. – O Reino não ter um nome é a parte mais doida de tudo isso que
você está me contando. Mais do que flores cantarolando e fênix, até mais do que a minha namorada ser
princesa de algum lugar.
Ela riu também, mas logo se lembrou da seriedade do que estavam falando.
– Durante meses, desejei voltar para aquele lugar e estar com aquelas pessoas. Pela primeira vez na
vida, me senti rodeada de carinho e amor puro. Isso foi incrível! Era como se eu começasse a ser
enxergada, por isso precisava ficar mais tempo por lá. Desejei muitas vezes não voltar pra casa. Queria
dormir eternamente...
O clima voltou a se modificar.
– Por isso tomou todos aqueles comprimidos...
Ela suspirou.
– Por isso tomei todos aqueles comprimidos.
Ela sabia o quanto Léo devia estar chateado. Sua tentativa de suicídio havia marcado muitas pessoas,
inclusive o rapaz.
– Conversou sobre isso com mais alguém? – perguntou ele, receoso.
Sophie não sabia se compartilhava aquela informação. O psicólogo conhecia seu estado e devia
classificá-la como uma variação da síndrome de Alice no País das Maravilhas. Era uma doença que
alterava a realidade e trazia similaridades com o livro famoso. Os casos relatados pela psicologia
envolviam alucinações, causando distorções da percepção visual da vítima. As pessoas viam objetos
próximos parecerem desproporcionalmente pequenos, as horas pareciam passar muito devagar, e o
doente percebia distorções no próprio corpo, acreditando que mudava de forma ou tamanho. A
síndrome era frequentemente associada a enxaquecas e ao uso de drogas psicoativas, como LSD. No seu
Reino, ela convivia com pessoas, formas e estilos diferentes. Se tivesse usado alguma droga,
provavelmente teria uma visão parecida com a que tivera ao voar com Condx.
Quando parava para pensar, percebia que havia pontos semelhantes entre seu caso e a síndrome, mas
não conseguia deixar de acreditar na existência do Reino e dos Tirus.
Eles não podiam ser frutos de sua imaginação.
Além do mais, se os sintomas dela fossem tão característicos da síndrome, já teria sido
diagnosticada e poderia estar passando por outro tipo de tratamento.
Como havia prometido a si própria dizer a verdade, resolveu arriscar:
– Falei para o meu psicólogo há umas boas semanas. Não o julgue por não compartilhar com vocês.
Ele só está fazendo o seu trabalho e mantendo a minha privacidade.
Pela primeira vez naquela conversa, ela viu Léo se alterar.
– É sério que esse cara sabia que você andava vendo coisas e não nos contou? O mesmo psicólogo
que falou com você antes de tentar se matar?
As veias saltavam no rosto magro dele, e Léo passava incessantemente as mãos no cabelo.
– Eu não estava apenas vendo coisas, Léo. Estava realmente vivendo-as. Passei momentos lindos
com os seres e as pessoas desse lugar mágico, e também refleti bastante. Os aprendizados que tive nos
últimos meses foram muito intensos. O dr. David acabou me ajudando a enxergar isso de alguma
forma. Até minha tentativa de suicídio me ajudou.
– Como você pode me dizer com essa calma que tomar um pote inteiro de comprimidos te ajudou?
Lágrimas escorriam dos olhos dele. Ela tentava ignorá-las, porque precisava vencer aquela noite. Só
assim completaria todos os ensinamentos de Mama Lala.
Sabia para que as cartas serviam. Começava a entender seu papel no Reino e na Terra. Só quando
terminasse aquela conversa compreenderia seu caminho.
– Até algumas semanas atrás, eu estava completamente decidida a não viver mais na Terra. Se
minha tentativa não tivesse falhado, eu não teria percebido que na verdade quero continuar aqui.
– Você está me deixando confuso...
– Eu entendo, mas em algum momento você vai precisar tentar me compreender. Eu não queria
mais viver, Léo. Mesmo sabendo que ia perder vocês. Eu estava disposta a isso. Consegue ver o estado
em que me encontrava?
As palavras pareciam perfurá-lo como lâminas de espadas. Após aquelas revelações, começara a
mostrar indignação.
Ele tinha medo de abrir a boca, então apenas aquiesceu.
Ficaram mudos por um bom tempo.
Sophie o encarou com olhos serenos, buscando perdão. Ele apoiava a cabeça nos joelhos e parecia
estar de olhos fechados.
– Só porque você estava inconsciente, não quer dizer que era invisível. Nós sofremos junto com
você. Eu quase morri também naquela noite.
– Eu estava doente, Léo.
O garoto levantou a cabeça, e ela notou o rosto molhado.
– Estava?
Ela sorriu com ternura.
– Somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário. Você se lembra?
– Todas as noites.
O momento em que os olhos se encontraram falou mais do que toda a conversa. Ela havia se perdido
em algum momento da vida. Ele a trouxera de volta para casa.
– Hoje eu preciso me despedir deles... – explicou ela.
– Das pessoas desse Reino mágico onde até as flores cantam?
Eles riram e perceberam que nunca seriam um casal normal. Ainda mais depois daquela noite.
– Sim. Desse Reino onde as vozes não se calam.
Ambos sorriram. Aquele parecia um conto de fadas diferente daqueles dos livros de capa dura
empoeirados.
– Então, se tudo isso fez você perceber que precisa viver, eu gostaria de acompanhá-la no fim da sua
jornada.
O coração de Sophie parou por alguns segundos.
Mas não havia mais dúvidas em sua mente.
– Porque somos duas almas perdidas...
– Porque é você.
Sophie apagou a luz do quarto, os dois se deitaram na cama e encararam o teto. A escuridão os
envolveu conforme suas mãos se entrelaçaram.
O sono magicamente tomou conta do corpo de ambos.
E o grito da fênix foi ouvido.
27
C
aminhou a passos lentos pelo longo corredor de pedras que levava ao portão do castelo musical.
O mesmo trajeto que percorrera em sua primeira visita ao Reino.
Sophie usava pela primeira vez um vestido rodado de baile com tecido escuro, lembrando aqueles
usados por atrizes de cinema em festas de premiação. O tule preto lhe cobria apenas um ombro,
terminando em um laço, e a saia rodada cobria as pernas de modelo. O cabelo estava solto em cachos
bem mais suaves do que o normal, mas ela ainda sentia o peso da minicartola na lateral esquerda da
cabeça. Para não perder o costume, tocou-a, notando as três pontas de sua coroa.
Era uma princesa.
Nunca se esqueceria daquilo.
Mesmo conhecendo o lugar, sabendo o que e quem a encontraria do outro lado daquela porta, agora
caminhava de uma forma diferente. Um jovem com smoking marrom, gravata-borboleta e cartola
vermelha seguia ao seu lado. Seus dedos continuavam entrelaçados, e ela tentava entender como era
possível que ele estivesse no Reino junto com ela.
Quando atravessou o portão guardado por dragões de pedra, aqueles que tanto amava apareceram.
Sycreth vinha caminhando pela esquerda, usando um bonito vestido de gala e as tradicionais asas na
cartola. Sorria abertamente e, quando trocaram olhares, ficou claro que todos sabiam que ela tinha
completado sua verdadeira missão.
Phix e Jhonx vinham ao lado usando trajes roxos com acessórios de tonalidade azul-clara. O
Ministro a aplaudia conforme andava a passos largos. Já o gato estalava os dedos do mesmo jeito que
havia feito quando se conheceram. E então ela notou.
As flores cantavam!
A melodia sussurrada voltava a invadir todos os cantos possíveis e, quando arriscou olhar para o
companheiro, pôde notar o deslumbre dele.
Aquela que a menina tanto esperava vinha acompanhada de uma pessoa também muito especial.
Sua avó e Mama Lala caminhavam como duas senhoras dignas de receberem o título de realeza.
Surpreendeu-se ao ver a vidente produzida ao lado da majestade. Seu último encontro com Ny resultara
em mágoa. Sentia saudades da Rainha.
– Minha família...
Seu sussurro ecoou para todos os lados e foi repetido pelas flores próximas. A realeza, seus amigos
dos céus e todos os Tirus reuniram-se ao redor do casal.
– Estamos orgulhosos! – exclamou Mama Lala, quebrando a expectativa ampliada pelo silêncio da
comunidade.
– Estamos muito orgulhosos – complementou a avó, tomando a dianteira para segurar as mãos da
neta.
As duas estavam frente a frente. Sophie sentiu o carinho da senhora encantadora.
– Você se tornou uma linda mulher nesta jornada.
– Não foi fácil – confessou a princesa.
– Não era para ser.
As duas sorriram.
– O senhor deve ser o anjo da guarda dela na Terra – disse a Rainha, voltando a atenção para o
rapaz.
Léo ainda não dissera uma palavra desde que tinha sido sugado para o Reino junto com Sophie.
– É uma honra estar aqui – balbuciou ele, tentando entender se tudo aquilo era real.
Tinha vontade de sair tocando tudo e todos para confirmar se aquilo não era mesmo um sonho.
Sophie seria mesmo a princesa do Reino mágico? Uma dimensão em que havia flores cantantes?
– A honra é nossa. Não podemos trazer qualquer um para esta dimensão, apenas quem tem boa
alma. E a sua é boa demais para ser ignorada.
O garoto sorriu e aquiesceu humildemente. A jovem sentia-se completa com a experiência. Se as
flores haviam se fortalecido e as pessoas estavam felizes era porque o círculo de pedras das pixies fora
finalmente limpo. No final, o que Sophie mais queria era não prejudicar aquele povo.
– Lamento por não ter sido a melhor sucessora para seu trono – admitiu Sophie.
– Você sempre será a melhor sucessora para ele.
Os corações de ambas sossegavam.
– Está preparada, alteza? – perguntou o gato com a voz grave.
Léo soltou um palavrão ao ouvir o felino se pronunciar, gerando uma risada coletiva.
Sophie percebeu que precisaria se apresentar perante os Tirus. Os habitantes daquele santuário
precisavam entender seus próximos passos.
– Nunca será fácil – consolou-a o Ministro, percebendo a insegurança no olhar dela. – Mas você
sempre poderá contar conosco para tomar conta deles.
Ela sabia.
Precisava pensar no seu bem, mas tinha total consciência de que a Guardiã, o Ministro, a Rainha, a
vidente e todos os outros continuariam a fazer um excelente trabalho.
Sophie brilhava, e Léo notou. Da sua pele jorrava uma luz pouco natural, porém reconfortante,
como se a presença dela fosse sagrada. E, para aquelas almas, era mesmo.
– As cartas não mentem – disse a bruxa, segurando um cetro parecido com o de Jhonx.
– E você fez por merecer sua presença aqui – finalizou a Guardiã abraçando-a. – Nunca se esqueça
de nós.
A jovem loira caminhou até ela e pendurou um medalhão muito familiar em seu pescoço. A árvore
desenhada no formato da letra “T” brilhava em seu colo, reluzindo ainda mais o brilho do ambiente.
Sophie pôde notar que a protetora dos segredos usava uma joia igual e sentiu-se grata pelo mimo. Pela
memória. Aquele medalhão era o símbolo de uma eterna parceria.
– Minha Guardiã dos segredos, eu gostaria de agradecer e fazer um último pedido – começou
Sophie, com lágrimas nos olhos.
– O que estiver ao meu alcance.
– Gostaria de pedir que os segredos deste Reino não sejam mais guardados.
Sycreth sorriu ao entender.
– Você gostaria então que...
– Gostaria que você os narrasse. Gostaria que registrasse para sempre essa história e, por meio desse
registro, deixasse as portas abertas para todos que quiserem visitar esta dimensão. Pessoas que precisam
deste mundo, independentemente de nós.
– O prazer será meu.
Chegara o momento.
Sentia-se preenchida pela presença de todos de uma forma divina. Queria estar com aqueles que
tanto a amavam.
Sophie caminhou até as escadas e todos a acompanharam. Sentou-se sutilmente nos degraus,
deixando o vestido esparramar. Acompanhou os passos de Léo e o viu sentar-se ao lado do Ministro.
Notou os olhares curiosos dos Tirus em direção ao garoto e imaginou o choque que deviam sentir. Era
preciso esclarecer tudo.
– Devo ser a princesa menos convencional das histórias dos bardos.
Todos riram.
– Mas sei que sou a mais feliz deste e de outros mundos.
Eles sabiam.
– Só porque construímos uma fonte de achocolatado – acrescentou o gato Jhonx.
Mais risadas foram ouvidas.
– E quem não seria feliz com algo assim? – perguntou Sophie.
Eles gargalharam.
– Quase um ano atrás apareci na vida de vocês. Ressurgi de meu isolamento terrestre e vim com a
promessa de reinar e suceder minha querida avó.
As centenas de cartolas continuaram imóveis, ouvindo-a.
– Conheci Mama Lala e descobri que precisava me conhecer para ser digna de salvar este Reino.
Mas algo aconteceu durante os últimos meses de descoberta. Percebi que vocês nunca precisaram ser
salvos. Eu era a única que estava perdida e, com a ajuda de vocês e de outras pessoas que não estão
aqui, consegui me redescobrir. Aprendi a me amar e a entender a essência de ser um Tiru.
As flores sussurravam uma melodia suave.
– Um Tiru é capaz de amar mais do que tudo. Capaz de ver além da superfície. Hoje sei que sou
capaz disso. De amar e de enxergar. Graças a vocês, sou outra pessoa. Seria capaz de ser uma Rainha.
Eles entendiam.
A redescoberta de Sophie a levava para mais perto da Terra. Havia toda uma vida que não seria
capaz de deixar para trás.
– Eu nunca vou abandoná-los e sei que vocês sempre pensarão em mim. Talvez anos se passem.
Pode ser que nunca se lembrem de que um dia era para eu ser a Rainha deste mundo. Mas para sempre
me recordarei deste momento e do carinho e respeito que dividimos, apesar de sermos de mundos
diferentes. Viemos da mesma força maior. E ela nos mantém unidos.
Ouviu por três vezes um “viva” coletivo. O som explodia como fogos de artifício.
– Viva! Viva! Viva!
Sophie queria viver.
Aquela havia sido uma jornada para ela. E também para todos os envolvidos em sua história. Antes
de realmente se despedir, sentiu que precisava recitar mais algumas palavras, dizer o que havia
aprendido. E faria isso cantando.
– Gostaria que as flores acompanhassem meus últimos dizeres – pediu a princesa.
– Os últimos por enquanto – completou a avó.
A voz melodiosa de Sophie encantou todo o Reino:
– Se você sonhar, deixe acontecer. Respire. Seja mais. Seja você. Onde estiver, deixe acontecer. Que é melhor voar.
Sendo mais sendo você.
Condx e a Fênix abriram as asas ao seu lado.
– Não procure esse jeito ou aquele jeito de ser, se o que importa é o que mora dentro de você. Quando falar o
sentimento, ouça o seu coração. Aceite suas falhas, seus medos e veja beleza na imperfeição.
Léo a encarou extasiado.
– Não se ocupe com o passado ou com o que está por vir. Esteja no momento, que é melhor viver do que existir.
Esqueça o que te disseram. Julgamentos são banais diante de tudo o que é maior, e você é capaz.
Quando lançou um último olhar para seus companheiros, sentiu os dedos do rapaz novamente se
entrelaçarem nos seus e ouviu um coro cantar:
– Onde estiver... Deixe acontecer... Que é melhor voar... Sendo mais... Você.
A fênix singrou, deixando para trás seu som enérgico.
Sophie voltava para seu verdadeiro mundo. Ele poderia não ser tão mágico e lindo, mas ela podia
admirar suas belezas imperfeitas. Sempre fora uma linda boneca quebrada.
Que acabara de se consertar.
28
S
ophie abriu os olhos e viu de novo o velho e querido teto.
Tudo continuava no mesmo lugar. A televisão, a escrivaninha, os livros, o ventilador, o pôster
do Robert De Niro e até o rapaz deitado ao seu lado.
Quando o pensamento voltou à realidade, temeu ter vivido a experiência tocante apenas com os
seres mágicos. No entanto, lembrava-se da presença do rapaz e da expressão maravilhada dele. Não
acreditava ter sido uma brincadeira de sua mente. Era real.
Recordava-se de Léo no Reino, então ele estivera lá. Teve certo receio de se virar e encará-lo. Era a
primeira vez que compartilhava aquela experiência com alguém.
Sentiam a respiração um do outro. Sabiam que estavam acordados. Tinham passado a noite juntos.
Amaram-se intensamente.
Léo virou o corpo de lado e a abraçou dizendo:
– Esta noite foi maravilhosa...
Alívio. Felicidade.
Sim, aquela noite havia sido.
A ruiva, antes solitária e cinzenta, tornara-se uma mulher capaz de refletir todas as cores.
Virando-se de lado e encaixando-se no abraço dele, ela pôde sentir algo pesado cair no travesseiro
por conta da movimentação de seu pescoço. Sentindo o objeto gelado na mão, percebeu que era o
medalhão presenteado por Sycreth e fechou os olhos, grata por ter descoberto uma razão para lutar
contra sua escuridão.
Ao abrir os olhos, viu sua enciclopédia alinhada na prateleira mais alta do quarto.
Algo chamou a sua atenção.
– Porque do alto é possível saber a verdade. Tudo que vem do céu é mais forte.
Os exemplares estavam embaralhados e havia cinco deles em posições diferentes. Os fascículos com
as letras “T”, “I”, “R” e “U” estavam fora de ordem.
Uma palavra se formara.
Sua vida se modificara por causa dela.
Por causa de um povo mágico.
Por causa do Reino das vozes que não se calam.
PLAYLIST DAS MÚSICAS:
Royals – Lorde
Aerials – System of a Down
Flores – Sophia Abrahão
Losing My Religion – REM
What a Wonderful World – Louis Armstrong
Wonderwall – Oasis
While My Guitar Gently Weeps – The Beatles
Wish You Were Here – Pink Floyd
Home – Edward Sharpe and The Magnetic Zeros
É você – Sophia Abrahão
Se você sonhar – Sophia Abrahão
BANDAS CITADAS:
Nirvana
Ramones
AC/DC
Copyright © 2014 by Carolina Munhóz e Sophia Abrahão
Direitos desta edição reservados à
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Esta é uma obra de ficção. Personagens, incidentes e diálogos foram criados pela imaginação das
autoras e sem a intenção de aludi-los como reais.
Qualquer semelhança com acontecimentos reais ou pessoas, vivas ou não, é mera coincidência.
Gerente editorial
ANA MARTINS BERGIN
Editores assistentes
ELISA MENEZES
LARISSA HELENA
MANON BOURGEADE (ARTE)
MILENA VARGAS
VIVIANE MAUREY
Assistentes
GILVAN BRITO
SILVÂNIA RANGEL (PRODUÇÃO GRÁFICA)
Revisão
SOPHIA LANG
WENDELL SETUBAL
Coordenação Digital
LÚCIA REIS
Assistente de Produção Digital
JOANA DE CONTI
Revisão de arquivo ePub
CECILIA B. CAVALCANTI
Edição Digital: agosto 2014
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M938r
Munhóz, Carolina
O reino das vozes que não se calam [recurso eletrônico] / Carolina Munhóz, Sophia Abrahão. - 1. ed. - Rio de
janeiro : Fantástica Rocco, 2014.
recurso digital
ISBN 978-85-68263-02-0 (recurso eletrônico)
1. Ficção infantojuvenil brasileira. 2. Fantasia - Ficção. 3. Livros eletrônicos. I. Abrahão, Sophia. II. Título.
14-14334
CDD: 028.5
CDU: 087.5
O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
AS AUTORAS
CAROLINA MUNHÓZ é jornalista e autora de três outros livros de fantasia, além de integrante do
maior site da série Harry Potter no Brasil, o Potterish, e do podcast RapaduraCast. Eleita a melhor
escritora pelo Prêmio Jovem Brasileiro de 2011, destacou-se em diversos veículos de imprensa e mídias
sociais, conquistando o público juvenil com sua escrita instigante e sensível.
CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA EM:
www.carolinamunhoz.com | @carolinamunhoz
SOPHIA ABRAHÃO é atriz, modelo e cantora. Atuou em diversas novelas de grandes redes de TV
nacionais e também no filme Confissões de adolescente. Em 2012 e 2013 recebeu várias premiações, entre
elas o prêmio Capricho Awards como melhor atriz nacional e melhor blog. Personalidade de grande
destaque na mídia, agora Sophia ingressa no mundo da literatura.
CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA EM:
www.sophiaabrahao.com.br | @sophiaabrahao
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O reino das vozes que nao se ca – Carolina Munhoz