QUARTA REGIÃO QUARTA REGIÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 1-504, 2004 Ficha Técnica Direção: Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Assessoria: Isabel Cristina Lima Selau Chefia de Gabinete e Coordenação: Eliane Maria Salgado Assumpção Análise e Indexação: Eliana Raffaelli Marta Freitas Heemann Revisão, Formatação e Layout: Gaspar Paines Filho Maria Aparecida C. de Barros Berthold Maria de Fátima de Goes Lanziotti Rodrigo Meine Os textos publicados nesta revista são revisados pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. – Vol. 1, n. 1 (jan./mar. 1990). – Porto Alegre: O Tribunal, 1990 – v. – Trimestral. ISSN 0103-6599 1. Direito – Periódicos. 2. Direito – Jurisprudência. 1. Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª Região. CDU 34(051) 34(094.9) TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4ª Região Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300 CEP 90.010-395 - Porto Alegre - RS PABX: 0 XX 51-3213-3000 e-mail: [email protected] Tiragem: 750 exemplares QUARTA REGIÃO MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA Desa. Federal Diretora da Escola da Magistratura TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4ª Região JURISDIÇÃO Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná COMPOSIÇÃO Em setembro de 2004 PLENÁRIO Des. Federal Vladimir Passos de Freitas - Presidente Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Vice-Presidente Des. Federal Vilson Darós - Corregedor-Geral Des. Federal Nylson Paim de Abreu Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Diretora da Escola da Magistratura Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva Des. Federal João Surreaux Chagas - Vice-Corregedor-Geral Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère - Conselheira da Escola da Magistratura Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon - Conselheiro da Escola da Magistratura Des. Federal Tadaaqui Hirose Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Des. Federal Néfi Cordeiro Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira Des. Federal Celso Kipper Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira Des. Federal Otávio Roberto Pamplona PRIMEIRA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Des. Federal João Surreaux Chagas Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira SEGUNDA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz TERCEIRA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Des. Federal Nylson Paim de Abreu Des. Federal Néfi Cordeiro Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira Des. Federal Celso Kipper Des. Federal Otávio Roberto Pamplona QUARTA SEÇÃO Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler - Presidente Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Des. Federal Tadaaqui Hirose Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado PRIMEIRA TURMA Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria - Presidente Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Des. Federal Álvaro Eduardo Junqueira (convocado) SEGUNDA TURMA Des. Federal João Surreaux Chagas - Presidente Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira TERCEIRA TURMA Desa. Federal Silvia Maria Gonçalves Goraieb - Presidente Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz QUARTA TURMA Des. Federal Amaury Chaves de Athayde - Presidente Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior Des. Federal Valdemar Capeletti QUINTA TURMA Des. Federal Néfi Cordeiro - Presidente Des. Federal Celso Kipper Des. Federal Otávio Roberto Pamplona SEXTA TURMA Des. Federal Nylson Paim de Abreu - Presidente Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Des. Federal João Batista Pinto Silveira SÉTIMA TURMA Des. Federal José Luiz Borges Germano da Silva - Presidente Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Des. Federal Tadaaqui Hirose OITAVA TURMA SUMÁRIO DOUTRINA ....................................................................................... 13 Princípio do juiz natural Nylson Paim de Abreu............................................................. 15 O exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo para a aplicação da sanção administrativa depois da Lei nº 9.873/99 Marga Barth Tessler................................................................ 35 Questões polêmicas quanto aos impostos e contribuições incidentes na tributação do comércio internacional Maria Lúcia Luz Leiria........................................................... 57 O contempt of court no novo processo civil Paulo Afonso Brum Vaz........................................................... 69 Crime de corrupção passiva: análise do art. 317 do Código Penal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.................................. 99 ACÓRDÃOS.................................................................................... 109 Direito Administrativo e Direito Civil................................... 111 Direito Penal e Direito Processual Penal............................... 205 Direito Previdenciário............................................................ 331 Direito Processual Civil......................................................... 357 Direito Tributário................................................................... 383 ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE........................... 453 ÍNDICE NUMÉRICO....................................................................... 467 ÍNDICE ANALÍTICO...................................................................... 471 ÍNDICE LEGISLATIVO.................................................................. 497 12 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 DOUTRINA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 13 14 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Princípio do juiz natural Nylson Paim de Abreu* Sumário: 1. Introdução; 2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina; 3. Princípio do juiz natural na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 4. Princípio do juiz natural no direito constitucional brasileiro positivo; 5. Juiz natural e a formação do litisconsórcio; 6. Princípio do juiz natural e os “mutirões” de julgamentos nos Tribunais; 7. Juiz natural e foro especializado em razão da matéria ou por prerrogativa de função; 8. Conclusão; 9. Bibliografia. 1. Introdução Antes mesmo do início da Idade Média os cidadãos já esboçavam o desejo da institucionalização de um juiz natural, o que veio a acontecer mais tarde em França, consoante o escólio de Rui Portanova: “A primeira referência legal à expressão ‘juiz natural’ é do artigo 17 do título II da Lei Francesa de 24.08.1790. Também aos franceses se deve a prioridade da primeira referência constitucional no texto fundamental de 1791. Contudo, a Magna Carta Inglesa de 1215, mesmo com a distribuição da justiça ainda pelos proprietários de terra e a incipiente justiça estatal, já previa sanções a condes e barões (art. 21) e homens livres (art. 39) após ‘julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra’. No mesmo diploma encontra-se: ‘nenhuma multa será lançada senão pelo juramento de homens honestos da vizinhança.’ (art. 39).”1 * Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 1 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4.ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 63. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 15 Com efeito, o princípio do juiz natural, amalgamado nos princípios da legitimidade, da imparcialidade e da igualdade, constitui apanágio da justiça, anseio maior de toda sociedade civilizada. Nesse sentido, é oportuna a lição sempre lúcida da Profa. Ada Pellegrini Grinover: “mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível”.2 Segundo a doutrina processual autorizada, o primeiro requisito do juiz natural é a sua legitimidade, ou seja, órgão estatal investido de jurisdição conforme os ditames legais e constitucionais. Como decorrência lógica daquele princípio, o órgão jurisdicional há de ser imparcial, de molde a que sua decisão seja imune a interferências externas. Por isso, o juiz deve subordinar-se única e exclusivamente à Constituição e às leis, sendo que, quanto a estas, poderá deixá-las de aplicar se reconhecê-las inconstitucionais, valendo-se do exercício do controle difuso. A respeito do aludido princípio, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 230009-RJ, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, assentou: “A imparcialidade do magistrado, um dos pilares do princípio do juiz natural, que reclama juiz legalmente investido na função, competente e imparcial, se inclui dentre os pressupostos de validade da relação processual, que se reflete na ausência de impedimento, nos termos do art. 134 do Código de Processo Civil.” (DJU, ed. 27.03.2000, p. 113) Por conseguinte, o órgão julgador somente pode ser constituído nos termos estabelecidos na Constituição e mediante lei específica para tanto. Logo, seria impensável a sua criação por meio de resoluções ou provimentos baixados por Tribunais, salvo quando autorizados por lei. 2. Princípio do juiz natural à luz da doutrina Conforme já referido ao início, a idéia do juiz natural tem sua origem na Magna Carta de 1215, a qual previa “julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra”. Mais tarde, segundo a Profa. Ada Grinover, “na 2 O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo, v. 29, jan./mar-1983, p. 11. 16 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Petition of Rigths e no Bill of Rights o princípio do juiz natural realmente assume a dimensão atual, de proibição de juízos ex post facto.”3 Porém, consoante anota aquela festejada autora, foi a Lei Francesa, de 24.08.1790, que estabeleceu: “A ordem constitucional das jurisdições não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei”.4 Dissertando a respeito do conteúdo do juiz natural, o festejado catedrático da Faculdade de Direito de Montevidéu, Eduardo J. Couture, escreveu: “Tratando de ordenar, em um sistema de idéias, os princípios basilares, radicais, aqueles em torno de que se agrupa toda experiência acerca da função e da incumbência do juiz, eu me permiti reduzi-los a três ordens necessárias: - a de independência, a de autoridade e a de responsabilidade. A de independência, para que suas decisões não sejam uma conseqüência da fome ou do medo; a de autoridade, para que suas decisões não sejam simples conselhos, divagações acadêmicas, que o Poder Executivo possa desatender segundo seu capricho; e a de responsabilidade, para que a sentença não seja um ímpeto da ambição, do orgulho ou da soberbia, e sim da consciência vigilante do homem frente ao seu próprio destino.”5 O professor Athos Gusmão Carneiro, na sua prestigiada monografia sobre jurisdição e competência, embora faça referência à ordem constitucional pretérita, elucida a matéria nas seguintes letras: “A atividade jurisdicional é ‘indeclinável’, e somente pode ser exercida, caso a caso, pelo ‘juiz natural’. Taxativamente proibidos que são, pela Lei Maior (art. 153, § 15), os ‘foros privilegiados’ e os ‘Tribunais de exceção’, a jurisdição somente pode ser exercida por pessoa legalmente investida no poder de julgar, como integrante de algum dos órgãos do Poder Judiciário, previstos no art. 112 da Constituição: Supremo Tribunal Federal, Tribunal Federal de Recursos e juízes federais, Tribunais e juízes da Justiça Militar Federal e Estadual, Tribunais e juízes do Trabalho, Tribunais e juízes eleitorais, Tribunais e juízes estaduais.”6 Em seu clássico Manual de Direito Processual Civil, o saudoso Prof. GRINOVER, Ada Pellegrini, op cit., p. 13. 4 GRINOVER, Ada Pellegrini, op. cit., p. 15. 5 Introdução ao estudo do direito processual civil. 3.ed. Rio de Janeiro : José Konfino Editor, s/d, p. 88. 6 Jurisdição e competência: exposição didática: área do direito processual civil. 2 ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 1983, p. 10-11. 3 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 17 José Frederico Marques anotou: “A jurisdição pode ser exercida apenas por órgão previsto na Constituição da República: é o princípio do juiz natural ou juiz constitucional. Considera-se investido de funções jurisdicionais, tão-só, o juiz ou tribunal que se enquadrar em órgão judiciário previsto de modo expresso ou implícito, em norma jurídico-constitucional. Há previsão expressa quando a Constituição exaure a enumeração genérica dos órgãos a que está afeta determinada atividade jurisdicional. Há previsão implícita, ou condicionada, quando a Constituição deixa à lei ordinária a criação e estrutura de determinados órgãos.”7 O Prof. Nelson Nery Júnior, em sua conhecida obra sobre o princípio do juiz natural, ensina: “Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também o é. E para a facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas, que são atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário.”8 Outrossim, alude o referido autor: “Juízo especial, permitido pela Constituição e não violador do princípio do juiz natural, é aquele previsto antecedentemente, abstrato e geral, para julgar matéria específica prevista na Lei.”9 Em outro tópico assinala: “É, por assim dizer, antes de caracterizar-se como privilégio, uma garantia assegurada à independência e imparcialidade da justiça, destinada a proteger o interesse público geral.”10 Aduz também: “Da mesma forma, os foros constituídos por intermédio de convenção das partes (foros de eleição), se contratados dentro dos limites da lei, isto é, versando apenas matéria de competência relativa, não ofendem o princípio do juiz natural. Isto porque a competência relativa, que já está previamente estabelecida na lei processual, pode ser objeto de prorrogação por acordo das partes ou por inércia do réu que deixar de argüir exceção de incompetência. O sistema processual civil disciplinou esse tipo de São Paulo: Saraiva, 1976, v.1, p. 74 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7.ed. Rev. E atual. com as Leis 10.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 68. 9 NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., p. 68. 10 NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., p. 68. 7 8 18 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 competência, relativa, como sendo de interesse disponível das partes, não sendo, pois, preceito de ordem pública. É importante salientar que o princípio do juiz natural, como mandamento constitucional, aplica-se, no processo civil, somente às hipóteses de competência absoluta, já que preceito de ordem pública. Assim, não se pode admitir a existência de mais de um juiz natural, como corretamente decidiu a Corte constitucional italiana. A competência cumulativa ou alternativa somente é compatível com os critérios privatísticos de sua fixação, isto é, em se tratando de competência relativa.”11 Entrementes, adverte o ilustre processualista nominado: “Não é raro ver-se na administração pública ofensa ao princípio constitucional do julgador natural com a formação de comissões sindicantes ou processantes constituídas ex post facto, caracterizando indiscutivelmente juízo de exceção. Essas comissões, nomeadas depois da ocorrência do fato, tanto podem ter sido formadas para proteger o sindicado ou processado como para prejudicá-lo, pois a autoridade nomeante pôde escolher o acusador e/ou julgador administrativo já tendo conhecimento do fato e/ou de quem foi o seu autor.”12 Também afirma o ilustre mestre paulista: “Esses membros da comissão é que instruirão a sindicância ou processo, interrogando o réu, ouvindo testemunhas, deferindo provas e, ao final, elaborarão o relatório sugerindo a aplicação da pena administrativa. Têm de ser pré-constituídos, competentes e imparciais.”13 Sublinha, ainda: “Essa pré-constituição não empece a administração da justiça, como adverte setor da doutrina, sendo absolutamente necessária para a garantia da imparcialidade do juiz no julgamento da causa que lhe é afeta.”14 Por fim, conclui as suas observações aduzindo: “O princípio do juiz natural aplica-se indistintamente ao processo civil, ao penal e ao administrativo. A cláusula constitucional brasileira, ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’ (art. 5º, LIII, CF) não distingue o tipo de processo que é abrangido pela garantia. A Constituição Imperial de 1824 dispunha expressamente que a garantia da inexistência de foros privilegiados valia para as ‘causas cíveis e crimes’ (art. 179, § 17). As constituições que se lhe seguiram não repetiram o termo ‘causas cíveis’, mas a doutrina sempre entendeu válido o princípio para o procesNERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., 13 NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., 14 NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., 15 NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., 11 12 p. 68-9. p. 70. p. 70. p. 71. p. 72-3. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 19 so civil. Em alguns sistemas, como o constitucional português, o juiz natural é garantia expressa do processo penal (art. 32, 7º, da Constituição da República portuguesa).”15 A propósito do juiz natural, o ilustre magistrado Rui Portanova, em obra densa sobre a matéria, preleciona: “O conceito de juiz natural vem se ampliando. Não se pode mais pensar apenas na hipótese de proibição de tribunais de exceção. Ada Pellegrini Grinover (1990, p. 23), citando doutrina nacional e estrangeira, mostra que há um segundo aspecto do juiz natural: o juiz constitucional. Trata-se do efeito que ‘vincula a garantia a uma ordem taxativa, e constitucional, de competências’. O princípio do juiz natural exige não só uma disciplina legal da via judicial, da competência funcional, material e territorial do tribunal, mas também uma regra sobre qual dos órgãos judicantes (Câmara, Turma, Senado) e qual juiz, em cada um desses órgãos individualmente considerado, deve exercer a sua atividade (Schwab, 1987, p. 125). O princípio é amplamente acolhido pelo mundo afora. Ademais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 prevê em seu art. 10: ‘todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele’. No direito brasileiro, exceto no período do Estado Novo, sempre houve previsão legal a respeito do princípio do juiz natural. Tal acolhimento tem-se dado na dúplice faceta da proibição a tribunais extraordinários ex post facto (proibição de comissão) e proibição de transferência de uma causa para outro tribunal (proibição de avocação). Assim, juiz natural é aquele juiz integrante do Poder Judiciário, regularmente cercado das garantias próprias conferidas àqueles que exercem esse Poder, e, por isso mesmo, independentes e imparciais (Santos Filho, 1990, p. 137).”16 Salienta, ainda, o referido autor: “Não há confundir juízos e tribunais ‘de exceção’ com juízos e tribunais ‘especiais’ ou ‘especializados’ no processo e julgamento de determinados litígios, segundo sua natureza. É da tradição do direito brasileiro a permissão ao poder de atribuição, ou seja, no Brasil não afronta o princípio do juiz natural a criação constitucional de juízos especiais desde que preconstituídos. Costuma-se justificar juízo e foro privilegiados como imposição estrutural e organizacional que viabiliza a distribuição, divisão e especialização de tarefas com vista a um melhor atendimento ao Poder Judiciário deste ou daquele tipo de processo (Andrade Filho, 1983, p. 14). Contudo, tem-se proibido o foro especializado em razão de privilégios pessoais.”17 16 17 PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 64. PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 65. 20 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Vale mencionar, ademais, as oportunas observações do ilustre magistrado gaúcho referentemente às situações anômalas em que o juiz natural fora e continua sendo afastado do processo decisório, verbis: “Ao longo da história legislativa brasileira, têm-se constatado exemplos de violações ao princípio do juiz natural. Da legislação já revogada vale referir, de início, a discutida decisão da Corte Suprema brasileira sobre a constitucionalidade do Tribunal de Segurança de 1935. Por igual, o art. 84 do Decreto-Lei 898/69 era afrontoso ao juiz natural, uma vez que previa julgadores nomeados para julgamento de casos concretos. Eram hipóteses de crime contra a segurança nacional punidos com prisão perpétua e pena de morte. O julgamento se dava por Tribunal formado de ministros militares e membros do Conselho de Justiça. Por fim, também disposições processuais autorizando início de ação penal pela autoridade policial em casos de contravenção (art. 531 do CPP) e homicídio e lesões culposas (Lei 4.611/65) e infrações ao Código de Caça (Leis 4.771/65 e 5.197/67) são violações ao princípio do juiz natural. Há, ainda, alguma legislação de discutida vigência e/ou constitucionalidade com dispositivos afrontosos ao juiz natural. São os casos das execuções extrajudiciais previstas no Decreto-Lei 70/66 e na Lei 5.741/71 (referente ao Sistema Financeiro da Habitação) e aquela prevista no Decreto-Lei 911/60 (referente a bens alienados fiduciariamente).”18 Importantes e elucidativas também são as anotações de Luís Antônio Longo sobre o princípio do juiz natural: “Nesse contexto, deverá o processo cumprir sua dupla finalidade, como já muito bem percebeu Galeno Lacerda: obter a solução da lide e restabelecer a paz social.”19 Refere, ainda, a lição de Luiz Flávio Gomes: “A ele acham-se conectados outros importantes princípios, como a) o da igualdade, b) o da imparcialidade, c) o da anterioridade e o d) da legalidade.”20 Acrescenta, em outro passo: “Assim, a imparcialidade de função e a igualdade não meramente formal das partes, mas, sobretudo, substancial, configuram-se nos pontos de partida para a incidência da garantia do Juiz Natural, ou Constitucional, consolidando-se assim, tal princípio, como manifestação de um Estado Democrático de Direito. Partindo-se da idéia de Galeno Lacerda de que o processo nasce com o objetivo de PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 68. LONGO, Luís Antônio. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo / Adriane Donadel ... [et. al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33. 20 LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 37. 18 19 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 21 resolver a lide e obter a paz social, pode-se afirmar que, do ponto de vista individual, o princípio preponderante é o da igualdade. Contudo, sob o prisma coletivo, no sentido de o processo funcionar como efetivo instrumento de pacificação social, o princípio que consolida o juiz natural é o da imparcialidade.”21 Valendo-se da doutrina italiana, salienta o aludido articulista: “Luigi Luchini, em obra escrita no início do século, assegurava que para a jurisdição ser considerada legítima deve ser: a) legal, no sentido de que não se poderá derrogar a organização judiciária senão por força de uma lei; b) positiva e indeclinável, afirmando que ninguém pode se subtrair à jurisdição exceto nos casos previstos em lei; c) inalterável, no sentido que uma vez que firmada pela lei, não possa modificar-se o juiz natural.”22 Em outro tópico, assevera o mencionado autor: “O terceiro conteúdo dessa garantia diz respeito ao plano da imparcialidade. Aliás, a própria legislação processual, por intermédio das exceções, objetiva resguardar tal princípio por meio de mecanismos destinados a resolver questões que visem a evitar a prestação de atividade jurisdicional por juiz impedido ou suspeito.”23 Salienta, ainda: “Como quinto e último tem-se a garantia de ordem taxativa de competência, que assegura a pré-constituição dos órgãos e agentes excluindo qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja. Eventual modificação de competência deve estar prevista em leis anteriores ao fato.”24 Em outro parágrafo, diz o aludido autor: “Dessa maneira, vê-se que o juiz natural consiste em um dos elementos indispensáveis para a consumação do devido processo legal. Aliás, oportuna a lição de Vigoritti ao afirmar que: ‘a igualdade e contraditório das partes perante o juiz; pré-constituição por lei do juiz natural; sujeição do juiz somente à lei; proibição de juízos extraordinários ou especiais e, finalmente, a independência e imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, consistem nos principais elementos do due process of law.”25 Em tópico seguinte, afirma: “Portanto, conforme acima demonstrado, a gênese da garantia do juiz natural LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 38. LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 39. 23 LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 40-41. 24 LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 41. 25 LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 41. 21 22 22 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 encontra-se atrelada à própria existência do estado democrático de direito e do livre exercício da jurisdição, abstraindo-se de sua origem qualquer conteúdo capaz de violar direitos naturais inerentes a todos os cidadãos. Bem como qualquer idéia centralizadora e ilimitada do exercício dos poderes do estado sobre os jurisdicionados; tudo isso centrado e voltado à vontade geral. A ausência do juiz natural é sinônimo de violento retrocesso sociopolítico, inviabilizando o exercício do poder estatal, especialmente a jurisdição.”26 Aduz, por fim: “A autonomia do juiz em relação aos demais poderes passou por lenta e gradual evolução, até chegarmos à pacífica conclusão da absoluta necessidade de que seja dada ao juiz a autonomia em relação aos demais poderes. Autonomia essa que, hodiernamente, se constata não dizer respeito somente ao exercício da jurisdição, mas constitui-se sinônimo de garantia a todos os jurisdicionados.”27 Juliano Spagnolo, na mesma obra coletiva organizada pelo Professor Sérgio Gilberto Porto, preleciona: “Quanto aos pressupostos da garantia, conforme preceitua o constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, são atribuídos os seguintes: da existência de prévia individualização através de leis gerais; da neutralidade e da independência do juiz; da fixação de competência e da observância de determinações do procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos).” 28 Por derradeiro, é oportuno destacar as palavras do Professor Rui Portanova: “O princípio do juiz natural é verdadeira garantia a ser invocada contra toda e qualquer forma de autoritarismo que queira se justificar através do Poder Judiciário. A invocação do juiz natural, com seu extenso conteúdo democrático, consagra conquistas da humanidade, ao longo de sua história, contra um Judiciário subserviente a comandos ditatoriais que o afrontam. Com base no juiz natural, poderá o operador jurídico pleitear contra invenções legislativas. No mesmo passo, o princípio do juiz natural constitucional é fundamento para afastar toda sorte de influência estranha no Poder Judiciário (tribunais de ocasião, escolhas ou substituições de juízes) tão ao gosto de ditadores que conquistam o Executivo. Numa tentativa de resumo, poderíamos dizer que, sendo um princípio que obriga previsões legais claras e expressas para o futuro e não previsões incompletas e/ou para LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 44. LONGO, Luís Antônio, op. cit., p. 50. 28 SPAGNOLO, Juliano. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo / Adriane Donadel ... [et. al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 155. 26 27 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 23 passado, trata-se de um dos princípios que dá sustentação política à independência do Poder Judiciário e que informa todos os outros princípios ligados à jurisdição.”29 Como se vê, o princípio do juiz natural é defendido pela unanimidade da doutrina e encontra albergue em todas as legislações dos países democráticos. 3. Princípio do juiz natural na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal O princípio do juiz natural tem sido objeto de análise em diversas oportunidades pela Colenda Suprema Corte, como se pode observar das ementas de seus acórdãos a seguir transcritas: “EMENTA: HABEAS CORPUS – No caso, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça é que se tem como coator neste habeas corpus, razão por que é de ser este conhecido. – Improcedência da alegação de ofensa ao princípio do juiz natural. – Em se tratando de incompetência ratione loci, os atos ordinatórios e probatórios praticados pelo juiz incompetente não são anuláveis, mas apenas irregulares. Irregularidades que, no caso, não cerceou a defesa dos ora pacientes, nem lhes trouxe prejuízo. Habeas corpus conhecido, mas indeferido. (HC 76394 / PA. Relator Min. Moreira Alves. DJU, 25.06.99, p. 3) EMENTA: HABEAS CORPUS – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO – A consagração constitucional do princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII) tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo penal democrático. O princípio da naturalidade do juízo representa uma das matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado, condicionado, ainda o desempenho, em juízo, das funções estatais de caráter penal-persecutório. A lei não pode frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa, quando eventualmente submetida a juízo penal, o direito de ser processada perante magistrado imparcial e independente, cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento constitucional. (HC 73801/MG. Relator: Min. Celso de Mello. DJU, 27.06.97, p.30226) EMENTA: HABEAS CORPUS – Inexiste, no caso, ofensa ao princípio do juiz natural, porquanto o ora paciente foi processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por crime praticado durante o exercício do mandato de Prefeito Municipal de Aracu-GO. Observou-se, portanto, o disposto no art 29, X, da Constituição Federal. – Por outro lado, anteriormente à Lei 8.658, de 26 de maio de 1993, competia ao relator receber ou rejeitar a denúncia nas ações penais da competência originária dos Tribunais de Justiça (art. 557, parágrafo único, a, do Código de Processo Penal). Inexistência de nulidade a propósito, porquanto, no caso, a denúncia foi recebida, pelo 29 PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 68-69. 24 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 relator antes da referida Lei 8.658/93. Habeas corpus indeferido. (HC 73021/GO. Relator Min. Moreira Alves. DJU, 01.12.95, p. 41685) EMENTA: IV. STF: competência originária: CF, art. 102, I, n: inteligência: caso em que não há, em princípio, razões para afirmar-lhe a incidência. 4. No mandado de segurança em que juiz de determinado Tribunal pleiteia ser declarado eleito para um dos cargos de sua direção, em detrimento do litisconsorte – cuja eleição para o mesmo posto pretende nula –, o interesse direto na causa a ambos se adstringe. 5. Com relação aos demais membros do Tribunal, o fato de haverem participado com seus votos da formação dos atos administrativos questionados não lhes acarreta, por si só, nem interesse direto ou indireto na solução do mandado de segurança, nem impedimento para julgá-lo. 6. Do princípio do juiz natural, não cabe inferir a presunção de parcialidade dos magistrados que hajam votado na eleição discutida, para a decisão jurisdicional acerca de sua legitimidade jurídica: de bem pouco valeria a isenção juramentada dos juízes, se o fato de haver sufragado um ou outro candidato, em determinada eleição, tolhesse a cada um dos eleitores a imparcialidade para julgar – à luz dos princípios e não da preferência eleitoral – da validade do pleito. (AO 813 AgR/CE. Agravo Regimental na ação originária. Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU, 31.08.01, p. 37) EMENTA: SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE RECEBER DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de qualquer outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada contra membro do Congresso Nacional, reveste-se de nulidade, pois, no sistema jurídico brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal dispõe dessa especial competência, considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos comuns. (Inq 1544 QO/PI. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 14.12.01) EMENTA: HABEAS CORPUS - NULIDADE - PRESSUPOSTO DA DECLARAÇÃO - PREJUÍZO. A declaração da nulidade pressupõe que do ato impugnado tenha surgido prejuízo para a acusação ou para a defesa – artigos 563 e 566 do Código de Processo Penal. Isto não se verifica quando a pecha é articulada pela defesa tendo em conta atuação do Juízo que resultou na absolvição do réu, conclusão robustecida pela circunstância de, ao contrário do alegado, não estar em questão o princípio do juiz natural, no que a colocação da Vara em regime de exceção, passando a atuar certo magistrado, ocorreu cerca de sete meses antes da representação que deu origem a ação penal pública condicionada. (HC 69791/SC. Relator Min. Marco Aurélio. DJU, 23.04.93) EMENTA: HABEAS CORPUS - Qualquer tentativa de submeter os réus civis a procedimentos penais-persecutórios instaurados perante órgãos da Justiça Militar estadual representa, no contexto de nosso sistema jurídico, clara violação ao princípio constitucional do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). (HC 70604/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 01.07.94) EMENTA: HABEAS CORPUS - 2. Alegada inobservância do princípio do juiz natural. 3. Substituição regular de Desembargador por Juiz do Tribunal de Alçada R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 25 local. 4. Vinculação ao feito do convocado, na condição de relator, por ter aposto o visto no processo. 5. Habeas corpus indeferido. (HC 80841/PR. Relator Min. Néri da Silveira. DJU, 14.09.01) EMENTA: Penal. Processual Penal. Habeas Corpus. Interrogatório: Delegação específica. Ofensa ao princípio do juiz natural. Inocorrência. C.F., art. 5º, LIII. Lei 8.038/90, art. 9º, I. – A delegação pelo ministro relator da competência para realização de atos de instrução criminal a um juiz ou desembargador específico não ofende o princípio do juiz natural. Habeas corpus indeferido. (HC 82111/RJ. Relator Min. Carlos Velloso. DJU, 11.10.2002) EMENTA: HABEAS CORPUS – É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado – consagrou, agora de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC 79865/RS. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 06.04.01) EMENTA: OFICIAL DA POLÍCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, CONDENADO PELO CRIME DO ART. 303 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL QUE CONSISTIRIA EM AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DOSAGEM DA PENA E EM OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, POR NÃO HAVER PARTICIPADO DO SEU JULGAMENTO JUIZ-AUDITOR. A existência de Auditoria Militar sem que houvesse sido criado o cargo de Juiz-Auditor constitui situação de fato institucional equivalente à vacância que, conquanto suprível por meio de Juiz de Direito Substituto, urge seja regularizada, mediante iniciativa legislativa do Tribunal de Justiça. Nulidade inexistente. Fundamentação suficiente para fixação da pena no dobro do mínimo legal. Habeas corpus indeferido. (HC 75861/RJ. Relator Min. Ilmar Galvão. DJU, 12.12.97) EMENTA: O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política não confere, por si só, ao Prefeito Municipal o direito de ser julgado pelo Plenário do Tribunal de Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua competência normativa, indicar no âmbito dessa Corte, o órgão fracionário (Câmara, Turma, Seção, v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas causas penais. (HC 72465/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 24.11.95) EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que a submissão de Prefeitos Municipais e de ex-Prefeitos Municipais (estes, na hipótese de infração cometida ao tempo em que exerceram a Chefia do Poder Executivo local) à competência de órgãos fracionários do Tribunal de Justiça (Câmaras ou Turmas), nas ações penais originárias, não importa em transgressão ao postulado do juiz natural, eis que, em tal situação, a jurisdição penal é exercida originariamente pelo próprio órgão investido, ope constitutionis, do poder de julgar 26 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 aqueles agentes públicos. – O preceito consubstanciado no art. 29, X, da Carta Política não confere, por si só, ao Prefeito Municipal, o direito de ser julgado pelo Plenário do Tribunal de Justiça – ou pelo respectivo Órgão Especial, onde houver – nas ações penais originárias contra ele ajuizadas, podendo o Estado-membro, nos limites de sua competência normativa, indicar, no âmbito dessa Corte Judiciária, o órgão fracionário (Câmara, Turma, Seção, v.g.) investido de atribuição para processar e julgar as referidas causas penais. (HC 73917/MG. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 05.12.97) EMENTA: CRIMINAL. JUSTIÇA FEDERAL. PRINCÍPIOS DO PROMOTOR E DO JUIZ NATURAL E DA AMPLA DEFESA. Impossibilidade de apreciação do alegado cerceamento de defesa, porquanto, ainda que houvesse ocorrido – o que não restou demonstrado – teria resultado de inobservância a normas processuais de natureza infraconstitucional, que, a teor da jurisprudência do STF, não rende ensejo ao recurso extraordinário. Denúncia e sentença elaboradas por quem fora previamente legitimado a atuar no feito, mediante designação de natureza genérica, fundada em critérios abstratos e predeterminados, previstos em lei, hipótese em que não se pode ter por configurada ofensa ao princípio consagrado no art. 5º, LIII, da Constituição. Recurso não conhecido. (RE 255639/SC. Relator Min. Ilmar Galvão. DJU, 18.05.01) EMENTA: Habeas Corpus. 2. Alegação de ofensa ao princípio do juiz natural e incompetência do juízo para recebimento de denúncia. 3. Magistrado que, embora promovido, prosseguiu no exercício de sua jurisdição, até assumir na nova comarca. Inexistência de ilegalidade. 4. Habeas corpus indeferido. (HC 81036/SP. Relator Min. Néri da Silveira. DJU, 06.09.01) EMENTA: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que se revela compatível com o preceito inscrito no art. 29, X, da Constituição a norma local que designa, no âmbito do Tribunal de Justiça, o órgão colegiado investido de competência penal originária para processar e julgar Prefeitos Municipais. Compete ao Tribunal de Justiça, mediante exercício do poder de regulação normativa interna que lhe foi outorgado pela Carta Política, a prerrogativa de dispor, em sede regimental, sobre as atribuições e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais (CF, art. 96, I, a). Precedentes. RECURSO EXTRAORDINÁRIO – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE – COMPETÊNCIA DO VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL A QUO. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o ato de controle preliminar pertinente à admissibilidade do recurso extraordinário também insere-se na esfera de competência monocrática do Vice-Presidente do Tribunal inferior. A expressão ‘Presidente do Tribunal’ reveste-se de sentido amplo, abrangendo todos os magistrados que, na condição de Presidente ou de Vice-Presidente, compõem a estrutura orgânica incumbida da administração superior de qualquer Tribunal. (AI 177313/MG. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 17.05.96) EMENTA: O RESPEITO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – QUE SE IMPÕE À OBSERVÂNCIA DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO – TRADUZ INDISPONÍVEL GARANTIA CONSTITUCIONAL OUTORGADA A QUALQUER ACUSADO, EM SEDE PENAL. – O Supremo Tribunal Federal qualifica-se como juiz natural R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 27 dos membros do Congresso Nacional (RTJ 137/570 – RTJ 151/402), quaisquer que sejam as infrações penais a eles imputadas (RTJ 33/590), mesmo que se cuide de simples ilícitos contravencionais (RTJ 91/423) ou se trate de crimes sujeitos à competência dos ramos especializados da Justiça da União (RTJ 63/1 – RTJ 166/785-786). Precedentes. SOMENTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SUA CONDIÇÃO DE JUIZ NATURAL DOS MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, PODE RECEBER DENÚNCIAS CONTRA ESTES FORMULADAS. – A decisão emanada de qualquer outro Tribunal Judiciário, que implique recebimento de denúncia formulada contra membro do Congresso Nacional, configura hipótese caracterizadora de usurpação da competência penal originária desta Suprema Corte, revestindo-se, em conseqüência, de nulidade, pois, no sistema jurídico brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal dispõe dessa competência, considerada a sua qualificação constitucional como juiz natural de Deputados Federais e Senadores da República, nas hipóteses de ilícitos penais comuns. (Rcl 1861/MA. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 21.06.02) EMENTA: HABEAS CORPUS – ALEGAÇÃO DE VÍCIO NA COMPOSIÇÃO DO ÓRGÃO JULGADOR – INOCORRÊNCIA – LEI COMPLEMENTAR Nº 646/90 DO ESTADO DE SÃO PAULO – CONSTITUCIONALIDADE DESSE ATO LEGISLATIVO LOCAL – LEGITIMIDADE DO QUADRO DE JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU – RESPEITO AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – PEDIDO INDEFERIDO. O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da lei. Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma de extração regimental, a disciplina das convocações para substituição nos Tribunais de Justiça estaduais. – O Estado de São Paulo adotou um sistema de substituição em segunda instância que se ajusta, com plena fidelidade, ao modelo normativo consagrado pela Carta Federal. Esse sistema, instituído mediante lei local (Lei Complementar nº 646/90), obedece a mandamento consubstanciado na Carta Política estadual que, além de prever a criação de cargos de Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, dispõe que a respectiva designação, sempre feita pelo Tribunal de Justiça, destinar-se-á, dentre outras funções específicas, a viabilizar a substituição de membros dos Tribunais paulistas. – O procedimento de substituição dos Desembargadores no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mediante convocação de Juízes de Direito efetuada com fundamento na Lei Complementar estadual nº 646/90, evidencia-se compatível com os postulados constitucionais inscritos no art. 96, II, b e d, da Carta Federal, e revela-se plenamente convivente com o princípio fundamental do juiz natural. Com isso, resta descaracterizada a alegação de nulidade do julgamento efetuado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a participação de Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, por evidente inocorrência do vício de composição do órgão julgador.” (HC 69601/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJU, 18.12.92) 4. Princípio do juiz natural no direito constitucional 28 brasileiro R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 positivo No Direito Constitucional positivo, à exceção da Carta Política outorgada de 1937, todas as constituições brasileiras contemplaram o princípio do juiz natural nos termos seguintes: a) Constituição Imperial de 25.03.1824: “Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela seguinte maneira: XI Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, por virtude de lei anterior, e na forma por ela prescrita. XVII À exceção das causas que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado, nem comissões especiais nas causas cíveis e crimes.” b) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24.02.1891: “Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 15. Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada. § 23. À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais, não haverá foro privilegiado.” c) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16.07.34: “Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 25 Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção; admite-se, porém, juízos especiais em razão da natureza das causas. 26 Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela prescrita.” d) Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18.09.46: “Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 26 Não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção. § 27 Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior.” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 29 e) Constituição do Brasil, de 24.01.67: “Art. 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção.” f) Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.69: “ Art. 153 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção.” g) Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.88: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;” 5. Juiz natural e a formação do litisconsórcio Na formação do litisconsórcio facultativo posterior à distribuição da demanda, pode ocorrer importante questão processual atinente ao juiz natural. Isso acontece quando proferida decisão liminar favorável à parte autora. Nesta hipótese, o pedido de ingresso de terceiro no feito, como litisconsorte, após a concessão de medida cautelar, oportunizaria a escolha do juízo ao seu talante, burlando aquele princípio. Sobre tal circunstância, oportuno é o escólio do ilustre professor Sérgio Gilberto Porto: “Posto isso e tendo a exata compreensão daquilo que representa o litisconsórcio facultativo-ulterior (seja unitário ou não), uma vez concedida liminar em determinado feito, a partir deste momento – embora não fosse originalmente, em face do sistema adotado – obrigatória torna-se a recusa na formação de qualquer litisconsórcio, pena de violação do juízo natural, muito embora presentes qualquer das hipóteses do art. 46 do CPC.”30 Seguindo a mesma trilha são as observações de Juliano Spagnolo, anteriormente citado: Litisconsórcio: noções e recusabilidade por violação do juízo natural. Revista AJURIS, v. 60, mar.1994, p. 41. 30 30 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 “Ocorria que poderiam ser distribuídas a diversos juízos ações versando sobre o mesmo objeto, propostas por autores distintos, todas com pedido de liminar. Quando a primeira delas tivesse a sua liminar deferida, os demais autores desistiam de suas ações e reiteravam o pedido em litisconsórcio com o autor que obteve a concessão de sua liminar. Assim, havia a possibilidade, totalmente inconstitucional, da parte ‘aproveitar-se’ da liminar já concedida, uma vez que o magistrado poderia acolher o pedido e estendê-lo ao litisconsorte.”31 Com efeito, tal comportamento deve ser sancionado com a aplicação da pena de litigância de má-fé. 6. Princípio do juiz natural e os “mutirões” de julgamentos Tribunais nos Preocupados com a efetividade da prestação jurisdicional, muitos Tribunais têm criado mutirões para proferir julgamento em processos pendentes de solução e armazenados nos escaninhos de gabinetes de seus magistrados. Conquanto seja louvável, essa iniciativa deve respeitar o princípio do juiz natural, mediante autorização legislativa específica. Assim como os Tribunais somente podem ser criados por lei, a convocação de magistrados de primeiro grau para prestar-lhes auxílio, nos chamados mutirões, também deverá observar o mesmo procedimento, isto é, por meio de lei. (Art. 96, II, da CF) A propósito dessa matéria, a Lei nº 9.788, de 19.02. 99, autorizou aos Tribunais Regionais Federais a convocação de juízes federais para prestar-lhes auxílio, verbis: “Art. 4º. Os Tribunais Regionais Federais poderão, em caráter excepcional e quando o acúmulo de serviço o exigir, convocar Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos, em número equivalente ao de juízes de cada Tribunal, para auxiliar em Segundo Grau, nos termos de resolução a ser editada pelo Conselho da Justiça Federal”. Conseqüentemente, não podem os Tribunais, por meio de simples resoluções administrativas, sem autorização legislativa, mesmo quando aprovadas pelo seu órgão máximo, convocar magistrados de primeiro grau para atuar em mutirões de julgamentos de processos de sua competência, pena malferimento do princípio do juiz natural, expressamente 31 SPAGNOLO, Juliano, op. cit., p. 160. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 31 consagrado na Constituição da República (Art. 5º, LIII). Essa, aliás, é a posição firmada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, como se pode ver na ementa expressa nos seguintes termos: “EMENTA: - O sistema de substituição externa nos Tribunais Judiciários constitui, no plano de nosso direito positivo, matéria sujeita ao domínio temático da lei. Subordina-se, em conseqüência, ao princípio da reserva legal absoluta, cuja incidência afasta, por completo, a possibilidade de tratamento meramente regimental da questão. Esse tema – cuja sedes materiae só pode ser a instância normativa da lei – não comporta, e nem admite, em conseqüência, que se proceda, mediante simples norma de extração regimental, à disciplina das convocações para substituição nos Tribunais de Justiça Estaduais. Precedente do STF. Essa orientação, firmada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, prestigia o postulado do juiz natural, cuja proclamação deriva de expressa referência contida na Lei Fundamental da República (art. 5º, LIII). O princípio da naturalidade do Juízo – que traduz significativa conquista do processo penal liberal, essencialmente fundado em bases democráticas – atua como fator de limitação dos poderes persecutórios do Estado e representa importante garantia de imparcialidade dos juízes e tribunais.” (HC 696015/SP. Relator Min. Celso de Mello. DJ, 18.12.92) Assim, diante de tais premissas, os julgamentos de processos acumulados nos Tribunais, por meio da convocação de juízes de primeiro grau, hão de satisfazer a exigência constitucional do juiz natural, pena de nulidade. Outrossim, os “mutirões” nos juízos de primeiro grau, com a redistribuição de processos entre juízes de mesma hierarquia, não ofendem o princípio do juiz natural, consoante já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus nº 10.341-SP, Relator Min. Gilson Dipp, verbis: “É descabida a alegação de violação ao Princípio do Juiz Natural pela redistribuição de processo, se a mesma foi realizada em razão do acúmulo de processos na vara de origem e feita a outra com a mesma competência material.” (DJU, ed. 22.11. 99) 7. Juiz natural e foro especializado em razão da matéria ou por prerrogativa de função Sobre o foro especial, o Professor Rui Portanova ensina: “A legislação brasileira, tradicionalmente, vem instituindo justiças especializadas como Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar. Permite-se, ainda, a intervenção do Poder Legislativo em casos específicos previamente contemplados na Constituição, tanto para processar e julgar (como no caso de impeachment) como para fazer depender de licença ação contra parlamentar. Encontra-se na doutrina brasileira dissenso sobre se alguns fatos estariam ou não 32 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 englobados na vasta gama de garantias abrangidas pelo princípio constitucional que impede tribunais de exceção. Por exemplo, quando a Constituição cria tribunais especializados ou modifica competência antes atribuída à justiça ordinária, ressurgem discussões. Ada Pellegrini Grinover (1983, p. 23) faz distinção: não viola o juiz natural ‘meras modificações da competência entre os diversos órgãos da justiça comum’. Contudo, seria afrontoso ao princípio modificar a competência de casos pendentes iniciados na justiça comum em favor da justiça especializada criada pela Constituição. Nessa hipótese, o novo órgão judiciário só atenderia casos futuros. Com apoio em doutrina estrangeira, justifica a posição entendendo que o princípio do juiz natural limita a esfera do cânone (tempus regit actum) segundo o qual a lei do processo consiste nas normas vigentes no momento em que se procede.”32 De fato, a discussão tem pertinência e oportunidade em face da edição da Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que alterou a redação do art. 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a qual ficou expressa nos seguintes termos: “Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.” Em decorrência dessa alteração legislativa, todas as demandas referentes a casos de improbidade administrativa passaram para a competência dos tribunais, conforme a posição hierárquica da autoridade responsável pela infração, o que não ocorria anteriormente à edição da Lei nº 10.628/2002, circunstância que tem ensejado exacerbadas críticas da doutrina autorizada. 8. Conclusão De todo o exposto, vê-se que todos os povos civilizados acolheram 32 PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 67. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 33 o princípio do juiz natural em suas leis maiores. Assim, é válido afirmar que o princípio do juiz natural é inafastável a uma prestação jurisdicional independente e imparcial, sob a égide do devido processo legal. Conseqüentemente, todos os operadores do direito – magistrados, membros do ministério público e advogados – têm o dever indeclinável de zelar pelo respeito ao princípio do juiz natural, como instrumento fundamental para a realização da Justiça e aperfeiçoamento da democracia, que é o bem maior da humanidade, em consonância com a evolução das ciências jurídicas e do direito constitucional positivo das sociedades organizadas, ou bem ordenadas, nas palavras de John Rawls. 9. Bibliografia CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência: exposição didática. 2.ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 1983. COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do direito processual civil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Konfino, s/d. GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo, v. 29, jan-mar-1983. LONGO, Luís Antônio. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo. Adriane Donadel ... [et. al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1976. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7.ed. rev. e atual. com as Leis 10.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4.ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. PORTO, Sérgio Gilberto. Litisconsórcio: noções e recusabilidade da formação por violação do juízo natural. Revista AJURIS, v. 60, mar-1994. SPAGNOLO, Juliano. As garantias do cidadão no processo civil: relações entre constituição e processo. Adriane Donadel ... [et al]; org. Sérgio Gilberto Porto. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 34 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 O exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo para a aplicação da sanção administrativa depois da Lei nº 9.873/991 2 *Marga Barth Tessler Sumário. Introdução. 1 - A segurança jurídica e a prescritibilidade das pretensões, segundo a doutrina. 2 - A jurisprudência e a prescrição da pena administrativa. 2.1 - Aplicando a prescrição qüinqüenal. 2.2 - Aplicando a prescrição do Código Civil. 3 - O ato convocatório do indiciado. 3.1 - O ato inequívoco. 4 - O processo administrativo e o devido processo legal. 4.1 - Fixação de prazo em Circular. 4.2 - O devido processo legal e o indeferimento de provas no processo administrativo. 4.3 - O devido processo legal e a atuação conjunta do Bacen/Receita/Decex nos processos administrativos cambiais. Referências Bibliográficas. Introdução O termo “prescrição administrativa” designa, de um lado, a perda do prazo para recorrer de decisão administrativa, ou a perda do prazo para que a Administração reveja seus atos, ou a perda do prazo para a aplicação de penalidades administrativas. * Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 1 Texto-base para o encontro promovido pelo Banco Central do Brasil, Brasília, maio de 2004. A Desa. Federal Marga Tessler foi Procuradora do BACEN de 1976 a fevereiro de 1988. 2 A Lei 9.873/99 convalidou a Medida provisória 1.859-16, de 24.09.99. Pergunta-se, a Medida Provisória seria veículo adequado para estabelecer “segurança das relações jurídicas”? A relevância jurídica e a urgência passam ao largo da Mensagem 471/98. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 35 A Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999,3 estabeleceu, no artigo 1º, o prazo de prescrição de cinco anos para a Administração Pública, no exercício do poder de polícia, instaurar o processo administrativo com o objetivo de apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato, ou no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado. No § 1º da Lei, que comentamos, está disposto que a prescrição incide no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho.4 Estabelece a lei o arquivamento de ofício dos autos mediante requerimento da parte interessada, advertindo que tal se dá sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação,5 se for o caso. O § 2º dispõe que, se o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal. Chamo atenção para a existência do § 5º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. Tais ações não se submetem aos prazos de prescrição em comento. Segundo o artigo 2º da prefalada Lei 9.873/99, constituem causas de interrupção da prescrição I) a citação do indiciado ou acusado, inclusive, pela via editalícia; II) por qualquer “ato inequívoco”6 que importe apuração do fato; III) pela decisão condenatória recorrível. A prescrição (art. 3º) é suspensa durante a vigência dos compromissos de cessação ou de desempenho, previstos respectivamente nos artigos 53 e 58 da Lei 8.884/947– (Cade); do termo de compromisso de que trata o § 5º do A Lei 9.873/99 foi editada em observância ao previsto no artigo 37, § 5º, da Constituição Federal de 1988: A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. 4 Sugestão de pesquisa: Em que casos já se deu o “arquivamento de ofício”. 5 Lei 4.717/65, artigo 21, Ação Popular, prazo prescricional para a propositura da Ação Popular: 05 anos. Lei 8.429/92 Lei de Improbidade Administrativa tem a prescrição regulada pelo artigo 23 (até 05 anos após o término do mandato ou no prazo da falta disciplinar). 6 Enciclopédia Saraiva de Direito, 1987. – Ato Inequívoco: é o ato jurídico praticado de modo claro e que se mostra perfeitamente indicativo do desejo efetivo do agente. Não está sujeito à impugnação por ser certo o seu objeto e pela insofismável manifestação de vontade nele expressa. Distinção Pontiana – Ato jurídico/ fato jurídico. 7 Art. 53. Em qualquer fase do processo administrativo poderá ser celebrado, pelo Cade ou pela SDE ad referendum do Cade, compromisso de cessação de prática sob investigação, que não importará confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada. Dec. 20.910/32 – 05 anos prescrição fazendária; Lei 1.533/51, artigo 18 – o direito de requerer mandado de segurança – 120 dias da ciência do ato; Lei 4.717/65, artigo 21 – 05 anos para prescrever; 3 36 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 artigo 11 da Lei 6.385/76 – (valores mobiliários), com a redação dada pela Lei 9.457/97.8 Note-se que o disposto na lei sob comento, no que se refere ao âmbito de aplicação, não se aplica às infrações de natureza funcional9 e aos processos e procedimentos de natureza tributária10 segundo o disposto no artigo 5º da Lei 9.873/99, excluídos também os poderes de polícia estadual e municipal. O artigo 4º, que tem suscitado polêmica, por ser retroativo, estabelece que “Ressalvadas as hipóteses de interrupção previstas no artigo 2º, para as infrações ocorridas há mais de três anos, contados do dia 1º de julho de 1998, a prescrição operará em dois anos, a partir dessa data”. Na questão em referência, a Mensagem 471/98 pouco contribui para esclarecer as razões do discrimen temporal, por outro lado, o artigo 4º, segundo parte da doutrina, deve ser lido como não aplicável aos casos já prescritos antes da edição da lei em comento. Eis uma breve síntese dos principais dispositivos constantes da lei, objeto do nosso estudo. 1 A segurança jurídica e a prescritibilidade das pretensões,11 segundo a doutrina A Lei em comento envolve o debate sobre o princípio da segurança jurídica12 e o princípio da prescritibilidade das pretensões.13 A consaLei 7.347/85 – Ação Civil Pública – interesses difusos ou coletivos – não há menção de prazo; Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade – até 05 anos do término do mandato. Art. 58. O Plenário do Cade definirá compromissos de desempenho para os interessados que submetam atos a exame na forma do art. 54, de modo a assegurar o cumprimento das condições estabelecidas no § 1º do referido artigo. 8 Lei 6.385/76 dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários, artigo 11 trata da imposição aos infratores das penas de advertência, multa, suspensão, inabilitação, etc. 9 Às infrações de natureza funcional se aplica a Lei 8.112/90, art. 142, § 1º, Lei 9.784/99, artigo 54. 10 Às infrações de natureza tributária se aplica o artigo 174 do CTN, Dec. 70.235, de 06 de março de 1972. 11 O Código Civil de 2002 com relação ao prazo prescricional, nas hipóteses da reparação civil inovou surpreendentemente pois reduziu os prazos, em especial no artigo 206, § 3º, inciso V: prescreve em três anos a pretensão de reparação cível. O prazo do Código revogado era de 20 anos. Foi drástica a redução e desconsiderou o Código do Consumidor, art. 27, 05 anos. 12 Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e artigo 5º, XXXVI, o direito adquirido o ato jurídico perfeito, a coisa julgada. Couto e Silva, Almiro, RDA 204/21. A segurança e a certeza são paradigmas do século passado, a questão está em movimento, precisamos hoje conviver com a incerteza. 13 Art. 5º, LLVII, letra b, da Constituição Federal de 1988. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 37 gração do princípio da prescritibilidade repousa sobre o postulado da segurança jurídica. É reconhecido em lição exemplar por Pontes de Miranda,14 referindo que a prescrição atinge a todas as pretensões e ações, quer sejam direitos pessoais, reais, privados ou públicos. É a regra geral. O excepcional é a imprescritibilidade, e a Constituição admite duas hipóteses, o crime de racismo e o de terrorismo, grupos armados civis ou militares, (artigo 5º, XLII, XLIV, da CF/88). Conclui-se que a prescrição é o princípio informador do sistema jurídico pátrio na matéria. Hely Lopes Meirelles,15 emérito administrativista pátrio, inicialmente defendia a imprescritibilidade da pena administrativa, como vemos em artigo mais distante no tempo de sua clássica obra, passou após a considerá-la aplicável16 abandonando a teoria do “direito estrito” e da imprescritibilidade passando a admitir o uso da analogia pois o princípio é a prescritibilidade. Odete Medauer17 salienta que o Direito “trabalha” a passagem do tempo com critérios próprios e, já antes do advento da lei em comento, leciona que “hoje vigora no ordenamento pátrio o princípio da prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração.” Cretella Júnior18 assevera que é insustentável a tese da imprescritibilidade da sanção administrativa, “a prescrição penal e a prescrição administrativa” são espécies de figura categorial “prescrição” que reponta em vários ramos do direito, definindo-se genericamente como “a perda do direito de punir em decorrência do tempo”. Ilícito, pena e prescrição são institutos conexos, peculiares aos diferentes ramos do direito que tratam da aplicação da pena. “No direito administrativo a prescrição é MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado, v. 6, § 666, p. 127. Ainda nos comentários ao CPC, Tomo III, pág. 513, “a regra jurídica que regula a prescrição é a regra jurídica de direito material [...]”. Para verificar as origens do instituto da prescrição, ver OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 178. “Como é que, no exercício de sua missão, o Juiz articulará a inevitável retroatividade das suas intervenções e o desejo legítimo de segurança jurídica?” 15 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 1996/589, p. 413. Prescrição da Pena Administrativa. In: Estudos e Pareceres de Direito Público, v. IX, 1986. 380-381. 16 MEIRELLES, Hely Lopes. Prescrição da Pena Administrativa. RT, 544/1984. 17 MEDAUER, Odete. Prescrição, Administração Pública. RT 642, abr. 1989, p. 82 et seq. Ação Civil Pública – interesses transindividuais, interesses das gerações futuras, aspecto intergeracional, às ações com estes objetivos não se aplica o prazo prescricional de 5 anos da Ação Popular e do Código do Consumidor. 18 CRETELLA JÚNIOR, J. Revista Forense, v. 275, red. 1981, p. 5, prescrição da falta administrativa. 14 38 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 fixada em dispositivo expresso constante do Estatuto a que se submete o funcionário público [...]”. O autor critica o critério estatutário por fixar a prescrição a partir da ciência do fato pela autoridade administrativa, já que levaria “à tese abusiva da imprescritibilidade”. Nelson Eisirik19 comenta especificamente a persecução administrativa decorrente do poder de polícia, referindo que a possibilidade de sanção não pode ser dotada do predicado de perenidade. Sídio Rosa de Mesquita Júnior,20 nos albores da lei em comento, referindo-se aos processos regidos pela Lei 8.884/94,21 diz que “o prazo prescricional não foi extinto, ele é mantido para o caso de lentidão, ou seja, quando a Administração pratica atos que impulsionam o processo, mas não profere nenhum despacho decisório durante o período de cinco anos”. Percebe influência da Lei 8.112/90 (artigo 142 que prevê 5 anos para prescrição da infração disciplinar do servidor público). Maria Sylvia Zanella Di Pietro22 adota a posição última de Hely Lopes Meirelles, fazendo a analogia com a prescrição do Decreto 20.910,23 EISIRIK, Nelson. Reforma das S.A. Lei do Mercado de Capitais, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p.189. MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. A prescrição da Lei 8.884/94 com redação dada pela MP 1.708/98 (Lei 9.873/99). Procurador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE. Disponível em: <http//www.ambito-juridico.com.br/ajde0025htm>. Acesso: em 23 abr. 2004. 21 Lei 8.884/94 – Lei do CADE. 22 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo Brasileiro. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2000. 674 p., p. 487. 23 Dec-Lei 4.597, de 19 de agosto de 1942 – regula o Dec. 20.910/32, artigo 3º somente pode ser interrompida uma vez e recomeça a correr pela metade do prazo. 24 BARROSO, Luis Roberto. A prescrição Administrativa no Direito Brasileiro, antes e depois da Lei 9.873/99. Revista Diálogo Jurídico. n. 4, jul. 2000. Disponível em: <http//www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 25 abr. 2004. 24 REsp nº 514885, SJT, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux. Possivelmente trata-se do caso que utilizou o parecer do Prof. Barroso, o acórdão fundou-se na falta de prova pericial. “RECURSO ESPECIAL – PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO – SONEGAÇÃO DE COBERTURA CAMBIAL – ACÓRDÃO FUNDADO EM MATÉRIA FÁTICO – PROBATÓRIA – REEXAME – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA 07/STJ. 1. Revela-se evidente que o acolhimento das razões do BACEN, no sentido de que a multa aplicada às empresas ora recorridas restou legítima e legal, demandaria o reexame dos procedimentos administrativos que redundaram nas autuações para se aferir ou afastar a ocorrência de sonegação de cobertura cambial. 2. Conseqüentemente, a análise do procedimento administrativo que resultou na aplicação de multa por sonegação de cobertura cambial demanda o reexame de provas, o que é vedado em face do óbice imposto pela Súmula 07 do Superior Tribunal de Justiça, de seguinte teor: ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.’ 3. Fundando-se o acórdão recorrido na ilegitimidade e ilegalidade da sanção imposta pelo BACEN pela ausência de prova pericial a atestar que o valor declarado nas guias de exportação era fraudulento, insindicável sua modificação pelo STJ (Súmula 07) 4. Concluindo o aresto recorrido que ‘não pode o BACEN, com base nos dados fornecidos por aquele órgão, mediante mera comparação dos produtos exportados com outros produtos semelhantes, sem a realização de prova pericial que observe os requisitos da cientificidade, afirmar que o valor declarado nas guias de exportação era fraudulento, configurando sonegação de cobertura cambial’ ressoa inequívoca a apreciação 19 20 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 39 no prazo de 05 anos, no silêncio da lei, ocorre a prescrição contra a pretensão punitiva da Administração. Luis Roberto Barroso,24 24 em parecer envolvendo uma consulta em matéria cambial (artigo 23 da Lei 4.131/6225), afasta a tese da aplicabilidade de prescrição vintenária do Código Civil, defendida pelo BACEN, entende inconstitucional o artigo 4º da Lei em comento que seria lei meramente declaratória a respeito do prazo de cinco anos, pois “veio apenas declarar em caráter geral, o que já era a regra no direito administrativo brasileiro”. Sobre a lei declaratória lembra da lição de Plácido e Silva. Entende ser irrelevante não houvesse lei específica fixando o prazo de cinco anos, a prescrição já teria (no caso que examina in concreto) ocorrido . Dessa conclusão, diz que o artigo 4º da Lei 9.873/99 institui discriminação arbitrária violando destarte o artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, observando, ainda, violação ao princípio da isonomia.26 Renato Sobrosa Cordeiro,27 em artigo que estudou a prescrição administrativa também antes da edição da lei em comento, reconhecia que a prescrição é a regra no nosso sistema, e na identificação da regra aplicável à lacuna que se verificava na legislação bancária, entende não seja apropriado fazer a analogia com as infrações disciplinares, prefere buscar paradigma nas normas fundadas no Poder de Polícia.28 Socorredo caso sub judice ao ângulo probatório, interditada a cognição ao E. STJ por expressa disposição da Súmula nº 07. 5. Deveras, consta do decisum atacado que a ‘parte autora justificou a aparente discrepância ao argumento de que, diante da crescente recessão e da inadimplência no mercado interno, viu-se obrigada a exportar mesmo a preços baixos justamente em função das regras do mercado, bem como que tinha matéria-prima em estoque e se tratava de sapatos simples.’ 6. Recurso especial não conhecido”. 25 Lei 4.131/62, Lei do Mercado de Capitais, não dispôs especificamente sobre prescrição. 26 Sobre o conflito de leis no tempo e a retroatividade, verificar a clássica polêmica entre Gabba (subjetivista) e Roubier (objetivista) Limongi, França. A irretroatividade das leis e o Direito Adquirido. 5ª Ed. Saraiva, 1998. As alterações legislativas não podem prejudicar o direito das pessoas, entretanto, a lei poderá retroagir se estiver expressa e não ferir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. O direito adquirido é o direito que tem origem em fato apto a produzi-lo em vista da lei em vigor. REsp 1.451/DF, Rel. Ministro Moreira Alves, Ação Direta 493/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves. 27 CORDEIRO, Renato Sobrosa. Prescrição Administrativa. Rev. Direito Administrativo. n. 207, p. 105-120, jan.-mar. 1997. TRF-4ª Região, MS 2000.71.00.002907-9/RS-UFRGSX Zilah Milano e outros, a Portaria 474/87, alterava situação funcional configurada há 12 anos. 28 Poder de Polícia em sentido amplo significa o poder estatal de criar limitações no interesse geral à liberdade e à propriedade dos administrados. 40 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 -se então da Lei 8.884/94, Lei do CADE, artigo 28. Com razão, pois tanto o CADE quanto o BACEN são responsáveis pelo cumprimento dos preceitos insculpidos nos artigos 170 e seguintes da ordem econômica, tutelando além de interesses pessoais, interesses coletivos da maior importância, atuando no exercício do poder de polícia no campo econômico. Caio Tácito, em março de 1995, em parecer encomendado por estabelecimento bancário, concluiu pela “ausência de responsabilidade bancária por fraudes cambiais” (RDA 20/296), utilizando a regra do suprimento analógico para fixar a data do início do prazo com a “denúncia formalizada pelo Banco Bamerindus S.A., pela Carta de 29 de agosto de 1989 ao Bacen”. José Luiz Bulhões Pedreira, em parecer de 1996, encomendado pela Febraban, também pontificou sobre a fraude cambial, artigo 23 da Lei 4.131/62, e a imputação de responsabilidade às instituições financeiras pela falsificação de documentos, pela falta de identificação do cliente, e a declaração de falsa identidade no formulário do contrato assinado pelo cliente e visado pelo Banco. No caso que examinou, o banco vendedor do câmbio sequer possuía cartão de autógrafos dos representantes do cliente, ou cadastro do cliente, e aceitou o pagamento mediante cheque administrativo, descumprindo o Comunicado DECAN 192/80. Marcelo Madureira Prates,29 em trabalho sobre a matéria, ao examinar didaticamente a lei 9.873/99, destaca que foram criadas duas regras e ficou uma omissão. No que respeita ao período entre 1º.07.95 e 03.06.98, refere ter ocorrido um “limbo normativo”. Não se aplicam as regras prescricionais às atividades administrativas não punitivas como àquelas de “retorno das condutas à legalidade”. A regra geral estabelecida é a prescrição no prazo de 05 anos para a Administração apurar a infração. Nos processos instaurados se ficarem paralisados por mais de três anos consuma-se a prescrição. No caso de um mesmo fato constituir também crime, a prescrição rege-se pelo previsto na lei penal, 30 mas a lei penal só se aplica ao prazo, no mais são as regras do direito administrativo. Com referência PRATES, Marcelo Madureira, Procurador do Banco Central do Brasil, Brasília. Subprocurador Chefe, Jornada de Estudos Jurídicos, 24 de maio de 2004. 30 Artigo 109, III, do Código Penal. 29 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 41 ao § 4º, é regra excepcional, vocacionada a solucionar as questões fáticas relacionadas com o reconhecimento normativo da prescrição, sendo razoável no caso a sua aplicação retroativa de forma excepcional. Para o citado doutrinador não parece essencial, para o efeito de interromper a prescrição, a ciência do suposto infrator, o conhecimento só se daria com a citação/notificação, obrigatoriamente. Concluindo, a doutrina, embora se alinhe com a tese da prescritibilidade da pena administrativa, não é unânime no que respeita à busca da analogia, antes da lei em comento. Após sua edição, diverge quanto a sua melhor interpretação. 2 A jurisprudência e a prescrição da pena administrativa A jurisprudência, de longa data, acolhe a tese da prescrição da pena administrativa. Sempre citado nos estudos, a propósito, o voto do Ministro Moreira Alves no RE 80.913, julgado em 1977, (RTJ 84/193), na mesma linha, o voto no RE 80.913, Rel. Ministro Cunha Peixoto. (RTJ 84/193) Note-se que são precedentes que aplicam o Dec. 20.910/32, e decidem demandas envolvendo pretensões deduzidas por pensionistas ou servidores. Para dar conta da inexorabilidade do prazo qüinqüenal, o Judiciário construiu a teoria da “prescrição do fundo do direito”.31 Em se tratando de prestações sucessivas, prescrevem as parcelas anteriores ao qüinqüídio e não o fundo do direito (artigos 1º e 3º do Dec. 20.910). RE 102.071 RTJ117/1326, RE 99.544, RTJ 117/1326 e 1327 constituem precedentes. De início, a prescrição introduzida pelo Dec. 20.910/32 podia ser invocada apenas pelos entes públicos e constituía a regra em favor de todas as fazendas. A hipótese foi prestigiada pela Súmula 107 do Tribunal Federal de Recursos: “A ação de cobrança de crédito previdenciário contra a Fazenda Pública está sujeita à prescrição qüinqüenal estabelecida no Dec. 20.910/32”. No RE 92.897-1-SP (RDA 142/88 e RE 96798, RDA 153/119), vemos refinados exemplos de aplicação da prescrição na aludida hipótese. A jurisprudência, contudo, acompanhando a doutrina, passou como vimos a rechaçar a hipótese de deixar a Administração sem limites 31 Dec-Lei 4.597/42, regulamenta a aplicação do Dec. 20.910/32. 42 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 temporais para punir os servidores e demais hipóteses de ilícito administrativo, são exemplos o julgado do Supremo Tribunal Federal no MS 20.069, Rel. Min. Moreira Alves, in RDA 135/78, “Em matéria de prescrição em nosso sistema jurídico inclusive no terreno do direito disciplinar, não há que se falar em jus singolare, uma vez que a regra é a da prescritibilidade”. No extinto Tribunal Federal de Recursos, o Rel. Ministro Washington Bolívar, na Remessa ex officio 88.333, RDA 156/169, “O poder de punir disciplinarmente os inscritos no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil não é perpétuo, extingue-se com o decurso do tempo... É evidente que repugna ao direito a imprescritibilidade da pena disciplinar”. No que respeita à prescrição em questões que refogem ao controle administrativo disciplinar, mais especificamente, questões que se enquadram no exercício do Poder de Polícia da Administração, recolhemos, na jurisprudência, precedentes que equiparam a temática ao direito tributário, são exemplos: 2.1 Aplicando a prescrição qüinqüenal No TRF-4ªRegião, na AC nº 182465, Rel. convocado Antônio Albino Ramos de Oliveira, 4ª Turma, DJU 20.01.2001, com a seguinte ementa: “Penalidade administrativa imposta pelo BACEN no exercício do poder de polícia. Prescrição. Inaplicabilidade das normas de direito penal – multa meramente administrativa que reverte aos cofres públicos. Aplicação extensiva da prescrição qüinqüenal do CTN. Só se aplicam, por simetria as regras de prescrição penal a infrações administrativas quando estas também construírem infrações penais.” No sentido de fazer analogia com o Direito Penal, no TRF-4ª Região, AC 315799, 3ª Turma, Rel. convocada Taís Schilling Ferraz, DJ 06.06.2002: “Multa Administrativa, exportação, valor inferior preço de mercado. Aplicação multa. Prova documental. Fraude. Câmbio. Inaplicabilidade. Prescrição qüinqüenal. Código Tributário Nacional - CTN. Inexistência natureza tributária. Aplicação igualdade. Prazo. Prescrição. Crime. Evasão de divisas. Motivo infração administrativa. Caracterização crime em tese.” Ainda do TRF-4ª Região, AC 402531, 3ª Turma, DJ 17.04.2002, Rel. convocada Taís Schilling Ferraz, afastando a prescrição civilista: “Execução Fiscal. Superintendência Nacional de Abastecimento – SUNAB. Multa. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 43 Infração administrativa. Prescrição. Incidência prescrição qüinqüenal. Cobrança multa. Origem poder de polícia. Inaplicabilidade Prescrição Direito Patrimonial. Relação Débito. Sanção administrativa.” 2.2 Aplicando a prescrição do Código Civil Do TRF-4ª Região, AC 277251, 4ª Turma, DJ 10.01.2001, Rel. convocado Alcides Vetorazzi: “Administrativo. Comércio exterior. Evasão de divisas. Multa. Dec. 23.258/33, artigo 3º. Prescrição. Inocorrência. Ilegitimidade passiva. Indemonstrada. Interpretação não elidida. Multa mantida. Prescreve em vinte anos o direito de o BACEN cobrar multa administrativa por infração cambial, art. 177 do Código Civil.” Percebe-se que a jurisprudência, linhas gerais, reconhece a prescrição, a divergência fica por conta da regra aplicável para a solução, em se tratando de multa em decorrência do exercício do poder de polícia. Com efeito, pela leitura de Mensagem 471 de 1998, que encaminhou o texto legal que comentamos, resta claro que foi editado para “promover a estabilidade das relações jurídicas” apoiado na jurisprudência e na doutrina nacionais, que já reconhecia a incidência da prescrição qüinqüenal sobre atos nulos da Administração, aplicando inicialmente por analogia o Dec. 20.910/32. Sobre o parâmetro a ser utilizado sempre houve divergência. Não há consenso na jurisprudência, pode-se dizer que predomina a tese da prescrição qüinqüenal, por analogia com o direito tributário ou disciplinar. 3 O ato convocatório do indiciado A Lei 9.873/99 diz que a “citação”32 do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital, constitui causa interruptiva da prescrição. O que se deve levar em consideração é que no processo administrativo não há “citação”, e sim notificação ou comunicação formalizada ao acusado. (artigo 26 da Lei 9.784/99) Houve mero equívoco na designação do ato convocatório ao indiciado, o que evidentemente não prejudica a regra estabelecida, tratando-se de providência fundamental do dever de submeter o interessado ao “devido processo legal”, veja-se o disposto no artigo 26 da Lei 9.784/99, que aqui 32 33 Art. 2º da Lei 9.873/99. Fato administrativo (há que se verificar na doutrina a distinção entre ato e fato administrativo). 44 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 se aplica. 3.1 O ato inequívoco O item II do artigo 2º prevê com idêntico efeito, “qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato”. Ato inequívoco é ato que não deixa dúvida. Mesquita Júnior, no texto já citado, entende que “difícil é a interpretação do art. 2º, inciso II”, pois depende de prévio critério para saber o que é ato inequívoco, “existem atos que visam unicamente à organização processual, ou implementação de uma decisão tomada em data anterior”33 daí entende o autor difícil uma solução. Nelson Eisirik sustenta que “o único ato inequívoco de apuração do ilícito é a notificação do indiciado de instauração do inquérito administrativo”. Com a vênia dos doutos ensinamentos, não é assim. A solução deve ser sistemática e passar pelo exame dos princípios34 que regem a conduta administrativa. O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 elenca como princípios a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Não pode ser esquecida a Lei 9.784/99, que regula as “normas básicas” sobre o processo administrativo. Considerando, pois, os princípios da publicidade, da legalidade e da eficiência, mais ainda o subprincípio do formalismo moderado, e os subprincípios da oficialidade e da busca da verdade material, todos informadores da atividade sancionatória da administração pública em qualquer área de atuação (BACEN, CADE, IBAMA, ANVISA, etc.), pode-se afirmar que: 1) “Ato inequívoco de apuração dos fatos” deve ser sempre avaliado em concreto; 2) Em tese, pode-se avançar e dizer que é qualquer ato de ofício (princípio da oficialidade) que seja comunicado ao interessado ou indiciaFREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 80. “A interpretação sistemática deve ser entendida como uma operação que consiste em atribuir, topicamente, a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas estritas (ou regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias em sentido amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação”. 35 Artigo 66 da Lei 9.784/99. 36 Artigo 2º, IX, da Lei 9.784/99. 37 TRF-4ª Região, AC 2000.71.00.002907-9/RS, TRF-4ª Região, AMS 2000.71.0002908-0/RS, em 12.08.2002, 2ª Seção, examinou o artigo 54, Lei 9.784/99, em relação aos servidores públicos que perceberam por longa data, até o Parecer AGU 203, “Exercício da pretensão de anular pelo Parecer AGU 203/99, não são ato inequívoco e não interrompem a prescrição”. 34 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 45 do (princípio da publicidade)35 por via epistolar ou outra (edital ou até mensagem eletrônica dependendo das práticas usuais da operação do mercado, ou próprias da atividade princípio do formalismo moderado)36 que solicita informação, explicação, providências, documentos, exibição de pessoa, coisa, amostra, produto (princípio da verdade material em relação ao objeto da incidência do poder de polícia), pois é inequívoco que a autoridade está apurando os fatos. O “ato inequívoco” pode ocorrer mesmo antes da instauração do processo administrativo. Dão-se, para a tomada de decisão prévia, averiguatórias, sendo aplicável o artigo 29 da Lei 9.784/99. Note-se que fica afastado o mero monitoramento de atividades que não é comunicado ao interessado, ficam afastadas diligências internas do serviço público,37 oitiva de denunciantes ou informantes ao órgão, denúncias anônimas, etc. Afastam-se tais atos para os efeitos interruptivos da prescrição, pois não prestigiam os princípios do devido processo legal e do contraditório, já que o possivelmente atingido pelo ato investigativo ainda não tomou conhecimento do mesmo. Não se quer dizer que não pode ser feita investigação reservada, só que não tem o condão de interromper a prescrição.38 A sistemática de a presidência do órgão de recursos administrativos,39 à vista do acúmulo de processos, “prorrogar o prazo de prescrição por mais um ano” não tem força para interromper o prazo prescricional na nova sistemática. (artigo 49 da Lei 9.784/99) Por outro lado, não há como entender que só possa ser a própria “notificação do indiciado da instauração do inquérito”, posição de Eizirik, também não é por certo qualquer manifestação do órgão público, posição de algumas autoridades. A comunicação de que tal ou qual operação ou contrato ou situação está sob exame, conferência, verificação das autoridades é “ato inequívoco” que importa apuração de eventual irregularidade. Assim, por exemplo (mencionado por Mesquita Júnior A prática denominada no jargão profissional de “pescaria” não interrompe a prescrição e consiste em solicitar hoje um documento, no mês seguinte outro, e mais adiante outro... sobre assuntos diversos. 39 Res. 1065. 40 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Sociedade, Estado e Administração Pública. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 38 46 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 no texto referido), a determinação da autoridade para que se “expeçam ofícios ao interessado” não é ato inequívoco, mas a expedição do ofício efetivamente, a convocação do interessado para prestar esclarecimentos ou tomar conhecimento, mesmo sem a prévia instauração do processo administrativo já serve ao propósito de demonstrar que a autoridade administrativa está investigando ou conferindo situações. A abertura do processo administrativo é outro momento e poderá não ocorrer se a autoridade, após exame dos elementos colhidos, se convencer da regularidade das operações ou situações sob exame. A prescrição então poderá ser interrompida a cada “ato inequívoco de apuração dos fatos”, pois, como já disse, tudo depende do caso concreto. Há casos que demandam pesquisa de intrincadas operações ou movimentações financeiras, em diversas praças e até no exterior, evidente que a legislação precisou dar abertura para abrigar também tais hipóteses, em um mundo com situações cada vez mais complexas na sociedade pluralista.40 O dispositivo que tanta controvérsia instaurou merece ser examinado à luz da lição de Zagrebelsky41 no sentido de que estamos abandonando o conceito liberal de legalidade e nos aproximando do conceito constitucional de legalidade, onde a predeterminação legislativa da tarefa do intérprete está fatalmente destinada a retroceder.42 A lei é plástica e dúctil e cada caso deve ser moldado em concreto pelo intérprete, atento às finalidades do sistema em que está agindo. O intérprete é o concretizador do sentido da lei no caso concreto. A lei em comento precisa ser interpretada com atenção aos dispositivos da Lei 9.784/99, lei do processo administrativo no âmbito da Administração Federal. A Lei 9.784/99 acolheu a lição de Celso Antônio,43 percorrendo as fases do procedimento a) fase de iniciativa ou propulsória; b) fase instrutória; c) fase dispositiva; d) fase controladora; e) fase de comunicação, sendo ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3.ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 34 et seq. La Ley, la administración, los cidadanos. (Professor de Direito Constitucional na Universidade de Turin). 42 ZAGREBELSKY, Gustavo. En la actualidade, ya no vale como antes la distinción entre la protesión de los particulares y de la Administración frente e la ley. Hoy seria problemático proponer de nuevo com caracter general la doble regla que constituía el sentido del principio de legalidad, libertad del particular en línea de principio, poder limitado del Estado sin línea de principio. Esta regla está ya erosionada en ambas direciones, en direción con los particulares y con la Administración. 43 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 430-431. 41 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 47 certo que, pelo artigo 38 da referida lei, o indiciado, ainda na fase instrutória, deve ter ciência da movimentação propulsória, sendo nesta fase, ao dar-se ciência ao interessado, o momento da interrupção do curso da prescrição. O ato inequívoco, pois, é o ato que solicita ou comunica ao interessado que sua situação será ou está sendo examinada. Prosseguindo no exame da lei em referência, os casos de suspensão da prescrição referem-se a hipóteses em que o interessado firma compromissos de ajuste de conduta, situações previstas na Lei do CADE e na Lei 6.385/76, penalidades impostas por infração a atividades relacionadas ao mercado de valores mobiliários. A suspensão do curso da prescrição é inerente à hipótese. 4 O processo administrativo e o devido processo legal Não é preciso dizer que o BACEN atua em área absolutamente sensível e relevante. Em quase todas as atuações, a prudência, cautela e o sigilo são parâmetros impostergáveis. O sigilo, contudo, não é absoluto e não se impõe ao próprio interessado. No processo administrativo por infração a normas cambiais, por decorrência do artigo 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, aos litigantes e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa com os meios e recurso a ela inerentes. 44 O processo administrativo foi muito prestigiado pela Lei 9.784/99, não existe mais o “procedimento administrativo, há processo”. Acrescento que a fundamentação das decisões administrativas e a sua razoabilidade são decisivas para a sua validade. Não importa que o princípio da motivação não esteja previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, ele está no artigo 93, X, da Constituição Federal de 1988 e, se o Judiciário precisa motivar, o Executivo também precisa fazê-lo, a exigência consta do artigo 1º, VII, da Lei 9.784/99. Motivar é explicitar as razões, é dizer mais do que apenas mencionar o artigo tal ou qual, mas dizer que o fato se enquadra no artigo tal pela seguinte razão: dizendo brevemente a razão ou mencionando sucintamente o fato. A questão é pacífica na aplicação de multas de trânsito veicular. REsp 556904, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 19.12.2003; REsp 516443, 1ª Turma. Rel. Min. José Delgado, DJ 13.10.2003 (exemplificativamente). No caso de existir a sistemática da formulação de dossiê, ou “pasta” antes do processo administrativo, o conteúdo deve ser levado ao processo. 44 48 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 O devido processo legal exige mais do que a motivação legal, nesse sentido, AC 256921, 4ª Turma, DJ 09.08.2000, Rel. Zuudi Sakakihara. O devido processo legal não se afeiçoa, por exemplo, às “cobranças diretas” de multas, situação que comumente é realizada pela autoridade administrativa. Não estou me referindo a cobranças, “débitos em conta”, modalidade freqüentemente contratada nos empréstimos bancários, mas à cobrança de multas aplicadas por infrações cambiárias ou outras infrações em geral. Deve ser aberto prévio processo administrativo com ciência ao acusado e oportunidade de manifestação para a cobrança administrativa, se infrutífera, a solução é a execução fiscal inscrevendo-se previamente o débito. No artigo 45 da Lei 9.784/99, há uma exceção à prévia manifestação do interessado, ocorre quando há “caso de risco iminente”. A prévia intimação é a regra, mas em caso de “risco iminente” a autoridade agirá sem comunicação prévia. É a orientação da jurisprudência: TRF-4ª Região,AMS 2002.70.00.0607896/PR, 3ª Turma, DJ 26.11.2003, Rel. Thompson Flores Lenz. Ementa: “Administrativo. Contratação de câmbio. Determinação do BACEN, Lei 4.595/64. Aplicação de Multa, MP 1.734/99. Necessidade de prévio processo administrativo. Sujeição ao executivo fiscal”. Na mesma linha, TRF-4ª Região, Ag 2001.04.01.040785-0, 3ª Turma, Rel. Maria de Fátima Labarrère, DJ 30.01.2002. Ementa: “Agravo de Instrumento. Multa. Operações de Câmbio. Débito em conta: Não pode o Banco Central do Brasil cobrar multa de forma sumária...”. Ainda TRF-4ª Região, Agravo nº 63670, 3ª Turma, DJ 14.02.2001, Marga Barth Tessler, Ementa: “Processual Civil. Operação de Câmbio. Multa aplicada pelo Banco Central do Brasil. Débito em conta para cobrança. Abuso de Direito, quanto à forma de cobrança”. TRF-4ª Região, AMS 66122, 3ª Turma, DJ 06.09.2000, Rel. Marga Barth Tessler. Ementa: “Administrativo. Contratação de Câmbio. Determinação do BACEN. Lei 4.595/64. Aplicação de multa MP 1.734/99. Necessidade de prévio processo administrativo. Sujeição ao Executivo fiscal”.45 O Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no exato sentiAinda no TRF-4ª Região, AC 400062348, 4ª Turma, Aquisição de dólares sob falsa alegação. Prescrição afastada, suspensão do processo Administrativo. 45 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 49 do, REsp 379595, 2ª Turma, Rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 12.05.2003. Ementa: “Administrativo. Banco Central do Brasil. Contratação de Câmbio. Aplicação de multa, Lei 4.595/64 e MP 1.734/99, Circulares 2753/97 e 2747/97. Desconto direto de conta bancária. Ilegalidade”. No mesmo sentido, o AMS 01193268, 4ª Turma, STJ, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 08.10.98, “nulidade do ato de apropriação de recursos depositados por instituição bancária, aplicação de penalidades”. 4.1 Fixação de prazo em Circular No que se refere à fixação de prazo “de até 360 dias”, feito pela Circular 2747/97, a jurisprudência tem decisões que prestigiam a possibilidade do aludido comando ser fixado por Circular, mas há precedentes que entendem que a fixação do prazo atenta contra os princípios do livre exercício da atividade econômica e da ampla defesa, no último sentido encontra-se o precedente do TRF-1ª Região, AMS 01000838545, 6ª Turma, Rel. Paes Ribeiro, DJ 06.02.2002. Prestigiando a possibilidade de Circular fixar prazo e vendo que está abrigada no exercício do poder de polícia, o precedente do TRF-1ª Região, AMS 1381461, Rel. Airton de Carvalho, DJ 12.03.99 e do TRF-4ª Região, AMS 3ª Turma, DJ 26.11.2003, Rel. Thompson Flores Lenz. Pessoalmente alinho-me com o último precedente, pois46 o Poder Público, a autoridade cambial, está agindo ao abrigo da Constituição Federal, artigo 21, VIII, da Constituição Federal de 1988, sendo que a política cambial, a administração das reservas, não pode ficar submetida ao demorado processo legislativo, liberta-se da legalidade estrita, a legalidade “liberal”.47 4.2 O devido processo legal e o indeferimento de provas no processo administrativo Na questão da produção de provas, o indiciado tem direito à sua produção. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça sempre prestigiou manifestações na área do Comércio Exterior veiculadas por Resoluções ou outros comandos infralegais, por exemplo, as proibições para importação de pneus usados, automóveis usados, etc. 47 Consulte-se a propósito Zagrebelsky: a predeterminação legislativa da tarefa do intérprete... . Folha de São Paulo, 20.05.2004, “vai a 10% alíquota para trazer sardinha”, atuação da Comex. 48 Exemplificativamente proc. nº 1999.04.01.0917930/RS, AC 256921, AC 96.0004254-3, AC 2002.04.01.637-0/RS. 46 50 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Deve ser usado o postulado da razoabilidade pela autoridade cambiária. Não é também toda e qualquer prova que é de ser admitida. Consulte-se o artigo 38 da Lei 9.784/99 que dá respaldo, no § 2º, para recusar a produção de provas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias. As provas inúteis ou impertinentes podem e devem ser indeferidas motivadamente. A autoridade deve justificar as razões que a levam a indeferir o solicitado. Cito o precedente AC 315799, TRF-4ª Região, DJ 06.00.2002, Rel. Taís Schilling Ferraz. 4.3 O devido processo legal e a atuação conjunta do BACEN/ RECEITA/DECEX nos processos administrativos cambiais As questões envolvendo processos administrativos cambiais constituem ricos precedentes para discutir sobre o devido processo legal nos processos administrativos instaurados por infração às regras do Decreto 23.258/33, artigo 3º, Lei 9.817/99, Lei 7.492/86, infrações lesivas ao mercado de câmbio (exportação de mercadorias com preço formal inferior ao preço real, sonegações de coberturas, ou aumento de preço de mercadorias importadas, coberturas indevidas). É freqüente que os indiciados recorram do Judiciário invocando cerceamento de defesa e nulidade dos processos administrativos. Observo que tem sido aceita a alegação de nulidade,48 contudo entendo s.m.j. que há equívoco em alguns posicionamentos que acolhem alegações de cerceamento de defesa por supostas irregularidades na condução dos processos pelo BACEN.49 Em alguns casos, dá-se a atuação conjunta de dois ou mais órgãos,50 A propósito da atuação do Judiciário, a eventual liminar concedida para sustar processo administrativo é causa interruptiva da prescrição. 50 Lei 5.025, 10 de junho de 1966, dispôs sobre o intercâmbio comercial com o exterior, cria o Conselho Nacional de Comércio Exterior e dá outras providências, artigo 63, capítulo VI, artigo 66, fraudes, preços, pesos, medidas, qualidade, classificação... . 51 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 101. Lei 5.025, artigo 44 – é a autoridade aduaneira que por ocasião do embarque faz a fiscalização material. 52 O grande problema que ocorreu verificou-se por ocasião da extinção da Cacex no Governo Collor e criação do Decex que originou uma lacuna na legislação baixada que não previa prazo para defesa. Na ocasião, o ágio no mercado paralelo era muito grande, o que consistia um apelo irresistível às práticas incorretas. Diversas modalidades de irregularidades ocorriam, com fraude documental, de produto, tipo, qualidade, etc... Há casos que a abertura do “container” já identificava a incorreção, por exemplo, constar botas de couro, mas tratar-se de chinelos, não há necessidade de perícia para tão singela verificação. 49 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 51 a Receita (autoridade fiscal e aduaneira), o DECEX (regula o comércio exterior), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, e o BACEN, autarquia com a mesma filiação (autoridade cambial), todos com objetivos e finalidades comuns. Contudo, o BACEN só cuida do financeiro/ cambial, o BACEN é autoridade cambial. Considerando os princípios da continuidade do serviço público51 e da colaboração, que tem aplicação especialmente no exercício da função pública decorrente do poder de polícia, não podem ser separados os procedimentos efetuados pela Receita, aduana e comércio exterior dos levados a efeito pelo BACEN. Na Receita Federal, pela autoridade aduaneira são examinadas as guias de exportação, colhidas amostras dos produtos, tudo com a presença do exportador ou seu preposto, são efetuadas as análises ou não,52 tendo o exportador a oportunidade de se manifestar, produzir defesa, apresentar elementos que fundamentem a precificação constante da guia de exportação, podendo até retificá-la. É no âmbito do DECEX ou SISCOMEX que a operação é desclassificada, considerada irregular, violadora da legislação protetiva dos interesses cambiais brasileiros na proteção de nossas divisas. O exportador ficava inerte, silente, não aproveitando as oportunidades abertas. Remetido o expediente ao BACEN, para efeito da irregularidade cambial, o interessado é novamente chamado para ciência e nova defesa. Com a vênia de quem pensa em contrário, não seria apropriado o BACEN questionar a atuação do DECEX/SISCOMEX, a presunção de legitimidade dos atos das autoridades públicas impede tal postura. Não cabe ao BACEN realizar investigação ou aduzir fundamentação adicional à já produzida pela Receita, invadindo a esfera de competência da autoridade fazendária. O fundamento fático material repousa na Receita que realizou a fiscalização, nas amostras dos produtos e dos paradigmas ou tabelas, mostruários enfim, os elementos materiais TRF-4ª Região, Agr. 3900, 3ª Turma, DJ 05.01.2000. TRF-1ª Região, AMS 01000163843, DJ 20.11.2003. O Supremo Tribunal Federal, interpretando a Lei 3.244/57, em caso de importação de automóveis com fraude cambial prestigiou a multa de 100% do respectivo valor de mercado. Rec. Ext. 54109, rel. Min. Hermes Lima, RDA nº 77/285, Ag. MS 21.295, Min. Candido Lobo, RDA vol. 77/286. 55 TRF-1ª Região, AMS 01000331465, DJ 13.11.2003. TRF-1ª Região, AMS 01000838545, DJ 06.02.2002. 56 TRF-1ª Região, AMS 01000172771, DJ 02.04.2003. 53 54 52 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 comparativos que foram utilizados. Assim, não cabe ao BACEN fazer descrição técnica dos produtos ou outra qualquer consideração adicional. É lógico que a empresa indiciada, em sua defesa, junto ao DECEX, fará a prova pertinente. Não resta na sistemática que resumidamente foi retratada ofensa ao artigo 3º, III, da Lei 9.784/99 “formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente”, cada autoridade atua em sua área de competência. (artigo 13, III, Lei 9.784/99) No peculiar processo administrativo, a fase instrutória fundamental feriu-se junto ao DECEX, ou antes na Aduana, não havendo obrigatoriedade de se fazer uma segunda instrução probatória, mas apenas a de aplicação da multa cambial. O problema que se enfrenta é o valor elevado que atingem as multas.53 Há precedentes que não aplicam a multa aos contratos anteriores.54 Ainda na questão da multa diária, foi considerada ofensiva ao artigo 170 da Constituição Federal de 1988.55 Em sentido contrário,56 entendendo cabíveis e não afrontosas aos princípios constitucionais. As multas elevadas têm a finalidade de desistimular a prática da evasão de divisas e, se não fossem elevadas, possivelmente não teriam o caráter preventivo pretendido. Elas têm um escopo didático. Não se afasta, contudo, considerações em torno da razoabilidade das multas e de saber TRF-1ª Região, AMS 01381461, DJ 12.03.99. TRF-1ª Região, REO 01059060, DJ 10.05.93. 59 TRF-3ªRegião, AMS 226822, Rel. Consuelo Yoshida, DJ 23.05.2003. 60 Poder de Polícia do Bacen. 61 Poder de Polícia do Decex, Siscomex, Receita Federal. 62 TRF-5ªRegião, EDAC 257081, Rel. Castro Meira, DJ 04.04.2003. 63 TRF-5ªRegião, AC 13287, DJ 20.11.92. 64 “Mercado de Câmbio” é o sistema formado por agentes econômicos inter-relacionados como figurantes em trocas de moeda estrangeira por moeda nacional. Esses agentes são as empresas que vendem ou compram moedas estrangeiras, as empresas que se dedicam à exploração do comércio dessas moedas e as empresas de corretagem na atividade de aproximar comerciantes, vendedores e compradores. Figuram na condição de vendedores os exportadores de bens e serviços e outros que recebem receitas ou remessas originárias do exterior e os que possuem moeda em espécie (manual) ou recursos no exterior... São compradores os importadores de bens e serviços e os que adquirem moeda manual (por exemplo viajantes/turistas) ou promovem transferências financeiras para o exterior. No mercado em referência a atividade consiste em comprar moeda dos vendedores e revendê-las aos compradores com a finalidade de auferir lucro. É da União a competência para administrar as reservas cambiais, artigo 21, VIII, e de legislar sobre a política cambial, art. 22, VII, da Constituição Federal de 1988. Em vigor a Lei 4.595/64, e a legislação requerer a participação de banco autorizado a operar em câmbio em todo e qualquer contrato. O artigo 23 da Lei 4.131/62 estabelece que o banco e a corretora respondem pela identidade do cliente e correta classificação das informações, artigo 57 da Lei 4.595/64. 57 58 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 53 se são “necessárias ao atendimento do interesse público” (art. 2º, VI, Lei 9.784/99). As multas têm o escopo de desestimular as práticas ilícitas. Ante fundada suspeita de remessa irregular de divisas ao exterior, é lícita, não configurando ofensa a direito líquido e certo, a exigência do BACEN de prévia autorização para a contratação de operação de câmbio.57 A guia póstuma configura mera irregularidade administrativa não sendo suficiente para caracterizar fraude cambial,58 o precedente afastou o crime, não a infração cambial. Precedente exemplar dá a exata dimensão da atuação do BACEN,59 dizendo que os contratos de câmbio fundados em importações e exportações caracterizam-se por dois negócios jurídicos: o contrato de câmbio60 e a operação comercial subjacente.61 As operações cambiais são autônomas das relações que lhe deram causa, sendo independentes os negócios pactuados. A política cambial é questão de ordem pública, pois visa ao controle da economia, à preservação das reservas cambiais e ao equilíbrio da balança de pagamentos. O BACEN é o órgão encarregado da fiscalização, detendo o monopólio das normas cambiais. O poder de polícia do BACEN, ao instituir multas para o controle cambial, tem por fundamento, dentre outros, evitar fraudes. Confirmando a legalidade da multa, por infrações administrativas cambiais,62 mas mitigando-lhe o valor com aplicação do Decreto-Lei 37/66, artigo 169.63 O precedente reduziu a multa administrativa. Ainda sobre o contrato de câmbio, é contrato que, apesar de expressão privilegiada da autonomia privada, manifestação do “poder negocial”, não pode mais o contrato de câmbio ser perspectivado64 apenas no campo negocial, pois tem uma função social que instrumentaliza a circulação da riqueza na sociedade, é a ótica da “cláusula da função social do contrato” que não pode servir de veículo para sangrar as divisas nacionais ou iludir o pagamento de impostos, a cláusula da função social é uma condicionante ao princípio da liberdade contratual.65 Concluindo, esperando ter com o presente estudo contribuído no REALE, Miguel, O projeto de Código Civil. MARTINS COSTA, Judith. Diretrizes Teóricas do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. 244 p. 65 54 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 debate dos temas suscitados pela Lei 9.873/99, deixo bem demarcado que tudo dependerá do caso concreto a decidir e da devida justificação e fundamentação dos atos praticados, pois o primeiro intérprete da lei em comento é a autoridade pública responsável por sua melhor aplicação. Referências Bibliográficas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000. BARROSO, Luis Roberto. A prescrição Administrativa no Direito Brasileiro, antes e depois da Lei 9.873/99. Revista Diálogo Jurídico. n. 4, jul. 2000. Disponível em: <http//www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 25 abr. 2004. CORDEIRO, Renato Sobrosa. Prescrição Administrativa. Rev. Direito Administrativo. n. 207, p. 105-120, jan.-mar. 1997. CRETELLA JÚNIOR, J. Revista Forense, v. 275, red. 1981, p. 5, prescrição da falta administrativa. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo Brasileiro. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 55 56 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Questões polêmicas quanto aos impostos e contribuições incidentes na tributação do comércio internacional Maria Lúcia Luz Leiria* A obra em homenagem ao prof. Alcides Jorge Costa – Direito Tributário, coordenada por Luís Eduardo Schoueri (São Paulo: Quartier Latin, 2004, em dois volumes), aqui também homenageado, traz síntese densa de conteúdo de vários doutrinadores tributaristas. Recordo o trabalho do professor Heleno Taveira Torres, que me trouxe à lembrança meus tempos de Academia, onde, efetivamente, a cadeira que cursei foi de Ciência das Finanças. Vejo, então, que as alterações curriculares e as discussões sobre a autonomia de ramos do direito caminharam comigo. Comungo da idéia de que, efetivamente, o Direito Tributário, para fins didáticos, é autônomo, autonomia essa que decorre de seus princípios específicos e de sua interpretação diferenciada, mas que está, por óbvio, ligado umbilicalmente ao Direito Constitucional, por força do que entendo por ordem jurídica positiva. Buscando uma adequação ao que faço diariamente com a amplidão do tema deste painel – “Questões polêmicas quanto aos impostos e contribuições incidentes na tributação do comércio internacional” – e por entender que, sempre que se buscam soluções doutrinárias ou judiciais para lides postas, se está a enfrentar polêmicas. Não existe apenas uma * Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 57 ideologia, uma doutrina, uma exegese autêntica, e sim, graças a Deus, um pluralismo de posturas que só faz crescer e aprimorarem-se os conhecimentos, ampliando-se, por via de conseqüência, as ditas soluções às questões que, no dia-a-dia, ao depois podem não ser mais as soluções justas ou quiçá soluções. Porque faz parte da própria humanidade esse passar, esses caminhos, esse enfrentar o presente que já não é mais e ainda não é futuro. Assim, resolvi pinçar algumas discussões que, para mim, vêm sendo as mais debatidas pela Fazenda Nacional e pelos contribuintes dos impostos de importação e exportação, ou da tributação no comércio internacional, sem me atrever a adentrar nas profundezas das doutrinas de meus ilustres mestres que compõem a mesa neste painel. Quando penso imposto de importação, vêm-me as lições de Rubens Gomes de Sousa: “Os direitos aduaneiros são, portanto, tributos sôbre o consumo, dentro da definição e classificação que já tentámos. É preciso, entretanto, fazer algumas ressalvas, a primeira das quais concerne aos impostos de exportação. Tais impostos podem ser, com efeito, tributos diretos ou indirétos, confórme as condições do mercado internacional impeçam ou permitam a sua translação. Na primeira hipótese, isto é, se o exportador tem de suportá-los, serão tributos sôbre a produção, e não sôbre o consumo, por quanto éste, em qualquer hipótese, ocorrerá fóra do país. No segundo caso, isto é, sendo possível a sua translação, teremos realmente um tributo indireto, mas cujos efeitos se vão fazer sentir sôbre o importador estrangeiro, fóra, portanto, do campo econômico do sistema tributário do país. A segunda ressalva que compete fazer quanto aos tributos aduaneiros refere-se aos direitos que sejam cobrados sôbre a importação de materiais básicos e matérias primas. Sendo discutível a possibilidade de repercussão de tais tributos, parece mais acertado considerá-los também como impostos sôbre a produção, porquanto serão suportados em definitivo pelos importadores fabricantes dos produtos em cuja manufatura entrem os produtos taxados. Finalmente, uma última ressalva concernente às tarifas protecionistas. A finalidade primordial de tais impostos não é tributária, porquanto não se tem em vista alimentar o tesouro, mas, antes pelo contrário, reduzir ou eventualmente fazer cessar a importação de determinados artigos, e por conseguinte suprir a renda proveniente da sua tributação. Por outro lado, o objetivo perseguido pela criação de uma tarifa protecionista não é, pelo menos normalmente, o combate puro e simples ao produto estrangeiro, mas o favorecimento do produto similar nacional. O fator preponderante no estudo das tarifas protecionistas é, portanto, o custo de produção no mercado interno. Os impostos aduaneiros protecionistas ocupam, assim, uma posição intermediária entre 58 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 os tributos sôbre a produção e os tributos sôbre o consumo, porquanto participam das características de uns e de outros.” O que, na realidade, se demonstra que cada vez mais é este tributo uma espécie de imposto de consumo ou, pelo menos, um terceiro gênero entre tributos sobre a produção e tributos sobre consumo. Sem adentrar em todos os aspectos doutrinários, fixo-me somente em algumas decisões atuais que enfrentei, bem como do STF e do STJ, e que demonstram a função extrafiscal deste imposto. Função essa que, embora não tenha nascido com o imposto, passou a tornar-se instrumento da política econômica e monetária do país. Veja-se, por exemplo, o manejo das alíquotas. Em sendo competência privativa da União para legislar sobre comércio exterior (art. 22, VIII, CF), sendo sua fiscalização atribuição do Ministério da Fazenda (art. 237, CF) é, portanto, no campo da política econômica e monetária que transitam as decisões a respeito de tal tributo. Vamos a alguns exemplos: A imunidade de que desfrutam livros, jornais, periódicos e papel destinado para impressão, prevista no art. 150, inciso VI, da Constituição Federal, vem sendo reconhecida para impressão de apostilas escolares (REOMS nº 98.04.08444-9/PR, relatado por mim) e, inclusive, mais recentemente também para a película importada que dá maior resistência às capas de livros, que se integra ao produto final (RE 392221/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 18.05.2004, Informativo 348) e até mesmo para álbum de figurinhas, “visto que os mesmos visam estimular o público infantil a se familiarizar com os meios de comunicação impressos, o que atende a finalidade do benefício instituído pela norma constitucional de facilitar o acesso à cultura, à informação e à educação”. (RE 221239/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, julg 25.05.2004, Informativo 349) No tocante à imunidade, prevista no inciso I do § 2º do art. 149 da Constituição, introduzida pela EC nº 33/2001, segundo a qual as contribuições sociais não incidirão “sobre as receitas decorrentes de exportação”, a 1ª Turma do TRF 4ª Região tem entendido que não é aplicável à contribuição social sobre o lucro líquido, porque o fato gerador desta não é a receita proveniente de exportação. (AMS nº 2003.70.09.007341-1/ PR, relatado por mim, julg. 05.05.2004) Em outro mandado de segurança, em que se discutia o reconhecimento R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 59 do direito de devolução ao exterior de mercadoria importada pela empresa, a 1ª Turma do TRF 4ª Região entendeu que a administração fazendária tem o poder-dever de fiscalizar toda mercadoria submetida à importação ou à exportação, inclusive no regime de entreposto aduaneiro, sobretudo em hipóteses como as daqueles autos, “em que após retida a mercadoria para fins de fiscalização e apurada a discrepância entre a qualidade das mercadorias e os valores apontados pelo fisco, a importadora desiste de levar adiante a internação das mercadorias ao argumento de que já não haveria mais mercado para as mesmas, sendo que estas ostentavam etiquetas com a razão social e CNPJ de empresa brasileira”. (AMS nº 2001.71.01.002297-9/RS, relatado por mim, julg. 08.10.2003) Relativamente à alteração de alíquotas do imposto de importação, o STF, no RE 225.602-CE (Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 25.11.98, Informativo 133), já refutou o argumento no sentido de que atos normativos que importem aumento do imposto não têm aplicação a situações jurídicas de importação já consolidadas, tendo em vista que a CF somente veda a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado (art. 150, III, a), sendo que, no caso, o decreto que alterou as alíquotas é anterior ao fato gerador do imposto de importação, que é a entrada da mercadoria no território nacional. (CTN, art. 19, e DL 37/66, art. 23) Da mesma forma, o STJ (EDREsp 313117/PE, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 10.05.2004, p. 167) entendeu que, “nos termos do art. 23 do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, na importação de mercadoria despachada para consumo, o fato gerador do imposto de importação consuma-se na data do registro da declaração de importação”. Apreciando a questão da imunidade prevista no art. 155, § 3º, da Constituição, o STF firmou entendimento de que “o legislador constituinte federal optou por fixar, nesse caso específico, a imunidade tributária restrita às operações em si mesmas, consideradas a produção, a importação, a distribuição ou o consumo de combustíveis, sem estendê-la a outras operações realizadas pela empresa produtora. Decisão que concluísse de forma diversa incidiria em ampliação indevida, vedada pelos princípios que norteiam a hermenêutica constitucional”. (RE 216286/PR, Rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo 233) Na AC nº 2001.70.00.031586-8/PR, em que se discutia a imunidade 60 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 de imposto de importação, prevista no art. 150, § 3º, III, da Constituição Federal, sobre mercadorias destinadas à exportação, que foram subtraídas, a 1ª Turma do TRF 4ª Região entendeu que “não se trata de imunidade posta sob condição, mas sim de condição para a imunidade. A Constituição Federal dispôs que faz jus à imunidade de IPI o produto destinado à exportação. Para tanto, o mínimo que se exige é que o produto tenha realmente sido exportado, sem o que não há que se falar em imunidade de tributo. Ocorre o fato gerador do IPI com a saída da mercadoria do estabelecimento industrial. Não demonstrada a saída da mercadoria do território nacional, não se configura a hipótese constitucional para a imunidade, que dispensaria o recolhimento devido” . O STJ, no REsp 390176/PA (Rel. Min. Franciulli Neto, DJ 05.05.2004, p. 147), entendeu que “o artigo 37 do Decreto-Lei nº 1.544/76, com a redação dada pela Lei nº 8.387/91, permite a saída de bens importados que ingressaram na Zona Franca de Manaus para outros pontos do território nacional, desde que efetuado o pagamento dos impostos exigíveis sobre importações do exterior. In casu, portanto, a saída da Zona Franca de Manaus de mercadorias anteriormente importadas por empresa lá sediada, para outra parte do território nacional, exige o pagamento do Imposto de Importação e do IPI.” Da mesma forma, o STJ (REsp 202958/RJ, Rel. Min. Franciulli Neto, DJ 22.03.2004, p. 263), apreciando a questão de revisão do lançamento por conta de erro quanto à identificação física da mercadoria, entendeu que o “art. 149 do CTN autoriza a revisão do lançamento, dentre outras hipóteses, ‘quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória’, ou seja, quando há erro de direito. Se a autoridade fiscal teve acesso à mercadoria importada, examinando sua qualidade, quantidade, marca, modelo e outros atributos, ratificando os termos da declaração de importação preenchida pelo contribuinte, não lhe cabe ulterior impugnação do imposto pago por eventual equívoco na classificação do bem.” O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que “a incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física”. (RE nº 203.075/DF, relator R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 61 Ministro Maurício Corrêa, DJ de 29.10. 99) No que diz respeito à apreensão de mercadoria importada, que foi adquirida no mercado interno, já ficou assentado que “a aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal, gera a presunção de boa-fé do adquirente, cabendo ao Fisco a prova em contrário”. (AGA 487282/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 19.12.2003, p. 331) Em vista dessas decisões, não há como negar que a tributação do comércio exterior está em linha direta com o manejo da manutenção de uma salutar economia no país. Ou seja: aqui não é a arrecadação a ordem primeira, o fundamento e fim da tributação, mas sim a proteção, o objetivo, as diretrizes do comando político-econômico, campo maior da função extrafiscal destes impostos. Sem qualquer outra pretensão a não ser trazer ao debate e por não ter, ainda, qualquer processo sobre o assunto, atrevo-me a lançar um provisório entendimento a respeito da CIDE, criada pela EC nº 33 - art. 149, § 2º, II, da Constituição Federal, já objeto de diversos comentários de tributaristas ilustres no sentido de que...1 “A falta de indicação do aspecto material do fato gerador das contribuições torna imperiosa que tributo instituído a esse título atenda claramente aos requisitos próprios da figura e que vêm sendo indicados pela doutrina e acolhidos pela jurisprudência. A contribuição distingue-se dos impostos por ser de sua essência o atendimento a uma determinada finalidade, ou melhor, a uma finalidade constitucionalmente prevista. O art. 149 da Constituição Federal, ao estabelecer que à União compete impor as contribuições ‘como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas’, fim é a atuação nas respectivas áreas, ou seja, de interesse das respectivas áreas. Portanto, há, antes de mais nada, de verificar-se na própria Constituição quais são as normas que permitem a intervenção do Estado no domínio econômico. Isto porque só como veículo para atingir aquelas finalidades é que se pode instituir contribuições.” E mais:2 “A EC 33/2001, por sua vez, veio admitir a intervenção no âmbito de atividade objeto de monopólio da União, ao prever a instituição de contribuição interventiva sobre importação de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível, nos parágrafos acrescentados ao art. 149, e no § 4º acrescentado ao art. 177 da CF. (...) MARTINS, Ives Gandra da Silva, coord. Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária, 2002. p. 65. 2 Idem, p. 113-118. 1 62 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Assim, o conceito de domínio econômico assume hoje um espectro mais amplo, abrangente não apenas do setor cuja exploração cabe ao particular, mas também das atividades sob monopólio estatal exercidas mediante contratação de empresas privadas e das previstas nos incisos XI e XII do art. 21 da CF, objeto de concessão permissão e autorização – vale dizer, de atividades que não se inserem no campo dos serviços públicos essenciais, assim entendidos aqueles prestados pelo Estado ou por seus agentes, em decorrência de sua soberania, sob regime de direito público, remunerados por taxa ou por impostos. (...) Aponta a doutrina, efetivamente, com base na Lei Maior, três formas de intervenção do Estado na ordem econômica: a) por meio de poder de polícia, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo a fiscalização e o planejamento indicativo, para o setor privado, e determinante, para o setor público (art. 174 da CF); b) fomentando a iniciativa privada, mediante a outorga de incentivos e favores fiscais (art. 174 da CF); c) atuando, ele próprio, empresarialmente no setor, mediante a criação de entes da administração indireta, nos casos excepcionais previstos no art. 172 da CF. (...) No campo das atividades previstas nos incisos XI e XII do art. 21 da CF, cuja exploração se dá mediante concessão, permissão ou autorização, a intervenção assume outro perfil, tendo em vista tratar-se de setor público em que o planejamento é determinante. Tal planejamento, de rigor, há de refletir-se nas cláusulas do contrato administrativo firmado com o particular. Tendo em vista que referidas cláusulas devem dimensionar o valor da tarifa e demais elementos que compõem a remuneração do contratado de forma proporcional, tanto a sua expectativa de lucro quanto aos investimentos necessários a assegurar serviço adequado ao universo dos usuários – só nos parece possível cogitar de ‘intervenção’ de contribuição para viabilizá-la no caso de situação excepcional e transitória, capaz de pôr em risco a suficiência do serviço ou a sua continuidade, cujo enfrentamento só seja possível por essa via, e desde que respeitado o equilíbrio econômico e financeiro da avença. (...) A previsão causa perplexidade, quer pelo fato de caracterizar ‘intervenção’ da União em área que compete a ela própria explorar diretamente sob regime de monopólio, quer pelos ares de definitividade que ostenta o tributo cuja instituição foi autorizada. Trata-se, entretanto, de instrumento de imposição do planejamento oficial, em relação ao particular contratado pelo Estado para realizar atividades monopolizadas, e de instrumento de intervenção regulatória, para o segmento de comercialização dos combustíveis envolvidos, com a finalidade de superar a notória carência de recursos – inclusive subsidiando serviços afins, como é o caso do transporte desses produtos – verificada em setor de extrema relevância para o desenvolvimento nacional. Daí, certamente, a inclusão na lei maior de disposições próprias de legislação infraconstitucional, o que permite vislumbrar a exação enunciada, como uma verdadeira exceção.” 3 Idem, p. 161-163 e 368-376. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 63 Em outra passagem:3 “(...) as duas agências que estão previstas na Constituição são a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e a ANP (Agência Nacional de Petróleo) (...) ora, não tendo as demais agências previsão constitucional, implica que a delegação está sendo feita pela lei instituidora da agência. Por esta razão, a função normativa que exercem não pode ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão administrativo ou entidade da administração indireta, ou seja, não podem regular matéria não disciplinada em lei, porque os regulamentos autônomos não têm fundamento constitucional em nosso direito, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do Chefe do Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade que detém o poder regulamentar e não pelo legislador.” (p. 161-162) “A União pode instituir contribuições de intervenção no domínio econômico, em casos excepcionais de descompasso da economia, atribuindo às agências reguladoras a capacidade de arrecadação desses recursos, desde que presentes os requisitos constitucionais necessários à instituição deste tributo. Os limites para sua criação estão no próprio texto constitucional ao autorizar ‘órgãos reguladores’ para exploração de determinados serviços considerados essenciais na forma dos arts. 21, XI e 177, § 2º, I, da CF”. (p. 163) “Tais contribuições poderão adotar, conforme o caso e as circunstâncias concretas, hipóteses de incidência de taxas ou de impostos, mono ou plurifásicos, não havendo senão a possibilidade de que a lei as defina incidentes uma única vez. As possibilidades aqui apontadas não afastam o exame da validade das exações concretas, por seus pressupostos de imposição. Apenas se deseja ressaltar que o dispositivo constitucional sob comento não exige sejam os tributos a que se refere monofásicos, únicos. (...) Também ao falar-se de efetiva intervenção no domínio econômico, como requisito necessário, à legitimação, está-se falando de uma interferência no mercado, isto é, numa atuação efetiva que tende a alterar uma distorção trazida pelas regras do mercado. Tais distorções são conhecidas do direito comercial e do direito econômico, aí incluídas as práticas monopolísticas e demais abusos da liberdade de mercado. Não haverá, portanto, legítima contribuição quando instituída pela busca de fins diferentes dos reguladores da economia. Assim, não seria legítima, por exemplo, contribuição para financiar a formação de companhia estatal para competir no mercado. Quanto à existência de limites à criação de agências com poder regulatório, acredito que efetivamente existam tais limites. (...) ‘A Lei nº 10.336’... (...) A vinculação do produto da arrecadação e sua finalidade própria estão coerentemente definidas com a Constituição e se inserem claramente num contexto ambientalista. A referibilidade existe entre a categoria dos contribuintes (produtor, formulador e importador de gasolina, diesel, lubrificantes etc) e o setor econômico (petrolífero), mas parece ser quebrada ao restringir-se a incidência da Cide às operações de importação de tais produtos e sua comercialização no mercado interno. 64 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Ao aplicar-se somente aos produtos importados, torna-se questionável a contribuição criada, pois a intervenção estaria ocorrendo de forma diferenciada no setor que é único. A constitucionalidade de tal restrição à categoria dos importados parece-me duvidosa, pois denunciadora de uma atuação do Estado em apenas parte de um setor econômico e não em toda aquela área escolhida pela lei.” Não posso deixar, neste momento e a partir dessas citações, de trazer lições do Prof. Roberto Ferraz, que faz o desafio de trazer para dentro da validação de qualquer tributo a efetiva destinação da arrecadação, a fim de que o contribuinte possa identificar a sua constitucionalidade. É o que se vê das seguintes passagens:4 “A necessária participação popular no orçamento, diretamente ou através de representantes, especialmente na definição de prioridades e de despesa, e não apenas na elaboração de leis que definem as hipóteses de exigibilidade dos tributos, é hoje matéria básica atinente à própria tributação, pois lhe define a legitimidade e validade. (...) Parece-me, portanto, que a definição do destino da aplicação dos recursos obtidos com a arrecadação tem uma importância superior, não apenas em grau, mas em natureza, às definições de competência tributária. Baseando-me nessas características, não tenho dúvidas em afirmar que a indicação de destino do produto da arrecadação feita na Constituição, supera a simples ‘técnica de validação finalística’ (...) O motivo é claro: indicada constitucionalmente a destinação, fica legitimado o cidadão a exigir-lhe o cumprimento bem como a opor-se ao pagamento, caso os valores arrecadados não alcancem efetivamente o destino prescrito. Não se trata mais de matéria afeta exclusivamente ao legislativo e ao executivo, mas também ao judiciário. (...) E o mais importante: caso os tributos não sejam destinados a essas finalidades, ou cobrados em proporção a tais necessidades, caberá ao contribuinte opor-se ao pagamento por meio de ação. (...) Pressuposto de incidência tributária é o conjunto de condições estabelecidas expressa ou implicitamente pela Constituição para a imposição de tributos, tanto no tocante à cobrança, isto é, condições estabelecendo hipóteses de incidência, base de cálculo, contribuintes, e demais elementos de exigência válida, incluídos isonomia, legalidade, irretroatividade, capacidade contributiva e progressividade, conforme o caso, bem como, no tocante às contribuições estabelecidas constitucionalmente quanto à destinação do produto da arrecadação, que igualmente integram o elenco de requisitos para validade da exação, para todas as espécies tributárias.” Pergunta-se, então, a partir dessas reflexões, se as Agências RegulaFERRAZ, Roberto. Da hipótese ao pressuposto de incidência- em busca do tributo justo. IN: SCHOUERI, Luís Eduardo, coord. Direito Tributário. Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 191-235. Volume I. 4 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 65 doras, passando a ser as destinatárias deste tributo, poderão destiná-lo a outras áreas, como ocorre com a alteração da Lei no 10.336, pelas Leis nos 10.636 e 10.866? Entendo que finalidade e destinação são diversos conceitos, e, que, se a destinação não macular os princípios da ordem econômica insertos na Constituição Federal ou os direitos e garantias individuais, limites da imposição de qualquer CIDE, não vejo tal contribuição, neste exame, fora de qualquer caso concreto, como contrário aos princípios da Carta Constitucional, mormente porque, mesmo que o petróleo não importado esteja fora da sua incidência, não está ferido o princípio da isonomia, porque o discrímen utilizado está conforme o objetivo da exação, uma vez que o petróleo importado é situação fática distinta daquela do petróleo nacional, não há, pois, igualdade de situações. Aqui, claramente trata-se de função parafiscal desta contribuição. Tratando-se, pois, de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE, incidente sobre a importação de petróleo e seus derivados, necessário verificar se estão presentes os pressupostos de imposição, elementos para criação válida desta contribuição, que são: a) efetiva intervenção da União, nos limites estabelecidos pela ordem econômica e direitos fundamentais; b) referibilidade da contribuição a contribuinte de determinado domínio econômico; c) vinculação da arrecadação à atuação da União na área econômica específica dentro dos limites de sua atuação; d) transitoriedade, esta, no meu entendimento, aquela transitoriedade que caracteriza a contribuição no sentido de alcançar uma determinada finalidade. Verificados esses elementos, está constitucional e legalmente instituída a exação. Estes elementos foram vislumbrados em decisões que dizem respeito à taxa de licenciamento ambiental. Ali, a transitoriedade fica, a meu sentir, na perenidade “da precaução” que se deve ter e manter com o meio ambiente, única forma de permanecer com vida neste planeta. Presentes os demais requisitos autorizadores: a) a intervenção está configurada pela atuação estatal, exercida por autarquia legalmente constituída – IBAMA – em benefício do indivíduo, pela possibilidade de as empresas afetarem o meio ambiente; 66 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 b) a referibilidade está presente, envolvendo a empresa que opere na atividade legalmente prevista e potencialmente poluidora; c) a vinculação está dada pela própria situação de valor variável de acordo com o tamanho da empresa, potencial de poluição e grau de utilização de recursos naturais de suas atividades. Portanto, constitucional e com natureza de CIDE a denominada taxa de licenciamento ambiental. Agora, assente que a “vinculação” da arrecadação ou a finalidade da exação e não a destinação como entendida por alguns, no sentido de, se o produto transite pelos cofres da União para, ao depois, dirigir-se à efetivação do objetivo da tributação, será que o financiamento do programa de infra-estrutura de transporte está vinculado também ao campo econômico regido para a instituição desta “CIDE – combustíveis”? Acredito que sim, porque, em raciocínio simplista, não há transporte sem combustível, qualquer que seja, e pode ou não ser derivado de petróleo, etc. Portanto, creio, numa análise preliminar, presentes os já citados elementos que são pressupostos ou requisitos da imposição: a) o campo pode ser objeto de intervenção da União; b) há a referibilidade com o contribuinte; c) a vinculação está presente com as finalidades do produto arrecadado; d) a transitoriedade está assente na necessidade dos programas atingidos pelo § 1º do art. 1º da Lei nº 10.336/2001. Neste sentido, o STF, em 19.12.2003, deu interpretação conforme a Constituição, no sentido de que a abertura de crédito suplementar deve ser destinada às três finalidades enumeradas no art. 177, § 4º, II, a, b e c, da Constituição (a- pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e derivados ou derivados de petróleo; b- financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c- financiamento de programas de infra-estrutura de transportes) (ADI 2925/DF, rel. p/ acórdão Marco Aurélio, Informativo 334). E, em novembro do ano passado, já assentara a desnecessidade de que a vinculação direta do contribuinte ou a possibilidade de que ele se R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 67 68 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 O contempt of court no novo processo civil Paulo Afonso Brum Vaz* Sumário: 1. Introdução. 2. Alcance objetivo do comando abstrato (preceito). 3. Alcance subjetivo do comando abstrato. 4. O contempt of court e a Assistência Judiciária Gratuita. 5. A sanção pecuniária. 6. Incidência, exigibilidade e exeqüibilidade da sanção pecuniária. 7. O contempt of court e a prisão civil. 8. O contempt of court e as repercussões na esfera penal. 9. Defesas e recursos do sujeito passivo da multa.10. Considerações finais. 1. Introdução As aspirações sociais acerca do processo civil apontam para a necessidade de maior efetividade da tutela jurisdicional. Sob o ponto de vista da efetividade subjetiva, ainda que não se possa considerar concretizado o ideal de total democratização do acesso à justiça – muito ainda se tem por fazer para a sua completude –, tivemos avanços consideráveis, sobretudo com a criação dos Juizados Especiais, que constituem, por assim dizer, justiça gratuita, acessível e rápida a todas as camadas sociais; sob o ponto de vista da efetividade técnica, observamos sensíveis adaptações, especialmente com a universalização da tutela antecipada e o reconhecimento das tutelas mandamentais e executivas lato sensu; sob o enfoque da efetividade qualitativa, a consagração legal das tutelas inibitórias específicas, assegurando a satisfação de direitos violados in * Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 69 natura, ao invés da prestação substitutiva, constitui indubitável avanço rumo à efetividade da tutela jurisdicional; finalmente, considerado o aspecto objetivo da efetividade, podemos afirmar que a resposta do legislador reformista, ao ampliar as medidas coercitivas tendentes ao concreto cumprimento das decisões judiciais, antecipatórias ou finais, constitui um avanço importante. Tendo como desígnio a maior efetividade da prestação jurisdicional, assistimos, recentemente, à edição das Leis nos 10.352, de 26.12.2001, 10.358, de 27.12.2001, e 10.444, de 07.05.02, promovendo substanciais reformas no CPC. Umas, com o visível escopo de explicitar e otimizar dispositivos e institutos que haviam sido objeto de modificações anteriormente efetuadas (1994), como foi o caso da nova disciplina legal da antecipação da tutela, da audiência preliminar, da prova pericial, da tutela específica do art. 461 do CPC, da liquidação de sentença, do recurso de agravo de instrumento; outras, implementando inovações que se pode chamar de “típica nova onda reformista”, tais como, por exemplo, a nova sistemática da prova testemunhal e do reexame necessário, a vitalização da execução provisória, a mitigação do sistema do duplo grau de jurisdição (art. 515, § 3º), a limitação das hipóteses de embargos infringentes e a introdução do contempt of court, temática esta última que pretendemos desenvolver no presente exercício. A Lei nº 10.358, de 27 de dezembro de 2001, deu nova redação ao art. 14 do CPC, que passou a ter o seguinte teor: “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (...) V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% (vinte por cento) do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado”. Este dispositivo legal, de extrema importância para a efetivação das decisões judiciais (especialmente as interlocutórias concessivas de tutela antecipada e as sentenças mandamentais ou executivas lato sensu), ao tempo em que empresta reconhecimento legal aos provimentos de 70 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 natureza mandamental, introduz, no sistema processual civil brasileiro, o instituto do contempt of court, já conhecido no direito estrangeiro, nomeadamente nos países da common law. Contempt of court quer dizer “desrespeito à Corte”, “desacato à Corte” ou “atentado à Corte”. Trata-se de instituto revelado no direito romano e consagrado, principalmente, no direito anglo-saxão. Na sua essência, funciona como permissão ao juiz, em decorrência do poder de coerção (coertio) contido na jurisdição, de ordenar a prisão das partes ou de seus advogados, diante da prática de atos considerados atentatórios à respeitabilidade, à autoridade e à dignidade do Poder Judiciário, impondo, por assim dizer, limites de ética e decência no curso do processo e cumprindo o dever de zelar pela efetividade de suas determinações. Não obstante o rigor técnico exija que se diferencie entre as condutas dos partícipes do processo, que constituem o contempt of court no sentido estrito da expressão, e as medidas coercitivas que podem ser adotadas pelo juiz (contempt sanctions) com base no contempt power, neste singelo exercício utilizaremos a expressão contempt of court em sentido amplo, para designar o conjunto de normas que disciplinam tanto as condutas dos partícipes do processo como o poder judicial de coibir tais condutas e as respectivas medidas coercitivas que lhes podem ser infligidas.1 A importância do novo instituto é realçada pela professora Ada P. Grinover: “A origem do contempt of court está associada à idéia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a existência de meios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma utilidade teriam as decisões, sem o cumprimento ou efetividade. Negar instrumentos de força ao Poder Judiciário é o mesmo que negar sua existência”.2 E acrescenta a renomada professora: “A administração vencida em juízo é a primeira a opor-se injustificadamente aos Consulte-se, a propósito, o excelente artigo do Professor Marcelo Guerra, nominado Contempt of court: efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no Código de Processo Civil e prisão por dívida – Tradição no sistema anglo-saxão e aplicabilidade no direito brasileiro. (apud Execução Contra a Fazenda Pública, Série Cadernos do CEJ, Conselho da Justiça Federal, nº 23, p. 312 usque 333) 2 Ética, Abuso do Processo e Resistência às Ordens Judiciárias: O Contempt of Court. Revista de Processo, nº 102, p. 222. 1 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 71 mandamentos jurisdicionais, sendo exemplo crucial dessa situação o não-pagamento de dívidas judiciais, alimentares ou não, com a espera interminável dos credores na fila dos chamados ‘precatórios’, ordens de pagamento do Tribunal do Estado”.3 O processo civil moderno é informado por princípios éticos. A relação jurídico-processual triangular que se estabelece entre as partes e o juiz, além de reger-se por normas jurídicas, exige também a atenção a certos preceitos de conduta ética e moral. Por isso dizer-se que o processo de há muito deixou de ser visto como um instrumento simplesmente técnico da prestação jurisdicional, para assumir a feição de instrumento ético voltado a pacificar com justiça. A nova redação do caput do art. 14 do CPC, estendendo os deveres de colaboração, lealdade e ética a todos os partícipes do processo e dispondo sobre a sanção pecuniária pelo descumprimento ou embaraço à efetivação de decisão judicial, aperfeiçoa o arcabouço normativo tendente a tornar o processo um instrumento ético de solução dos conflitos de interesses.4 2. Alcance objetivo do comando abstrato (preceito) Cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, representa, para todos os partícipes do processo, um dever. Não se trata de faculdade, nem de ônus. O dever descumprido constitui um ilícito e acarreta a sanção consubstanciada no pagamento de multa pecuniária. Diferentemente das multas previstas na legislação processual civil (arts. 18, 461, § 4º, 538, § único, 557, § 2º), cujo valor fixado reverte-se em favor da parte contrária, as multas decorrentes do contempt of court, porque se trata de conduta de desprestígio ao Poder Judiciário, revertem-se em favor do Estado. Vale uma palavra sobre o alcance da expressão “provimentos mandamentais”. Em nosso Manual da Tutela Antecipada, explicamos: “Mandamentais são as ações cuja eficácia preponderante corresponde ao mandado Ibidem, p. 224. A introdução do contempt of court era reclamada no âmbito do Poder Judiciário: “PROCESSO CIVIL. (...) CONTEMPT OF COURT. RECURSO DESACOLHIDO. (...). IV - A protelação do cumprimento de decisões manifestamente razoáveis e bem-lançadas estão a justificar a introdução, em nosso ordenamento jurídico, de instrumentos mais eficazes, a exemplo do contempt of court da Common Law”. (STJ, REsp n° 235978, Processo nº 199900974344/SP, 4a Turma, DJU 11.12.2000, p. 209, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira) 3 4 72 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 de cumprimento que está compreendido na decisão que se almeja. O objetivo da ação mandamental é, pois, uma ordem do juízo para que alguém, direta ou indiretamente, com imediatidade, faça ou deixe de fazer alguma coisa. Pode-se citar como exemplo o Mandado de Segurança, cuja sentença impõe um comportamento omissivo ou comissivo por parte da autoridade coatora, ou a ação de retificação de um registro, onde se busca, primordialmente, que o juiz ordene ao oficial do registro público a retificação, ou os embargos de terceiros, sede onde o comando sentencial constitui ordem de imediata desconstrição do bem penhorado. Ainda, as ações cautelares, que resultam também em ordens de ação ou abstenção por parte do réu, a fim de resguardar de risco o direito do autor”.5 Ao que pensamos, quando aludiu ao descumprimento de decisões mandamentais como suscetível de ensejar a aplicação da multa do parágrafo único do art. 14, não pretendeu o legislador reformista limitar as hipóteses de incidência da sanção pecuniária ao descumprimento de decisões mandamentais típicas. Também outras decisões que, embora não tenham carga eficacial mandamental preponderante, conquanto providas desta eficácia, ensejarão a aplicação da sanção em comento. Por exemplo, toda a gama de ações inibitórias que demandem atuação do réu para a efetivação da tutela jurisdicional, e, inclusive, as ações declarativas e constitutivas, em que, “preceitado”, obriga-se o réu a ajustar seu comportamento (omissivo ou comissivo) aos termos da decisão. “As ações executivas lato sensu têm como traço característico a executoriedade inserida no mesmo processo de conhecimento, dispensando a execução ex intervallo. A força executória está inserida no próprio processo de conhecimento. O juiz, julgando procedente a pretensão vertida na demanda, emite comando para que o réu, desde logo e independentemente de qualquer outra providência por parte do autor, se submeta à decisão, entregando a este o bem da vida objeto da lide. Todas as defesas serão deduzidas pelo réu na fase de conhecimento, não sendo admitidos, dessarte, embargos à execução. Constitui exemplo de demanda executiva lato sensu a ação de despejo, onde o juiz, reconhecendo a infração contratual, ao acolher a pretensão, dá por extinto o contrato e determina a desocupação do imóvel. A alteração no mundo dos fatos é decorrência da capacidade executória compreendida na própria sentença e independe de qualquer outro comportamento por parte do autor. De igual conformação, a ação de reintegração de posse. Da decisão sobre a ilegitimidade da posse do demandado decorre a imediata reintegração na posse do demandante, em ato que independe da ação daquele, pois é praticado de ofício pelo juízo. A sentença, neste caso, não estabelece uma obrigação a ser cumprida pelo réu, isto porque se trata de direito real (em sentido amplo), e não 5 Manual da Tutela Antecipada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.37. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 73 obrigacional, dispensando a prestação por parte do demandado. Uma análise comparativa entre as sentenças mandamentais e executivas lato sensu permite verificar que ambas se efetivam no mesmo processo em que prolatadas, dispensando o processo executivo ex intervallo. Entretanto, diferenciam-se na medida em que as mandamentais contêm comando para o réu, o que não ocorre nas executivas lato sensu, que não veiculam ordem propriamente ao réu, mas sim uma cominação sancionatória que se concretiza independentemente da participação deste, vale dizer, um comando sub-rogatório que substitui a conduta do réu”.6 Não foi sem sentido que o legislador, além de ter feito referência a cumprir com exatidão os provimentos mandamentais, acrescentou: e não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, dando, sem dúvida, uma abrangência tal às condutas ilegais que talvez nem fosse conveniente ao intérprete vislumbrar limitações. Os provimentos mandamentais são cumpridos pelo réu. A expressão mandamental assim deve ser lida. Criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais é comando dirigido a quem, não sendo o responsável direto pelo cumprimento da ordem, que se fará por intermédio de terceiro, cria obstáculos à sua efetivação. É o caso de algumas decisões de natureza executiva lato sensu, em que a ordem deve ser efetivada sem a interferência direta do réu. Na ação de despejo e na reintegração de posse, por exemplo, se o despejado ou despojado da posse, de qualquer forma, impede o cumprimento da medida (do mandado de despejo ou de reintegração na posse), pode ser compelido por meio da multa em questão. Assim também aquele que obsta o cumprimento de ordem judicial a ser cumprida por oficial de justiça. Quem coloque cadeados e dificulte a entrada do oficial de justiça nas dependências de sua empresa, impedindo que este proceda, por exemplo, a uma interdição judicial, estará também criando embaraço à efetividade do provimento judicial, ficando, portanto, sujeito à multa. Provimentos judiciais finais são as sentenças ou acórdãos. Provimentos judiciais antecipatórios7 são as antecipações de tutela, também chamadas, em sentido amplo, liminares. Inserem-se, também, as liminares de Idem, p. 37-38. Pode-se dizer que a tutela antecipada é uma proteção jurídica diferenciada, caracterizada pela urgência ou pelo direito evidente, que, com base em cognição sumária ou, excepcionalmente, exauriente, satisfaz antecipadamente, no mundo fático, a pretensão vertida pelo postulante, concedendo-lhe uma utilidade ou atribuição que somente poderia alcançar depois da sentença executável provisória ou definitivamente. 6 7 74 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 natureza cautelar, ou seja, aquelas que não representam antecipação dos efeitos da tutela de mérito, constituindo apenas medidas assecurativas da eficácia probatória ou executiva de futura sentença de mérito, e também as de natureza satisfativa, tais como a liminar de alimentos provisionais8 e a liminar cautelar da ação civil pública.9 As antecipações de tutela, sejam elas genéricas (art. 273) ou específicas (§ 3º do art. 461), ensejam, em caso de descumprimento, a cominação de astreintes, tal como autoriza o § 3° do art. 273, que, expressamente, prevê a incidência das medidas coercitivas previstas nos §§ 4º e 5° do art. 461 do CPC. Acreditamos ser possível a incidência das chamadas astreintes cumulativamente com a sanção pecuniária decorrente do contempt of court, porquanto, não obstante ostentem a mesma natureza (pressão psicológica), têm diversos beneficiários e, sobretudo, diferenciam-se em termos de motivação. No contempt of court, a multa tem a função imediata de punir o menoscabo à função jurisdicional (desrespeito à Corte), e apenas mediatamente dirige-se a punir o prejuízo à efetividade da prestação jurisdicional. As astreintes, ao contrário, estão imediatamente vinculadas à efetividade da prestação jurisdicional e apenas mediatamente dirigidas a coibir o ato atentatório à dignidade da justiça. Dessarte, uma mesma conduta de que resulte o descumprimento de decisão mandamental de fazer ou não fazer poderá ensejar a dupla incidência de multa: a do art. 14, parágrafo único (contempt of court), em proveito do Estado, e a prevista no art. 461, § 4°, em favor da parte que tenha sido prejudicada pelo descumprimento da ordem. Concedida, por exemplo, uma antecipação de tutela determinando que o credor de Existem, basicamente, duas disposições legais tratando de liminares antecipatórias para a prestação de alimentos. No Código de Processo Civil, Livro III, do Processo Cautelar, arts. 852 a 854, está disciplinada concessão liminar de alimentos provisionais. O art. 852 dispõe que é lícito pedir alimentos provisionais, (II) nas ações de alimentos, desde o despacho da petição inicial. O art. 4º da Lei 5.478/68, que disciplina a ação de alimentos, assim dispõe: “Ao despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor declarar que deles não necessita”. 9 A medida cautelar a que alude o art. 4º da Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, constitui autêntica antecipação de tutela, consoante tem assentado a doutrina especializada, pois que possui natureza satisfativa da pretensão meritória veiculada na ação. Neste sentido, o escólio de Sérgio Ferraz, quando sustenta que a ação cautelar na ação civil pública é mais ampla e mais profunda, revestindo-se, inclusive, de feição satisfativa, sem que reste infirmado o arcabouço peculiar deste tipo de ação (Ação Civil Pública. 3.ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 116). 8 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 75 um título de crédito se abstenha de levá-lo a protesto, o descumprimento desta ordem de abstenção poderá ensejar a dupla penalidade (astreintes e decorrente do contempt of court). 3. Alcance subjetivo do comando abstrato Diz o texto do caput do art. 14 do CPC que são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetividade dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final (inciso V). Partes são as pessoas físicas ou jurídicas, as universalidades, a massa falida e as sociedades desprovidas de personalidade jurídica (sociedades de fato), que figuram nos pólos ativo e passivo da lide (autor e réu). Embora não se possa qualificar de partes aqueles partícipes do processo (ou figurantes da relação processual) que não são integrantes do litígio, os chamados terceiros10 (ou partes secundárias), resta evidente que estes estão também abrangidos pela regra do art. 14. Afinal, o dever de lealdade processual, segundo o texto legal, abrange todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, mesmo que não se enquadrem no conceito formal (estrito) de parte. Poderá a multa prevista no parágrafo único do art. 14 ser infligida à pessoa física ou jurídica que deixa de dar cumprimento à ordem; também ao empregado ou agente público que, agindo deliberadamente ou apenas com culpa, tenha dado causa à desatenção da ordem judicial, mesmo que não figure ele como parte no processo. A participação no processo não precisa ser direta (na condição de parte ou terceiro interveniente) e se configura na medida em que a ordem seja dirigida a pessoa estranha à relação processual, mas que, por seu vínculo jurídico com a parte ou terceiro interveniente, encontra-se obrigado a cumpri-la. As pessoas jurídicas, porque são entes abstratos, encontram-se corporificadas pela atuação de seus presentantes. O empregado ou agente público que, encarregado de praticar determinado ato ou de abster-se de praticá-lo, desatende à ordem judicial, sem justificativa legítima, poderá responder Terceiro é todo aquele que não compõe a relação processual na condição de autor ou réu, mas que está, de qualquer forma, vinculado ao objeto da relação jurídica conflituosa ou de outra relação que possa ser afetada pela decisão judicial, o que o autoriza a ingressar no processo, voluntariamente ou por provocação. 10 76 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 pessoalmente pelo pagamento da multa em questão. É certo que muitas vezes o terceiro não dispõe de poderes ou atribuições para a prática do ato. Outras vezes, especialmente no âmbito da Administração Pública, a complexidade do ato ou da estrutura administrativa não permite a identificação do agente público responsável pelo cumprimento da decisão. Nestas hipóteses, o ônus de comprovar a impossibilidade ou a ausência de atribuições incumbirá a quem alega. Hugo de Brito Machado entende que a multa deve ser aplicada diretamente a quem corporifica a pessoa jurídica e não a esta: “O raciocínio que conduz à conclusão de que a multa é aplicável à parte (pessoa jurídica) e não a quem a corporifica (pessoa natural) diretamente e assim é responsável pelo descumprimento da decisão não é sequer um raciocínio lógico. Mas, ainda que o fosse, não poderia prevalecer pois, como afirma Perelman com inteira propriedade, ‘seja qual for a técnica utilizada em direito, este não pode desinteressar-se da reação das consciências diante da iniqüidade do resultado ao qual o raciocínio conduziria. Pelo contrário, os esforços dos juristas, em todos os níveis e em toda a história do direito, procurou conciliar as técnicas do raciocínio jurídico com a justiça ou, ao menos, com aceitabilidade social da decisão. Essa preocupação basta para salientar a insuficiência, no direito, de um raciocínio puramente formal que se contentaria em controlar a correção das inferências, sem fazer um juízo sobre o valor da conclusão’. Quando a parte seja a Fazenda Pública, a interpretação segundo a qual a multa seria aplicável à parte e não a quem a corporifica mostra-se ainda mais inaceitável, pois na generalidade dos casos implicaria anular a própria norma instituidora da sanção. Realmente, tendo-se a Fazenda Pública colocada como devedora e simultaneamente credora da multa, restaria inteiramente anulada a norma em questão. Como assevera, com inteira propriedade, Leonardo José Carneiro da Cunha, a multa de que se cuida constitui crédito do Estado ‘porque o descumprimento dos deveres contidos no inciso V do art. 14 do CPC é tido como ato atentatório à dignidade da jurisdição, ofendendo, em última análise, a presteza da prestação jurisdicional, cujo atendimento compete ao Estado preservar. Havendo ato atentatório à dignidade da jurisdição, o credor da multa é o próprio Estado, a quem compete tutelar e defender o interesse público primário, que é o interesse de toda a coletividade.’ Não é razoável, pois, sustentar-se, que sendo o Estado responsável pela prestação jurisdicional, cuja presteza lhe cabe preservar, tutelando e defendendo o interesse público primário, possa, ele próprio, cometer um ato atentatório à dignidade da jurisdição. Quem comete esse ato na verdade é o servidor público que não está realmente preparado para o desempenho de suas atribuições em um Estado de Direito. A este, portanto, cabe suportar a sanção correspondente”.11 11 Descumprimento de ordem judicial. Revista da AJUFE, nº 70, p. 215/216. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 77 A tese de Hugo de Brito Machado tem perfeita adaptabilidade às multas que devam ser pagas pela União à própria União (desprestígio ao Poder Judiciário Federal) ou à multa que deva ser paga pelo Estado-Membro a ele próprio, em caso de ato atentatório contra a dignidade da justiça cometido na Justiça Estadual. Não se aplica, porém, quando demandadas entidades da Administração Indireta, que têm personalidade jurídica própria e autonomia orçamentária e financeira. Este é o caso, por exemplo, do INSS. O certo – e nisso estou integralmente de acordo com o mestre cearense – é que se deve buscar preferencialmente a responsabilização do agente público e apenas subsidiariamente a do ente público a que esteja vinculado e corporificando, porquanto a responsabilização da Fazenda Pública corresponde à oneração da sociedade, que, em última análise, é também vítima da conduta recriminada, sendo, portanto, duplamente penalizada. É indubitável, pois, que a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público não poderá ser excluída pela responsabilização do servidor público que tenha a atribuição legal de dar o cumprimento ao comando judicial mandamental. Sobretudo porque, muitas vezes, no emaranhado que constitui a estrutura administrativa dos órgãos e entidades públicas, não é fácil identificar-se o agente público responsável pela ação ou omissão que caracterizam a desatenção e o deliberado descumprimento da providência objeto da ordem judicial. Outras tantas vezes o agente público relapso não dispõe de condições financeiras para o pagamento Não é comum, lamentavelmente, a responsabilização de agentes públicos por prejuízos que a Administração Pública comumente é compelida a indenizar, quando há disposição constitucional (art. 37, § 6º) que, a nosso ver, não confere poder discricionário à Administração, mas, sim, o dever de buscar o ressarcimento do servidor desidioso. 13 “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONTEMPT OF COURT E FAZENDA PÚBLICA. 1. A decisão que em sede de mandado de segurança impõe obrigação de fazer é essencialmente mandamental, sendo subsidiariamente substituída por perdas e danos, no caso de real impossibilidade de cumprimento, diante da interpretação analógica do art. 461 do CPC. 2. O contempt of court civil do direito anglo-saxão, como meio de coerção psicológica do devedor, decorre da concepção de que a autoridade do Poder Judiciário é intrínseca à sua própria existência. 3. Provido o agravo para que o juiz adote todos os meios capazes de dar efetividade à jurisdição, registrando que a aplicação de astreintes à Fazenda Pública é ineficaz como meio de coerção psicológica, já que sujeitas ao regime do precatório. 4. Nas causas envolvendo o erário público, a coerção somente será eficaz se incidir sobre o agente que detiver responsabilidade direta pelo cumprimento da ordem, reiterada e imotivadamente desrespeitada”. (TRF da 2a Região, 2a Turma, Agravo de Instrumento nº 97.02.29066-0/RJ, DJU 21.08.2001, Relator Juiz Ricardo Perlingeiro) 12 78 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 da multa. Devemos lembrar, por oportuno, que a Administração, na medida em que compelida a pagar a multa por desprestígio ao Poder Judiciário, adquire o direito regressivo em relação ao agente público que deu causa ao evento punido, cumprindo-lhe comprovar a sua culpa.12 É certo, no entanto, e neste aspecto a jurisprudência também é cônsona,13 que a sanção aplicada ao agente público que corporifica a entidade pública é muito mais eficaz no desiderato de dissuadir reiterações. É lamentável que os advogados tenham sido excluídos do alcance da multa do contempt of court, parecendo-nos de duvidosa constitucionalidade a regra de isenção prevista no preceptivo legal antes citado. Primeiro, porque o Estatuto da OAB não contempla o dever previsto no inciso V do art. 14 do CPC. Qual dos deveres do advogado poderá ser violado com o embaraço ao cumprimento de provimento mandamental (inclusive a tutela antecipada)? De toda sorte, qualquer penalidade que possa ser aplicada ao advogado, com base no Estatuto da Ordem, não teria cunho patrimonial, mas meramente disciplinar, perdendo bastante em eficácia dissuasória. Ademais, a afetação de todos os demais partícipes do processo, inclusive o juiz e os auxiliares da justiça, submetidos também a regimes jurídicos de responsabilização próprios, não autorizaria a exclusão dos advogados. É certo que os advogados, no processo, não agem em nome próprio, e sim em nome das partes a quem representam. Cumprem, portanto, mandato. Mas esta circunstância não lhes retira a responsabilidade direta pelos próprios atos. No processo, temos atos das partes, inclusive os praticados pelo advogado em nome destas, e atos dos advogados que não se compreendem na relação de mandato. Se a parte se oculta para não ser intimada para cumprir a decisão mandamental, não pode o advogado ser responsabilizado. Mas se o advogado, por exemplo, orienta a parte a descumprir a ordem judicial ou cria embaraços ao cumprimento por esta da referida ordem, obviamente que tal atitude lhe deve ser diretamente imputada. Dizer que o advogado não está submetido hierarquicamente ao juiz, o que é totalmente correto, não afasta também a possibilidade de ser-lhe aplicada a multa. O juiz, no processo judicial, não coíbe abusos e aplica multas em razão de eventual posição hierárquica superior em relação aos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 79 demais partícipes do processo, mas sim porque detém o que se convencionou chamar de poderes decisórios e éticos, que representam muito mais deveres de garantir a efetividade das decisões judiciais. Não se pode confundir os poderes deontológicos do órgão de classe, aos quais estão vinculados todos os advogados, com os poderes decisórios e éticos do juiz, que devem ser acatados por todos os que do processo participem. Discutiu-se se os Procuradores das entidades e órgãos que se compreendem no conceito de Fazenda Nacional, aí incluídos os Procuradores do INSS, os Procuradores da Fazenda, os Procuradores dos Estados, os Advogados da União e os Defensores Públicos, por exemplo, estariam excepcionados da multa decorrente do contempt of court. O § 1º do art. 3º da Lei n° 8.906, de 7 de julho de 1994 (EOAB), dispõe que: “Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta Lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e das Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades da administração indireta e fundacional”. Dois aspectos nos fizeram sustentar que os Procuradores de entidades públicas não estavam abrangidos pela exclusão da sanção prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC. O primeiro era de ordem gramatical. O referido preceptivo legal está assim grafado: “Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB (grifamos), a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição (...)”. A ausência de vírgula depois de “advogados” deixa claro que apenas os advogados que se submetam exclusivamente aos estatutos da OAB é que estão excepcionados. Com efeito, os procuradores públicos não se submetem exclusivamente aos estatutos da OAB, mas sim a este estatuto e também aos regimes jurídicos próprios de suas carreiras. O segundo motivo era de ordem teleológica. A alteração legislativa cogitada tem como escopo evidente proporcionar maior efetividade à prestação jurisdicional, criando mecanismos voltados para coibir a prática de atos que constituam óbice à concretização dos comandos judiciais. Neste contexto, não se poderia validamente deixar de implicar também os procuradores públicos, que, partícipes do processo, não raro são responsáveis diretos pelo descum80 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 primento de ordens judiciais, impondo, sob o pretexto de bem defender a entidade ou o órgão público que representam, embaraços de toda ordem, em recrimináveis atitudes de desprestígio ao Poder Judiciário. O correto seria, dissemos, a implicação tanto de advogados como de procuradores públicos. Com isso, estaria preservado o princípio isonômico. Advertimos, dessarte, que a exclusão apenas dos advogados – tal como se infere da interpretação do texto legal – consistiria flagrante violação do citado princípio, ensejando a inconstitucionalidade do dispositivo legal, o que, certamente, haveria de ser sustentado junto ao STF pelos procuradores públicos.14 Nossa previsão confirmou-se: foi exatamente isto que ocorreu. A ANAPE – Associação Nacional de Procuradores de Estado – propôs, no Supremo Tribunal Federal, a ADIn n° 2.652-6/600, argüindo a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 14, por violação ao princípio isonômico e por conferir aos juízes poderes de punição que somente a OAB detém. O STF, pondo fim à discussão, em sessão de 08 de maio de 2003, por unanimidade, com base no voto do relator, Ministro Maurício Corrêa, julgou procedente a ADIn, dando ao texto do parágrafo único do art. 14 do CPC interpretação “conforme”, sem redução de texto, para que a exclusão alcance também os procuradores públicos. Remanesce, de qualquer sorte, a possibilidade de advogados e procuradores públicos responderem pecuniariamente por litigância de má-fé nas demais hipóteses legais, com base nos arts. 14, 17 e 18 do CPC. O STJ, por sua 2a Turma, entendeu que é possível a aplicação de multa por litigância de má-fé, com base nos arts. 14, II, 17, VII, e 18, caput, do CPC, a ser suportada pelo advogado que interpõe recurso com propósito meramente protelatório. Consulte-se a ementa do julgado: “PROCESSO CIVIL – EMBARGOS DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – RECURSO PROTELATÓRIO – CONDENAÇÃO DO PROCURADOR AO PAGAMENTO DE MULTA – 1. Inexistência de omissão, mas inconformismo da parte com o julgamento do Recurso Especial. 2. Embargos de declaração interpostos com propósito meramente protelatório, buscando retardar o desfecho da demanda. 3. Aplicação de multa de 1% (um por cento), além de indenização de 3% (três por cento), ambos incidentes sobre do valor atualizado da causa, a ser suportada 14 Tutela Antecipada na Seguridade Social. São Paulo: LTR, 2003, p. 150. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 81 pelo advogado subscritor do recurso, nos termos do art. 14, II c/c 17, VII e 18, caput, do CPC, pois é dever das partes e dos seus procuradores proceder com lealdade e boa-fé. 4. Embargos de declaração rejeitados, com imposição de multa e indenização”. (STJ, EEREsp 435824/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 17.03.2003) 4. O contempt of court e a Assistência Judiciária Gratuita A parte que reside em juízo sob os auspícios da assistência judiciária gratuita, porque se declara impossibilitada de custear as despesas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, nos termos do art. 4° da Lei nº 1.050/51, fica dispensada do pagamento de custas, honorários periciais e advocatícios. Quanto aos honorários advocatícios, é cônsona a jurisprudência no sentido de que a condenação é devida, restando a execução da verba condicionada à alteração da situação econômica do condenado, incumbindo ao exeqüente o ônus da prova. Indaga-se se o beneficiário da assistência judiciária gratuita estaria imune aos efeitos da multa do contempt of court. Evidentemente que a resposta é negativa. Não se poderia conceber a atribuição de uma espécie de imunidade para que o beneficiário da assistência judiciária gratuita pudesse descumprir decisões judiciais sem sofrer as conseqüências de seus atos. Assim, deve a multa ser-lhe aplicada, restando a execução também condicionada à alteração de sua situação econômica. A jurisprudência reconhece, no caso, a incidência da multa por litigância de má-fé: “ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – GRATUITA – ALCANCE – COMINAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – POSSIBILIDADE – Não alcançando os benefícios da assistência judiciária gratuita, a indenização por litigância de má-fé, cabível a imputação das sanções pecuniárias previstas pelo art. 18 do CPC, de aplicação subsidiária, uma vez que quem atua em juízo deve arcar com um mínimo de responsabilidade, não podendo, no exercício de seu direito de ação, prejudicar a terceiros”. (TRT 15ª Região, Proc. 8768/03 (12150/03), 1ª Turma, Rel. Juiz Luiz Antonio Lazarim, DOESP 16.05.2003, p. 9) 5. A sanção pecuniária A multa cominada aos partícipes do processo, por descumprimento de decisão judicial mandamental, final ou antecipatória, ou por embaraço à efetividade de decisão judicial, não tem caráter compensatório, porquanto não visa a indenizar o prejuízo da parte prejudicada pelas condutas recriminadas, mas sim a punir o desrespeito contra a autoridade do Poder Judiciário, tanto que o seu valor é vertido aos cofres públicos. Sua 82 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 natureza é, portanto, de verdadeira “pressão psicológica”, de instigação ao cumprimento das ordens judiciais. Importante referir, consoante dispõe o citado artigo, que a multa decorrente do contempt of court não inibe a aplicação de outras sanções criminais, civis e processuais. O descumprimento de ordem judicial constitui crime (prevaricação e desobediência: arts. 329 e 330 do Código Penal, respectivamente). Quem tenha sido prejudicado pelo descumprimento da ordem judicial poderá pleitear reparação dos danos materiais ou morais, nos termos do art. 927 do Código Civil.15 Resta examinar, pois, qual o alcance da expressão sanção processual. Sanção é conseqüência do descumprimento de um dever legal, já o dissemos. Quem não se desincumbe de um ônus, como o de contestar, não sofre sanção, mas perde a faculdade de se contrapor aos fatos articulados pelo autor, sofrendo apenas um prejuízo processual. Sanções processuais são decorrência, portanto, do descumprimento de deveres ou obrigações atribuídas nas normas processuais aos partícipes do processo. As sanções processuais de natureza pecuniária são as multas, previstas nos arts. 18 (litigância de má-fé), 287 e 461, § 4° (descumprimento das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa), 538, parágrafo único (embargos declaratórios protelatórios), 557, § 2° (agravo de instrumento inadmissível ou infundado), e 601 (ato atentatório à dignidade da justiça praticado pelo executado). Ao lado destas, temos as sanções processuais restritivas de liberdade (prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel, conforme os arts. 733, § 1°, 902, § 2°, e 904 do CPC, respectivamente). Os deveres processuais estão previstos nos incisos I a V do art. 14. No art. 17, vamos encontrar as hipóteses caracterizadoras da litigância de má-fé, que podem ensejar a aplicação de sanção processual pecuniária (multa), nos termos do art. 18. O descumprimento de ordem judicial, ao menos diretamente, não implica aplicação da sanção processual pecuniária prevista no art. 18, por litigância de má-fé. Dessarte, não há falar em duplicidade de sanções por idêntica conduta. O descumprimento das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa (arts. 287, 461 e 461-A), “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. 15 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 83 determinadas em sede de antecipação de tutela ou na sentença, autoriza a aplicação de sanção processual pecuniária (astreintes). Poderá uma única conduta de descumprimento da ordem judicial ensejar a incidência de multa com base no art. 14 do CPC, em favor do Estado, e também a multa prevista no art. 461, § 4º, do CPC, para o caso de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, a reverter-se em favor da parte prejudicada pela conduta, sem que se caracterize bis in idem vedado, porquanto se trata de sanções processuais cuja cumulação é decorrência de expressa disposição de lei. Por idêntico motivo, a incidência da multa prevista no art. 601 do CPC, aplicável no processo de execução, para o caso de resistência às ordens judiciais (art. 600, inciso III), não inibe a aplicação da sanção pecuniária prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC. Consoante entendimento jurisprudencial dominante, é possível a cumulação das sanções pecuniárias por litigância de má-fé e recurso protelatório. Consulte-se o precedente do TRT da 3a Região: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – RECURSO MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – MULTAS CUMULADAS COM INDENIZAÇÃO – Arts. 17, VI, VII, 18 e 538 do Código de Processo Civil – A interposição de recurso meramente protelatório caracteriza litigância de má-fé, nos termos dos incisos VI e VII do art. 17 do CPC, e em se tratando de embargos de declaração, cumula-se a essa punição a multa prevista no art. 538 do CPC. Punições que se cumulam por terem natureza diversa”. (TRT 3ª Região, ED 472/03, 4ª Turma, Rel. Juiz Lucas Vanucci Lins, DJMG 22.02.2003) Quanto ao valor da multa, a limitação a 20% (vinte por cento) do valor da causa poderá, nos casos em que este valor é inexpressivo, tornar inócua a sanção pecuniária. O correto seria o não-estabelecimento de qualquer limite, de forma que ao juiz fosse lícito, sopesada a situação particularizada do caso e consideradas, especialmente, as conseqüências do descumprimento, aplicar multa de valor desvinculado do que foi atribuído à causa. Sem dúvida, multas de valor ínfimo não funcionam, bem como pressão psicológica para o cumprimento de decisões judiciais. Devemos lembrar, por outro lado, que o valor atribuído à causa, conquanto tenha inúmeras repercussões no processo (fixação da competência, base de cálculo para honorários advocatícios, custas e outras multas), nada obstante o devesse, nem sempre reflete o conteúdo econômico da demanda, especialmente nas ações constitutivas, declaratórias, mandamentais 84 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 e executivas, prevalecendo o aviltamento com a finalidade de reduzir o valor das custas processuais. O parágrafo único do art. 14 do CPC, ao conferir poder judicial de aplicação de multa, em razão do cometimento das condutas previstas no seu incisoV, não faz referência a dia-multa, dando a entender que o valor da multa, que está limitado a 20% do valor da causa, será estabelecido em montante fixo. De fato, em outra situação, no art. 461, § 4º, o legislador aludiu a multa diária. Da mesma forma, na nova redação do § 5º do art. 461, possibilitou o legislador a aplicação de multa por tempo de atraso, deixando margem ao juiz para fixar a periodicidade em que a multa se renovaria, podendo ser diária, mensal ou observar outro critério que o magistrado entenda adequado. Parece-nos, dessarte, que a multa do parágrafo único do art. 14 do CPC, à míngua de previsão legal para fixação por tempo de atraso no cumprimento da decisão ou de embaraço à efetividade do provimento judicial, deve ser estipulada em valor fixo. A multa fixada poderá ter o seu valor revisto pelo juiz, em decisão fundamentada, caso se revele inadequada, por insuficiência ou excessividade. Embora o art. 14 do CPC não contemple regra permissiva da revisão do valor da multa, tal como vamos encontrar do art. 461, parece-nos induvidosa a possibilidade de aplicação analógica daquele preceptivo legal à multa decorrente do contempt of court, obedecido sempre o limite imposto pelo legislador (20% sobre o valor da causa). 6. Incidência, exigibilidade e exeqüibilidade da sanção pecuniária A multa não elidida, não sendo paga no prazo fixado pelo juiz, depois do trânsito em julgado da decisão, passa a ser exigível. Não se deve, pois, confundir a incidência da multa, que ocorre com o decurso do prazo Neste sentido, o precedente da 5a Turma do TRF da 4a Região: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. MULTA. COBRANÇA CONDICIONADA AO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA. É perfeitamente possível a fixação de multa diária para o caso de descumprimento da decisão, seja interlocutória (tutela antecipada) ou definitiva. Ocorrendo o descumprimento e escoado o prazo fixado, de imediato incide a multa. A sua cobrança, todavia, somente poderá ser feita após o trânsito em julgado da sentença, sendo que isto não retira o caráter de coerção da multa, pois este reside exatamente na possibilidade de cobrança. Neste sentido, encontram-se as seguintes disposições: artigo 12, § 2º, da Lei da Ação Civil Pública e artigo 213, § 3º, do ECA. Também, agora por último, o parágrafo único do art. 14 do CPC, que instituiu o contempt of court”. (Agravo de Instrumento nº 2002.04.01.0046819-RS, DJU de 29.05.2002, p. 570, Relator Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz) 16 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 85 estabelecido pelo juiz para o cumprimento do comando judicial, com a exigibilidade, que ocorre depois do trânsito em julgado da sentença, mesmo quando descumprida decisão antecipatória (interlocutória). O condicionamento da exigibilidade da multa ao trânsito em julgado decorre da necessidade de se obter a certeza do dever de cumprir a decisão.16 Do contrário, poder-se-ia punir a parte pelo descumprimento de uma decisão que culminou por não ser confirmada. A inexigibilidade da multa, enquanto não transita em julgado a sentença, embora seja corolário necessário da segurança jurídica, retira-lhe, em parte, eficácia dissuasória. Se estivéssemos diante de multa que pudesse ser fixada por tempo de atraso (multa-diária, v.g.), a incidência imediata faria com que o valor se exacerbasse no interregno de tempo que decorre até o trânsito em julgado, correndo este prazo por conta do recalcitrante. Assim, somente a certeza de um provimento final favorável justificaria o não-cumprimento. Sendo fixo o valor da multa, sem dúvida, o caráter inibitório tende a sofrer redução. Impõe consignar que nem sempre um desfecho de mérito favorável em derradeira instância será sinônimo de isenção de multa aplicada no curso do processo. O tribunal poderá manter a multa, embora assegurando vitória àquele que a ela deva se submeter, entendendo, por exemplo, que o embaraço à efetividade de determinada decisão judicial interlocutória mandamental foi injustificado, não restando o cumprimento desta decisão prejudicado, no todo ou em parte, pela solução final favorável. Alude o comentado preceptivo legal a trânsito em julgado da decisão final da causa, como sendo o marco inicial para a contagem do prazo fixado para a exigibilidade da multa. Tratando-se de ação cautelar, deve-se considerar o trânsito em julgado da sentença que a decide ou o trânsito em julgado da sentença que decide a ação principal? A ação cautelar, embora possua autonomia procedimental, estrutural e funcional, é instrumental em relação à ação principal. Não constitui, por assim dizer, um fim em si mesma, senão que uma garantia de eficácia probatória ou executiva da tutela alcançada na ação principal. Há, entre a ação cautelar e a principal, uma relação de íntima interdependência – é o que a doutrina Carnelutti referia-se ao processo cautelar como o processo não definitivo, provisório ou cautelar: aquele que não basta a si mesmo, porquanto serve a garantir o êxito de um outro processo (Istituzioni del processo civile italiano. Roma: Ed. del Foro Italiano, 1956, v. I, p. 45-6). 17 86 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 convencionou chamar de referibilidade.17 Assim que a improcedência da ação principal afeta e torna insubsistente a tutela cautelar. Dessarte, ao nosso pensar, a cobrança da multa, a que alude o parágrafo único do art. 14 do CPC, em regra, deve aguardar o trânsito em julgado da sentença do processo principal. A multa será inscrita, sempre, como dívida ativa da União ou do Estado. A expressão sempre, parece-nos, tem sentido duplo: 1. tornar obrigatória a inscrição em dívida ativa, de forma que à Administração não é lícito deixar de fazê-lo, quando, por exemplo, a seu critério, o valor da multa revelar-se ínfimo, tornando antieconômica a inscrição. A obrigatoriedade de inscrição da multa em dívida ativa, entretanto, não constitui imposição quanto à execução do débito correspondente; 2. estabelecer que somente poderá ser cobrada, pela Fazenda Estadual ou Nacional, depois de inscrita em dívida ativa. Esta inscrição é que lhe atribui a exeqüibilidade. Pode-se dizer, em síntese, que a multa incide com descumprimento da ordem no prazo fixado, torna-se exigível com o trânsito em julgado da sentença e pode ser executada depois de lançada em dívida ativa. O cumprimento da decisão judicial, quando ocorrer dentro do prazo fixado pelo juiz, obsta a sua incidência, mas se ocorrer a destempo não, a menos que o juiz releve o atraso. Aqui, diferentemente da multa fixada por tempo de atraso (multa cujo valor se renova e se acumula em razão da periodicidade: dia, mês etc.), inexistindo a superposição de valores em função do tempo de atraso, não há falar em cessação da incidência da multa apenas pelo cumprimento da decisão judicial. Para que não incida a multa é preciso que o cumprimento, repito, se dê no prazo fixado pelo juiz. Soa adequado não ter o legislador conferido poder ao próprio juiz para, de ofício, dar início à execução, a exemplo do que ocorre na Justiça do Trabalho, que hoje dispõe de competência para executar as contribuições sociais decorrentes de seus julgados (art. 114, § 3º, da CF, EC nº 20/98). Esta regra, concessa venia, torna o juiz trabalhista um agente auxiliar de arrecadação, atuando na apuração do débito, na certificação e na execução, de forma a misturar as atividades administrativas e jurisdicionais. O juiz, depois do trânsito em julgado da sentença final, deverá encaminhar as peças respectivas dos autos às Procuradorias das Fazendas Estadual ou Federal conforme se trate de processo que tramite na Justiça R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 87 do Estado ou na Justiça Federal. Estando o juiz estadual no exercício de competência delegada federal (art. 109, § 3°, da CF), a multa, de igual sorte, reverte-se ao Estado, porquanto o descumprimento da decisão judicial afeta o prestígio da Justiça do Estado. A multa inscrita pelo Estado ou pela União passa a ser dívida ativa, extraindo-se Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo que autoriza a propositura da execução, que será processada com base no rito da Lei 6.830/80, a conhecida Lei de Execuções Fiscais, que também permite a execução de dívidas não-tributárias. 7. O contempt of court e a prisão civil A nova redação do art. 14 do CPC, no seu parágrafo único, não contemplou expressa autorização para o juiz determinar a prisão civil daquele que descumpre decisões legítimas do Poder Judiciário. Sabemos que o contempt of court do direito anglo-americano alicerça-se em duas medidas coercitivas principais: a prisão civil e a multa pecuniária. Indaga-se, dessarte, se o sistema brasileiro permitiria ao juiz, diante da ausência de expressa autorização legal, decretar a prisão civil. Depois de muita reflexão sobre o assunto, chegamos à conclusão de que não é possível a decretação da prisão civil por descumprimento de decisão judicial. Estes os fundamentos de nossa posição. Não há no citado art. 14, nem no art. 461 do CPC, expressa previsão de prisão civil como medida coertiva tendente ao cumprimento de decisão judicial. Neste último, existe menção a requisição de força policial, o que, nem de longe, constitui autorização para a prisão civil. Não passa de medida de apoio à efetivação das demais cogitadas pelo § 5º do art. 461 do CPC (busca e apreensão, interdição etc.). Sabe-se que é da essência do contempt of court do direito anglo-americano o poder atribuído ao juiz de determinar a prisão de quem, descumprindo a ordem judicial, se conduz com menoscabo à função jurisdicional. O contempt of court civil, tal como é conhecido no direito anglo-americano, é voltado para o cumprimento das decisões judiciais e não para a punição (que é traço característico do contempt of court penal). Não obstante, poderá ensejar, ao lado da medida coercitiva pecuniária (multa), medida coercitiva restritiva de liberdade (prisão). Esta prisão, porque perdura enquanto persistir o descumprimento da obrigação (ou, 88 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 se não cumprida, pelo prazo máximo fixado na decisão), não apresenta conotação punitiva, mas sim de pressão tendente a obter o cumprimento da ordem judicial. O sistema do contempt of court civil que foi adotado no Brasil, a partir da nova redação do art. 14 do CPC, não contempla a possibilidade de prisão civil, ao contrário do sistema anglo-americano. Foi concebido com limitação, concebendo poder judicial para aplicação, somente, de sanção pecuniária. (parágrafo único) Todos sabemos que é imanente às funções jurisdicionais o poder de coerção (coertio), dispensando expressa previsão legal para a adoção de medidas coercitivas tendentes a garantir a efetividade e a eficácia das decisões judiciais. Pode-se dizer, de outra forma, que é intrínseco ao próprio sistema processual, que tem, no que tange à efetividade das decisões judiciais, suas bases fincadas no art. 461 do CPC, o poder de o juiz adotar medidas adequadas ao cumprimento de suas decisões, quando não se revelem eficazes aquelas previstas na lei. Há, por assim dizer, uma espécie de poder judicial coercitivo residual. O juiz não está, pois, limitado ao elenco de medidas coercitivas e substitutivas previstas nos §§ 4º e 5º do art. 461 do CPC, cujo renque não é numerus clausus, inclusive no que tange às obrigações que não sejam de fazer, não fazer e dar (ou seja: quanto às de pagar quantia certa). O referido poder residual de determinar medidas coercitivas tendentes ao cumprimento de decisões judiciais encontra, entretanto, limitação, no que concerne à prisão civil, nas disposições constitucionais que tutelam a liberdade. A Constituição Federal de 1988 alberga um conjunto de normas protetivas da liberdade, destacando-se os seguintes preceitos: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, inciso LIV). “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (art. 5º, inciso LXI). Na perspectiva do due process of law, pode-se afirmar que somente poderá haver prisão civil se precedente a autorização legal. A possibilidade de prisão em flagrante delito diz respeito a crime e, portanto, não cuida de prisão civil. A autorização constitucional de prisão por ordem escrita de juiz competente também diz respeito a delito, nos casos em R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 89 que não exista o flagrante (prisão preventiva ou temporária). É certo que a Constituição autoriza a prisão civil (Art. 5°, LXVII: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”). Não temos, todavia, disposição legal que confira autorização ao juiz para decretar a prisão civil (por descumprimento de ordem judicial) fora dos casos de depositário infiel e devedor de alimentos. O referido preceptivo constitucional, se interpretado a contrario sensu, confere autorização constitucional para o legislador ordinário dispor sobre a prisão civil nos casos em que a Constituição não veda. Assim, o legislador ordinário poderia, sem violar dispositivo constitucional, autorizar a prisão civil, dispondo, por exemplo, no parágrafo único do art. 14 do CPC, que, além da multa, poderá o juiz determinar a prisão civil daquele que descumpre ou cria embaraço à efetividade de decisão judicial. Optou por não fazê-lo, permitindo apenas a aplicação de sanção pecuniária e abrindo mão de uma medida coercitiva – a prisão civil – que é indubitavelmente mais eficaz. Destarte, toda a discussão sobre se é legítima a prisão civil determinada em razão do descumprimento de ordem judicial de obrigação de pagar quantia, possibilidade que tem sido negada pela doutrina em razão do alcance que se atribui à vedação constitucional, que, de resto, está afinada com a posição firmada pelo Brasil em Tratados Internacionais (Pacto de San Jose da Costa Rica), parece-nos irrelevante, porquanto não há previsão do legislador ordinário para a prisão civil por descumprimento de ordem judicial. 8. O contempt of court e as repercussões na esfera penal Em boa hora o legislador reformista, ao disciplinar o instituto do contempt of court, ressalvou a possibilidade de incidirem cumulativamente as sanções penais, processuais e civis pertinentes. A ressalva é importantíssima porque parte da doutrina e da jurisprudência tem como certa a atipicidade da conduta de desobediência à ordem judicial quando a lei cominar ao mesmo fato penalidade civil ou administrativa, sem ressalvar a possibilidade de incidência cumulativa. Neste sentido, colaciono precedente do STJ: “PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL ASSEGURADA POR SANÇÃO DE NATUREZA CIVIL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 90 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil, processual civil ou administrativa, retiram a tipicidade do delito de desobediência, salvo se houve ressalva expressa da lei quanto à possibilidade de aplicação cumulativa do art. 330 do CP. Ordem concedida para cassar a decisão que determinou a constrição do paciente, sob o entendimento de configuração do delito de desobediência”. (5a Turma, HC n° 16.940/DF, Min. Jorge Scartezzini, j. 25.06.2002) Celso Delmanto, por todos, assim ensina: “As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil ou processual civil tal quanto às administrativas, retiram tipicidade do delito de desobediência (TACRIMSP, RT 713/350)”. (Código Penal Comentado, 5.ed., Rio: Renovar, 2000, p. 586) É certo que não se faz necessária a expressa ressalva de incidência cumulativa do art. 330 do CP, como diz a ementa do precedente antes citado, bastando a ressalva da aplicação cumulativa de sanções penais, tal como fez o parágrafo único do art. 14 do CPC, ao dispor que, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, poderá o juiz aplicar multa ao responsável. O descumprimento de ordem judicial, em princípio, caracteriza o delito de prevaricação (art. 329 do CP), se a conduta for praticada por funcionário público no exercício da função, ou crime de desobediência (art. 330 do CP), quando se trate de crime de particular contra a Administração. A grande discussão que se trava diz respeito à possibilidade de ser decretada a prisão em flagrante daquele que descumpre decisão mandamental final ou antecipatória da tutela, qualquer que seja a sua espécie (genérica ou específica). A primeira questão que se põe, quanto à prisão em flagrante, é se pode ser ela decretada por juiz cível. A jurisprudência, quase que de forma uníssona, tem entendido que somente o juízo criminal Acerca da possibilidade da prisão em flagrante pelo cometimento do crime de desobediência em razão do descumprimento de ordem judicial, podemos elencar as opiniões favoráveis de Joel Dias Figueira Júnior (Comentários à novíssima reforma do CPC, Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 75/90), Luiz Guilherme Marinoni (Novas Linhas do Processo Civil, São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 87/88) e Sérgio Cruz Arenhart (A tutela inibitória da intimidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 206/213). Consulte-se o escólio de Joel Dias Figueira Júnior (Comentários à novíssima reforma do CPC, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 87): “Parecem-nos ilógicos os entendimentos que rechaçam a possibilidade de prisão por descumprimento de ordem judicial oriunda de juiz cível ou trabalhista, porquanto não se pode imaginar que, ‘qualquer um do povo’ possa prender em flagrante delito algum transgressor, enquanto assim, igualmente, não o possa fazer o magistrado, por intermédio de sua longa manus, que é o oficial de justiça, imbuído do ofício jurisdicional e constitucional. Se assim não for, inversamente, haverá de presenciar impávido a desobediência, a chicana, o atentado ao exercício legítimo da jurisdição, em incrédulo ostracismo sócio-político, contentando-se com 18 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 91 é que pode decretar a prisão em flagrante (STJ, HC nº 4031, 5a Turma, j. 18.12. 95, Min. José Dantas; TRF4, HC 97.04.12030-3/97, 2a Turma, DJU 16.07. 97, p. 54.723, Rel. Des. Federal Tania Escobar; e TJRR, HC 013/02, T. Crim., DPJ 21.03.2002, p. 03, Des. Carlos Henrique) Dessarte, ao juiz do cível incumbe apenas determinar a extração de cópias das peças dos autos e remessa para o Ministério Público, a fim de que tome as providências cabíveis, nos termos do art. 28 do CPP. Neste sentido, é a posição do Colendo Superior Tribunal de Justiça: “Desobediência a ordem judicial. Ofício ao Ministério Público. Contempt of court. Não constitui ato ilegal a decisão do Juiz que, diante da indevida recusa para incluir em folha de pagamento a pensão mensal de indenização por ato ilícito, deferida em sentença com trânsito em julgado, determina a expedição de ofício ao Ministério Público, com informações, para as providências cabíveis contra o representante legal da ré. Recurso ordinário improvido”. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 1997.00.86776-5/MG, 4a Turma, DJU 14.06.99, p. 191, RSTJ, Vol. 122, p. 292, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar) A introdução do contempt of court em nosso sistema legal não altera esta perspectiva de atuação do juízo cível, consoante têm apregoado autores de renome.18 Dizer que a Constituição autoriza a qualquer um do povo a prender em flagrante delito e que, portanto, não se poderia afastar do juiz cível esta prerrogativa, é olvidar a trepidante distinção que existe entre prender e decretar a prisão. Ocorre que, no primeiro caso, uma vez efetuada a prisão, deverá esta ser comunicada ao juiz competente (art. 5º, inciso LXI, da CF), que é, sem dúvida, o juiz a quem compete o julgamento da ação penal pelo crime cometido. Se decretada a prisão por a vetusta, porém risível, remessa de peças materializadoras da infração ao Ministério Público, a fim de que apure, em melodioso processo criminal, a responsabilidade do malsinado recalcitrante, o que terminará por findar como tantas outras quimeras jurídicas”. (op. cit. p. 87 usque 88) 19 Segundo o escólio de Weber Martins Batista, “o estado natural do acusado, e, com mais razão, do indiciado, é em liberdade. Assim, as restrições a esse estado estão limitadas pela mais rigorosa necessidade; a medida dessa necessidade, a seu turno, não fica entregue ao livre exame do juiz; ao contrário, está sujeita a pressupostos previstos em lei; por último, essa previsão legal deve conter-se dentro dos limites impostos, explícita ou implicitamente, pela Constituição. Desse modo, quando a prisão provisória não é absolutamente necessária como garantia do processo ou da sociedade, e quando, por outro lado, não for suficiente para esse fim colocar ou deixar o réu em liberdade sem qualquer vínculo, recorre-se à liberdade provisória”. (apud Liberdade Provisória, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 37) 92 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 juiz competente, não se faz necessária qualquer comunicação. Dessarte, o enfoque, afastada a primeira hipótese, deve ser outro: caberia a manutenção da prisão em flagrante, pelo juiz criminal competente, daquele que é acusado do crime de desobediência ou prevaricação? Pensamos que, não obstante em tese isto até seja possível, na prática, revela-se remotíssima tal possibilidade. Primeiro, porque, nos termos do art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95, assumindo o autor do fato o compromisso de comparecer ao juizado, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Ainda que assim não fosse, seria o caso de se verificar se não caberia fiança ou liberdade provisória independentemente de fiança. Se negativo, teria que estar presente uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (art. 312 do CPP), considerando-se, inclusive, que o quantitativo de penas para os delitos em questão ensejará a substituição de eventual pena privativa de liberdade por restritiva de direito, o que torna ainda mais distante a possibilidade de manutenção de segregação provisória. Desta forma e na linha remansosa da doutrina19 e da jurisprudência, sobretudo dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de restringir ao máximo os casos de prisão cautelar, privilegiando, sempre que possível, em homenagem ao princípio constitucional da inocência, “PRISÃO PREVENTIVA. EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não-culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos. (...)”. (STF, HC nº 83.534-1/SP, DJU 27.02.2004, p. 27, Rel. Min. Marco Aurélio) 21 “PENAL E PROCESSUAL – PREVARICAÇÃO – DENÚNCIA – DOLO ESPECÍFICO – Descrição e demonstração. Ausência. Inépcia. Defesa. Cerceamento. O delito prevaricação exige, para sua configuração, dolo específico, consistente no intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, última parte, CP). A denúncia conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). A ausência de descrição de qualquer elementar do tipo penal mutila a acusação, cerceia o exercício do direito de defesa e torna inepta a denúncia. Precedentes do STJ e do STF. Ordem concedida, para anular a decisão que recebeu a denúncia, impondo o trancamento da ação penal e a revogação do afastamento do paciente do cargo de prefeito municipal de Jaicós, imposto pela câmara criminal.” (STJ – HC 30792/PI – Rel. Min. Paulo Medina – DJU 15.12.2003 – p. 408) 22 Temos a hipótese de descumprimento de ordem judicial cometido por Prefeito, consoante prevê o art. 1º, XIV, do Decreto-Lei nº 201/67: “deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente”. – A recusa de cumprimento a decisões do Poder Judiciário, enquanto crime de responsabilidade, tal como prevê a Constituição Federal, no art. 85, inciso VII, e a Lei nº 1.079/50, constitui delito próprio, que é praticado pelo Presidente da República e seus Ministros de Estado e pelos Governadores e seus secretários. 20 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 93 o direito do acusado responder ao processo em liberdade,20 pensamos que seria um esforço inútil e injustificável a decretação da prisão daquele que recalcitra no descumprimento de decisões judiciais. Não fossem suficientes essas dificuldades, temos ainda, para o aperfeiçoamento do delito de prevaricação, a quase intransponível necessidade de estar presente o elemento subjetivo do tipo (dolo específico), a exigir que a conduta do agente se dê para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal, vale dizer, para a configuração do delito é preciso que haja prova de ter o agente público se omitido por afeição ou ódio e não por simples erro, dúvida ou outro motivo (negligência, comodismo, preguiça ou indolência) que caracterize apenas a falta disciplinar.21 Sobre o crime de desobediência, o fato de ter como sujeito ativo o particular, por si só, já constitui um problema de elevada grandeza, porquanto praticamente impede sua ocorrência nos processos que tramitam na Justiça Federal, onde o descumprimento de decisões judiciais, na maioria dos casos, é praticado por agentes públicos.22 Resta apenas a sugestão, para a comissão de reforma do Código Penal, levando em consideração o grave problema da ausência de instrumentos de natureza penal para a efetivação de decisões judiciais, de introdução de um tipo penal que possa incriminar tanto particulares como agentes públicos e que não exija a presença do dolo específico, sendo apenado com pena mínima superior a dois anos, e multa de valor elevado. 9. Defesas e recursos do sujeito passivo da multa Para que possa a multa ser aplicada, faz-se mister que: a) haja a prévia e regular intimação para o cumprimento da medida; b) exista prova inequívoca do descumprimento da decisão mandamental, cujo cumprimento era possível; e c) se oportunize o direito de defesa e de comprovação – do cumprimento ou da impossibilidade de fazê-lo – por parte daquele que tenha o dever legal de cumprir ou proporcionar o cumprimento da ordem. Quem tem o dever de cumprir a decisão judicial poderá alegar que o prazo fixado é demasiadamente exíguo, que a ordem era materialmente insuscetível de ser atendida, ou que, por não ser precisa e clara, exigia A imprecisão, dubiedade ou dúvida quanto ao alcance da ordem judicial enseja a interposição de embargos declaratórios, para que o juiz possa explicitar o conteúdo e o alcance de sua decisão, restando suspenso o cumprimento, enquanto não decidido o apelo aclaratório. 23 94 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 o cumprimento maiores esclarecimentos, incumbindo-lhe o ônus de comprovar tais alegativas.23 O caso fortuito, a força maior e o fato de terceiro podem constituir impedimentos justificados ao cumprimento da decisão judicial. Assim, por exemplo, uma greve que paralise as atividades de uma empresa ou mesmo de uma entidade pública poderá escusar o descumprimento de ordens judiciais enquanto perdurar. Lembramos a greve que paralisou as atividades dos setores administrativos do INSS, que ficou materialmente impedido de cumprir inúmeras determinações judiciais. Pareceu-nos aperfeiçoada uma excludente da multa. A jurisprudência, embora não seja uníssona quanto à exclusão da multa nesta hipótese, registra precedentes neste sentido: “A greve, sendo motivo de força maior, permite a prorrogação dos prazos fixados para cumprimento de ordem judicial, não sendo cabível multa no período de duração do movimento paredista. Precedentes”. (TRF da 4a Região, 5a Turma, Agravo de Instrumento nº 2002.04.01.035719-9/RS, Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz) A multa fixada à parte ou ao terceiro em decisão interlocutória deve ser atacada por meio de agravo de instrumento, podendo o agravante postular o efeito suspensivo, nos termos do art. 527 do CPC. Aqui devemos lembrar que execução da multa está condicionada ao trânsito em julgado da decisão, circunstância que recomenda o agravo retido, para ser apreciado conjuntamente com o subseqüente recurso de maior alcance. Parece-nos pertinente anotar que, por esta mesma razão, que afasta o periculum in mora, poderá o relator do agravo de instrumento, fazendo uso da faculdade que lhe confere o art. 527, II, do CPC, convertê-lo em agravo retido, remetendo os respectivos autos ao juiz da causa. Caso fixada a multa em sentença, incumbe ao afetado apresentar seu inconformismo por meio de apelação. Indaga-se se sujeito passivo da multa fixada em decisão interlocutória poderá impugná-la apenas na apelação contra a sentença que lhe tenha sido desfavorável. Entendemos que sim. O condicionamento da execução da multa ao trânsito em julgado da sentença final afasta a preclusão, permitindo que o interessado, mesmo não tendo interposto o agravo, possa discutir a matéria na apelação. Obviamente, a ausência de recurso ou a decisão desfavorável ao recorrente quanto à incidência da multa não impede o manejo dos embargos do devedor quando citado para a execução fiscal, restando apenas vedaR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 95 da, ao que nos parece, a discussão acerca de ser ou não devida a multa. Assim, a possibilidade de o executado alegar, no prazo dos embargos, “toda a matéria útil à defesa” (art. 16, § 2º, da LEF), sofre restrição no concernente ao mérito da multa, matéria que, por não ter sido impugnada no momento oportuno, ou porque, impugnada, não foi a impugnação acolhida, fica abrigada pela preclusão. Esta se dará inclusive no tocante às questões que, podendo ser deduzidas, não o foram. Se o executado não impugnou o valor fixado para o dia-multa, por exemplo, não poderá fazê-lo nos embargos, mas poderá alegar que não é parte legítima para responder pela dívida ou que o valor total da multa foi equivocadamente calculado. Aqui, parece-nos pertinente observar que se trata de execução mista, ou seja, fundada em título judicial (decisão judicial que impõe e fixa o valor da multa) e título extrajudicial (Certidão de Dívida Ativa), que consolida a multa e autoriza a sua cobrança judicial. Esta constatação tem importância quando se examina a incidência da nova regra do parágrafo único do art. 741 do CPC: “Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”. Este dispositivo legal, que cuida da relativização da coisa julgada inconstitucional, autoriza, na execução fundada em sentença, a retirada da eficácia do título executivo fundado em disposição legal declarada inconstitucional ou constitucional, em sede de controle concentrado da constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal. Abstraídas as questões polêmicas que o tema suscita, cujo exame refoge ao presente escrito, parece-nos que é lícito ao executado invocar a referida disposição legal para forrar-se à obrigação que lhe é exigida, tomando por base a decisão do STF que tenha reconhecido, conforme o caso, a constitucionalidade ou “Habeas corpus. Prisão civil. Dívida alimentar. Alimentos provisórios. I. - É cabível a prisão civil de devedor de pensão alimentícia quando a cobrança se refere às três últimas parcelas em atraso, anteriores à citação e as que lhe são subseqüentes. II - A alegação de que a paciente não dispõe de condições financeiras para arcar com o pagamento da pensão requerida envolve matéria referente à prova, não sendo possível o seu reexame na via estreita do habeas corpus. III. - Ordem denegada. IV - Agravo regimental prejudicado”. (STJ, Habeas Corpus nº 2002.01.10731-3/RS, 3a Turma, DJU 10.03.2003, p. 182, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro) 24 96 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 a inconstitucionalidade do ato normativo que tenha servido de fundamento para a sentença do processo em que lhe foi aplicada a multa. Desconstituída a eficácia preclusiva da coisa julgada, não subsiste a multa, a menos que o fundamento de sua aplicação tenha sido outro. No caso da prisão civil, caberá a impetração de habeas corpus, instrumento processual destinado à tutela dos direitos inerentes à liberdade de ir e vir, ou o agravo de instrumento, este último quando a questão, pelo exame aprofundado de provas que demande, não recomenda a via angusta do habeas corpus. O STJ, reiteradamente, tem decidido que não cabe o exame de provas em sede de habeas corpus contra prisão civil,24 o que enseja, nos casos em que a matéria não seja exclusivamente de direito, a interposição do agravo de instrumento, recurso que também é admitido por aquela Colenda Corte. É certo, no entanto, que a impetração de mandado de segurança não é admitida. Neste sentido, o precedente do Tribunal Regional Federal da 1a Região: “PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO PARA O FIM DE RESGUADAR DIREITO DE LOCOMOÇÃO. IMPROPRIEDADE DA R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 97 98 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 Crime de corrupção passiva: análise do art. 317 do Código Penal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz * No delito de corrupção passiva, previsto no art. 317 do CPB, a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem, porém a ação deve, necessariamente, relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá exercer (se ainda não a tiver assumido), já que é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. Assim, nesse delito, o funcionário público mercadeja com a sua função, sendo que o ato a que visa a corrupção praticada não deve, necessariamente, constituir uma violação do dever de ofício, já que haverá o crime mesmo se a vantagem é solicitada ou recebida para a prática de ato regular e legal (corrupção imprópria). É imprescindível, todavia, que o ato seja da competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função, pois, caso contrário, o crime a identificar-se será outro. (Esse o magistério do Dr. Rui Stoco, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2001, v. 2, p. 3867) Nesse sentido, julgado do antigo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em que foi relator o então Desembargador Nelson Hungria, verbis: “(...). Não se pode identificar no caso vertente, como fez a sentença recorrida, o * Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 99 crime de corrupção, passiva ou ativa, que pressupõe um ato de ofício em torno do qual se realiza a transação. É necessário que haja a aceitação por parte do funcionário público, ou o oferecimento a este, de vantagem indevida para a prática (ou omissão ou retardamento) de ato pertinente à função específica do subornado ou peitado.” (Apelação Criminal nº 7.884, rel. Desembargador Nelson Hungria, in Revista de Direito Administrativo, v. 13, jul./set. de 1948, p. 182) No mesmo sentido, ainda, outros julgados, verbis: “A corrupção passiva exige para a sua configuração a prática de atos de ofício, dando ensejo ao recebimento de vantagem indevida. E por ato de ofício, consoante uniforme jurisprudência, se entende somente aquele pertinente à função específica do funcionário.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Cantidiano de Almeida, in RT 390/100) “Se o funcionário público executa outros atos, não inerentes à sua função ou ao próprio ofício, mesmo quando a sua qualidade facilite tal cumprimento ou execução, falha definitivamente um dos extremos legais constitutivos do crime de corrupção passiva.” (TJSP, Ap. Crim. - Rel. Des. Gonçalves Santana, in RT 381/52). “Para a configuração do delito do art. 317 do Código Penal, é pressuposto indispensável que o ato praticado seja legal e atinente ao ofício do funcionário.” (TJSP - Rev. Crim. - Rel. Des. Arruda Sampaio, in RT 374/164) Da mesma forma, pronuncia-se Francesco Carrara, verbis: “Certo è però che l’atto deve spettare allo speciale ufficio che si esercita dall’ufficiale a cui fu dato l’indebito lucro. Se un magistrato che non giudica in un affare prenda una mercede per raccomandare lo affare stesso ad un suo collega che vi giudica, a procurarne lo scioglimento favorevole, egli senza dubbio farà cosa altamente vituperosa; potrà nei debiti termini soggiacere all’accusa di vendita di fumo; ma non potrà applicarglisi il titolo di baratteria, tranne quando egli sia agente secreto del suo collega.” (In Programma del Corso di Diritto Criminale, 10ª ed., Casa Editrice Libraria Fratelli Cammelli, Firenze, 1924, v. 5, p. 129, § 2.553) Em trabalho publicado no Digesto Italiano, conclui, a respeito, o jurista Luigi d’Antonio, verbis: “20. Il secondo estremo del reato è l’atto d’ufficio, in cui s’incarna la corruzione. L’atto dev’essere di quelli che entrano nella cerchia delle attribuzioni del pubblico ufficiale, che sono sottoposti alla sua attività come parte integrante dell’ufficio a lui affidato. (...) Il pubblico ufficiale nel compiere atti estranei al suo ministero non può mai esser notato del reato di corruzione, sebbene entri in rapporti d’interessi coi privati, come, a cagion d’esempio, se per rimunerazionedata o promessa si fosse determinato a sollecitare un atto presso qualche altro ufficiale pubblico. In questocaso si potrà parlare di atti che 100 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 mettono a repentagliola dignità dell’ufficio, ma non già di atti che costituiscono abuso dell’ufficio, perocchè l’abuso presuppone l’uso. Per gli atti estranei all’ufficio non esiste la violazione dei doveri del pubblico ufficiale e non rimane lesa la fiducia in lui riposta.” (‘Corruzione di Pubblico Ufficiale’, in Il Digesto Italiano, Unione Tipografico-Editrice, Torino, 1898-1900 v. VIII, parte terza, pp. 987/988) A doutrina antes transcrita restou consagrada pelo Eg. Supremo Tribunal Federal em memorável julgado, publicado na RTJ 162/3, quando do julgamento da Ação Penal nº 307-DF, verbis: “Ação criminal. Código Penal. Corrupção passiva (art. 317, caput), corrupção ativa de testemunha (art. 343), coação no curso do processo (art. 344), supressão de documento (art. 305) e falsidade ideológica (art. 299). Preliminares: inadmissibilidade de provas consideradas obtidas por meio ilícito e incompetência do Supremo Tribunal Federal para os crimes do art. 299, à ausência de conexão com o de corrupção passiva, que determinou a instauração do processo perante essa Corte, posto que atribuído, entre outros, a presidente da república. 1. Crimes de corrupção passiva (art. 317, caput) atribuídos, em concurso de pessoas, ao primeiro, ao segundo e ao terceiro acusados, e que, segundo a denúncia, estariam configurados em três episódios distintos: solicitação, de parte do primeiro acusado, por intermédio do segundo, de ajuda, em dinheiro, para a campanha eleitoral de candidato a Deputado Federal; gestões desenvolvidas pelo primeiro acusado, por intermédio do Secretário-Geral da Presidência da República, junto à direção de empresas estatais, com vistas à aprovação de proposta de financiamento de interesse de terceiros; e nomeação do Secretário Nacional dos Transportes em troca de vultosa quantia que teria sido paga por empreiteira de cuja diretoria participava o nomeado, ao segundo acusado, parte da qual teria sido repassada ao primeiro. 1.1. Inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica e de registros contidos na memória de microcomputador, obtidos por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal); no primeiro caso, por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação à privacidade alheia (art. 5°, X, da CF); e, no segundo caso, por estar-se diante de microcomputador que, além de ter sido apreendido com violação de domicílio, teve a memória nele contida sido degravada ao arrepio da garantia da inviolabilidade da intimidade das pessoas (art. 5°, X e XI, da CF). 1.2. Improcedência da acusação. Relativamente ao primeiro episódio, em virtude não apenas da inexistência de prova de que a alegada ajuda eleitoral decorreu de solicitação que tenha sido feita direta ou indiretamente, pelo primeiro acusado, mas também por não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo então por ele exercido. No que concerne ao segundo, pelo duplo motivo de não haver qualquer referência, na denúncia, acerca de vantagem solicitada ou recebida pelo primeiro acusado, ou a ele prometida, e de não ter sido sequer apontado ato de ofício R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 101 prometido ou praticado pelo primeiro acusado; e, quanto ao último, por encontrar-se elidida, nos autos, a presunção de que os créditos bancários e pagamentos efetuados pelo segundo acusado em favor do primeiro, decorreram de vantagem ilícita paga pela empreiteira pela nomeação de seu ex-diretor, ante a plausibilidade da explicação dada pelos acusados de que, ao revés, tais transferências foram custeadas pelos saldos de recursos arrecadados para a campanha eleitoral de 1989, cuja existência restou demonstrada por meio de exame pericial. 2. Crimes dos arts. 343, 344 e 305 atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo, ao terceiro e ao quarto acusados. 2.1. Improcedência da denúncia referentemente ao crime do art. 343, posto não haver resultado demonstrado haverem os acusados dado, oferecido ou prometido, qualquer vantagem às testemunhas apontadas, nem, tampouco, que lhes houvessem eles sequer induzido à prestação de falso testemunho; ao do art. 344, face à ausência de prova de uso de violência ou de grave ameaça contra as ditas testemunhas, por qualquer dos acusados; e, no que tange ao do art. 305, não apenas por falta de prova da destruição de documentos (recibos de pagamento de aluguel de veículo), mas também da própria existência destes, aliada à circunstância de não serem eles indisponíveis. 3. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) de faturas e notas fiscais, atribuídos ao segundo acusado. 3.1. Improcedência da denúncia, nesse ponto, ante a ausência de prova, seja da materialidade, seja da autoria dos delitos. 4. Crimes de falsificação ideológica (art. 299) consistentes na abertura de contas correntes bancárias e movimentação de cheques em nomes fictícios, nas praças de Brasília e de São Paulo, atribuídos, em concurso de pessoas, ao segundo, à sexta, à sétima, ao oitavo e ao nono acusados. 4.1. Inconsistência da tese de haver-se esfumado, com a rejeição da denúncia pelo crime de quadrilha, a razão pela qual os ditos crimes, por efeito de conexão, foram incluídos na denúncia e, em conseqüência, atraídos para a competência do STF. Liame que, ao revés, está revelado por diversas circunstâncias, avultando a de haverem as mencionadas contas sido utilizadas como meio de viabilizar a transferência, para o primeiro acusado, das vantagens consideradas indevidas, com ocultação de sua origem. 4.2. Autoria comprovada, inclusive por comissão, do segundo acusado, como mentor, e da sétima acusada, como executora, relativamente à falsificação, ocorrida em Brasília e em São Paulo, das contas bancárias e dos cheques enumerados na denúncia; comprovação, por meio de perícia técnica, realizada em juízo, de que o oitavo acusado foi o autor do crime, relativamente à emissão de dois cheques (nos 773.710 e 773.704) e ao endosso de mais quatro (nos 072.170, 072.171, 072.172 e 072.173), do Banco Rural, todos apontados na denúncia; e de que o quinto acusado também o foi, relativamente à abertura das contas correntes nos 01.6173-0 e 01.6187, no Banco Rural. 4.3. Descabimento da pretendida descaracterização dos ilícitos, ao fundamento de ausência de prejuízo, ante a evidência de haverem sido praticados com o ma- 102 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 nifesto propósito de escamotear a verdade sobre fatos juridicamente relevantes (a existência, a origem e a destinação do dinheiro depositado nas contas abertas em nomes fictícios). 4.4. Desarrazoada, por igual, a alegação de que a sétima acusada agiu à falta de conhecimento potencial quanto à ilicitude dos atos praticados e sob sujeição de poder hierárquico. Primeiramente, por haver, ela própria, revelado o conhecimento da ilicitude de sua conduta, com o que afastou a ocorrência de erro de proibição, que se caracteriza pela absoluta inconsciência do injusto. E, em segundo lugar, diante da falta de comprovação de que as instruções recebidas de seu empregador, relativamente às contas fictícias que abriu e movimentou, vieram acompanhadas de ameaça de qualquer natureza; do caráter manifesta e reconhecidamente ilegal dessas instruções; e do fato de não se estar diante de relação hierárquica de direito administrativo, circunstâncias que afastam a segunda excluente. 4.5. Denúncia declarada improcedente, relativamente: a) ao nono acusado, por insuficiência da prova de haver falsificado os cheques nos 419.567 e 696.811, do Banco Rural; b) à sexta acusada, à ausência de prova de haver sido ela autora da falsificação do cheque n° 443.414, do Banco Rural e da abertura da conta de depósito n° 01.61012, e por insuficiência de prova de ter falsificado os cheques nos 412.672, 412.674 e 412.679, do Banco Rural; e c) ao quinto acusado, por insuficiência de prova, no que tange à imputação de haver aberto a conta n° 01.6101-2, do Banco Rural e contra ela movimentado cheques. 4.6. Reconhecimento da continuidade delitiva tão-somente no concernente às falsificações verificadas na mesma praça. Orientação assentada no STF. 4.7. Reconhecimento da primariedade e dos bons antecedentes, relativamente a todos os acusados.” Esse entendimento foi reafirmado pela Suprema Corte no Inquérito nº 785-DF, in RTJ 176/50, verbis: “Crime de corrupção passiva. Art. 317 do Código Penal. A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias. Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência. Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo penal excogitado. Acusação rejeitada.” Em seu voto, disse o eminente Ministro Celso de Mello, verbis: “Entendo, Sr. Presidente, na linha do voto que proferi no julgamento da Ação Penal 307-DF, que o ato de ofício constitui requisito indispensável à plena configuração típica R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 103 do crime de corrupção passiva, tal como vem este delito definido no art. 317, caput, do Código Penal. A essencialidade do ato de ofício torna-o elemento imprescindível ao exame da subsunção de determinado comportamento ao preceito de incriminação constante da norma penal referida. Sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, caput, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de seu ofício – ou sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais –, não se poderá ausente a indispensável referência a determinado ato de ofício atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva. Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal – e ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal em causa – é de rigor a existência de uma relação da conduta do agente (que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida) com a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício. Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, caput, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e um determinado ato de ofício pertencente à esfera de atribuições do intraneus. Não custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração delituosa definida no art. 317, caput, do Código Penal, que constitui elemento indispensável – em face do caráter necessário de que se reveste esse requisito típico – a existência de um vínculo que associe o fato atribuído ao agente estatal (solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida com, ao menos, a perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício vinculado ao âmbito das funções inerentes ao cargo desse mesmo servidor público. Basta, assim, e para efeito de integral realização do tipo penal, que a conduta do agente – quando não venha este a concretizar, desde logo, a prática (ou abstenção) de um ato de seu próprio ofício – tenha sido motivada pela perspectiva da efetivação ulterior de um determinado ato funcional. Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo de suas atribuições funcionais (RT 390/100 - RT 526/356 - RT 538/324) –, revela-se inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caracterização típica do crime de corrupção passiva definido no caput do art. 317 do Código Penal. Daí o magistério de nossa melhor doutrina penal (Magalhães Noronha, Direito Penal, vol. 4/244, item n° 1.320, 17ª ed., 1986, Saraiva), que salienta, na análise do tema, que o comércio da função pública, caracterizador do gravíssimo delito de corrupção passiva, reclama, dentre os diversos elementos que tipificam essa modalidade delituosa, um requisito de ordem objetiva consistente em ‘haver relação entre o ato executado ou a executar e a coisa ou utilidade’ oferecida, entregue ou meramente prometida ao 104 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 servidor público faltoso. Sem a consideração de um ato de ofício e sem que se possa vincular à conduta do agente, como referência subordinante de sua atuação, uma prática ou omissão funcional, ou, ainda, a promessa de sua ocorrência, torna-se penalmente irrelevante, como conseqüência necessariamente derivada da ausência de tipicidade, o comportamento atribuído ao servidor público. Revela-se essencial, portanto, no caso em exame, sob pena de absoluta descaracterização típica da conduta objetivada na denúncia, a precisa identificação de um ato de ofício que, incluível na esfera de atribuições do cargo de Ministro de Estado exercido pela ora denunciada, teria sido por esta, direta ou indiretamente, prometido ou oferecido como resposta à indevida vantagem alegadamente solicitada, recebida ou esperada. Definitivo, sob esse aspecto, é o magistério doutrinário de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, vol. II/438, 1980, Forense), para quem o delito de corrupção passiva, tal como tipificado no caput do art. 317 do Código Penal, ‘está na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do processo’. Desse modo, assiste inteira razão a Julio Fabbrini Mirabete cujo magistério salienta a imprescindibilidade da relação entre a conduta do agente e um ato funcional específico inscrito no complexo das atribuições legais inerentes ao cargo público (Manual de Direito Penal, vol. 3/313-314, 9ª ed., 1995, Atlas), verbis: ‘É indispensável para a caracterização do ilícito em estudo que a prática do ato tenha relação com a função do sujeito ativo (ratione oficii). O ato ou abstenção a que se refere a corrupção deve ser da competência do funcionário, isto é, deve estar compreendido nas suas especificadas atribuições funcionais, porque somente nesse caso se pode deparar com o dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração. Além disso, o pagamento feito ou prometido deve ser a contraprestação de ato de atribuição do sujeito ativo (RF 201/297; JTJ 160/306; RT 374/164, 390/100). Não se tipifica a infração se a vantagem desejada pelo corruptor não é da atribuição e competência do funcionário (RT 505/296,526/356,538/324). ... Pode o ato objeto do tráfico ser legítimo, lícito, justo (corrupção imprópria) ou ilegítimo, ilícito, injusto (corrupção própria). Há crime, assim, se a vantagem é solicitada ou recebida ou a promessa é aceita para a prática de ato regular e legal. É indiferente, também, que se trate de ato definitivo ou irrevogável ou sujeito a recurso e confirmação ou revogação. Desde que a solicitação, recebimento ou aceitação tenha relação com o ato de ofício, pode a conduta ser anterior à prática do ato (corrupção antecedente), como posterior a esta (corrupção subseqüente). Não importa, assim, que o agente tenha solicitado ou fixado o quantum da vantagem indevida ou que a receba no dia seguinte à prática do ato. Ele pode praticar o ato na esperança ou convicção da recompensa imoral, vindo a aceitá-la posteriormente e de acordo com a sua expectativa. Há do mesmo modo mercancia de função (RT 534/319, 548/306). Entretanto, é necessário que se tenham elementos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 105 probatórios que indiquem ter havido essa esperança ou convicção da recompensa por parte do funcionário para que se configure o ilícito quando o pagamento efetuado ao funcionário o foi posteriormente à prática do ato de ofício (RT 699/299).’ (Grifei) O ilustre Magistrado paulista, Dr. Rui Stoco, ao comentar o tema pertinente ao objeto material do crime de corrupção passiva, anota, em fundamentadas considerações, que ‘A ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. A ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. O agente aqui mercadeja com sua função. O ato a que visa a corrupção praticada não deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício (...). Deve, todavia, o ato ser da competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função...’ (Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, p. 3046, 5ª ed., 1995, RT – grifei) Orienta-se, nesse mesmo sentido – indispensabilidade da existência de conduta do agente vinculada a determinado ato de seu ofício – a jurisprudência dos Tribunais, cujo magistério destaca que o crime de corrupção passiva somente se perfaz quando se evidencia, como pressuposto indispensável que é, que o servidor público, na concreção de seu comportamento venal, agiu, ao menos, na perspectiva de um ato de ofício inscrito em sua esfera de atribuições funcionais (RT 374/164 - RT 388/200 - RT 390/100 - RT 526/356 - RT 538/324).” (In RTJ 176/65-8) Outro não é o magistério clássico de R. Garraud, em seu Traité Théorique Et Pratique Du Droit Pénal Français, Troisième Édition, Recueil Sirey, Paris, 1922, t. 4, pp. 387/8, nº 1.526, verbis: “1526. Pour que le crime de corruption de fonctionnaire existe, l’article 177 exige une seconde condition. Il faut que le but à atteindre par le corrupteur consiste, soit en un acte, soit en une abstention d’acte de la fonction de la personne corrompue. Les termes des articles 177 et 179 sont très précis sur ce point. L’article 177 dit: ‘Pour faire un acte de son emploi, même juste, mais non sujet à salaire...’, et 1’article l79: ‘Pour obtenir, soit une opinion favorable..., soit tout autre acte du ministère du fonctionnaire, agent ou préposé, soit énfin l’abstention d’un acte qui rentrait dans l’exercice de ses devoirs.’ Ces deux dispositions, bien que n’ayant pas la même rédaction, imposent cependant la même condition pour l’existence du crime ou du délit de corruption. Il faut que le fonctionnaire fasse ou s’abstienne de faire un acte de son emploi (art. 177), ou qu’il fasse ou s’abstienne de faire un acte de son rninistère, rentrant dans l’exercice de ses devoirs (art. 179). Il résulte de ce caractère même que la loi française punit, dans la corruption, le trafic de la fonction même et non le trafic de l’influence accessoire qu’elle donne. En un mot, la corruption est un délit de fonction, bien plus qu’un délit de fonctionnaire. Cette proposition va nous permettre de délimiter le cercle d’application du crime de corruption de fonctionnaire, soit au point de vue des faits qu’il embrasse, soit au 106 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 point de vue de ceux qu’il exclut. a) La corruption a lieu seulement à raison d’un acte de fonction, c’est-à-dire d’un acte qui fait partie des attributions légales de celui qui l’accomplit ou qui s’abstient de l’accomplir. Cette qualification conviendrait, par conséqueut: 1º à l’acte d’un officier de police judiciaire, qui s’abstiendrait, moyennant argent, de dresser procès-verbal d’un délit ou d’une contravention qu’il avait le droit et le devoir de constater; 2° à l’acte des membres du conseil de revision, autres que les médecins et chirurgiens, qui recevraient des dons pour exempter du service militaire des jeunes gens appelés pour le recrutement; 3° à l’acte du secrétaire de mairie, chargé de la délivrance des passeports, qui accepterait une somme d’argent pour accomplir cet office de sa fonction; etc. b) Si l’acte le fonctionnaire accomp1it ou dont il s’abstient à prix d’argent ne rentre pas dans l’ordre des devoirs que la loi lui impose, le fait peut constituer une escroquerie, mais non une corruption., à moins qu’il ne rentre dans les termes du § 5 de l’article 177. C’est ce qui a été décidé particulièrement, par un arrêt des chambres réunies de la Cour de cassation, du 31 mars 1827, pour l’acte d’un garde champêtre qui, saisissant un délit de chasse hors de sa circonscription territoriale, avait menacé de dresser un procès-verbal et s’était abstenu de le faire à prix d’argent. (Dans l’espèce, le garde champêtre avait été d’abord absous, la cour ayant jugé qu’il n’y avait, dans ce fait, ni crime ni délit. Après cassation, la cour de renvoi appliqua au garde champêtre non pas l’article 177, mais l’article 405 du Code pénal, c’est-à-dire qualifia l’acte reproché, non de corruption, mais d’escroquerie. Sur un nouveau pourvoi du ministère public, la question fut portée devant les chambres réunies de la Cour de cassation, et le pourvoi fut rejeté par ces motifs: ‘Attendu qu’il résultait de la déclaration du jury que l’accusé avait sciemment abusé de sa qualité pour exiger une somme d’argent en promettant de s’abstenir de rédiger un procès-verbal qu’il n’avait pas le droit de dresser, et qui n’entrait pas, par conséquent, dans l’ordre de ses devoirs; et qu’en appliquant à un fait ainsi qualifié l’article 405 du Code pénal, la cour d’assises n’avait point violé l’ar ticle 177.’ Cass., 31 mars 1827 (D. J. G., vº Forfaiture, nº 119). Un arrét de la Cour de Limoges a adopté la même doctrine, dan’s une espèce analogue (Limoges, 4 janv. 1836, D. J. G., vº Forfaiture, n° 120-2°).” Por conseguinte, o tipo insculpido no art. 317 do Código Penal Brasileiro visa ao tráfico da função pública, ou seja, a solicitação, o recebimento ou a aceitação por parte do agente tem de ser para a prática ou omissão de ato inerente à sua função. A corrupção passiva, nos termos da melhor doutrina, exige para a sua configuração a prática de atos de ofício – isto é, aquele pertinente à função específica do funcionário público –, ensejando o recebimento de vantagem indevida. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 107 108 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 13-108, 2004 ACÓRDÃOS R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 109 110 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO CIVIL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 111 112 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.04.01.125870-6/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Apelante: Reneu José Kerber Advogados: Drs. Paulo Laércio Soares Madeira e outro Apelante: União Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Apelados: (os mesmos) Remetente: Mm. Juízo da 1ª Vara Federal de Santo Ângelo/RS EMENTA Administrativo. Servidor público federal. Aposentadoria proporcional – requerimento suspenso em face de processo administrativo-disciplinar – PAD (art. 172 da Lei nº 8.112/90). Prazo para conclusão expirado. Arts. 152 e 167 do Estatuto. Indenização pelo trabalho realizado. 1. Factível a aplicação do artigo 172 da Lei nº 8.112/90 que determina a suspensão do processo de pedido de aposentadoria do servidor público, enquanto não concluído o processo disciplinar contra o mesmo instaurado, eis que impede que o mesmo servidor venha esquivar-se de eventual resultado contra si definido. 2. A suspensão do pedido de aposentadoria voluntária apenas se faz possível, enquanto não esgotado o prazo para a conclusão do processo administrativo-disciplinar. Inteligência dos artigos 152 e 167 do Estatuto do Servidor. 3. Não se há de cogitar de incursão extra petita à orientação do decisum, quando a demora no processo administrativo-disciplinar também 113 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 compõe a causa de pedir do requerente. 4. A exigência de prestação laboral pelo período excedente àquele em que a Administração deveria ter concluído o processo administrativo-disciplinar, acrescido do período regular necessário para a tramitação do processo de aposentação, merece ser indenizada. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Turma Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação da União e à remessa oficial e dar parcial provimento à apelação da parte autora, ficando liberada ao autor a caução prestada nos autos, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 7 de julho de 2004. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de ação ordinária processada perante o MM. Juízo da 1ª Vara Federal de Santo Ângelo/RS, pela via da qual o autor, servidor público federal estável, intenta o reconhecimento do direito à aposentadoria proporcional, com termo em 15.09.95, quando cumpridos trinta anos de serviço, com a condenação da requerida no pagamento indenizatório dos correspondentes proventos e demais consectários legais, objurgando o empeço que veio a ser oposto ao processo de aposentação consubstanciado em processo administrativo-disciplinar (PAD) ulteriormente, contra si, instaurado. Após contestação (fls. 44 a 48 e anexos), em sede de reconsideração, foi deferida, em parte, tutela antecipada, determinando-se à requerida restabelecer o andamento do processo de aposentadoria do autor, com todas as conseqüências legais, inclusa a aposentação se o caso (fls. 135 a 139). Agravada (fls. 149 a 153), a r. decisão veio a ser mantida, negado provimento ao recurso. Sob incidente impugnação, foi retificado o valor da causa. (fls. 157/158) Consta dos autos, no cumprimento do trato antecipatório, a aposentadoria veio a ser concedida ao autor, publicado o ato em 02.04.97 (fl. 114 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 169), pagos os proventos mediante caução. (fl. 204) Sob regular tramitação, adveio v. sentença (fls. 540 a 545), julgando parcialmente procedente a pretensão deduzida na exordial. Deu-se reconhecimento ao direito do autor à aposentadoria voluntária concedida na via administrativa desde a data da publicação do respectivo ato, afastada a restrição do artigo 172 da Lei nº 8.112/90, eis que ultrapassado o prazo máximo para o término do processo administrativo-disciplinar contra ele instaurado, ressalvando-se à União a aplicação do artigo 134 do Estatuto ao final do PAD se o caso. Sucumbência recíproca, com honorários advocatícios de 10% sobre o valor atualizado da causa, por ela respondendo o autor e a ré nas proporções de 20% e 80%, respectivamente, admitida a compensação. As partes apelam tempestivamente. O autor (fls. 547 a 551) deduz razões pela reforma parcial do decisum, visando à indenização de todo o tempo trabalhado a modo excedente, desde quando completara o tempo para aposentação até a data em que essa lhe foi concedida, com os legais consectários, refletindo no trato sucumbencial. A União (fls. 560 a 564) intenta a reforma do r. julgado, apontando-o passível de nulidade porque fincado em causa extra petita, tal o decurso do prazo para a conclusão do PAD, quando o reclamo do autor se assentou na alegação de inconstitucionalidade do artigo 172 da Lei nº 8.112/90. Ainda, propugna pela modificação da disposição sobre a sucumbência, querendo-a repartida pela metade à conta de cada uma das partes, operando-se a compensação. Os recursos foram contra-arrazoados. (fls. 554 a 558 e 567 a 570) O autor pediu, e lhe foi indeferida, a liberação da garantia prestada nos autos (fls. 574/575). Ainda, trouxe ao caderno processual o teor do relatório da Comissão do PAD e parecer jurídico pelo arquivamento do processo – não-comprovada a acusação que lhe fora feita –, agasalhado pela autoridade competente. (fls. 576/577 e anexos) Vieram os autos a esta Corte, também por remessa oficial. É o relatório. Dispensada a revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: A v. sentença da R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 115 lavra do eminente Juiz Ezio Teixeira tocou com costumeira percuciência a questão nuclear da lide. Cabe a transcrição – “... Adentrando ao mérito da presente demanda, busca a parte autora a concessão da aposentadoria voluntária por tempo de serviço, de forma proporcional, pois teria preenchido os requisitos exigidos para tanto, consubstanciados no exercício de cargo público e possuir ao menos 30 (trinta) anos de tempo de serviço. O impedimento para o andamento do processo administrativo de aposentadoria estaria nas disposições do art. 172 da Lei nº 8.112/90. No caso em exame, a documentação existente faz prova de que o demandante, com mais de trinta anos de serviço, fls. 18/25, ingressou com pedido de concessão de aposentadoria proporcional em 18 de setembro de 1995 (fl. 27). De outro lado o processo disciplinar que visa a apurar as denúncias oferecidas contra o autor somente foi instaurado pela Portaria ERERS 1.195, de 04 de outubro de 1995, publicada em 06.10.95. (fls. 28/29) Ainda assim, o referido Processo Administrativo-Disciplinar, de nº 33.302/41395/95, acabou praticamente anulado pela Relatora na Coordenação de Legislação e Apoio Processual do Ministério da Saúde, que concluiu pela necessidade de novo procedimento, com nova comissão, para serem sanados vícios apontados desde o mandado de citação até o relatório da comissão, com a renovação, inclusive, dos depoimentos já prestados. (fls. 128/130) ... O processo disciplinar, pela informação constante da fl. 469 dos autos, após a nulidade parcial do processo administrativo, em razão do mesmo apresentar falhas quanto a sua forma, o processo encontra-se no setor SIAPI, aguardando reinstauração, isto em 18 de fevereiro de 1998. Neste diapasão, convém verificar se o atraso no deslinde do processo disciplinar não compromete a aplicação das disposições insertas no art. 172 da Lei nº 8.112/90 pelo Poder Público, impondo-se ou não o prosseguimento do pedido de aposentadoria voluntária. Inicialmente, tenho por constitucional o art. 172 da Lei nº 8.112/90, que determina a suspensão do processo de pedido de aposentadoria voluntária de servidor público enquanto não concluído o processo disciplinar a que responde e seja cumprida a penalidade que eventualmente lhe venha a ser cominada. O dispositivo não afronta o art. 40, inciso III, c, da CF/88 ou o art. 186, inciso III, c, do Estatuto, porquanto não retira da parte autora o direito à aposentadoria voluntária por ela assegurada. A disposição é salutar, visto que impede que o servidor, por meio da exoneração a pedido ou de aposentadoria voluntária, venha a esquivar-se do resultado do processo administrativo-disciplinar. Ademais, se a própria aposentadoria pode ser cassada em razão do resultado do processo administrativo, não há que se cogitar de inconstitucionalidade do art. 172 da Lei nº 8.112/90, que configura uma medida cautelar que visa resguardar os interesses 116 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 da Administração Pública. O art. 172 da Lei nº 8.112/90, que determina o sobrestamento do pedido de exoneração e da aposentadoria voluntária do servidor que responde a processo disciplinar, deve, necessariamente, ser combinado com os artigos 152, caput e também com o art. 167 do mesmo Codex, os quais juntos estabelecem o prazo máximo de 140 dias para a conclusão e julgamento do processo. Outrossim, devem-se utilizar as disposições do art. 134 do Estatuto, se ultrapassado o prazo legal para o término do processo disciplinar, possibilitando a concessão da aposentadoria voluntária. Depreende-se que a parte autora responde a processo disciplinar há mais de 04 (quatro) anos, sem que haja uma solução para o processo administrativo. Superou-se em excesso o prazo máximo de 140 (cento e quarenta) dias para a conclusão do julgamento do processo administrativo consoante dicção do artigo 152, caput com o art. 167, ambos da Lei nº 8.112/90. Não tendo sido respeitado o prazo legal, impõe-se o prosseguimento ao processo de aposentadoria. Assim, tenho que a pendência de conclusão do processo administrativo destinado a apurar falta disciplinar cometida por servidor público não impede, por si só, a tramitação normal de pedido de aposentadoria formulado pela parte autora, quanto mais se aquele há muito ultrapassou o prazo previsto para o seu término. Não pode o servidor ficar aguardando ad eternum a prolação da decisão final do procedimento administrativo a que responde, para, somente após, ver examinado pela Administração seu pedido de aposentadoria. Inexiste qualquer prejuízo ao Poder Público se, após examinado e deferido pedido de aposentadoria, concluir o procedimento administrativo pela responsabilidade do servidor, pois que aquela poderá então, ser cassada, nos termos em que o permite a Lei de Regência. O autor fica sujeito à regra prevista no artigo 134 do Estatuto, segundo a qual ‘será cassada a aposentadoria ou disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com demissão’. Quer dizer, se o autor for considerado, ao final do processo disciplinar, culpado pelas acusações que lhe são impostas, sua aposentadoria proporcional, que foi concedida administrativamente, será cassada a fim de que se aplique a pena de demissão. Indubitavelmente que a parte autora efetivamente preenchera os requisitos para usufruir o benefício de aposentadoria, pois administrativamente foi realizada a contagem do tempo de serviço sem a objeção imposta pelo art. 172 da Lei nº 8.112/90, sendo concedido o benefício de aposentadoria consoante Portaria nº MS/ERERS/DIAD/1188, de 26 de março de 1997, e publicado no Diário Oficial de 02 de abril de 1997, data em que passou a vigorar a aposentadoria nos termos do art. 188 da Lei nº 8.112/90. ...” As razões recursais da União, a meu sentir, não elidem os fundamentos do r. decisum, em seu concerto fático-jurídico como sustentados. Neles não se há de cogitar em incursão extra petita ao cotejo com a causa de pedir invocada pelo autor. Não se o há de fazer tanto, porque a demora do R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 117 processo administrativo-disciplinar (como, de fato, veio a se confirmar) também fora indigitada pelo requerente, como porque à orientação do r. decisum, mesmo ex officio, socorre-lhe a disposição do artigo 462 do Código de Processo Civil. Penso, porém, na seqüência, a v. sentença está a merecer parcial reparo no que tange ao pedido de cunho indenizatório formulado pelo autor. Justifico. Assim visto pela transcrição feita, embora sem se afastar a validade do artigo 172 da Lei nº 8.112/90, a higidez da produção do correspondente comando legal não se dissocia do elemento temporal a cuja definição se conjugam os artigos 152, caput, e 167, caput, do mesmo diploma. Portanto, sendo de cento e quarenta dias o prazo máximo para a conclusão do processo disciplinar, o fato da existência desse não podia haver retido o processo de aposentadoria por prazo que lhe excedesse. A exigência da prestação laboral por prazo excedente, no contexto, ao mesmo prazo acrescido o prazo regular e aceitável para o processo de aposentação (in casu, dois meses, como se verifica desde a decisão antecipatória da tutela até a concessão efetiva da aposentadoria), entendendo-a a desborde da legalidade. Consubstancia ilícito administrativo que, ipso facto, deve ser indenizado, tanto mais quando se constata que o próprio PAD conclui por improvada a acusação contra o servidor. Destarte, diferindo-se o termo, a partir de 04.10.95 (data da Portaria ERERS – 1.195, pela qual instituída a comissão para o PAD), por cento e quarenta dias (prazo legal dado à conclusão do PAD) a esses somados mais dois meses (prazo para a regular tramitação do processo de aposentação), a aposentadoria teria tido a sua operação consumada a partir de 21.04.96. Logo, o autor faz jus ao ressarcimento pelo tempo trabalhado, desde 21.04.96 até 1º.04.97. A base quantitativa ao efeito cabe ser fixada no valor da igual remuneração que lhe era devida por mês, nela o vencimento básico e todos os acréscimos, computando-se, outrossim, os legais reflexos (férias com gratificação, gratificação natalina e outros pertinentes). Os valores devem ser atualizados monetariamente, pelos índices oficiais, desde quando devida cada prestação, até o seu efetivo pagamento, e vencem juros moratórios de 6% ao ano (limite do pedido) a contar da citação da requerida. 118 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Sucumbência Modificada a solução da lide, tem-se decair o autor de parte mínima do seu pedido. Assim, os ônus da sucumbência correm à conta exclusiva da ré (CPC, art. 21, § único). São mantidos os honorários advocatícios já fixados pela v. sentença, a eles se acrescendo 10% sobre o montante da condenação em pecúnia ora aditada. Caução Entendendo não restar motivação para a sua permanência, libero ao autor a caução por ele prestada nos autos. Ante o exposto, nego provimento à apelação da União e à remessa oficial. Dou parcial provimento à apelação do autor. Faço-o no tocante à indenização pleiteada, fixando o período correspondente, com reflexo na sucumbência, nos termos de fundamentação. Fica liberada ao autor a caução prestada nos autos. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.71.00.020202-6/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Apelantes: José Romeu Pujol Rodrigues e outros Advogados: Drs. Mônica Guazzelli Estrougo e outros Apelante: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Apelados: (os mesmos) EMENTA Administrativo. Danos morais. Demissão a bem do serviço público. Dano direto e indireto. Prescrição. Impugnação. Depoimento. TestemuR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 119 nha suspeita. Valor. Salário mínimo. Impossibilidade. 1. Tanto no dano direto como no indireto é possível haver titulação jurídica por demandas reparatórias, são titulares diretos aqueles atingidos de frente pelos reflexos danosos, enquanto indiretos aqueles que, por conseqüência, sofrem os efeitos advindos do fato. 2. Na hipótese, o marco legal da contagem se deu a partir da possibilidade de exigir a reparação que se fez presente a contar do momento em que se demonstrou injusta a demissão; com desfazimento do ato administrativo a ela pertinente. 3. Em se tratando de indenização por dano moral, basta a demonstração do fato, desta forma, a desqualificação do depoimento requerida pela União em nada influiria na formação do convencimento da Julgadora; e, ainda, que se admitisse, ad argumentandum tantum, a suspeição da testemunha, tal fato não implicaria nulidade da sentença, porquanto preclusa a questão. 4. Dano material existiu na interrupção do vínculo laboral do autor e o dano moral na imputação de atos desonestos em desfavor do Erário, fazendo com que este passasse a conviver com a pecha que lhe foi atribuída, com conseqüências dramáticas em relação a seus entes queridos, sendo irrecusáveis as conseqüências trágicas da perda do emprego, intensificadas ao extremo pela nódoa moral imputada ao demandante. 5. A fixação do quantum indenizatório em salários mínimos afronta a Constituição Federal. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento ao apelo da União e à remessa oficial e negar provimento ao apelo dos autores, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 22 de junho de 2004. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: José Romeu 120 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Pujol Rodrigues, ex-servidor do extinto Instituto Brasileiro do Café, ora na inatividade, e seus filhos Ida Maria Zoch Rodrigues, Ilsa Marilu Rodrigues Pinho, Alzira Ruth Zoch Rodrigues, Ruy Fernando Zoch Rodrigues, Moema Iara Rodrigues Alves, Luiz Raimundo Zoch Rodrigues e Luciano Zoch Rodrigues movem a presente ação conta a União, buscando indenização por dano moral decorrente da demissão, a bem do serviço público, do primeiro dos Autores, alegando, em suma: a) que o ex-servidor exerceu normalmente suas funções, até que, nos idos de 1965, determinou-se a instauração de processo administrativo, para apurar a responsabilidade de cinco funcionários, dentre os quais José Romeu Pujol Rodrigues; b) a partir da instauração do referido inquérito, houve o ex-servidor decretada sua transferência para o interior do Estado do Paraná e, posteriormente, para Curitiba; c) o inquérito administrativo foi concluído, determinada a demissão do Autor “a bem do serviço público”, no ano de 1969; d) foi também instaurada ação criminal, denunciado o Autor com enquadramento no art. 316 do Código Penal; e) em abril de 1978, o autor foi absolvido, por ausência de provas; f) nos idos de 1979, ingressou com ação ordinária objetivando sua reintegração no serviço público, que, embora lograsse êxito em primeiro grau, foi objeto de reforma em segunda instância, em acórdão que transitou em julgado; g) intentou o mesmo José Romeu ação rescisória, que culminou com determinação do Superior Tribunal de Justiça para que esta Corte reexaminasse todas as questões suscitadas, o que houve como conseqüência o desarquivamento do feito, e, após uma série de recursos, pela negativa de provimento do recurso do IBC, ordenada a reintegração do funcionário; h) que as transferências do autor para lugares distantes de sua família e, posteriormente, a demissão a bem do serviço público causaram para os autores uma série de sofrimentos, dores, constrangimentos e infortúnios; i) que a demissão guardava índole de estigma, porquanto lançava suspeitas sobre prática de atos ditos “subversivos”, além de dúvidas sobre a probidade do ex-servidor; j) que imensas foram as vicissitudes por que passaram os autores, dentre as quais a impossibilidade de arcar com cirurgia para a esposa de José Romeu, o conseqüente nascimento prematuro de Luciano, a ausência de meios para arcar com as despesas do tratamento do câncer da esposa e com os custos do funeral quando esta veio a falecer, a falta de recursos para oferecer aos filhos de José R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 121 Romeu uma boa formação escolar; j) que houve, em relação a José Romeu, dano a direitos personalíssimos, como a honra, a imagem, a dignidade e a auto-estima; l) que, quanto aos demais autores, houve “dano próprio e autônomo, decorrente do fato de presenciarem, diuturnamente, o sofrimento do pai, bem como em razão de inúmeros dissabores que passaram em razão do ambiente familiar depressivo, da instabilidade da residência, das dificuldades educacionais, da ausência de condições materiais adequadas para a prestação de uma assistência médico-hospitalar digna à mãe, enquanto doente.” A União, em resposta, alegou, preliminarmente, a ilegitimidade ativa dos autores Ilda Maria, Ilsa Marilu, Alzira Ruth, Ruy Fernando, Moema Iara, Luís Raimundo e Luciano, porquanto o fato gerador do dano sofrido consistiu na demissão de José Romeu, único titular do direito subjetivo material lesionado, sendo “incabível ação de perdas e danos proposta por ‘vítimas mediatas, ou como se diz às vezes, que seriam fundadas sobre danos em ricochete’”; destacando que o filho Luciano nem mesmo era nascido quando da demissão de José Romeu. Postulou, in fine, a extinção da ação, sem julgamento do mérito, com fundamento no art. 267, VI, do CPC, em relação aos autores filhos de José Romeu. Em prejudicial de mérito, levantou a ocorrência de prescrição qüinqüenal, por força do Decreto nº 20.910/37, uma vez que entre a data da demissão do autor e a interposição da demanda transcorreu bem mais que um lustro; acrescentando que nem mesmo a contagem do prazo a partir da decisão na esfera penal poderia ilidir a prescrição, pois que prolatada a sentença em 04.04.78, sem interposição de qualquer recurso. Aponta, outrossim, que a ação de reintegração, da mesma forma, não poderia interromper a prescrição, pois questionava direito independente daquele que ora pleiteado. Na abordagem do mérito propriamente dito, concorda com a ilegitimidade da demissão de José Romeu, mas aponta ausência de qualquer demonstração de que o ato de afastamento se deu em razão de perseguição política, recusando, outrossim a possibilidade de agravamento do dano em decorrência da mora do Judiciário. Aponta, ainda, que as ocorrências anteriores à demissão não podem ser considerados fatores de danos morais, e que a despedida é ato normal de cessação das relações de trabalho, não implicando ofensa à honra, à dignidade profissional ou à imagem da pessoa. Registra que o dano material restou 122 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 indenizado com a reintegração do autor no serviço público, e afasta a presença de nexo causal entre a demissão, a doença da esposa de José Romeu e o acidente automobilístico que vitimou seus filhos Rossy e Rony. Por fim, asseverando que a sentença que determinou a reintegração de José Romeu significou para ele um eficiente desagravo, reparando sua imagem frente à opinião pública, e após tecer comentários sobre a “indústria do dano moral”, postula que a indenização, em considerada sendo devida, seja fixada “em patamar módico e jamais em paralelo com a ação de reintegração”. Em réplica, os autores enfrentam a preliminar de ilegitimidade passiva ao argumento de que os autores-filhos sofreram eles mesmos sua própria cota de sofrimento íntimo; e mesmo Luciano, que sequer nascido era à época dos fatos, viveu sob a égide da dor, numa família em ruínas. Quanto à prescrição, dizem que se trata de direito imprescritível; e que, mesmo se assim não fora, seu dies a quo estaria situado na declaração judicial da ilegalidade do ato gerador do dano. No mais, insistem nas teses constantes da peça inaugural. Há nos autos petição da União recebida como agravo retido. A ilustre Julgadora a quo houve por improcedente a preliminar de ilegitimidade passiva. No que tange à prescrição, refutou-a também, ao argumento de que o marco inicial, em casos que tais, não se situa no próprio ato de demissão, mas na desconstituição definitiva do ato administrativo, que põe por terra a presunção de legitimidade que o defende; portanto, com o trânsito em julgado da decisão que reconheceu a ilegalidade do ato demissional é que exsurgiria o direito à ação para a postulação dos danos morais daí decorrentes. Após zelosa e minudente apreciação dos fatos, a nobre Julgadora houve por procedente o pedido, fixando a título de indenização por danos morais 500 salários mínimos para o autor José Romeu Pujol Rodrigues e 250 salários mínimos para cada um dos demais autores, acrescidos de juros de mora de 6% ao ano, contados desde 3 de novembro de 1995, data do trânsito em julgado da decisão que determinou a reintegração do autor José Romeu, além de despesas processuais e honorários advocatícios, fixados em dez por cento sobre o valor da condenação. Apelaram ambas as partes; os autores, irresignados apenas com a fixação do dies a quo da contagem dos juros; a União, insistindo na R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 123 preliminar de ilegitimidade ad causam de parte ativa, em manter, não corrigir de mérito (prescrição), acrescentando que tecnicamente viável “cumular-se o pedido de reintegração com indenização de danos materiais e morais”. No que tange ao fundo de direito, repete o argumento de que não há prova nos autos da ação em que determinada a reintegração de que a demissão teria sido obra de perseguição política, ficando registrado apenas que “os motivos poderiam ser pessoais, políticos, financeiros ou espírito de vingança”. No mais, repete argumentos já constantes da contestação e refuta a impossibilidade de conseguir outros empregos, negando caráter de ato afrontador da dignidade e da honra o exercício de “atividades esporádicas” (venda de enciclopédias, serviço braçal na estiva), apontando que a pecha de servidor público demitido a bem do serviço público “não pode ser presumida como uma realidade conhecida de todos”. Aduz que as dificuldades econômicas decorreram da má administração de José Romeu da economia doméstica, pondo em relevo o fato de que este, confessadamente, já possuía dívidas. Assevera mais que os Autores não se incumbiram de demonstrar o dano moral alegado. No que concerne à indenização, pretende exacerbada a condenação. Analisa a prova produzida, buscando vislumbrar contradições nos depoimentos dos Autores. Enfrenta a fixação da verba honorária, que reputa excessiva. Requer a título de “prequestionamento”, que “as teses ventiladas no presente recurso sejam explicitamente abordadas no acórdão”. Requer, in fine: “1) seja o presente feito extinto sem julgamento do mérito, a teor da preliminar argüida, ou, sucessivamente; 2) seja o presente feito extinto com julgamento do mérito, pelo acolhimento da prescrição total ou pela declaração da total improcedência do pedido, nos termos desta apelação; 3) inversão dos ônus sucumbenciais, com a condenação dos Apelados ao pagamento das custas e honorários advocatícios em favor da União, ora recorrente; 4) em caso de manutenção do provimento arrostado, a redução dos honorários advocatícios.” Contra-razões à fl. 540, pleiteando os Autores a manutenção da decisão monocrática nos pontos referidos, negando-se provimento ao recurso interposto pela União, com a reforma, apenas, da parte do decisum tangente à data inicial para o cômputo dos juros incidentes no valor da indenização, 124 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 determinando-se sejam contados a partir da data de ocorrência do dano. A União apresentou também contra-razões, pugnando pelo improvimento do recurso dos Autores concernentes à fixação dos juros moratórios. É o relatório. VOTO 1 - Do agravo retido Havendo petição da União concernente à limitação do número de testemunhas seu recebimento a título de agravo retido, à míngua de insistência na apelação quanto à necessidade de exame da matéria, nego conhecimento ao recurso. 2 - Da indigitada ilegitimidade de parte passiva Labora em equívoco a apelante ao tentar situar como terceiros os autores filhos de José Romeu Pujol Rodrigues, ao entendimento de que reparável seria apenas o dano direto. Registra, a respeito, a melhor doutrina: “Observa-se, diante do exposto, que por dano direto, ou mesmo por dano indireto, é possível haver titulação jurídica por demandas reparatórias. Titulares diretos são, portanto, aqueles atingidos de frente pelos reflexos danosos, enquanto indiretos os que sofrem, por conseqüência, esses efeitos (assim, por exemplo, a morte do pai provoca dano moral ao filho; mas o ataque lesivo à mulher pode ofender o marido, o filho ou a própria família, suscitando-se, então, ações fundadas em interesses indiretos). Baseado em elo jurídico afetivo mantido com o lesado direto, o direito do titular indireto traduz-se na defesa da respectiva moralidade, familiar, pessoal, ou outra. Trata-se, também, de iuri próprio, que o interessado defende, na ação de reparação de danos denominada par ricochet ou réflechis, a exemplo do que acontece como as de danos morais a empregados, por fatos que atingem o empregador; a sócio de uma sociedade, que alcança outro sócio; a mulher, que lesiona o marido; a concubina, que fere o concubino, e assim por diante, como o tem apontado a doutrina e assentado a jurisprudência, delimitando as pessoas que a tanto se consideram legitimadas (em caso de parentesco até o 4º grau: C. Civil, art. 1.612). Deve, pois, existir liame firme na sucessividade dos fatos, admitindo-se, por exemplo, nas hipóteses de sub-rogação de direitos, a invocação dessa teoria, como acontece com empresa seguradora, em acidentes havidos com transporte e outras situações apontadas nos textos. Assentaram-se, depois de inúmeros debates na doutrina, certas posições, como as de filhos e cônjuges, em relação ao pai e ao marido, ou vice-versa; de companheiros, em relações estáveis, de noivos, sob compromisso formal; de credores e devedores, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 125 em certos contratos, como, por exemplo, acidentes que impossibilitem a satisfação de débitos; de empregados e empregadores, e outros, especialmente a partir da jurisprudência francesa, em que se colocaram essas inúmeras questões. ... É que, em caso de pluralidade de vítimas, a regra básica é a da plena autonomia do direito de cada lesado, de sorte que, nas demandas do gênero, se atribuem indenizações próprias e individualizadas aos interessados: assim acontece, por exemplo, quanto a mulher e filho, com respeito à morte provocada do marido ou pai; pode invocar, pessoalmente, danos ressarcíveis. Nada impede se faça sob litisconsórcio o pleito judicial, quando admissível, mas cada demandante faz jus a indenização compatível com sua posição.” (Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por Danos Morais, Editor RT, 3ª Edição, p. 155 e ss.) “No caso de prejudicado indireto, ou seja, aquele que também sofreu um prejuízo em razão do dano padecido pela vítima imediata, o que faz com que outras pessoas sofram em razão direta do comportamento nocivo como, por exemplo, quando surge o evento morte, o autor ou autores da ação será ou serão o pai, a mãe e os filhos, em conjunto, ou apenas um deles, figurando no vértice ativo da demanda. Esse prejudicado indireto não é considerado terceiro. Ele, apenas, não sofreu o dano verticalmente, mas alenta prejuízos, porque feridos foram seus interesses jurídicos. A lesão da vítima ultrapassou ela própria e atingiu seus familiares. Para melhor aclarar a questão do prejudicado direta e indiretamente, seja dito que o prejudicado indireto sofre os efeitos do ato lesivo de forma reflexa. É óbvio que a morte de um pai de família que sustenta o lar vai diminuir a possibilidade econômica dos demais componentes da família. Por isso, esses prejudicados não podem ser considerados terceiros, mas partes legítimas. É o que doutrina Ramon Daniel Pizarro (Daño Moral, p. 212) ao dissertar que ‘não só a vítima de um fato danoso pode experimentar um prejuízo moral; também podem resultar prejudicados certos terceiros que sofrem uma diminuição espiritual derivada da lesão a interesses econômicos (dano patrimonial) ou extrapatrimoniais (dano moral) em razão de um fato ilícito que tenha como prejudicado direto uma outra pessoa.” (Antonio Jeová Santos, Direito Moral Indenizável, 2ª Edição, 1999, p. 483) Importante ressaltar que, na hipótese vertente, não se trata de vítimas diversas de idêntico prejuízo; aquele sofrido pelo autor José Romeu, concernente à perda de seu emprego, ao dano à sua credibilidade, e o sofrimento de tudo isso decorrente, é diverso daquele de que padeceram seus filhos, privados de recursos materiais, criados em um lar em crise, com todas as tintas de tragédia que a realidade emprestou ao quadro familiar. Não há que falar, portanto, em pleitear em nome próprio direito alheio, ou em condição de terceiro: en ricochet que seja, cada um pleiteia indenização pelo dano que individualizadamente sofreu. 126 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 A circunstância, outrossim, de o autor Luciano nem mesmo ser nascido quando da gênese do fato danoso não afasta sua titularidade; evidenciado que está a real presença de prejuízo seu ocorrido dentro de uma cadeia etiológica em que irrecusável o nexo de causalidade entre o que foi feito a seu pai e a participação sua em vexames e dores morais. Mantenho, pois, a R. Sentença no que concerne à delimitação do pólo ativo da relação processual. 3 - Da prescrição alegada Tenho eu que a prescrição, na espécie, deve, sim, submeter-se ao lustro legal. No entanto, cumpre determinar o marco legal da contagem; não se pode entender mora no exercício do direito de ação em relação a quem não dispõe dos pressupostos necessários para exercê-lo. Cumpre aqui considerar o princípio da actio nata. A possibilidade de exigir a reparação somente se fez presente, in casu, a partir do momento em que se demonstrou injusta a demissão; com desfazimento do ato administrativo a ela pertinente. Ao que se dessume da leitura dos autos, a sentença absolutória em âmbito criminal data de 04 de abril de 1978, firmada pelo saudoso magistrado Hervandil Fagundes, que abrilhantou com sua presença este Tribunal, então Juiz Federal da Terceira Vara desta Capital, que averbou “não haver resultado provado fato tipificador do crime de concussão”. A reintegração no cargo público, por seu turno, decorreu de sentença de 1981, resguardada pela autoridade do magistrado Eli Goraieb, que também enriqueceu este Tribunal com sua percuciência e senso de Justiça, vindo a presidir esta Corte. Lamentavelmente, foi a sentença reformada pelo Tribunal Federal de Recursos, em acórdão datado de 29 de maio de 1990, da lavra do Ministro Armando Rollemberg. Houve, então, ação rescisória, que, objeto de conflito de competência, somente houve seu julgamento finalizado em data de 12 de setembro de 1995 (Embargos de declaração na AC 93.04.35809-4/RS, rel. Juiz Surreaux Chagas), ocorrido o trânsito em julgado em data de 03 de novembro de 1995 (fl. 254). Situo eu aí o dies a quo do prazo prescricional, porquanto o direito do Autor somente adquiriu a exigibilidade necessária à proposição da ação a partir de quando passada em julgado a sentença que houve por equivocada a demissão. Antes, não havia direito a opor. Ora, a ação foi proposta em 24 de julho de 2000, dentro, portanto, do qüinqüênio para R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 127 prescrição do direito de mover ação contra a União. Outrossim, não é de se negar validade ao argumento de que, na hipótese, os efeitos danosos protraem-se no tempo, sendo difícil determinar, em toda a via crucis percorrida pelos Autores, onde o último prejuízo, a derradeira dor, o vexame final. Afasto, também, a preliminar de mérito. 4 - Da impugnação ao depoimento de uma testemunha Ao fundamento utilizado pela R. sentença, a coincidência do depoimento da testemunha com os demais elementos probatórios, acrescento eu outro mais: a desnecessidade de prova da dor moral em si. Segundo é consabido, em se tratando de indenização por dano moral, basta a demonstração do fato. A respeito, Antonio Jeová Santos (ob. supracit., p. 525), verbis: “O prejuízo moral que alguém diz ter sofrido é provado in re ipsa. Acredita-se que ele existe porque houve a ocorrência do ato ilícito. Quando a vítima sofre um dano, que pela sua dimensão é impossível ao homem comum não imaginar que o prejuízo aconteceu. Ninguém, em sã consciência, dirá que a perda do pai ou de um filho não gera desgosto e mal-estar, tanto físico como espiritual, ou que alguém que teve a perna ou um braço amputado não vá passar o resto da vida sofrendo por essa diminuição física. A só consumação do ilícito que faz surgir fatos desta natureza mostra o prejuízo, a prova é in re ipsa.” A desqualificação do depoimento, portanto, em nada influiria na formação do convencimento da Julgadora, escopo da prova, tratando-se, como ora se trata, de damnum ex facto. Mais não fosse, não é o simples laço de amizade que implica suspeição; há que se tratar de amigo íntimo, o que exige um grau exacerbado de relacionamento que não se encontra no simples fato de haver social relacionamento entre as famílias. Mesmo o empregado da parte tem sido admitido a depor em juízo. (RP 6/326, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil Comentado, 3ª Edição, p. 647) E, por fim, mesmo que se admitisse, ad argumentandum tantum, a suspeição da testemunha, tal fato não implicaria nulidade da sentença, porquanto preclusa a questão, não suscitada opportuno tempore em recurso específico. (RJTJSP 117/44 e RT 500/181) Afasto, portanto, o vício indigitado, mantendo a sentença também neste tópico. 128 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 5 - Sobre o fundo de direito A respeito da reparabilidade do dano moral à luz da Constituição Federal de 1988, preleciona Américo Luís Martins da Silva (O Dano Moral e a sua Reparação Civil, Editora Rt, 2ª Edição, p. 237: “Qualquer oposição que ainda existia contra o princípio da reparabilidade do dano moral puro caiu por terra com a vigência dos incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Com tais dispositivos constitucionais, o argumento contrário à reparação do dano moral, fundado na inexecução de preceituação genérica, passou a ser de difícil sustentação. Como bem destacou o Ministro Cláudio Santos, ‘a idéia de que o dano simplesmente moral não é indenizável pertence ao passado’. Hoje, por força de disposição constitucional, é reparável o dano moral, quer haja ou não o dano patrimonial. Dispõe o inciso V do art. 5º da Constituição Federal de 1988 que ‘é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano, moral ou à imagem.’” Concernentemente à responsabilidade do Estado no que tange aos danos morais, é ela também de natureza objetiva, conforme averba Carlos Alberto Bittar (Reparação Civil por Danos Morais), 3ª Edição, Editora Rt, p. 167), verbis: “Verifica-se, presentemente, que a responsabilização do Estado e dos entes públicos tem ocorrido em quaisquer posições em que se encontrarem no relacionamento com os particulares, ou seja, como entes investidos de poder de império, como vinculados por meio de contratos, ou como simples envolvidos em relações ocasionais ou acidentais, como por exemplo, nas hipóteses em que comparecem: como agentes expedidores de normas, ou de ministração de justiça; prestadores de serviços públicos, ou partícipes em acidentes de trânsito e outras. Aliás, por longa evolução chegou-se à plena responsabilização das entidades públicas, alcançando-se ora toda a extensa base de fatos a ela imponíveis, em função da multiplicidade de áreas de atuação em que se inserem. Prospera, ademais, a teoria do risco na fundamentação da responsabilidade, que deriva, pois, do simples funcionamento dos serviços, permitindo-se assim a plena satisfação dos direitos dos lesados, interessando-nos, mais de perto, na presente etapa do trabalho, os reflexos sentidos na esfera de pessoas físicas, que enfocaremos à luz, principalmente, da jurisprudência dominante. A responsabilidade é, portanto, objetiva para o Estado, autarquias e entes de sua estruturação (Constituição: art. 37, § 6º), ficando, no entanto, as empresas públicas ou de economia mista submetidas ao mesmo regime obrigacional das pessoas jurídicas de direito privado (art. 173, § 1º).” A cuidada sentença da douta Julgadora a quo, de substanciosa fundamentação, afastou irrecusavelmente a singela alegação de que o ato R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 129 de demissão, na hipótese vertente, fosse prática normal de cessação da relação de emprego, em trecho que peço vênia para transcrever, qual seja: “A doutrina é majoritária no sentido da admissibilidade do dano moral advindo do exercício abusivo ou arbitrário do direito de rescindir o contrato de trabalho. Neste sentido, aponta Sérgio Pinto Martins: ‘o caso mais típico de dano moral no âmbito trabalhista é a dispensa por justa causa com alegação de que o empregado roubou, furtou ou se apropriou indevidamente de alguma coisa do empregador, quando na verdade isso não ficou provado ou não foi o empregado que praticou o ato, mas outra pessoa.’ (‘Dano moral no Direito do Trabalho’, in Trabalho & Doutrina, Ed. Saraiva, setembro de 1996, p. 77). Neste sentido, confira-se o seguinte aresto: ‘O direito potestativo de resilir o contrato de trabalho encontra limites nas demais normas componentes do ordenamento jurídico, que formam um todo, exigem interpretação harmônica. Havendo prova de que o empregado foi dispensado apenas por ser deficiente físico, não importando a debilidade em redução da capacidade laborativa, configurada está a despedida abusiva, com violação dos artigos 1º, III e IV, 5º, caput e LXI, 7º, XXXI, 37, caput, 170, caput, e 193, todos da Constituição Federal de 1988, além do art. 9º da CLT. Há abuso de direito por seu exercício sem legítimo interesse e em desacordo com sua destinação social - teoria objetivista. O dano daí decorrente - moral - deve ser ressarcido, sendo a Justiça do Trabalho competente para apreciar o feito.’ (TRT/PR, RO 09.136/93, AC 1ª T. 17j.351/94, j. 17.05.2004, rel. Juiz Santino Gonçalves, LTr, 59(3): 406).’ A vedação ao exercício do direito de despedida se impõe com muito maior rigor à Administração Pública, cuja atuação é inteiramente pautada pela observância do princípio da legalidade. O ato ilegal de demissão enseja, indiscutivelmente, o dever de indenizar o dano moral sofrido pelo servidor injustamente demitido.” Ingênuo, permissa venia, o argumento de que não demonstrada a existência de perseguição política. O que cabia provar - e que finalmente restou plenamente evidenciado em sentença passada em julgado - é a ilegalidade da demissão. Sempre entendi, respeitando’ embora as opiniões em contrário, que a demissão sem justa causa não pode existir em âmbito administrativo, porquanto o ato administrativo deve ser motivado. Situar-se em área de oportunidade e conveniência rescindir o contrato de funcionário concursado é fazer tabula rasa do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. In casu, entretanto, sequer é de discutir-se a possibilidade de rescisão à míngua de motivos, porquanto o afastamento do servidor foi feito em decorrência de processo administrativo, a título de sanção. Segundo a teoria dos motivos determinantes, 130 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 “...os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência ente eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitam-se ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido.” (HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 14ª Edição, p.175). Dano material existiu na interrupção do vínculo laboral de José Romeu. Dano moral existiu na imputação de atos desonestos em desfavor do Erário, fazendo com que o Autor passasse a conviver com a pecha que lhe foi atribuída, com conseqüências dramáticas em relação a seus entes queridos. A respeito, Carlos Alberto Bittar (Reparação Civil por Danos Morais, Editor Rt, 3ª Edição, p. 53), verbis: “Isso significa que de diferentes reflexos na esfera jurídica alcançada defluem danos de índole diversa, devendo-se registrar que, sob o prisma moral, a lesão pode resultar de agressão à personalidade, mas também advir de atentado ao patrimônio (como, verbi gratia, na dor moral resultante da calúnia assacada contra a vítima, e, de outro lado, no constrangimento, permanente ou não, decorrente da lesão física em operação cirúrgica). Sob o prisma patrimonial, prospera, aliás, a mesma diretriz: há danos derivados de agressão ao patrimônio, bem como defluentes de prévia investida contra a moral do lesado (como, exemplificativamente, na perda de negócio derivada de falta de ingresso pecuniário devido e, de outra parte, a perda de clientela decorrente de divulgação de informação falsa, ou de denigração pública do lesado).” Também é vã a tentativa de demonstrar que problemas de ordem financeira preexistiam ao rompimento do vínculo funcional. De toda obviedade é que o fato de perder o emprego agravou a situação econômico-financeira de José Romeu, com duros reflexos sobre toda a família. Em se tratando de etiologia do dano, equiparam-se causas e concausas; basta que o fato apontado influa eficazmente na eclosão ou no agravamento do dano. Irrecusáveis as conseqüências trágicas da perda do emprego, intensificadas ao extremo pela nódoa moral imputada a José Romeu. E a alegria da vitória jurídica não se faz suficiente à reparação do mal sofrido por todos os Autores, máxime tardia como veio, coroando uma vida toda de sofrimento. Não se venha aqui falar de indústria de indenizações por dano moral. Há que se estabelecer neste país o respeito pela honra alheia, que o bom nome é o patrimônio mais precioso do cidadão. E tenho idéia R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 131 bastante nítida de que a indenização do dano material sozinha não satisfaz o prejuízo ocorrido in casu; basta imaginar hipótese em que a rescisão contratual houvesse como causa mera interpretação administrativa equivocada, em matéria exclusivamente de direito, que nada houvesse com achaques à integridade moral. Não fica evidente que na hipótese vertente há um plus de vulneração ao patrimônio, atingida a esfera moral? Concernentemente à quantificação da indenização, preleciona Carlos Alberto Bittar (ob. supracit., p. 280), verbis: “Nesse sentido é que a tendência manifestada, a propósito, pela jurisprudência pátria é a da fixação de valor do desestímulo como fator de inibição a novas políticas lesivas. Trata-se, portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, possa fazê-lo conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida ou, então, deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida. De outra parte, deixa-se para a coletividade, exemplo expressivo da reação que a ordem jurídica reserva para infratores nesse campo e em elemento que, em nosso tempo, tem-se mostrado muito sensível para as pessoas, ou seja, o respectivo acervo patrimonial. Compensam-se, com essas verbas, as angústias, as dores, as aflições, os constrangimentos e, enfim, as situações vexatórias em geral a que o agente tenha exposto o lesado, com sua conduta indevida. A atribuição do quantum, no caso concreto, que, normalmente, apura-se em execução (RT 608/213; 588/61), fica a critério do juiz, que, relaciona direta e especificamente a quaestio sub litem, encontra-se apto a detectar o valor compatível às lesões havidas. ... A propósito, filiamo-nos ao sistema aberto, pois se mostra mais eficiente para o alcance dos objetivos citados. Sustentamos que não deve nem existir limite máximo em leis sobre a matéria - como corre em certos países - diante do princípio fundamental dessa teoria, que é o da ilimitação da responsabilidade no patrimônio do lesante, ... Deve-se, pois, confiar à sensibilidade do magistrado a determinação da quantia devida, obedecidos os pressupostos mencionados. O contato com a realidade processual e com a realidade fática permite-lhe aferir o valor adequado à situação concreta.” O magistério de Marcos Geraldo Porto de Oliveira (Dano Moral proteção jurídica da consciência, LED Editora de Direito, Edição 1999, p. 67) consigna: “No dano moral, não há uma perda material que possa ser dimensionada objetivamente em dinheiro, a não ser que a lei fixe certos valores para cada lesão específica, como, por exemplo, tantos reais por lesão estética, tantos pela perda de pai, outro valor pela calúnia e assim por diante. Esse critério é adotado na Bélgica. Não parece atender ao critério de justiça essa fixação prévia da indenização. Diante da infinidade de casos, 132 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 as circunstâncias específicas devem ser avaliadas. O grau de culpa, a gravidade, extensão e repercussão da ofensa, a intensidade do sofrimento, culpa concorrente como fator de atenuação da responsabilidade, a situação patrimonial das partes e a eventual vantagem do lesante com a prática do ilícito são alguns fatores determinantes no estabelecimento da quantia reparatória. Carlos Roberto Gonçalves opina que a notoriedade e a fama constituem também fatores relevantes na determinação da quantia a ser fixada. No Brasil, o Código Brasileiro de Telecomunicações, já revogado, e a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) têm servido de parâmetro para o estabelecimento da quantia indenizada. A primeira fixa o limite máximo em cem salários mínimos e a segunda em duzentos salários mínimos. A lei sobre direitos autorais e o Código Civil também fornecem alguns critérios para o arbitramento. A Lei de Imprensa enumera os fatores que devem ser observados no arbitramento de indenização. Por serem de natureza específica, a adoção dos critérios estabelecidos nessas leis servem apenas como orientação geral. Na doutrina, as opiniões são variadas. Carlos Alberto Bittar defende o arbitramento em valor exacerbado relacionado com as condições do lesante como desestímulo e fator de inibição a novas práticas lesivas. ‘Trata-se, portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, possa fazê-lo conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida ou, então, deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida.’ Maria Helena Diniz observa que a reparação por dano moral é, em regra, pecuniária, ... A reparação em dinheiro viria neutralizar os sentidos negativos de mágoa, dor, tristeza, angústia, pela superveniência de sensações positivas, de alegria, de satisfação, pois possibilitaria ao ofendido algum prazer; que, em certa medida, poderia atenuar o sofrimento. Ter-se-ia a compensação da dor pela alegria. Destaca ainda que cabe sempre ao magistrado a fixação da pena pecuniária.” Dir-se-ia exacerbada a fixação das indenizações, in casu? Creio eu que não. A ilustre Juíza a quo soube bem ponderar a intensidade da dor moral no caso concreto, circunstância a que se somou uma peculiaridade inelutável: a permanência do sofrimento no tempo; foram trinta anos de persecução até que se restabelecesse a verdade jurídica, apagando-se a mangra terrível da indigitação de improbidade. No que concerne ao valor da indenização, todavia, merece alguma sorte o apelo da União. É que a ilustre Julgadora a quo fixou-a em salários mínimos, o que afronta, a meu sentir, permissa maxima venia, a Constituição Federal. 6 - Do apelo da parte autora Muito embora a Súmula nº 54 do Superior Tribunal de Justiça de133 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 termine como dies a quo a data de ocorrência do dano, a hipótese sub examine guarda peculiaridades a exigir que se recorra a critério outro, porquanto: a) A actio nata fixou-se no reconhecimento da ilicitude da demissão a bem do serviço público, e, à obviedade toda, não se há que perquirir mora antes mesmo da possibilidade de exercício do direito; b) A pretensão dos autores levaria à perplexidade de aplicar juros desde o evento demissão em relação ao autor Luciano, que sequer havia nascido; c) A espécie sub examine contempla, como acima já fiz registrar, não só um sofrimento continuado, mas uma pluralidade de danos ocorridos durante toda uma vida, cujas ocasiões de ocorrência nem sempre são identificáveis; d) Não se pode confundir a causa do dano com o próprio dano, pois, além do impacto moral traumatizante da própria demissão, levou-se em conta a seqüência de circunstâncias nocivas em toda a saga de uma tragédia familiar. Tenho, assim, que a fixação concomitante ao surgimento da ação traduz solução de eqüidade, na inviabilidade absoluta de localizarem-se os eventos no tempo. Ex positis, dou parcial provimento ao apelo da União e à remessa oficial apenas para fixar o dano moral em R$ 100.000,00 (cem mil reais) para o autor José Romeu Pujol Rodrigues e em R$ 50.000,00 para cada um dos demais Autores, quantias sobre as quais incidirão juros legais e correção monetária, esta computada a partir da data da sentença de primeiro grau, e nego provimento ao apelo dos autores. É o voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.04.01.087961-8/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz 134 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Apelante: Caixa Econômica Federal - CEF Advogados: Drs. Cristina Napoli Madureira da Silva e outros Apelada: Crystal Glass Distribuidora de Vidros Ltda. Advogado: Dr. Luiz Celso Dalpra EMENTA Direito Civil. Contrato bancário. CDC. Teoria da imprevisão. Juros. Jurisprudência do STF. Efeitos. 1. Realmente, os contratos firmados pelos requerentes constituem, em sua essência, típicos contratos de adesão, ou seja, aquela modalidade contratual em que todas as cláusulas são previamente estipuladas por uma das partes de modo que a outra não tem poderes para debater as condições, ou mesmo introduzir modificações no esquema proposto. Essa espécie de contrato tem sido cada vez mais utilizada na atividade negocial, face à dinamicidade da realidade econômica do mundo contemporâneo: “L’ordinamento giuridico non può opporsi a questo fenomeno che corrisponde ad una esigenza della vita moderna: la realtà economica odierna si fonda, infatti, anche su una rapida conclusione degli affari, specie se si tratta di affari di piccola entità, che assumono importanza per il loro numero: al vantagio dell’acceleramento del fenomeno produttivo deve essere dunque sacrificato il bisogno di una libertà di trattative che spesso presenterebbe ostacoli insuperabili.” (In ANDREA TORRENTE, Manuale Di Diritto Privato. 6. ed., Dott A. Editore, Milano, 1965. p. 243. § 295). Admitir-se a legalidade do procedimento pretendido pelos requerentes, implicaria o surgimento de perigoso precedente com sérias conseqüências para todo o complexo e rígido sistema de financiamento da habitação, cuja estrutura e mecanismo de funcionamento foi bem exposta pelo consagrado administrativista, Prof. Caio Tácito, em alentado parecer que instruiu a Rp. nº 1.288, julgada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, verbis: “Ademais, os contratos imobiliários são, no caso, parte integrante de um todo interligado, de um sistema global de financiamento que tem, como outra face, a manutenção da estabilidade de suas fontes de alimentação financeira consubstanciadas nos sistemas de poupança e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A noção de equilíbrio financeiro não opera somente nas relações entre mutuários e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 135 mutuantes, mas, igualmente, na reciclagem de recursos financeiros que, em um mecanismo de vasos comunicantes, realimentam, no retorno do capital investido, a dinâmica de novos investimentos.” (In TÁCITO, Caio. Parecer publicado na Revista de Direito Administrativo, 165/348) Ora, no caso dos autos não há sequer falar na imprevisão contratual, pois a teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e imprevisíveis pelas partes, e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou a execução do contrato, autorizam a sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes. Trata-se da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosadores, que esposa a idéia de que todos os contratos dependentes de prestações futuras incluíam cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes se alterassem profundamente. Tal idéia se inspirava num princípio de eqüidade, pois se o futuro trouxesse um agravamento excessivo da prestação de uma das partes, estabelecendo profunda desproporção com a prestação da outra parte, seria injusto manter-se a convenção, já que haveria indevido enriquecimento de um e conseqüente empobrecimento do outro (Cfe. sobre o tema os seguintes autores: TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto Privato. 6. ed., Giuffrè Editore, 1965. pp. 447-50. § 311; MADRAY, Gilbert. Des Contrats D’aprè la Récent Codification Privée Faite aux États-Unis – Étude Comparée de Droit Américain et de Droit Français. Libr. Générale, Paris, 1936. p. 194; RIPERT, Georges. La Règle Morale dans les Obligations Civiles. 4. ed., Libr. Générale, Paris, 1949, p. 143 e ss.; DURAND,Paul. Le Droit des Obligations dans les Jurisprudences Française et Belge. Libr. Du Recueil Sirey, Paris, 1929. p. 134 e ss; VENIAMIN, Virgile. Essais sur les Donnes Economiques dans L’Obligation Civile. Libr.- Générale, Paris, 1931. p. 373 e ss.; PLANIOL, Marcel. Traité Élémentaire de Droit Civil. 10.ed., Libr. Générale, Paris, 1926. t. II. n. 1.168. p. 414; SIDOU, Othon. A Revisão Judicial dos Contratos. 2. ed., Forense, 1984. p. 95; MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3. ed., RT, 1984. t. XXV. § 3.060. pp. 218-20 e, do mesmo autor, Dez Anos de Pareceres. Livr. Francisco Alves, Rio, 1976. vs. 7/36-9 e 10/197-9; FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. 3. ed., Forense, Rio, 1958. pp. 345-6, n. 242; CAMPOS, Francisco. Direito Civil – Pareceres. Livr. Freitas Bastos, 1956. pp. 05-11). 136 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Todos os autores acima referidos admitem sob os mais variados fundamentos doutrinários, a aplicação da teoria da imprevisão, mas apenas em circunstâncias excepcionais, que não se verificam no caso dos autos, ou seja, somente a álea econômica extraordinária e extracontratual, desequilibrando totalmente a equação econômica estabelecida pelos contraentes justifica a revisão do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus. Outro não é o entendimento adotado pela jurisprudência uniforme da Suprema Corte, em todas as oportunidades em que se manifestou sobre a tormentosa questão, como reflete o aresto relatado pelo eminente e saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, cuja cultura jurídica é por todos reconhecida, ao votar no RE nº 71.443-RJ, verbis: “Rebus sic stantibus - Pagamento total prévio. 1. A cláusula rebus sic stantibus tem sido admitida como implícita somente em contratos com pagamentos periódicos sucessivos de ambas as partes ao longo de prazo dilatado, se ocorreu alteração profunda inteiramente imprevisível das circunstâncias existentes ao tempo da celebração do negócio...” (in RTJ 68/95. No mesmo sentido RTJ: 35/597; 44/341; 46/133; 51/187; 55/92; 57/44; 60/774; 61/682; 63/551; 66/561; 96/667; 100/140; 109/153; 110/328 e 117/323). No caso concreto, contudo, é de todo estranho aos princípios de justiça a aplicação da teoria da imprevisão, que deve ser aplicada com cautela pelo magistrado, evitando que este interfira diretamente nos contratos celebrados, substituindo a vontade das partes, livremente pactuada, pela sua. A respeito, doutrina Virgile Veniamin, em clássica monografia, verbis: “En limitand ainsi l’application de la théorie de l’imprévision au cas où elle apparait comme une exigence, de 1’harmonieux développement de 1’organisation économique, on restreint par Là même consideráblement son étendue. En offrant au juge un critérium objectif, fondé sur les donnés concrètes dégagées grâce à une méthode d’observation directe, à 1’aide du matériel préparé par des experts idoines, on évite l’arbitraite auquel la recherche d’une intention malveillante, toujours devinatoire peut fournir 1’occasion. En outre, le rapprochement que nous venons de faire dans le présent chapitre, entrela 1ésion et l’imprévision - toutes les deux ayant le même caractère et répondant aux mêmes nécessités de 1’ordre économique - nous indique une limitation technique du pouvoir de juge. Dans les deux cas, ce n’est pas à la révision du contrat qu’on doit aboutir, mais simplement à sa rescision (1). I1 n’appartient point R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 137 au juge d’orienter 1’activité humaine en s’immiscant dans la teneur du contrat. Sa mission estterminée, dès qu’en obéissant aux directives économiques, il empêche la ruine de 1’individu et lui assure en même temps que sa sauvegarde personnelle, une participation efficace à la collaboration générale” (In Essais sur les Données Economiques dans L’Obligation Civile. Libr. Générale, Paris, 1931. pp. 393-4). Não pode prosperar, igualmente, o argumento de que a taxa de juros cobrada pela requerida, com previsão contratual, contrariou o disposto na legislação. A Chamada Lei da Usura vedava a cobrança de juros acima da taxa legal, inclusive comissões. Porém, com o advento da Lei de Reforma Bancária – Lei nº 4.595 –, o Conselho Monetário Nacional foi incumbido de formular a política de moeda e crédito, bem como limitar as taxas de juros, comissões e outras formas de remuneração. Por conseguinte, o Dec. nº 22.626 foi revogado, no que concerne às operações com as instituições de crédito sob o controle do Conselho Monetário Nacional, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Consagrando esse entendimento, editou a Suprema Corte a Súmula 596, que recebe inteira aplicação pelos Tribunais do país. O eminente Ministro Xavier de Albuquerque, ao votar sobre a questão no RE nº 78.953-SP (PLENO), disse, verbis: “Assim também me parece. O legislador do Dec. 22.626/33 cuidou, ele mesmo, de limitar a taxa de juros, fazendo-o no máximo de 12% ao ano. O da Lei 4.595/64, porém, adotando nova técnica para a formulação da política da moeda e do crédito, criou o Conselho Monetário Nacional e, conferindo-lhe poderes normativos ‘quase legislativos’, cometeu-lhe o encargo de ‘limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros’ (art. 4º, IX). A cláusula ‘sempre que necessário’, contida nesse preceito, parece-me mostrar que deixou de prevalecer o limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria necessária, dada a prevalência de um limite geral, único, constante e permanente, preestabelecido naquele velho diploma legal, a limitação que a nova lei atribuiu ao Conselho. De resto, tal limite geral, único, constante e permanente seria incompatível com a filosofia que presidiu à elaboração da Lei da Reforma Bancária, marcadamente conjuntural”. 138 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (In RTJ 72/920. Nesse sentido, ainda, RTJ 73/987; 75/257, 957 e 963; 77/966; 78/624 e 79/620) 2. Apelação conhecida e provida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 29 de abril de 2003. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: A r. sentença recorrida, a fls. 145/7, bem esclarece a controvérsia, verbis: “CRYSTAL GLASS DISTRIBUIDORA DE VIDROS LTDA., já qualificada nos autos, ingressou com a presente ação declaratória contra a Caixa Econômica Federal objetivando, em síntese, anulação do título (nota promissória) vinculada ao Contrato de Abertura de Crédito Rotativo em conta-corrente conhecido por ‘Cheque Azul Empresarial’. Alega a requerente preenchimento abusivo da nota promissória assinada em branco, com a inclusão de encargos de abertura de crédito em conta-corrente com limite para cobertura de cheques sem suficiente provisão de fundos no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), havendo, após a utilização do crédito, a cobrança em sua conta de juros acima da taxa de 12% ao ano capitalizados e multas cumulativas. Entende a requerente que é proibida a cobrança de juros acima de 12% a.a., bem assim a capitalização de juros. Sustentou que houve aplicação excessiva de juros devendo ser levado em conta que o contrato é de adesão, sendo aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor. Inicial instruída com os documentos de fls. 11/12. Citada (fl. 36), a Caixa Econômica Federal ofereceu resposta argüindo, preliminarmente, inépcia da inicial; e no mérito, a improcedência da reivindicação da requerente, ao argumento de que o propósito da presente é o de que adiar temporariamente o cumprimento por parte desta de suas obrigações contratuais, até porque sabe que a lei não admite revisão de contratos que se aperfeiçoaram de conformidade com a lei vigente a seu tempo; e que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor nem a lei de Usura aos contratos bancários. Dá ênfase à circunstância de a autora ter tido conhecimento das cláusulas contratuais e com elas concordado, entre as quais a de juros. Com a contestação vieram os documentos de fls. 61/85 e, posteriormente, os extratos da conta-corrente da autora de fls. 74/84. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 139 A preliminar de inépcia foi rejeitada pela decisão de fl. 100. Réplica às fls. 87/91 onde afirma a requerente a procedência do pedido, pondo em destaque a Súmula 121 sobre a capitalização de juros. O contrato de abertura de crédito, por cópia, constitui a peça de fls. 61/73. Designada audiência de conciliação, esta se realizou consoante termo de fl. 97. Não ultimada a transação entre as partes foi oportunizada a produção de provas, conforme consta de fl. 100. Instada a depositar os honorários periciais, por duas vezes, a parte autora manteve-se silente ocorrendo, assim, a preclusão da prova pericial. 1.2. Da ação cautelar A Autora ingressou com ação cautelar buscando a concessão de medida liminar, para sustação de protesto da nota promissória emitida em favor da Caixa Econômica Federal, relativa ao protesto com número de distribuição 922090, emitido pelo 1º Cartório de Protesto de Título da Capital, relativamente a nota promissória, com vencimento à vista, no importe de R$ 10.362,00, mediante caução real. Alega, ainda, que o título está eivado de nulidades e por isso deve ser anulado. Face os documentos acostados aos autos, em especial as cláusulas 12ª e 16ª do contrato, a autora comprovou a ocorrência do fumus boni iuris e em face da notificação de fl. 13, o periculum in mora. A liminar foi deferida (fl. 33). Os bens oferecidos em caução são aqueles constantes das cópias das notas fiscais de fls. 38/53. Citada, a Caixa Econômica Federal contesta, fls. 57/58, alegando preliminarmente, falta de interesse de agir, tendo em vista a inadequação da via processual, na medida em que a autora pleiteia a anulação do título. Sustenta, ainda, a ré ser incabível o provimento pleiteado, porque teria natureza satisfativa, vedado pelo art. 1º, § 3º, da Lei nº 8.437/92, no mérito, alega a inexistência do periculum in mora e fumus boni iuris, requerendo, assim, a revogação da liminar e total improcedência do pedido. Réplica às fls. 102/105. Vieram-me os autos conclusos para sentença.” Interposta a apelação, postula a CEF a reforma do julgado. O MPF opinou pelo parcial provimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Com efeito, a melhor doutrina encaminha-se pela aplicação das regras do CDC aos contratos bancários (Guido Alpa e Salvatore Patti, in Le Clausole Vessatorie Nei Contratti Con I Consumatori - Commentario agli articoli 1469-bis - 1469-sexies del Codice Civile, Giuffrè Editore, 140 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Milano, 1997, t. 2, p. 803 e segs.; Ugo Ruffolo, in Clausole Vessatorie e Abusive, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p. 244 e segs.; Jean Calais-Auloy, in Droit de la Consommation, 4ª ed., Dalloz, Paris, p. 321;). Em caso semelhante ao dos autos, de que fui relator, deliberou o Tribunal, verbis: “AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 2002.04.01.037342-9/SC RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ EMENTA PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. ART. 273 DO CPC. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. CONTRATO. TEORIA DA IMPREVISÃO. JUROS. LEI Nº 4.595. EFEITOS. JURISPRUDÊNCIA DO STF. 1. Realmente, os contratos firmados pelos requerentes constituem, em sua essência, típicos contratos de adesão, ou seja, aquela modalidade contratual em que todas as cláusulas são previamente estipuladas por uma das partes de modo que a outra não tem poderes para debater as condições, ou mesmo introduzir modificações no esquema proposto. Essa espécie de contrato tem sido cada vez mais utilizada na atividade negocial, face à dinamicidade da realidade econômica do mundo contemporâneo: ‘L’ordinamento giuridico non può opporsi a questo fenomeno che corrisponde ad una esigenza della vita moderna: la realtà economica odierna si fonda, infatti, anche su una rapida conclusione degli affari, specie se si tratta di affari di piccola entità, che assumono importanza per il loro numero: al vantagio dell’acceleramento del fenomeno produttivo deve essere dunque sacrificato il bisogno di una libertà di trattative che spesso presenterebbe ostacoli insuperabili.’ (In TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto Privato. 6. ed., Dott A. Editore, Milano, 1965. p. 243. § 295). Admitir-se a legalidade do procedimento pretendido pelos requerentes, implicaria o surgimento de perigoso precedente com sérias conseqüências para todo o complexo e rígido sistema de financiamento da habitação, cuja estrutura e mecanismo de funcionamento foi bem exposta pelo consagrado administrativista, Prof. CAIO TÁCITO, em alentado parecer que instruiu a Rp. nº 1.288, julgada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, verbis: ‘Ademais, os contratos imobiliários são, no caso, parte integrante de um todo interligado, de um sistema global de financiamento que tem, como outra face, a manutenção da estabilidade de suas fontes de alimentação financeira consubstanciadas nos sistemas de poupança e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A noção de equilíbrio financeiro não opera somente nas relações entre mutuários e mutuantes, mas, igualmente, na reciclagem de recursos financeiros que, em um mecanismo de vasos comunicantes, realimentam, no retorno do capital investido, a dinâmica de novos investimentos.’ (In TÁCITO, Caio. Parecer publicado na Revista de Direito Administrativo, 165/348). Ora, no caso dos autos não há sequer falar na imprevisão contratual, pois a teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e impreviR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 141 síveis pelas partes, e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou a execução do contrato, autorizam a sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes. Trata-se da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosadores, que esposa a idéia de que todos os contratos dependentes de prestações futuras incluíam cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes se alterassem profundamente. Tal idéia se inspirava num princípio de eqüidade, pois se o futuro trouxesse um agravamento excessivo da prestação de uma das partes, estabelecendo profunda desproporção com a prestação da outra parte, seria injusto manter-se a convenção, já que haveria indevido enriquecimento de um e conseqüente empobrecimento do outro (Cfe. sobre o tema os seguintes autores: TORRENTE, Andrea. Manuale di Diritto Privato. 6. ed., Giuffrè Editore, 1965. pp. 447-50. § 311; MADRAY, Gilbert. Des Contrats D’aprè la Récent Codification Privée Faite aux États-Unis - Étude Comparée de Droit Américain et de Droit Français. Libr. Générale, Paris, 1936. p. 194; RIPERT, Georges. La Règle Morale dans les Obligations Civiles. 4. ed., Libr. Générale, Paris, 1949, p. 143 e ss.; DURAND, Paul. Le Droit des Obligations dans les Jurisprudences Française et Belge. Libr. Du Recueil Sirey, Paris, 1929. p. 134 e ss; VENIAMIN, Virgile. Essais sur les Donnes Economiques dans L’Obligation Civile. Libr.- Générale, Paris, 1931. p. 373 e ss.; PLANIOL, Marcel. Traité Élémentaire de Droit Civil. 10 ed., Libr. Générale, Paris, 1926. t. II. n. 1.168. p. 414; SIDOU, Othon. A Revisão Judicial dos Contratos. 2. ed., Forense, 1984. p. 95; MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3. ed., RT, 1984. t. XXV. § 3.060. pp. 218-20 e, do mesmo autor, Dez Anos de Pareceres. Livr. Francisco Alves, Rio, 1976. vs. 7/36-9 e 10/197-9; FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. 3. ed., Forense, Rio, 1958. pp. 345-6, n. 242; CAMPOS, Francisco. Direito Civil – Pareceres. Livr. Freitas Bastos, 1956. pp. 05-11). Todos os autores acima referidos admitem sob os mais variados fundamentos doutrinários, a aplicação da teoria da imprevisão, mas apenas em circunstâncias excepcionais, que não se verificam no caso dos autos, ou seja, somente a álea econômica extraordinária e extracontratual, desequilibrando totalmente a equação econômica estabelecida pelos contraentes justifica a revisão do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus. Outro não é o entendimento adotado pela jurisprudência uniforme da Suprema Corte, em todas as oportunidades em que se manifestou sobre a tormentosa questão, como reflete o aresto relatado pelo eminente e saudoso Ministro ALIOMAR BALEEIRO, cuja cultura jurídica é por todos reconhecida, ao votar no RE n. 71.443-RJ, verbis: ‘Rebus sic stantibus - Pagamento total prévio. 1. A cláusula rebus sic stantibus tem sido admitida como implícita somente em contratos com pagamentos periódicos sucessivos de ambas as partes ao longo de prazo dilatado, se ocorreu alteração profunda inteiramente imprevisível das circunstâncias existentes ao tempo da celebração do negócio...’ (in RTJ 68/95. No mesmo sentido RTJ: 35/597; 44/341; 46/133; 51/187; 55/92; 57/44; 60/774; 61/682; 63/551; 66/561; 96/667; 100/140; 109/153; 110/328 e 117/323). No caso concreto, contudo, é de todo estranho aos princípios de justiça a aplicação da teoria da imprevisão, que deve ser aplicada com cautela pelo magistrado, evitando 142 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 que este interfira diretamente nos contratos celebrados, substituindo a vontade das partes, livremente pactuada, pela sua. A respeito, doutrina VIRGILE VENIAMIN, em clássica monografia, verbis: ‘En limitand ainsi l’application de la théorie de l’imprévision au cas où elle apparait comme une exigence, de 1’harmonieux développement de 1’organisation économique, on restreint par Là même consideráblement son étendue. En offrant au juge un critérium objectif, fondé sur les donnés concrètes dégagées grâce à une méthode d’observation directe, à 1’aide du matériel préparé par des experts idoines, on évite l’arbitraite auquel la recherche d’une intention malveillante, toujours devinatoire peut fournir 1’occasion. En outre, le rapprochement que nous venons de faire dans le présent chapitre, entrela 1ésion et l’imprévision - toutes les deux ayant le même caractère et répondant aux mêmes nécessités de 1’ordre économique - nous indique une limitation technique du pouvoir de juge. Dans les deux cas, ce n’est pas à la révision du contrat qu’on doit aboutir, mais simplement à sa rescision (1). I1 n’appartient point au juge d’orienter 1’activité humaine en s’immiscant dans la teneur du contrat. Sa mission estterminée, dès qu’en obéissant aux directives économiques, il empêche la ruine de 1’individu et lui assure en même temps que sa sauvegarde personnelle, une participation efficace à la collaboration générale’ (In Essais sur les Données Economiques dans L’Obligation Civile. Libr. Générale, Paris, 1931. pp. 393-4). Não pode prosperar, igualmente, o argumento de que a taxa de juros cobrada pela requerida, com previsão contratual, contrariou o disposto na legislação. A Chamada Lei da Usura vedava a cobrança de juros acima da taxa legal, inclusive comissões. Porém, com o advento da Lei de Reforma Bancária - Lei nº 4.595 -, o Conselho Monetário Nacional foi incumbido de formular a política de moeda e crédito, bem como limitar as taxas de juros, comissões e outras formas de remuneração. Por conseguinte, o Dec. n. 22.626 foi revogado, no que concerne às operações com as instituições de crédito sob o controle do Conselho Monetário Nacional, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Consagrando esse entendimento, editou a Suprema Corte a Súmula 596, que recebe inteira aplicação pelos Tribunais do país. O eminente Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE, ao votar sobre a questão no RE n. 78.953-SP (PLENO), disse, verbis: ‘Assim também me parece. O legislador do Dec. 22.626/33 cuidou, ele mesmo, de limitar a taxa de juros, fazendo-o no máximo de 12% ao ano. O da Lei 4.595/64, porém, adotando nova técnica para a formulação da política da moeda e do crédito, criou o Conselho Monetário Nacional e, conferindo-lhe poderes normativos ‘quase legislativos’, cometeu-lhe o encargo de ‘limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros’ (art. 4º, IX). A cláusula ‘sempre que necessário’, contida nesse preceito, parece-me mostrar que deixou de prevalecer o limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria necessária, dada a prevalência de um limite geral, único, constante e permanente, preestabelecido naquele velho diploma legal, a limitação que a nova lei atribuiu ao Conselho. De resto, tal limite geral, único, constante e permanente seria incompatível com a filosofia que presidiu à elaboração da Lei da Reforma Bancária, marcadamente conjuntural” (In RTJ R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 143 72/920. Nesse sentido, ainda, RTJ 73/987; 75/257, 957 e 963; 77/966; 78/624 e 79/620). Por conseguinte, ausentes os pressupostos do art. 273 do CPC, impõe-se o indeferimento da antecipação de tutela, pois ausentes os pressupostos para a sua concessão, notadamente a verossimilhança do direito invocado. 2. Agravo de instrumento a que se nega provimento.” No que concerne à comissão de permanência, é de ser mantida a r. sentença, face ao teor da Súmula 30 do STJ. Quanto aos juros de 12% ao ano, merece, igualmente, reforma a sentença, em razão da jurisprudência do Egrégio STJ, transcrita no parecer do MPF, à fl. 209, verbis: “COMERCIAL – CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA – JUROS – LIMITAÇÃO (12% AA) – LEI DE USURA (DECRETO Nº 22.626/33) – NÃO INCIDÊNCIA – APLICAÇÃO DA LEI Nº 4.595/64 – DISCIPLINAMENTO LEGISLATIVO POSTERIOR – SÚMULA Nº 596/STF – CAPITALIZAÇÃO MENSAL DOS JUROS – VEDAÇÃO – SÚMULA Nº 121/STF – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA – MULTA – INACUMULAÇÃO – LEI Nº 4.595/64 – CORREÇÃO MONETÁRIA – TR – PREVISÃO CONTRATUAL – 1. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano prevista na Lei de Usura aos contratos de abertura de crédito bancário. II. Nesses mesmos contratos, ainda que expressamente pactuada, é vedada a capitalização mensal dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei, hipótese diversa dos autos. Incidência do art. 4º do Decreto nº 22.262/33 e da Súmula nº 121/STF. III. A existência de cláusula permitindo a cobrança de comissão de permanência com suporte na Lei nº 4.595/64 c/c a Resolução nº 1.129/86/BACEN, não pode ser afastada para adoção da correção monetária sob o simples enfoque de prejuízo para a parte adversa. Todavia, a concomitante previsão contratual de multa por inadimplência e juros, exclui a comissão de permanência, de acordo com as normas de regência. IV. Ausência de vedação legal para utilização da TR como indexador de contrato de crédito bancário, desde que livremente pactuada. V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido. (STJ – REsp 400984 – RS – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior – DJU 17.06.2002).” Por esses motivos, conheço da apelação da CEF e dou-lhe provimento, mantendo a r. sentença apenas no que diz com a Súmula 30 do STJ, arcando cada uma das partes com os honorários de seus procuradores, bem como as despesas processuais. É o meu voto. 144 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.70.09.001274-0/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Relator p/acórdão: O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior Apelante: S S Motores Elétricos Ltda. Advogados: Drs. Alex Fernando Dal Pizzol e outros Apelada: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos EMENTA Administrativo. Descumprimento da legislação trabalhista. Aplicação de penalidade. Cabimento. Art. 628 da CLT. . Configurado o ato que caracteriza a infração trabalhista, é dever do Fiscal do Trabalho a imposição da penalidade (art. 628 CLT), salvo nos casos de inserções legislativas ou estabelecimentos novos, quando a lei autoriza o procedimento de dupla visita, objetivando a orientação. (CLT, arts. 627 e 627-A) . Apelação improvida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Relator, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 29 de junho de 2004. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior, Relator p/acórdão. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 306/312, verbis: “Busca a autora, através da presente ação ordinária, a declaração de nulidade das autuações fiscais contra ela lavradas e, conseqüentemente, a suspensão da exigibilidade das multas trabalhistas impostas. Informa que foi autuada pela prática de seis infrações à legislação trabalhista, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 145 decorrentes de irregularidades constatadas pela auditoria de fiscalização do trabalho de Ponta Grossa. O primeiro auto de infração fundamentou-se nos parágrafos 3° e 4° do artigo 630 da Consolidação das Leis do Trabalho, atinente à não-apresentação de pronto dos livros/fichas de registros de empregados e livro de inspeção do trabalho. Relativamente a esta infração, a autora alega que em nenhum momento furtou-se de apresentar os livros à fiscalização do trabalho, uma vez que os mesmos se encontravam no escritório do contador da empresa e que, tão logo possível, seriam exibidos, o que de fato ocorreu na segunda visita da fiscalização. Quanto às demais infrações, aduz, em resumo, que o agente fiscal não poderia ter lavrado autos em separado para infrações referentes a um mesmo Capítulo da CLT, qual seja, Duração do Trabalho, disposto nos artigos 57 a 75 daquele diploma legal. Sustenta também a necessidade imperiosa de trabalho, fato este que ocasionou a jornada extraordinária de alguns empregados. Ainda, que a conduta do agente fiscal foi por demais severa, fixando as multas em valores próximos ao limite máximo, sem fundamentação a tanto, ferindo os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade. Foi requerida a antecipação dos efeitos da tutela, havendo a decisão de fls. 223/228 deferido parcialmente o pedido a fim de que fosse o nome da autora excluído do CADIN. Após emenda à inicial às fls. 238/240, determinou-se às Delegacias da Receita Federal e de Rendas do Estado do Paraná de Ponta Grossa a abstenção da exclusão da autora do SIMPLES. Interpôs a União agravo de instrumento em face das decisões antecipatórias, ao qual foi negado provimento (fl. 302). Em contestação (fls. 262 a 274), sustenta a União, quanto à primeira infração, que a apresentação posterior do livro ou fichas de registro de empregados e do livro de inspeção do trabalho não descaracteriza a infração, a qual está perfeitamente tipificada no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT. No que tange às demais infrações, afirma que a alegação da autora de ‘necessidade imperiosa do trabalho’ é injustificável, tendo em vista que a legislação é clara ao impor limites à duração da jornada de trabalho, ao acréscimo de horário na mesma e ao período de descanso. E, quanto à aplicação das penalidades, salienta a correção da ação do agente fiscal, visto que a autora violou vários dispositivos legais diferentes, ensejando a lavratura de seus respectivos autos de infração e que a graduação das multas está de acordo com o previsto pela Portaria n° 290, de 11 de abril de 1997. Relativamente à tutela antecipada, reafirma a União a ausência dos requisitos legais para sua concessão. Houve réplica à contestação às fls. 282 a 284. Entendendo-se desnecessária a produção de provas em audiência, nos termos do artigo 330, I, do CPC, passou-se ao julgamento antecipado da lide. É o relatório. Decido. II - FUNDAMENTAÇÃO O auto de infração n.º 01422-453, lavrado pelo agente fiscal da Subdelegacia Regional do Trabalho de Ponta Grossa, fundamentou-se no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT, que dispõe: 146 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 ‘Art. 630. § 3° O agente da inspeção terá livre acesso a todas as dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista, sendo as empresas, por seus dirigentes ou prepostos, obrigadas a prestar-lhes os esclarecimentos necessários ao desempenho de suas atribuições legais e a exibir-lhes, quando exigidos, quaisquer documentos que digam respeito ao fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho. § 4 ° Os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as penas da lei, nos locais de trabalho, somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade competente, sejam os mesmos apresentados em dia e hora previamente fixados pelo agente da inspeção.’ Não há o que se repreender em tal autuação, visto que perfeitamente enquadrada na legislação. Ainda que a autora não tenha se recusado a apresentar os livros/fichas de registro de empregados e o livro de inspeção do trabalho, tendo feito em momento posterior, permanece inalterada a ilicitude do fato, não tendo a subseqüente apresentação o condão de descaracterizar a infração. Correta, portanto, a ação do agente fiscal. Neste sentido, o ensinamento doutrinário: ‘Segundo o disposto no art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT, os documentos sujeitos à inspeção trabalhista deverão permanecer, sob as penas da lei nos locais de trabalho, somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade competente, sejam eles apresentados em dia e hora previamente fixados pelo Auditor-Fiscal do Trabalho. (...) A Portaria 3.626, de 13.11.91, no entanto, permite que a empresa utilize controle único e centralizado dos documentos sujeitos à inspeção do Trabalho (mantendo-os, portanto, fora do local de trabalho), à exceção dos atinentes ao registro de empregados (Livros, Fichas ou Sistema Eletrônico Competente), do registro de horário de trabalho e Livro de Inspeção do Trabalho, que deverão permanecer em cada estabelecimento.’ (Marcello Ribeiro Silva, in Inspeção do Trabalho - Procedimentos Fiscais. p. 57, 2002 - sem negritos no original) Note-se que o fiscal do trabalho não tem a obrigação de conceder prazo para que a empresa apresente os documentos sujeitos à inspeção, devendo os mesmos permanecer nos locais de trabalho e apenas a critério da autoridade competente serão apresentados em dia e hora previamente fixados. A este respeito, veja-se o seguinte julgado: ‘ADMINISTRATIVO. ANULATÓRIA DE DÉBITO. AUSÊNCIA DE DOCUMENTOS SUJEITOS À INSPEÇÃO NO LOCAL DE TRABALHO. PRAZO PARA A APRESENTAÇÃO E AUTUAÇÃO FUNDADA NA VIOLAÇÃO DO ART. 630 DA CLT CONCOMITANTES. IMPOSSIBILIDADE. - O parágrafo 4° do artigo 630 da CLT dispõe que ‘os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as penas da lei, nos locais de trabalho, somente se admitindo, por critério da autoridade competente, sejam os mesmos apresentados em dia e hora previamente fixados pelo agente da inspeção’. - Se o Fiscal do Trabalho, utilizando-se da faculdade que lhe atribui a Lei, concede prazo para a apresentação dos documentos a serem inspecionados, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 147 incabível que, na mesma data, seja a empresa autuada por infração ao disposto nos §§ 3° e 4º do art. 630 da CLT.’ (TRF 4ª Região, AC 361725, Processo 200004011026297, DF: PR, 3ª T., DJU: 30.01.2002, p. 517, Relator Juiz Eduardo Tonetto Picarelli - sem grifos no original) Por sua vez, os autos de infração de nos 01422-0454; 03068-235; 03068-236; 03068237 e 01422-0455 são relativos a violações do capítulo da CLT que regula a Duração do Trabalho, sendo constatadas pela fiscal do trabalho as seguintes irregularidades: prorrogar a jornada normal de trabalho além do limite legal de 2 horas diárias, sem qualquer justificativa legal; desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho; deixar de conceder ao empregado descanso semanal de 24 horas consecutivas; deixar de conceder um período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho; e manter empregados em atividade aos domingos, sem prévia permissão da autoridade competente (artigos 59, 9°, c/c § 2° do 74, 67, 66, e 68, respectivamente, da CLT). Pois bem, quanto à prática dessas infrações a autora é confessa e nada articulou a seu respeito que possa eximi-la. Apenas se reporta ao fato de que a necessidade imperiosa de trabalho motivou a jornada extraordinária de alguns empregados, e, ainda, que todas as infrações se referem a mesmo Capítulo da CLT, pretendendo a aplicação de uma só penalidade para as diversas infrações à legislação. Tal entendimento, porém, desvia-se dos princípios gerais de hermenêutica jurídica, pretendendo a autora beneficiar-se através de distorções à Lei e interpretações descabidas. Veja-se a respeito o que dispõem os artigos 75 e 628 da CLT: ‘Art. 75. Os infratores dos dispositivos do presente capítulo incorrerão na multa de 50 (cinqüenta) a 5.000 (cinco mil) cruzeiros, segundo a natureza da infração, sua extensão e a intenção de quem a praticou, aplicada em dobro no caso de reincidência e oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.’ (Atualmente, a Portaria Mtb 290/97, de 11.04.97, estabelece as normas para a imposição de multas administrativas previstas na legislação trabalhista, tendo como parâmetro a UFIR) ‘Art. 628. Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação que o Auditor Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.’ (sem negritos no original) Com efeito, verifica-se que os dispositivos não deixam margem a dúvidas. Pretendeu o legislador punir os violadores das normas per se referentes ao Capítulo ‘Duração do Trabalho’ com a multa correspondente. Não significa dizer, como quer a autora, que o infrator de qualquer dos dispositivos, sejam quantos forem, incorrerá em única penalidade. Se assim fosse, a Lei acabaria por beneficiar o transgressor, sendo complacente com a prática desmedida de infrações à legislação, uma vez que lhe seria dado cometer diversas irregularidades de um mesmo Capítulo da CLT e suportar uma única penalidade. Referida interpretação se afasta do espírito da Lei, que é justamente o de 148 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 desestimular e coibir a prática de transgressões às normas. Ainda, no tocante à afirmação da autora de que as cinco irregularidades se tratam de infração continuada, resta observar que tal argumento não encontra fundamentação nem amparo legal. As infrações, ainda que contidas no mesmo Capítulo da CLT, nada têm em semelhança, visto que constituem irregularidades diferentes que atingem em particular os direitos dos trabalhadores. No que concerne à justificativa de necessidade imperiosa de trabalho, friso por sua impropriedade, dado que não devidamente comprovada e, ainda que o fosse, o empregado não tem a obrigação de suportar o trabalho incessante e indispensável ao qual é compelido para o objetivo primeiro da empresa, que é o de obtenção de lucros. Desejando manter a alta produtividade do trabalho para atender à necessidade de acréscimo extraordinário de serviço, a autora deveria ter se utilizado do ‘trabalho temporário’, regulado pela Lei nº 6.019 de 13.01.74, e não, como fez, ter sacrificado os direitos dos empregados, alegando, singelamente, que os mesmos teriam anuído ao cumprimento das tarefas excessivas. Por fim, quanto à alegada exorbitância na graduação dos valores das multas, cabe observar que o órgão responsável por sua aferição, qual seja, a Delegacia Regional do Trabalho, agiu plenamente nos limites da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, impondo estimativas correspondentes à gravidade das infrações praticadas e em conformidade com a Portaria nº 290, de 11.04.97 da Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Atente-se que a autora não cometeu uma, mas seis infrações à legislação trabalhista. Constatou a agente fiscal da Subdelegacia Regional do Trabalho de Ponta Grossa que a empresa, além de não manter em seu estabelecimento o livro/ficha de registros de empregados, não vinha cumprindo as determinações da Consolidação das Leis do Trabalho no que concerne à Duração do Trabalho. Importante transcrever o que verificou a fiscal, de forma a demonstrar a gravidade da atuação da empresa: ‘Deixar de exibir ao Agente da Inspeção, quando exigidos, quaisquer documentos que digam respeito ao fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho’: A empresa não exibiu, quando solicitado pela fiscalização, o livro ou fichas de registro de empregados e o livro de inspeção do trabalho; (f1. 32 - infração ao art. 630, §§ 3° e 4°, da CLT) ‘Prorrogar a jornada normal de trabalho, além do limite legal de 2 horas diárias, sem qualquer justificativa legal’: Na situação acima descrita, dentre os empregados, cita-se ao acaso: Paulo Cesar Tybuchewski, que no período de 26 de maio a 25 de julho cumpriu jornadas de trabalho superiores 10 horas diárias, tendo no dia 15 de julho trabalhado das 8:10 às 11:30 e das 11:57 às 23:30 horas (13 horas e 50 minutos), conforme constatado através do cartão ponto n° 18, visado e rubricado); (f1. 58 - infração ao art. 59, caput, da CLT) ‘Desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho’: Em situação irregular, cita-se exemplificativamente os empregados Gilberto Ribeiro e Osvaldo Aparecido da Cruz. Tais empregados, durante vários dias no período de 26.05.97 a 25.07.97 marcaram suas jornadas de trabalho nos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 149 cartões-ponto e, posteriormente, houve rasura dos horários por parte da empresa, impedindo, dessa forma, a aferição da real jornada de trabalho por parte da Fiscalização; (fl. 84 - infração ao art. 9° c/c § 2° do art. 74 da CLT) ‘Deixar de conceder ao empregado descanso semanal de 24 horas consecutivas’. Em situação irregular, cita-se exemplificativamente o empregado Paulo César Tybuchewski que, conforme anotação nos cartões-ponto, trabalhou de 02.06.97 a 14.07.97 sem desfrutar de descanso semanal de 24 horas consecutivas; (f1. 89 - infração ao art. 67, caput, da CLT) ‘Deixar de conceder período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho’: Cita-se como exemplo o empregado PauloCésar Tybuchewski que no dia 15.07.97 encerrou sua jornada de trabalho às 23:30 horas, retornando ao trabalho no dia 16.07.97 às 08:14 horas, não desfrutando do período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre as duas jornadas de trabalho; (f1. 115 - infração ao art. 66 da CLT) ‘Manter empregados em atividade aos domingos, sem prévia permissão da autoridade competente’: Nas situações acima descritas cita-se os empregados Luiz Carlos E. Oliveira, o qual trabalhou no dia 29.06.97, cumprindo jornada das 7:44 às 11:20 hs, e Edson Rosnei Florenski no dia 08.06.97, das 13:19 às 16:33 horas. (fl. 142 - infração ao art. 68, caput, da CLT) Evidencia-se a reiterada falta de respeito por parte da empresa à legislação protetiva do trabalhador, justificando a imposição das multas bastante acima do mínimo legal. Destarte, não há como prosperar a pretensão exposta na exordial. III - DISPOSITIVO Diante do exposto, julgo improcedente o pedido, extinguindo o processo com exame de mérito, nos termos do art. 269, I, do CPC, e revogo as decisões antecipatórias dos efeitos da tutela de fls. 223/229 e 238/240. Condeno a parte autora ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à ação, na forma do artigo 20, §§ 3° e 4°, do Código de Processo Civil.” Interposta a apelação, postula o recorrente a reforma do julgado, reproduzindo os argumentos da inicial. A União apresentou a resposta. O MPF opinou pelo provimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em seu parecer, a fls. 346/7, anotou, com inteiro acerto, o douto MPF, verbis: “Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou improcedente a ação 150 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 por entender regular a fiscalização e autuação dos agentes do Ministério do Trabalho. O apelo merece provimento. Os fatos indicam que o agente fiscal não procedeu de forma correta. A fiscalização administrativa tem como objetivo primordial a educação para o cumprimento das normas trabalhistas e não a simples autuação como forma de punição. A educação resulta da recomendação inicial para o cumprimento das normas e em caso de persistência na irregularidade, aí sim, a devida autuação. No caso presente o agente fiscal não advertiu em nenhum momento a empresa apelante, nem sequer ouviu suas razões ou os próprios empregados utilizados no fundamento da autuação, ao contrário, simplesmente procedeu a autuação, sem considerar sequer a possibilidade de se tratar de caso isolado na vida da empresa, e justamente por isso, fato excepcional por presunção. Igualmente o agente não levou em consideração que a realização de horas extras traduz-se em benefício pecuniário aos empregados, ansiosos por melhoria salarial, o que confirma ainda mais as declarações prestadas, na medida em que há claro interesse dos empregados em sua realização. Além da autuação não ter advertido antecipadamente a empresa para realização de uma segunda visita, igualmente não verificou a existência de tal prorrogação de jornada em outros meses, para constatar se tratava-se de situação isolada ou de prática reiterada, o que permitiria a autuação apenas neste segundo caso. Resta ainda a justificativa apresentada que não pode ser simplesmente desconsiderada, partindo-se de pressuposto falso de a alegação do empregador não é verdadeira. Registre-se ainda a autuação pela não apresentação dos livros obrigatórios, cujos registros são feitos normalmente pelo contador da empresa no escritório de contabilidade e não na sede da empresa, razão pela qual se toma sempre necessária a remoção de tais livros para outro local. A falta de compreensão do agente fiscal sobre tais aspectos básicos do costume empresarial seiva de irregularidade sua ação. Por tais circunstâncias, as autuações administrativas devem ser anuladas. Isto posto, opina o Parquet pelo conhecimento e provimento do apelo.” Por esses motivos, acolhendo o parecer do MPF, conheço da apelação e dou-lhe provimento, julgando procedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência. É o meu voto. VOTO DIVERGENTE O Exmo. Sr. Juiz Federal José Paulo Baltazar Junior: A tese adotada pelo Eminente Relator, baseada no parecer do MPF, é de que: a) a autuação da fiscalização trabalhista deve ser voltada para a educação e não para a punição, de modo que a imposição de multa deve ser precedida de recomendação inicial para o cumprimento das normas, impondo-se a R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 151 sanção somente em caso de recalcitrância; b) a realização de horas extras é de interesse do empregado, de modo que a falta de comprovação da necessidade imperiosa não pode resultar em punição ao empregador; c) a manutenção de livros obrigatórios fora da sede da empresa é prática usual no meio empresarial, devendo ser tolerada. Com a devida vênia, tenho que merece confirmação a sentença. É que, ao contrário do sustentado, não é condição legal para a imposição de penalidade a advertência, verbal ou formal, nem exigem as infrações sob exame a habitualidade ou prática reiterada para sua caracterização. Uma vez configurado o ato que caracteriza a infração, é dever do fiscal a imposição da penalidade (CLT, art. 628), salvo nas hipóteses dos arts. 627 e 627-A que, por sua vez, não se encontram configuradas no presente caso. Eis o texto dos dispositivos referidos: “Art. 627 - A fim de promover a instrução dos responsáveis no cumprimento das leis de proteção do trabalho, a fiscalização deverá observar o critério de dupla visita nos seguintes casos: a) quando ocorrer promulgação ou expedição de novas leis, regulamentos ou instruções ministeriais, sendo que, com relação exclusivamente a esses atos, será feita apenas a instrução dos responsáveis; b) em se realizando a primeira inspeção dos estabelecimentos ou dos locais de trabalho, recentemente inaugurados ou empreendidos. Art. 627-A. Poderá ser instaurado procedimento especial para a ação fiscal, objetivando a orientação sobre o cumprimento das leis de proteção ao trabalho, bem como a prevenção e o saneamento de infrações à legislação mediante Termo de Compromisso, na forma a ser disciplinada no Regulamento da Inspeção do Trabalho. (Artigo incluído pela MP 2.164-41/01). Art. 628. Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação em que o Auditor-Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração. (Redação dada pela MP 2.164-41/01).” Quanto às horas extras, é claro que há interesse pessoal do trabalhador em sua realização, em razão do acréscimo remuneratório que estas acarretam. Contudo, as regras referentes à segurança e duração do trabalho são imperativas, não havendo margem para alterações, seja por vontade do empregado ou do empregador. Tais normas têm por fim a proteção do trabalhador contra jornadas excessivas, que prejudiquem a sua saúde e acarretem prejuízo ao desempenho laboral. Tais normas, 152 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 reunidas no capítulo da CLT referente à duração do trabalho, que por sua vez é dividido em seções (duração, jornada e períodos de descanso), não foram consideradas na realização das atividades laborais. Constatadas as referidas violações da lei, o Fiscal do Trabalho, de acordo com suas atribuições (CLT, art. 628, e Decreto 4.552/02), lavrou os respectivos autos de infração, impondo multa de acordo com os limites legais (art. 75 da CLT) que segue transcrito: “Art. 75. Os infratores dos dispositivos do presente Capítulo incorrerão na multa de cinqüenta a cinco mil cruzeiros, segundo a natureza da infração, sua extensão e a intenção de quem a praticou, aplicada em dobro no caso de reincidência e oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.” Por fim, o costume do descumprimento não tem o condão de revogar a norma que determina a manutenção dos livros no local de trabalho, nos termos do § 4º do art. 630 da CLT, que assim dispõe: “Art. 630. (...). § 4º - Os documentos sujeitos à inspeção deverão permanecer, sob as penas da lei nos locais de trabalho, somente se admitindo, por exceção, a critério da autoridade competente, sejam os mesmos apresentados em dia hora previamente fixados pelo agente da inspeção”. (Parágrafo incluído pelo Decreto-Lei nº 229, de 28.02. 67) Com estas considerações, acrescidas da necessidade de prestigiar o trabalho da fiscalização, quando realizado sem excesso, nego provimento à apelação. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.007121-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz 153 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Relator p/acórdão: A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler Apelante: Elevadores Otis Ltda. Advogados: Drs. Raquel Campani Schmiedel e outros Apelante: Caixa Econômica Federal - CEF Advogados: Drs. Sirlei Neves Mendes da Silva e outros Apelados: (os mesmos) EMENTA Civil. Contrato. Execução. Multa. Aplicabilidade. 1. Deve ser parcialmente modificada a sentença, apenas para determinar que as multas aplicadas sejam reduzidas para dez por cento sobre o valor de cada etapa da obra, pois é aplicável o art. 9º do Decreto nº 22.626/33. 2. Somente a mora aliada à total inexecução do contrato pode ensejar multa no limite máximo, o que não é o caso dos autos. 3. Apelação da parte autora parcialmente provida. Prejudicado o recurso da CEF. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Desembargador Federal Thompson Flores Lenz, dar parcial provimento ao apelo da parte autora e julgar prejudicado o recurso da CEF, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 18 de março de 2003. Desa. Federal Marga Barth Tessler, Relatora p/acórdão. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 163/171, verbis: “ELEVADORES OTIS LTDA. ajuizou a presente Ação Ordinária contra CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (CEF), em que se discute a validade de multas de mora avençadas em dois contratos de prestação de serviços, nos quais constam, como contratada, a Autora e, como contratante, a Ré. Colhe-se da petição inicial, em resumo: que a Autora foi contratada para modernizar elevadores de dois prédios da Ré; que firmaram dois contratos, um para cada 154 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 prédio; que os contratos foram firmados após procedimento licitatório de tomada de preços; que as prestações de serviços eram constituídas por etapas; que houve atraso em algumas dessas etapas; que os serviços foram concluídos, ainda que com atraso; que os contratos estabelecem multas de mora para o atraso na conclusão de cada etapa da prestação de serviço contratada; que essa multa está dosada em 0,3% (três décimos por cento) por dia de atraso incidente sobre o valor da etapa, sendo dobrada a partir do 31º dia de atraso; que a Ré reteve valores de pagamento da Autora em razão das multas que considerou incidentes; que tais multas, aplicadas pela Ré, foram dosadas em percentagens elevadas do montante que deveria ser pago por cada etapa concluída; que tais percentagens vão de 37,20% a 112,80% das etapas concluídas com atraso; que a multa de mora do contrato atinente ao Ed. Querência foi cominada no mesmo valor do preço da referida avença, isto é, em R$ 561.422,04; que a multa de mora avençada nos contratos possui natureza de cláusula penal; que, por essa condição, não poderia ser superior ao percentual de 2% do valor da etapa atrasada, por aplicação analógica do CDC; ou que não poderia ser superior ao percentual de 10% do valor da etapa atrasada, por aplicação analógica do art. 9º do Decreto nº 22.626/33; que a Autora prestou cauções em garantia dos contratos; que o valor dessas cauções não lhe foi devolvido, apesar de concluídas as prestações de serviço; que, por isso, a Ré deve ser condenada ao pagamento do valor das mencionadas cauções; que deve ser declarada a invalidade das cláusulas penais contratadas, as quais devem ser minoradas para o percentual de 2% ou de outro patamar inferior a 10% do valor da etapa atrasada; e que a Ré deve ser condenada ao pagamento dos valores retidos em virtude das multas moratórias ora profligadas. Citada, contestou a CEF, alegando, em suma: que a Autora perpetrou infrações contratuais; que, por isso, foram aplicadas multas de mora; que a CEF apenas cumpriu o acordado; que deve prevalecer o acordado; e que a ação deve ser julgada improcedente. A Autora apresentou réplica, na qual requereu o julgamento antecipado da lide. Apesar de intimada, a CEF não se manifestou sobre produção probatória. Vieram os autos conclusos para prolação de sentença. 2. Fundamentação Julgamento antecipado da lide. Os fatos narrados na petição inicial não foram impugnados pela CEF em sua contestação. Limitou-se a Ré a defender a validade das cláusulas contratuais que dispuseram sobre multas de mora. Logo, sendo incontroversos os fatos, é caso de julgamento antecipado da lide, consoante disciplina o art. 330, I, do CPC. Dos fatos. Estão sob foco nesta demanda as cláusulas de multa de mora estabelecidas em dois contratos avençados entre as Partes. O objeto desses contratos é a execução de reparação ou de modernização em elevadores de dois edifícios da CEF localizados nesta Cidade. Ambos decorrem do procedimento licitatório de tomada de preços nº 33/97 da CEF; e foram assinados em 16.02.98. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 155 Um dos contratos refere-se ao Ed. Barão do Cahy, tendo sido contratada a modernização de 03 elevadores. Foi avençado o preço global de R$ 146.190,04; que o serviço seria realizado em 08 etapas; que o prazo total seria de 360 dias para a execução do serviço; e que, a cada etapa, seria paga uma determinada parcela do preço. O outro contrato atine ao Ed. Querência, tendo sido contratada a modernização de 06 elevadores. Foi avençado o preço global de R$ 561.422,04; que o serviço seria realizado em 14 etapas; que o prazo total seria de 540 dias para a execução do serviço; e que, a cada etapa, seria paga uma determinada parcela do preço. Em ambos os contratos foi avençada cláusula de multa de mora no percentual de 0,3% da parcela da etapa atrasada por dia de atraso, sendo majorado tal percentual do 31º dia de atraso. Reconhece a Autora que atrasou a execução de etapas de ambos os contratos. Mas aduz, contudo, que executou integralmente os serviços contratados. Cumpre frisar, desde já, que este fato se mostra incontroverso, já que a CEF não o profligou. Também aduz a Autora que os contratos foram garantidos, inicialmente, por fianças bancárias, e, depois, por cauções em dinheiro. Essas cauções totalizaram o valor de R$ 22.171,62. Este fato, além de incontroverso, está demonstrado pelo documento fl. 75. Executados os serviços, alega a Autora que a CEF lhe aplicou as multas de mora contratadas. Aduz que as multas atinentes ao Ed. Barão do Cahy totalizaram o montante de R$ 74.311,31. E que o percentual das multas variou de 37,20 % a 112,80% das parcelas das etapas atrasadas. Obtempera, outrossim, que as multas relativas ao Ed. Querência totalizaram o montante de R$ 561.422,04, o que equivale, precisamente, ao preço do contrato. Isso significa que as multas deste contrato foram fixadas, conjuntamente, no percentual de 100% de seu valor. Estes fatos, pertinentes às fixações das multas, também se mostram incontroversos. Insta destacar, ainda, os atrasos verificados na execução de cada contrato. Quanto ao contrato do Ed. Barão do Cahy, a Autora atrasou a execução das etapas 3ª a 8ª, isto é, atrasou a execução de 06 etapas. Atrasou 199 dias a 3ª etapa; 93 dias a 4ª; 149 dias a 5ª; 77 dias a 6ª; 99 dias a 7ª; e 203 dias a 8ª, que era a última. Isso significa que o serviço, contratado para execução em 360 dias, somente foi finalizado em 563 dias. No que toca ao Ed. Querência, foram atrasadas 12 etapas do total de 14. Restaram atrasadas as etapas 3ª a 14ª. A 3ª atrasou 210 dias; a 4ª, 152 dias; a 5ª, 201 dias; a 6ª, 183 dias; a 7ª, 258 dias; a 8ª, 271 dias; a 9ª, 355 dias; a 10ª, 247 dias; a 11ª, 305 dias; a 12ª, 171 dias; a 13ª, 176 dias; e, a 14ª, 235 dias. Nota-se que este serviço, contratado com prazo de execução de 540 dias, somente foi finalizado com 775 dias. Estes dados também são incontroversos e estão indicados em documentos da própria CEF: fls. 112 e 123. Das multas moratórias contratadas no caso concreto. O objeto desta Ação está limitado, tão-somente, ao exame da validade das cláusulas contratuais que cuidaram da multa moratória. Em ambos os contratos, essas multas de mora estão previstas nas cláusulas décimas, parágrafos terceiros a sextos. Segundo a Autora, as multas de mora avençadas possuem natureza contratual, e, 156 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 não, legal. Por isso, não poderiam ser consideradas sanção administrativa, mas, sim, uma cláusula penal contratual, apenas. Possuindo tal natureza, de cláusula penal, tais multas estariam jungidas aos limites fixados no Direito Privado: 2% do valor da prestação, pela aplicação do art. 52, § 1º, do CDC; ou 10% do valor da dívida, consoante dispõe o art. 9º do Decreto nº 22.626/33. Os contratos vertentes tiveram origem em procedimento administrativo licitatório regido pela Lei nº 8.666/93. Isso se deu porque a CEF é empresa pública, estando subordinada, portanto, ao regime de Direito Público delineado na supra-referida Norma. Além disso, os contratos vertentes possuem cláusulas exorbitantes, ou seja, cláusulas que seriam vedadas, em regra, no Direito Privado. Por exemplo, caracterizam-se como cláusulas exorbitantes, nos presentes contratos, aquelas que exigiram a prestação de garantia pela Autora; e as que lhe submeteram à aplicação de sanções administrativas. Diante disso, mostra-se impositivo concluir que os contratos em exame são contratos administrativos, nos quais o Poder Público está em posição de supremacia sobre o contratado e nos quais há prevalência do interesse público sobre o particular. Ante a essas ponderações, nota-se que as cláusulas atinentes às multas de mora são cláusulas exorbitantes, que, por seu turno, são próprias do contrato administrativo. Possuem amparo legal no art. 86 da Lei nº 8.666/93, o qual estabelece que o ‘atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.’ Na espécie, a multa de mora foi vinculada à execução das etapas dos contratos. Como já dito, por dia de atraso, foi dosada em 0,3% da parcela a ela correspondente, sendo dobrada a partir do 31º dia. Não se estabeleceu um limite temporal máximo de mora para a execução de cada etapa ao cabo do qual ficasse rescindido o contrato. Assim, por conseqüência, não se estabeleceu também um limite máximo financeiro para o valor das multas que fossem aplicadas. Em razão disso, verificou-se, na espécie, que o valor da multa de determinadas etapas atrasadas ficou superior ao valor do preço a elas atinentes. Esse é, precisamente, o ponto nevrálgico da presente discussão: a Administração, fazendo uso de sua supremacia expressada por meio de uma cláusula exorbitante e de seu poder discricionário, estabeleceu uma multa de mora sem limite e cuja dimensão dependia, apenas, do atraso que seria, ou não, perpetrado pela contratada. Cabe perquirir, diante disso, se essa postura discricionária da Administração mostra-se válida. Na busca da resposta desse questionamento, cabe considerar, por primeiro, que a fixação do quantum da multa de mora em comento devia ser, como foi, regida pelo poder discricionário da Administração. A própria Lei de regência delegou ao administrador competente a determinação casuística dessa parcela do contrato. Nesse mister, o Administrador deve estar atento ao disposto no art. 54 da Lei de regência, o qual estabelece que os ‘contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 157 privado.’ Diante disso, tenho que as lacunas destinadas à discricionariedade do Administrador pela Lei nº 8.666/93 devem ser preenchidas com observância aos princípios de Direito Público, e, supletivamente, com os princípios de Direito Privado. Pelo prisma do Direito Público, deve o Administrador ter em conta o princípio da proporcionalidade, a fim de averiguar se, na relação entre meios e fins, não houve excesso. E, por outra, na ausência de norma específica de Direito Público e desde que não reste violada a supremacia do Poder Publico, pode a Administração, em integração analógica, ter em conta as normas que regem o temário no Direito Privado. Nosso Direito Civil cuida do tema nos arts. 916 a 927 do Código Civil Brasileiro (CCB). Tais cânones versam sobre a cláusula penal compensatória e sobre a cláusula penal moratória. Esta última possui natureza semelhante à multa de mora estabelecida no Regime da Lei nº 8.666/93, porquanto ambas visam punir a demora no cumprimento de obrigação. Fixa o art. 920 do CCB que o ‘valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal’. Essa Regra contida no citado art. 920 deveria ter sido, a meu ver, considerada pela Administração na feitura dos contratos em exame. A sua própria utilização, em integração analógica, induziria consagração ao princípio da proporcionalidade, porquanto restaria estabelecido um limite ao meio - aplicação de multa moratória - manejado na consecução do fim pretendido - punição à demora do cumprimento do contrato. Com tal limite, seria possível conter o excesso do meio e, ainda assim, ficaria protegido o fim. Ademais, com tal limite, sabendo a Administração que a multa moratória não poderia exceder o valor da obrigação, certamente seria mais diligente na fiscalização da prestação do serviço contratado, e, também, na caracterização da causa de rescisão contratual prevista no art. 78, III, da Lei de regência. Frente a isso, cabe concluir que as cláusulas atinentes à multa de mora, na forma como avençadas, violam o princípio da proporcionalidade. Este princípio reside na ponderação e no cotejo dos meios utilizados pela Administração para atingir seus fins públicos. No caso, reside na ponderação entre a aplicação da multa de mora (meio) e a punição pela demora no atraso do cumprimento dos serviços contratados (fim). Indica, por meio de sua ponderação, que houve excesso da Administração no meio utilizado. Este (meio), assim como aquele (fim), estão previstos na Lei de regência. Se há excesso em um deles, resta malferida a lei. Logo, havendo excesso na cominação da multa de mora (meio), a cláusula que a contém se mostra parcialmente ilegal. Por outro lado, cabe registrar que não são aplicáveis aos contratos em comento as limitações de cláusulas penais previstas no art. 52, § 1º, do CDC e no art. 9º do Decreto nº 22.626/33. O primeiro dispositivo citado aplica-se, tão-somente, às relações de consumo; e, o segundo, aos mútuos de capital. Os contratos presentes não se amoldam a essas hipóteses, portanto, não devem ser disciplinados por tais Normas. 158 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Quanto ao Decreto 22.626/33, impende acrescentar que a restrição de sua aplicação a outros contratos decorre de sua própria redação, a qual identifica o mútuo de capital como seu objeto. Para ilustrar tal asseveração, cumpre colecionar seus considerandos: ‘O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil: Considerando que todas as legislações modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura; Considerando que é de interesse superior da economia do país não tenha o capital remuneração exagerada impedindo o desenvolvimento das classes produtoras; Decreta: (...).’ Nota-se que esse trecho do referido Decreto evidencia sua esfera de aplicação apenas como sendo os contratos de mútuo de capital. Sendo assim, tenho que a aplicação analógica autorizada pela Lei nº 8.666/93 deve ser operada apenas com o art. 920 do CCB, sendo inaplicáveis, ao caso, como já referido, o art. 52, § 1º, do CDC e o art. 9º do Decreto nº 22.626/33. Da nova multa de mora resultante da intervenção judicial. Diante da ilegalidade da multa de mora avençada, cumpre ao Judiciário intervir nos contratos, para constituir uma nova cláusula que atenda aos ditames legais. A ilegalidade verificada reside na possibilidade de que a multa de mora ultrapasse o valor da parcela correspondente à etapa atrasada. Essa é, precisamente, a ilegalidade que deve ser afastada. Assim, a multa de mora contratada em ambos os contratos deve ficar limitada ao valor da parcela da etapa a que se referir. Essa é a única intervenção judicial que deve ser operada nas cláusulas em exame por força da ilegalidade suso constatada. Todavia, há outra intervenção judicial a ser operada, atinente à aplicação, ao caso, do art. 924 do CCB. Esse cânone, em integração analógica, também pode ser aplicado ao regime da Lei nº 8.666/93. Registre-se que a pretensão de aplicação desse dispositivo integra a fundamentação da petição inicial da Autora. Refere tal artigo que o juiz pode reduzir a pena de mora quando a obrigação foi cumprida em parte. No caso, é incontroverso que a Autora cumpriu integralmente os serviços contratados, ainda que em mora. Logo, tenho que a redução da pena em comento deve ser aplicada em benefício da Autora. Passo a dosar tal redução. Somente a ausência da mora possibilitaria a ausência de aplicação de pena. Em contrapartida, somente a mora aliada a uma total inexecução poderia ensejar a aplicação da pena em seu grau máximo. No caso, os serviços foram cumpridos inteiramente. Assim, a multa resultante da mora, no caso dos dois contratos em exame, deve ser reduzida de metade, por força do art. 924 do CCB. Frente a essas ponderações, as multas de mora previstas nas cláusulas décimas, parágrafos terceiros a sextos, dos contratos subjacentes, ficam jungidas ao limite ditado R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 159 pelo valor das parcelas atinentes às etapas atrasadas. E, além disso, o valor da multa resultante dessa primeira operação, deverá ser reduzido de metade, por força do art. 924 do CCB. É incontroverso que há multas superiores ao valor das parcelas. E mesmo aquelas inferiores ao valor das parcelas deverão ser minoradas, em razão da redução do art. 924 supramencionado. Logo, a CEF deve ser condenada a pagar à Autora o valor da diferença existente entre os valores que reteve a título de multa de mora e os valores efetivamente devidos pela Autora a título de multa de mora, conforme disciplinado nesta sentença. Valor das cauções. É incontroverso que a Autora prestou cauções nos contratos em comento; e que a CEF ainda não devolveu à Autora o valor dessas cauções. Deve a CEF ter retido as cauções em quitação das multas de mora, já que alguma destas eram superiores aos valores das parcelas de pagamento da Autora. Contudo, diante das alterações operadas nas multas de mora por esta sentença, não há mais razão para a retenção das referidas cauções. Os valores retidos pela CEF, que não foram pagos pela prestação dos serviços, são suficientes à quitação das multas de mora alteradas por esta decisão. Além disso, os serviços foram prestados integralmente. Logo, deve a CEF ser condenada a pagar à Autora o valor atinente às cauções prestadas por esta no bojo dos contratos em exame, já que a retenção operada se mostra indevida. Liquidação dos valores de condenação. I) Valores retidos por força das multas de mora: como já referido, a CEF deve pagar à Autora o valor da diferença existente entre os valores que reteve a título de multa de mora e os valores efetivamente devidos pela Autora a título de multa de mora, conforme disciplinado nesta sentença. Tais valores deverão ser determinados em liquidação de sentença. Outrossim, deverão ser corrigidos monetariamente pelo NPC ou por outro índice que o venha substituir. O termo a quo da incidência de correção monetária é a data em que cada parcela deveria ter sido paga, nos termos das cláusulas segundas, parágrafos primeiros, dos contratos. Demais disso, a tais valores devem ser acrescidos juros moratórias de 6% ao ano, calculados de forma simples, a partir da citação da CEF. II) Valor das cauções: deve a CEF pagar à Autora o valor das cauções que prestou em garantia dos contratos em exame. O valor original dessas cauções era de R$ 22.171,62 (fl. 75). Da data de prestação das garantias até o termo de 30 dias contados da execução completa dos serviços, o valor das cauções deve ser atualizado pelos critérios contratuais (cláusulas terceiras, parágrafos quintos, dos contratos). A partir do fim do trintídio contratual (cláusulas terceiras, parágrafos terceiros, dos 160 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 contratos), deve começar a incidir a correção monetária decorrente da condenação judicial, porquanto este é o marco em que tais valores deveriam ter sido liberados. A correção judicial deve ser pautada pelo INPC ou por outro índice que o venha substituir. Demais disso, tais valores devem ser acrescidos de juros moratórios de 6% ao ano, calculados de forma simples, a partir da citação da CEF. Verbas sucumbenciais. A sucumbência é recíproca. Logo, tenho que cada Parte deve suportar 50% das despesas processuais. Fixo os honorários advocatícios em 10% do valor da condenação, dos quais cada Parte deve suportar 50%. Esses quinhões sucumbenciais devem ser compensados entre as Partes. Fundamentos legais: arts. 20, § 3º, e 21, caput, ambos do CPC. 3. Dispositivo Isso posto, julgo parcialmente procedente os pedidos vertidos na petição inicial, com lastro no art. 269, I, do CPC, para, nos termos da fundamentação suso expendida: declarar a ilegalidade parcial das cláusulas dos contratos sob exame que versaram sobre multa de mora; desconstituir parcialmente as cláusulas dos contratos sob exame que versaram sobre multa de mora; constituir novas cláusulas de multa de mora nos contratos sob exame, as quais consistem no amálgama formado pela parcela que se mostrou legal das cláusulas originais e pela intervenção judicial operada nesta sentença; condenar a CEF a pagar à Autora o valor da diferença existente entre os valores que reteve a título de multa de mora e os valores efetivamente devidos pela Autora a título de multa de mora, conforme disciplinado nesta sentença; e condenar a CEF a pagar à Autora o valor das cauções que esta prestou em garantia dos contratos em exame. Na forma disciplinada na fundamentação, os valores de condenação devem ser determinados em liquidação de sentença; corrigidos monetariamente; e acrescidos de juros moratórios. Condeno, outrossim, cada Parte a suportar 50% das despesas processuais e dos honorários advocatícios, os quais restam fixados em 10% do valor da condenação, ficando compensados tais quinhões sucumbenciais, tudo com base nos arts. 20, § 3º, e 21, caput, ambos do CPC.” A parte autora interpôs apelação, postulando a reforma do julgado, alegando violação aos arts. 920 do Código Civil, 9º do Decreto nº 22.626/33 e 52, § 1º, do Código do Consumidor. A CEF, também, recorreu, visando à reforma do julgado. O MPF opinou pelo provimento da apelação da CEF. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em seu parecer, a fls. 250/2, anotou o douto MPF, verbis: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 161 “Trata-se de apelações interpostas contra sentença que julgou parcialmente procedente a ação por entender abusivas as multas contratuais convencionadas, reduzindo-as. Somente o apelo da CAIXA deve ser provido. Importa destacar desde logo que não se trata de cláusula penal, ou seja, pena cominada pelo não cumprimento da obrigação principal, que ao final foi integralmente cumprida. O exame da cláusula décima, parágrafo terceiro, do contrato juntado às fls. 56, dá conta que se trata, isto sim, de multa por atraso na obrigação de fazer, ou seja, astreintes, o que evidentemente não se limita pelo valor da obrigação principal, ainda que possa eventualmente ser diminuído. Isto porque enquanto a cláusula penal é a penalidade ou previsão de danos decorrentes do descumprimento da obrigação assumida, a multa moratória ou astreintes tem em foco o cumprimento de determinada obrigação de fazer ou não fazer em determinado tempo, logo, a finalidade e natureza são completamente diversas, haja vista que o prejuízo não se calcula pelo descumprimento da obrigação, mas pelo atraso em seu cumprimento. Tal atraso não possui limitação sob pena de cessar a coação contratual imposta pela multa, em que pese não possa ser excessiva, sob pena de tratar o atraso prolongado da mesma forma que o pequeno atraso, ou razoável, privilegiando o primeiro. Assim, havendo expressa previsão contratual e considerando a possibilidade de fixação da referida multa, deve-se preservar integralmente o princípio do pacta sunt servanda de modo a garantir a execução contratual. Nesse sentido, as decisões transcritas. ‘MULTA - CLÁUSULA PENAL - MULTA COMPENSATÓRIA - LIMTAÇÃO DO ART. 920 DO CÓDIGO CIVIL - PRECEDENTE DA CORTE - 1. Há diferença nítida entre a cláusula penal, pouco importando seja a multa nela prevista moratória ou compensatória, e a multa cominatória, própria para garantir o processo por meio do qual pretende a parte a execução de uma obrigação de fazer ou não fazer. E a diferença é, exatamente, a incidência das regras jurídicas específicas para cada qual. Se o Juiz condena a parte ré ao pagamento de multa prevista na cláusula penal avençada pelas partes, está presente a limitação contida no art. 920 do Código Civil. Se, ao contrário, cuida-se de multa cominatória em obrigação de fazer ou não fazer, decorrente de título judicial, para garantir a efetividade do processo, ou seja, o cumprimento da obrigação, está presente o art. 644 do Código de Processo Civil, com o que não há teto para o valor da cominação 2. Recurso especial conhecido e provido.’ (STJ - REsp 196262 - RJ – 3ª T. – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito - DJU 11.09.2000 - p. 00250) ‘CIVIL - CLÁUSULA PENAL - A cláusula penal não se confunde com as ‘astreintes’ e está sujeita à limitação prevista no artigo 920 do Código Civil. Recurso especial conhecido e provido.’ (STJ – REsp 191959 – (199800762868) – SC – 3ª T. – Rel. p/ acórdão Min. Ari Pargendler – DJU 19.06.2000 – p. 00142) Resta, por fim, prejudicado o apelo interposto pela autora. 162 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Isto posto, opina o Parquet pelo conhecimento e provimento do apelo da CEF.” Realmente, in casu, não incidem as limitações previstas nos arts. 920 e 924 do Código Civil, bem como o disposto nos arts. 9º do Decreto nº 22.626/33 e 52, § 1º, do Código do Consumidor. Ora, no caso em julgamento, em razão da natureza do contrato – contrato administrativo – e de cláusula expressa, aplica-se a Lei nº 8.666/93, em especial o disposto no art. 87, IV e seu § 1º, inclusive quando disciplina relações jurídicas de empresa pública. A respeito, leciona Jessé Torres Pereira Jr., in Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, 5ª edição, Renovar, 2002, pp. 546/7, verbis: “A publicização dos contratos da Administração não significa a proscrição, neles, dos princípios da teoria geral dos contratos, nem das normas reitoras dos contratos tipicamente privados, como se deduz das ressalvas do art. 54 da Lei nº 8.666/93. Mas, sem dúvida, introduz fato novo na concepção que predominava, até a edição do Dec.-Lei nº 2.300/86 e da Constituição de 1988, quanto aos contratos celebráveis pela Administração, qual seja a de que, ao contrário do que antes se sustentava, a só presença, no contrato, de pessoa integrante da Administração Pública, direta ou indireta, ou de empresa sujeita ao controle estatal, já basta para atrair a incidência de princípios e normas especiais de direito público.” E, à p. 550, conclui, verbis: “os contratos das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado devem ser precedidos de licitação, sejam aquelas empresas prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica, e conterão, necessariamente, por determinação da Lei nº 8.666/93, certas cláusulas e condições estranhas ao direito comum, o que a EC nº 19/98 veio reforçar;” Nesse sentido, a jurisprudência da Corte, verbis: “APELAÇÃO CÍVEL Nº 1999.71.00.033370-0/RS RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ APELANTE: PIRES SERVIÇOS DE SEGURANÇA LTDA. ADVOGADO: Alfredo Jorge Achoa Mello e outros Fernando Gheller Morschbacher APELADO: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF ADVOGADO: Fernando Antonio Sá de Azambuja e outros EMENTA ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. NULIDADE. CLÁUSULAS EXORBITANTES. EFEITOS. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 163 1. A Administração Pública atua, por meio dos contratos administrativos, com supremacia de poder, em razão do interesse público, por meio das denominadas ‘cláusulas exorbitantes’, entre as quais figura a aplicação de penalidades contratuais diretamente pela Administração. A respeito leciona Lucia Valle Figueiredo, in Curso de Direito Administrativo, 5ª edição, Malheiros Editores, 2001, p. 481, verbis: ‘Doutra parte, a aplicação de sanções, unilateralmente, pela Administração também não é prerrogativa à disposição do administrador, algo a ser desfrutado pelo administrador. Bem ao contrário. Entendemos a imposição de sanções como dever do administrador. A omissão, em determinados casos, dará ensejo, por exemplo, à ação popular. Aplicar penalidades é dever. Insistimos, não é direito. É traço característico do contrato administrativo. Porém, é dever. Por outro lado, é claro, ao falarmos de sanções, presume-se estar-mos a falar de fiscalização do contrato, obrigatória para a Administração. A Administração não tem o direito de fiscalizar o contrato. Tem o dever de fiscalizá-lo em todas as suas etapas. Em todo o seu cronograma. Não poderá aditar o contrato sem que haja fundamento fático suficiente, que dê ensejo a tal aditamento.’ No mesmo sentido, G. Péquignot, in Théorie Générale Du Contrat Administratif, éditions A. Pédone, Paris, 1945, p. 336 e seguintes; A. de Laubadère, in Traité Théorique et Pratique Des Contrats Administratifs, L.G.D.J., Paris, 1956, T.1º, p. 91 e seguintes. 2. Improvimento da apelação. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 06 de agosto de 2002. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Relator”. Dessa forma, as multas aplicadas têm natureza de sanções administrativas, com previsão na Lei de Licitações e no contrato ajustado entre as partes. Ora, tratando-se de multa administrativa, informada por princípios de direito público, não há que se invocar os dispositivos legais do Código Civil e do Código do Consumidor. Em obra clássica, leciona André de Laubadère, in Traité Théorique et Pratique des Contrats Administratifs, L.G.D.J., Paris, 1956, t. 2, pp. 131/2, verbis: “La théorie des sanctions dans les contrats administratifs est profondément différente de la théorie correspondante du droit civil. 164 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 D’une part, certaines sanctions du droit administratif sont originales en elles-mêmes, n’ont pas d’équivalent en droit civil - de même du reste qu’à 1’inverse, certaines sanctions du droit civil (astreintes) ne sont pas applicables en droit administratif. D’autre part, les sanctions du droit administratif qui trouvent leur équivalent en droit civil n’y connaissent pas le même régime juridique; elles obéissent, dans leur mise en œuvre, à des règles propres au droit public qui les marquent d’une profonde originalité.” Nesse sentido, ainda, o ensinamento de Georges Péquignot, in Théorie Générale du Contrat Administratif, Éditions A. Pédone, Paris, 1945, pp. 441/2, verbis: “Ce droit est incontestablement postulé par 1’idée de service public: il faut que si l’Administration constate des manquements graves de son cocontractant, elle puisse, soit faire exécuter le marché en régie, au cas où 1’interruption du service serait à craindre, soit prononcer la résiliation du marché. On se souvient comment 1’idée de service public a présidé à 1’introduction, d’une manière-génèrale, dans tous les contrats administratifs, d’une sanction, dont on se demandait si elle existait dans l’arsenal de l’concession au cas où les parties ne l’avaient pas expressément formulée, les dommages et intérêts. Toutes ces sanctions sont d’ordre public, en ce sens que le contrat ne peut les écarter: si le contrat pouvait les supprimer toutes, la bonne marche du service risquerait fort d’être compromise. Mais ce que peut faire le contrat, c’est, sans pouvoir ni gêner, ni réduire, ni limiter le droit de sanction, déterminer les conditions, organiser des garanties et des procédures, réglementer les effets et les conséquences pour le cas oú ces sanctions seraient mises en œuvre. De telles clauses, si elles sont stipulées, sont obrigatoires pour l’Administration qui ne peut s’y soustraire.” Trata-se, portanto, de típico contrato administrativo, contrato caracterizado como de adesão, onde incidem as normas de direito público, in casu, da Lei de Licitações. A respeito, assinala Péquignot, à p. 259, verbis: “Le contrat administratif, mème si parfois il ne présente pas les caractères de forme du contrat d’adhésion, nous parait, dans ses éléments de fond, posséder de façon beaucoup plus accusée qu’aucun contrat de droit privé, les traits qui devraient être entrainés par la logique du contrat d’adhésion. (Section 1). Le cocontractant de l’Administration ne fait qu’adhérer aux propositions qui lui sont faites par l’Administration, ou tout se passe, du moins, comme s’il ne faisait qu’y adhérer.” Em suas razões de apelo, a fls. 214/7, anotou, com acerto, a Procuradoria da CEF, verbis: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 165 “Cumpre ressaltar inicialmente, que o contrato sub judice é um ato jurídico perfeito, celebrado sob o mando da autonomia da vontade, da obrigatoriedade da convenção e da boa-fé, preenchendo os requisitos do art. 82 do Código Civil pátrio, ou seja: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. O acordo de vontades assim celebrado perfaz verdadeira norma jurídica - pacta sunt servanda - o contrato é lei entre as partes. Tão imperativa é a norma jurídica em que se traduz a convenção, que não é lícito ao Poder Judiciário alterá-la, ou impedir a execução, mesmo sob a alegação da existência de condições muitíssimo desvantajosas quando da contratação. O ilustre Silvio Rodrigues, in Direito Civil - Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, vol. 3, p. 17, leciona: ‘O princípio da força vinculante das convenções consagra a idéia de que o contrato, uma vez obedecidos os requisitos legais, se torna obrigatório entre as partes, que dele não se podem desligar senão por outra avença, em tal sentido. Isto é, o contrato vai constituir uma espécie de lei privada entre as partes, adquirindo força vinculante igual à do preceito legislativo, pois vem munido de uma sanção que decorre da norma legal, representada pela possibilidade de execução patrimonial do devedor. Pacta sunt servanda!’ (grifo nosso) Desse raciocínio, a conclusão de que não é lícita qualquer alteração contratual, ainda que a pretexto de tornar mais eqüitativas as condições estipuladas. O contrato faz Lei entre as partes, estas têm que cumprir o contrato nos termos em que o mesmo foi assinado. O contrato faz lei entre as partes, não podendo se escusar de ser cumprido, por nenhuma das partes. Diante do descrito, errou o MM. Juízo de primeiro grau ao modificar o valor das multas de mora impostas no contrato que foi assinado por ambas as partes, tendo concordância tanto do Autor como da ré. As cláusulas de tal contrato não podem, e não têm razão de serem modificadas. O pagamento feito a título de multa aplicada pela demora dos serviços prestados, não foi estipulado unilateralmente por parte da CAIXA, tal aplicabilidade desta penalidade está inserida claramente no contrato, tendo sido lido, aceito e assinado por ambas as partes, após regular processo de licitação do serviço. A multa foi aplicada justamente, nos exatos termos do contrato assinado pelo Autor. A penalidade seria aplicada se houvesse demora na prestação. Desta forma, não foi a CAIXA quem deu causa à multa aplicada, e sim a empresa contratada ao demorar na prestação do serviço. A multa estava prevista e foi aplicada justamente, não podendo ser tal cláusula revisada, pois o contrato faz lei entre as partes e se perfectibilizou, não carecendo de reformas. Tal multa foi inserida no contrato objetivando a não demora da modernização dos elevadores da CAIXA. Os elevadores fazem parte da segurança dos prédios da CAIXA. O edifício Que- 166 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 rência, em especial, com 12 andares, não pode ficar com os elevadores em desuso, visto que há grande circulação de pessoas em ambos os prédios, todos os dias, além de grande quantidade de materiais que precisam ser transportados. A demora na execução dos serviços trouxe diversos transtornos, situações difíceis e despesas para a demandada. O juiz ao fundamentar sua decisão, o fez com aplicação do art. 920 do CC, porém, Excelências, tal dispositivo não se aplica ao caso em questão, pois o mesmo dispõe: ‘O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal’. Como se verifica no exame das Cláusulas do contrato, a multa seria de 0,3% ao dia, não excedendo, de forma alguma, o valor da obrigação principal. Assim, Excelências, se a empresa atrasasse apenas poucos dias, o valor da multa seria irrisório, porém o atraso foi demasiadamente grande. Ademais, não pode ser imposto, neste caso, a incidência do art. 920 do Código Civil, visto que no contrato, na cláusula décima, parágrafo décimo segundo, está expresso que a sanção aplicada obedecerá ao disposto no art. 87, IV, da Lei nº 8.666/93. No próprio contrato, na cláusula décima, está disposto o seguinte: ‘Pela inexecução total ou parcial do contrato, a CONTRATADA sujeitar-se-á às seguintes sanções, sem prejuízo das demais cominações aplicáveis: I - advertência; II - multa; III - suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a CEF por prazo de até 02 (dois) anos; IV- declaração de idoneidade;’ (grifei) Assim, claro está que a multa foi licitamente imposta ao caso, visto que tal disposição acima citada encontra-se inserida expressamente no contrato juntado pelo Autor. E mais, tal contrato é regido pela Lei das Licitações, que estipula ainda, em seu art. 87: ‘§ 1º: Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.’ Desta forma, não há como ser reduzida pela metade a multa contratada e nem ser aplicado ao caso o art. 920 do CCB, visto que não há nenhum suporte para que seja feita tal reforma, uma vez que o contrato foi perfeitamente assinado e aceito, estando nele inserido que a incidência seria da Lei das Licitações, e nunca do Código Civil. Desta forma, a legislação que deverá predominar neste caso é especificamente a Lei das Licitações, conforme previsto no contrato.” E, a fls. 219/220, acrescenta, verbis: “Foi prestada pelo Autor uma quantia a título de caução, conforme valor especificado nos contratos, nas fls. 50 e 59, nos valores respectivos de R$ 4.385,17 e 16.842,67. Assim, estes foram os valores prestados a título de caução para a modernização dos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 167 elevadores dos dois prédios da CAIXA, totalizando R$ 21.227,84. Porém, foi prestada caução de dois outros contratos que ainda estão em andamento, que não podem ser retirados da conta, visto que o contrato ainda não finalizou-se. Segue abaixo uma planilha explicativa: Conta caução sob conta nº 428.008.606.069-5, com saldo nesta data de R$ 25.574,10, em nome de Elevadores Otis Ltda., oriunda da licitação tipo Tomada de Preço 33/97, para quatro contratações conforme abaixo: Processo objeto valor inicial valor da caução corrigido n/data 18.5112.550/96modernização elevadores Ed.Barão Cahy 18.5112.550/96modernização elevadores Ed.Querência 18.2676.110/98manutenção elevadores Ed.Querência 18.2676.111/98manut.elev.escada/Ed.B.Cahy/Ag.O.Rocha R$4.385,71 R$16.842,67 R$544,08 R$399,18 R$5.058,74 R$19.427,34 R$627,58 R$460,44 Contudo, as contratações sob processos nos 18.2676.110/98 e 18.2676.111/98, permanecem em vigor, e dessa forma, salvo melhor entendimento, não poderão ter seus valores caucionados liberados. Deste modo, acaso mantida a r. decisão, somente poderão ser liberados os valores referentes aos serviços de modernização dos elevadores do Ed. Barão do Cahy e do Ed. Querência. Merecendo, assim, reforma a decisão acima descrita.” Portanto, impõe-se a reforma da r. sentença, julgando-se improcedente a ação. Por esses motivos, conheço da apelação da CEF e dou-lhe provimento, julgando improcedente a ação, condenando a parte autora no pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor atualizado da causa, prejudicado o exame da apelação da autora. É o meu voto. VOTO- VISTA A Exma. Sra. Desa. Federal Marga Barth Tessler: Com a vênia do Eminente Relator, vou divergir para dar provimento ao apelo da empresa, prejudicado o apelo da CEF. A execução dos contratos em exame foi peculiar, houve atraso na entrega do objeto da licitação, mas o contrato foi integralmente executado. Os elevadores foram modernizados nos dois edifícios da CEF. O contrato previsto para 540 dias foi executado em 775 dias. Somente a mora alia168 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 da à total inexecução poderia ensejar a multa máxima. É incontroverso que há multas superiores ao total das parcelas do pagamento, o que em princípio não pode ser tolerado. É de ser aplicado o artigo 9º do Decreto nº 22.626/33 – Lei da Usura –, no sentido de que a multa não pode ser superior a 10% do valor da dívida. Temos aplicado a limitação dos juros à taxa de 12% ao ano, e a questão é a mesma aqui, pois a lei da usura não se restringe a ser aplicada aos contratos de mútuo, conforme precedentes desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça, assim ementados: “CLÁUSULA PENAL. LIMITE. A cláusula penal de 100% sobre o valor da dívida pode ser reduzida a 10% (art. 9º do Dec. 22.626/33; art. 924 do CCivil), quando se trata de descumprimento parcial. A regra do art. 9o do Decreto 22.623/33 não contém nenhuma limitação quanto a incidir apenas sobre os contratos de mútuo. Recurso conhecido e em parte provido”. (REsp nº 229776/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a Turma, DJ de 17.12.99, p. 381) “ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. EFICÁCIA DECLARATÓRIA. TERMOS DO PEDIDO. ART. 128 DO CPC. MULTA ABUSIVA. CLÁUSULA PENAL. APLICAÇÃO DA LEI CIVIL. DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA. ART. 54 DA LEI 8.666/93. ART. 9º DO DECRETO Nº 22.626/33. 1. Nada obsta a cumulação de pedidos declaratório e condenatório em uma única ação, sendo irrelevante para a identificação da carga eficacial da sentença a denominação atribuída à demanda, desde que tenha sido deduzida de modo claro e inequívoco a pretensão em causa, que servirá de referencial para a definição do conteúdo do próprio ato sentencial. O que não é admissível é a parte querer agregar ao pedido declaratório uma eficácia que lhe é estranha, por criar a possibilidade de execução, depois de processado o feito, extraindo da leitura da petição inicial o que ali não se contém. 2. Regendo-se o contrato em questão pela Lei nº 8.666/93, cujo art. 54 dispõe que ‘os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado’, e tratando-se de pena imposta pela inadimplência de um dos contratantes (arts. 916 a 921 do Código Civil), com razão o magistrado que aplicou a norma contida no art. 9º do Decreto nº 22.626/33, a cuja observância a Administração está adstrita, por força da legalidade (art. 5º, II, c/c art. 37, caput, da Constituição da República)”. (AC nº 1999.04.01.005075-5/RS, TRF-4ª Região, 3ª Turma, Rel. Juíza Vivian Josete Pantaleão Caminha, julg. em 28.09.2000, DJU de 01.11.2000, p. 262) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 169 Assim, dou provimento parcial ao apelo da parte autora, reduzindo as multas ao patamar de 10% (dez por cento) no valor de cada etapa, corrigidos monetariamente os valores e acrescidos de juros legais, prejudicado o apelo da CEF. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.71.10.002992-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti Apelantes: Paulo Silveira Junior e outros Advogados: Drs. João Batista Almeida Ribeiro e outro Apelada: Universidade Federal de Pelotas - UFPEL Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos EMENTA Servidor público. Lei nº 9.527/97. Lei nº 9.624/98. MP nº 2.22545/2001. Décimos. Transformação em VPNI. Reajuste. 1. O art. 3º da MP nº 2.225-45/2001 transformou em vantagem pessoal nominalmente identificada as parcelas de décimos de funções até então já integradas à remuneração dos servidores. 2. Na forma de décimos, as parcelas incorporadas encontram-se atreladas à remuneração dos respectivos cargos em comissão e funções gratificadas, de forma que havendo elevação na retribuição das funções comissionadas automaticamente devem ser reajustados os décimos, na mesma proporção. 3. Constituindo o Adicional de Gestão Educacional (AGE) em aumento da remuneração dos cargos de direção e funções gratificadas, deverá o mesmo incidir sobre a vantagem dos décimos incorporados. 170 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação dos impetrantes, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 15 de outubro de 2003. Des. Federal Valdemar Capeletti, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Paulo Silveira Junior e outros (76), servidores públicos federais ativos e inativos, vinculados à Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), visando à concessão de segurança, fundada no justo receio de prática de ato por parte da Reitoria daquela Universidade, tendente à redução ou alteração de parcelas incorporados pelos mesmos, a título de “décimos”. A alegada redução decorreria da implementação, no sistema informatizado daquela Instituição, a partir de julho/2002, do chamado módulo PIF (Parcela Incorporada de Função), destinado a uniformizar procedimentos para pagamentos da Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI), de que trata o art. 62-A da Lei nº 8.112/90, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 04.09.01, em cumprimento à orientação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG). Após discorrerem sobre o trato legislativo dado à matéria, argumentam os impetrantes que, nos termos do parecer AGU/GM nº 13, de 13.12.00, a partir da Lei nº 9.624, de 02.04.98, em razão do restabelecimento das parcelas incorporadas a título de décimos, inexistiriam as vantagens pessoais de que trata a Lei nº 9.527/97, de tal sorte que eliminada a barreira de reajuste exclusivo sobre as mesmas, podendo, assim, as atualizações nos valores dos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas (FG), posteriores à vigência da referida Lei e até a edição da MP nº 2.225, de 04.09.01, serem estendidas às incorporações de décimos, quer em benefício de ativos ou inativos. Mais especificamente, defendem a possibilidade de atualização de seus décimos incorporados com a percepção do Adicional de Gestão Educacional (AGE), criado pela Lei nº 9.640, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 171 de 25.05.98, posterior, portanto, à Lei nº 9.624/98, procedimento que a UFPEL até vinha adotando e que colide com a sistemática do módulo PIF, a ser implantada. Às fls. 228/233, concedida a liminar requerida, tendo a UFPEL interposto agravo de instrumento, cujo seguimento restou negado, porque manifestamente prejudicado em razão da prolação da sentença. Às fls. 294/306, parecer do Ministério Público, opinando pela denegação da segurança. Em sentença, às fls. 305/310, o MM. Juiz Federal Substituto julgou improcedente a ação, denegando a segurança, entendendo que, nos termos do art. 62-A da Lei nº 8.112/90, o qual expressamente transformou a vantagem dos quintos/décimos incorporados em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada, não há vínculo entre as vantagens incorporadas e o exercício de função, de forma que não mais seria possível qualquer estabelecimento de liame entre os quintos/décimos e o Adicional de Gestão Educacional, esse diretamente associado ao exercício da função. Sustentou não haver violação aos princípios da isonomia, do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da irredutibilidade salarial, ressaltando que a Administração estaria agindo nos estritos limites da legalidade, de modo que não se pode falar em ato abusivo praticado pela autoridade impetrada. Irresignados, os autores apelaram. (fls. 328/341) Com as contra-razões de fls. 362/386, e parecer do Ministério Público Federal, às fls. 390/391, opinando pelo desprovimento da apelação, subiram os autos a este Tribunal. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Discute-se, no presente mandamus, acerca da possibilidade de extensão, a partir da Lei nº 9.624, de 02.04.98, e até a edição da MP nº 2.225, de 04.09.01, dos reajustes conferidos aos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas (FG) existentes no quadro da UFPEL, às parcelas incorporadas de quintos/décimos pelos servidores ativos e inativos vinculados àquela mesma Instituição de Ensino. Sustentam os impetrantes que, muito embora a Lei nº 9.527/97 tenha 172 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 extinto a possibilidade de incorporação da retribuição pelo exercício de cargo em comissão ou função comissionada, passando a vantagem incorporada a constituir Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI), sujeita exclusivamente à atualização decorrente de revisão geral de remuneração dos servidores públicos federais, a Lei nº 9.624/98 voltou a tratar do assunto, prevendo a possibilidade de incorporação/ atualização da vantagem dos quintos/décimos, não mencionando a sua transformação em VPNI, o que somente veio a se dar pela MP nº 2.22545/2001, a qual estabeleceu que as parcelas quíntuplas/decimais a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911/84 e o art. 3º da Lei nº 9.624/98 ficam transformadas em VPNI. Por outro lado, a parte ré investe na argumentação de que o Adicional de Gestão Educacional (AGE), criado pela Lei nº 9.640/98, devido aos ocupantes dos cargos de direção ou função gratificada, não guarda nenhum vínculo com o pretérito direito à incorporação dos quintos/décimos, restringindo-se à contemporaneidade do exercício, de forma que a UFPEL, a par das disposições legais, apenas fez cumprir a lei. Ademais, sendo Fundação Pública, vinculada ao Ministério da Educação, depende das diretrizes operacionais que emanam do Poder Executivo. Estamos diante, pois, mais uma vez, de questão relacionada à famigerada vantagem dos quintos/décimos a que faziam jus os servidores públicos federais, presentemente transformada em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI). Ainda que complexa a matéria, tenho por despiciendo discorrer sobre a evolução da legislação atinente à mesma, pontuando que se está a tratar na presente ação da possibilidade de reajustar a vantagem nos mesmos índices conferidos aos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas (FG) existentes no quadro da UFPEL, no período que medeia a edição da Lei nº 9.624/98 até a edição da MP nº 2.225-45/2001, sustentando os impetrantes que nesse interregno haveria de se considerar tratar-se de vantagem dos “décimos incorporados” e não de VPNI. Registro a existência de julgados nesta Corte, por suas 3ª e 4ª Turmas, baseados em jurisprudência dos Tribunais Superiores, acerca da alteração de critério de reajustamento da vantagem dos quintos/décimos a partir da Lei nº 9.527/97, nos quais se firmou o entendimento no sentido de inexistir qualquer ofensa a direito adquirido às modificações operadas R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 173 pela referida Lei, haja vista que o servidor público não tem direito adquirido a regime jurídico. Assim, e não negam os impetrantes, indiscutível que a VPNI, originária de quintos/décimos incorporados, está sujeita, hoje, exclusivamente à atualização decorrente da revisão geral da remuneração dos servidores públicos federais, critério que guarda conformidade com a lei. No caso vertente, o direito que se busca assegurar é o de reajuste da vantagem pelo critério anterior ao estabelecido na Lei nº 9.527/97, em dado período, no qual se defende que restabelecida a vantagem dos décimos pela Lei nº 9.624/98. Vamos aos diplomas legais que estariam dando margem a tal exegese, verbis: Lei nº 9.527/97 “Art. 15 Fica extinta a incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza Especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11 de julho de 1994. § 1º A importância paga em razão da incorporação a que se refere este artigo passa a constituir, a partir de 11 de novembro de 1997, vantagem pessoal nominalmente identificada, sujeita exclusivamente à atualização decorrente da revisão geral da remuneração dos servidores públicos federais. § 2º É assegurado o direito à incorporação ou atualização de parcela ao servidor que, em 11 de novembro de 1997, tiver cumprido todos os requisitos legais para a concessão ou atualização a ela referente.” Lei nº 9.624/98 “Art. 2º Serão consideradas transformadas em décimos, a partir de 1º de novembro de 1995 e até 10 de novembro de 1997, as parcelas incorporadas à remuneração, a título de quintos, observado o limite máximo de dez décimos. Parágrafo único. A transformação de que trata este artigo dar-se-á mediante a divisão de cada uma das parcelas referentes aos quintos em duas parcelas de décimos de igual valor. Art. 3º Serão concedidas ou atualizadas as parcelas de quintos a que o servidor faria jus no período compreendido entre 19 de janeiro de 1995 e a data de publicação desta Lei, mas não incorporados em decorrência das normas à época vigentes, observados os critérios: I - estabelecidos na Lei nº 8.911, de 1994, na redação original, para aqueles servidores que completaram o interstício entre 19 de janeiro de 1995 e 28 de fevereiro de 1995; II - estabelecidos pela Lei nº 8.911, de 1994, com a redação dada por esta Lei, para 174 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 o cálculo dos décimos, para os servidores completaram o interstício entre 1º de março e 26 de outubro de 1995. Parágrafo único. Ao servidor que completou o interstício a partir de 27 de outubro de 1995 é assegurada a incorporação de décimo nos termos da Lei nº 8.911, de 194, com a redação dada por esta Lei, com efeitos financeiros a partir da data em que completou o interstício. (...) Art. 5º Fica resguardado o direito à percepção dos décimos já incorporados, bem como o cômputo do tempo de serviço residual para a concessão da próxima parcela, até 10 de novembro de 1997, observando-se o prazo exigido para a concessão da primeira fração estabelecido pela legislação vigente à época.” MP nº 2.225-45 “Art. 3º. Fica acrescido à Lei nº 8.112, de 1990, o artigo 62-A, com a seguinte redação: Art. 62-A. Fica transformada em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada – VPNI a incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11 de julho de 1994, e o art. 3º da Lei nº 9.624, de 2 de abril de 1998. Parágrafo único. A VPNI de que trata o caput deste artigo somente estará sujeita às revisões gerais de remuneração dos servidores públicos federais.” Cobra relevo salientar que a Lei nº 9.624/98 transformou as parcelas incorporadas em décimos, mas silenciou quanto à conversão das mesmas em VPNI. Por outro lado, forçoso reconhecer que o art. 15, § 1º, da Lei nº 9.527/97 e o art. 3º da MP nº 2.225-45 tratam da transformação em VPNI da incorporação da vantagem dos quintos/décimos. Ora, tendo a Lei posterior, no caso o art. 3º da MP nº 2.225-45, regulado inteiramente a matéria de que trata a Lei anterior, no caso o § 1º do art. 15 da Lei nº 9.527/97, irrefutável ter havido a revogação tácita da disposição anterior, ou seja, do § 1º do art. 15 da Lei nº 9.527/97. Conforme prevê a mencionada MP, fica transformada em VPNI a incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza Especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11.07.94, e o art. 3º da Lei nº 9.624, de 02.04.98, daí decorrendo, logicamente, que até então não se havia dado tal transformação, de forma que possível a R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 175 atualização da vantagem dos décimos, observados os mesmos reajustes praticados para os cargos em comissão e funções gratificadas que lhes deram origem, desde a edição da Lei nº 9.624/98 até a véspera da vigência da MP nº 2.225-45, ou seja, até 04.09.01, sendo que a partir daí, aí sim, na forma do parágrafo único do art. 3º da MP supra, passariam a sofrer, tão-somente, os reajustes gerais de remuneração dos servidores públicos. Consigno que tal entendimento não se deve estender ao regime de incorporação, ponto que não é debate nesta ação. O juízo aqui firmado tem lugar na hipótese de designação das parcelas incorporadas, onde vejo que outra interpretação não pode ser dada. Certo é que a MP nº 2.225-45 atingiu a Lei nº 9.527/97 no que respeita à transformação da vantagem dos quintos/décimos em VPNI, derrogando, assim, aquela. A corroborar o entendimento de que se estaria a tratar de “décimos incorporados” e não de VPNI, o art. 15 da Lei nº 9.624/98, disciplinando, com efeitos ex nunc, os limites remuneratórios do funcionalismo, admite, expressamente, a existência, daí por diante, de décimos incorporados na remuneração dos servidores, a saber: “Art. 15. Para efeito do cálculo do limite máximo estabelecido pelo art. 3º da Lei nº 8.852, de 4 de fevereiro de 1994, excluem-se da remuneração as parcelas relativas à diferença de vencimentos nominalmente identificada decorrente de enquadramento e os décimos incorporados.” Este, aliás, o entendimento consubstanciado nos pareceres da Advocacia-Geral da União - AGU/GQ-208, de 16.12.99, e AGU/GM-13, de 13.12.00 -, e, mais recentemente, na decisão nº 732/2003-TCU/Plenário. Oportuno transcrever excerto do voto do Relator Ministro Guilherme Palmeira, constante da mencionada Decisão da Corte de Contas, no que toca ao ponto em questão: “(...) ... até a véspera da edição da MP nº 2.225-45, tinha-se o seguinte quadro: a) servidores que tempestivamente haviam preenchido os requisitos legais pertinentes tinham integrados à sua remuneração décimos de funções gratificadas anteriormente exercidas; b) encontrava-se extinto o regime de incorporação de novas parcelas. Esse o contexto em que surgiu a Medida Provisória. Em tais circunstâncias, fácil perceber que a norma nada mais pretendeu do que aquilo que literalmente expressou, ou seja, transformar as parcelas de décimos em VPNI. 176 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (...)” Assim considerando, tenho que quaisquer reajustes incidentes sobre o valor dos cargos de direção e funções gratificadas até a edição da MP nº 2.225-45 deverão ser estendidos à vantagem dos décimos incorporados. In casu, o Adicional de Gestão Educacional (AGE), instituído pela Lei nº 9.640/98, devido aos ocupantes de Cargos de Direção (CD) ou Funções Gratificadas (FG), à medida que veio a ser absorvido pelos valores dos Cargos de Direção fixados pela MP nº 2.229-43, de 06.09.01, veio a modificar o padrão remuneratório desses Cargos, fixando-os em parcela única, pelo que, ao menos em relação a esses, se incorporou definitivamente aos respectivos padrões remuneratórios, não sendo mais pago como um valor à parte. Assim, conquanto a Lei nº 9.624/98 tenha restabelecido a possibilidade de incorporação de décimos pelo exercício de cargo ou função comissionados, sendo omissa com relação à transformação desses em VPNI, automaticamente autorizou a adoção do critério de reajuste da vantagem praticado anteriormente à sua conversão em VPNI, o que veio a se dar somente em 05.09.01. Sendo assim, devem os aumentos nos valores dos Cargos de Direção (CD) e Funções Gratificadas (FG) das Instituições Federais de Ensino, ocorridos no período que vai da vigência da Lei nº 9.624/98 até a vigência da MP nº 2.225-45, ser repassados para a base de cálculo da vantagem dos décimos incorporados pelos servidores, quer ativos ou inativos. Ante o exposto, dou provimento à apelação, dando por prequestionados os dispositivos relacionados às fls. 385/386 nas contra-razões da União, para o fim de interposição dos recursos cabíveis às instâncias superiores. É como voto. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 177 APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2003.04.01.023448-3/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti Apelante: Carvílio da Silveira Advogado: Dr. Renato Alberto Nielsen Kanayama Apelado: Ministério Público Advogado: Dr. Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle Interessada: Maria José Dutra Advogado: Dr. Osmann de Oliveira Interessado: Luimar Carlos Kavinski Advogados: Drs. Mauricio Kavinski e outro Interessado: Paulo Sérgio Growoski Fontoura Advogado: Dr. Juliano Locatelli Santos Interessado: Alziro de Amorim Advogado: Dr. Osmann de Oliveira EMENTA Administrativo. Servidores federais. Improbidade. Lei nº 8.429/92. Ação obstativa de licitude de concurso público. Conduta culposa. Não caracterização do tipo. Improbidade afastada. 1. As normas constitucionais e infraconstitucionais, em especial a Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.429/92, conferem, de forma clara, competência ao Ministério Público para a propositura de ação civil de improbidade administrativa. 2. A improbidade administrativa, enquanto delito disciplinar, busca como elemento subjetivo de sua configuração que haja, no mínimo, a voluntariedade do agente público, não se contemporizando com a mera conduta culposa. 3. Se a ação obstativa da licitude de concurso público é meramente culposa, não terá ocorrido a infração disciplinar em destaque. 4. Proposta a ação por prática de ato de improbidade que atenta contra os princípios da Administração Pública, na forma do art. 11 da Lei nº 8.429/92, e constatada a inocorrência de dolo, incabível voltar-se para as condutas ao tipo do art. 10 da mesma Lei, as quais admitem a forma culposa, a bem de aplicar as sanções constantes do art. 12 da Lei de Improbidade, se sequer admitido o dano ao erário pela pessoa jurídica 178 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 interessada. 5. Configurado o litisconsórcio necessário-unitário, a lide deve ser decidida de maneira uniforme para todos os litisconsortes, de modo que o recurso interposto por um dos réus a todos aproveita, a teor do disposto no art. 509 do CPC. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação e negar provimento ao agravo retido, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2004. Des. Federal Valdemar Capeletti, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Trata-se de ação civil de improbidade administrativa, proposta pelo Ministério Público Federal, visando à responsabilização dos réus Carvílio da Silveira, Luimar Carlos Kavinski, Alziro Amorim, Maria José Dutra e Paulo Sérgio Growoski Fontoura, todos professores da Universidade Federal do Paraná, Departamento de Medicina Veterinária, os três primeiros aposentados, por atos de improbidade administrativa, consubstanciados na frustração da licitude de Concurso Público, nos termos do art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92. Conforme consta dos autos, os réus integraram Comissão Julgadora de Concurso Público de Provas e Títulos para a carreira do Magistério Superior, na área do conhecimento da Medicina Veterinária, promovido por aquela instituição de ensino, sendo que o resultado final do aludido certame indicou como primeira classificada a candidata Silvana Krychack e em 2º lugar o candidato Marcus Vinícius Ferrari. Irresignado, o 2º colocado requereu, junto à Universidade, a reavaliação dos resultados do Concurso e, na seqüência, a anulação do mesmo, alegando ter havido alteração das notas que já haviam sido atribuídas aos dois candidatos e conseqüente inversão da classificação final, em seu prejuízo, bem assim por não ter sido observada, na prova de títulos, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 179 a “tabela de valoração de títulos”, conforme previsto na Resolução nº 77/94, do Conselho de Ensino e Pesquisa. Diante das denúncias apresentadas, a UFPR instaurou processo administrativo (cópia às fls. 26/89) com o fito de apurar as irregularidades denunciadas, tendo, ao final, decidido pela anulação do Concurso Público em questão e pela instauração de sindicância para apuração das irregularidades e tomada de ações administrativas cabíveis (fls. 127/134, 167/170 e 237/243). Posteriormente, uma vez instada pelo Ministério Público Federal, determinou a abertura de processo administrativo-disciplinar (fl. 260), a fim de apurar a responsabilidade dos servidores envolvidos, em face do disposto no art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92, sendo que, nos termos da certidão de fl. 255, dito processo administrativo encontra-se em andamento, não tendo sido apresentado relatório final. Consta também dos autos que o assunto foi objeto de Inquérito Policial, tendo o mesmo sido arquivado, a pedido do Ministério Público Federal, com a ressalva do art. 18 do CPP, conforme certidão à fl. 545. Em seguimento, forte nos artigos 37, caput, 127 e 129, inciso III, da Lei Maior, bem como no art. 5º, inciso I, alínea h, e inciso III, alínea b, da Lei Complementar nº 75/93, promoveu o Ministério Público, diante das denúncias feitas pelo candidato Marcus Vinícius Ferrari, a presente ação civil pública, requerendo a aplicação aos réus das condenações previstas no inciso III do art. 12 da Lei nº 8.429/92. Citados, os réus apresentaram contestação, às fls. 366/439, alegando, preliminarmente, a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público, posto que cabível a intervenção do mesmo somente nos casos de lesão ao erário, ou, ainda, somente na hipótese de inércia da autoridade administrativa. O réu Carvílio da Silveira requereu o indeferimento da inicial por faltar-lhe pedido, já que se encontra aposentado. No mérito, pedem todos a improcedência da ação. Numa eventual condenação, pede o reú Paulo Sérgio G. Fontoura seja a pena aplicada com base nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Às fls. 450/457, o Ministério Público apresentou réplica, sustentando sua legitimidade ativa, por força dos arts. 127, 129, II e III, da atual Constituição Federal, bem como em face dos arts. 109/117 da Lei nº 7.347/85, com as alterações da Lei nº 8.078/90, além do disposto no art. 6º, inciso VII, letras a e b, e inciso XIV, letra f, da LC nº 75/93. No mérito, requer 180 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 seja julgada procedente a pretensão deduzida, argumentando que os atos praticados pelos réus revelam-se de todo incompatíveis com os princípios da Administração Pública, tendo os mesmos, ao manipularem os resultados das provas, frustrado a licitude do concurso, constituindo tal prática ato de improbidade, nos termos do art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92. Em atenção ao despacho de fl. 463, a União Federal, à fl. 465, manifestou-se dizendo não possuir qualquer interesse na causa. Do mesmo modo, a UFPR, à fl. 467, manifesta não ter interesse em integrar a presente lide, em razão de não ter sido concluído o processo administrativo-disciplinar instaurado por aquela Universidade. Às fls. 469/471, o Juízo de 1º Grau reconheceu a legitimidade ativa do Ministério Público, entendendo relevante a produção de prova testemunhal dos candidatos do concurso, requerida por aquele Parquet, bem assim necessária a oitiva dos réus, cujo depoimento determinou de ofício, com fulcro no art. 130 do CPC, designando data e horário para Audiência de Instrução e Julgamento, nos termos do art. 450 do CPC. Da referida decisão, interpôs Agravo de Instrumento o réu Luimar Carlos Kavinski, tendo esse sido recebido e retido nos autos, mantendo-se a decisão agravada. Às fls. 547/548, o Ministério Público Federal apresentou memorial, consoante dispõe o art. 454, § 3º, do CPC, aduzindo que, diante de todo o conjunto probatório, resta indubitavelmente comprovado que os atos praticados pelos réus enquadram-se com absoluta precisão no rol de atos considerados como ímprobos pela Lei nº 8.429/92, postulando, assim, pela procedência do feito, reconhecendo-se judicialmente as irregularidades praticadas, aplicando-se aos réus as condenações previstas no inciso III do art 12 da Lei nº 8.429/92. Às fls. 552/563, constam memoriais apresentados pelos réus Carvílio da Silveira, Maria José Dutra e Alziro Amorim. Alegam que inexiste prova de improbidade, bem como fato jurídico para controle em Juízo, uma vez que não há lei vedando que membros da banca se valham de notas ou anotações e mesmo até revejam-nas, tornando-as líquidas e certas ao lançarem-nas como ato definitivo e final; que, entretanto, acaso se entender que procede o pedido, não alcançará ele jamais o réu Carvílio da Silveira, que já não exerce cargo ou função, uma vez que sua aposentadoria não poderá ser cassada; que descabe a possibilidade de R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 181 aplicação conjunta das penas em bloco, devendo observar-se os princípios gerais da proporcionalidade e da razoabilidade, ínsitos à jurisdição; que não é de ser colhida a alegação de que deverão os réus ressarcir o erário pelas despesas efetivadas com o Concurso anulado, porque nenhum dos membros da Comissão agiu em nome próprio e nem tiveram por objetivo causar danos à Fazenda. Às fls. 565/579, a sentença do Juiz de 1º Grau julgou parcialmente procedente o pedido, entendendo que a única conduta irregular dos membros da banca, objetivamente comprovada, foi a de não haverem lavrado ata indicando a necessidade de alteração das notas anteriormente atribuídas aos candidatos na prova didática, aplicando aos réus a sanção civil de ressarcimento integral aos cofres da União dos prejuízos com a realização do concurso anulado, a serem apurados em liquidação de sentença, ocasião em que a UFPR deverá indicá-los. Custas pelos réus. Sem honorários, devido a sucumbência recíproca. Às fls. 581/589, apresenta o réu Carvílio da Silveira recurso de apelação, requerendo, preliminarmente, seja julgado procedente o Agravo interposto, que aproveita ao apelante, declarando o apelado parte ilegítima. No mérito, pede a improcedência da ação, assinalando tratar-se de ação civil de forte conteúdo penal, e, uma vez não tendo sido reconhecido o tipo, impor-se-ia a absolvição. Aduz, ademais, que somente possível efeito civil, se condenação penal houvesse, inexistindo, sequer, interesse da vítima (UFPR). Contra-razões do Ministério Público apresentadas às fls. 591/593, sustentando a legitimidade daquele Órgão para a propositura da ação e, no mérito, assinalando que a Lei nº 8.429/92 não tem natureza penal, prevendo, sim, sanções negativas de natureza administrativa, às quais se aplicam princípios similares aos de Direito Penal, mas com eles inconfundíveis, pois que adaptados às peculiaridades próprias do Direito Administrativo Sancionador. Subiram os autos ao Tribunal. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Valdemar Capeletti: Cuida-se de ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal contra 5 (cinco) professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), 182 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 na condição de componentes de Banca Examinadora de Concurso Público de Provas e Títulos para a carreira do Magistério Superior daquela Instituição, com base nas disposições constantes da Lei nº 8.429/92. Segundo o Autor, teriam os réus, quando dos procedimentos relacionados à aferição e à divulgação dos resultados do aludido certame, praticado atos de improbidade administrativa atentatórios aos princípios da Administração Pública, de modo a frustrar a licitude de concurso público, conforme previsto no art. 11, inciso V, da supracitada Lei. A MM. Juíza Federal julgou parcialmente procedente o pedido, entendendo que houve conduta negligente por parte dos membros da banca, aplicando aos réus a sanção civil de ressarcimento integral aos cofres da União dos prejuízos com a realização do concurso anulado. Apelou da sentença, unicamente, o réu Carvílio da Silveira. Requer, preliminarmente, seja julgado procedente o Agravo de Instrumento interposto, declarando o apelado parte ilegítima. No mérito, pede a improcedência da ação. No que respeita a preliminar de ilegitimidade ativa do MP Sustenta o apelante que, conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública é com o fim de proteger e cuidar de interesses sociais e difusos ou coletivos, e não patrocinar direitos individuais privados e disponíveis, como o que se apresenta na espécie, sendo que o interesse difuso, nas exatas observações do jurista Celso Bastos, tem como característica primordial a sua descoincidência com o interesse de uma determinada pessoa, abrangendo, na realidade, toda uma categoria de indivíduos unificados por possuírem um denominador fático qualquer em comum. O Órgão Ministerial, de sua parte, alude ser competente para a propositura da presente ação, por força do próprio texto constitucional - arts. 127, 129, II e III, da atual Constituição Federal - bem assim com arrimo na legislação infraconstitucional - arts. 109/117 da Lei nº 7.347/85, com as alterações da Lei nº 8.078/90, além do disposto no art. 6º, inciso VII, letras a e b, e inciso XIV, letra f, da LC nº 75/93. A teor das referidas disposições, as funções institucionais do Ministério Público, relacionadas à defesa da ordem jurídica, do regime demoR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 183 crático e dos interesses sociais e individuais disponíveis, lhe conferem poder para ajuizar ação civil pública, inclusive, como in casu, quanto à defesa da probidade administrativa. De outra parte, a Lei de Improbidade, em seu art. 17, trata da legitimação ad causam ativa: A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. Complementa tal regra a previsão contida no § 2º do próprio art. 17, que autoriza a Fazenda Pública a promover as ações necessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público. Não há como se negar, assim, que, em virtude do status constitucional alcançado pela ação civil pública, consectário inafastável ao também inafastável desempenho das relevantes atribuições ministeriais, a obrigatoriedade de tutela do patrimônio público, sem prejuízo da dos demais interessados-legitimados (pessoa jurídica interessada), alcança o Parquet. Não vejo dúvida, portanto, quanto à legitimidade do Ministério Público para a propositura da presente ação, desde que entendida a tutela do patrimônio público como um interesse difuso. A respeito da conceituação de patrimônio público, é de se trazer a observação de Fernando Rodrigues Martins, in Controle do Patrimônio Público: “De considerar, ainda, a idéia de que o patrimônio público não pode ser compreendido apenas do ponto de vista material, econômico ou palpável. O patrimônio público espelha todo o tipo de situação em que a Administração Pública estiver envolvida, desde a mais módica prestação de serviço típica até os bens que fazem parte do seu acervo dominial. Com efeito e como veremos adiante, a própria moral da Administração Pública constitui patrimônio a ser resguardado por todos os membros da sociedade, sob pena da completa submissão dos valores rígidos de honestidade e probidade às práticas vezeiras de corrupção, enriquecimento ilícito, concussão e prevaricação. Tudo isso a gerar desconfiança dos administrados em face dos administradores e, se não, o pior – difundir a ilicitude como meio usual nas multifárias relações entre os particulares, já que o mau exemplo dos administradores autorizaria, em tese, o desmantelamento dos critérios de lisura.” Tenho, ainda, por pertinente, fazer um parênteses. Está a tratar-se de tipo disciplinar (frustrar a licitude de concurso público) cuja tutela jurídica objetiva a preservação dos princípios reitores da Administração Pública e sua credibilidade pública, de modo que a sanção disciplinar 184 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 desses delitos procura promover a regularidade e o aperfeiçoamento do serviço público. Em especial, quanto aos atos de improbidade dos quais decorrem a frustração à licitude de concurso público, não há de se simplificar a questão, dizendo que o princípio afrontado é tão-somente o princípio da igualdade entre os administrados. Busca a ação resguardar o patrimônio público, sendo que a própria moral da Administração Pública constitui patrimônio a ser resguardado por todos os membros da sociedade. Friso, ademais, que a jurisprudência vem reconhecendo a possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil pública não só para o ressarcimento do dano causado ao erário como também para a aplicação das sanções previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/92. Rejeito, pois, a preliminar de ilegitimidade ativa do MP suscitada pelo apelante. Consigno haver nos autos Agravo Retido, formulado pelo réu Luimar Carlos Kavinski, versando sobre a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para a propositura da ação de improbidade, o qual, em razão dos fundamentos acima erigidos, não há de ser provido. No que toca ao mérito Pede o apelante a improcedência da ação, alegando tratar-se de ação civil de forte conteúdo penal, e, uma vez não tendo sido reconhecido o tipo, impor-se-ia a absolvição. Refere, ademais, que somente possível efeito civil, se condenação penal houvesse, inexistindo, sequer, interesse da vítima. Em primeiro lugar, é de se afirmar, no que concerne às sanções passíveis de aplicação ao ímprobo, que a independência entre as instâncias se apresenta absoluta. O ordenamento jurídico pátrio, na forma do disposto nos arts. 1.525 do CC, 110 do CPC e 64 do CPP, amparou o sistema de independência entre as instâncias penal, civil e administrativa. Assinale-se que os fatos de que trata a presente ação foram também objeto de Inquérito Policial, o qual, contudo, restou arquivado, a pedido do próprio Ministério Público Federal. Neste sentido, porém, ainda que afastada a responsabilidade criminal, a natureza da ação civil pública, que constitui instrumento de tutela jurisdicional dos direitos e interesses metaindividuais, não permite seja R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 185 ela confundida com a ação penal condenatória, inexistindo, sob qualquer aspecto situação de litispendência ou de prejudicalidade entre as ações judiciais em causa. (STF, rel. Min. Celso de Mello, RTJ nº 167/166, apud Wallace Martins Paiva Junior, Probidade, pág. 297) Assim, ainda que havendo o arquivamento do procedimento inquisitorial respectivo, a questão poderá ser amplamente examinada nas esferas cível e administrativa. (art. 67, I, do CPC) Penso, entretanto, que pertine melhor verificar a questão relacionada à adequação do ato à tipologia legal da improbidade. Isso porque o princípio da juridicidade impõe ao operador do direito que sua atividade se inicie com o exercício da subsunção do ato à tipologia do art. 11 da Lei de Improbidade, com ulterior avanço para as figuras dos arts. 9º e 10 do mesmo diploma em sendo divisado enriquecimento ilícito ou dano. A configuração da improbidade, a teor do caput do art. 11 da Lei de Improbidade, será possível sempre que demonstrada a inobservância dos princípios regentes da atividade estatal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, ainda que não tenha causado dano ao patrimônio público ou acarretado enriquecimento ilícito do agente. Subsumindo-se a conduta à tipologia do art. 11, estará o agente sujeito às sanções previstas no art. 12, III, da Lei nº 8.429/92. Tenho por pertinente asseverar aqui, partindo-se da idéia de que a conduta dos réus se enquadrou nos tipos disciplinares da improbidade, na forma da Lei nº 8.429/92, que, em se tratando de caso que envolve servidores federais, a improbidade administrativa disciplinar poderá ser processada nos termos da Lei nº 8.112/90. Assim preceitua o art. 14, § 3º, da própria Lei de Improbidade. Vale dizer, a instância administrativa tem legitimidade e competência para apurar o delito de improbidade por parte de agente público. Considera-se daí a possibilidade de o procedimento administrativo culminar com a aplicação das sanções previstas no estatuto da categoria, uma vez denotando o contexto probatório que o agente efetivamente praticou ato de improbidade. A Lei nº 8.429/92 definiu as várias hipóteses de improbidade administrativa, catalogando, respectivamente, nos seus arts. 9º a 11, os tipos disciplinares da improbidade, quais sejam, (i) aqueles que importam 186 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 enriquecimento ilícito, (ii) aqueles que causam prejuízo ao erário e (iii) aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública. Dentre os últimos, a teor do inciso V do art. 11, estaria “frustrar a licitude de concurso público”, espécie delitual de improbidade que entendeu o Ministério Público incidir in casu. Precisamente, tratar-se-ia de transgressão disciplinar que arrosta o princípio da igualdade, também chamado da isonomia do administrado, conforme classificação dos tipos específicos arrolados no art. 11 da supradita Lei. Conforme dos autos consta (docs. de fls. 235/236), a autoridade administrativa competente da UFPR entendeu, num primeiro momento, que a declaração administrativa quanto à nulidade do concurso já atendia a sua obrigação, no que respeita à apuração de irregularidade no serviço público, na forma do art. 143 da Lei nº 8.112/90. Frisou que, embora constatados erros de procedimento que viciaram o concurso, aquela Administração entendeu por afastar a responsabilidade dos servidores envolvidos, seja porque nenhum prejuízo ao erário veio a ser demonstrado, seja porque não havia no processo então instaurado por aquela Autarquia qualquer outro elemento que permitisse tal conclusão. Posteriormente, atendendo reiteradas requisições do Ministério Público, veio a determinar a abertura de processo administrativo-disciplinar, visando à apuração de possíveis atos de improbidade praticados pelos professores integrantes da comissão julgadora do indigitado concurso público, na forma do disposto nos arts. 148 a 182 da Lei nº 8.112/90, sob pena de responsabilização da autoridade administrativa nos termos do art. 11, incisos I, in fine, e II, da Lei nº 8.429/92 e art. 320 do Código Penal. Vejo, entretanto, que o MM. Juiz de 1º Grau reconheceu a conduta ímproba dos réus, ainda que não-comprovado dolo, com a intenção de beneficiar a candidata Silvana, mas, sim, reconhecida a conduta culposa (negligente) dos membros da banca, tendo determinado a aplicação da sanção civil de ressarcimento integral dos danos causados. Mas, afinal, quais dos atos praticados pelos réus que estariam a configurar a conduta ímproba? Pelo que dos autos consta, a única conduta irregular dos membros da banca, objetivamente comprovada, foi a de não haverem lavrado ata indicando a necessidade de alteração das notas anteriormente atribuídas R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 187 aos candidatos na prova didática. Ora, a improbidade administrativa, enquanto delito disciplinar, busca como elemento subjetivo de sua configuração que haja, no mínimo, a voluntariedade do agente público, não se contemporizando com a mera conduta culposa, que carece de deliberação volitiva, preordenada à consecução de vantagem pessoal, ou de terceiro, em detrimento da Administração Pública. Por elucidativo, menciono lição de José Armando da Costa, in Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa, Brasília Jurídica, 2000, 1ª Edição: “Se a ação obstativa da licitude de concurso público é meramente culposa, não terá ocorrido a infração disciplinar em destaque, haja vista que, como já afirmamos em várias passagens deste livro, a conduta desonesta, por qualquer que seja o ângulo a ser considerado, não poderá jamais resultar de comportamento que não seja doloso, ou pelo menos voluntário. Insista-se, mais uma vez: a negligência, imprudência ou imperícia não se coadunam com comportamento desonroso ou desonesto. Qualquer ato voluntário do agente público posto em prática com vistas a arranhar, através de fraudes, simulação ou dissimulação, a lisura ou a legitimidade de concurso público, constitui, sem dúvida, ato de improbidade administrativa atentatória ao princípio da igualdade do administrado.” Conforme dos autos consta, e assim admitido pelo Juízo monocrático, não restou comprovada a voluntariedade dos atos dos agentes públicos, tendente a beneficiar um candidato em detrimento do outro. Ao contrário, caracterizou-se a conduta dos réus como culposa. Partindo-se da premissa de que a responsabilidade objetiva pressupõe normatização expressa, é de se aderir a tese de que: a) a prática dos atos de improbidade previstos nos arts. 9º e 11 pressupõe o dolo do agente; b) a tipologia inserida no art. 10 admite que o ato seja praticado com dolo ou com culpa; c) o mero vínculo objetivo entre a conduta do agente e o resultado ilícito não é passível de configurar a improbidade. Penso, assim, que as condutas praticadas pelos réus não tipificaram improbidade administrativa, na forma do disposto no art. 11, inciso V, da Lei nº 8.429/92. Chamo a atenção, ademais, para o fato de que a UFPR aduziu nos 188 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 autos que nenhum prejuízo ao erário veio a ser demonstrado, circunstância que condicionaria a sanção imposta de ressarcimento integral do dano causado, com aplicação do disposto no art. 12, inciso III, da Lei de Improbidade. Aliás, aquela Autarquia manifestou não ter interesse na lide no momento, em razão de não ter ainda concluído o processo disciplinar instaurado por aquela Universidade (fl. 467). Do mesmo modo, a União conforme manifestação à fl. 465. A despeito das ilações trazidas pelo Juiz de 1º Grau, relativas aos custos de um concurso público, tais danos nem ao menos foram suscitados pela UFPR, pelo contrário. Admitidos esses, aí, sim, as atenções poderiam se voltar para as condutas ao tipo do art. 10, as quais admitem a forma culposa. Ante o exposto, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa do MP e, no mérito, dou provimento ao apelo do réu Carvílio da Silveira. Considerando haver litisconsórcio necessário-unitário, a lide deve ser decidida de maneira uniforme para todos os litisconsortes, de modo que o recurso interposto pelo réu Carvílio a todos aproveita, a teor do disposto no art. 509 do CPC. Desta forma, afasto de todos os réus a determinação contida na sentença de ressarcimento integral dos danos causados. Em conseqüência, afasto os ônus sucumbenciais, os quais, em relação aos mesmos, deverão ser suportados pelo apelado. Nego provimento ao Agravo Retido, apresentado pelo réu Luimar Carlos Kavinski, por entender legitimado o Ministério Público à propositura da ação de improbidade, forte nos fundamentos já lançados quando do exame da correspondente preliminar suscitada. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.04.01.045856-7/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 189 Apelante: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Apelados: Armin Ernesto Binz e outro Advogada: Dra. Noemia da Silva Lopes Apelados: Arno Carlos Binz e outros Advogados: Drs. Evanildes Figueiredo Pereira e outro Remetente: Juízo Substituto da 3ª Vara Federal de Florianópolis/SC EMENTA Administrativo. Processual Civil. Nulidade. Alegação na primeira oportunidade. Art. 245 do CPC. Razões finais. Art. 454 do CPC. Cabimento. Prejuízo. Ausência. Usucapião. Imóvel. Florianópolis. Ilha costeira. Possibilidade jurídica. Arts. 20, IV, e 26, II, da CF/88. Requisitos comprovados. Declaração procedente. Terras de marinha. Ônus da prova. Linha preamar. Estabelecimento. Demarcação judicial ou administrativa. 1. Além de ter sido oportunizada a participação da União na audiência de justificação de posse realizada na Justiça Estadual, quando, na Justiça Federal, ela nada disse acerca de cerceamento de defesa. Optou, na sua contestação, por insistir na tese da impossibilidade do bem ser usucapido. 2. Na dicção do art. 245 do CPC, sob pena de preclusão, a parte interessada deve alegar o vício no primeiro momento que lhe foi oportunizado falar nos autos. 3. A abertura de prazo para razões finais, forte no art. 454, § 3º, do CPC, só será compatível com a realização de audiência de instrução e julgamento, de sorte que as partes possam lançar suas derradeiras razões. Ao depois, mesmo que assim não fosse, a União nada disse concretamente sobre a lesividade da não-apresentação de razões finais; é caso de aplicação da diretriz jurídica que põe a salvo da invalidade os atos que, embora realizados em descompasso com a lei vigente, não provocam prejuízos às partes. 4. Localizado o imóvel em ilha classificada como sendo costeira, é ele passível de ser havido por particulares via prescrição aquisitiva. Inteligência dos arts. 20, IV, e 26, II, da CF/88. Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso. 5. Demonstrado que anteriormente à edição da CF/88 os autores, 190 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 considerando a accessio possessionis, atendiam os pressupostos legais para aquisição do imóvel por usucapião extraordinária, é de ser julgada procedente a ação declaratória. 6. Incumbia à União, forte no art. 333, II, do CPC, demonstrar cabalmente que o imóvel usucapiendo engloba área de terras de marinha. À míngua de definição da preamar média de 1831, e por conseqüência a área de marinha, inconsistente a afirmativa da União. Não fica inibido, contudo, que ela efetue posteriormente a demarcação da área de marinha, seja na esfera administrativa seja mediante a propositura da competente ação demarcatória, de modo que fica ressalvado seu direito, circunstância que deverá constar no registro imobiliário do imóvel usucapiendo, a fim de precatar interesse de terceiros. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 29 de junho de 2004. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Trata-se de Ação de Usucapião Extraordinária proposta sob o fundamento do exercício de posse mansa, pacífica e com animus domini de um terreno situado em Ponta das Canas, Distrito de Cachoeira do Bom Jesus, Município de Florianópolis/SC, contendo a área total de 13.828,00m2 (treze mil, oitocentos e vinte e oito metros quadrados) (fl. 07), cujos direitos foram havidos pelos autores por meio de escrituras públicas lavradas em 09.09.76 e 03.11.76, cujos outorgantes exerciam posse antiga e sem contestação há mais de 25 anos. Considerando que o imóvel usucapiendo abarcava terras de marinha, a União requereu fosse incluída no pólo passivo da demanda, com o conseqüente deslocamento da competência para a Justiça Federal. Os autores, em face do pedido da União, disseram que, embora ocupem R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 191 a faixa de terras de marinha há muitos anos, ela não integra o pedido, de sorte que não estava configurado o interesse da União, devendo ser mantida a tramitação no feito perante a Justiça Estadual. Em audiência de justificação foi indeferida a pretensão da União e dada por suficientemente justificada a posse do imóvel usucapiendo pelos autores. (fl. 82 e verso) Após manifestação favorável do Ministério Público Estadual, o Juízo de Direito da 4ª Vara Cível de Florianópolis/SC deu pela procedência da ação de usucapião, declarando a propriedade em favor dos autores. (fls. 86/89) Acolhendo as razões perfiladas no recurso da União, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu anular o feito ab initio, ordenando a remessa à Justiça Federal de primeira instância, ficando prejudicado o recurso. (fl. 144) Já perante o Juízo da 3ª Vara Federal de Florianópolis/SC, a União ofertou contestação opondo-se à pretensão sob fundamento de que no imóvel usucapiendo existe uma faixa de marinha pertencente à União Federal e, além disso, o referido imóvel localiza-se em ilha oceânica, pertencente à União e inocorre no caso qualquer das exceções previstas no art. 26, II, da CF. Os lindeiros Mario Sebastião Hass e Estela Maria Gentil Hass opõem-se à pretensão declaratória impugnando a descrição do imóvel usucapiendo, a qual se sobreporia, alegam, em 55,00m2 ao seu imóvel. (fls. 182/183) Após resposta dos autores à impugnação dos lindeiros, foi determinada a realização de perícia, cujo laudo foi carreado a fls. 269/275 e fls. 285. A Secretaria de Patrimônio da União, cuja manifestação foi requerida pelo MPF, asseverou que parte do imóvel contém faixa de marinha (1.352,34m2), sendo o restante da área pertencente à União por situar-se na Ilha de Santa Catarina. (fls. 298/299) Em face da manifestação da SPU, o Sr. Perito, por determinação do Juiz Federal, apresentou parecer complementar. (fls. 309/318) A sentença de fls. 330/341 julgou procedente a ação sobre o imóvel com área de 13.828m2, situado em Ponta das Canas, Distrito de Cachoeira do Bom Jesus, Município de Florianópolis/SC, com a descrição e caracterização estampada na inicial. 192 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 A União ofertou apelação, alegando, preliminarmente, ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, porquanto o Juízo a quo, para comprovação da posse dos autores, valeu-se de prova testemunhal produzida à época em que o processo tramitava na Justiça Estadual, sem que tenha sido oportunizada sua participação, bem assim porque não foi intimada para apresentação de razões finais, como preconiza o art. 454, § 3º, do CPC. No mérito, numa primeira abordagem, assevera que ao menos deveria ter sido julgada a ação parcialmente procedente, porquanto parte do imóvel usucapiendo, conforme informações da Gerência Regional do Patrimônio da União em Santa Catarina, está localizado em faixa de marinha, espaço do território de propriedade da União (art. 20, VII). Enfatiza, depois, que o imóvel, por estar localizado em ilha oceânica, que é de propriedade da União - art. 20, IV e VII, c/c art. 26, II, da CF/88, é insuscetível de ser usucapido, na exata dicção dos art. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, da CF/88. Na seqüência, assevera que os autores não provaram, como lhes impunha o art. 333, I, do CPC, a dominialidade privada dos imóveis, de sorte a serem inseridos na ressalva do inciso II, do art. 26, c/c art. 20, IV, da CF/88, que garante a manutenção da propriedade das áreas localizadas nas ilhas oceânicas e costeiras aos particulares. Os autores apresentaram contra-razões. O MPF, nesta Corte, ofertou parecer, opinando pelo improvimento do apelo. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon: Improcede a preliminar de nulidade do processo. A União, após receber a comunicação da designação da audiência de justificação da posse, aprazada para 18.05.89 (fl. 30), protocolizou petição dizendo do seu interesse na causa, porquanto, alegadamente, o imóvel usucapiendo lhe pertenceria (fl. 36); requerendo, então, fossem os autos remetidos à Justiça Federal, forte no art. 109, I, do CF/88. Não tendo sido realizada a audiência na data aprazada, foi fixado novo dia para justificação da posse (14.03.90), do qual foi novamente R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 193 comunicado o representante judicial da União. (fl. 64) Muito embora sabedora da data e local em que se realizaria a audiência de justificação da posse, bem assim ciente do seu interesse na lide, optou a União por não comparecer ao ato. O que se alega sob o título de cerceamento de defesa, então, na verdade, constitui desistência do direito de defesa. É significativamente diversa a hipótese, em essência, de não se oportunizar a defesa, e que constituiria violação a garantia fundamental, e de omitir-se na defesa; enquanto no primeiro caso a parte interessada deixou de exercer o direito em face da omissão no seu chamamento, no segundo a falta de defesa atribui-se a opção da parte interessada em se demitir do seu direito. Doutra finta, reconhecida a competência da Justiça Federal para apreciar a lide, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina anulou ab initio os atos processuais e determinou a remessa dos autos. O Juízo da 3ª Vara Federal, a quem foi distribuído o feito, aproveitando os atos de cunho não-decisório realizados até então, julgou justificada a posse dos autores sobre o imóvel usucapiendo (fls. 151/152). Novamente, devidamente intimada do reconhecimento da posse, a União quedou-se silente. Ofertou resposta insistindo, apenas, na tese de que o imóvel usucapiendo englobava faixa de marinha, e que, não ocorrendo qualquer das exceções previstas no art. 26, II, da CF/88, o bem é de sua propriedade, insuscetível, pois, de ser usucapido. Deveria ter aviado sua insatisfação, acerca do ora alegado cerceamento, logo no primeiro momento que lhe foi oportunizada a manifestação nos autos, de modo que, não o fazendo, restou convalidado pela preclusão (art. 245 do CPC) o alegado vício. A jurisprudência: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - EXECUÇÃO FISCAL - EXTINÇÃO - PRÉVIA INTIMAÇÃO PESSOAL DO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA ART. 25 DA LEI Nº 6.830/80 - NULIDADE - APLICAÇÃO DO ART. 145 DO CPC. 1 - A teor do art. 245 do CPC, a NULIDADE dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão. Hipótese em que cumpria à exeqüente alegar o fato nas suas razões de apelação. 2 - Embargos de declaração rejeitados. (AC nº 2002.04.01.031516-8/RS – 1ª T. – Rel. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira - DJU em 10.12.2003) PROCESSUAL CIVIL. INTIMAÇÃO. NULIDADE. PROCURAÇÃO NOS AUTOS. NECESSIDADE. 1. A NULIDADE deve ser argüida na primeira oportunidade que a parte tiver para 194 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 falar nos autos (art. 245, caput, CPC). 2. A INTIMAÇÃO somente deve ser feita à pessoa habilitada, com procuração nos autos (art. 37, CPC). 3. Provido o agravo de instrumento.” (AI 2001.04.01.002529-0/PR – 3ª T. – Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler - DJU em 05.09.2001) Noutra preliminar, a União pugna pela nulidade do processo a partir da sentença, porquanto não houve a abertura de prazo para oferta de razões finais, forte no art. 454, § 3º, do CPC. Sucede que, além da manifestação final só ser compatível com a oportunidade da realização de audiência instrução e julgamento, de sorte que as partes possam lançar suas derradeiras razões, o que não ocorreu na hipótese vertente, a só falta da realização do ato não torna írrito o processo. A alegação de corrupção do rito processual deve vir acoplada à comprovação do efetivo prejuízo; vige diretriz jurídica que põe a salvo da invalidade os atos que, embora realizados em descompasso com lei cogente, não patrocinaram prejuízos às partes (art. 249, § 1º, do CPC). A respeito, Rui Portanova (in Princípios do Processo Civil, Ed. Livraria do Advogado, p.192) preleciona: “A forma, contudo, não tem valor em si. Ela existe para evitar que a parte fique prejudicada na sua liberdade de atuação pessoal. Esse prejuízo é um entrave que dificulta a adequada participação das partes no processo. Contudo, caso haja um ato cuja nulidade não chegou a tolher a liberdade de atuação de qualquer dos postulantes, não há prejuízo. Logo, não cabe falar em nulidade. Assim, o direito brasileiro consagra o adágio vindo do direito francês: pas de nullité sans grief”. No caso concreto, nada se disse concretamente sobre a lesividade da não-apresentação das razões finais, até porque, a tese desenvolvida pela União fulcra-se em temas exclusivamente de direito, cujos fundamentos foram detalhadamente expostos ao longo da demanda. Diz a jurisprudência: “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ALEGAÇÕES FINAIS. FALTA DE OPORTUNIDADE. NULIDADE NÃO ALEGADA NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO NEM NO PRAZO DE AGRAVO NESTA SURGIDO. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE NÃO DECLARADA. CONTRATO ESCRITO. DESFAZIMENTO POR ACORDO TÁCITO. EXISTÊNCIA DESTE NÃO AFIRMADA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. REEXAME INVIÁVEL NA INSTÂNCIA ESPECIAL. ENUNCIADO Nº 7 DA SÚMULA/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CARACTERIZADA. RECURSO DESACOLHIDO. I - Em princípio, a regra do art. 454, CPC, adota a oralidade como regra na instrução R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 195 e julgamento, sucedendo à instrução a faculdade de as partes sustentarem, oralmente e na mesma audiência, suas razões finais antes do julgamento. A substituição dessa fase oral por memoriais vincula-se às ‘questões complexas de fato ou de direito’ mencionadas no dispositivo, traduzindo-se, assim, em exceção à regra. II - Ainda a admitir-se a possibilidade de suscitar-se a falta de oportunidade para as alegações finais, por memoriais, meses após a audiência, na apelação, certo é que a decretação de nulidade, no sistema processual brasileiro, deve atender à demonstração de prejuízo, o que não ocorreu, na espécie. Trata-se, na verdade, da relação entre a forma a ser dada aos atos do processo e a finalidade a que visam. III - A lei, prelecionava o grande Amílcar de Castro, embora nunca ao arrepio do sistema jurídico, deve ser interpretada em termos hábeis e úteis. Com os olhos voltados, aduza-se com Recasens Siches, para a lógica do razoável. IV - Uma vez não afirmada pelas instâncias ordinárias a existência ou não de acordo tácito hábil a desconstituir contrato escrito anterior, o reexame do tema resta vedado a esta instância especial, a teor do óbice do enunciado nº 7 da Súmula/STJ. V - Sem indicação de repositório autorizado e sem cotejo analítico entre o acórdão impugnado e o aresto trazido a confronto, não se instaura o acesso ao recurso especial com fundamento na divergência jurisprudencial (art. 105-III-c da Constituição).” (REsp 167383/DF – 4ª T. – DJU EM 15.10.2001 – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira) “PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. APRESENTAÇÃO DE MEMORIAIS. 1. Da leitura do art. 454, § 3º, do CPC, constata-se que o juiz não está obrigado deferir às partes a juntada de memoriais. 2. Se for o caso, quando do julgamento da apelação, poderá a parte que alega o prejuízo comprovar eventual configuração de prejuízo à defesa. 3. Agravo conhecido e desprovido. Agravo regimental prejudicado.” (AI nº 2003.04.01.021577-4/RS – 3ª T. – DJU em 05.11.2003 – Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz) Igualmente, deve ser rejeitada a preliminar. Avançando no mérito, creio adequada a confirmação in totum da sentença posta sob controle. O imóvel usucapiendo, está claro nos elementos de prova e na descrição da sua caracterização e localização, situa-se no perímetro da ilha de Florianópolis, cujo território, em face da sua classificação como ilha costeira, é passível de ser havido por particulares via prescrição aquisitiva. Peço vênia para, no tocante à juridicidade da pretensão declaratória deduzida nesta demanda, reproduzir voto da i. Desembargadora Federal Silvia Goraieb, Presidente deste Colegiado, lançado à ocasião do julgamento da AC nº 2000.72.00.008768-9/SC, que, com sua peculiar maestria e objetividade, bem solve o tema, arredando os obstáculos alevantados pela União contra a procedência do pleito, in verbis: 196 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 “A questão discutida nos autos diz respeito à titularidade do domínio das ilhas marítimas, já que tanto a Constituição Federal de 1967, quanto a de 1988 contêm dispositivos que as incluem entre os bens da União. O art. 4º da Constituição de 1967, inalterado pela Emenda Constitucional de 1969, referia-se às ilhas oceânicas como sendo de domínio da União: ‘Art. 4º Incluem-se entre os bens da União: ... II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, constituam limite como outros países ou se estendam a território estrangeiro; as ilhas oceânicas, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;’ Sobre o tema, quando do julgamento do RE nº 101.037 (RTJ 113:1279), em 1985, o Ministro Francisco Rezek alertou para a necessidade de dar-se à expressão mencionada a devida abordagem técnica, a qual foi sintetizada pelo geógrafo Aroldo de Azevedo nos seguintes termos: ‘As ilhas marítimas classificam-se em costeiras e oceânicas. Ilhas costeiras são as que resultam do relevo continental ou da plataforma submarina; ilhas oceânicas são as que se encontram afastadas da costa e nada têm a ver com o relevo continental ou com a plataforma submarina.’ Partindo do conceito acima transcrito, entendeu o Supremo Tribunal Federal que a ilha de Florianópolis não é passível de classificação como ilha oceânica e, como tal, seria inadmissível simplesmente deixar de reconhecer o domínio privado dos particulares nela instalados: ‘A ler a expressão ‘ilhas oceânicas’ o que lêem, neste momento, os patronos da fazenda federal, e dada a realidade elementar de que contra o comando constitucional não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito que se contraponha, teremos que três Unidades federais - não menos que três Unidades federadas - perderam, em 1967, suas capitais para o patrimônio da União. Em São Luís do Maranhão, bem assim em Vitória e Florianópolis, o Estado e o Município já não deteriam seus bens dominicais, nem os de uso especial, nem os de uso comum do povo. Ter-se-ia extinto, igualmente, o patrimônio privado. Do palácio do governo à casa de família, da catedral ao clube recreativo, das lojas e fábricas à praça pública, tudo se haveria num repente convertido em patrimônio da União por obra do constituinte de 67, tomado este - e logo este - por um rompante de audácia que teria assombrando os legisladores da Rússia de 1918.’ A situação não foi alterada com a promulgação da Constituição de 1988, salvo pelo fato de que os dispositivos atinentes à matéria em tela são mais claros quanto à distinção feita pelo constituinte entre as ilhas marítimas, referindo-se expressamente a ilhas oceânicas e ilhas costeiras: ‘Art. 20. São bens da União: ... R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 197 IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes como outros países; as praias marítima; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as áreas referidas no art. 26, II. Art. 26 . Incluem-se entre os bens dos Estados: ... II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;’ Como se vê, o texto constitucional em vigor manteve a norma anterior que atribuía à União o domínio sobre as ilhas costeiras. Todavia, este não é absoluto, uma vez que foram ressalvadas as áreas que estiverem no domínio do Estado, do Município e, ainda, de particulares. A regra, então, é a de que as ilhas costeiras, em princípio, pertencem ao patrimônio da União; porém, poderão integrar o domínio do Estado, desde que não sejam tituladas por Municípios ou por particulares. Na ressalva constante do art. 26 citado, encontra-se a ilha de Santa Catarina que, por isso mesmo, é passível de usucapião, como já decidiu a Segunda Turma desta Corte, no julgamento da AC nº 98.04.04891-5/SC, na sessão de 21.11.91 (DJ de 29.01.92), sendo Relatora a Exma. Juíza Luiza Dias Cassales: ‘USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. POSSE NÃO TITULADA. ILHA DE SANTA CATARINA. TERRENOS DE MARINHA. 1. A ilha de Santa Catarina, por ser ilha costeira, não integra o patrimônio da União, quando estiver dentro dos limites do art. 26, II, ressalvado pelo art. 20 da CF. 2. A posse por mais de vinte anos, da área não titulada, foi homologada pelo juízo. Trata-se, portanto, da usucapião extraordinária, que se caracteriza pela maior duração da posse, e por dispensar o justo título e a boa-fé. 3. Os terrenos de marinha, que pertencem à União, terão de ser reservados, não podendo integrar a área usucapienda. 4. Apelo provido.’ Do acima exposto, conclui-se que a área descrita na inicial pode ser objeto de usucapião, porque o art. 26, inc.II, ao incluir entre os bens do Estado as ilhas oceânicas e costeiras, excepciona aquelas que estejam sob o domínio da União, dos Municípios ou de terceiros.” Colhe-se, em igual sentido, inúmeras outras manifestações jurisprudenciais: “EMBARGOS INFRINGENTES. USUCAPIÃO. ILHAS COSTEIRAS. AUSÊNCIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. POSSE MANSA E PACÍFICA COMPROVADA. - A ilha de Santa Catarina, na qualidade de ilha costeira, não integra o patrimônio da União, se dentro dos limites do art. 26, II, da atual Carta, ou de forma absoluta, nos termos da Constituição de 1967. - No caso em tela, a prova dos autos, não elidida pela União, remonta a posse privada da gleba à década de quarenta, de forma contínua, o que autoriza a análise do pedido 198 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 pela ótica da Constituição de 1967. Para casos de sentença de eficácia declaratória, como o presente, se aplica a lei vigente à época em que satisfeitas as condições para o exercício do direito. - Na esteira do que entende o Pretório excelso, não deve ser acatada a presunção de que a ausência de registro de domínio particular converteria a terra em bem público. Não se presume a condição de terra devoluta, cabendo a quem alega o ônus da prova o que não logrou cumprir a ora embargante. (EIAC 9704119690/SC – 2ª S. – DJU em 18.05.2002 – Rel. Des. Federal Edgard Lippmann) USUCAPIÃO. SENTENÇA DECLARATÓRIA. EFEITO EX TUNC. ILHAS COSTEIRAS. BENS DA UNIÃO. ART-20, II C/C ART-26, IV, CF-88. NÃO INCLUSÃO DAS ILHAS DOS ESTADOS, MUNICÍPIOS E TERCEIROS. 1. Possuindo a sentença declaratória o efeito de retroagir à data em que se formou a relação jurídica, a prescrição vintenária consumou-se em período anterior à promulgação da CF-88, faltando, apenas, a declaração do domínio. 2. Antes de 1988, as ilhas costeiras não integravam o patrimônio da União Federal. 3. Somente após a promulgação da nova Carta Constitucional é que tais bens passaram a ser de domínio da União, ressalvados os pertencentes aos Estados, Municípios e terceiros. 4. Apelação e remessa oficial desprovidas. (AC 199804010646404/SC – 3ª T. – DJU em 23.08.2000 – Rel. Juiz Federal Sergio Renato Tejada Garcia) CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA. 1. Como a sentença da ação de usucapião tem eficácia declaratória, e não constitutiva de direitos, é sob a égide da Constituição de 1967/69 que deve ser analisada a pretensão da parte autora, face ao período de posse comprovado nos autos. Assim, não se aplica ao caso dos autos o inciso IV do art. 20 da Constituição de 1988 que, pioneiramente, incluiu as ilhas costeiras dentre os bens da União. 2. Modificada, então, a sentença que julgou improcedente o pedido de usucapião, pois o lapso temporal para a prescrição aquisitiva foi preenchido antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 05.10.88. Ademais, os confrontantes da área em nada se opuseram ao pedido, exceto a União, que não embargou a posse do autor, limitando-se a sustentar a imprescritibilidade da área. Deve ser reconhecido, então, o direito à propriedade da área descrita na petição inicial. 3. Invertidos os ônus de sucumbência, para condenar a União no reembolso das custas eventualmente pagas pela parte autora, bem como no pagamento dos honorários de advogado, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa. 4. Apelação provida.” (AC 200004010037780/SC – 3ª T. – DJU Data:26.07.2000 – Rel. Desa. Federal Marga Barth Tessler) Resta, agora, tratar da posse do imóvel alegada pelos autores. A posse da área de terras objeto da presente demanda foi havida pelos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 199 autores no ano de 1976, via de escrituras públicas de cessão de direitos possessórios, sendo que os respectivos outorgantes, declararam, exerciam tais direitos há mais de 25 anos (fls. 18/19, 21/22, 24 e verso, e 26 e verso). Além dos confrontantes e mesmo a União não terem oposto qualquer reserva a estas afirmativas, na audiência de justificação as testemunhas Sérgio Miguel Karen de Menezes e Tarcísio Schmitt confirmaram, seja por conhecimento próprio, seja por informações que circulam na comunidade, que efetivamente os autores e seus antecessores exerciam a posse alegada, qualificada pelo animus domini sem oposição. De então, tomando por base a data da promulgação da Carta Constitucional de 1988 e considerando a accessio possessionis (art. 552 do CCB, de 1916), os autores ostentam os requisitos legais necessários à obtenção da declaração judicial de prescrição aquisitiva - usucapião extraordinária - do imóvel objeto da presente demanda, descrito e caracterizado no petitório inicial. Por fim, sobre a faixa de marinha, a própria Secretaria do Patrimônio da União declara que inexiste a sua demarcação na área que localizado imóvel usucapiendo (fls. 37), tendo estabelecido a linha de preamar e calculado a área de marinha para o caso concreto em face da manifestação solicitada pelo Ministério Público (fls. 298/299). Só que, além de não ter sido trazidas aos autos referências específicas acerca dos critérios históricos e técnicos utilizados pelo órgão federal para demarcação do terreno de marinha que deveria ser reservado no imóvel usucapiendo, o processo de identificação deve seguir o devido processo legal, com garantia do contraditório e da ampla defesa. Isto é diretriz constitucional, aplicável a todos os processos administrativos, e mesmo está previsto no Decreto-Lei nº 9.760/46 (arts. 9º e seguintes). Careceu, então, de comprovação a alegativa de que o imóvel usucapiendo estaria englobando terras de marinha; trata-se de ônus da prova que incumbia à União, porquanto significava fato impeditivo do direito alegado pelos autores. (art. 333, II, do CPC) À míngua, então, de definição da preamar média de 1831, e por conseqüência a área de marinha, inconsistente a afirmativa da União. Não fica inibido, contudo, que ela efetue posteriormente a demarcação da área de marinha, seja na esfera administrativa, seja mediante a propositura da competente ação demarcatória, de modo que fica ressalvado seu direito, 200 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 circunstância que deverá constar no registro imobiliário do imóvel usucapiendo, a fim de precatar interesse de terceiros. Por tais razões, então, é de ser mantida a sentença posta sob controle. Voto, pois, no sentido de negar provimento ao apelo da União e à remessa oficial. É o voto. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2004.04.01.014570-3/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Edgard Lippmann Agravante: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Agravado: O despacho de fl. 334/7 Interessado: Ministério Público Federal Interessado: Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes – DNIT Advogada: Dra. Mitzi Silva Antunes EMENTA Ação civil pública. Duplicação de rodovia federal. Intervenção do Poder Judiciário na Administração Pública. Possibilidade antecipação de tutela. A moderna jurisprudência admite a intervenção do Poder Judiciário na Administração Pública, viabilizando a antecipação de tutela para determinar a execução de obra relativa à duplicação de rodovia federal, ante a responsabilidade civil do Estado sobre mortes e mutilações decorrentes de acidentes de trânsito havidos na rodovia de sua competência. ACÓRDÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 201 Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Des. Amaury Chaves de Athayde, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 23 de junho de 2004. Des. Federal Edgard Lippmann, Relator. RELATÓRIO E VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Edgard Lippmann: Trata-se de agravo regimental contra o despacho[*] de minha relatoria, em anexo, que deferiu, parcialmente, o pedido de agregação de efeito suspensivo ativo, voltado contra decisão monocrática que indeferiu pedido de antecipação de tutela em ação civil pública onde se pleiteia (i) responsabilidade civil do Estado pelas mortes e mutilações da BR-101-Sul/SC; (ii) seja apresentado cronograma de obras da duplicação da citada rodovia federal; (iii) apresentação de projeto de adequação dos cruzamentos da mesma rodovia; e (iv) reativação do posto de pesagem em Araranguá-SC. A antecipação de tutela foi deferida apenas quanto ao item (ii), para o fim de determinar aos Requeridos, que, no prazo de 60 (sessenta) dias, apresentem cronograma para início das obras da duplicação da BR-101-Sul/ SC, trecho entre Palhoça/SC e Osório/RS, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00. Irresignada quanto a tal decisão, postula a Agravante a sua reconsideração e, sucessivamente, recebê-la como agravo regimental. Alega haver risco de dano irreparável para si, especialmente por envolver matéria de dotação orçamentária. Tenho que a decisão hostilizada merece ser mantida. Em reexame da matéria, cotejados os argumentos aduzidos com os elementos contidos nos autos, entendo que sem embargo da invejável cultura jurídica do ilustre Procurador Judicial da Agravante, concessa venia, não é de ser guarida à irresignação, senão vejamos: Colhe-se dos autos que uma das teses de maior consistência aduzida pela Agravante seria o prejuízo elevado se tivesse que suportar de imediato os efeitos da tutela antecipada deferida, visto que a seu critério envolveria o controle do Poder Judiciário em políticas públicas. Como salientado na decisão objurgada, na verdade, modernamente, tanto a 202 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 doutrina como a jurisprudência admitem tal intervenção, citando, a título de exemplo, precedente desta eg. 4ª Turma, de relatoria do eminente Des. Fed. Valdemar Capeletti (AI 2002.04.01.056347-7). Daí por que, diante de tais circunstâncias, não vislumbro fato ou fundamento novo capaz de infirmar a decisão hostilizada, a qual mantenho indene. Isto posto, voto no sentido de negar provimento ao agravo regimental na forma supra. É o voto. *[DESPACHO Trata-se de agravo de instrumento voltado contra decisão monocrática que indeferiu pedido de antecipação de tutela em ação civil pública onde se objetiva (i) a responsabilidade civil do Estado pelas mortes e mutilações da BR-101-Sul/SC; (ii) seja apresentado cronograma de obras da duplicação da citada rodovia federal; (iii) apresentação de projeto de adequação dos cruzamentos da mesma rodovia; e (iv) a reativação do posto de pesagem em Araranguá/SC, bem como laudo de vistoria na Ponte J.K., em Tubarão/SC. Quanto ao item (i) a decisão monocrática indeferiu a inicial por ilegitimidade ativa do MPF; quanto aos itens (iii e iv) julgou extinto o processo face à litispendência, tópicos estes que estão sendo atacados mediante recurso de apelação, daí por que se conhece do recurso apenas e tão-somente quanto ao item (ii), sendo que em relação aos demais será examinado no tempo, forma e modo como disposto na Lei Adjetiva. Em juízo de delibação, inicialmente, registro meu posicionamento de que apenas em casos excepcionais revela-se pertinente a intervenção da Instância Superior na Inferior, providência que se afeiçoa à prevalência do prestígio que devem gozar as decisões judiciais, como também, e ainda, da segurança das relações jurídico-processuais. No caso em apreço, contudo, sem deslustro à invejável cultura jurídica do ilustre Juiz Federal prolator da decisão objurgada, tenho que a mesma, concessa venia, merece reparos, em parte, senão vejamos: A tese central utilizada na douta decisão centra-se no princípio da reserva legal quanto aos Poderes (funções) do Estado (ou da tripartição de poderes), mais especificamente na vedação de intervenção do Poder Judiciário em atos do Poder Executivo, especialmente no que tange aos atos discricionários (critérios da conveniência e oportunidade), destacando-se, no caso, hipótese de intervenção na questão envolvendo políticas públicas. Se por um lado relevantes os fundados e rebuscados argumentos aduzidos na douta decisão, aliás, em profundo e exaustivo exame doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, todavia, já de algum tempo, venho me manifestando em sentido de interpretar a questão cum granu salis, conforme ouso demonstrar, mesmo que em juízo inicial de delibação. Inicialmente, anoto que a questão relativa à efetivação de duplicação da BR-101, no trecho compreendido entre Palhoça/SC e Osório/RS, tem ganhado espaço cada vez maior na mídia nacional diante do aterrorizador quadro estatístico do número de acidentes e vítimas, a maior parte fatais. Tão dramática a situação que recentemente o R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 203 prestigiado articulista Paulo Sant´Ana, do jornal gaúcho ‘Zero Hora’, de 04.04.2004, ao abordar em sua coluna dominical o tema ‘Lula foi Sensível’, assim arrematou: ‘... Do jeito que hoje está, a gente ingressa na BR-101 como boi no caminho do matadouro.’. Circunstância esta que deve ser associada ao fato de que, desde 23.06.97, o 16o D.R.F. vem tentando deflagrar o procedimento de concorrência pública para seleção de empresas de consultoria, objetivando a elaboração dos projetos de engenharia da duplicação do chamado trecho sul da citada BR-101, conforme informação do próprio DNIT à fl. 195, e até a presente data nada de concreto resultou implementado. Mesmo que se relute, até fundadamente, em estarmos diante de bem jurídico sobranceiro – direito à dignidade da pessoa humana, do qual decorre o direito à integridade físico-corporal –, conforme exuberantemente sustentado na douta decisão profligada, ouso dissentir da conclusão exposta. A farta documentação carreada aos autos, bem como as inúmeras invectivas realizadas pela administração pública, bem antedemonstram que, mesmo aos mais tolerantes, a inércia (para não dizer descaso) com a caótica situação da citada rodovia federal desborda dos limites do razoável. 204 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 205 206 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2001.71.07.001952-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose Apelantes: L. C. F. L. A. F. Advogado: Dr. Luiz Carlos dos Santos Apelado: Ministério Público Federal EMENTA Penal. Crime contra a honra. Art. 138 do CP. Art. 20 da Lei nº 5.250/67. Lei de Imprensa calúnia. Ausência de dolo em relação a um dos acusados. Animus narrandi. Absolvição. Dolo eventual. Veracidade do fato imputado não comprovada. Ausência de animus defendendi. Exclusão da ilicitude. Erro invencível. Não-caracterização. Dosimetria da pena. Análise das circunstâncias judiciais. Art. 59 do CP. Redução da pena. Multa. Prestação pecuniária. 1. Em se tratando dos delitos previstos no artigo 138 do Código Penal e art. 20 da Lei de Imprensa, pune-se o atribuir falsamente a outrem – através ou não dos meios de informação e divulgação – a prática de fato definido como crime, constituindo o elemento subjetivo do tipo, em princípio, o dolo de dano a atingir a honra objetiva da vítima. 2. Não restando suficientemente comprovado o intuito calunioso de um dos agentes, mas, tão-somente, o animus narrandi, a absolvição é medida que se impõe. 3. De outra parte, evidenciado que em suas declarações o agente R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 207 assumiu o risco de produzir o resultado, imputando à vítima fato inverídico definido como crime (seja no art. 138 do CP, seja no art. 20 da Lei nº 5.250/67), resta configurado o dolo eventual, suficiente à caracterização do delito de calúnia. 4. Na espécie, o conjunto probatório não se mostra apto à demonstração do animus defendendi alegado pelo réu, de forma a descaracterizar o dolo de sua conduta. 5. A exceção de verdade a que alude o art. 138, § 3º, do CP, afigura-se como o meio próprio de comprovar a veracidade dos fatos imputados. Assim, em não tendo o acusado lançado mão do aludido instituto - embora lhe sendo possível - conclui-se que, efetivamente, foi temerário em suas asserções. 6. Não se há falar em erro invencível quando evidenciado que o agente teria plenas condições de discernir se o fato imputado era ou não verdadeiro. In casu, considerando-se as circunstâncias pessoais do denunciado (empresário conhecido no Estado, portando em seu currículo um mandato como deputado estadual, inclusive, ocupando o cargo de vice-presidente da Casa Legislativa por determinado período), presume-se detenha razoável sagacidade, de modo a prever as conseqüências jurídicas do exercício de sua liberdade de expressão desmedida. 7. Segundo entendimento firmado nesta Turma (ACR 2003.04.01.003269-2, rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 02.07.2003) e no STF (HC 81.759, rel. Ministro Maurício Corrêa, Informativo 262 do STF), inquéritos e processos penais em andamento caracterizam maus antecedentes. 8. A valoração da conduta social deve dar-se “em relação à sociedade na qual o acusado esteja integrado, e não em relação à sociedade formal dos homens”, sendo que, em não demonstrado nos autos nada que venha em desabono ao acusado, inviável a valoração negativa de tal circunstância. 9. A personalidade do agente deve ser entendida em seu aspecto técnico, sendo necessário, para fins de ponderação negativa do vetor, embasamento em laudo específico. 10. Em sendo os motivos inerentes ao tipo em questão, inviável a valoração negativa de tal vetor, pena de bis in idem. O mesmo se diga quanto às conseqüências do delito, pois que considerada a ocorrência de 208 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 causa de aumento de pena constante no art. 23, II, do CP. 11. No presente caso, as circunstâncias são inerentes ao tipo, já que, justamente, em face de a calúnia ter sido proferida através de meios de informação e divulgação é que o acusado foi dado por incurso também na figura típica constante do art. 20 da Lei de Imprensa. 12. A dosimetria da pena de multa deve ser feita em consonância com os critérios norteadores da fixação da pena privativa de liberdade. 13. A pena restritiva de direitos consistente no pagamento de prestação pecuniária deve ser arbitrada de modo a não tornar a prestação em pecúnia tão diminuta a ponto de mostrar-se inócua, nem tão excessiva de maneira a inviabilizar seu cumprimento, mostrando-se suficiente à prevenção e reprovação do crime praticado, atentando-se, ainda, para a situação econômica do condenado e a extensão dos danos decorrentes do ilícito praticado. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo do réu L. A. F., para absolvê-lo do crime de calúnia (art. 138 do Código Penal), e dar parcial provimento ao apelo do réu L. C. F., nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 29 de junho de 2004. Des. Federal Tadaaqui Hirose, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: O Ministério Público Federal, com fulcro na representação criminal de fls. 20/24, ofereceu denúncia contra L. C. F. e L. A. F., dando-os como incursos nas sanções dos artigos 138 e 139 do CP, c/c os arts. 141, II, e 70 do CP. Ainda, com relação a L. C. F., requereu a peça acusatória fosse dado como incurso também nas penas dos arts. 20 e 21 da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa), c/c art. 23, inciso II, da referida lei, c/c art. 70 do CP. O relatório da sentença, constante às fls. 589/594, bem elucida os fatos narrados na denúncia: “(...) em 29.03.2001, às 14h, na sala de audiências da 2ª Vara Federal de Caxias do Sul, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 209 os denunciados, ao serem interrogados nos autos da Ação Penal nº 2001.71.07.000672-3, a qual respondiam pela prática dos delitos previstos nos arts. 1º, II e 2º, I, c/c o art. 12,I, todos da Lei 8.137/90, na forma dos arts. 29 e 71 do CP, por terem, como administradores da empresa NOVA PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA., desviado R$12.502.163,83 em tributos e acessórios devidos ao Fisco Federal, caluniaram e difamaram o DD. Senhor Procurador da República então atuante nesta cidade, DR. C. A. T., imputando-lhe falsamente fato definido como crime e fato ofensivo à sua reputação e à sua dignidade como Procurador da República e membro do Ministério Público Federal. Segundo a denúncia, o primeiro acusado fez as seguintes declarações em seu interrogatório antes referido: ‘(...) o denunciado acha que não existem débitos relacionados à sua empresa descrita na inicial, achando que o presente processo é fruto de perseguição pessoal em que estariam envolvidas as pessoas do fiscal do município M. A. B. e o Procurador da República C. A. T.; recorda, inclusive, que M. A. B. era acostumado a jogar no bingo de propriedade do denunciado, tendo, numa ocasião, solicitado ao denunciado a obtenção de proveito indevido quando da realização dos jogos, ou seja, jogar para a casa, ganhando comissão; que como a proposta não foi aceita pelo denunciado o fiscal teria iniciado uma perseguição pessoal, a qual culminou com a exigência do pagamento de cinqüenta mil dólares, os quais em parte seriam repassados ao Procurador C. A. T. para que este ‘esquecesse o processo criminal’, que como denunciado recusou a proposta e expulsou o fiscal de seu estabelecimento, este último, na saída, ainda ameaçou, na frente de outros presentes, ‘a federal vai te pegar’; que para a surpresa do denunciado, logo no dia seguinte, viu estampado o seu nome nas manchetes dos jornais, nas quais aparecia o procurador C. A. T. dizendo que o bingo seria fechado; tal fato levou o denunciado a crer que existia algum tipo de ligação entre o procurador e a pessoa de M. A. B., sendo que, hoje, pelos fatos ocorridos, bem como pelo fato de o procurador ter convocado fiscais da Caixa e dito publicamente que os alvarás para funcionamento do bingo não deveriam ser emitidos, o denunciado acredita na existência de uma ligação entre o procurador e M. A. B., achando que o processo é decorrência de uma perseguição pessoal (...)’. Já o segundo acusado, na mesma oportunidade, declarou que ‘(...) acha que a pessoa de M. A. B., fiscal da prefeitura de Caxias, é um dos responsáveis pelos processos que tramitam como represália pessoal, uma vez que no início dos bingos, este fiscal ia todas as noites para jogar, sendo conhecido da casa (...); que numa outra noite recorda que o fiscal pediu para jogar na casa sem qualquer pagamento, falando ao denunciado que isso implicaria obtenção de vantagem da fiscalização, mas que o denunciado repeliu a medida (...); já no Central Bingo, recorda ter havido uma séria discussão entre seu pai e o fiscal, no escritório do segundo andar; sendo que quando o fiscal saiu teria ameaçado dizendo ‘teu nome vai sair no jornal, e a federal vem te visitar’ (...); recorda, ainda, de uma outra discussão em que o fiscal mencionou ao pai do denunciado que queria 50 mil reais, para trancar processo criminal, sendo que estava usando o nome do procurador C. A. T.; (...) alguns dias depois desta discussão o nome da empresa saiu nos jornais da cidade, como devedora de tributos, bem como o nome do pai do denunciado, com 210 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 a menção de que o procurador C. A. T. iria ingressar com medida contra o bingo; que tais notícias prejudicaram o nome da família (...)’. Afirmou o Ministério Público Federal que o teor de tais declarações demonstra, de forma inequívoca, a intenção dos denunciados de atribuir falsamente a prática do delito de concussão (art. 316 do CP) ao Procurador da República C. A. T., ao dizer que o fiscal de tributos municipais M. A. B. exigiu vantagem indevida em nome do Procurador, a fim de que o estabelecimento NOVA PROMOÇÕES E EVENTOS continuasse operando. A mesma conduta configurou, segundo a denúncia, o delito de difamação, uma vez que tal declaração, atribuindo-lhe falsamente a prática do delito do art. 316 do CP e, bem assim, conduta desonesta, ofendeu a reputação de ilibado membro do Ministério Público Federal e sua dignidade de Procurador da República, agravada por ter sido dirigida contra este no exercício de sua função. Asseverou o Ministério Público Federal que a acusação configurou tática defensiva dos Réus para desviar o foco dos delitos contra a ordem tributária, fragilizando e desqualificando o órgão Ministerial, isso sem saber que o procedimento relativo ao fechamento de casas de bingo estava sendo tratado de forma coordenada uniforme no âmbito da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul e no País, sabendo, porém, que tais atos tinham sido tomados a partir de decisão judicial da 1ª Vara Federal desta cidade. Em seguida, narrou o Ministério Público Federal que, praticamente um mês após os fatos acima descritos, nos dias 25 e 26.04.2001, o denunciado L. C. F. novamente caluniou e difamou a vítima, imputando-lhe falsamente fato definido como crime e fato ofensivo à sua reputação de Procurador da República e sua dignidade de membro do Ministério Público Federal, quando prestou declarações à Rádio Caxias e ao Jornal O Pioneiro. Em 25.04.2001, às 17h30min, durante a exibição do programa Jornal Caxias - Edição da Tarde pela Rádio Caxias, em entrevista aos repórteres ALBERTO MENEGUZZO e CIRO FABRIS NETO, o primeiro denunciado declarou: ‘Pois é nós estamos ainda em tratativas para reabrir o ...o nosso bingo agora tudo, tudo isso aí me estranha...me estranha esse...essa posição da Caixa Econômica porque nós estávamos no prazo que ela tinha nos dado para apresentar a documentação quando a nossa casa foi fechada pelo Procurador da República (...) Agora a respeito do Central Bingo e do Bingo da Sorte, a história toda meus caros ouvintes e.. Alberto, ela começou através de um fiscal da Prefeitura, que se chama M. A. B., que vivia nos achacando, um cara que jogava bingo, era viciado no jogo, queria jogar de graça e queria levar vantagem sim, e nos ameaçava a todo instante com...com denúncia junto ao Procurador da República (...)’ ALBERTO – Como é o nome do cidadão L. C. F.? L. C. F. – É M. A. B., é ele que manda no setor de fiscalização, é ele que usava o nome do senhor Procurador da República inicialmente, dizendo que queria dinheiro do Central Bingo para evitar uma queixa-crime, sob sonegação de impostos, (...) na última vez que veio, usando o nome do Procurador da República, C. A. T., e estranhamente também, cada vez que me achacava, no outro dia o senhor Procurador usava R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 211 a imprensa para dizer que tinha uma diferença comigo, que ia fechar a minha casa e que não sei o que, quando aliviava dois ou três dias isso, lá vinha o seu M. B. de novo para a minha casa, pedindo cinqüenta mil dólares, porque teria que dar uma parte ao senhor Procurador, e eu me neguei a fazer esse tipo de coisa, porque não faço e taí as conseqüências que eu estou pagando, o meu bingo fechado os outros trabalhando e não me deram condições de eu trabalhar, e só tô fazendo isso através da imprensa, no espaço que você tá me dando, porque essas pessoas também usaram a imprensa pra me atacar, pra mentir pra opinião pública que tem muita mentira no meio disso, e tudo isso que eu estou falando está no meu depoimento junto a ... ao Ministério Público Federal. ALBERTO – O senhor, o... o... o senhor tem noção ... Dr. L. C. F. da ... da gravidade dessas denúncias, o senhor tá dizendo o seguinte, que o M. A. B. é um cidadão corrupto, fiscal da Prefeitura, ele que manda lá e ele estaria pedindo dinheiro pro senhor ... L. C. F. (interrompendo) - usando o nome do Procurador da República... ALBERTO – pra repartir esse valor, só um pouquinho L. C. F., ele tá, ele estaria pedindo dinheiro pro senhor pra repartir com o Procurador da República e? L. C. F. – Exatamente isso está lá no meu depoimento (...) ALBERTO – E...e chegou haver tentativa de extor...?(...) L. C. F. – É o do C. A. T. ...(pausa)...ele usava o nome do Procurador pra me achacar sistematicamente cada vez que eu me negava disso lá vinha uma notificação dele, (...)’. Posteriormente, no dia 26.04.2001, o Jornal O Pioneiro publicou novas declarações de L. C. F., por meio das quais novamente difamou e caluniou o Procurador da República C. A. T., nos mesmos termos das declarações anteriores: ‘(...) Sem rodeios, L. C. F. acusa o agente tributário da Secretaria Municipal da Fazenda M. A. B. - a quem classifica de corrupto - de tentar intimidá-lo e extorqui-lo, usando o nome do procurador da República C. A. T. (...) a ira de L. C. F. culminou quando soube do resultado do novo alvará solicitado para reabertura do estabelecimento. O documento foi expedido pelo Município com a ressalva: não liberado para bingo. (...) ‘Primeiro ele (o agente tributário) era cliente dos bingos, depois começou a querer jogar de graça, a pedir dinheiro, depois me ameaçava com o C. A. T. (...), dizendo que tinha que lhe dar o dinheiro, pois do contrário haveria queixa crime e a casa seria fechada. E conforme ele falava isso, no outro dia vinham manifestações do procurador na imprensa, que ficava me condenando, me enxovalhando perante a sociedade com coisas que não fecham com a realidade’, acusa L. C. F.’. Na ocasião, segundo a denúncia, o acusado já tinha conhecimento de que os atos de fechamento de casas de bingo foram realizados por ordem judicial abrangendo todas as casas de bingo da circunscrição federal de Caxias do Sul em situação irregular, mediante procedimento coordenado adotado pela Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, com o que entende que os crimes praticados por intermédio da Rádio Caxias e do Jornal O Pioneiro configuram, mais uma vez, tentativa de fragilizar a acusação perante a opinião pública como manobra da defesa. Disse que L. C. F. responde a quatro ações penais perante a Justiça Federal de Caxias do Sul, e L. A. F. a três, todas por sonegação de contribuições sociais e tributos 212 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 federais, somando R$ 34.153.800,91 devidos ao Fisco Federal e ao INSS, sendo esta a motivação dos crimes contra a honra por eles perpetrados. Requereu a condenação dos acusados, imprimindo-se ao feito o rito da Lei 5.250/67, cumpridos os arts. 43 e 57 da mesma Lei quanto à notificação da empresa de radiodifusão pelo teor do documento da fl. 120 (...)”. Requerida pelo Ministério Público Federal a observância ao disposto no art. 43, §1º, da Lei 5.250/67, a mesma foi acolhida, seguindo o processo o rito procedimental especial da legislação supra-referida, porquanto parte dos delitos descritos na denúncia deu-se por meio da imprensa. (fl. 294) Regularmente citados os réus (fls. 295 e 297), apresentada defesa prévia (fls. 310/313), foi a denúncia recebida em 05.11.2001. Seguindo-se a instrução do feito, os réus foram interrogados (fls. 364/370 e 378/399), procedendo-se a ouvida das testemunhas arroladas pela acusação. (fls. 400/423) Em decisão de fl. 371, determinou o juízo a ouvida da testemunha M. A. B., na qualidade de testemunha referida nos autos. (termo de transcrição de depoimento às fls. 441/452) Às fls. 430/431, os denunciados requereram a expedição de ofícios ao DETRAN, a fim de obter certidão de veículos adquiridos em nome do Procurador da República, C. A. T., e sua esposa, bem como ao Chefe do Ministério Público Federal da 4ª Região, a fim de perquirir acerca da existência de procedimento administrativo com relação aos fatos articulados nos presentes autos envolvendo a atividade do Procurador C. A. T. Requereu, ainda, a oitiva do Prefeito Municipal de Caxias do Sul, Gilberto Spier Vargas, como testemunha referida, aduzindo a isonomia processual em relação à testemunha M. A. B. (fl. 432) Após manifestação do MPF acerca dos requerimentos supramencionados (fls. 454/462), em decisão de fls. 463/465, entendeu o julgador monocrático por indeferir os pedidos formulados pelos réus. Apresentadas alegações finais por parte do Ministério Público Federal (fls. 477/487) e pelos acusados. (fls. 492/501) Irresignados com a decisão constante às fls. 463/465, os réus ingressaram, neste Tribunal, com pedido de correição parcial, requerendo, liminarmente, fosse suspensa a instrução do feito (fls. 503/515), a qual foi negada (fl. 518). No mérito, o então relator, Desembargador Federal R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 213 Vladimir Freitas, entendeu por deferir parcialmente a correição, tão-somente, para permitir a juntada de documentos. (fls. 545/550) Procedida a juntada da documentação, manifestou-se o Ministério Público Federal pelo desentranhamento de parte dos documentos por ventilarem fatos estranhos a presente lide (fl. 562), no que foi atendido pelo magistrado a quo. (fl. 563) Apresentadas alegações finais por parte da defesa – oportunidade em que noticiado o ingresso de nova correição parcial, agora, com relação à decisão de fl. 563 (fls. 567/568) – entendeu o julgador de primeiro grau por reconsiderar sua decisão, determinando fosse a defesa intimada para reapresentação de ditos documentos (fl. 579), no que foi atendido (fls. 586/587), restando prejudicada a correição parcial interposta. Após, sobreveio sentença, publicada em 13.09.2002 (fl. 629), julgando parcialmente procedente a denúncia para condenar L. A. F., pela prática do crime previsto no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP, às penas de 01 (um) ano e 06 (seis) meses de detenção e de 50 (cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos, bem como para condenar L. C. F., pela prática dos delitos previstos no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP, e art. 20, c/c art. 23, II, da Lei 5.250/67, às penas de 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses de detenção e de 150 (cento e cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos. Com relação ao réu L. A. F., a pena corporal restou substituída por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária correspondente à metade de um salário mínimo mensal, pelo tempo da pena corporal. Quanto ao réu L. C. F., deixou o sentenciante de efetuar a substituição, por entender não-atendidos os requisitos do art. 44, I e III, do CP, fixando o regime semi-aberto como o inicial de cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b, do CP). (fls. 589/628) Inconformada, apelou a defesa, sustentando, em síntese (fls. 248/263): a) prefacialmente, a impossibilidade de negativa da ouvida do Chefe do Poder Executivo Municipal, como testemunha referida pela defesa, por infringência à isonomia processual entre as partes; b) no mérito, no tocante ao réu L. A. F.: b.1) a ausência de dolo específico, uma vez que apenas reproduziu o que ouviu de seu genitor, e em interrogatório judicial, estando presente, 214 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 pois o animus defendendi; b.2) em assim não o sendo, seja afastado o dolo eventual reconhecido na sentença, por se tratar de erro invencível, faltando ao apelante a consciência da falsidade, devendo ser excluída a condenação a título de calúnia; Quanto ao réu L. C. F.: b.3) negativa de autoria, pois nunca partiu diretamente do apelante a afirmação caluniosa no sentido de que o Procurador da República houvesse praticado o crime de concussão, mas sim do Fiscal do Município, M. A. B., pelo que inexistente ofensa à honra objetiva da vítima; b.4) o animus defendendi, uma vez que “a perseguição da vítima ao apelante é inconsteste” e, ainda, diante da conduta da vítima “solapando, inclusive, atribuições jurisdicionais, quando denuncia e de igual forma condena pessoas a que respondem ação penal, violentando princípios constitucionais da preservação de imagem, da moral, e dos efeitos somente após sentença criminal transitada em julgado (...)” (fls. 660 e 663); b.5) que os testemunhos colhidos não são aptos à formação de um juízo condenatório, porquanto não evidenciam, de forma cabal, a prática do delito descrito na denúncia por parte do apelante; b.6) exclusão da ilicitude, nos termos aduzidos na defesa do co-réu L. A. F.; c) no que tange à dosimetria das penas: c.1) em relação ao réu L. A. F., insurge-se quanto à avaliação negativa dos vetores do art. 59 do CP, devendo ser reduzida a pena-base para o mínimo legal; c.2) quanto ao co-réu L. C. F., igualmente, requer a redução da pena-base, por se tratar de réu primário, sem condenação transitada em julgado, devendo a pena-base aproximar-se do mínimo legal. Além disso, aduz que o número de dias-multa fixado na sentença discrepa da realidade financeira dos apelantes, devendo ser reduzido. Após, subiram os autos a este Tribunal, tendo a Procuradoria Regional da República ofertado parecer pelo não-provimento do recurso (fls. 667/675) dos apelantes. É o relatório. À revisão. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 215 VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: Trata-se de apelação interposta pela defesa contra sentença que condenou o réu L. A. F., pela prática do crime previsto no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP, às penas de 01 (um) ano e 06 (seis) meses de detenção e de 50 (cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos, bem como condenou o réu L. C. F., em concurso material, pela prática dos delitos previstos no art. 138, c/c o art. 141, II, do CP e art. 20, c/c art. 23, II, da Lei 5.250/67, às penas de 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses de detenção e de 150 (cento e cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 50% do salário mínimo vigente à época dos fatos. Com relação ao réu L. A. F., a pena corporal restou substituída por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, esta correspondente à metade de um salário mínimo mensal pelo tempo da pena corporal. Quanto a L. C. F., deixou o sentenciante de efetuar a substituição, por entender não-atendidos os requisitos do art. 44, I e III, do CP, fixando o regime semi-aberto como o inicial de cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b, do CP). (fls. 589/628) Inconformados, apelaram os réus, sustentando, em síntese (fls. 248/263): a) prefacialmente, a impossibilidade de negativa, por parte do juízo, da ouvida do Chefe do Poder Executivo Municipal, como testemunha referida pela defesa, por infringência à isonomia processual entre as partes; b) no mérito, no tocante ao réu L. A. F.: b.1) a ausência de dolo específico, uma vez que apenas reproduziu o que ouviu de seu genitor, e em interrogatório judicial, estando presente, pois o animus defendendi; b.2) em assim não o sendo, seja afastado o dolo eventual reconhecido na sentença, por se tratar de erro invencível, faltando ao apelante a consciência da falsidade, devendo ser excluída a condenação a título de calúnia; No tocante ao réu L. C. F.: b.3) negativa de autoria, pois nunca partiu diretamente do apelante a afirmação caluniosa no sentido de que o Procurador da República hou216 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 vesse praticado o crime de concussão, mas sim do Fiscal do Município, M. A. B., pelo que inexistente ofensa à honra objetiva; b.4) o animus defendendi, uma vez que “a perseguição da vítima ao apelante é inconteste” e, ainda, diante da conduta da vítima “solapando, inclusive, atribuições jurisdicionais, quando denuncia e de igual forma condena pessoas a que respondem ação penal, violentando princípios constitucionais da preservação de imagem, da moral, e dos efeitos somente após sentença criminal transitada em julgado (...)” (fls. 660 e 663); b.5) que os testemunhos colhidos não são aptos à formação de um juízo condenatório, porquanto não evidenciam, de forma cabal, a prática do delito descrito na denúncia por parte do apelante; b.6) exclusão da ilicitude, nos termos aduzidos na defesa do co-réu L. A. F.; c) no que tange à dosimetria das penas: c.1) em relação ao réu L. A. F. insurge-se quanto à avaliação negativa dos vetores do art. 59 do CP, devendo ser reduzida a pena-base para o mínimo legal; c.2) quanto ao co-réu L. C. F., igualmente, requer a redução da pena-base, por se tratar de réu primário, sem condenação transitada em julgado, devendo a pena-base aproximar-se do mínimo legal. Além disso, aduz que o número de dias-multa fixado na sentença discrepa da realidade financeira dos apelantes, devendo ser reduzido. Passo, pois, à análise das razões do recurso. 1) Preliminarmente: Cerceamento de defesa em razão da negativa, por parte do juízo a quo, da ouvida do Chefe do Poder Executivo Municipal na qualidade de testemunha referida Insurge-se a defesa quanto à negativa, por parte do juízo a quo, da ouvida do Prefeito Municipal de Caxias do Sul na qualidade de testemunha referida, tal como ocorrido com a testemunha M. A. B., pena de ofensa à isonomia processual entre as partes. Sem razão. No tocante à decisão de fl. 371 - que determinou a ouvida da testemunha M. A. B. - não há falar em inobservância ao princípio da isonomia processual entre as partes, porquanto, nos termos do art. 209 do CPP, “o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemu217 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 nhas, além das indicadas pelas partes”, dispondo ainda o § 1º do aludido dispositivo que “se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem”. Além disso, a irresignação já havia sido ventilada na Correição Parcial nº 2002.04.01.007814-6/RS, tendo o então relator, Desembargador Federal Vladimir Freitas, assim decidido: “(...) No que diz respeito à oitiva do Sr. Prefeito municipal de Caxias do Sul, inexiste também, a meu ver, qualquer obstáculo à administração do processo. Isto porque a magistrada indeferiu requerimento relativo à testemunha referida pelo requerente e quanto a este tópico, é a produção de prova pautada no livre convencimento do juiz (...)”. Ademais, a alegação da importância da ouvida do Chefe do Executivo no sentido de confirmar ou não que o co-réu L. C. F. compareceu em seu Gabinete reclamando da conduta de seu subordinado M. A. B. não merece prosperar, porquanto irrelevante à configuração do delito ora em análise, sobretudo se considerado o farto conjunto probatório constante nos autos, o qual se mostra suficiente à caracterização de um juízo seguro de condenação, como adiante se verá. Nesses termos, rejeito a preliminar aventada. 2) Mérito: Antes de enfrentar as razões do recurso de apelação, cumpre salientar que, em se tratando do crime previsto no artigo 138 do Código Penal, que tem como conduta punível a atribuição a outrem, falsamente, da prática de fato definido como crime, é de se ressaltar que se incrimina o comportamento de quem aponta a terceiro, inveridicamente, a prática de crime, tendo como elemento subjetivo do tipo, prima facie, o dolo de dano, ou seja, o sujeito tem a intenção de macular a reputação da vítima, atingindo sua honra objetiva. Destarte, consuma-se o delito no instante em que a imputação chega ao conhecimento de um terceiro que não a vítima. No caso dos autos, portanto, impende verificar, primeiramente, se houve a imputação falsa de fato definido como crime e, em caso positivo, se tal imputação foi proferida com o objetivo de defesa de um direito ou com o intuito de ofensa à honra objetiva da vítima. Com relação ao co-réu L. A. F. Aduz a defesa a ausência de dolo específico, requisito indispensável à configuração do delito de calúnia, restando caracterizada, tão-somente, 218 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 a intenção de defender-se (animus defendendi) em processo judicial movido contra si. Acerca de tal alegação, destaquem-se trechos do interrogatório de L. A. F., nos autos da Ação Penal nº 2001.71.07.000672-3, em que responde pela prática de crime contra a ordem tributária (fls. 31/32): “(...) que trabalha com o pai desde os 14 ou 15 anos de idade, e ia até o escritório do bingo diariamente, porque sua atividade exclusiva nos últimos 3 anos, assumindo o negócio sempre que seu pai se ausentava (...) acha que a pessoa de M. A. B., fiscal da prefeitura de Caxias, é um dos responsáveis pelos processos que tramitam como represália pessoal, uma vez que no início dos bingos, este fiscal ia todas as noites para jogar, sendo conhecido da casa (...) recorda de uma noite, sendo que até esta data não sabia da profissão do fiscal, e que este pediu ao denunciado para segurar um cheque de despesas efetuadas no bingo, ocasião em que se apresentou como fiscal, quando o denunciado negou o benefício ao fiscal, dizendo que só o pai poderia autorizar; que numa outra noite recorda que o fiscal pediu para jogar na casa sem qualquer pagamento, falando ao denunciado que isto implicaria obtenção de vantagem da fiscalização, mas que o denunciado repeliu a medida, verificando que o fiscal chegou a conversar com seu pai sobre o assunto, mas pelo que sabe sem sucesso; que depois o fiscal ficou uns três dias sem aparecer, e quando voltou veio acompanhado de outros fiscais, por volta de 1 hora da manhã, autuando a casa em valores absurdos, sendo que na época havia uma grande discussão jurídica sobre se o pagamento de impostos à prefeitura, por parte dos bingos, era devido; já no Central Bingo, recorda ter havido uma séria discussão entre seu pai e o fiscal, no escritório do segundo andar, sendo que quando o fiscal saiu teria ameaçado dizendo ‘teu nome vai sair no jornal, e a federal vem te visitar’ isto depois de o pai do denunciado ter dito ‘tu não vai me comprar’ (...) recorda, ainda, de uma outra discussão em que o fiscal mencionou ao pai do denunciado que queria 50 mil reais para trancar processo criminal, sendo que estava usando o nome do Procurador C. A. T. (...) alguns dias depois desta última discussão o nome da empresa saiu nos jornais da cidade, como devedora de tributos, bem como o nome do pai do denunciado, com a menção de que o procurador C. A. T. iria ingressar com medida contra o bingo; que tais notícias prejudicaram o nome da família, abalando o crédito, bem como prejudicando o movimento da casa (...)”. Pelo que se depreende, as ilações de L. A. F. quanto à pessoa do Procurador da República foram proferidas no intuito de aparelhar sua defesa no processo em que responde pela prática do crime de sonegação fiscal. A propósito, a prova colhida nos presentes autos corrobora tal afirmação. Veja-se o interrogatório do acusado às fls. 396/399: “(...) JUÍZA: O senhor referiu no outro processo que esse fiscal teria exigido esse valor de cinqüenta mil em nome de um Procurador da República, do Dr. C. A. T. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 219 RÉU: Isso. JUÍZA: O senhor ouviu isso também? RÉU: Eu ouvi C. A. T., o Procurador da Rep...não vou te precisar, ou C. A. T., ou Procurador, mas ele usava. (Omissis) JUÍZA: O senhor entende que há alguma vinculação desse fiscal com o Dr. C. A. T.? RÉU: Não tenho certeza, não vou lhe responder. JUÍZA: O senhor em algum momento afirmou que haveria alguma vinculação? RÉU: Não, eu acho que eu não devo ter afirmado, eu acho que coisas que aconteceram que nos levaram a crer, ou pelo menos me deixaram dúvidas. JUÍZA: De que? RÉU: Daquilo que ele falava. Coisas que ele falava e daqui a pouco, um tempo depois saía no jornal, ele dizia o teu bingo vais fechar, eu vou dar o recado para ele, ele dizia, mas coisas assim que eu pegava no ar (...). (Omissis) JUÍZA: Sim, mas o senhor não respondeu o que eu lhe perguntei? Havia alguma vinculação...O senhor entendia que havia alguma vinculação entre o fiscal e o Procurador? RÉU: Eu achava...Eu achei estranho as coisas que ele falava para o meu pai e que depois começavam a acontecer. Agora, te precisar que ele tenha dito isso aí pra mim, porque o Procurador vai fazer isso ou aquilo eu não posso te dizer (grifou-se). JUÍZA: Ele nunca lhe falou, então, eu preciso de dinheiro pra repartir com o Procurador... RÉU: Pra mim não. JUÍZA: Ele falou isso com seu pai? RÉU: Possivelmente tenha falado com meu pai. JUÍZA: O senhor sabe se ele falou? RÉU: Foi isso que o meu pai comentou. JUÍZA: O senhor tem consciência de que a partir do momento em que o senhor disse que acha estranho que depois que o fiscal tenha iniciado a fazer essas ameaças e o seu pai então e o senhor também tenham se recusado a atender aquilo que ele estava pedindo, e que logo em seguida, como o senhor se refere, começou a acontecer uma série de situações, a família sendo exposta ao jornal, como o senhor está se referindo, e que isso aconteceu a partir do momento em que esse fiscal ameaçou dizendo que era pra que a família se cuidasse, pra que vocês se cuidassem, que a Federal ia chegar e ia fazer alguma coisa, o senhor tem consciência de que o senhor pode estar imputando um fato ofensivo à reputação do Procurador da República e da mesma forma o senhor pode estar acusando o Procurador da República de estar praticando um crime? O senhor tem consciência de que esta suspeita do senhor tem essa conotação? RÉU: Olha, doutora, é que nem eu falei, em momento algum eu acuso ele diretamente, mas que fatos que aconteceram, fatos que vieram a acontecer, e que eu, na minha liberdade de expressão, eu tenho direito de imaginar coisas (...)”. 220 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Ora, como se vê, L. A. F. limitou-se a reproduzir o narrado por seu pai, não restando demonstrado em nenhum momento que ele próprio tenha imputado ao Procurador da República o cometimento de crime de concussão (Art. 316 do CP - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida). Ademais, é de se notar que no presente interrogatório o réu cingiu-se a responder os questionamentos formulados pelo juízo, relatando o que havia ouvido e/ou presenciado e, pelo que se constata, se imputação houve, ainda que de forma indireta, certo é que não partiu de L. A. F., pois que suas declarações evidenciam, tão-somente, o animus narrandi. Desse modo, não restando suficientemente comprovado nos autos o ânimo do agente em caluniar o Parquet federal, essencial para a caracterização do delito, a absolvição é medida que se impõe. Com relação ao co-réu L. C. F. – Calúnia (art. 138 do Código Penal) Aduz o apelante não haver imputado ao Procurador da República C. A. T. fato definido como crime, mas sim que o Fiscal de Tributos da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, M. A. B., falava em nome do Procurador. No tópico, convém transcrever excertos do depoimento prestado por L. C. F. ao juiz da 2ª Vara Federal de Caxias do Sul nos autos da Ação Penal nº 2001.71.07.000672-3, em que responde por crime de natureza fiscal (fls. 28 v./30): “(...) o denunciado acha que não existem débitos relacionados à sua empresa descrita na inicial, achando que o presente processo é fruto de perseguição pessoal em que estariam envolvidas as pessoas do fiscal do município M. A. B., e o Procurador da República C. A. T.; recorda, inclusive, que M. A. B. era acostumado a jogar no bingo de propriedade do denunciado, tendo numa certa ocasião solicitado ao denunciado a obtenção de proveito indevido quando da realização do jogo, ou seja, ‘jogar para a casa’ ganhando comissão; que como a proposta não foi aceita pelo denunciado o fiscal teria iniciado uma perseguição pessoal, a qual culminou com a exigência do pagamento de cinqüenta mil dólares, os quais em parte seriam repassados ao Procurador C. A. T., para que este ‘esquecesse o processo criminal’”. “(...) que para surpresa do denunciado, logo no dia seguinte, viu estampado o seu nome nas manchetes dos jornais, nas quais aparecia o procurador C. A. T. dizendo que o bingo seria fechado; que tal fato levou o denunciado a crer que existia algum tipo de ligação entre o procurador e a pessoa de M. A. B., sendo que hoje, pelos fatos ocorridos, bem R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 221 como pelo fato de o procurador ter convocado fiscais da Caixa e dito publicamente que os alvarás para funcionamento do bingo não deveriam ser emitidos, o denunciado acredita na existência de uma ligação entre o procurador e M. A. B., achando que o processo é decorrência de uma perseguição pessoal, visto que nada deve (...)” “(...) que sabe que foi denunciado por falta de recolhimento de contribuições sociais, algum tempo depois, de outros envolvidos, achando que tal fato tem relação com o fiscal M. A. B., e sua ligação com o Procurador C. A. T. (...)” (grifou-se). Veja-se, ainda, o depoimento da testemunha E. F. A., magistrado que presidiu a audiência em que colhido o depoimento de L. C. F. nos autos da ação penal supra-referida (fls. 403/404): “(...) JUÍZA: Perfeito. Então, compromissada a testemunha eu vou passar à inquirição. O senhor atuou como presidente do feito no processo, inicialmente junto à Segunda Vara Federal de Caxias do Sul, em que eram réus L. C. F. e L. A. F. O senhor recorda dessa situação? TESTEMUNHA: Recordo, excelência, fizemos uma audiência, seria objeto desse processo, que V. Exa. agora instrui, no qual presidi a audiência, ouvimos, interroguei L. C. F., naquela ocasião me parece que o Dr. C. A. T. estava recebendo um prêmio em Brasília, por distinção em relação à sua atividade profissional em Caxias do Sul, e, se eu não estou equivocado, naquele momento, no interrogatório, o réu teria deixado muito claro que a atuação do Dr. C. A. T. em relação a ele, seria uma persecução mais no sentido pessoal, motivada por algum ganho financeiro, dando a entender que seria algo ligado a suborno, do que propriamente uma atividade isenta em relação aos bingos em Caxias do Sul. JUÍZA: Isso então L. C. F. referiu ao ser interrogado? TESTEMUNHA: Perfeito. JUÍZA: O senhor recorda se ele fez alguma referência a uma vinculação entre o Dr. C. A. T. e um fiscal da prefeitura municipal de Caxias do Sul? TESTEMUNHA: Sim, houve uma menção a esse fato, de que haveria alguma forma de ligação entre os dois, e que isso... e que o fiscal esse, inclusive, teria dito que estaria exigindo dinheiro do L. C. F., para protegê-lo frente à atividade do Dr. C. A. T. como procurador da República em Caxias do Sul. Dando a entender que seria um agente do Dr. C. A. T., algo nesse sentido, não lembro, já faz algum tempo (...)” (grifou-se). Com efeito, depreende-se do ora esposado, se não a vontade livre e consciente do agente em imputar voluntariamente à vítima fato inverídico definido como crime, pelo menos, o dolo eventual, uma vez que, ao fazer tais declarações, assumiu o risco de produzir o resultado. Nessa linha, como bem ressaltado pela julgadora a quo (fl. 604), 222 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 “não se pode exigir do denunciado que proceda à sua auto-acusação, dizendo que efetivamente acusou a vítima da prática do delito de concussão. Entretanto, sua atitude, reprisada no interrogatório no presente feito, sem qualquer embasamento probatório consistente que não suas meras suspeitas, estas desprovidas de fundamentação fática e lógica, de externar tais suspeitas, de forma tão veemente, dá conta de que, no mínimo, assumiu o risco de tais declarações, ou seja, de imputar a alguém fato definido como crime, ainda que tenha dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade da imputação, o que configura o dolo eventual antes mencionado”. Sobre o tema já decidiu o e. STF (RT 565/400): “É característico dos crimes contra a honra, calúnia, difamação e injúria praticados por pessoas de certo preparo intelectual o dizer com disfarce ou ambigüidade aquilo que outra pessoa menos ilustrada diria cruamente. Nem por isso o dolo é menor. O homem inculto, que refere com palavras duras o fato atributivo de prevaricação, pratica o crime com a mesma gravidade daquele que o faz com certas delicadezas e subterfúgios. Atingem da mesma forma a honorabilidade da pessoa”. Por outro lado, insubsistente a tentativa de desvalorizar o depoimento da testemunha E. F. A. sob o argumento de que este, na condição de Juiz Federal, proferira sentença condenatória contra o réu em outra ação penal (Processo nº 2001.71.07.000672-3), inclusive decretando sua prisão preventiva, entendendo o réu que “não cabe à testemunha, na condição de instrutor de um processo, vir em outro depor e obsequiar o seu sentimento subjetivo”. Em verdade, não se verifica qualquer mácula que venha a infirmar a credibilidade da testemunha em comento. O depoimento do magistrado sobre fato de que teve ciência em razão do seu dever de ofício é valorado como qualquer outro, servindo de subsídio ao livre convencimento do julgador, tal como ocorre em relação ao restante conjunto probatório. Desse modo, tenho não restar dúvida acerca do animus do agente de imputar ao Procurador da República a prática de um fato típico (concussão), atingindo-a em sua honra. De outra parte, tenho que a falsidade do fato imputado, igualmente, restou evidenciada nos autos. Note-se que as insinuações proferidas no sentido de que haveria uma perseguição pessoal contra o réu por parte do Procurador da República, levando o apelante a “imaginar coisas”, ou seja, que realmente haveria alguma ligação do fiscal M. A. B. com o Procurador C. A. T. e, caso a quantia de 50 mil fosse paga ao fiscal, não teria sido deflagrado o processo 223 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 criminal, mostram-se totalmente infundadas. Consoante se verifica da prova produzida, o réu L. C. F. havia sido denunciado pelo Ministério Público Federal, juntamente com outros agentes – estes, também proprietários de casa de bingo na cidade de Caxias do Sul – em 05.11.99, sendo subscritor da denúncia o Procurador da República L. F. (fls. 36/41). Já o Procurador C. A. T. somente assumiu suas funções na cidade de Caxias do Sul em 2000, dando seguimento, assim, ao trabalho já iniciado por seu colega de profissão, afastando o caráter de perseguição pessoal alegado. Gize-se que tais procedimentos se encontram elencados na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar nº 75, de 20.05.93), sendo dever dos membros do MPF promover as diligências cabíveis sempre que verificada alguma suspeita de irregularidade. Ademais, os documentos de fls. 36/55 bem evidenciam que a problemática acerca da regulação das casas de bingo, e a conseqüente investigação dos responsáveis, foi medida imposta em âmbito nacional a partir da edição da Lei 9.981, de 14.07.2000, que alterou dispositivos da Lei nº 9.615/98 (instituiu normas gerais sobre desportos e outras providências - Lei Pelé), e do Decreto nº 3.659, de 14 de novembro de 2000, que passou a regulamentá-la, estabelecendo a responsabilidade da Caixa Econômica Federal, a qual cabe, ao tomar conhecimento de jogo de bingo funcionando em desacordo com a legislação, comunicar, de imediato, o fato ao Ministério Público. (art. 17 do Dec. nº 3.659/2000) Por outro lado, não se diga que o réu assim teria agido com o fito de defender-se ou com intuito narrativo, pois tais argumentos não encontram amparo no conjunto probatório, já exaustivamente mencionado, a ponto de descaracterizar o dolo de sua conduta. Além disso, teve o réu oportunidade de demonstrar a veracidade de suas alegações, por força do disposto no art. 138, § 3º. Todavia, embora afirmando veementemente que comprovaria o todo alegado, não apresentou a exceção de verdade, com o que se conclui que, efetivamente, foi temerário em suas asserções. Por oportuno, a lição de Luiz Regis Prado, in Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 2 – Parte Especial, 2ª edição, ed. RT, 2002, pág. 226: “(Omissis) No delito de calúnia, previsto pelo artigo 138, caput, exige-se que o agente tenha 224 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 consciência da falsidade da imputação feita (dolo direto). Se o autor considera como seriamente possível a falsidade da imputação e, apesar da dúvida, prefere arriscar-se a imputá-la a renunciar à ação (dolo eventual), também se caracteriza o delito insculpido no caput”. Assinale-se, outrossim, que as conjeturas articuladas pelo réu no sentido de demonstrar a veracidade do fato delituoso imputado à vítima, tais como “a intimidade entre ambos (Procurador da República e Fiscal do Município), quando os aspectos funcionais e de competência são totalmente diversos” ou “(...) é notório o esforço de M. A. B. (Fiscal do Município) em declinar que a porta do Gabinete do Procurador estava aberta (...)” ou, ainda, “ (...) o Dr. C. A. T. omitiu os contatos mantidos com o Fiscal, no seu Gabinete funcional. Qual razão? Certo que não há relação funcional, disso admite o apelante, entretanto altamente estranhável o vínculo ocorrido (...)”, não passam de meras insinuações desprovidas de fundamentação, mostrando-se insuficientes e precárias à argüição da exceptio veritatis, nos termos dispostos no já mencionando art. 138, § 3º, do Código Penal. Assim, conclui-se que o apelante imputou ao Procurador da República C. A. T. fato descrito como crime (art. 316 do CP), do que decorre o acerto na condenação pelo crime de calúnia, bem assim no que tange à aplicação da majorante do art. 141, II, do CP (ofensa proferida contra Procurador da República em razão de suas funções), porquanto a afirmação do réu tida por ofensiva à honra da vítima descreveu especificadamente os elementos de tipo penal caracterizadores do crime de calúnia. Com relação ao réu L. C. F. – Delito de calúnia perpetrado na imprensa A Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa) em seu art. 20 dispõe que aquele que caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, através dos meios de informação e divulgação, sujeita-se à pena de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, além de multa. Como bem explicitado pela julgadora monocrática, a única diferença conceitual existente entre os delitos de calúnia e difamação previstos pelos arts. 138 e 139 do CP e os previstos nos arts. 20 e 21 da Lei 5.250/67 é a especial circunstância de ter sido a ofensa perpetrada por meio dos chamados meios de informação e de divulgação. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 225 Assim, no caso em tela, oportuno transcrever trechos da entrevista concedida pelo acusado aos repórteres Alberto Meneguzzo e Ciro Fabris Neto da Rádio Caxias, programa Edição da Tarde, em data de 25.04.2001: “ (...) ALBERTO: Tudo bem. Que que lhe parece essa decisão da Caixa Federal? L. C. F.: - Pois é nós estamos ainda em tratativas para reabrir o...o nosso bingo agora tudo, tudo isso aí me estranha...me estranha esse... essa posição da Caixa Econômica porque nós estávamos no prazo que ela tinha nos dado para apresentar a documentação quando a nossa casa foi fechada pelo Procurador da República. Todo mundo sabe disso, inclusive, a direção da Caixa deu entrevista a esse respeito. Agora a respeito do Central Bingo e do Bingo da Sorte, a história toda meus caros ouvintes e...e Alberto, ela começou através de um fiscal da Prefeitura, que se chama M. A. B., que vivia nos achacando, um cara que jogava bingo, era viciado no jogo, queria jogar de graça e queria levar vantagem sim, e nos ameaçava a todo instante com... com denúncia junto ao Procurador da República, isso acabou acontecendo estranhamente acabou acontecendo e a respeito desse achaque todo eu fiz contato com o senhor Prefeito, coloquei ele ao par da situação no início desse, desse achacamento que... que eu sofri... dentro da minha empresa, uma vez que esse mesmo fiscal sistematicamente, a cada quinze dias, me dava uma notificação de ISQN, de quarenta, cinqüenta mil que totaliza hoje seiscentos mil reais junto à Prefeitura de Caxias do Sul (...) ALBERTO: Como é que é o nome do cidadão L. C. F.? L. C. F.: - É M. A. B., é ele que manda no setor de fiscalização, é ele que usava o nome do senhor Procurador da República inicialmente , dizendo que queria dinheiro do Central Bingo para evitar uma queixa-crime sob sonegação de impostos(...)” (grifou-se). “(...) A prova está... a prova está Alberto, que eu tenho a cada quinze, vinte dias, uma notificação de vinte, trinta, quarenta, cinqüenta mil reais de ISQN que esse cidadão sistematicamente aplicava na minha empresa. E isso porque eu me furtei de atender as exigências dele e atropelei ele dentro da...do meu estabelecimento na última vez que veio, usando o nome do Procurador da República, C. A. T., e estranhamente também, cada vez que achacava, no outro dia o senhor Procurador usava a imprensa pra dizer que tinha uma diferença comigo, que ia fechar a minha casa e que não sei o que, quando aliviava dois ou três dias isso, lá vinha o seu M. A. B. de novo para minha casa, pedindo cinqüenta mil dólares, porque teria que dar uma parte ao senhor Procurador (...) ALBERTO: - O senhor, o... o... o senhor tem noção... Dr. L. C. F. da...da gravidade dessas denúncias, o senhor tá dizendo o seguinte, que o M. A. B. é um cidadão corrupto, fiscal da Prefeitura, ele que manda lá e ele estaria pedindo dinheiro pro senhor... L. C. F. (interrompendo): - usando o nome do Procurador da República... ALBERTO: - ...pra repartir esse valor, só um pouquinho L. C. F., ele tá, estaria pedindo dinheiro pro senhor pra repartir com o Procurador da República e? 226 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 L. C. F.: - Exatamente isso está lá no meu depoimento (grifou-se). CIRO: - O senhor se refere só a notificações consecutivas que totalizam seiscentos mil ou a tentativa de extorsão também? L. C. F.: - Seiscentos mil as notificações que ele me dava sistematicamente que está lá na Prefeitura. ALBERTO: - E...e chegou haver tentativa de extor...? L. C. F.: - e mais olha o absurdo, olha o absurdo, esse mesmo funcionário no momento que eu estava viabilizando legalmente a casa, ele me manda a...a...pra... pra Caixa Econômica Federal, uma relação dos meus débitos pedindo que não fosse liberado meu alvará, isso aí a despeito de seus superiores inclusive, não respeitando hierarquia do funcionário público, porque acredito que o senhor Prefeito nem sabe dessa atitude desse Procurador, mas nós temos isso documentado, está no processo junto ao Ministério Público Federal.(...)”. “(...) ALBERTO: - O...o senhor tá se referindo a que Procurador Dr. L. C. F.? L. C. F.: - Como? ALBERTO: - O senhor tá se referindo a que Procurador? L. C. F.: - Que ele usava o nome? ALBERTO: - É? L. C. F.: - É o do C. A. T. ...(pausa) ...ele usava o nome do Procurador pra me achacar sistematicamente cada vez que eu me negava disso lá vinha uma notificação dele, então isso nós...nós não podemos aceitar, eu não posso aceitar no início volto a dizer eu tinha minhas dúvidas, e depois no decorrer dos dias vendo manifestações públicas, de autoridades do... do... do... do gabarito e da altura que eu citei, eu comecei a ter minhas dúvidas porque vem cá, cada vez que ele vinha me achacar no outro dia vinha uma manifestação publicamente, que iam fechar a minha casa, que minha casa tava irregular, e eu estava dentro do prazo que a Caixa Econômica Federal tinha nos dado para apresentar a documentação(...)” (grifou-se). “(...) ALBERTO: - Tá bom. O senhor sabe Dr. L. C. F., o senhor é uma pessoa experiente, empresário já longa data aqui na área de bingos aqui em Caxias do Sul, que as suas declarações são declarações que vão repercutir muito, o senhor tem provas concretas sobre tudo isso que o senhor está falando? L. C. F.: - Eu tenho, tenho na hora que for solicitada, não resta dúvida que eu tenho (grifou-se). Tem todos os meus funcionários que viram eu atropelar ele mais de uma vez, e ele de dedo em riste dizendo: o Procurador vai te pegar! o Procurador vai te pegar! O Procurador te pega! O federal vai te pegar! E no outro dia a manchete no jornal, então isso aí tá nos autos do meu processo, eu não estou falando coisas que... que... que... ao... ao léu, eu estou falando coisas que qualquer pessoa que se detém no processo todo que nós temos no Ministério Público chega a essa conclusão, infelizmente eu estou fazendo isso publicamente porque esse tratamento foi me dado dessas duas R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 227 autoridades com...com...com o mesmo caminho, só por isso, se eu não ia me restringir ao processo que está instaurado inclusive na...poli...na justiça federal (...)”. Também, destaque-se o afirmado pelo réu em matéria publicada no jornal O Pioneiro de 26.04.2001 (fls.): “(...) ‘Primeiro, ele (o agente tributário) era cliente dos bingos, depois começou a querer jogar de graça, a pedir dinheiro, e depois me ameaçava com o C. A. T., com a Polícia Federal, dizendo que tinha que lhe dar dinheiro, pois do contrário haveria queixa-crime e a casa seria fechada. E conforme ele falava isso, no outro dia vinham manifestações do procurador na imprensa, que ficava me condenando, me enxovalhando perante a sociedade com coisas que não fecham com a realidade’, acusa L. C. F. Ele vai além e diz que, por não ter cedido às ameaças do servidor, a cada 15 dias recebia uma notificação com valores que giravam entre R$ 60 mil a R$ 30 mil, somando hoje uma dívida de R$ 600 mil junto à prefeitura.‘Tudo pelo mesmo fiscal, só porque não atendemos aos pedidos de propina feitos com o uso do nome do procurador’. Isso teria ocorrido até pouco antes do fechamento do Central Bingo (...)”. Como se vê, não restam dúvidas acerca da materialidade e da autoria delitivas. No que toca ao dolo, consoante se infere dos trechos supracolacionados, observa-se nitidamente a vontade livre e consciente de imputar ao douto Procurador da República a prática do crime de concussão, embora não diretamente, mas sempre fazendo o réu questão de mencionar que terceira pessoa – no caso, o fiscal de tributos municipais M. A. B. – “usava o nome do procurador”, o que não afasta a tipificação do delito de calúnia. Reitere-se que o delito de calúnia, também na modalidade prevista na Lei de Imprensa, admite a exceção da verdade (art. 20, § 2º, Lei nº 5.250/67). No entanto, mesmo afirmando ter provas concretas acerca do alegado (fl. 143), o réu jamais as trouxe aos autos, circunstância que, aliada aos demais elementos de prova, levam à conclusão de que o fato típico atribuído ao membro do Ministério Público Federal é falso, tendo tal imputação o firme propósito de lesar o Procurador C. A. T. em sua honra objetiva. Nesse ponto, aliás, valho-me dos argumentos anteriormente expendidos quando da análise do delito de calúnia previsto no Código Penal. Outrossim, quanto ao argumento de as testemunhas Rosilene Pozza e Alberto Meneguzzi, respectivamente, repórteres do Jornal O Pioneiro e Rádio Caxias, terem afirmado que o apelante em momento 228 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 algum proferiu acusações caluniosas à vítima, destaque-se cumprir ao julgador realizar a adequação típica do caso em concreto, cabendo às testemunhas, tão-somente, narrar os fatos que têm conhecimento, sem emissão de qualquer juízo de valor. Ainda, pretende o acusado ver excluída a ilicitude de sua conduta, sob o argumento de que se encontraria diante de erro invencível. Na espécie, não há falar em erro invencível, porquanto, ao contrário do aduzido pelo agente, resta claro que teria condições plenas de discernir se o fato imputado era ou não verdadeiro. In casu, é de se considerar as circunstâncias pessoais do agente (empresário conhecido no Estado, portando em seu currículo um mandato como deputado estadual, “participando ativamente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do RS, inclusive na condição de vice-presidente num determinado período (...) (fl. 28)”, portanto, com razoável sagacidade de modo a prever as conseqüências jurídicas do exercício de sua liberdade de expressão desmedida. Por fim, assinale-se que o presente processo não é o mecanismo processual adequado à discussão quanto à conduta funcional da vítima, conforme erigido à fl. 663, uma vez que eventuais insurgências do réu quanto ao comportamento do Procurador da República deveriam ser aventadas em ação própria, não se prestando tais argumentos à constituição da defesa do acusado nestes autos. Passo à dosimetria das penas. Art. 138, c/c art. 141, II, ambos do Código Penal: Postula o réu a redução da pena-base. O grau de reprovabilidade da conduta é normal à espécie, não havendo razão para avaliação negativa de tal vetor. Quanto aos antecedentes, observo que o réu responde a outras quatro ações penais no âmbito da Justiça Federal – (certidão de fls. 290/291), sendo que o entendimento já firmado nesta turma (ACR 2003.04.01.003269-2, rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 02.07.2003) e no STF (HC 81.759, rel. Ministro Maurício Corrêa, Informativo 262 do STF) é no sentido de que inquéritos e processos penais em andamento caracterizam maus antecedentes. No que toca à conduta social, considerando que “sua valoração se dá em relação à sociedade na qual o acusado esteja integrado, e não em relação à sociedade formal dos homens” (José Antônio Paganella R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 229 Boschi, in Das Penas e seus critérios de Aplicação, ed. Livraria do Advogado, 2ª edição, pág. 202), não vislumbro nos autos nada que venha em desabono ao acusado. Ao contrário. O acusado foi vereador em sua cidade e deputado estadual, não tendo as testemunhas conhecimento de nenhum fato desabonatório à conduta do acusado. Quanto à personalidade, a sentença, ao valorar negativamente tal aspecto, ante o fundamento de que “não há notícia que nos últimos anos tenha o réu atividade lícita que lhe garanta a subsistência” não merece subsistir, porquanto tais razões em nada dizem, tecnicamente, com a personalidade do agente, sendo necessário, para tanto, embasamento em laudo específico, o que inocorre no presente caso. Os motivos são inerentes ao tipo em questão, não se podendo, no presente caso, valorar negativamente tal vetor nos moldes constantes na sentença, sob pena de se incorrer em bis in idem. No tocante às circunstâncias, da mesma forma, tenho serem normais à espécie, não se verificando, ao longo do depoimento do acusado, desabono ao Judiciário Federal de tal monta a ponto de se ponderar negativamente o vetor em questão. Quanto às conseqüências do crime, considerando a ocorrência da causa de aumento de pena constante no art. 141, II, do CP, entendo que a valoração negativa deste vetor configura bis in idem, pelo que deve ser afastada. Dessa forma, fixo a pena-base em 08 (oito) meses de detenção. Ausentes circunstâncias agravantes e/ou atenuantes. Em face da incidência da majorante prevista no art. 141, II, do CP, acresço a pena em 1/3 (um terço), tornando-a definitiva em 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de detenção. Relativamente à pena de multa, esta é pena pecuniária e, sendo assim, quando da fixação dos dias-multa, deve-se levar em consideração os critérios norteadores que ensejaram a fixação da pena privativa de liberdade, como o acréscimo decorrente da continuidade delitiva, atenuantes e agravantes, e causas de aumento e diminuição da pena, não se restringindo apenas aos vetores do art. 59 do CP, porquanto não teve o legislador a intenção de fixar critérios de censurabilidade distintos para a pena privativa de liberdade e a de multa, sob pena de a resposta do direito penal à conduta delitiva se dar de forma assimétrica. Nessa linha, cumpre destacar que o art. 60, caput, do Código Penal refere que o juiz, na fixação da pena de multa, deve atender, principalmente, e não 230 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 exclusivamente, à situação econômica do réu. Todavia, no caso dos autos, considerando que a adoção do entendimento acima esposado implicaria efetivo reformatio in pejus, e haja vista a inexistência de apelo ministerial nesse sentido, deve ser mantida a pena de multa fixada na proporção de 50 dias-multa, à razão de metade do salário mínimo cada dia, tal determinado na sentença (fl. 624), uma vez que, diante do argumento de situação financeira de penúria (fl. 664), competia ao apelante demonstrar o todo alegado. (art. 156 do CP) Art. 20, c/c art. 23, II, ambos da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa): O grau de reprovabilidade da conduta é normal à espécie, não havendo razão para avaliação negativa de tal vetor. Quanto aos antecedentes, observo que o réu responde a outras quatro ações penais no âmbito da Justiça Federal, constando, ainda, um inquérito em curso – (certidão de fls. 290/291), sendo que o entendimento já firmado nesta turma (ACR 2003.04.01.003269-2, Rel. Des. Federal Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 02.07.2003) e no STF (HC 81.759, Rel. Ministro Maurício Corrêa, Informativo 262 do STF) é no sentido de que inquéritos e processos penais em andamento caracterizam maus antecedentes. No que toca à conduta social, considerando que “sua valoração se dá em relação à sociedade na qual o acusado esteja integrado, e não em relação à sociedade formal dos homens” (José Antônio Paganella Boschi, in Das Penas e seus critérios de Aplicação, ed. Livraria do Advogado, 2ª edição, pág. 202), não vislumbro nos autos nada que venha em desabono ao acusado. Ao contrário. O acusado foi vereador em sua cidade e deputado estadual, não tendo as testemunhas conhecimento de nenhum fato desabonatório à conduta do acusado. Quanto à personalidade, a sentença, ao valorar negativamente tal aspecto, ante o fundamento de que “não há notícia que nos últimos anos tenha o réu atividade lícita que lhe garanta a subsistência” não merece subsistir, porquanto tais razões em nada dizem, tecnicamente, com a personalidade do agente, sendo necessário, para tanto, embasamento em laudo específico, o que inocorreu no presente caso. Os motivos são inerentes ao tipo em questão, não se podendo, no presente caso, valorar negativamente tal vetor nos moldes constantes na sentença, sob pena de se incorrer em bis in idem. No tocante às circunstâncias são inerentes ao tipo em questão, já que, justamente em face de a calúnia ter sido proferida através de meios de informação e divulgação é que o acusado 231 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 foi dado por incurso também na figura típica constante do art. 20 da Lei de Imprensa. Quanto às conseqüências do delito, considerando a ocorrência de causa de aumento de pena constante no art. 23, II, do CP, entendo que a valoração negativa deste vetor configura bis in idem, pelo que deve ser afastada. Dessa forma, fixo a pena-base em 08 (oito) meses de detenção. Ausentes circunstâncias agravantes e/ou atenuantes. Em face da incidência da majorante prevista no art. 23, II, do CP, acresço a pena em 1/3 (um terço), tornando-a definitiva em 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de detenção. Relativamente à pena de multa, esta é pena pecuniária e, sendo assim, quando da fixação dos dias-multa, deve-se levar em consideração os critérios norteadores que ensejaram a fixação da pena privativa de liberdade, como o acréscimo decorrente da continuidade delitiva, atenuantes e agravantes, e causas de aumento e diminuição da pena, não se restringindo apenas aos vetores do art. 59 do CP, porquanto não teve o legislador a intenção de fixar critérios de censurabilidade distintos para a pena privativa de liberdade e a de multa, sob pena de a resposta do direito penal à conduta delitiva se dar de forma assimétrica. Nessa linha, cumpre destacar que o art. 60, caput, do Código Penal refere que o juiz, na fixação da pena de multa, deve atender, principalmente, e não exclusivamente, à situação econômica do réu. Todavia, no caso dos autos, considerando que a adoção do entendimento acima esposado implicaria efetivo reformatio in pejus, e haja vista a inexistência de apelo ministerial nesse sentido, deve ser mantida a pena de multa fixada na proporção de 50 dias-multa, à razão de metade do salário mínimo cada dia, tal como determinado na sentença (fl. 626), uma vez que, diante do argumento de situação financeira de penúria (fl. 664), competia ao apelante demonstrar o todo alegado. (art. 156 do CP) Assim, em face do cúmulo material, resta o acusado L. C. F. condenado à pena de 01 (um) ano, 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de detenção, a ser cumprida inicialmente em regime aberto. Como se vê, possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP. Assim, substituo a pena corporal por duas restritivas de direito consistentes em prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas – por igual período 232 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 fixado para cumprimento da pena privativa de liberdade – e prestação pecuniária, na ordem de 10 (dez) salários mínimos conforme art. 45, § 1º, do Código Penal, restando a destinação e forma de pagamento submetidos ao Juízo da Execução. Especificamente com relação à prestação pecuniária ora fixada, saliento que a lei penal não estabeleceu qualquer critério de correlação entre esta e a pena de multa a que alude o artigo 32, III, do Código Penal. Contudo, entendo que, quando da fixação da prestação pecuniária, deve o julgador, dentre os parâmetros estabelecidos pelo artigo 45, § 1º, do CP, considerar certos fatores, de modo a não tornar a prestação em pecúnia tão diminuta a ponto de mostrar-se inócua, nem tão excessiva de maneira a inviabilizar seu cumprimento. Nessa linha, tenho que tal prestação deve ser suficiente para a prevenção e reprovação do crime praticado, atentando-se, ainda, para a situação econômica do condenado e a extensão dos danos decorrentes do ilícito praticado. Em vista disso, tenho por adequado o valor ora estabelecido, sobretudo se considerados os limites mínimo (01 salário mínimo) e máximo (360 salários mínimos) estipulados pelo já mencionado dispositivo legal. Frente ao exposto, dou provimento ao recurso do réu L. A. F., para absolvê-lo do crime de calúnia (art. 138 do Código Penal), com supedâneo no artigo 386, III, do Código de Processo Penal, e dou parcial provimento ao recurso do réu L. C. F., nos termos da fundamentação. Se unânime a decisão desta Turma, oficie-se ao MM. Juízo a quo, para que providencie o imediato cumprimento das penas impostas, salvo pena de multa, porquanto eventual recurso especial ou extraordinário não possui efeito suspensivo (STF, HC nº 81.580/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 22.03.2002). Nesse sentido, também a Súmula nº 267 do egrégio Superior Tribunal de Justiça. É o voto. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 233 QUESTÃO DE ORDEM NA AC Nº 2003.04.01.014537-1/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Apelante: T. N. F. Advogado: Dr. Claudione Fernandes de Medeiros da Cunha Apelado: Ministério Público Federal EMENTA Penal. Apropriação indébita previdenciária. Omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias. Adesão ao REFIS posteriormente ao recebimento da denúncia. Suspensão da pretensão punitiva. Possibilidade. É possível a suspensão da pretensão punitiva do Estado desde que o débito originário da ação penal tenha sido incluído em parcelamento, ainda que posteriormente ao recebimento da denúncia, nos termos do art. 9º da Lei 10.684/03. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, determinar a suspensão da pretensão punitiva e da prescrição, nos termos do art. 9º da Lei nº 10.684/03 e, por maioria, vencido o Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, determinar a remessa dos autos à origem, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 31 de março de 2004. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra T. N. F., dando-o como incurso nas sanções do art. 95, d, da Lei nº 8.212/91, relatando que o denunciado, na qualidade de responsável pela empresa Indústria Catarinense de Adubos e Mineração Ltda. - INCAL, deixou de recolher aos cofres do INSS, no prazo legal, as contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus empregados nos meses de 12/93 a 12/94 e 11/91 a 12/95, encontrando-se tais débitos consolidados nas NFLDs nos 32.335.731-8 e 234 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 32.335.732-6, com valores de R$ 2.771,08 (dois mil, setecentos e setenta e um reais e oito centavos) e R$ 79.486,53 (setenta e nove mil, quatrocentos e oitenta e seis reais e cinqüenta e três centavos), respectivamente, conforme documento da fl. 83 do Apenso. A denúncia foi recebida em 18.06.99 (fl. 10). Com relação à NFLD nº 32.335.731-8, foi declarada extinta a punibilidade pelo pagamento do débito. O réu foi citado (fl. 22, verso) e interrogado (fls. 28 e 29). Durante a instrução, foram ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação (fls. 56 e 57) e pela defesa. (fls.70, 71, 76 e 83 a 90) Sentenciando, o juiz a quo julgou procedente a ação penal para condenar o réu à pena de 02 (dois) anos e 07 (sete) meses de reclusão e ao pagamento 50 (cinqüenta) dias-multa, no valor unitário de 02 (dois) salários mínimos vigentes ao tempo dos fatos. Em face do montante da pena privativa de liberdade, houve substituição desta por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, esta fixada em ½ (meio) salário mínimo mensal, destinada à mesma instituição em que prestar o serviço. A sentença (fls. 625 a 645) foi publicada em 13.11.02 conforme certidão da fl. 645, verso. Apela o réu condenado (fls. 647 a 660). Nas razões de recurso, aduz, preliminarmente, a nulidade do processo, ante o fato de ter sido interrogado, pela polícia e pelo juízo, sem observância às suas garantias constitucionais. No mérito, alega, em síntese, a negativa de autoria e a existência de dificuldades financeiras a exculpar a conduta delitiva. Com as contra-razões, vieram os autos a esta Corte para julgamento. O Ministério Público Federal, em seu parecer (fls. 685 a 690), opinou pelo desprovimento do apelo e manutenção da sentença. Em face da informação contida nas fls. 145 a 149 do Apenso, foi determinado ao INSS que informasse sobre a situação atual do débito consolidado na NFLD 32.335.732-6. (fl. 695) Atendendo à solicitação deste juízo, a Autarquia Previdenciária informou que o débito em questão foi incluído no Programa de Recuperação Fiscal das Empresas – REFIS, em 17.03.00, estando em situação regular até 22.01.04 (data da consulta), conforme documento da fl. 699. É o relatório. Dispensada a revisão. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 235 VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Os arts. 15 da Lei nº 9.964/00 e 9o da Lei nº 10.684/03 assim dispõem: “Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1° e 2° da Lei n° 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde e inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal”. “Art. 9o. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168 A e 337 A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento” (grifos nossos). O delito anteriormente capitulado pelo art. 95, d, da Lei nº 8.212/91, corresponde, hoje, ao art. 168-A do CP, de forma que as leis referidas tratam do mesmo delito. A questão a ser examinada diz com a suspensão do processo, em virtude de o débito objeto da ação penal ter sido incluído em programa de parcelamento. Confrontando os dispositivos supratranscritos, que tratam, respectivamente, dos denominados REFIS e PAES, depreende-se que o art. 15 da Lei nº 9.964/00 (REFIS) exige, para a suspensão da pretensão punitiva, que o parcelamento seja efetuado antes do recebimento da denúncia criminal. Tal exigência não foi reproduzida na Lei nº 10.684/03, em seu art. 9o, que, tão-somente, estabelece a suspensão da pretensão punitiva durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. Assim, poder-se-ia afirmar que, tratando-se de normas que dizem respeito ao mesmo tipo penal (168-A do CP), a regra do art. 9o da Lei nº 10.684/03 configurou novatio legis in mellius. Contudo, discute-se acerca da aplicabilidade indiscriminada da referida norma àqueles parcelamentos efetuados ainda na vigência da Lei nº 9.964/00, porquanto os requisitos para adesão ao REFIS e ao PAES não são idênticos. Desta forma, defende-se que não se poderia estender a regra benéfica da lei nova ao parcelamento efetuado sob a égide daquela em que se previu a suspensão do processo tão-somente se o parcelamento fosse efetuado até a denúncia. Para usufruir da regra mais favorável, 236 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 deveria o acusado “migrar” do REFIS para o PAES. Em que pesem as respeitáveis opiniões em sentido contrário, penso não haver óbice à aplicação da lei nova mais benéfica aos parcelamentos efetuados sob as regras da Lei nº 9.964/00, sem que seja necessária a adesão ao novo programa. É cediço que o objetivo primordial da instituição de benefícios como o presente – suspensão da pretensão punitiva em virtude de parcelamento do débito – é o ressarcimento do dano ao erário. Provavelmente em razão disso é que a lei mais nova ampliou o benefício, deixando de exigir que o parcelamento fosse efetuado antes da denúncia. Desta forma, considerando que tanto a Lei nº 9.964/00 quanto a Lei nº 10.684/03 visam, neste contexto, ao mesmo fim, a solução mais justa, no caso, é a aplicação desta última aos parcelamentos efetuados nos termos da primeira. É certo que o art. 2º da Lei n° 10.684/03 dispõe que os débitos incluídos no REFIS, de que trata a Lei nº 9.964/00, ou no parcelamento a ele alternativo, poderão, a critério da pessoa jurídica, ser parcelados nas condições do art. 1º, nos termos a serem estabelecidos pelo Comitê Gestor do mencionado Programa. A mim me parece que esta regra não disciplina matéria penal. Possibilita, apenas, o reparcelamento nos termos da nova lei, na forma como estabelecer o Comitê Gestor do Programa PAES, dispondo, desta forma, no que tange ao aspecto financeiro/tributário e não penal. Estando as condições de contratação do parcelamento previsto na Lei nº 10.684/03 afetas à competência do Comitê Gestor do Programa, e sendo estas variáveis, inclusive quanto à duração e critério de cálculo do valor da prestação, tomando em consideração a situação particularizada de cada contribuinte, não há falar-se seja este mais ou menos favorável ou benéfico ao contribuinte, embora se saiba que, na prática, as condições do REFIS têm se revelado, quanto a valor das parcelas e prazo, na maioria dos casos, mais favoráveis aos contribuintes devedores. Mas, outro lado, se tem notícia de parcelamentos com base na nova lei (PAES) em que o prazo é de 15 anos e o valor das prestações mínimo. Assim, penso que a diversidade de critérios não é óbice ao reconhecimento do favor legal previsto no art. 9°. O parcelamento do REFIS, quaisquer que sejam as condições, por vontade legislativa, seria hábil para suspender a pretensão punitiva se obtido R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 237 antes do recebimento da denúncia. Assim que não é lícito desconsiderá-lo agora para o mesmo fim sob o pretexto de não se servir ao pagamento do débito ou de ser o prazo muito elástico ou baixas as prestações. Ademais, para o Fisco – e isto foi da vontade do legislador – o REFIS implicou moratória e impediu, obviamente, a cobrança do débito. Não seremos nós, dessarte, os interessados em desconsiderar os efeitos do referido parcelamento. A interpretação que conduz à objeção levando em conta as condições particularizadas de cada um dos parcelamentos, por prejudicial e restritiva aos acusados (in malan parten, portanto), porque tal óbice sequer foi cogitado pela lei, coloca a justiça penal de braços com situação que se pretende evitar, vale dizer, aquela que atribui aos juízes criminais, nos delitos da espécie, a pecha de meros cobradores de tributo. De toda sorte, releva notar que o valor do débito consolidado, quando da adesão da empresa ao REFIS, era de R$ 1.114.934,67 (um milhão, cento e quatorze mil, novecentos e trinta e nove reais e sessenta e sete centavos), restando o saldo atual em R$ 579.949,72 (quinhentos e setenta e nove mil, novecentos e quarenta e nove reais e setenta e dois centavos), conforme documento da fl. 699. Depreende-se disso que a Administração auferiu montante considerável com o parcelamento realizado, eis que mais da metade do débito já foi adimplido, bem como demonstra a intenção do acusado em cumprir o acordado. Temos que considerar, portanto, que a regra do art. 9º é de natureza mais benéfica ao contribuinte devedor (novatio legis in mellius), devendo ser aplicada de forma retroativa e a possibilitar a suspensão da pretensão punitiva também quanto aos acusados que, tendo as empresas ingressado no REFIS depois de recebida a denúncia, não puderam beneficiar-se da suspensão. A propósito do tema, em caso análogo, assim decidiu o STF: “A Turma, acolhendo proposta formulada pelo Min. Cezar Peluso – no sentido de que a quitação do débito antes da sentença que condenara o paciente pela prática de crime de sonegação fiscal consubstancia questão preliminar que prejudica a análise dos fundamentos do pedido – concedeu habeas corpus de ofício para declarar extinta a punibilidade, nos termos do disposto no art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003, já que tal Lei possui retroatividade, por ser mais benéfica que a existente ao tempo da impetração (Lei 9.249/95) – a qual previa a extinção de punibilidade quando o pagamento fosse realizado até o recebimento da denúncia. (Lei 10.684/2003, art. 9º: ‘É suspensa 238 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento... § 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.’). HC 81929/RJ, rel. orig. Min. Sepúlveda Pertence, rel. p/ acórdão Min. Cezar Peluso, 16.12.2003” (grifei). (in Informativo do STF n° 334 – 15 a 19 de dezembro de 2003) O caso em tela bem ilustra a necessidade de aplicação retroativa do art. 9º da Lei 10.684/03. A denúncia foi recebida em 18.06.99 (fl. 10), e o débito foi incluído no REFIS em 17.03.00, estando em situação regular até 22.01.04 (data da consulta - fl. 699). Cumpre esclarecer que seria impossível o réu requerer a inclusão no programa anteriormente à denúncia, eis que a lei que o instituiu (9.964/00) é posterior à peça acusatória. Assim, embora a adesão ao REFIS tenha ocorrido em momento subseqüente à denúncia, é de ser aplicada a suspensão da pretensão punitiva à presente ação penal, por força do contido na Lei 10.684/03. Ademais, sendo a situação dos contribuintes semelhantes – para não dizer idêntica –, o tratamento diverso constituiria violação ao princípio isonômico. Por outro lado, é também meu entendimento que se aplica o favor legal da suspensão do processo (art. 9º) aos casos de contribuições descontadas e não recolhidas à previdência social, mesmo diante do veto que sofreu a Lei nº 10.684/03 no que afeta ao parcelamento deste débito. Se vamos fazer uma leitura do art. 9º da referida lei abstraída do aspecto tributário, tomando seu enunciado como mera disposição de natureza penal aplicável a todos os casos de parcelamento, ainda que por esta lei não disciplinados, como me parece ser a vontade do legislador (evitar a condenação de quem se dispõe, de qualquer forma, a efetuar o pagamento e, conseqüentemente, reparar o dano), resta evidente a irrelevância do citado veto, que, aliás, teve como mote as disposições da Lei nº 10.666/03, que vedavam o parcelamento do débito em questão, mas sem dispor, em momento algum, sobre matéria penal, vale dizer, sobre suspensão da pretensão punitiva do Estado. Por derradeiro, consigne-se apresentar-se fora de dúvida que o caso é de suspensão do processo e da pretensão punitiva e não de extinção. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 239 Não fosse a expressa disposição legal a respeito, que não permite outra interpretação, temos a considerar a possibilidade de descumprimento pelo contribuinte do parcelamento e o impedimento da aplicação da suspensão da prescrição, imposições do legislador ao instituir o favor legal, de forma a tornar insuscetível, ao depois, a persecução penal. A extinção do processo, ainda que se reconheça permanecer, ex legis, suspenso o decurso do prazo de prescrição, imporia, em caso de descumprimento do parcelamento, o reinício da ação penal, com a realização de nova instrução e proferimento de nova sentença, o que se revela, na prática, anos depois, inviável. Consulte-se, a propósito, o precedente do STF: “HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. FISCAL. REFIS. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. A inclusão no programa REFIS, anterior ao recebimento da denúncia (Lei nº 9.964/2000, art. 15), suspende a ação penal. O Estado tem suspensa a pretensão punitiva, durante o período em que estiverem sendo cumpridas as condições do parcelamento do débito. Nesse tempo, não corre o prazo prescricional. Habeas deferido”. (STF – HC 81444/RS. 2ª Turma. Rel. Min. Nelson Jobim. DJU 31.05.02, pág. 47) Ante o exposto, apresento esta questão de ordem, propondo: a) a retificação do julgamento da sessão anterior (17.03.04) que afetara a matéria à 4ª Seção; b) o reconhecimento da suspensão da pretensão punitiva do Estado, com a conseqüente suspensão da ação penal, em razão da adesão da empresa ao REFIS, oficiando-se ao INSS para que informe sobre eventual exclusão daquela do referido programa. É o voto. QUESTÃO DE ORDEM NA APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.04.01.050865-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose 240 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Apelante: Ministério Público Federal Apelado: J. F. M. Advogado: Dr. Ede Silva Moreira EMENTA Processual Penal. Prazo recursal. Ministério público. Termo inicial. Intimação pessoal. Vista dos autos. Intempestividade do apelo. 1. O termo a quo do prazo recursal, para o Parquet, se dá a contar da remessa do processo ao órgão acusador, com abertura de vista. 2. A intimação pessoal não exige o lançamento de ciência nos autos por parte do agente ministerial, uma vez que tal procedimento permitiria ao Ministério Público manipular os prazos processuais, bem como fixar o termo inicial para a interposição de recurso, o que violaria os princípios do processo penal e da isonomia. 3. Precedentes desta Corte e dos Tribunais Superiores. 4. Recurso não conhecido, por intempestivo. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, não conhecer da apelação criminal, porquanto intempestiva, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 6 de abril de 2004. Des. Federal Tadaaqui Hirose, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: O Ministério Público Federal denunciou J. F. M. como incurso nas penas previstas no art. 168 do Código Penal, pela prática da seguinte conduta narrada na exordial acusatória (fls. 02/03): “(...) Em 09 de dezembro de 1994, na cidade de Sobradinho, RS, o denunciado, na condição de representante legal da COOPERATIVA TRITÍCOLA SUPERENSE LTDA., firmou com a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) ‘Contrato de Depósito para os Estoques Vinculados às Operações de Aquisição do Governo Federal – AGF’, havendo recebido, como depositário, 426.600 kg de milho em grãos, safra 93/94 (fl. 08), comprometendo-se à sua guarda e conservação, bem como à pronta e fiel entrega, quando solicitada pela depositante. No entanto, por ocasião de vistoria realizada em 03 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 241 de fevereiro de 1997 pela Fiscalização da CONAB nos armazéns daquela Cooperativa, foi constatada a falta do estoque depositado, na quantia anteriormente referida, do qual se apropriou o acusado (...).” A denúncia foi recebida em 20.03.2000. (fl. 89) Regularmente citado, o réu foi interrogado. (fls. 103/104) Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação (fls. 126/127) e pela defesa. (fls. 144/146 e 153) Após regular instrução, sobreveio sentença, publicada em 03.10.2002 (fls. 182/202), onde o MM. Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Santa Maria/RS julgou improcedente a pretensão punitiva estatal, absolvendo o réu com fulcro no art. 386, VI, do CPP. O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação (fl. 206). Nas suas razões, requereu a condenação do réu, argumentando que as provas produzidas nos autos eram suficientes para comprovar a autoria e a materialidade do ilícito de forma incontestável. Contra-razões às fls. 217/229. A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do apelo. (fls. 250/256) Na sessão de 09.03.2004, o processo foi apresentado em mesa. A 7ª Turma, acolhendo a questão de ordem, converteu o julgamento em diligência, com abertura de vista ao Ministério Público para se manifestar sobre a preliminar de intempestividade argüida nas contra-razões do recurso. (fl. 260) Juntada a manifestação do Ministério Público Federal às fls. 263/266. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Tadaaqui Hirose: Cuida-se de apelação interposta pelo Ministério Público contra a sentença que julgou improcedente a pretensão punitiva estatal, absolvendo o réu com fulcro no art. 386, VI, do CPP. Compulsando os autos, pode-se constatar que o processo foi remetido ao Parquet Federal, com abertura de vista na data de 03.10.2002 (fl. 203), tendo o mesmo sido recebido e remetido ao Gabinete do Procurador da República em 04.10.2002. (fl. 203v.) Todavia, apenas em 14.10.2002 (fl. 203v.), o agente do órgão acusa242 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 dor lançou o seu “ciente” nos autos, apresentando na mesma data o seu recurso e respectivas razões. (fls. 206/215) Em contra-razões ao recurso, o nobre causídico do acusado alegou a intempestividade do apelo, na medida em que, tendo sido o Ministério Público Federal intimado da sentença em 04.10.2002, uma sexta-feira, o prazo recursal teria iniciado na segunda-feira, 07.10.2002, findando na sexta-feira, dia 11.10.2002. (fls. 217/220) Assim, levando-se em conta o prazo de 05 (cinco) dias estabelecido pelo art. 593, caput, do CPP, a verificação da tempestividade do recurso depende da definição do termo a quo do prazo recursal, se da abertura de vista ao órgão acusador ou da data do “ciente” por parte do agente ministerial. Nesse aspecto, instado a se manifestar, o órgão acusador, na sua manifestação de fls. 263/266, ratificou o parecer de fls. 250/256, sustentando que o termo inicial do prazo recursal, para o MP, flui a partir de sua ciência nos autos. Destaque-se que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional (art. 127, caput, da CF), tendo a Lei Complementar 75/93, no seu artigo 18, inciso II, alínea h, bem como o § 4º do art. 370 da lei processual penal lhes reservado benefícios inerentes ao exercício de suas atribuições, uma vez que determinam a sua intimação pessoal. Contudo, embora esses dispositivos legais garantam a intimação pessoal do Parquet, em nenhum momento exigem o lançamento do “ciente” nos autos, mas apenas a entrega dos autos com vista para a contagem do prazo recursal. O entendimento de que, além da certidão abrindo vista, seria necessária a aposição do “ciente” nos autos, permitiria ao órgão acusador, a seu talante, manipular os prazos estipulados no Diploma Processual, ficando ao arbítrio do Ministério Público fixar o termo a quo do prazo recursal, o que convenhamos, feriria de morte os princípios norteadores do processo penal, resultando num odioso tratamento desigual entre as partes. Neste sentido, arestos desta Corte, do STJ e do STF: “PROCESSUAL PENAL. TERMO INICIAL PARA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTIMAÇÃO PESSOAL. VISTA DOS AUTOS. INTEMPESTIVIDADE. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 243 1. O início do prazo recursal, para o Ministério Público, começa a fluir da abertura de vista certificada pelo Cartório. 2. A LC nº 75/93 (art. 18, II, h) e o Código de Processo Penal (art. 370, § 4º) garantem apenas que a intimação do Parquet será sempre pessoal, não havendo nenhuma exigência quanto ao lançamento do ‘ciente’ nos autos. 3. O entendimento de que, além da certidão abrindo vista, é preciso a ciência formal por parte do Procurador, permitiria ao órgão acusador o mais absoluto controle dos prazos processuais, pois bastaria receber os autos em uma determinada data e, posteriormente, quando lhe aprouver, colocar o aludido ‘ciente’ no processo para, a partir daí, ter início o prazo recursal, o que representa evidente violação aos princípios norteadores do processo penal e da igualdade entre as partes. 4. Precedentes. (TRF da 4ª Região - RSE 2002.04.01.033177-0, 8ª Turma, rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJU 08.01.2003) PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. SENTENÇA DE IMPRONÚNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTEMPESTIVIDADE. LEI 8.625/93, ART. 41, IV. 1. Não obstante possuir o Ministério Público o privilégio da intimação pessoal, o seu prazo começa a fluir independentemente do lançamento do ‘ciente’ nos autos pelo seu membro atuante. Caso contrário, estar-se-ia permitindo que o órgão acusador tivesse o total controle sobre os seus prazos processuais, em clara afronta aos princípios do devido processo legal e da igualdade das partes, norteadores do nosso Processo Penal. 2. Pedido de Habeas Corpus deferido para declarar a intempestividade do Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Estadual. (STJ, HC 14.650/MG, 5ª Turma, rel. Min. Edson Vidigal, DJU 05.03.2001) PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTIMAÇÃO PESSOAL. VISTA DOS AUTOS. 1. O prazo de recurso para o Ministério Público começa a fluir da intimação pessoal, formalidade que se opera, a teor da Lei 8.625, de 12.02.93 - art. 41, IV - através da entrega dos autos com vista. 2. Remetidos os autos à Procuradoria de Justiça em 15 de outubro de 1998 (data do registro), apresenta-se como intempestivo recurso especial interposto após 15 de dezembro de 1998, data em que o Representante do MP fez lançar o ‘ciente’. 3. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 216.721/SP, 6ª Turma, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 15.05.2000). INTIMAÇÃO - MINISTÉRIO PÚBLICO - QUOTA NOS AUTOS. A intimação do Ministério Público, titular da ação penal, dispensa quota nos autos por meio da qual este se dá por ciente da decisão proferida. Deve-se observar o tratamento igualitário das partes, afastando-se a possibilidade de uma delas vir, mediante ato próprio e na oportunidade eleita, a fixar o termo inicial de prazo para desincumbir-se de ônus processual - interposição de recurso. (STF, HC 79782/RJ, 2ª Turma, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 14.12.2001).” Recentemente, o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal 244 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 deferiu a ordem no Habeas Corpus nº 83255/SP, publicado no DJ de 12.03.2004, para consignar a intempestividade do recurso especial interposto pelo Parquet. Veja-se a ementa: “DIREITO INSTRUMENTAL - ORGANICIDADE. As balizas normativas instrumentais implicam segurança jurídica, liberdade em sentido maior. Previstas em textos imperativos, hão de ser respeitadas pelas partes, escapando ao critério da disposição. INTIMAÇÃO PESSOAL - CONFIGURAÇÃO. Contrapõe-se à intimação pessoal a intimação ficta, via publicação do ato no jornal oficial, não sendo o mandado judicial a única forma de implementá-la. PROCESSO - TRATAMENTO IGUALITÁRIO DAS PARTES. O tratamento igualitário das partes é a medula do devido processo legal, descabendo, na via interpretativa, afastá-lo, elastecendo prerrogativa constitucionalmente aceitável. RECURSO - PRAZO - NATUREZA. Os prazos recursais são peremptórios. RECURSO - PRAZO - TERMO INICIAL - MINISTÉRIO PÚBLICO. A entrega de processo em setor administrativo do Ministério Público, formalizada a carga pelo servidor, configura intimação direta, pessoal, cabendo tomar a data em que ocorrida como a da ciência da decisão judicial. Imprópria é a prática da colocação do processo em prateleira e a retirada à livre discrição do membro do Ministério Público, oportunidade na qual, de forma juridicamente irrelevante, apõe o ‘ciente’, com a finalidade de, somente então, considerar-se intimado e em curso o prazo recursal. Nova leitura do arcabouço normativo, revisando-se a jurisprudência predominante e observando-se princípios consagradores da paridade de armas.” Peço vênia para destacar trechos do voto proferido pelo eminente relator, Min. Marco Aurélio, que muito bem analisou a questão: “Cumpre analisar a problemática da tempestividade ou não do recurso especial. Os prazos são peremptórios. Assim, não ficam à disposição da parte quanto aos termos inicial e final. O Ministério Público, na ação penal, é parte autora e não fiscal da lei. No dia-a-dia forense, nota-se o costume de proceder-se à remessa dos processos criminais ao Ministério Público, onde são recebidos, assinando o servidor o controle de carga. Essa prática tem como objetivo facilitar a atuação do órgão, no que dispensável a retirada dos processos no cartório. Julgado o Habeas, o órgão do Ministério Público em atuação na Câmara julgadora tomou ciência do teor respectivo, subscrevendo o acórdão. Mais do que isso, ocorreu o citado encaminhamento do processo e o recebimento já aludidos. Descabe o tratamento desigual, assentando-se que os processos, após a entrada no setor próprio do Ministério Público, podem permanecer na prateleira aguardando que o titular da ação penal delibere, quando melhor lhe aprouver, sobre a fixação do termo inicial do prazo para desincumbir-se de certo ônus processual. Significa afirmar que só corre o prazo recursal quando, de acordo com a conveniência própria, o integrante do Ministério Público lance no processo a ciência. Esse entendimento não se coaduna com a ordem natural das coisas, com a natureza do processo recursal, com a paridade R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 245 de armas que deve ser observada no trato da acusação e da defesa (...) A defesa passa no cartório e fica ciente de que o processo está com vista ao Ministério Público, sem que isso se faça limitado no tempo. É a vista sem sujeição a prazo; é a vista a perder de vista. Não se pode levar a tanto a prerrogativa da intimação pessoal. Esta há de ser considerada como a distinguir-se da ficta, daquela decorrente da simples publicação de um ato no jornal oficial. Atende plenamente à citada prerrogativa a chegada do processo, devidamente formalizada, às dependências do Ministério Público, imaginando-se que o servidor público que passa o competente recibo esteja devidamente autorizado e que, a seguir, seja encaminhado o processo a quem de direito. Eis o enquadramento que mais corresponde aos anseios da justiça, à igualização que deve ser a tônica no tratamento das partes, sem subterfúgios, sem subjetividades acomodadoras, sem ‘jeitinhos’ que acabem por gerar enfoque contrário à sempre esperada isonomia.” Assim, pelos fundamentos acima expostos, não conheço do recurso do Ministério Público Federal, eis que intempestivos. É o voto. MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2003.04.01.050888-1/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Impetrante: M. P. M. Advogados: Drs. Wilson Roberto Raitani e outro Impetrado: Juízo Federal da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR Interessado: Ministério Público Federal EMENTA Processo Penal. Mandado de segurança. Seqüestro e hipoteca legal. Arts. 134 e 136 do CPP. Ministério Público. Legitimidade. Materialidade e autoria. Bem de família. Lei 8.009/90. Meação. 1. Nos termos do art. 142 do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para requerer medida assecuratória de seqüestro 246 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 e posterior hipoteca legal (arts. 134 e 136 do CPP) em havendo interesse da Fazenda Pública. 2. A Lei 8.009/90 excepciona da impenhorabilidade o bem de família, na hipótese de execução de sentença penal (art. 3º, inciso VI) que é o caso dos autos, já que a medida acautelatória se destina justamente a assegurar o pagamento dos prejuízos, multa e custas processuais numa eventual condenação. 3. Para o deferimento da inscrição da hipoteca legal, exige-se apenas a certeza da infração e os indícios suficientes da autoria. Portanto, não há necessidade de se provar que o réu esteja dilapidando o patrimônio. 4. A medida impugnada não transfere a propriedade dos imóveis, que permanecem na esfera patrimonial do impetrante e sua esposa. Logo, descabe alegar desrespeito à meação, hipótese restritiva a ser levantada somente no caso de condenação transitada em julgado, quando os bens poderão ser alienados em hasta pública, se o réu não possuir outros meios de cumprir suas obrigações. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 23 de junho de 2004. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Cuida-se de mandado de segurança, com pretensão liminar, impetrado por M. P. M. contra ato do MM. Juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR que, nos autos da Ação Cautelar nº 2003.70.00.041447-8, decretou, a requerimento do Ministério Público Federal, o arresto prévio de vários imóveis de propriedade do ora Impetrante para fins de posterior especialização da hipoteca legal. Segundo se depreende, a cautelar foi distribuída por dependência ao processo criminal nº 2003.70.00.039531-9, onde M. P. M.e outros acusados foram denunciados pela prática dos delitos tipificados nos artigos 4º e 22 da Lei nº 7.492/86, além dos previstos nos artigos 288 e 299, ambos do Código Penal, em face de sua suposta participação na remessa R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 247 ilegal de valores para o exterior através das denominadas contas “CC-5”. Objetivando “assegurar o pagamento das multas e das custas processuais, bem como o ressarcimento dos danos”, o agente ministerial pleiteou a referida medida, sendo acolhida pelo ínclito Magistrado a quo, com apoio no artigo 136 do CPP. Inconformado, M. P. M. ajuizou o presente mandamus, alegando, em suma, ausência dos requisitos legais para o deferimento do pedido formulado pelo Parquet Federal. Nesse escopo, aduz que, “se a lei não confere ao Ministério Público legitimidade para agir na execução da pena de multa, não lhe outorga também poderes para acionar medida cautelar que tente resguardar apenas a satisfação da sanção pecuniária”. Sustenta, ainda, ausência de indícios suficientes de autoria, mencionando que “nunca abriu ou mandou abrir, encerrou ou mandou encerrar, intermediou, esteve submisso à ordem superior, aliciou ou valeu-se de qualquer artifício ou meio fraudulento, agiu sozinho ou com a participação de outros, visando abrir contas bancárias dos chamados ‘laranjas’ ou não nas agências do Banestado de Foz e região, muito menos teve qualquer relação, até porque não estava na área de abrangência das atribuições da superintendência, com a carteira de câmbio em qualquer de seus segmentos, de modo a ter qualquer ingerência nas tais contas CC5 ou com as agências do Banco del Paraná ou do Banestado de Nova Iorque.” Por fim, menciona que o ato constritivo alcançou seus imóveis sem respeitar o bem de família e a meação da cônjuge. Nesse contexto, requereu a concessão liminar da ordem para que se suspenda desde logo o r. despacho atacado e, no mérito, a procedência do pedido a fim de “declarar extinto o processo cautelar em referência por faltar-lhe os requisitos essenciais da ação (...) ou, se outro for o entendimento, seja excluído dos bens seqüestrados o imóvel constituído pelo apartamento nº 702, TIPO ‘I’, situado no 7º pavimento do edifício Torre Nobre (...) por se tratar de bem de família e, por fim, de todos os demais bens seqüestrados para que o gravame recaia apenas sobre a metade deles que são da propriedade exclusiva do impetrante (...).” A liminar foi indeferida (fls. 114/116). A digna autoridade impetrada prestou informações (fl. 121), e a douta Procuradoria Regional da República, oficiando no feito (fls. 125/129), manifestou-se pela denegação da segurança. É o relatório. 248 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Ab initio, impende examinar a adequação da via processual eleita para veicular irresignação contra ato da autoridade impondo, liminarmente, o arresto de bens pertencentes ao Impetrante. Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho (in Código de Processo Penal Comentado, v. 01, 4ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 306) “se o Juiz julga o pedido de restituição de coisa apreendida (art. 120, § 1º, do CPP) se ordena, ou não, o seqüestro (art. 127 do CPP) se autoriza, ou não, o levantamento do seqüestro (art. 131 do CPP) se acolhe, ou não, o pedido de especialização e inscrição de hipoteca legal ou de arresto (arts. 134, 135, 136 e 137, todos do CPP) (...) em todos esses casos, o remédio é a apelação supletiva de que trata o art. 593, II”. Contudo, tal orientação se afigura correta somente na hipótese de ser definitiva a decisão objurgada. Como, na espécie, o provimento tem caráter interlocutório (liminar), evidencia-se aparentemente irrecorrível, pois ausente o traço de definitividade a que refere o art. 593, inciso II, do Diploma Processual, razão por que se revela cabível a utilização do mandamus. No mérito, segundo se deduz da leitura dos artigos 134 e 140, ambos do CPP, a hipoteca legal visa garantir o ressarcimento do dano e o pagamento das despesas processuais e penas pecuniárias. Já o dito “seqüestro prévio” de imóveis (em que pese a imprecisão da terminologia adotada pelo legislador, pois a providência tem nítidas características de “arresto”) encontra-se regrado pelo artigo 136 do mesmo diploma, verbis: “O seqüestro de imóvel poderá ser decretado de início, revogando-se, porém, se no prazo de 15 (quinze) dias não for promovido o processo de inscrição de hipoteca legal.” A propósito, vale destacar outro trecho da aludida obra de Fernando da Costa Tourinho Filho: “(...) Muitas vezes o processo de inscrição e especialização de hipoteca legal se alonga no tempo, e, com o intuito de oferecer maiores garantias à vítima do crime, ou ao Ministério Público, se for o caso, o artigo 142 permite às pessoas a tanto legitimadas a formulação de pedidos no sentido de serem seqüestrados (melhor seria empregasse R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 249 o legislador o termo arrestados) os bens sobre os quais se pretende recaia a hipoteca, até que essa medida constritiva se concretize (...).” Como bem salienta o ilustre doutrinador, o artigo 142 do aludido Codex determina que “caberá ao Ministério Público promover as medidas estabelecidas nos artigos 134 e 137, se houver interesse da Fazenda Pública, ou se o ofendido for pobre e o requerer”. No caso dos autos, o Parquet solicitou a medida cautelar em comento, tendo em vista dispor o Código Penal que “transitada em julgado a sentença condenatória a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública” (art. 51). Destarte, a cobrança da pena pecuniária, no que couber, é regida pela Lei nº 6.830/80, restando claro o interesse fazendário na execução da quantia fixada no decreto condenatório. Ora, o Estado não pode correr risco em relação aos créditos assim constituídos. Em face da delonga do processo judicial regular, o seqüestro e posterior hipoteca de imóveis afiguram-se totalmente corretos, inibindo a possibilidade de frustração do interesse público. A propósito, veja-se Acórdão desta Corte assim ementado: “PROCESSUAL PENAL. SEQÜESTRO E HIPOTECA LEGAL. ARTS. 134 E 136 DO CPP. MEDIDA CAUTELAR. LEGALIDADE. MANUTENÇÃO DA MEDIDA. 1. Nos termos do art. 142 do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para requerer medida assecuratória de seqüestro e posterior hipoteca legal (arts. 134 e 136 do CPP) em havendo interesse da Fazenda Pública. 2. O seqüestro, preparatório da hipoteca legal e esta, são medidas cautelares previstas no ordenamento processual penal pátrio, que têm por escopo assegurar, tanto a reparação de dano ex delicto, quanto a efetividade da sanção pecuniária e o pagamento de custas processuais, que possam vir a ser impostos ao indiciado. 3. O seqüestro previsto no art. 136 pode recair sobre quaisquer bens do(s) réu(s). 4. Havendo fortes evidências quanto ao caráter fraudulento de negócios jurídicos realizados com o imóvel objeto da constrição, correta a declaração da ineficácia dos referidos negócios, a fim de propiciar a especialização da hipoteca legal. 5. Apelação improvida.” (TRF/4ª Região, ACR nº 2001.04.01.057916-7, Sétima Turma, Rel. Des. José Germano da Silva, publ. no DJU de 16.01.2002, p. 1349) Portanto, presente o interesse da Fazenda Pública Federal, lídima a atuação ministerial, em consonância com o art. 142 do CPP e, também, com o art. 6º, XIV, b e c, da Lei Complementar nº 75/93, dispondo sobre as atribuições do Ministério Público da União. 250 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Argumenta ainda o acusado que a medida assecuratória o estaria “impedido de dar continuidade ao seu trabalho de natureza rural”, pois não poderia “obter financiamentos concedidos ao produtor agropecuário”. Porém, não apresentou qualquer prova cabal de tais circunstâncias. Por outro lado, percuciente análise dos autos revela que o magistrado a quo não determinou o seqüestro prévio de todos os imóveis do denunciado, porquanto, segundo sua declaração de Imposto de Renda ano-base 2003, esse possui outros lotes urbanos e rurais não abrangidos pelo ato impugnado, assim como 04 (quatro) automóveis. (fl. 76, verso) Além disso, nada impede que sobre os bens arrestados recaiam hipotecas de natureza cível, pois é cediço a possibilidade de oferecer o mesmo bem como garantia de diversas dívidas, em graus subseqüentes, sempre respeitada a ordem de preferência entre os credores. Aduz também o impetrante inexistirem provas da materialidade e indicativos suficientes de autoria. Refere não ter sido informado sobre seu indiciamento, quando da instauração do inquérito policial, bem como procura demonstrar sua boa reputação e antecedentes. Contudo, a ação de seqüestro não é o local próprio para discutir tais questões, inclusive aquelas atinentes ao mérito da pretensão punitiva, que devem ser amplamente debatidas nos autos principais. O instituto previsto no artigo 136 do CPP é medida cautelar, de cunho assecuratório. Portanto, no perigo de dano irreparável, no caso, ao erário federal, não há necessidade de absoluta certeza, porque desprovida de definitividade, quanto à ocorrência e à autoria dos fatos narrados. Assim, por ora basta o juízo de admissibilidade da ação penal, exarado quando do recebimento da exordial. Note-se que a denúncia já foi acolhida pelo juízo competente e, em seu despacho, o magistrado analisou de forma minuciosa a existência de elementos de convicção quanto à autoria do impetrante, como bem se observa do trecho transcrito a seguir: “(...) A denúncia encontra amparo em ampla documentação juntada aos apensos. Merecem também referência específica o laudo nº 1392/03, que retrata o fluxo de recursos movimentados nas contas CC5, e o laudo de nº 1.698/03, que retrata o fluxo de recursos movimentados pela conta CC5 titularizada pelo Banco del Paraná, e mantida junto ao Banestado, agência de Foz do Iguaçu, e a relação dos depósitos efetuados por ‘laranjas’ na referida conta (...). No que se refere à autoria, a denúncia discrimina as responsabilidades de cada um dos acusados no esquema fraudulento, identificando a função exercida por cada um junto às instituições financeiras (...). A própria dimenR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 251 são dos fatos sugere a necessidade de uma complexa organização da fraude, com a comunhão de esforços de várias pessoas, que seria viabilizada apenas como política institucional. Tal constatação constitui indício de autoria dos dirigentes e gerentes dos referidos bancos envolvidos com os fatos (...).” (fl. 37) Em relação à presença do periculum in mora, melhor sorte não tem o denunciado. Assinalo que os únicos requisitos exigidos para o deferimento da inscrição de hipoteca legal estão no art. 134 do Código de Processo Penal, sendo eles a certeza da materialidade delitiva e os indícios suficientes da autoria. Não há, como se observa, a exigência de prova de que o réu esteja dilapidando patrimônio. Quanto ao tema, insta trazer à colação o seguinte precedente deste Tribunal: “PROCESSO PENAL. MEDIDA ASSECURATÓRIA. HIPOTECA LEGAL E ARRESTO. REQUISITOS. 1- Os únicos requisitos exigidos para o deferimento da inscrição de hipoteca legal estão no art. 134, do Código de Processo Penal, sendo eles, a certeza da infração e os indícios suficientes da autoria. Não há, como se observa, a exigência de prova de que os réus estejam dilapidando o patrimônio. 2- A hipoteca visa garantir não somente a satisfação do prejuízo, causado pelo crime, mas também a pena pecuniária e as despesas processuais (...).” (ACR nº 97.04.18576-6, Rel. Juiz Fernando Quadros da Silva, Segunda Turma, publ. no DJ de 21.03.2001, p. 241) Alega o impetrante que um dos imóveis objeto do seqüestro é residência familiar, logo impenhorável, nos termos da Lei nº 8.009/90. Essa tese desmerece abrigo, pois a legislação criminal não faz nenhuma ressalva quanto aos bens passíveis de serem seqüestrados para garantia da indenização dos danos causados com a prática criminosa e do pagamento da pena pecuniária. Por outro lado, se entendermos que a lei em comento também se aplica às hipóteses das medidas acautelatórias previstas no CPP, ainda sem razão a defesa, pois o próprio diploma excepciona a impenhorabilidade do bem de família no caso de execução de sentença penal, conforme depreende-se do disposto no seu artigo 3º, inciso VI, nas seguintes letras: “A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...) VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.” Aduz ainda o denunciado que o referido dispositivo não se aplica no 252 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 caso sub judice, porquanto entre as hipóteses legais previstas inexiste referência à execução da pena de multa, pois essa “não tem caráter indenizatório ou de ressarcimento, sendo simples sanção penal”. Porém, colaciona, para fundamentar sua tese, doutrina civilística, que trata apenas do instituto da hipoteca no direito privado, cujas peculiaridades desaconselham a aplicação pura e simples na seara penal, sem prévia e cuidadosa análise. Ademais, totalmente descabida tal assertiva na hipótese concreta, porquanto o Parquet funda seu pedido de seqüestro não só para garantia de futura pena pecuniária, mas também para o ressarcimento do dano, como depreende-se de suas próprias palavras, apostas à fl. 33 do presente caderno processual. A respeito, é farta a jurisprudência desta Corte, da qual destaco dois Acórdãos: “INSCRIÇÃO DE HIPOTECA LEGAL. ART. 134 DO CPP. PROVA DE DILAPIDAÇÃO DO PATRIMÔNIO. DESNECESSIDADE. GARANTIA DO PREJUÍZO CAUSADO PELO CRIME. BEM DE FAMÍLIA. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. Para o deferimento da inscrição da hipoteca legal, exige-se apenas a certeza da infração e os indícios suficientes da autoria, sendo, portanto, inexigível a prova de que os réus estejam dilapidando o patrimônio. A hipoteca visa tanto a reparação do dano ex delicto, quanto a efetividade da sanção pecuniária que possa vir a ser imposta ao indiciado, pois são providências que visam a acautelar os interesses do prejudicado com a prática da infração. A impenhorabilidade conferida pela Lei nº 8.009/90 não alcança a execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens (art. 3º, VI).” (ACR nº 2000.70.09.002433-5/PR, Oitava Turma, Rel. Des. Amir José Finocchiaro Sarti, publ. no DJU em 29.05.2002, p. 632) “HIPOTECA LEGAL. ESPECIALIZAÇÃO. GARANTIA DO PAGAMENTO DOS DANOS, MULTA E CUSTAS PROCESSUAIS. MATERIALIDADE E AUTORIA. BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/90. - A especialização da hipoteca legal de bens do réu está lastreada objetivamente no perigo de dano ao erário federal, não havendo necessidade de certeza, porque desprovida de definitividade, quanto à ocorrência e à autoria dos fatos narrados. - A Lei 8.009/90 excepciona da impenhorabilidade o bem de família, na hipótese de execução de sentença penal (art. 3º, inciso VI), que é o caso dos autos, já que a hipoteca se destina justamente a assegurar o pagamento dos danos, multa e custas processuais numa eventual condenação.” (ACR nº 2002.04.01.055825-9, Oitava Turma, Rel. Des. Volkmer de Castilho, publ. no DJU em 14.05.2003, p. 1114) No que tange ao fato da medida assecuratória não atentar para a meação da mulher do impetrante, já vimos que o seqüestro de bens, por sua R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 253 própria natureza, é cautelar e provisório. Assim na hipótese concreta os imóveis continuam na esfera patrimonial do denunciado e seu cônjuge, inexistindo qualquer ato de transferência da propriedade. A perda do domínio só ocorrerá após eventual condenação transitada em julgado, quando os bens serão vendidos em hasta pública para cobrir os danos, multa e custas processuais. Somente nessa ocasião há de se observar eventuais direitos da esposa do acusado, ensejando, caso contrário, embargos de terceiros. Com essas considerações, denego a segurança. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.70.00.043123-3/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro Apelantes: Ministério Público Federal D. C. Réu Preso Advogados: Drs. Haroldo Alves Ribeiro Junior e outro Drs. Antônio Acir Breda e outros Apelados: (os mesmos) EMENTA Penal e processual. Direito de apelar em liberdade. Réu preso durante a instrução do processo. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Arts. 4º, 16 e 22, § único, da Lei nº 7.492/86. Preliminares. Competência. Cerceamento de defesa. Litispendência. Gestão fraudulenta. Evasão de divisas. Operar instituição financeira sem autorização. Autoria. Tipicidade. Falsidades. Artigo 299 do Código Penal. Consunção. Quadrilha. Separação do processo. Art. 80 do CPP. Cabimento. Duas denúncias. Bis in idem. Dosimetria. Circunstâncias. Concurso material. Pena de multa. Prescrição. Inocorrência. Regime inicial fechado. 254 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 1. Não tem direito de recorrer em liberdade o acusado que permaneceu preso no decorrer da instrução criminal. Precedentes. Revogação da custódia indeferida. 2. A Resolução nº 20 da Presidência desta Corte, de 20.05.2003, editada com amparo na Res. nº 314 do CJF e na Lei 9.664/98, determinando a especialização da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba para processar e julgar os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, nada tem de ilegal ou inconstitucional, sendo descabida a alegação de incompetência do juízo. Precedentes. 3. A questão da litispendência foi objeto de habeas-corpus, bem como da respectiva exceção ajuizada no primeiro grau. O exame detido dos autos demonstra não haver perfeita identidade de partes, pedido e causa de pedir nas referidas ações penais e, ocorrendo variação de qualquer destes elementos entre os dois processos, não é possível reconhecer o suposto bis in idem. 4. A jurisprudência deste Regional tem se orientado no sentido de não ser indispensável a transcrição integral de todas as conversas telefônicas interceptadas, desde que às partes seja franqueado o acesso ao conteúdo das gravações, o que ocorreu na hipótese sub judice. Cerceamento de defesa inexistente. 5. Atenta leitura do conjunto probatório não deixa margem a qualquer dúvida sobre a autoria delitiva. 6. Segundo se depreende da prova dos autos, o Recorrente, com o concurso de outros agentes e testas-de-ferro, criou nominalmente uma pessoa jurídica no Paraguai e esta, por sua vez, na qualidade de empresa estrangeira, abriu contas CC-5 em bancos nacionais objetivando a remessa ilegal de numerário para fora do país, principalmente depositados por “laranjas”, ou seja, ocultando os verdadeiros titulares das quantias, incidindo, portanto, no crime de evasão de divisas tipificado no art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86. 7. Verificando que a constituição da pessoa jurídica (Casa de Câmbios) foi procedida mediante documentação inidônea, resta evidenciado tratar-se da conduta típica descrita no artigo 16 da aludida lei, que pune o ato de fazer operar instituição financeira sem autorização ou mediante autorização obtida com declaração falsa. 8. A referida empresa é integrante do sistema financeiro apenas por ficção legal, para efeito do disposto no art. 16 da Lei 7.492/86, eis que criada de maneira irregular e, desta forma, sem autorização para operar no mercado nacional. Logo, os atos de gerência do negócio ilícito se mostram incompatíveis com o crime de gestão fraudulenta previsto no art. 4º da R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 255 mesma norma, pois quem não pode praticar a conduta vedada pelo tipo em questão é o administrador, diretor ou gerente de instituição regular, formalmente constituída. 9. Ausência de provas nos autos quanto ao delito de gestão fraudulenta. Absolvição com apoio no art. 386, inciso VI, do CPP. 9. O falsum, segundo o próprio agente ministerial, foi praticado “com o escopo de evadir divisas ao exterior”, restando assim absorvido pelos crimes contra o sistema financeiro. 10. Conforme a jurisprudência da Suprema Corte, “a tese de que é impossível condenar-se uma só pessoa em processo por delito de quadrilha, por ser crime de concurso necessário, não merece guarida, porquanto o que importa é a existência de elementos nos autos denunciadores da societas delinquentium”. Por outras palavras, a separação facultativa do processo contra os vários membros do bando, não impede que um deles seja condenado separadamente, se no feito desmembrado há prova da participação de todos, como ocorreu na espécie. 11. Contudo, tendo sido ajuizada precedente denúncia pelo crime de quadrilha, este deve ser processado e julgado na Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu, impondo-se afastar o decreto condenatório exclusivamente em relação ao art. 288 do CP. 12. Prevalecendo a avaliação negativa concernente à culpabilidade, circunstâncias e conseqüências das práticas delituosas, cabível a fixação da pena acima do mínimo legal. 13. Pena de multa dosada de forma proporcional à privativa de liberdade. Mantido o quantum unitário do dia-multa, em face das boas condições econômicas do Recorrente. 14. Não ocorreu a prescrição da pretensão punitiva, porquanto a prova dos autos demonstra que a instituição financeira operou até abril de 2000, quando foi dissolvida, não havendo transcorrido quatro anos até o recebimento da denúncia (08.08.2003). 15. Condenação do réu como incurso nas sanções previstas aos infratores dos artigos 16 e 22, § único, da Lei 7.492/86, c/c o art. 71 do Código Penal, aplicada a regra do concurso material (art. 69 do CP). 16. Tendo em conta a reprimenda fixada (sete anos de reclusão), bem como tratar-se de crime praticado no âmbito de organização criminosa (art. 10 da Lei 9.034/95) além do disposto nos artigos 33, §§ 2º e 3º, e 59 do Código Penal, o cumprimento da pena deverá se dar no regime inicialmente fechado. ACÓRDÃO 256 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental e dar parcial provimento aos recursos, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 16 de junho de 2004. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - O Ministério Público ofertou denúncia em desfavor de D. C. e outros vinte e seis réus, pela prática dos delitos insculpidos nos artigos 4º, caput, 16 e 22, todos da Lei nº 7.492/86; arts. 288 e 299, ambos do Estatuto Repressivo, bem como no artigo 1º, incisos VI e VII, c/c o art. 4º da Lei nº 9.613/98. A peça acusatória (fls. 02/65) descreveu os fatos, em resumo, nas seguintes letras: “1. AGENTES DA CASA DE CÂMBIOS IMPERIAL SRL e da PHOENIX CÂMBIO E TURISMO LTDA. 1.1. VICTOR MANUEL DECOUD CARDENAS, paraguaio, casado, comerciante, natural de Asunción (...) 1.6. D. C., vulgo Pingo, brasileiro, casado, empresário, nascido em 18.09.54, natural de Jandaia do Sul/PR, filho de R. C. e M. A., podendo ser encontrado na Rua Marechal Deodoro, 427, Centro, em Curitiba/PR, ou ainda na Rua João Soares Barcellos, 3001, Casa, Boqueirão, em Curitiba; 1.7. R. C. (...) 2. Contadores (...) 3. ‘Laranjas’ (...) 4. Agenciadores de Laranjas (...) 5. Gerentes de Instituições Financeiras (...). Breve escorço dos fatos. Em 1996, o BACEN autorizou 5 instituições financeiras, que mantinham agências na cidade fronteiriça de Foz do Iguaçu (BEMGE, BANCO DO BRASIL, BANESTADO, ARAUCÁRIA E REAL) a receberem depósitos em espécie nas famosas contas ‘CC-5’, acima do patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a pretexto de facilitar o repatriamento de recursos gastos por brasileiros, ‘compristas’ no comércio de Ciudad del Este. Ao ensejo desta facilidade, ‘doleiros’ vislumbraram a possibilidade de dissimular recursos financeiros de origem ilícita e promoverem a evasão de divisas, em detrimento das reservas nacionais cambiais. Para tanto, em um primeiro momento, os agentes das organizações criminosas valeram-se de falha na fiscalização por parte dos órgãos da Receita Federal, que não se propunham a implementar a contagem dos valores trazidos do Paraguai em carros-forte por ocasião de sua entrada em território nacional (...) Em um segundo momento, as mesmas organizações criminosas incrementaram a abertura de outras tantas contas de ‘laranjas’ mediante a co-autoria de inúmeros gerentes bancários, sendo certo que essas novas contas não ensejaram saque de quantias em espécie (as quais eram depositadas em contas CC-5 de casas de câmbio paraguaias, para posterior liquidação de câmbio e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 257 remessa de moeda estrangeira ao exterior) mas tão-somente transferência de recursos através de cheques ou ‘docs’. Em suma, o dinheiro depositado nessas contas de ‘laranjas’ era repassado diretamente para contas de casas de câmbio ou bancos paraguaios, para fins de remessa mediante crédito em contas no exterior. (...) Mister esclarecer que as excogitadas contas CC-5 assumem três diferentes modalidades contábeis, quais sejam: as que movimentam recursos ‘provenientes de vendas de câmbio’; recursos ‘de outras origens’ e recursos ‘de instituições financeiras’. No caso em tela, as casas de câmbio (...) movimentavam, desde 1996, contas ‘CC-5 de outras origens’, sendo que elas admitem depósitos e saques em moeda nacional, mas não admitem conversão em moeda estrangeira ou remessa ao exterior. O depósito na conta CC-5 configura evasão de divisas, saída de recursos, conforme o disposto no art. 7º da Carta-Circular 2.677: ‘Para os fins e efeitos desta Circular caracterizam: II – saídas de recursos do País os créditos efetuados pelo banco depositário em contas tituladas por domiciliados no exterior, exceto quando os recursos provierem de venda de moeda estrangeira ou diretamente de outra conta da espécie’. Daí a imprescindibilidade de que os recursos financeiros fossem, após recebidos pelas casas de câmbio, creditados em contas de bancos estrangeiros, principalmente Banco Integración e Banco Del Paraná. (...) A conta CC-5 da CASA DE CÂMBIOS IMPERIAL recebeu centenas de depósitos irregulares, sem a correta identificação dos depositantes, sendo certo que cada um dos depósitos corresponde a uma conduta criminosa, conforme o parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86. A Casa de Câmbios Imperial mantinha 3 (três) contas CC-5, sendo que no Banco Araucária de Curitiba detinha a nº 18.006-6; no Banco Araucária de Foz do Iguaçu possuía a conta nº 45.001-4 e no Banco do Estado do Paraná – BANESTADO detinha a de nº 341369. Os depósitos encontram-se discriminados no Laudo nº 1.676/03/INC, em anexo, sendo certo que os valores evadidos através da conta de cada um dos ‘laranjas’ foram depositados para as contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial SRL (fls. 12/16 - Rol dos depósitos em nome de ‘laranjas’). Além de tais depósitos, existem ainda os que não foram identificados (...) É de se salientar que através das mencionadas contas-correntes movimentaram-se recursos financeiros nunca antes imaginados, visando à sua remessa ilegal ao exterior. Conforme consta do Laudo nº 1.676/03/INC, em anexo, nos anos de 1996 a 1998, através das contas CC-5 que a Casa de Câmbios Imperial SRL mantinha nos Bancos Araucária e Banestado, em Foz do Iguaçu e Curitiba, recebeu o equivalente a R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um milhões, duzentos e cinqüenta e um mil, três reais e cinqüenta e três centavos) a título de disponibilidades no exterior, depositados tanto por ‘laranjas’ como por ‘outros’. Nunca é demais ressaltar que 98,4% do dinheiro depositado na conta CC-5 da Imperial no Araucária de Foz do Iguaçu (...) foi dissimulado em contas de ‘laranjas’, caracterizando os crimes contra o sistema financeiro descritos nesta inicial. De tal conta, o destino foi 100% para o Banco Integración do Paraguai. Pertinente à conta CC-5 no Araucária de Curitiba, 86,1% do dinheiro depositado foi proveniente de laranjas, destinando-se também 100% dos valores ao Banco Integración do Paraguai. No que tange à conta CC-5 da Imperial no Banestado de Foz 258 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 do Iguaçu, 56,8% do dinheiro depositado foi proveniente de ‘laranjas’, sendo que a maior parte foi destinada ulteriormente ao Banco Del Paraná (74,7%). Comprovou-se que os vinte e sete denunciados (...) se associaram em quadrilha ou bando, para o fim de cometer os crimes descritos nesta denúncia, incidindo, portanto, no art. 288 do Código Penal e nos aspectos processuais da Lei 9.034/95 (com a redação dada pela Lei 10.217/2001). O depósito de recursos nas contas CC-5 da paraguaia Casa de Câmbios Imperial SRL, que caracteriza a ‘constituição de disponibilidades no exterior’, deu-se em desobediência às normas regulamentares, porquanto a dissimulação da origem dos recursos, com a movimentação através de ‘laranja’, macula todos os atos seguintes da operação financeira, de modo que restaram devidamente integrados os tipos do art. 22 e parágrafo único da Lei 7.492/86, tratando-se de normas penais em branco, complementadas pela Carta-Circular nº 2.677/96 do Banco Central do Brasil. Em síntese, a partir do momento em que os depositantes valeram-se de interposta pessoa para movimentarem seus recursos para o exterior, burlaram as normas regulamentares do BACEN, incidindo nas penas do referido artigo 22 e § único da Lei 7.492/86...” Especificamente em relação ao acusado, consta da exordial (fls. 19 e seguintes) que: “Durante as investigações da Polícia Federal nos inquéritos acima referidos, ficou claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial SRL. Tais denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de conta CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da empresa Phoenix, veja-se que continuou a gerir tal empresa mesmo após 25.09.98, juntamente com seu irmão e denunciado R. C. Neste momento, trazemos à baila a transcrição de alguns depoimentos importantes ao deslinde da quaestio: ... (fls. 214). Outrossim, foram apreendidos diversos documentos através da busca e apreensão requerida no procedimento criminal diverso de nº 2003.70.00.030924-5, em trâmite nessa Vara Criminal. Alguns desses documentos indicam claramente a propriedade da Casa de Câmbios Imperial pelos irmãos R. C. e D. C., dentre eles um contrato privado de cessão de quotas da referida empresa (...) O. A. C. M., apesar de constar como sócio de direito da Casa de Câmbios Imperial, nada mais é do que um longa manus de R. C. e D. C. para fins de evasão de divisas do Brasil para o Paraguai e outros países. (...) G. E. E. V. (sócio da Phoenix) a mando dos denunciados R. C. e D. C., continuou em Foz do Iguaçu para arregimentar ‘laranjas’ e facilitar a remessa ilegal (...) A relação criminosa existente entre o denunciado L. T. A. e os irmãos C. é evidente, contando assim com seus serviços para arregimentar ‘laranjas’ e legitimar contratos sociais perante a Junta Comercial do Paraná, além de possuir uma íntima relação com todos os familiares (...) Pertinente a S. A. M., tal denunciado foi funcionário da Sigla Câmbio e Turismo entre 1992 e 2000 e assinava os talonários da Plenus Adm. de Bens e Serviços, em R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 259 conluio com os donos da Sigla, R. C. e D. C. Além disso, confirmou que ainda retirava os talonários das empresas ‘fantasmas’ Eldorado e Bastilha (que é de propriedade do denunciado L.) junto às respectivas instituições financeiras, o que demonstra o total relacionamento existente entre a Sigla e tais empresas (Plenus, Bastilha e Eldorado – ‘laranjas’ utilizadas para a evasão de divisas) ... Em total unidade de desígnios, os denunciados dividiram tarefas, profissionalizando-se na prática criminosa, consistentes no aliciamento de laranjas, na captação de recursos financeiros de proveniência ilícita de dentro do Brasil, bem como a gerência das respectivas contas em instituições financeiras, para, através de contas CC-5 remetê-los ao exterior, após dissimularem a sua origem, em franca desconformidade com os dispositivos da Carta-Circular nº 2.677/96. Tais denunciados participavam diretamente da administração das contas CC-5 que mantinham em instituições financeiras brasileiras, promovendo o depósito dos recursos em contas de instituições financeiras estrangeiras, para posterior liquidação das operações. Cumpre esclarecer que as casas de câmbio e bancos paraguaios, apesar de constituídos sob a égide da legislação estrangeira, operavam em detrimento das reservas cambiais brasileiras, aproveitando-se das normas editadas pelo BACEN, de modo que se inserem no conceito de instituições financeiras para fins penais da Lei 7.492/86 (...) Uma vez abertas as centenas de contas correntes dos ‘laranjas’, os milhares de depositantes espalhados pelo Brasil injetaram recursos provenientes de outras práticas criminosas, visando à não identificação, ou seja, dissimulação da sua origem. (...) Verifica-se que as Casas de Câmbio também são assemelhadas a instituições financeiras, eis que captaram e intermediaram recursos no país para fins de remessa ao exterior, consoante o art. 1º, parágrafo único, da Lei 7.492/86. Portanto, todos os dirigentes das casas de câmbio Imperial e Phoenix respondem nos termos da lei por crimes contra o sistema financeiro nacional. X - DA GESTÃO FRAUDULENTA - Agindo em detrimento do nível de segurança exigido na condução dos negócios das casas de câmbio, bem como prestando freqüentes informações fraudulentas ao BACEN, ensejando suspeita sobre todas as operações realizadas através das contas CC-5 e aproveitando-se da peculiaridade da região da tríplice fronteira quanto ao comércio existente entre Brasil e Paraguai, os denunciados (...) geriram fraudulentamente as respectivas Casas de Câmbio Imperial, Sigla e Phoenix, incorrendo nas sanções do art. 4º, caput, da Lei 7.492/86 (por 3 vezes) c/c os arts. 29 e 69 do CP, em unidade de desígnios com os demais denunciados que, na medida de sua culpabilidade, contribuíram para a eficácia do delito. (...) XI - DO ARTIGO 16 - Fazendo operar as instituições financeiras Casas de Câmbio Imperial, Sigla e Phoenix, sem a devida autorização, mediante a extrapolação dos fundamentos para a conversão de moeda nacional em moeda estrangeira através de contas CC-5, uma vez que captavam recursos financeiros de terceiros para depósitos em contas de laranjas, os denunciados (...) incorreram nas sanções do art. 16 da Lei 7.492/86, por três vezes, na forma do art. 69 do CP (cúmulo material). XII - DA EVASÃO DE DIVISAS E DA QUADRILHA Os denunciados (...) montaram estrutura criminosa que permitiu a prática de 3.300 (três mil e trezentos) depósitos irregulares (laranjas) nas contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial, nos anos de 1996 e 1997, totalizando o 260 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 valor de R$ 587.476.755,59 (quinhentos e oitenta e sete milhões, quatrocentos e setenta e seis mil, setecentos e cinqüenta e cinco reais e noventa e nove centavos, conforme consta do anexo 1 do laudo 1.676/03-Inc. em anexo, pelo que incorreram nas penas do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, na forma do art. 69 do CP, 3.300 (três mil e trezentas vezes). Ademais, (...) em conluio, associaram-se em quadrilha (art. 288 do Código Penal) nos anos de 1996, 1997 e 1998 para fins de cometer delitos, dentre os quais, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, gestão fraudulenta e do art. 16 da Lei 7.492/86. XIII – DA FALSIDADE IDEOLÓGICA. Conforme já ilustrado na exordial acusatória, os denunciados (...) por 23 vezes (IPls nos ...) em especial utilizando-se dos serviços prestados pelos contadores Edson e Milton, inseriram elementos inverídicos em diversos documentos, tais como declarações de rendimentos, de residência e de trabalho, bem como assinaram contratos sociais corroborando diversas situações falsas, abrindo contas em bancos oficiais e privados, em detrimento do Banco Central do Brasil, dissimulando ainda a origem dos respectivos recursos, sempre no escopo de evadir divisas ao exterior, incidindo portanto nas penas do art. 299 do Código Penal c/c art. 69 do mesmo Códex. XIV – DA LAVAGEM DE DINHEIRO ...” (fls. 02/65) Os autos receberam o nº 2003.70.00.039532-0, tendo a denúncia sido acolhida em 08.08.2003. (fls. 66/71) Na mesma data, o MM. Juiz Federal da 2ª Vara Criminal de Curitiba decretou a prisão preventiva de R. C., D. C., V. M. D. C. e O. A. C. M., “dirigentes de direito ou de fato da Câmbios Imperial SRL, a quem foram imputadas fraudes que ultrapassam a cifra de quinhentos milhões de reais (...) como garantia da ordem pública e econômica e para assegurar a aplicação da lei penal”. (fls. 79/84) Quanto a D. C., o mandado de prisão foi cumprido em 11.08.2003 (fl. 85). Na audiência de interrogatório, ausentes os demais réus, o ilustre magistrado a quo determinou o desmembramento do feito em relação a este acusado, por encontrar-se preso provisoriamente, bem como a extração de cópia de todas as peças processuais e respectivos apensos, distribuindo-se por dependência aos autos principais (fl. 89). Este processo foi autuado sob o nº 2003.70.00.043123-3. Restando indeferido o recolhimento em prisão domiciliar (fl. 98), foi impetrado habeas corpus (fls. 111/28) denegado pela 8ª Turma desta Corte. À fl. 129, foi prolatado despacho referente à inquirição das testemunhas, e, às fls. 136/51, juntada a transcrição do interrogatório do réu. Regularmente instruído o feito, sobreveio sentença (fls. 784/804), julgando parcialmente procedente a denúncia para absolver o denunR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 261 ciado quanto ao crime de lavagem de dinheiro e condenar D. C. a 10 (dez) anos de reclusão, em regime inicial fechado, além de 300 (trezentos) dias-multa à razão unitária de 40 (quarenta) salários mínimos, pela prática do ilícito insculpido no artigo 4º da Lei 7.492/86 (gestão fraudulenta) mais 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão por infração ao disposto no art. 288 do Código Penal. Irresignado, o MPF interpôs apelo (fls. 813/24), postulando a condenação do acusado pela prática dos delitos previstos no art. 299 do Estatuto Repressivo, bem como artigos 16 e 22, § único, da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro, em concurso material. (art. 69 do CP) Também inconformado, apelou o réu (fl. 826), apresentando as contra-razões ao recurso ministerial (fls. 827/42). Nas razões formuladas nesta instância (fls. 869/916), sustenta, preliminarmente, a nulidade absoluta do processo, por incompetência do Juízo da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba e litispendência com ação penal anterior. Ainda, em preliminar, alega cerceamento de defesa, por ter sido indeferida a transcrição integral das interceptações telefônicas realizadas no curso das investigações. No mérito, aduz tese negativa de autoria, pois “ausente prova que desconstitua a versão do apelante, não há como se estabelecer ligação entre a sua conduta e as supostas fraudes praticadas em nome das empresas Imperial e Phoenix, porquanto os elementos indiciários constantes dos autos são insuficientes para tal conclusão. O que se pode examinar, de fato, são os atos de gestão praticados pelo apelante em nome da empresa Sigla Câmbio e Turismo Ltda., e aí não se vislumbra qualquer ilicitude merecedora de reprovação penal”. Defende que “o conflito aparente de normas entre os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira e evasão de divisas não foi adequadamente resolvido pela sentença” e, portanto, na hipótese de ser proferida condenação, teria que ser embasada exclusivamente nos artigos 21 ou 22 da Lei 7.492/86, por força do princípio da especialidade. Registra a ocorrência de bis in idem no que pertine ao crime de quadrilha (art. 288 do CP), bem como a ilegalidade da condenação do Recorrente em separado dos demais integrantes da suposta organização, sendo incabível a cisão do processo quanto a esse delito, eis que o concurso necessário de agentes constitui elementar do tipo penal. Por fim, postula a redução da pena privativa de liberdade e da multa. 262 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 A douta Procuradoria da República, oficiando no feito, opinou pelo provimento do recurso ministerial e desprovimento do apelo do réu. (fls. 926/49) Reiterou a defesa o pedido de revogação da custódia, acostando documentos (fls. 981/1093) o que restou indeferido. É o relatório. À revisão. RELATÓRIO COMPLEMENTAR O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: Posteriormente, já estando os autos conclusos ao eminente Revisor, o patrono do acusado interpôs agravo regimental (fls. 1106-114), pugnando pela reconsideração do apontado decisum. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Ab initio, no que pertine ao agravo regimental interposto contra o indeferimento do pedido para que fosse revogada a prisão do acusado, não vejo motivo para alterar o entendimento manifestado no despacho de fls. 1101-1102, redigido nas seguintes letras: “Cuida-se de pedido de revogação da custódia cautelar imposta a D. C. nestes autos (fls. 981/90). Em que pesem os doutos argumentos trazidos pela defesa, permanecem os motivos que levaram à decretação da medida. Por outro lado, a questão relativa à cardiopatia foi dirimida pelo juízo monocrático, frente ao laudo pericial, concluindo-se não haver impedimento de ordem médica à manutenção do encarceramento preventivo. Ainda que assim não fosse, restando proferido decreto condenatório e tendo o acusado permanecido preso durante toda a instrução criminal, seria contra-senso revogar a prisão neste momento do processo. Nesse sentido, é pacífica a jurisprudência desta Corte, bem como do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende dos Acórdãos a seguir ementados: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE. RÉU PRESO PREVENTIVAMENTE DURANTE O PROCESSO. Não tem direito de recorrer em liberdade o réu que permaneceu preso preventivamente ao longo do processo, pois a sua manutenção na prisão é, por ora, conseqüência do próprio decreto condenatório. Ordem denegada. (STJ, HC nº 22.825/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Félix Fischer, publ. no DJU em 17.02.2003, p. 313). PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. LIBERDADE PROVISÓRIA. RÉU FORAGIDO. IMPOSSIBILIDADE. A despeito do princípio da presunção da inocência, não tem direito de recorrer em liberdade o acusado que permaneceu ou deveria R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 263 ter permanecido preso durante toda a instrução criminal, visto ser um dos efeitos da sentença condenatória o recolhimento do réu à prisão. Ordem denegada. (STJ, HC nº 21.635/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, publ. no DJU em 04.08.2003, p. 432). A par disso, devidamente lançado o relatório, o feito está sendo remetido para o Revisor na presente data, nos termos do regimento interno desta Corte, a fim de ser incluído em pauta, de modo que não se vislumbram motivos para o Recorrente aguardar em liberdade o julgamento do apelo. Portanto, indefiro o pedido de fls. 981/90.” No tocante às questões preliminares suscitadas no apelo da defesa, de início mister referir que descabe falar em nulidade do decreto condenatório, por suposta incompetência do Juízo da 2ª Vara Criminal Federal de Curitiba/PR. A matéria já foi objeto de deliberação por esta Turma nos autos do Habeas Corpus nº 2003.04.01.037278-8, impetrado em favor de D. C. (08.10.2003), bem assim no HC 2003.04.01.041096-0, figurando como paciente R. C. (29.10.2003). Restou assentado naqueles julgamentos não haver ofensa ao Princípio do Juiz Natural, frente ao disposto nos incisos do art. 5o da CF/88 (XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente), pois, na espécie, não foi criado nenhum juízo de exceção. Pelo contrário, o ilustre magistrado a quo apenas fez observância ao ato normativo desta Corte, determinando a especialização da 2a Vara Federal Criminal de Curitiba para processar e julgar os delitos previstos nas Leis nos 7.492/86 e 9.613/98, sendo que a presente ação penal teve sua competência originária firmada em 08 de agosto de 2003, posteriormente ao advento da Resolução nº 20 deste Regional (26.05.03). Como é sabido, descabe aos Tribunais a criação de novéis estruturas, tais como cartórios ou cargos. Isso não acarreta, todavia, impedimento ao Judiciário para decidir acerca da especialização material de Varas, porquanto tal prerrogativa é ínsita ao poder de auto-organização inscrito no artigo 99 da CF. Nesse sentido, resolveu o Conselho da Justiça Federal editar, em 12 de maio de 2003, a Resolução 314, dispondo que “os Tribunais Regionais Federais, na sua área de jurisdição, especializarão varas federais criminais com competência exclusiva ou concorrente, no prazo de sessenta dias, para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”. 264 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (publicada no DJU de 14.05.2003) Por outro lado, a Lei nº 9.664, de 19.06.98, assim estabelece no seu art. 3º: “Caberá ao Tribunal Regional Federal da 4a Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e jurisdição, bem como transferir sua sede de um município para o outro, de acordo com a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional.” Objetivando regulamentar o diploma mencionado, a Presidência desta Corte editou, no dia 20 de maio de 2003, a Resolução nº 20, a qual preceitua, em resumo, o seguinte: “O PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, usando de suas atribuições legais e regimentais, tendo em vista o decidido no PA nº 03.11.000258, pelo Conselho de Administração, em sessão realizada no dia 26 de maio de 2003, e CONSIDERANDO a determinação contida na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003, do Conselho da Justiça Federal, que determina a especialização de Varas federais criminais para processar e julgar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; CONSIDERANDO que a especialização de Varas tem se revelado medida salutar, com notável incremento na qualidade e na celeridade da prestação jurisdicional; CONSIDERANDO as dificuldades de processamento dos delitos referidos, por conta da peculiaridade e complexidade da matéria envolvida; CONSIDERANDO que os Tribunais Regionais Federais possuem autorização legal para especializar Varas, de acordo com o disposto nos arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66 c/c o art. 11, parágrafo único, da Lei nº 7.727/89, resolve: Art. 1º. Especializar as seguintes Varas criminais para processar e julgar os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores: a) 1ª Vara Criminal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul; b) Vara Criminal de Florianópolis, Santa Catarina; c) 2ª Vara Criminal de Curitiba, Paraná. (...) § 3º. A 2ª Vara Criminal de Curitiba, além da competência ora atribuída, manterá a competência para os feitos do júri. Art. 2º. Serão processados perante Vara criminal especializada os crimes previstos no art. 1º, qualquer que seja o meio, modo ou local de execução. § 1º. As Varas criminais especializadas são consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria e terão competência sobre toda a área territorial compreendida em cada seção judiciária. § 2º. Serão processados e julgados perante as Varas criminais especializadas as ações e incidentes relativos a seqüestro e apreensão de bens, direitos ou valores, pedidos de restituição de coisas apreendidas, busca e apreensão, hipoteca legal e quaisquer outras medidas assecuratórias, bem como todas as medidas relacionadas com a repressão penal de que trata o caput deste artigo, inclusive medidas cautelares antecipatórias ou preparatórias. (...)” A legalidade desse ato normativo já foi expressamente reconhecida nos precedentes deste Tribunal. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 265 Veja-se, a propósito, a orientação retratada nos Acórdãos a seguir ementados: “PENAL. PROCEDIMENTO CRIMINAL. COMPETÊNCIA. SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ‘LAVAGEM’ DE DINHEIRO. RESOLUÇÃO Nº 314/CJF. RESOLUÇÃO Nº 20/TRF 4ª REGIÃO. 1. Tratando-se de procedimento criminal, a competência é determinada pela exegese das Resoluções nº 32 do Conselho da Justiça Federal e nº 20 desta Corte, com a especialização da 2a Vara Criminal de Curitiba/PR para processar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores. 2. Negado provimento ao recurso em sentido estrito.” (RSE nº 2003.72.05.003328-8/SC, Relator Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, 8a Turma, julgado em 27.08.2003) “PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO FEDERAL DE CURITIBA E JUÍZO FEDERAL DE FOZ DO IGUAÇU. CRIMES DE ‘LAVAGEM’ DE DINHEIRO, SONEGAÇÃO FISCAL E EVASÃO DE DIVISAS. CONTAS CC5. CONTAS DE DOMICILIADO NO EXTERIOR. VARA ESPECIALIZADA. RESOLUÇÃO Nº 20/2003 DESTE TRF 4ª REGIÃO. Tratando-se de inquérito policial em que se averigua a prática, em tese, de crime de ‘lavagem’ de dinheiro por meio de contas CC5 e contas de domiciliado no exterior, em conexão com outros delitos (tais como sonegação fiscal, evasão de divisas e formação de quadrilha) no Estado do Paraná, a competência para processar e julgar o feito é da 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, nos termos da alínea c do art. 1o c/c art. 6o da Resolução nº 20, de 26.05.2003, editada pela Presidência deste Regional.” (CC nº 2003.04.01.007588-5/PR, Relator Des. José Germano da Silva, 4a Seção, decisão de 16.06.2003, publicada no DJU de 25.06.2003, p. 555/556) Ademais, consoante ressaltado pela douta Procuradoria Regional da República em parecer exarado nos autos do RCCR número 2003.70.01.010030-4: “O redesenho da competência em tribunais (...) entre outras, é situação corrente nos dias de hoje, em resposta a imperativos de ordem prática e gerencial da dinamização das relações judiciárias que desafiam a ortodoxia do juízo natural, mas que vêm sendo respeitadas pelas instâncias superiores, nas quais não se enxergam abusos, excessos, desvios ou violações às liberdades fundamentais dos cidadãos. (...) A adoção da Resolução nº 20/03 pelo TRF da 4ª Região esboça mais um desses capítulos de esforço judiciário, no sentido de dar, com a especialização de varas, uma resposta satisfatória aos reclamos sociais de uma jurisdição efetiva, capaz de reverter o quadro da impunidade. (...) O mesmo entendimento das razões acima explanadas foi adotado no parecer exarado pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República, nos autos da Representação PGR nº 1.00.000.006518/2003-52...” No mesmo sentido, a fim de afastar qualquer dúvida a respeito da 266 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 quaestio, mister trazer à colação a ementa de recente julgado da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAIS CRIMINAIS. PENAL. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E SISTEMA FINANCEIRO. CONEXÃO. RESOLUÇÃO Nº 20/2003 DO TRF DA 4ª REGIÃO. ESPECIALIZAÇÃO DE VARAS CRIMINAIS. Considerando os termos da Resolução nº 20/2003 do TRF da 4ª Região, que especializou a Vara Federal Criminal de Curitiba/PR, para ‘processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores...’ este deve ser o Juízo competente na hipótese, eis que o referido ato do Conselho da Justiça Federal (Resolução 314) destina-se, à vista da sua atribuição, a zelar pela eficácia célere da prestação jurisdicional, no âmbito da jurisdição federal ordinária. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 2ª Vara Criminal de Curitiba, Estado do Paraná, o suscitado.” (CC nº 39.367, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, publ. no DJU em 28.10.2003) De igual forma, desmerece abrigo a tese que busca invalidar o decisum alegando litispendência, eis que nos precedentes habeas corpus assim restou decidido: “In casu, o Paciente responde a duas demandas penais: uma ajuizada perante a 1a Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR – investigando o possível cometimento dos delitos inscritos nos artigos 16, 21 e 22 da Lei nº 7.492/86 c/c art. 288 do CP em virtude da remessa de R$ 607.668,00 (seiscentos e sete mil, seiscentos e sessenta e oito reais) entre 07.04.97 e 26.06.97, ao Banco Integración, do Paraguai – e outra em trâmite na 2a Vara Federal Criminal de Curitiba, apurando a prática de idênticas infrações, desta vez pelo provável envio de R$ 631.251.003,53 (seiscentos e trinta e um milhões, duzentos e cinqüenta e um mil, três reais e cinqüenta e três centavos) entre 1996 e 1998, ao mesmo destino. A mera possibilidade de restar caracterizada parcial litispendência (relativa ao envio de R$ 80.140,60 via CC-5) não elide, por si só, a custódia preventiva imposta eis que prejudicada a persecução penal de parcela mínima dos fatos narrados na inicial. Estando em curso a exceção aludida no artigo 110 do CPP, não resulta razoável se antecipar ao decisum a ser exarado pelo juízo monocrático, sob pena de indevida supressão de grau jurisdicional. Mostra-se mais adequado aguardar o trâmite do incidente....” Consta dos autos que, na referida Exceção de Litispendência, autuada na Vara de origem sob nº 2003.70.00.043994-3 (fl. 444), já foi prolatada sentença acolhendo parcialmente o pedido, com a seguinte fundamentação: “A ação penal nº 2003.70.00.043123-3 tem por objeto remessas fraudulentas efetuadas a partir de dezenas de contas específicas abertas em nome de ‘laranjas’ e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 267 cuja responsabilidade foi atribuída, entre outros, ao excipiente. As contas em questão foram declinadas na inicial e importaram em remessas de R$ 631.251.003,53 através de depósitos nas contas CC-5 titularizadas pela Casa de Câmbios Imperial SRL. A ação penal mencionada para configuração da litispendência (Processo 97.101.02388-2, 1ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu) tem, por sua vez, como objeto, tão-somente as remessas efetuadas, no valor de R$ 607.668,00, a partir de apenas duas contas titularizadas pelo ‘laranja’ Olmar Gavazzoni e através de depósitos em contas CC-5 titularizadas pela Casa de Câmbio Imperial, Câmbios Plata e Banco Integración. (...) A ação penal ora proposta é então única. Portanto, afigura-se evidente que não se trata da mesma ação, tendo ambas objetos bastante diferenciados, o que é ilustrado pela disparidade de valores das remessas em uma e outra. No caso, porém, deve-se reconhecer litispendência parcial, excluindo-se do objeto da presente ação penal as remessas efetuadas a partir da conta de Olmar Gavazzoni e através de depósitos na conta CC-5 da Casa de Câmbio Imperial, que totalizaram R$ 80.140,60 (cfe. quadro de fl. 84). Ante o exposto, acolho parcialmente a exceção de litispendência...” Tenho que não merece reparos esse entendimento, que aliás transitou em julgado. Com efeito, o exame detido dos autos demonstra não haver perfeita identidade de partes, pedido e causa de pedir nas referidas ações penais, sendo certo que, ocorrendo variação de qualquer destes elementos entre os dois processos, não é possível reconhecer o alegado bis in idem. Embora D. C. tenha figurado como réu em ambas as denúncias, tal não ocorreu com vários outros, que não foram acusados no feito anterior, mas tão-somente em Curitiba. Os fatos descritos também não são idênticos. O procedimento em trâmite na 1ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu limita-se aos eventos relacionados a alguns “laranjas” e gerentes no período entre 04.09.97 e 10.10.97. Os valores relativos a essas operações, segundo a respectiva peça inicial, importa em aproximadamente seiscentos mil reais. Por outro lado, a exordial ofertada perante a 2ª Vara Criminal de Curitiba tem pedido bem mais abrangente, envolvendo inúmeros outros agentes e valores da ordem de seiscentos milhões de reais, cujos depósitos encontram-se detalhadamente listados no laudo elaborado pelo Instituto de Criminalística da Polícia Federal, que deu embasamento à denúncia. Desse modo, observa-se que apenas uma ínfima parcela dos fatos narrados na última peça acusatória (ou seja, somente os depósitos titulados por Olmar Gavazzoni) foram objeto da ação penal ajuizada em Foz do Iguaçu. Assim, caracterizada a coincidência em relação a essa pequena parte 268 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 dos delitos noticiados, tal circunstância, por si só, não se mostra suficiente para elidir o prosseguimento da ação penal em debate, a qual, como visto, envolve partes, pedido e causa de pedir diversos. Por outro lado, inexiste prevenção do Juízo de Foz do Iguaçu para examinar os delitos supostamente conexos, na medida em que, a partir do advento da citada Resolução nº 20/03 desta Corte, os inquéritos (e respectivas denúncias) concernentes a crimes contra o sistema financeiro nacional ocorridos na Seção Judiciária do Paraná devem sempre ser processados e julgados pela 2ª Vara Federal Criminal da Capital. Logo, os dois juízos não são igualmente competentes para o exame da matéria, nos termos do art. 83 do CPP, sendo-o tão-só o de Curitiba/ PR, conforme retromencionado. Cumpre lembrar que, consoante lição de Julio Fabbrini Mirabete, “evidentemente, não há que se falar em prevenção se em processos diversos os fatos ou as pessoas são diferentes, quando prevalece o lugar da infração mais grave, ou em que ocorreu o maior número de infrações”. (Processo Penal, 10ª ed. Atlas, p. 185) Pelo exposto, tendo em conta que o pedido de apreciação da matéria foi expressamente renovado nas razões recursais, rejeito as preliminares de litispendência e incompetência do Juízo. Quanto ao alegado cerceamento da defesa, em razão do decisum que, na fase do art. 499 do CPP, indeferiu a transcrição integral das interceptações telefônicas realizadas (fl. 661), merece ser mantido o entendimento do ilustre julgador a quo, por seus próprios fundamentos, devidamente complementados na sentença (fls. 786/7), eis que não se vislumbra ofensa ao direito questionado. Conforme apontado pela ilustre agente ministerial em seu parecer (fls. 933/977), a jurisprudência do E. STJ (v.g. HC nº 30.545/PR, Rel. Min. Félix Fischer) tem corroborado a orientação deste Regional no sentido de não ser indispensável a degravação de todas as conversas telefônicas interceptadas, desde que às partes seja franqueado o acesso a seu conteúdo durante a instrução criminal, o que, na hipótese sub judice, de fato ocorreu. Na mesma direção, cumpre referir os seguintes precedentes: “HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. ART. 312 DO CPP. DEMONSTRAÇÃO. CARTA PRECATÓRIA. GRAVAÇÕES TELEFÔNICAS. TRANSCRIÇÃO. ORDEM DENEGADA. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 269 1. A prisão preventiva, embora implique sacrifício à liberdade individual, é ditada por interesse social, impondo-se a sua decretação por decisão fundamentada sempre que for suficientemente demonstrada a presença de qualquer dos pressupostos inscritos no art. 312 do CPP. 2. omissis 3. Não compromete a validade da prova o fato da transcrição das comunicações telefônicas ser apenas parcial e estar acompanhada de comentários elaborados pela autoridade policial, pois qualquer dúvida quanto à fidedignidade da transcrição ou à pertinência dos comentários pode ser imediatamente verificada pelo juízo ou por qualquer das partes mediante acesso aos discos (CDs) que contêm a integralidade das conversações gravadas. 4. Justifica-se a restrição cautelar da liberdade individual nos casos em que as provas evidenciam que a liberdade do suspeito (ou condenado) pela prática do ato delituoso põe em risco a instrução criminal e a ordem pública. Ordem de habeas corpus denegada. (TRF/4ª, HC nº 2003.04.01.028919-8/ PR, Relator Des. SURREAUX CHAGAS, TURMA ESPECIAL, julg. em 29.07.2003, publ. no DJU em 13.08.2003, p. 144). TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME. ASSOCIAÇÃO. COMPETÊNCIA. INTERNACIONALIDADE. DENÚNCIA: INÉPCIA. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. INUTILIZAÇÃO DAS FITAS MATRIZES. TRANSCRIÇÃO DAS GRAVAÇÕES. PERÍCIA. TIPO OBJETIVO, ATITUDE DO JUIZ, PROVA. INDÍCIOS, INTERROGATÓRIO, SILÊNCIO, TESTEMUNHAS POLICIAIS. 1 a 3. (...). 4. A denúncia que descreve objetiva e minuciosamente todos os fatos criminosos imputados aos réus, delimitando claramente a conduta atribuída a cada um deles, de forma a permitir o pleno exercício da mais ampla defesa, não é inepta. 5. Irrepreensível o trabalho de interceptação telefônica realizado pela Polícia com a devida autorização judicial, sendo absolutamente irrelevante a falta de alvará para o procedimento num único dia, ao longo de quase três anos de diligências: essa pequena falha não contamina o restante da prova, regularmente produzida. 6. Sem conseqüência processual a exclusão das passagens que não apresentavam nenhuma relevância para as investigações, nas gravações dos diálogos interceptados, desde que o material efetivamente utilizado como prova tenha sido devidamente preservado: fere o senso comum exigir a conservação de registros totalmente despidos de qualquer interesse para o processo. 7. Desnecessário que a transcrição das gravações resultantes da interceptação telefônica seja feita por peritos oficiais: tarefa que não exige conhecimentos técnicos especializados, podendo ser realizada pelos próprios policiais que atuaram na investigação. 8. A inserção de notas explicativas nas transcrições é providência salutar e até mesmo indispensável para a compreensão dos diálogos interceptados, tendo em vista a linguagem propositadamente enigmática empregada pelos traficantes nas suas conversações telefônicas. 9. a 14 . omissis.” (TRF/4ª, ACR nº 2000.71.04.003642-3/ RS, 8ª Turma, Relator Des. Amir José Finocchiaro Sarti, julg. em 12.11.2001, publ. no DJU em 16.01.2002, p. 1396). No mérito, o douto magistrado sentenciante assim resumiu os fatos descritos na extensa peça acusatória: 270 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 “Narra a denúncia que a empresa paraguaia Casa de Câmbios Imperial S.R.L. mantinha uma conta CC-5 no Banco Araucária S/A em Curitiba, outra no Banco Araucária em Foz do Iguaçu e ainda outra no Banco do Estado do Paraná – Banestado, também em Foz do Iguaçu. As referidas contas teriam recebido créditos de R$ 631.251.003,53, a título de disponibilidades no exterior. O cruzamento dos depositantes com relação de comunicações de correntistas suspeitos enviadas pelo Banco Central do Brasil – BACEN revelaria que 98,4%, 86,1% e 56,8% dos recursos depositados nas contas CC-5 mantidas na Agência Foz do Iguaçu no Banco Araucária, na agência de Curitiba do Banco Araucária e no Banestado, respectivamente, seriam provenientes de contas correntes comuns titularizadas por pessoas sem capacidade econômica para a realização dos depósitos, ou seja, ‘laranjas’. Explicita ainda a denúncia dezenas desses laranjas (fls. 12/16). Com tal expediente, a Casa de Câmbios Imperial S.R.L. teria logrado remeter ao exterior tais valores, burlando a fiscalização do Bacen quanto ao verdadeiro remetente. Ainda, segundo a denúncia, a referida casa de câmbio teria por sócios Victor Manuel Decoud Cardenas, O. A. C. M. e C. B. P., mas, de fato, seria controlada por brasileiros, R. C. e o ora acusado, que também seriam sócios da Sigla Câmbio e Turismo Ltda., empresa sediada em Curitiba. D. C. ainda seria sócio da empresa Phoenix Câmbio e Turismo Ltda.” (fl. 784). Em face disso, D. C. e outros vinte e seis réus foram acusados da prática dos delitos insculpidos nos artigos 4º, caput, 16 e 22, todos da Lei nº 7.492/86; arts. 288 e 299, ambos do Estatuto Repressivo, bem como no artigo 1º, incisos VI e VII, c/c o art. 4º da Lei nº 9.613/98. A imputação de lavagem de dinheiro foi afastada na sentença, não tendo havido insurgência do Ministério Público. Pelo crime de quadrilha, o réu foi condenado à pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão. Quanto às demais infrações noticiadas (falsidade ideológica, evasão de divisas e operação de instituição financeira) foram consideradas absorvidas pela conduta descrita no artigo 4º da Lei nº 7.492/86 (gerência fraudulenta), resultando o apenamento, frente à multiplicidade de atos praticados, em dez anos de reclusão. Daí a irresignação apresentada pelas partes. O Parquet aduz não haver absorção, e sim concurso material, postulando a condenação pelos crimes do art. 299 do CP, arts. 16 e 22 da Lei 7.492/86, cumulativamente às reprimendas já fixadas. O réu, a seu turno, sustenta ser incabível o crime de “quadrilha” e, na hipótese de ser reconhecida a existência de crime financeiro, tão-só a evasão de divisas, por força do princípio da especialidade. Quanto à materialidade delitiva, as evidências são inquestionáveis no R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 271 sentido de ter havido remessa de divisas ao exterior. As provas dos autos, notadamente os extratos do SISBACEN e o Laudo nº 1676/03 do Instituto de Criminalística (fls. 3285/3358 do apenso XVII), apontam a existência de 3.300 (três mil e trezentos) depósitos “irregulares”, provenientes de contas-correntes tituladas por pessoas sem condições econômicas para tanto, bem como que, através da Casa de Câmbios Imperial SRL, instituição “paraguaia” mantenedora de contas CC-5 nos Bancos Araucária e Banestado, tais importâncias foram transferidas para fora do território nacional, principalmente aos Bancos Integración e Del Paraná, e dali redirecionadas para contas bancárias mantidas em outros países. Esse mecanismo, segundo o referido laudo, permitiu a evasão de R$ 587.476.755,99 (quinhentos e oitenta e sete milhões, quatrocentos e setenta e seis mil, setecentos e cinqüenta e cinco reais e noventa e nove centavos). No tocante à autoria, alega a defesa, em suma, não haver prova da ligação do acusado com as supostas fraudes praticadas em nome da Imperial, sendo que os atos de gestão praticados pelo apelante na condução da empresa Sigla Câmbio e Turismo Ltda. não são merecedores de reprovação penal. Entretanto, a própria denúncia tratou de dirimir a quaestio, apontando minuciosamente todos os fatos e documentos que levaram à conclusão de serem os irmãos D. C. e R. C. (ou C.) os responsáveis pela gestão da aludida Casa de Câmbio e, conseqüentemente, pelas remessas ilegais descritas na peça acusatória. Nos dizeres da exordial: “Durante as investigações da Polícia Federal nos 23 inquéritos acima referidos, ficou claro que D. C. (vulgo ‘Pingo’) e R. C., proprietários da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, são sócios de fato da empresa Casa de Câmbios Imperial SRL. Tais denunciados, com a sucursal paraguaia, tinham o real escopo de facilitar a respectiva remessa ilegal de valores para o Paraguai e outros países, através de conta CC5 (de não-residentes). Outrossim, além de D. C. constar como sócio de direito da empresa Phoenix, veja-se que continuou a gerir tal empresa mesmo após 25.09.98, juntamente com seu irmão e denunciado R. C. (...) Conforme declarações de Carlos Alberto de Lima, acostadas no procedimento criminal diverso de nº 2003.70.00.0309245 em trâmite nessa Vara Criminal, ‘O R. C., na realidade, é o proprietário da Casa de Câmbios Imperial e também quem efetivamente mandava na Phoenix... Raramente o R. C. comparecia na Phoenix, mas é certo que vinha com mais freqüência de Curitiba, em aeronave própria ou vôo comercial, para visitar a Casa de Câmbios Imperial, além de uma tabacaria que também é de sua propriedade e funciona em Ciudad Del Este.’ 272 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (...) Gustavo Luís Melgarejo Samudio disse às fls. 82/90 do procedimento criminal: ‘Tem conhecimento que a Casa de Câmbios Imperial, na realidade, é de propriedade do cidadão de nome R. C., que utiliza os serviços do cidadão de nome O. C. M., este figurando como sócio de papel da referida empresa’. (...) Outrossim, foram apreendidos diversos documentos através da busca e apreensão requerida. Alguns desses documentos indicam claramente a propriedade da Casa de Câmbios Imperial pelos irmãos R. C. e D. C., dentre eles um contrato privado de cessão de cotas da referida empresa (fls. 15-17 do apenso I). (...) Impende ainda asseverar que R. C. assina como Presidente da Imperial Tabacos e O. A. C. M. (sócio de direito da Casa de Câmbio) assina ações como Diretor, o que comprova a ligação entre os dois bem como a propriedade de tais empresas.(...) Em declaração acostada no Inquérito Policial nº 523/97, à fl. 1715, D. C. corrobora o fato de que O. é apenas um funcionário da empresa Sigla Câmbio e Turismo, sediada em Curitiba, comprovando o elo entre tais pessoas e suas respectivas empresas. Assim diz a declaração firmada por D. C.: ‘Declaramos, para os devidos fins, que o Sr. O. A. C. M. trabalha em nossa empresa, na qual exerce a função de operador de câmbio, com remuneração no valor de CR$ 1.000.000,00 (um milhão de Cruzeiros Reais) por mês. Curitiba, 08 de fevereiro de 1994. Ora, tal documento confirma declarações já transcritas de que O., apesar de constar como sócio de direito da Casa de Câmbios Imperial, nada mais é do que um longa manus de R. C. e D. C. para fins de evasão de divisas do Brasil...” (fls. 23/7) Da mesma forma, o eminente julgador singular tratou com detalhes a matéria, alicerçando sua convicção em evidências concretas, a partir dos elementos colhidos durante a instrução processual, todos em concordância com os fatos apurados na fase investigatória. Portanto, afigura-se impertinente o acusado negar a autoria das práticas ilícitas, alegando que só era gerente de empresa regular e não participava das operações da Casa de Câmbios Imperial, versão esta que não encontra amparo no contexto dos autos. Nesse aspecto, comungo com as bem-lançadas razões constantes da r. decisão monocrática (fls. 794/99) que deixo de transcrever a fim de evitar indesejável tautologia. Atenta leitura do conjunto probatório não deixa margem a qualquer dúvida sobre a efetiva associação de D. C. com seu irmão R. C., bem como V. M. D. C. e O. A. C. M. (testas-de-ferro, de origem paraguaia), no intuito de viabilizar a utilização das referidas contas para o expatriamento de recursos, sendo oportuno salientar que contra estes foi expedido mandado de prisão, encontrando-se atualmente foragidos. Em suma, depreende-se que o acusado, em conluio com os demais agentes, valendo-se das facilidades proporcionadas pelo conhecimento do mercado cambial, eis que dirigia a Sigla Câmbios e Turismo Ltda., 273 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 efetuou a criação de uma pessoa jurídica com sede no Paraguai e através da mesma, como instituição financeira estrangeira, abriu contas CC-5 em bancos nacionais, objetivando a remessa de valores ao exterior, principalmente depositados por “laranjas”, ou seja, ocultando os verdadeiros titulares das quantias. No que tange à adequação típica das condutas perpetradas, reside a questão fulcral do presente feito. Sobre o tema, o MM. Juiz a quo manifestou-se nas seguintes letras: “Não se trata de mera atribuição de identidade falsa para a realização de operação de câmbio (artigo 21 da Lei nº 7.492) mas sim da estruturação de esquema de fraude para burlar os sistemas de controle a respeito da remessa de divisas ao exterior, ao arrepio, portanto, das regras definidas na Circular nº 2.677, de 10.04.96, do BACEN. De outro lado, houve fraude na própria abertura e manutenção das contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial SRL, pois ela pertencia e era controlada de fato por brasileiros, sendo apenas na forma empresa domiciliada no exterior. A autorização concedida pelo BACEN para abertura das contas constitui consentimento expresso para que tal empresa ‘estrangeira’ operasse no Brasil, o que foi feito através das mesmas. Desse modo, resta também configurado o crime do artigo 16 da Lei nº 7.492/86, pois a permissão concedida para operação da instituição financeira foi obtida mediante declaração falsa quanto aos proprietários da empresa e sua real natureza. Não está caracterizado o crime da última parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei 7.492/86, pois não há registro nos autos da movimentação financeira da conta mantida pela Imperial no exterior (cfe. item 36, retro). De todo modo, a dimensão da lesão ao Sistema Financeiro Nacional consistente na remessa ao exterior de R$ 587.365.306,33, bem como a multiplicidade das fraudes (as remessas perduraram de 1996 a 1998 e teriam sido efetuadas a partir de centenas de depósitos nas contas CC-5 da Imperial, cf. discriminação do anexo 1 do laudo nº 1.676/03, fls. 3289/3342 do apenso XVII) autorizam a subsunção dos fatos ao tipo penal do artigo 4º, caput, da Lei nº 7.492/86 (gerir fraudulentamente instituição financeira). Está presente o requisito da multiplicidade da prática de fraude na condução dos negócios da Casa de Câmbios Imperial SRL e da Sigla Câmbio e Turismo Ltda., condição necessária para caracterização do referido tipo penal (...) ‘gestão fraudulenta é aquela em que o administrador utiliza, continuada e habitualmente, na condução dos negócios sociais, artifícios, ardis ou estratagema, para pôr em erro outros administradores da instituição ou seus clientes.’ Questão que se coloca é acerca da absorção ou da existência de concurso entre o crime de gestão fraudulenta e as fraudes individualizadas. Alguns entendem que há concurso formal (...) outros que ‘a gestão fraudulenta só se caracteriza se a conduta criminosa repetida não se amoldar a outro tipo penal, combinado com o artigo 71 do CP (...). Ora, o crime do artigo 4º, caput, configura um plus em relação aos outros delitos autônomos da Lei 7.492/86. Não é toda continuidade delitiva que caracteriza gestão fraudulenta. 274 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 O crime em questão resta caracterizado apenas quando estiver presente número substancial de atos, possibilitando a valoração da própria gestão da instituição financeira como fraudulenta, o que ocorre no presente caso. Se cumprida tal condição, o fato se amolda ao artigo 4º, caput, mais rigorosamente apenado, aliás, do que qualquer outro delito dessa Lei. Não faria sentido capitular fato mais grave em tipos menos gravosos. Doutro lado, parece incoerente punir o gestor por cada delito individual e ainda por delito que tem como elemento essas mesmas condutas individualizadas (...) Além do mais, por uma simples questão de justiça, as penas mais graves previstas para o crime do artigo 4º, caput, da Lei 7.492/86 são mais apropriadas e proporcionais para os casos de cometimento de múltiplas fraudes financeiras (e não mera reiteração) do que as penas dos tipos autônomos, ainda que estas sob a regra do concurso continuado. Portanto, o artigo 4º, caput prevalece frente aos outros dispositivos da mesma lei. Certamente, a multiplicidade de atos fraudulentos absorvidos pela tipificação nesse artigo deve ser levada em consideração na fixação da pena. Por outro lado, o crime de falsidade ideológica imputado ao acusado pela abertura de contas em nome de ‘laranjas’ e sua utilização, resta também absorvido pelo crime de gestão fraudulenta ...” (fls. 798/801) Com efeito, ao contrário do alegado pela defesa, não há cogitar do crime previsto no artigo 21 da Lei 7.492/86 (atribuir falsa identidade para realização de operação de câmbio) que configura hipótese nitidamente diversa da tratada nestes autos. Entretanto, no que pertine à subsunção de todos os fatos no art. 4º, com a devida vênia, tenho que o entendimento do julgador monocrático não merece acolhida, pois desconsidera o objetivo finalístico da conduta perpetrada pelo infrator, qual seja, a evasão de divisas, entendendo restar absorvida pelo tipo penal que visa a punir irregularidades no comando das instituições financeiras, sem, todavia, observar que os crimes descritos no artigo 22 e parágrafo único da Lei 7.492/86 constituem tipos especiais. Vale dizer, há disposição normativa expressa no referido Diploma Legal tipificando a conduta específica de remeter valores ilicitamente, verbis: “Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país. Pena – Reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.” In casu, mostra-se desnecessário recorrer à interpretação abrangente do artigo 4º, pois de modo induvidoso o intuito do acusado era promover a remessa do numerário para o exterior à margem da legalidade, incidindo assim na infração mencionada no artigo 22, § único, da Lei nº 7.492/86. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 275 A propósito, transcrevo pertinente comentário de Rodolfo Tigre Maia (Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 135/7): “O parágrafo único tem, na primeira parte, a mesma objetividade jurídica do caput (proteção à política cambial) ... A prática dos ilícitos deste artigo é utilizada com freqüência para a lavagem de dinheiro (legitimação de sua origem) oriundo do ‘caixa 2’ de empresas e do chamado crime organizado (...) O parágrafo prevê duas modalidades autônomas de ilícitos. A primeira envolve a remessa ilegal de divisas para o exterior. O tipo objetivo neste caso incrimina a ação de promover, qual seja, realizar, efetuar ou pôr em execução, não importando a modalidade de operação utilizada (‘a qualquer título’) a saída de moeda (numerário nacional ou estrangeiro) ou divisa (ouro, cheques sacados contra praças no exterior, créditos etc.) desautorizada, para o exterior. Ao contrário do que indica uma leitura superficial do tipo, não se trata aqui de uma norma penal em branco, não demandando legislação integrativa que fixe os limites autorizados para a exportação de moeda e divisas. A lei tornou, desde logo, ilícita tal conduta; as normas permissivas, se editadas, serão apenas causas de exclusão de tal antijuridicidade, mas a aplicação do tipo independe da existência de tais normas (...) São inumeráveis as modalidades de fraudes cambiais perpetradas com vistas à evasão de divisas. Dentre estas destacam-se as do superfaturamento (...) subfaturamento, além das operações de remessa ilegal através do transporte pessoal de numerário e das denominadas contas CC5. A famosa Carta Circular nº 5, editada pelo BACEN em 1969, facultou às pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior, abrir contas-correntes de livre movimentação no país (...) Esclarecendo a dinâmica geral do crime de evasão de divisas ou remessa ilegal para o exterior (...) o agente, com o concurso de testas-de-ferro, bancos comerciais e de ‘doleiros’, nas diferentes e respectivas etapas do plano criminoso, criava nominalmente uma pessoa jurídica em um paraíso fiscal e esta, por sua vez, na qualidade de empresa estrangeira, abria uma CC-5 em banco autorizado a operar com câmbio. A seguir, o interessado na remessa ilegal, geralmente utilizando-se de falsa identidade e documentação forjada, deposita na CC-5 em moeda nacional, o montante que pretendia trasladar para fora do país, e, no mesmo dia, ‘recebe um crédito equivalente em dólares no exterior’. Aduza-se que o numerário expatriado poderia voltar legalmente ao país, já ‘esquentado’ ou ‘lavado’, através da operação inversa. A CC-5 foi revogada pela Circular BC nº 2.677, em vigor a partir de 22.04.96...” A par disso, também entendo não restar configurado, na espécie, o crime de gestão fraudulenta, porquanto ausente a adequação formal e material das condutas descritas na denúncia ao referido tipo penal, sendo a prova dos autos insuficiente para a caracterização desse ilícito. Cumpre esclarecer que na inicial e alegações finais do Ministério Público não foram imputadas ao Recorrente ações concretas relacionadas à gerência das empresas Sigla e Phoenix que, em princípio, foram 276 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 regularmente constituídas no Brasil e detinham autorização legal para funcionar como agências de turismo e operadoras de câmbio. Segundo se depreende, o fato narrado é que os titulares destas empresas, notadamente R. C. e D. C., aproveitando-se da conjuntura amplamente favorável, engendraram a constituição fraudulenta de uma terceira sociedade, ou seja, a Casa de Câmbios Imperial, como se fosse instituição financeira estrangeira, sediada no Paraguai, propiciando em face disso a abertura das guerreadas contas CC-5 e os atos subseqüentes. Por outras palavras, a narrativa da peça acusatória, embora faça referência àquelas pessoas jurídicas (Sigla e Phoenix), não aponta objetivamente quais atos teriam sido praticados no âmbito da sua administração, limitando-se a descrever os ilícitos decorrentes da operação, pelos réus, da Imperial SRL. Ora, o delito do art. 4º pressupõe, a priori, que o agente seja diretor ou gerente de uma instituição formalmente legalizada, assim entendida uma daquelas previstas no artigo 1º da lei de regência, figurando como sujeito ativo desse crime as pessoas que detêm a condição de administradores e, nesta condição, venham a praticar fraudes. Diferentemente ocorre, contudo, quando se verifica a criação e operação irregular da própria instituição financeira, como no caso em tela, evidenciando tratar-se da conduta típica descrita no artigo 16 da aludida lei, que pune o ato de fazer operar instituição financeira sem autorização ou mediante autorização obtida com declaração falsa, motivo por que não se revela correto aplicar a pena de tal dispositivo cumulativamente com a do crime de gestão. Há incongruência lógica em imputar-se ao réu a constituição da casa de câmbio mediante declaração falsa, vale dizer, não possuindo autorização válida para funcionar como instituição financeira (art. 16) e ao mesmo tempo acusá-lo de gerir de forma imprópria essa empresa, a qual por si só já é inidônea, eis que criada através de sócios fictícios (testas-de-ferro), atuando, portanto, de modo clandestino no mercado. Nessa direção, peço vênia para transcrever trecho de voto proferido pelo eminente Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, desta 8ª Turma, em hipótese similar: “Observo que o dispositivo em exame tem como objetivo a higidez do Sistema Financeiro Nacional, assegurando, em princípio, a confiança dos usuários/investidores R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 277 (...) O bem jurídico protegido na norma em estudo, o valor elementar da vida comunitária que visa preservar, assim, é supra-individual, vinculado ao funcionamento do sistema (...) Aliás, ‘o bem jurídico principal dos crimes contra o sistema financeiro é a ordem pública econômica; secundariamente, podemos considerar o patrimônio do consumidor (usuários, aplicadores, poupadores, segurados, etc.) também protegidos pela Lei 7.492/86. (...) Tenho que não se pode conceber a conduta do réu noticiada nos autos como crime, no contexto relatado, eis que a prova dos autos é de uma empresa – instituição financeira apenas por ficção e para o fim do artigo 16 da Lei 7.492/86 – não autorizada a operar no sistema financeiro, atuando com a conivência de expressiva parcela de uma determinada comunidade, no mercado marginal, insuflada tanto pela ganância e desapego do seu gestor às normas reguladoras do mercado formal, quanto também impulsionada pelos interesses obviamente especulativos dos seus ditos investidores. Não há de ser admitido, permissa maxima venia, que a norma em causa proteja um desvalor jurídico. Ela objetiva preservar o sistema financeiro oficial, não o patrimônio ou a credibilidade de quem opera ou aplica no mercado marginal, desautorizado. Quem não pode praticar a conduta vedada pelo tipo em questão é o administrador de instituição financeira regular, que opera devidamente autorizada. Aliás, pertinente se apontar que, em alguns casos da Lei 7.492/86, ‘o tipo requer a existência de instituição financeira formalmente constituída (arts. 4º, 7º, 10, 11, 12 e 17)’ (in José Carlos Tortima, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, Lumen Juris, 2002, pág. 13) ...” (ACR nº 2002.04.01.025946-3/SC, julg. em 27.08.2003) Concludentemente, o acusado praticou os delitos tipificados nos arts. 16 e 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, em concurso material, não restando nos autos demonstrada, por outro lado, a gestão fraudulenta. Impõe-se, destarte, a modificação da sentença recorrida nesse ponto. No tocante à falsidade ideológica (artigo 299 do CP) assim foi descrita pelo agente ministerial nas razões de apelo: “Conforme ilustrado na exordial acusatória e repisado em sede de alegações finais, D. C., em conluio com os demais denunciados (...) inseriu elementos inverídicos em diversos documentos, tais como declarações de rendimentos, residência e trabalho, bem como assinou contratos sociais corroborando diversas situações falsas, abrindo contas em bancos oficiais e privados, em detrimento do Banco Central do Brasil, dissimulando a origem dos respectivos recursos, sempre no escopo de evadir divisas ao exterior”. (fl. 823) Em face dessa narrativa, bem como da prova dos autos, impende considerar que, aqui sim, aplica-se o princípio da consunção, uma vez que os crimes de falsum constituíram iter necessário à perpetração dos crimes contra o sistema financeiro supra-referidos. 278 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Efetivamente, a inserção de dados e elementos inverídicos nos documentos de abertura de contas-correntes, contratos sociais entre vários outros, conforme reconhece o próprio Parquet, tinha por objetivo a remessa do numerário (art. 22) e, além disso, de forma autônoma, a constituição da Casa de Câmbios Imperial de forma fraudulenta (art. 16). Logo, tenho por consumida a falsidade ideológica nas condutas delituosas posteriores, o que deverá ser objeto de apreciação na dosimetria da pena. No que pertine ao crime de quadrilha, em que pese ser necessário, para a configuração do delito previsto no artigo 288 do CP, como circunstância elementar do tipo, o concurso de mais de três pessoas, entendo ser possível a condenação em separado de apenas um dos integrantes, desde que comprovada nos autos a existência da organização, com vínculo estável e permanente, como ocorre na espécie. Por outras palavras, a separação facultativa do processo contra os vários membros do bando não impede que um deles seja condenado separadamente, se no feito desmembrado há prova da participação de todos. Nesse sentido, veja-se a jurisprudência da Suprema Corte, colacionada por Julio Fabbrini Mirabete: “STF: A tese de que é impossível condenar-se uma só pessoa em um processo por delito de quadrilha, por ser crime de concurso necessário, não merece guarida, porquanto o que importa é a existência de elementos nos autos denunciadores da societas delinquentium. É irrelevante não abranger a condenação os demais componentes do bando, pois a doutrina entende que, mesmo não sendo possível a identificação de um ou de alguns dos quatro integrantes, ainda assim o delito não deixa de existir (RTJ 112/1064).” (in: CP Interpretado, p. 1548) No presente caso, encontrando-se demonstrada a associação para a prática de ilícitos, bem como perfeitamente identificados os outros agentes responsáveis pela Casa de Câmbios Imperial SRL, nos termos da fundamentação expendida, o suposto prejuízo às suas defesas (em face do alegado julgamento antecipado da causa) não se estende ao Recorrente, porquanto D. C. foi regularmente denunciado e teve oportunidade de impugnar a acusação, segundo o devido processo legal. Ademais, mostra-se correto o desmembramento amparado no artigo 80 do CPP, em razão de apenas o Apelante encontrar-se preso, buscando conferir maior celeridade ao andamento do feito, bem como evitar possível alegação de excesso de prazo, o que só traz benefício ao próprio R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 279 acusado. Em vista disso, aliás, nem aos co-réus caberia argüir a aventada nulidade nos autos principais, pois a cisão decorre também do fato de estarem foragidos e, assim, não podem beneficiar-se da situação por eles mesmo criada consoante o princípio expresso no artigo 565 do Diploma Processual. Frente ao exposto, tenho que deve ser mantida a sentença em relação à quadrilha (art. 288 do CP), bem como alterado o decreto condenatório para absolver o denunciado, com apoio no art. 386, inc. VI, do CPP, em relação ao crime de gestão fraudulenta (art. 4º da Lei 7.492/86), e condenar D. C. pelo cometimento dos delitos tipificados nos artigos 16 e 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, em concurso material (art. 69 do CP) esse último, evidentemente, em continuidade delitiva. (art. 71 do Estatuto Repressivo) Passo à dosimetria, analisando globalmente os vetores do artigo 59 do Código Penal. A culpabilidade do réu é acentuada, merecendo reprovação acima do normal, pois, como visto, era profissional experiente no mercado financeiro, atuando na área de câmbio e turismo, de quem se deveria esperar conduta dentro da legalidade. O fato de responder a outra ação penal, foi desconsiderado pelo magistrado a quo na avaliação dos antecedentes, motivo por que não merece relevo. Não há registro de conduta social ou personalidade desabonadora. Os motivos do crime são normais à espécie. Na análise das circunstâncias e conseqüências do delito, mister considerar a extensão das fraudes perpetradas, com a realização de diversos atos criminosos preparatórios (falsidades), bem como, principalmente, a vultosa quantia evadida através das referidas contas. Nesse particular, adoto os bem-lançados fundamentos do ilustre julgador monocrático, verbis: “As conseqüências do crime são extremamente graves, importando em remessa ilegal ao exterior de R$ 587.365.306,33. O dano provocado às divisas nacionais é irreparável. A ocultação do verdadeiro remetente pode ter propiciado vantagem a criminosos de diversas espécies. A atividade delituosa perdurou por vários anos e foi perpetrada através de diversas fraudes, abertura de contas em nome de ‘laranjas’, realização de centenas de depósitos fraudulentos a partir dessas contas, o que revela acentuado desprezo pela lei penal. A atividade delitiva ainda implicou no envolvimento de diversas pessoas, muitas delas de forma não totalmente consciente, em fraudes 280 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 cambiais, provocando dissabores em suas vidas. O propósito do crime parece ter sido apenas o desejo de locupletar-se em prejuízo do sistema financeiro nacional e de toda a coletividade...” (fl. 802) Dessa forma, tendo em conta os parâmetros legais cominados (reclusão: de 2 a 6 anos), fixo a pena-base para a evasão de divisas em 03 (três) anos. Sem agravantes ou atenuantes, incide tão-só o acréscimo da continuidade delitiva (art. 71) em face da prolongada reiteração dos depósitos e remessas noticiados (3.300 vezes durante os anos de 1996 a 1998) na base de 2/3(dois terços), perfazendo 5 (cinco) anos de reclusão. Para o crime do artigo 16 da Lei 7.492/86 (1 a 4 anos), prevalece a avaliação negativa concernente à culpabilidade, circunstâncias e conseqüências da prática delitiva, motivo por que estabeleço a pena de 2 (dois) anos de reclusão, a qual torno definitiva, ante a ausência de qualquer causa modificadora. No tocante à quadrilha, observando as referidas vetoriais, bem como os limites mínimo e máximo legalmente fixados, reduzo a sanção carcerária para 2 (dois) anos de reclusão, que entendo suficiente na hipótese para a prevenção e repressão de tal conduta delituosa. Aplicando a regra do concurso material expressa no artigo 69 do Estatuto Repressivo, fica a reprimenda definitiva fixada em 9 (nove) anos de reclusão, no regime inicial fechado. (art. 33, § 2º, a, do CP) Efetuando o cálculo da multa de forma proporcional às penas privativas de liberdade fixadas, na linha dos precedentes desta Corte, resulta em 272 (duzentas e setenta e duas) unidades diárias para a evasão de divisas e 126 (cento e vinte e seis) dias-multa no que tange ao crime do art. 16 da Lei 7.492/86, sendo que o artigo 288 do CP não prevê sanção pecuniária. Embora a sentença tenha estabelecido o total de 300 (trezentos) dias-multa pela condenação como incurso no art. 4º, não há falar em reformatio in pejus, tendo em conta o acolhimento em parte da irresignação do agente ministerial, que pediu expressamente a condenação do réu com base nos apontados dispositivos. Por fim, no tocante ao valor unitário do dia-multa, fixado na sentença em 40 (quarenta) salários mínimos, com apoio no art. 49, § 1º, do CP, c/c o art. 33 da Lei 7.492/86 (elevação até o décuplo) merece acolhimento o pedido da defesa, pois, embora se mostre boa a condição econômica R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 281 do acusado, não há evidências concretas da sua atual situação patrimonial que determine a multiplicação prevista no referido artigo 33, considerando-se, ainda, que parte das divisas expatriadas pertenciam a terceiros. Em face disso, afigura-se razoável a redução desse quantum para 05 (cinco) salários mínimos. Em suma, fixo a pena definitiva de D. C. em 9 (nove) anos de reclusão, no regime inicial fechado, bem como 398 (trezentos e noventa e oito) dias-multa no valor de 5 (cinco) salários mínimos, pela prática dos delitos previstos nos artigos 22, § único, e 16 da Lei 7.492/86, além da infração ao artigo 288, c/c os arts. 69 e 71 do Código Penal. Com essas considerações, nego provimento ao agravo regimental e dou parcial provimento aos apelos, nos termos da fundamentação. RETIFICAÇÃO DE VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro: - Após as doutas ponderações apresentadas pelo eminente Revisor, peço vênia para reconsiderar o posicionamento anterior, inicialmente no que pertine ao delito previsto no artigo 288 do Código Penal. Com efeito, tendo em conta o ajuizamento de precedente denúncia (Proc. nº 97.101.02388-2) em trâmite na 1ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu, está configurada a litispendência tão-somente em relação a esse crime, eis que no tocante aos demais delitos os fatos narrados são diversos conforme já restou assentado pela Turma. Portanto, em face do princípio que veda o bis in idem, acolho a preliminar para afastar a condenação pelo crime de quadrilha. No que tange à sanção pecuniária, embora tenha me manifestado pela redução do quantum unitário do dia-multa, cabe retificar o voto proferido, também nesse ponto, isso porque, consoante bem salientado pelo ilustre Des. Paulo Afonso Brum Vaz, além do valor significativo das transações financeiras noticiadas, resultando em expressivo montante de divisas remetidas ao exterior, as boas condições econômicas do acusado encontram-se efetivamente demonstradas nos autos, em especial frente à notícia de que os irmãos C. deslocavam-se em um “jatinho” particular nas freqüentes viagens entre Curitiba e Foz do Iguaçu. Pelo exposto, reformulando entendimento anterior, acolho as considerações dos nobres colegas e mantenho o valor unitário do dia-multa 282 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 conforme fixado pelo ínclito julgador monocrático. Diante disso, a reprimenda fica reduzida para 07 (sete) anos de reclusão, no regime inicialmente fechado, sendo 5 (cinco) anos pela evasão de divisas em continuidade delitiva (art. 22, § único, da Lei 7.492/86, c/c o art. 71 do CP) e 2 (dois) anos pela infração ao artigo 16 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, além de 398 (trezentos e noventa e oito) dias-multa, à razão unitária de 40 (quarenta) salários mínimos. Por outro lado, manifestando-se oralmente, argüiu a defesa estar prescrito o crime previsto no artigo 16 da Lei 7.492/86, cuja pena restou fixada em 2 (dois) anos de reclusão. O tema merece algumas reflexões. Analisando detidamente o caderno processual, depreende-se que o Ministério Público ofereceu denúncia pelos delitos de “lavagem” de dinheiro (Lei 9.613/98) além dos praticados em desfavor do Sistema Financeiro Nacional, quadrilha e falsidade ideológica. O crime do art. 4º (gestão fraudulenta) foi afastado, em resumo, porque, embora os réus também fossem titulares da Sigla Câmbio e Turismo Ltda. e Phoenix Câmbio e Turismo Ltda., não foram descritos pelo Ministério Público concretamente os “atos de gestão” que teriam sido realizados pelo réu de forma ilícita no âmbito da administração das referidas empresas, requisito necessário à configuração do delito em comento. Por isso, o exame do feito restou limitado à operação no Brasil da Casa de Câmbios Imperial SRL, instituição financeira com sede no Paraguai e que o conjunto probatório demonstrou ser, de fato, gerida por D. C. e R. C., tendo sido perpetrada evasão de divisas da ordem de R$ 631.000.000,00 (seiscentos e trinta e um milhões de reais). A respeito da infração prevista no art. 16 da Lei nº 7.492/86, o decreto condenatório resulta, em síntese, da conclusão de que a empresa falsamente constituída (eis que os sócios paraguaios não passavam de mandatários ou “testas-de-ferro” dos titulares brasileiros) passou a operar ilicitamente no Brasil, através da manutenção de contas CC-5 de instituições financeiras estrangeiras, notadamente nos Bancos Araucária e Banestado, em Foz do Iguaçu e Curitiba. Portanto, restou logicamente caracterizada a prática de “fazer operar, sem autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 283 ou de câmbio” prevista no referido artigo 16. Os verbos nucleares do tipo indicam tratar-se de crime permanente, vale dizer, enquanto a instituição estiver operando sem autorização ou mediante documentação falsa, perfectibiliza-se a conduta delituosa, independentemente da evasão de divisas, que constitui crime autônomo. (art. 22, § único) Nesse contexto, mister consignar que há nos autos documentos indicando que a operação da Casa de Câmbios Imperial não se limitou aos depósitos realizados entre os anos de 1996 e 1998, mas que a aludida instituição continuou funcionando ilegalmente, no mínimo, até abril de 2000. Com efeito, segundo os documentos trazidos pela própria defesa (fls. 992/1008) no intuito de comprovar “que a ‘empresa criminosa’ já estava indubitavelmente ‘desmantelada’ há mais de três anos, quando foi decretada a prisão preventiva”, a “Diretoria da Câmbios Imperial Sociedade Anônima reuniu-se em Assembléia Geral Extraordinária no dia 11 de abril de 2000 e resolveu pela liquidação e dissolução da sociedade”. (fl. 993) Da mesma forma, consta que o Banco Central do Paraguai publicou Resolução datada de 21 de setembro de 2000, retirando naquela data a licença da Imperial para operar como Casa de Câmbio. (fl. 1005) Corroborando essas informações, existem no processo outros elementos que indicam não terem as operações cessado no ano de 1998. Na Auditoria Interna do Banestado, realizada em novembro de 1999, documentos referem a movimentação da conta CC-5 da Casa de Câmbios Imperial nº 034136-9 (fls. 20/191 – apenso XVI). Nos Apensos XVII e XVIII, encontra-se documentação noticiando a existência de conta mantida pela Casa de Câmbios Imperial no Banestado em Nova York/USA, cuja agência foi extinta apenas em março de 1999, onde era recebido o numerário proveniente de Foz do Iguaçu. Os laudos periciais realizados pelo Instituto de Criminalística da Polícia Federal nos diversos inquéritos que embasaram a denúncia, em especial o Laudo nº 1.392/03 (Apenso XIII), examinaram os registros no SISBACEN das operações de contas CC-5 realizadas até 31 de janeiro de 2000, pelas diversas instituições financeiras envolvidas, apurando detalhadamente os valores movimentados pela Imperial nesse período. 284 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (fls. 2464/65) Por fim, no pedido de interceptação telefônica dos réus (Proc. nº 2003.70.00.032148-8), o Parquet faz alusão justamente às operações realizadas através das Contas CC-5 da Casa de Câmbios Imperial S/A entre 22.04.96 e 31.01.2000. (apenso XXII) Forçoso reconhecer que tais peças possuem estreita vinculação com a presente ação penal, cuja denúncia foi recebida no dia 08.08.2003, antes, portanto, de haver transcorrido o prazo de 4 (quatro) anos, o que inviabiliza, desta forma, o alegado lapso prescricional. Ainda que assim não fosse, cumpre referir que a condenação pelo crime do art. 16 resulta do julgamento do apelo do MPF por esta Corte, pois o magistrado de primeiro grau havia declarado a absorção desse delito pela gestão fraudulenta. (art. 4º da Lei nº 7.492/86) Desse modo, não tendo sequer ocorrido o trânsito em julgado da sentença para o Parquet, não há cogitar de prescrição. (art. 110, § 1º, do CP) Alega, ainda, a defesa, ter o acusado direito ao regime semi-aberto. Não obstante, considerando tratar-se de infrações penais praticadas no âmbito de “organização criminosa”, aplicável à espécie o disposto no art. 10 da Lei nº 9.034/95, verbis: “Os condenados por crimes decorrentes de organização criminosa iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado”. Ademais, sobre o regime de cumprimento da pena, veja-se o disposto no art. 33 e parágrafos do Estatuto Repressivo: “Art. 33. (...) § 2º As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito) poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) omissis. § 3º. A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código.” Como se vê, o comando da alínea a estabelece uma obrigação (deverá), enquanto a alínea b do apontado dispositivo atribui uma faculdade ao julgador (poderá) orientada pelas vetoriais insculpidas no art. 59 do CP. Logo, mostrando-se desfavoráveis ao réu in casu as referidas circunsR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 285 tâncias judiciais, impõe-se manter o regime inicial fechado. Quanto à possível progressão, pelo fato de o Apelante estar recolhido há mais de 10 (dez) meses, trata-se de matéria a ser examinada pelo Juízo das Execuções Penais, nos termos do art. 112 da Lei nº 7.210/84, com a redação da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Segundo esse dispositivo, o pedido de transferência de regime será analisado pelo Juiz da Execução, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto (1/6) da pena no regime anterior (o que não é o caso dos autos) e ostentar bom comportamento carcerário comprovado pelo diretor do estabelecimento, sendo que “a decisão será sempre motivada”, bem como “precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor”. (art. 112, § 1º) Assim, não cabe a esta Corte manifestar-se sobre a pretensão deduzida, pois não basta o eventual preenchimento do requisito temporal para a progressão, devendo ser regularmente observado o procedimento legal, perante o juízo de primeiro grau competente. Nesse contexto, agregando ao voto já proferido as presentes considerações, nego provimento ao agravo regimental e dou parcial provimento aos apelos, nos termos da fundamentação. RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO Nº 2003.71.00.062833-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz Recorrente: Ministério Público Federal Recorrido: C. M. R. EMENTA 286 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Penal. Art. 19 da Lei nº 7.492/86. Conceito de financiamento. Competência. Segundo a doutrina comercialista, financiamento é mútuo com finalidade vinculada (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997 e MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999), não estando abrangido em seu campo conceitual o contrato de mútuo simples, assim entendido aquele desprovido de qualquer finalidade empreendedora. Se alguém obtém, mediante fraude, empréstimo em instituição financeira, sem se obrigar a dar ao dinheiro finalidade específica (desenvolvimento de atividade econômica, aquisição de casa própria etc.), comete, em tese, o crime de estelionato, e não aquele previsto no art. 19 da Lei que define os Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Competência estadual reconhecida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso em sentido estrito, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 14 de abril de 2004. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: Cuida-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática que declinou da competência para o julgamento de ação penal instaurada em desfavor de C. M. R. pelo cometimento, em tese, do crime insculpido no art. 19, caput, da Lei nº 7.492/86. A decisão recorrida adotou como fundamento que “empréstimo” não se confunde com “financiamento” e, em conseqüência, determinou o traslado de peças e ulterior remessa ao juízo estadual. Em suas razões, o recorrente aduz que a noção de financiamento designa toda operação ativa de instituição financeira em que se fornece capital, na qual empréstimo e a abertura de crédito são espécies do gêR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 287 nero financiamento. Assim, entende estar configurado o delito contra o Sistema Financeiro Nacional, de competência da Justiça Federal. A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz: O art. 19, caput, da Lei nº 7.492/86 vem assim redigido: “Art 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.” Consoante dispõe o art. 26 da citada lei, os crimes ali previstos são de competência da Justiça Federal. Para fins de fixação da competência, necessária se faz a delimitação do exato alcance do termo “financiamento”, o qual constitui elemento normativo do tipo, instituto que, nas palavras de Assis Toledo, é constituído por termos ou expressões que só adquirem sentido quando completados por um juízo de valor preexistente em outras normas jurídicas ou ético-sociais. (in Princípios Básicos de Direito Penal, 5.ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 153) Fábio Ulhoa Coelho define financiamento como aquele mútuo bancário em que o mutuário assume a obrigação de conferir ao dinheiro emprestado uma determinada finalidade, como, por exemplo, investir no desenvolvimento de uma atividade econômica ou adquirir a casa própria. (Manual de Direito Comercial, 9.ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p.435) Fran Martins, de sua vez, o conceitua como o contrato pelo qual o banco adianta a certa pessoa uma importância determinada para a execução de um empreendimento (...) (Contratos e Obrigações Comerciais, 14.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 443) Ambos os doutrinadores conferem ao termo financiamento o 288 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 sentido de empréstimo vinculado, característica que o diferenciaria do mútuo, da abertura de crédito, do crédito rotativo etc. Ainda que se quisesse admitir que a doutrina não é unânime a respeito, o certo é que a dúvida interpretativa deveria militar em favor do réu. “O princípio in dubio pro reo, como regra geral interpretativa”, diz Damásio de Jesus, é inaceitável. “E há mesmo quem o proscreva totalmente como fórmula de interpretação”. “Os adágios apontados”, prossegue, “não podem servir de normas gerais interpretativas, uma vez que constituiria erro afirmar, a priori, que o resultado da interpretação deve ser restritivo, extensivo ou sempre favorável ao agente. Se a finalidade desta é apontar a vontade da lei, só depois do emprego de seus meios surgirá o resultado: extensivo, se aquela for extensiva; restritivo, se restritiva, mas, na dúvida sobre qual a vontade da norma, após o uso dos meios interpretativos, nada obsta que os adágios sejam empregados” (in Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 36). A pena do delito previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86 (02 a 06 anos) é mais severa do que aquela estabelecida para o crime de estelionato (01 a 05 anos). No caso em tela, narra a denúncia (fl. 03): “O réu, intitulando-se C. B. G., celebrou com o Banco do Brasil, conforme instrumento da fl. 196, os seguintes contratos de financiamento: contrato de abertura de crédito, com limite de R$ 400,00 (quatrocentos reais); contrato de emissão e utilização dos cartões ourocard, com limite de R$ 500,00 (quinhentos reais); contrato de abertura de crédito rotativo – CDC Automático, com limite de R$ 1.418,00 (um mil, quatrocentos e dezoito reais). As informações falsas constam da proposta de abertura de conta corrente e de poupança (fl. 197). Ademais, o acusado utilizou identidade (fl.39), cartão de CPF (envelope fl. 33 e fl. 36), comprovante de endereço (fl. 46) e declaração de renda (fl. 47/56), todos falsos contendo nome fictício: C. B. G.” Assim, tomado o termo “financiamento” restritivamente – contrato em que o empréstimo do capital deve estar, obrigatoriamente, atrelado a um fim específico, de conhecimento da instituição financeira –, a conduta perpetrada pelo denunciado não se enquadra no tipo penal do art. 19 da Lei nº 7.492/86, afastada, por conseguinte, a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito. Neste sentido, o seguinte precedente: “PENAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. LEI Nº 7.492/86. EMPRÉSTIMO. FINANCIAMENTO. FINALIDADE. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 289 FALTA DE VINCULAÇÃO. 1. A teor do art. 109, VI, da Constituição, há competência da Justiça Federal no tocante aos crimes contra o sistema financeiro nacional. 2. No caso, o acusado se utilizou de identidade falsa para obter operação comercial com novação de débito anterior composição de dívida com instrumento particular de confissão) junto ao Banestado, mediante o depósito em conta-corrente do saldo devedor. 3. Na hipótese vertente, trata-se de empréstimo (operação creditícia sem finalidade vinculada) ainda que tenha sido concedido mediante restrições (novação de dívida e forma de depósito), circunstância que afasta a competência da Justiça Federal (arts. 19, parágrafo único, e 26 da Lei nº 7.492/86).” (TRF4, RSE 2003040133447/PR, 17.09.2003, Rel. Des. Fed. Luiz Fernando Wowk Penteado) Pelo exposto, voto no sentido de negar provimento ao recurso em sentido estrito. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2003.71.02.000424-7/RS Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère Apelantes:Ministério Público Federal R. C. O. Réu Preso Advogado: Defensoria Pública da União – Dr. Fabrício Von Mengden Campezatto Apelante:I. S. Réu Preso Advogado: Dr. Antonio Carlos Barbachan Debreuilh Apelados: (os mesmos) EMENTA Roubo. Receptação. Porte ilegal de armas. Autoria. Efeito extensivo aos co-réus. 290 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 1. Não há como se considerar o crime de porte ilegal de arma como meio necessário para prática do roubo, pois, além do nexo de dependência entre as condutas ilícitas, o princípio da consunção diz que ocorre a absorção de um crime (meio) por outro (fim) quando aquele for meio necessário para a consecução deste, não se podendo, de forma alguma, dizer que portar ilegalmente arma de fogo seja meio necessário para a realização do crime de roubo a banco. Não fosse isso, não há consunção quando se trata de bens jurídicos diversos. 2. Já decidiu o STF que “o roubo se consuma no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa alheia móvel, não sendo necessário que ela saia da esfera de vigilância do antigo possuidor”. (STF, RVCrim 4821, Plenário, DJU 11.10.91, p. 14248) 3. O dolo na receptação deve ser o direto, ou seja, a vontade livre e consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influir para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo tratar-se de produto de crime. Conforme a lição de Celso Delmanto, “não basta o dolo eventual, sendo indispensável o dolo direto: que o agente saiba (tenha ciência, certeza) de que se trata de produto de crime.(...) Para a receptação dolosa, é imprescindível que o agente tenha certeza da origem criminosa da coisa (STF, mv – rt 599/434; TJDF, ap. 11303, DJU 03.02.93, p. 2105, in RBCcr 2/241; TJSP, RT 759/592; TACRSP, RJDTACr 20/156; TJMS, RT 606/396; TARS, RF 263/340; TJRJ, RF 260/326; TJBA, BF 36/157), devendo a prova a respeito ser certa e irrefutável (TRF da 5a R., Ap. 219, mv – DJU 20.06.91, p. 14464).” (Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 428/429) 4. Na receptação, não havendo provas conclusivas acerca da elementar “produto de crime”, é atípica a conduta. Nessa linha, novamente o ensinamento de Celso Delmanto: “é necessária a identificação do delito antecedente, definindo-se com clareza em que consistiria a origem ilícita da coisa (TJRS, RT 780/688). (...) a receptação, tanto dolosa como culposa, é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa receptada, embora não seja imprescindível a existência de processo penal a respeito (ex.: Caso de menor), é indispensável que haja prova conclusiva da origem da coisa. A absolvição do autor do crime que é pressuposto não impede a condenação do receptador; impede-a, porém, a absolvição por estar provada a inexistência do R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 291 fato ou por não haver prova da existência do fato criminoso anterior”. (Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 429 e 434). 5. Em que pese o art. 580 do CPP se refira a identidade de situações dos co-réus em um mesmo processo, é aplicável no caso em tela, no que condiz com a apelação criminal n° 2003.71.02.004107-4, porquanto se trata de processo desmembrado em razão de decisão judicial determinante da cisão em decorrência de aditamento da denúncia. 6. Se os crimes foram praticados num mesmo contexto fático contra mais de uma vítima, há concurso formal. 7. Maus antecedentes, para fins de aplicação da pena-base, são considerados como sendo a existência de ações criminais em curso, sentenças condenatórias não transitadas em julgado e qualquer sentença condenatória transitada em julgado, desde que não constitua reincidência. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento aos recursos dos réus e do Ministério Público Federal, e por aplicar ex officio o art. 580 do CPP, alterando a quantidade de pena imposta para ambos os réus, nos termos da fundamentação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de maio de 2004. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: R. C. O. e I. S. apelaram contra sentença que os condenou, respectivamente, à pena de 13 (treze) anos de reclusão e multa de 210 (duzentos e dez) dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato cada dia-multa, pela prática dos crimes descritos no art. 180, caput, e art. 157, § 2o, I e II, ambos do Código Penal, e art. 10, § 3o, IV, da Lei 9.437/97, em concurso material, e de 09 (nove) anos e 07 (sete) meses de reclusão e multa de 143 dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato o dia-multa, pela prática dos crimes previstos no art. 157, § 2o, I e II, c/c art. 71, todos do Código Penal, e art. 10, § 3o, 292 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 IV, da Lei 9.437/97, em concurso material. Aos réus foi fixado o regime fechado para o cumprimento da pena privativa de liberdade, assim como foram condenados ao pagamento das custas processuais em proporção. (fls. 459/491) O réu I. S. requereu, em seu apelo, a reforma da sentença no que tange ao sexto fato descrito na denúncia – roubo da arma do vigia. (fls. 555/557) Já R. C. O., em seu tempo, alegou ausência de dolo em relação ao crime de receptação do veículo, absorção do crime porte ilegal de arma pelo de roubo, bem como que o delito de roubo se deu na forma tentada. (fls. 565/574) Houve contra-razões. (fls. 579/595) O Ministério Público Federal também apelou da sentença, no tocante à absolvição de R. C. O. da prática dos crimes de receptação dolosa, em relação ao segundo e quinto fato constante da denúncia, e roubo qualificado, em relação ao sexto fato descrito na peça acusatória; e à absolvição de I. S. da prática do crime de receptação dolosa, em relação ao primeiro e segundo fato constante da denúncia. (fls. 459/491) O apelante alega que há provas de que I. S. tenha concorrido para a prática do delito de receptação do veículo Fiat Uno utilizado no assalto à CEF; que há provas de que I. S. e R. C. O. sabiam da origem ilícita das armas, bem como que não houve absorção do delito receptação pelo de porte ilegal de arma; que R. C. O. deve ser condenado pela receptação do cheque; e que R. C. O. também deve ser condenado pelo roubo da arma do vigia. I. S. contra-arrazoou às fls. 552/554, ao passo que R. C. O. o fez nas fls. 560/564. Em parecer, o MPF opinou pelo parcial provimento do recurso da acusação, cingindo-se o desprovimento ao crime de receptação das armas de fogo, entendendo que há absorção da receptação pelo delito do art. 10, § 3o, IV, da Lei 9.437/97, bem como pelo desprovimento dos recursos dos réus. (fls. 600/608) É o relatório. À revisão. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 293 I – I. S. 1) Roubo da arma do vigia (sexto fato): Roubo CP, art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa. O recorrente irresignou-se quanto ao decisum no que se refere à condenação pelo roubo da arma do vigia Lauro. Afirma que negou a acusação em todas as oportunidades nas quais foi inquirido e que já portava a arma, tendo-a levado consigo para a prática do roubo. Tal argumento não prospera. Como bem colocou o magistrado sentenciante: “Num primeiro momento, cumpre observar que o roubo da arma portada pelo guarda que prestava serviço na agência da CEF, no momento do assalto, foi objeto de notitia criminis por parte do gerente da agência da CEF, Jaime Sarda Aramburu, no dia seguinte ao delito, oportunidade em que também foi especificada a quantia em dinheiro que não foi recuperada pela polícia quando da prisão dos envolvidos (fl. 365). A arma subtraída naquela oportunidade era um revólver calibre 38, marca Rossi, registrado sob n° 203108 em nome da empresa RUDDER SEGURANÇA LTDA., para a qual trabalha o vigilante Lauro Tadeu (fls. 366 e 371). De resto, afora o depoimento do funcionário Raul, que trabalhava como caixa da agência da CEF no momento do assalto, confirmando, já no dia dos fatos, que, afora o dinheiro, também houve a subtração da arma do vigilante naquela ocasião, fl. 133, o que também foi confirmado em juízo, fls. 314/315, cumpre destacar os termos do depoimento prestado por Lauro Tadeu Fagundes da Costa que, ratificando a declaração feita perante a autoridade policial, fls. 363/364, foi peremptório ao afirmar que ‘o outro rapaz que cuidava das pessoas que estavam no interior da agência, dirigiu-se até o depoente, no colder, e pegou uma arma que estava na cintura do depoente, arma essa que era um revólver da marca Rossi, calibre 38’ (fl. 401)”. (fl. 477) Não fosse a prova testemunhal colhida, a tese do réu não encontra amparo algum, uma vez que não é de se acreditar que o guarda da CEF não estivesse armado, situação incompatível com a função de vigia de estabelecimento bancário, além de nada justificar o interesse do guarda e da empresa em afirmar que a arma fora roubada. II – R. C. O. 294 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 2) Ausência de dolo em relação ao crime de receptação do veículo (primeiro fato): Receptação: CP, art. 180: Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. O dolo do crime de receptação restou amplamente configurado. O tipo subjetivo, segundo Celso Delmanto, “Tanto na receptação própria como na imprópria (1a e 2a partes do caput), é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influir para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo trata-se de produto de crime. E o elemento subjetivo do tipo, referido pelo especial fim de agir (‘em proveito próprio ou alheio’), que deve existir tanto na receptação própria como na imprópria”. (Código Penal Comentado, Renovar, 2002, p.428) O conjunto probatório evidencia que o recorrente sabia que o veículo conduzido por Anderson e que transportou os demais participantes do roubo era produto de crime, sendo que livre e conscientemente o utilizaram. Acerca do dolo, permito-me, para evitar tautologia, transcrever excerto da bem-lançada sentença, de lavra do juiz Loraci Flores de Lima (fls.459/491): “(...) segundo se depreende dos elementos probatórios constantes dos autos, o roubo praticado contra a CEF foi planejado no dia anterior aos fatos, no domingo à tarde, ocasião em que Anderson e R. M. N., em conversa com outro integrante do grupo, teriam acertado a possibilidade de realizar o crime no dia seguinte, desde que Anderson, o ‘coruja’, conseguisse um automóvel que viabilizasse a empreitada criminosa. A este respeito, disse R. C. O., fl. 220, quando interrogado, que ‘o assalto praticado contra a agência da CEF localizada neste prédio da Justiça Federal no dia 10 de fevereiro, uma segunda-feira, foi acertado entre o interrogando e os co-réus R. M. N. e Anderson no domingo, ou seja, no dia anterior ao fato, quando os três estavam jogando futebol num campo situado na própria Vila Progresso. ... Naquele instante o interrogando, R. M. N. e Anderson, deixaram de certa forma combinado a realização do assalto na agência da CEF, sendo que Anderson, o Coruja, ficou de conseguir um carro naquela noite com um amigo dele para que fosse possível a realização do assalto. ... Salienta que no dia dos fatos, na segunda-feira, por volta das 9 horas da manhã, conversou com o co-réu Anderson perto da casa dele, ocasião em que Anderson disse que iria conversar com um conhecido dele para ver se havia conseguido um automóvel que permitisse a realização do assalto. Anderson ainda pediu para o interrogando fazer contato com R. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 295 M. N. a fim de que fosse acertado o encontro deles por volta do meio-dia na frente da Igreja das Dores. Logo em seguida o interrogando procurou R. M. N. e disse para ele comparecer na frente da Igreja no horário combinado’. Em idêntico diapasão, tem-se: ‘... no dia anterior ao assalto, no domingo, o interrogando jogou futebol com R. C. O. e Anderson, sendo que depois de uma conversa com R. C. O. deu a idéia no sentido de que eles poderiam assaltar a agência da Caixa Econômica Federal situada no prédio da Justiça Federal. ... Depois da conversa, Anderson ficou de conseguir um carro com um conhecido dele, a fim de viabilizar o assalto, enquanto que o interrogando e R. C. O. ficariam no aguardo de outras informações. No outro dia pela manhã, R. C. O. foi na casa do interrogando e disse que estava ‘tudo na mão’, devendo o interrogando chegar na frente da Igreja das Dores por volta do meio-dia, aonde iriam se encontrar. Chegando naquele local por volta do meio-dia e cinco, o interrogando ficou no aguardo dos outros acusados, sendo que por volta de meio-dia e trinta chegaram juntos os acusados I. S. e R. C. O., sendo que por volta de meio-dia e quarenta e cinco chegou o acusado Anderson conduzindo um automóvel Fiat Uno Mille.’ (R. M. N. – fls. 223/224). ‘... naquela conversa ficou acertado que o interrogando tentaria arrumar um carro para que fosse possível o assalto, enquanto que R. C. O. conversaria com um conhecido deles, o co-réu I. S., no intuito de conseguir as armas. Naquela mesma noite, o interrogando foi até um posto de combustível localizado no final da Av. Medianeira, aonde normalmente as pessoas se reúnem para escutar som. Nesse lugar o interrogando encontrou um conhecido de nome M. ou M., que era de Porto Alegre e que estava acompanhado de um rapaz do bairro Itacaré e que estava em uma moto. Naquela oportunidade o interrogando questionou eles sobre a possibilidade de conseguirem um veículo para ele, o que eles ficaram de ver se efetivamente conseguiam. Mais tarde, por volta das 3h45min, o interrogando encontrou M. no lugar conhecido como ‘pagode’, na Rua Riachuelo, ocasião em que M. disse que havia conseguido um automóvel, que ‘tava na mão’. Naquele momento M. perguntou quando o interrogando iria pagá-lo por ter conseguido o carro, sendo que o interrogando disse que na noite de segunda-feira, após ocupar o carro, efetuaria o pagamento que ficou acertado em R$ 200,00. O interrogando também combinou com M. que o carro deveria ficar num lugar perto do centro da cidade, antes do Posto da Polícia Rodoviária Estadual, de sorte que no outro dia quando o interrogando fosse utilizá-lo não precisasse passar pelo posto ao se deslocar de Camobi para o centro da cidade. Ficou acertado, então, que M. deixaria o veículo próximo ao retiro, por volta das 11 horas da manhã seguinte, quando o interrogando pegaria o veículo naquele lugar. Nesse sentido, na segunda-feira, por volta do meio-dia, o interrogando pegou uma telemoto e veio até o lugar combinado, e ao ver que se tratava de um automóvel Fiat Uno, de pouca potência, reclamou com M. que talvez não pudessem realizar o assalto, momento em que M. disse que foi o único carro que havia conseguido e que se eles deixassem ele participar do assalto não precisariam pagar os R$ 200,00. A partir daí o interrogando pegou o veículo e foi com M. até a Igreja das Dores, 296 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 aonde tinha combinado se encontrar com os demais co-réus’. (Anderson – fls. 225/226) Ressalte-se, por oportuno, que os policiais Milton Godoy, fl. 293, e Cláudio Orlandi, fl. 295, que participaram da perseguição e prisão dos acusados, ouviram destes o comentário de que o veículo utilizado naquela ocasião havia sido apresentado para Anderson na manhã dos fatos e ‘que ele não queria aquele carro porque não tinha potência, era um carro muito fraco, daí os outros obrigaram ele a participar e ser motorista com aquele veículo’. Ora, se quando do acerto realizado entre os acusados ficou definido que Anderson teria que conseguir um veículo, naquela noite, que possibilitasse a realização do assalto, o que somente restou confirmado entre eles no dia seguinte, quando Anderson acabou aceitando o automóvel que um amigo ‘conseguiu’, pelo qual seria pago um aluguel depois da sua utilização naquele mesmo dia, é evidente que resta perfeitamente caracterizada a prática do delito de receptação. A circunstância do automóvel ter sido furtado por outro integrante do grupo, apenas identificado como ‘M.’, que também participava da empreitada criminosa, não descaracteriza a prática da infração, uma vez que é inegável que Anderson e R. M. N. efetivamente conduziam em proveito próprio, quando da sua prisão, um automóvel que tinha sido furtado na noite anterior e cujo fato era, evidentemente, do pleno conhecimento dele. Tenho, pois, que a utilização do veículo furtado, ainda que por um curto lapso temporal, com vista à concretização do roubo e, logo a seguir, na fuga do local, é suficiente para ensejar um juízo condenatório sobre a conduta dos réus pela prática da infração descrita no artigo 180 do Código Penal”. Ora, o veículo foi “conseguido” especialmente para prática do roubo, sendo que, inicialmente, seria pago, pelo uso do mesmo, a quantia de R$ 200,00 e isso era de conhecimento do denunciado. 3) Absorção do crime porte ilegal de arma pelo de roubo (segundo fato): Lei n° 9.437/97 – Art. 10: Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa. § 2o. A pena é de reclusão de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos e multa, na hipótese deste artigo, sem prejuízo da pena por eventual crime de contrabando ou descaminho, se a arma de fogo ou acessórios forem de uso proibido ou restrito. § 3o. Nas mesmas penas do parágrafo anterior incorre quem: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 297 IV. possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. O apelante alega que o delito de roubo absorve o delito de porte ilegal quando praticado com emprego de arma. Diz que aquele é o delito-fim, ao passo que este é o delito-meio, pois necessariamente o agente deverá portar a arma para realizar a subtração do objeto. Quando um fato mais grave absorve outro menos grave, o qual constitui meio de preparação ou execução, temos o Princípio da Consunção. Não se trata propriamente de um conflito entre normas, mas sim entre fatos, por ser um mais grave do que o outro. Tal princípio se aplica, quando a conduta do agente, em vez de realizar a descrição contida em diversos tipos penais que se excluem entre si, realiza o conteúdo de mais de um tipo penal não-excludente, mas que, em função de uma conexão lógica e justa, há de ser considerado absorvido pelo outro. O Princípio da Consunção apresenta três espécies: progressão criminosa, crime progressivo e crime complexo. A progressão criminosa, em seu tempo, subdivide-se em progressão criminosa em sentido estrito, antefactum não punível e post factum não punível. O fato de o porte ilegal de arma estar absorvido pelo roubo, se verdadeiro, configuraria hipótese de fato anterior não punível, porquanto o fato antecedente menos grave (porte ilegal de arma) seria considerado meio necessário para prática de outro fato mais grave (roubo), ficando, por conseguinte, o primeiro absorvido. Todavia, não há como se considerar o crime de porte ilegal de arma como meio necessário para prática do roubo, pois, além do nexo de dependência entre as condutas ilícitas, o Princípio da Consunção diz que ocorre a absorção de um crime (meio) por outro (fim) quando aquele for meio necessário para a consecução deste, não se podendo, de forma alguma, dizer que portar ilegalmente arma de fogo seja meio necessário para a realização do crime de roubo a banco. Afasta-se ainda a tese defensiva sob o argumento de que se o roubo tivesse se dado mediante o uso de arma de fogo de uso permitido e registrada, cujo agente possuía o porte, não haveria de se falar na prática do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97, mas continuaria a existir o roubo qualificado pelo emprego de arma. Não fosse isso, improcede a tese de consunção por tratar-se de bens 298 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 jurídicos diversos. Com efeito, no roubo o objeto jurídico é complexo: patrimônio, liberdade individual e integridade física, enquanto no crime de porte ilegal de arma é a incolumidade pública, a proteção da vida e da integridade física dos cidadãos. Nesse sentido: “PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. ARTIGOS 6º E 16 DA LEI 7.492/86 E ARTIGO 168, § 1º, III, DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INAPLICABILIDADE. DENÚNCIA. CAPITULAÇÃO. ALTERAÇÃO PELO TRIBUNAL. POSSIBILIDADE. 1. Não há concurso aparente de normas a ser solvido pelo princípio da consunção em relação ao artigo 6º da Lei 7.492/86 e o artigo 168 do Código Penal, visto que atingidos bens jurídicos diversos e sujeitos passivos distintos, inexistindo progressividade criminosa. (...)” (TRF – 4a Região, ACR 200104010201766, 7a T., DJU data 09.07.2003, p. 571, Rel. Juiz Vladimir Freitas) Destarte, não obstante a finalidade da consunção seja suavizar os rigores do concurso de crimes, não pode a categoria jurídica possibilitar, através de artifícios silogísticos, a impunidade. Corroborando o entendimento supra, os seguintes julgados: “PENAL E PROCESSUAL. QUADRILHA ARMADA. ART. 288, PARÁGRAFO ÚNICO DO ESTATUTO REPRESSIVO. ROUBOS E SEQÜESTROS. ART. 8º DA LEI Nº 8.072/90. CRIMES HEDIONDOS. PORTE ILEGAL DE ARMAS ESTRANGEIRAS PROIBIDAS. ART. 10º, § 2º, DA LEI Nº 9.437/97. PRELIMINARES REJEITADAS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. EMENDATIO LIBELLI - ART. 383 DO CPP. ESCUTA TELEFÔNICA. LEGALIDADE. PERÍCIA. PROVAS. AUTORIA E MATERIALIDADE. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. DOSIMETRIA DA PENA. AGRAVANTES. REGIME INICIAL. PARTICIPAÇÃO. DÚVIDA. ART. 386, INC. VI, DO CPP. (...) 7. Não configura bis in idem a condenação por quadrilha armada em concurso material com porte ilegal de armas (art. 10, § 2º, da Lei nº 9.437/97), pois trata-se de tipos penais distintos, com objetividade jurídica diversa. (...)” (TRF-4, Apelação Criminal – 8173, Processo: 200171000039612, 8ª T., DJU data: 10.04.2002, p.: 666, DJU data: 01.04.2002, Relator(a) Juiz Élcio Pinheiro de Castro) (grifei). “QUADRILHA OU BANDO. CRIME QUALIFICADO PELO USO DE ARMA. PRETENDIDA ABSORÇÃO DA QUALIFICADORA PELA CONDENAÇÃO POR R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 299 PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. INADMISSIBILIDADE, POIS INEXISTENTE PROGRESSIVIDADE ENTRE OS CRIMES. DELITOS DISTINTOS E AUTÔNOMOS, COM OBJETIVOS JURÍDICOS DIVERSOS. Inexiste progressividade entre os crimes de porte ilegal de arma de fogo e o de quadrilha ou bando armado, de modo a fazer com que o primeiro absorva a qualificadora do segundo, pois trata-se de delitos distintos e autônomos, com objetivos jurídicos diversos, em que a primeira figura delitiva atinge a incolumidade pública, protegendo a vida e a integridade física dos cidadãos, enquanto a segunda visa proteger a paz pública.” (TJSP – Ap. 290.321-3/8-00 – Rel. Hélio de Freitas – j. 10.10.2000 – RT 787/599) 4) Roubo – tentativa (quarto fato): CP, art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa. O apelante sustenta que o roubo à CEF se deu na forma tentada, tendo em vista que os agentes não tiveram a posse mansa e pacífica da res furtiva. Sobre tal questão acertadamente decidiu o juízo a quo ao afastar a tentativa e reconhecer o crime na forma consumada. Com efeito, o STF já firmou entendimento de que “não é necessário que a coisa roubada haja saído da esfera de vigilância da vítima, bastando a fuga, com bem subtraído, para caracterizar a existência de posse, pelo criminoso.” (Pleno, RCr 113.410, DJU 17.08.90, p. 7870; Pleno, mv, RE 102.490, DJU 16.08.91, p. 10787; HC 69292, DJU 19.06.92, p. 9521 in Código Penal Comentado, Celso Delmanto, Renovar, 2002, p. 350) e que basta a “cessação da clandestinidade ou violência para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse” (RECrim 102490, DJU 16.08.91, p. 10787, RT, 677:429 in Código Penal Anotado, Damásio E. de Jesus, Saraiva, 2002, 572). No mesmo sentido: STF, RvCrim 4821, Plenário, DJU 11.10.91, p. 14248: “o roubo se consuma no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa alheia móvel, não sendo necessário que ela saia da esfera de vigilância do antigo possuidor”. (in Código Penal Anotado, Damásio E. de Jesus, Saraiva, 2002, 572) III – Ministério Público Federal 5) Condenação de I. S. pela prática da receptação do veículo: O apelante sustenta que há provas de que o réu I. S. tenha concorrido 300 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 para a prática do delito de receptação do veículo Fiat Uno utilizado no assalto à CEF. Tenho, todavia, que o apelo não merece prosperar. Não há provas nos autos suficientes a ensejar um juízo condenatório. Em que pese o MPF tenha discorrido acerca da importância dos indícios para verificação do dolo no delito de receptação, não vejo possível a condenação com fulcro apenas em conjecturas. O dolo na receptação deve ser o direto, ou seja, a vontade livre e consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ou influir para que terceiro adquira, receba ou oculte, sabendo tratar-se de produto de crime. Conforme a lição de Celso Delmanto, “Não basta o dolo eventual, sendo indispensável o dolo direto: que o agente saiba (tenha ciência, certeza) de que se trata de produto de crime.(...) Para a receptação dolosa, é imprescindível que o agente tenha certeza da origem criminosa da coisa (STF, mv – RT 599/434; TJDF, Ap. 11303, DJU 03.02.93, p. 2105, in RBCCr 2/241; TJSP, RT 759/592; TACrSP, RJDTACr 20/156; TJMS, RT 606/396; TARS, RF 263/340; TJRJ, RF 260/326; TJBA, BF 36/157), devendo a prova a respeito ser certa e irrefutável (TRF da 5a R., Ap. 219, mv – DJU 20.06.91, p. 14464).” (Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 428/429) Novamente cito trecho da bem-lançada sentença, a qual dispensa reparos: “No que se refere ao denunciado I. S., entretanto, tenho que não se verificam os elementos necessários à caracterização do delito. Com efeito, conforme acima relatado, a participação deste réu nos fatos apontados na denúncia teve início quando este denunciado recebeu um telefonema do co-réu R. C. O., no dia dos fatos, pouco antes do início da ação criminosa que culminou com a realização do assalto contra a agência da CEF localizada na sede deste juízo. Sobre isso, disse I. S.: Não conhecia os acusados R. M. N. e A. D. L. No dia dos fatos, 10 de fevereiro, por volta das 11h30min, o interrogando estava na casa de seus pais quando recebeu um telefonema de R. C. O., que pediu para o interrogando comparecer na frente da Igreja das Dores por volta das ‘quinze para uma da tarde’, daquele mesmo dia, levando com ele um revólver. Em função disso, o interrogando foi até aquele local, levando consigo um revólver calibre 38, marca Taurus, acabando por encontrar naquele local os outros três denunciados e um quarto elemento, cujo nome não sabe, porque também não o conhecia. ... Afirma o interrogando que não concorda com a acusação de receptação em relação ao automóvel Fiat Uno utilizado no assalto porque na noite em que tal automóvel foi furtado o interrogando encontrava-se recolhido ao Presídio. (fls. 218/219). R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 301 Dentro deste contexto, em guardando, a versão do réu, consonância com as alegações dos demais acusados, no sentido de que ele, I. S., somente foi procurado por R. C. O. e acabou se encontrando com os demais agentes pouco antes da empreitada criminosa, não há como afirma, com segurança, que I. S. tinha conhecimento de que o veículo conduzido por A. D. L. havia sido obtido através de furto realizado na noite anterior. Embora se possa dizer, num primeiro momento, que I. S. poderia desconfiar da possibilidade de A. D. L., ou qualquer dos demais partícipes da ação, possuir um carro daquela espécie, a ausência de outros elementos seguros de convicção impõe a absolvição de I. S., ante a não-demonstração do elemento subjetivo necessário à tipicidade da conduta – conhecimento da origem ilícita do veículo utilizado no assalto”. (fls. 471/472) Ressalto, por oportuno, que não há de se cogitar de receptação culposa, uma vez que vedada a mutatio libelli em 2a instância: Enunciado da Súmula 453 do STF – “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa”. 6) Porte Ilegal de Armas e Receptação: Quanto aos crimes de porte ilegal de armas e receptação, o MPF alega que há provas de que I. S. e R. C. O. sabiam da origem ilícita das armas, bem como que não houve absorção do delito receptação pelo de porte ilegal de arma. Em relação à receptação das armas, pode-se dizer o mesmo que foi dito no tocante à receptação do automóvel por I. S.: não há provas nos autos acerca do elemento subjetivo suficientes a ensejar um juízo condenatório, não sendo possível a condenação com fulcro apenas em conjecturas. Como bem referiu o magistrado sentenciante, “embora demonstrada a ilicitude com que aqueles revólveres foram subtraídos da posse dos legítimos proprietários, não há elementos concretos que comprovem que os denunciados I. S. e R. C. O. tinham conhecimento de que ditas armas eram objeto de furto. Com efeito, embora a natureza daqueles bens pudesse fazer presumir sua origem ilícita, nas circunstâncias em que cada réu obteve sua arma, não existem nos autos outras provas que comprovem que eles efetivamente tinham conhecimento do crime anterior”. (fls. 473/474) Novamente ressalto, por oportuno, que não há de se cogitar de receptação culposa, uma vez que vedada a mutatio libelli em 2a instância: Enunciado da Súmula 453 do STF – “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que 302 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa”. Insurge-se ainda o recorrente contra a parte do decisum que diz estar o crime de receptação absorvido pelo de porte ilegal de arma, afirmando o juízo a quo que: “De qualquer sorte, há que destacar que eventual conhecimento da origem ilícita da arma não constitui, no caso em comento, delito autônomo, haja vista que tal conduta restaria inevitavelmente absorvida pelo fim maior visado pelos agentes, ou seja, a posse indevida da arma. Em outras palavras, ainda que os réus tivessem ciência de que ditas armas haviam sido furtadas, este juízo comunga do entendimento de que tal circunstância caracterizaria crime único – o porte ilegal de armas”. (fl. 474) Ora, o magistrado sentenciante apenas explanou sobre a consunção a título de esclarecimento, de complementação a sua fundamentação, uma vez que o reconhecimento da ausência de provas do elemento subjetivo do tipo em exame já basta para prolação do decreto absolutório. Destarte, mantendo a absolvição dos réus face à ausência de provas acerca do dolo, desnecessária a análise do concurso aparente de normas, questão que resta prejudicada. 7) R. C. O. – receptação do cheque: Igualmente não prospera a pretensão ministerial de ver o denunciado R. C. O. condenado pela prática do delito de receptação, referente ao cheque emitido por Iolanda Salles de Carvalho, encontrado dentre os pertences do acusado. O tipo penal em comento descreve as condutas de “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte” como caracterizadoras do delito em sua forma dolosa. Ocorre que há dúvidas acerca da procedência criminosa da cártula, tendo em vista que a própria emitente não sabe se sua filha extraviou o cheque ou se foi furtado no ônibus. Isso depreende-se dos seguintes depoimentos: Iolanda Salles de Carvalho: “J: O que houve com esse cheque? R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 303 T: Esse cheque, a minha menina foi buscar, a esposa dele, que é minha filha, foi buscar. E ela pegou o ônibus de Santa Maria pro centro, ela mora aqui no centro, eu moro na Vila Prado, e ela pegou o ônibus e sumiu da carteira dela. J: Este cheque estava com sua filha? T: É, ela que foi buscar, né. J: Da sua casa até ela vir na casa dela, no ônibus ela extraviou ou foi furtado? T: Ela não sabe, se tiraram da carteira dela ou se ... só sei que ela chegou sem a ... uma bolsinha, uma pochetezinha pequena ... J: Ela tinha uma bolsa pequena que não encontrou mais? T: Que tava dentro da bolsa dela, que ela tirou para pagar a passagem e depois quando chegou em casa não encontrou nada mais, né. (...) Defensor dos réus R. C. O., R. M. N. e A. D. L.: Se ela tem certeza que o cheque foi extraviado ou se foi furtado. T: Foi sumido dentro do ônibus. J: Ela não sabe se foi objeto de furto ou de extravio”. (fls. 308/310) Jussara Maria Salles Dedeco Buzzatti: “J: E o que houve com este cheque? T: A mãe mora lá no Prado e eu peguei o ônibus da Santa Maria ... eu não sei se eu perdi dentro do ônibus ou se foi na hora que eu tirei os centavos, que o cara me pediu os centavos ali para mim dar de troco, eu não sei se eu perdi ou se alguém pegou, eu sei que a pochetezinha, a niquelerinha com moeda não tava dentro da minha bolsa quando eu cheguei em casa e nem uma agendinha pequenininha, assim de criança. J: Quer dizer que no trajeto da casa da sua mãe até o centro da cidade a senhora tinha uma pochete, uma niqueleira, e uma agenda pequena. Essas duas ... T: E o cheque eu botei dentro da pochetinha, na niquelerinha aquela ... J: Esses dois objetos sumiram da sua bolsa? T: Isso, sumiram da bolsa. J: Nesse trajeto? T: Isso. Agora, eu não sei se eu perdi ou se me pegaram dentro do ônibus, isso aí eu não sei”. (fl. 311) Assim, não havendo provas conclusivas acerca da elementar “produto de crime”, é atípica a conduta. Nessa linha, novamente o ensinamento de Celso Delmanto: “É necessária a identificação do delito antecedente, definindo-se com clareza em que consistiria a origem ilícita da coisa (TJRS, RT 780/688). (...) A receptação, tanto dolosa como culposa, é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa receptada. Embora não seja imprescindível a existência de processo penal a respeito (ex.: caso de menor), é indispensável que haja prova 304 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 conclusiva da origem da coisa. A absolvição do autor do crime que é pressuposto não impede a condenação do receptador; impede-a, porém, a absolvição por estar provada a inexistência do fato ou por não haver prova da existência do fato criminoso anterior”. (Código Penal Comentado, 6a edição, Renovar, 2002, p. 429 e 434) 8) R. C. O. – roubo da arma do vigia: O apelante aduz que o roubo da arma do vigia foi produto do prévio ajuste de vontades entre os acusados R. C. O. e I. S. e que quem anui com a prática de crime cometido durante a execução de outro, deve por ambos responder. Contudo, não vejo configurado o prévio ajuste dos réus na prática do delito em questão, nem tampouco qualquer participação de R. C. O. na execução do roubo da arma do vigia, uma vez que se depreende dos testemunhos colhidos que, no momento em que I. S. roubou a arma do vigia, R. C. O. estava na sala ao lado, tentando fazer com que o cofre fosse aberto. Nesse sentido, a irretocável decisão de primeira instância: “No que se refere, todavia, à participação neste delito do réu R. C. O., tenho que não prospera a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal. É que, dentro da previsão contida no artigo 29 do Código Penal, as circunstâncias em que ocorreu a subtração da arma no caso em comento não autorizam o reconhecimento da participação por parte de R. C. O., pois todos os elementos de convicção já analisados demonstram que a subtração de dita arma ocorreu no momento em que I. S. estava sozinho no interior da agência da CEF, mantendo controle sobre clientes, funcionários e o próprio guarda, enquanto o réu R. C. O. estava numa sala ao lado, tentando fazer com que o funcionário Raul abrisse o cofre. Sendo assim, e certo que a intenção dos agentes, na essência, era a realização do roubo contra a CEF, a iniciativa de I. S. subtrair a arma do vigilante representa uma conduta isolada durante o iter criminis, que não pode ser atribuída a R. C. O. a título de co-autoria ou mesmo participação”. (fl. 477) Destarte, resta o apelo desprovido. IV – Efeito Extensivo Dispõe o art. 580 do CPP, que “No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”. Em que pese a norma legal em comento se refira a identidade de situações dos co-réus em um mesmo processo, entendo aplicável no caso em 305 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 tela, no que condiz com a Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, porquanto se trata de processo desmembrado em razão de decisão judicial determinante da cisão em decorrência de aditamento da denúncia. Isso se justifica pelo interesse social tutelado pelo dispositivo de lei supracitado, pois os primeiros cinco fatos contidos na denúncia são iguais em ambos os processos, retratando situações idênticas entre os denunciados. Acerca do interesse social no art. 580 do CPP, a seguinte decisão do STF: “Pedido fundado no art. 580 do Código de Processo Penal. O princípio da extensibilidade da decisão favorável a um dos réus ao co-réu, além do interesse particular deste, justifica-se também pelo interesse social. Há, no entanto, uma limitação legal do efeito extensivo. Assim, não será possível o efeito extensivo quando a decisão se basear em motivos exclusivamente vinculados a pessoa do recorrente, indeferimento.” (RC 1233 extensão / CE - CEARÁ, Extensão no Recurso Criminal, Relator(a): Min. Djaci Falcão, 2ª T., Publicação: DJ Data: 02.12.77, RTJ, vol-00083-03, pp.00698 EMENT vol-01081-01, pp-00048, Indexação da Revista Trimestral do STF) Ainda justificando a incidência da norma no caso em concreto, os julgados a seguir: “Habeas corpus. Aplicação do artigo 580 do Código de Processo Penal. - Como esta Turma decidiu no Habeas corpus nº 68.442, o efeito extensivo da decisão, ao qual aludem o artigo 580 do Código de Processo Penal brasileiro e o artigo 203 do Código Processual Penal italiano, ‘só aproveita aos não-impugnantes’, razão por que, ‘embora tenham recorrido todos, mas com extensões objetivas diversas, a decisão favorável a um cuja impugnação é mais extensa favorece aos outros cuja extensão da impugnação não abrangeu tal ponto. Com relação a esse ponto não abarcado pelas impugnações dos demais, são eles obviamente nao-impugnantes, e não fora o efeito extensivo da impugnação mais abrangente, e eles não seriam beneficiados. - Na hipótese em julgamento, a extensão da desclassificação com a conseqüente impronúncia se impunha em favor do ora paciente, porquanto ela se dera anteriormente em favor de co-réus pelas circunstâncias objetivas do fato imputado igualmente a todos eles, e ele, não tendo recorrido nesse ponto, preenchia o requisito de ser não-impugnante exigido para a aplicação do artigo 580 do Código de Processo Penal. Habeas corpus deferido.” (STF, HC 69099 / ES - Espírito Santo, Min. Moreira Alves, 1ª T., Publicação: DJ Data: 08.05.92 pp.06267 EMENT. vol. 01660-02, pp. 00390, RTJ vol. 00140-03, pp.00911) “Extensão em processo desmembrado – STF: ‘Júri. Protesto por novo julgamento – Deferimento – Pretendida extensão ao co-réu em idêntica situação ainda que se trate de processo desmembrado – Admissibilidade – Inteligência do art. 580 do CPP. (...) Tendo sido concedido a um réu o direito de ser submetido a novo júri, não há como negar a 306 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 extensão ao co-réu em idêntica situação, ainda que se trate de processo desmembrado. CPP, art. 580’ (RT 746/534). STF: ‘Tendo sido concedido a um réu o direito de ser submetido a novo júri, não há como negar a extensão ao co-réu em idêntica situação, ainda que se trate de processo desmembrado. CPP, art. 580’ (JSTF 234/384). TJSP: ‘No caso de concurso de agentes em que a acusação que se colocou na denúncia foi absolutamente a mesma para ambos os réus, a absolvição em recurso interposto por somente um deles, fundada na atipicidade do fato, aproveitará o outro, ainda que desmembrado o processo, posto se tratar de motivo de caráter geral e não pessoal’ (RT 692/258). TJAP: ‘Processual Penal. Processo desmembrado. Decisão em recurso em sentido estrito, que anulou parcialmente o processo a partir da sentença de pronúncia. Efeitos extensivos aos co-réus que figuram nos autos principais. Preliminar de nulidade acolhida. É de se estender aos co-réus dos autos principais a decisão que anulou o processo desmembrado, a partir da sentença de pronúncia, nos termos do art. 580 do CPP. Preliminar de nulidade parcial do processo que se acolhe’ (RDJ 14/218)”. (Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, Atlas, 9a edição, p. 1425/1426) 9) Roubo da CEF e roubo da arma por I. S.: A sentença assim dispôs: “Finalmente, em reconhecendo a continuidade delitiva nas condutas de I. S., ao participar do crime de roubo praticado contra a agência da CEF e subtrair o revólver utilizado pelo vigilante que prestava serviço naquela oportunidade, aumento a pena mais grave acima fixada, de seis anos e seis meses de reclusão, em um sexto, tornando definitiva a pena, para ambos os crimes, em sete anos e sete meses de reclusão. Da mesma sorte, a pena de multa resta definitiva em 93 (noventa e três) dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo vigente ao tempo do fato o dia-multa”. (fl. 488) Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, assim foi decidido: “O denunciado R. M. N. aduz, em suas razões recursais, que o roubo da arma do vigia e o roubo da Caixa Econômica Federal constituem um mesmo crime, uma vez que o roubo da arma era necessário para o roubo da instituição financeira, devendo ser reformada a decisão que entendeu se tratar de crime continuado. A jurisprudência majoritária é no sentido de que se os crimes foram praticados num mesmo contexto fático contra mais de uma vítima há concurso formal. Nessa seara: ‘Crime de roubo, praticado no mesmo contexto fático, contra vítimas diferentes, constitui concurso ideal e não crime continuado. Precedentes do STF e STJ’ (STJ – 5a T. – HC 10452 – Rel. Min. Félix Fischer – j. 22.02.2000 – DJU 20.03.2000, p. 84, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e Rui Stoco, RT, 7a edição, v.2, p. 2569). ‘Roubos praticados contra vítimas diferentes, no mesmo contexto fático, mediante R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 307 uma única ação desdobrada em vários atos, constituem concurso formal de crimes e não crime único’ (TJSP – Rev. – Rel. Bittencourt Rodrigues – j. 19.08.97 – RT 750/606, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e Rui Stoco, RT, 7a edição, v.2, p. 2569). ‘ROUBO. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. EMPRESA DE VIGILÂNCIA. VIGILANTE. CONSUMAÇÃO. CONCURSO FORMAL. - O roubo está consumado se o ladrão é preso em decorrência de perseguição imediatamente após a subtração da coisa, não importando assim que tenha a posse tranqüila desta. - Ocorre concurso formal quando o agente rouba várias pessoas de uma só vez (Precedentes do STF).’ (TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO, OITAVA TURMA, DJU DATA:24.07.2002 PÁGINA: 748 DJU DATA: 24.07.2002, Relator(a) JUIZ AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI). ‘Caracteriza concurso formal a atuação do agente que, com uso de arma de fogo, rouba várias vítimas, pois, embora seja uma única ação, ocorre pluralidade de eventos e resultados’. (STJ, RT 792/598; TJSP, RT 755/613, in Código Penal Comentado, Celso Delmanto, Renovar, 2002, p. 351). No caso em tela, em um mesmo contexto fático houve a subtração, mediante grave ameaça ou violência a pessoa de R$ 9.890,00 da Caixa Econômica Federal e uma arma de fogo (revólver, calibre 38, n° AA273084) de propriedade da empresa ‘Rudder Segurança Ltda.’, com o que configurado o concurso formal nos termos do art. 70 do CP. Considerando-se que a sentença entendeu haver crime continuado, no qual é aplicada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços, e que no concurso formal é aplicada a pena mais grave cabível ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade, não constituindo, portanto, em reformatio in pejus a aplicação do concurso formal, reformo a decisão ora recorrida neste aspecto.” Assim, também a I. S. será aplicado o concurso formal para os delitos de roubo. 10) Dosimetria da pena de I. S.: 10.1) Roubo da CEF: Ressalto, como já visto, que apenas as circunstâncias judicias objetivas podem ser objeto do efeito extensivo. Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, restou decidido, com ressalva no voto-revisor, que, havendo concurso entre majorantes, uma delas será valorada como causa de aumento e a outra como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial. 308 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 A decisão, que aqui se aplicará, foi proferida nos seguintes termos: “Ademais, o crime ocorreu mediante o uso de arma de fogo, o que por si só já bastaria para ser desfavorável a culpabilidade do agente. Saliento, aqui, que o uso de arma de fogo, em que pese previsto como majorante, não deve e não será valorado na terceira fase de aplicação da pena por haver concurso entre majorantes (arma de fogo e concurso de agentes). Entendo que existindo mais de uma causa de aumento prevista na Parte Especial do CP para um mesmo delito, apenas uma incidirá como causa de aumento. A outra servirá como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial. Corroborando essa tese: PENAL. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. EMPREGO DE ARMA. CONCURSO DE PESSOAS. DOSIMETRIA. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. 1. Materialidade e autoria comprovadas e, além disso, corroboradas pela confissão espontânea do Réu. 2. No concurso de duas majorantes do roubo, o juiz deve aplicar somente uma a título de causa especial de aumento, podendo funcionar a remanescente como circunstância judicial ou circunstância legal (agravante). 3. Nessa hipótese, a mera existência de duas majorantes não basta para determinar a exacerbação da pena provisória no percentual máximo de 1/2 (metade). 4. Essa dosagem deve ser pautada pela prudente discricionariedade do Juiz, a qual deve ter por base os elementos de convicção constantes dos autos, especialmente o conjunto formado pela análise das circunstâncias judiciais. (...) (TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO - APELAÇÃO CRIMINAL – 4414, SEGUNDA TURMA, DJU DATA: 29.09.99 PÁGINA: 555, Relator(a) JUIZ ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO)”. No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que se a pena é agravada pela reincidência não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Eis os exatos termos daquela decisão: “O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls. 242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase da dosimetria, como agravante genérica”. Já em relação às conseqüências, esta foi a decisão: “As conseqüências, todavia, não são desfavoráveis ao agente, uma vez que o monR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 309 tante subtraído da instituição financeira (R$ 9.890,00) foi restituído à CEF, conforme termo de restituição (fl. 132). Não obstante uma testemunha ter referido que o montante subtraído chegava a R$ 11.000,00 e que cerca de R$ 2.000,00 não foram restituídos (fl. 314), a denúncia refere-se a R$ 9.890,00 e é esse valor que deve prevalecer no processo”. Ante o exposto, sendo que a pena imposta abstratamente ao crime de roubo é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa, e que restaram consideradas desfavoráveis três das operantes (culpabilidade, circunstâncias e comportamento da vítima) do art. 59 do CP, entendo que a pena-base deveria ser fixada em 05 (cinco) anos, 01 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão, restando, no entanto, em virtude da vedação da reformatio in pejus, fixada em 04 (quatro) anos e 06 (seis) meses de reclusão. (fl. 487) O juízo a quo tornou a pena provisória em 04 (quatro) anos e 04 (quatro) meses de reclusão. (fl. 487) Na terceira fase de aplicação da pena, a sentença há de ser reformada, aplicando-se o tratamento destinado aos outros agentes do roubo, em consonância com o entendimento acima exposto, acerca do concurso de causas especiais de aumento de pena. Entendo que não se pode aplicar um entendimento híbrido acerca do tema, ou seja, ou permite-se o reconhecimento de duas ou mais majorantes na terceira fase do cálculo da pena e a majoração dar-se-á em função da quantidade de causas de aumento incidentes no caso concreto, ou, tese que adoto, havendo concurso entre majorantes, uma delas será valorada como causa de aumento e a outra como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial, devendo o acréscimo da pena se dar com base no contexto fático concernente à própria majorante (ex.: concurso de agentes: o número de agentes – se forem apenas dois, o aumento ficará no mínimo; uso de arma de fogo: tipo de arma – não se pode apenar igualmente aquele que assalta usando um revólver e aquele que assalta usando um fuzil). Todavia, tendo sido aplicada na AC n° 2003.71.02.004107-4 a última tese, por ser mais benéfica à defesa e não por seus fundamentos, como deixou claro o voto-revisão, juntamente com a primeira, no momento de majorar a pena com base no § 2º do art. 157 do CP, aplico, em homenagem ao Princípio da Isonomia, por ser inadmissível que participantes de um mesmo fato recebam tratamento distinto, a tese explanada na decisão referida: 310 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 “No entanto, na terceira fase, as sanções estabelecidas para ambos merece ser revista. O art. 157, § 2o, do CP prevê cinco majorantes que autorizam aumento entre um terço e metade. Na hipótese, incidindo apenas uma destas causas de aumento (concurso de agentes – inc. II), a majoração deve ser a mínima, ou seja, um terço, restando a pena, para A. D. L., em 8 anos de reclusão e, para R. M. N., em 5 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão. (...). Por oportuno, destaco que não há impossibilidade de se reconhecer e fazer incidir duas ou mais das majorantes previstas no art. 157, § 2º, uma vez que o dispositivo traz limites variáveis de aumento justamente em função disso. Contudo, deixo de considerar o uso de arma de fogo nesta fase, porquanto a avaliação procedida pela Relatora na primeira fase da aplicação da reprimenda mostra-se mais favorável à defesa”. Destarte, com o acréscimo de 1/3, resulta a pena privativa de liberdade em 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão. Reconhecido o concurso formal, nos termos da fundamentação, entre os roubos da CEF e da arma do vigia, e considerando-se que o número de crimes foi dois, aumento a pena no mínimo legal, ou seja, 1/6. Assim, a pena definitiva resta fixada em 06 (seis) anos, 08 (oito) meses e 26 (vinte seis) dias de reclusão. No tocante à pena de multa, tenho que o número de dias-multa é determinado pela análise das circunstâncias judiciais, motivo pelo qual, revisadas tais operantes, reviso, ex officio, a quantidade de dias-multa. Embora tenham sido diminuídas para três as circunstâncias do art. 59 consideradas desfavoráveis para o agente, entendo que a o número de dias-multa deveria ter sido fixado em 135, restando, porém, inalterado o arbitramento em 80 dias-multa, consoante o princípio da vedação da reformatio in pejus. Aqui, surge um problema. O art. 72 do CP reza que “No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente”. O juízo inferior, reconhecendo a continuidade delitiva, não aplicou o artigo de lei supracitado, procedendo a unificação também na pena de multa. Tal decisão é amparada pela jurisprudência: “CRIME CONTINUADO. PENA PECUNIÁRIA. - Unificação. Sem embargo das doutas opiniões em contrário, na linha de princípio odiosa sunt restringenda é correto compreender-se que o crime continuado escapa a vedação estabelecida pela regra do art. 72 do Código Penal. (STJ, REsp – 63742, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 311 QUINTA TURMA, DJ DATA:28.08.95 PÁGINA:26657 RSTJ vol.:00081 PÁGINA:352 Relator(a) JOSÉ DANTAS) PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI Nº 8.212/91, ART. 95, ALÍNEA D. PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO FISCAL. LEI Nº 9.964/2000. PARCELAMENTO DO DÉBITO. LEI Nº 9.249/95. DOLO ESPECÍFICO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DOSIMETRIA. CRIME CONTINUADO. PENA DE MULTA. INAPLICABILIDADE DO ART. 72 DO CP. QUANTIDADE DE DIAS-MULTA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. ART. 44 DO CP. PRESCRIÇÃO. (...) 5. No crime continuado, em se tratando de delito único, a pena de multa deve ser unificada, inaplicável o art. 72 do CP. Precedentes do STJ e desta Corte. 6. A quantidade de dias-multa deve ser consentânea com o quantum da pena de reclusão. (...)” (TRF4, ACR – Apelação Criminal – 10188, Processo: 200204010386837 UF: RS, 8ª T., DJU Data:06.08.2003, p. 219, DJU Data:06.08.2003, Relator(a) Juiz Luiz Fernando Wowk Penteado) Destarte, a pena de multa pelos crimes de roubo totalizou em 93 dias-multa na razão de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato cada dia-multa. (fl. 488) Ora, é evidente que se aplicável o concurso formal a situação do réu, no que tange à multa, será agravada, pois o art. 72 do CP incidiria na hipótese. Assim, não havendo recurso de nenhuma das partes em relação à pena pecuniária, não vejo como alterar o montante fixado, face à proibição da reformatio in pejus, com o que mantenho a condenação da pena de multa, pelos dois crimes de roubo, na forma da sentença. Saliento, aqui, que a pena de multa na AC n° 2003.71.02.004107-4 se manteve inalterada, ressalvada forma diversa de cálculo no voto-revisão. Aplicando-se a regra do concurso material, as penas de I. S., somadas, resultam em 08 (oito) anos, 08 (oito) meses e 26 (vinte seis) dias de reclusão, e 143 dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo vigente ao tempo do fato o dia-multa. A pena privativa de liberdade deve ser cumprida em regime fechado, face ao art. 33, § 2o, a, do CP. Face ao quantum da pena privativa de liberdade, resta afastada a possibilidade de substituição por penas restritivas de direitos e de suspensão condicional da pena. 312 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 11) Dosimetria da pena de R. C. O.: 11.1) Roubo da CEF: Ressalto, como já visto, que apenas as circunstâncias judicias objetivas podem ser objeto do efeito extensivo. Na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4, restou decidido, com ressalva no voto-revisão, que, havendo concurso entre majorantes, uma delas será valorada como causa de aumento e a outra como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial. A decisão, que aqui se aplicará, foi proferida nos seguintes termos: “Ademais, o crime ocorreu mediante o uso de arma de fogo, o que por si só já bastaria para ser desfavorável a culpabilidade do agente. Saliento, aqui, que o uso de arma de fogo, em que pese previsto como majorante, não deve e não será valorado na terceira fase de aplicação da pena por haver concurso entre majorantes (arma de fogo e concurso de agentes). Entendo que existindo mais de uma causa de aumento prevista na Parte Especial do CP para um mesmo delito, apenas uma incidirá como causa de aumento. A outra servirá como circunstância agravante, se prevista nos arts. 61 e 62 do CP, ou como circunstância judicial. Corroborando essa tese: PENAL. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. EMPREGO DE ARMA. CONCURSO DE PESSOAS. DOSIMETRIA. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. 1. Materialidade e autoria comprovadas e, além disso, corroboradas pela confissão espontânea do Réu. 2. No concurso de duas majorantes do roubo, o juiz deve aplicar somente uma a título de causa especial de aumento, podendo funcionar a remanescente como circunstância judicial ou circunstância legal (agravante). 3. Nessa hipótese, a mera existência de duas majorantes não basta para determinar a exacerbação da pena provisória no percentual máximo de 1/2 (metade). 4. Essa dosagem deve ser pautada pela prudente discricionariedade do Juiz, a qual deve ter por base os elementos de convicção constantes dos autos, especialmente o conjunto formado pela análise das circunstâncias judiciais. (...)” (TRF4 – Apelação Criminal – 4414, 2ª T., DJU Data: 29.09.99, p.: 555, Relator(a) Juiz Élcio Pinheiro de Castro) No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que, se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Eis os exatos termos daquela decisão: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 313 “O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls. 242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase da dosimetria, como agravante genérica”. Já em relação às conseqüências, esta foi a decisão: “As conseqüências, todavia, não são desfavoráveis ao agente, uma vez que o montante subtraído da instituição financeira (R$ 9.890,00) foi restituído à CEF, conforme termo de restituição (fl. 132). Não obstante uma testemunha ter referido que o montante subtraído chegava a R$ 11.000,00 e que cerca de R$ 2.000,00 não foram restituídos (fl. 314), a denúncia refere-se a R$ 9.890,00 e é esse valor que deve prevalecer no processo”. Ante o exposto, sendo que a pena imposta abstratamente ao crime de roubo é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa, e que restaram consideradas desfavoráveis quatro das operantes do art. 59 do CP (culpabilidade, motivos, circunstâncias e comportamento da vítima), entendo que a pena-base deveria ser fixada em 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de reclusão, montante fixado na sentença, não obstante valoração diversa das operantes do art. 59 do CP. (fl. 483) O juízo a quo tornou a pena provisória em 06 (seis) anos de reclusão. (fl. 483) Na terceira fase de aplicação da pena a sentença há de ser reformada, aplicando-se o tratamento destinado aos outros agentes do roubo, em consonância com o que fora acima exposto, acerca do concurso de causas especiais de aumento de pena e do que fora decidido na AC n° 2003.71.02.004107-4. Assim, em homenagem ao Princípio da Isonomia, por ser inadmissível que participantes de um mesmo fato recebam tratamento distinto, aplico a tese exposta na decisão referida: “No entanto, na terceira fase, as sanções estabelecidas para ambos merece ser revista. O art. 157, § 2º, do CP prevê cinco majorantes que autorizam aumento entre um terço e metade. Na hipótese, incidindo apenas uma destas causas de aumento (concurso de agentes – inc. II), a majoração deve ser a mínima, ou seja, um terço, restando a pena, para A. D. L., em 8 anos de reclusão e, para R. M. N., em 5 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão. (...). Por oportuno, destaco que não há impossibilidade de se reconhecer e fazer incidir duas ou mais das majorantes previstas no art. 157, § 2o, uma vez que o dispositivo traz 314 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 limites variáveis de aumento justamente em função disso. Contudo, deixo de considerar o uso de arma de fogo nesta fase, porquanto a avaliação procedida pela Relatora na primeira fase da aplicação da reprimenda mostra-se mais favorável à defesa”. Resulta, pelo exposto, a pena definitiva, em 08 (oito) anos de reclusão. No tocante à pena de multa, mantenho o entendimento de que o número de dias-multa é determinado pela análise das circunstâncias judiciais, motivo pelo qual, revisadas tais operantes, reviso, ex officio, a quantidade de dias-multa. Embora tenham sido diminuídas para quatro as circunstâncias do art. 59 consideradas desfavoráveis para o agente, entendo que o número de dias-multa deveria ter sido fixado em 180, restando, porém, inalterado o arbitramento em 100 dias-multa, consoante o princípio da vedação da reformatio in pejus. Saliento, aqui, que a pena de multa na AC n° 2003.71.02.004107-4 se manteve inalterada, ressalvada forma diversa de cálculo no voto-revisão. 11.2) Receptação do veículo: A pena imposta abstratamente ao crime de receptação é de reclusão, de um a quatro anos, e multa. No tocante aos antecedentes, firmou-se entendimento de que, se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Eis os exatos termos daquela decisão: “O réu não apresenta maus antecedentes, pois, embora possua uma condenação não transitada em julgado (processo n° 2700224147) e quatro condenações com trânsito em julgado (processos nos 2701082312, 27388015003, 2700224139 e 2700231761) (fls. 242/245), entendo que se a pena é agravada pela reincidência, não pode ser aumentada pela presença de maus antecedentes, face à ocorrência de bis in idem. Assim, deixo de considerar o réu como de maus antecedentes para aumentar a pena na segunda fase da dosimetria, como agravante genérica”. O comportamento da vítima, no caso, também não pode ser desfavorável ao acusado, conforme foi julgado na Apelação Criminal n° 2003.71.02.004107-4: “Acerca do comportamento da vítima, pode-se dizer, citando Celso Delmanto, que ‘o comportamento do ofendido deve ser apreciado de modo amplo no contexto da censurabilidade da conduta do agente, não só a diminuindo, mas também aumentando-a, eventualmente. Não deve ser igual a censura que recai sobre quem rouba as jóias fulgurantes que uma senhora ostenta e a responsabilidade de quem subtrai os donativos, por exemplo, do Exército da Salvação’. (Código Penal Comentado, Celso Delmanto, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 315 Renovar, 6a edição, p. 111) Sendo o sujeito passivo do crime de receptação o próprio sujeito passivo do crime que adveio a coisa receptada, ou seja, o proprietário do veículo, tenho que não há nos autos dados suficientes sobre as condições em que se praticou a subtração do automóvel, não havendo, portanto, como se sopesar o comportamento da vítima”. Sendo três as circunstâncias judicias desfavoráveis (culpabilidade, motivos e conseqüências), entendo que a pena-base deveria ficar em 01 ano, 06 meses e 21 dias de reclusão. Todavia, ante a vedação da reformatio in pejus, mantenho a pena-base em 01 (um) ano e 05 (cinco) meses de reclusão. A pena tornou-se provisória em 01 (um) ano e 09 (nove) meses de reclusão e definitiva na mesma quantidade. Embora alterada a análise das circunstâncias judiciais, o número de dias-multa não deve ser modificado (50 dias-multa), em homenagem ao princípio que veda a reformatio in pejus, não obstante tenha sido fixado em quantitativo demasiadamente baixo, levando-se em conta que foram três das operantes do art. 59 valoradas negativamente ao réu. Incidente o art. 69 do CP (concurso material), a pena privativa de liberdade resulta em 12 (doze) anos de reclusão, a ser cumprida em regime inicialmente fechado, consoante o disposto no art. 33, § 2º , a, do CP, e 210 dias-multa, no valor de um trigésimo do salário mínimo vigente ao tempo do fato o dia-multa. Face ao quantum da pena privativa de liberdade resta afastada a possibilidade de substituição por penas restritivas de direitos e de suspensão condicional da pena. Voto, por isso, em negar provimento aos recursos dos réus e do Ministério Público Federal, e por aplicar ex officio o art. 580 do CPP, alterando a quantidade de pena imposta para ambos os réus, nos termos da fundamentação. Havendo unanimidade no julgamento, oficie-se ao juízo de primeiro grau para o imediato cumprimento das penas, salvo as de multa. (Súmula 267 do STJ) 316 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 HABEAS CORPUS Nº 2004.04.01.003975-7/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva Impetrantes: Neri Trombim e outro Impetrado: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal de Criciúma/SC Paciente: A. L. S. T. EMENTA Habeas corpus. Trancamento ação penal. Lei nº 9.605/98, art. 34, § único, inc. II. Ausência de justa causa. Portaria 54-N/99 do IBAMA. Inocorrência de captura de peixes. Diferença de 01 (um) centímetro na malha da rede. Irrelevância. 1. A diferença de apenas 1 (um) centímetro entre a malha da rede apreendida e a malha prevista e autorizada pela Portaria IBAMA 54N/99 é materialmente irrelevante e, aliada às demais circunstâncias do fato, torna atípica a conduta de pescar, porque a não-incidência daquela norma deixa o art. 34, parágrafo único, inc. II, da Lei nº 9.605/98, que é norma penal em branco, sem a necessária complementação. 2. Ordem concedida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, conceder a ordem para trancar a ação penal, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 23 de março de 2004. Des. Federal José Germano da Silva , Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Trata-se de habeas corpus impetrado por Neri Trombim e A. L. S. T. em favor deste último, objetivando, liminarmente, a suspensão e, em definitivo, o trancamento da Ação Penal nº 2002.72.04.001373-2 em trâmite perante o MM. Juízo Federal da 1ª Vara Federal de Criciúma/SC, na qual o paciente foi denunciado pela prática, em tese, do delito previsto no art. 34, § único, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 317 inc. II, da Lei nº 9.605/98. Alegam, em síntese, que não há justa causa para a ação penal ao argumento de que o fato descrito na denúncia não passa de infração administrativa. Salienta que a diferença entre a malha permitida e a rede apreendida é de apenas um (1) centímetro, bem como que não houve a apreensão de nenhum peixe, inexistindo qualquer dano ao meio ambiente. Aduz que a conduta narrada na exordial acusatória (portaria esta que implementou o tipo penal) é penalmente irrelevante, devendo-se aplicar ao caso o princípio da insignificância. Refere, ainda, que a Portaria nº 54N/99 emitida pelo IBAMA e citada na denúncia faz referência ao litoral sul de Santa Catarina, entre os municípios de Laguna e Passo de Torres, estando excluído o município de Içara no qual se encontrava o paciente quando da apreensão da rede. Sustenta, também, que o comprimento de rede permitido na referida portaria é de 100 metros, extensão muito superior à da rede apreendida que era 25 metros. Por fim, argumentou a atenuante do art. 14, inc. IV, da referida Lei nº 9.605/98, pelo fato de ter colaborado com os agentes encarregados da vigilância e controle ambiental, conforme consta da Notícia de Infração Ambiental. (fls. 27/30) A liminar foi concedida (fl. 74), e as informações foram prestadas. (fls. 80-81) O Ministério Público Federal ofertou parecer, opinando pela denegação da ordem. (fls. 85-90) É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal José Germano da Silva: Narra, a denúncia, que no dia 01.07.01, por volta das 12 horas, o paciente pescava na beira-mar da Praia de Barra Velha, no município de Içara/SC, utilizando-se, para tanto, de petrecho não permitido, ocasião em que foi surpreendido por policiais militares, incorrendo, portanto, nas sanções do art. 34, § único, inc. II, da Lei nº 9.605/98, o qual determina: “Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores 318 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 aos permitidos; II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas.” A exordial acusatória refere, ainda, a Portaria do IBAMA nº 54-N/99, art. 2º, b (também citada na Notícia de Infração Penal Ambiental que lastreou a denúncia), que assim dispõe: “Art. 2º. Permitir, no litoral Sul do Estado de Santa Catarina, entre os municípios de Laguna e Passo de Torres, o uso dos seguintes petrechos de pesca: a) Redes de emalhar fixas (redes de calão), com no máximo 50m (cinqüenta metros) de comprimento, utilizando-se para fixação calões móveis, e malha mínima de 70mm (setenta milímetros); b) Redes de emalhar derivantes (rede japonesa ou de pandorga), com no máximo 100m (cem metros) de comprimento e malha mínima de 70mm (setenta milímetros); c) Redes de arrasto de praia (tração manual), com no máximo 1.200m (hum mil e duzentos metros) de comprimento e malha mínima de 70mm (setenta milímetros).” Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas (Crimes contra a Natureza, 6ª ed., Revista dos Tribunais, pág. 104) lecionam que “no inc. II proíbe-se a pesca de quantidades superiores às permitidas ou mediante a utilização de instrumentos vedados. Como é intuitivo, a pesca não poderá ser indiscriminada. O excesso na captura, por vezes apenas por prazer e sem destinar o produto à alimentação, poderá significar diminuição e até mesmo extermínio das espécies. Por outro lado, métodos nocivos também não podem ser admitidos, eis que causam graves danos ao meio ambiente. São, entre outros, as redes de malha fina, tarrafas, covões, espinhéis, joões bobos (armadilhas com bóias que acompanham a água), anzóis de galho. Todos esses meios são nocivos, pois alcançam grande número de espécies e de tamanho pequeno. A proibição deve ser objeto de ato da autoridade administrativa.” Ainda comentando o referido art. 34, os autores supracitados esclarecem que o elemento subjetivo “é o dolo, a vontade consciente de praticar a pesca através de qualquer das modalidades proibidas, ou mesmo de beneficiar-se de tal conduta” (ob. cit., pág. 104). Portanto, o tipo penal R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 319 ora em exame configura-se apenas com a utilização de instrumento não autorizado, pouco importando a quantidade de especimens aquáticas apreendidas. Além disso, não há se valorar resultado naturalístico - modificação no mundo exterior - vez que não se trata de delito material, mas sim de crime estruturalmente formal, não condicionando tal elemento à consumação, o que, per se, afasta o seu desvalor, visto que a apanha se revelou mero exaurimento. (Recurso Criminal em Sentido Estrito nº 2000.71.05.001600-7/RS, Rel. Des. Federal José Germano da Silva, DJU 25.09.02, p. 798/799) No que tange à aplicação do princípio da insignificância, deve-se atentar que este leva em consideração que, além da tipicidade formal, deve haver uma tipicidade material, ou seja, que, além da adequação do fato à norma jurídica penal, deve existir também lesividade significativa ao bem jurídico tutelado. Com efeito, existem atos que não agridem o bem jurídico tutelado de forma efetiva, embora possam configurar uma tipificação formal. Tais atos são penalmente irrelevantes, ante a pouca lesividade da conduta. Mas, da aplicação do princípio da insignificância não pode defluir equivocada ilação no sentido de quantificar os resultados de certas condutas e, a partir daí, rotular certos atos de insignificantes. Por conseguinte, mister se faz verificar qual o bem jurídico tutelado pela norma penal, a fim de avaliar a existência ou não de lesividade na conduta do agente. Neste contexto, a quantidade de peixes pescados somente tem relevância quando a pescaria exceder os limites permitidos (primeira parte do inciso II do art. 34 da Lei nº 9.605/98), o que não é o caso. Esclareça-se que a Portaria nº 54-N/99 emitida pelo IBAMA e citada na denúncia faz referência ao litoral sul de Santa Catarina, entre os municípios de Laguna e Passo de Torres, abrangendo, portanto, o município de Içara e que a discussão acerca da aplicação da atenuante estabelecida no art. 14, IV, da Lei nº 9.605/98, é questão que refoge à estreita via do habeas corpus, devendo ser analisada quando de eventual aplicação da pena em sentença condenatória. Entretanto, no caso concreto, verifica-se que a denúncia está calcada no referido art. 34, que é norma penal em branco, dependente de regulamentação. Tal regulamentação, por seu turno, veio estampada na Portaria nº 54-N, datada de 09.06.99, que permitiu, no litoral sul de 320 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Santa Catarina, a pesca com redes de malha mínima equivalente a 70mm (setenta milímetros). A Notícia de Infração Penal Ambiental (fl. 27) atesta que a rede de propriedade do paciente possuía malha de 60mm (sessenta milímetros) ou seja, 1 (um) cm aquém da previsão normativa - o que equivale a uma diferença de apenas 14% na malha da rede apreendida em relação à malha permitida. Tal diferença, a meu sentir, aliada às demais circunstâncias do caso em exame, há que ser tomada como materialmente irrelevante, o que torna o fato atípico e retira a justa causa da referida ação penal. Dessa forma, voto no sentido de conceder a ordem para trancar a ação penal nº 2002.72.04.001373-2, em trâmite perante a 1ª Vara Federal de Criciúma/SC. HABEAS CORPUS Nº 2004.04.01.012596-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Impetrantes: N. N. O. e outros Advogado: Dr. Celso Werlang Garcia Impetrado: Juízo Federal da 2ª Vara Federal de Rio Grande/RS Pacientes: N. N. O. Réu Preso M. O. Réu Preso W. O. O. Réu Preso EMENTA Habeas corpus. Deportação de estrangeiros. Prisão administrativa. Lei nº 6.815/80 (Estatuto do estrangeiro). Desnecessidade da custódia. Cumprimento de normas de comportamento. 1 - A prisão de estrangeiro para aguardar o encerramento do processo de deportação somente se justifica mediante a apresentação de fundadas R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 321 razões. 2 - A custódia para a efetividade do processo de deportação, por si só não constitui motivo para tanto. 3 - Verificada a desnecessidade da prisão, deve ser permitida a liberdade vigiada até a definição das normas de comportamento a serem observadas pelo estrangeiro, cujo descumprimento impõe a revogação da medida. 4 - Ordem de habeas corpus concedida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte do presente julgado. Porto Alegre, 2 de junho de 2004. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Trata-se de habeas corpus, objetivando a revogação da prisão administrativa a que estão submetidos os pacientes, que são nigerianos, em processo de deportação. O impetrante sustenta que, em razão do “não provimento do recurso ao Ministério da Justiça contra o indeferimento do pedido de refúgio junto ao Comitê Nacional para os Refugiados - CONARE e acatando pedido do Senhor Delegado da Polícia Federal, o Juízo a quo determinou a expedição de mandados de prisão contra os peticionários, com fundamento legal no artigo 61, parágrafo único, da Lei do Estrangeiro (6.815/80)” - grifo do original - que não impõe a custódia, mas apenas faculta. Aduz que os pacientes, em todo o tempo em que estiveram em liberdade, “jamais demonstraram qualquer atitude que desabonasse sua conduta social”, tendo inclusive se integrado com a comunidade, o que afasta a necessidade da prisão, havendo também “um considerável número de pessoas que se dispõem a dar-lhes guarida em suas casas”. Por fim, postula a cassação da ordem judicial ou, não sendo cabível a soltura, 322 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 o benefício de ir e vir entre 8 e 18 horas, pernoitando na penitenciária, onde hoje se encontram, nos mesmos termos dos que cumprem pena em regime aberto. Nas fls. 18-19, foram prestadas as informações pela autoridade apontada como coatora, sendo juntado na fl. 20, ofício do Delegado da Polícia Federal em Rio Grande/RS. Com vista dos autos, o Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem. (fls. 24-27) É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Dispõe o artigo 60 da Lei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro): “O estrangeiro, enquanto não se efetivar a deportação, poderá ser recolhido à prisão por ordem do Ministro da Justiça, pelo prazo de sessenta dias. Parágrafo único. Sempre que não for possível, dentro do prazo previsto neste artigo, determinar-se a identidade do deportando ou obter-se documento de viagem para promover a sua retirada, a prisão poderá ser prorrogada por igual período, findo o qual será ele posto em liberdade, aplicando-se o disposto no artigo 72”. Por sua vez, refere o artigo 72 do mesmo diploma legal: “O estrangeiro, cuja prisão não se torne necessária, ou que tenha o prazo desta vencido, permanecerá em liberdade vigiada, em lugar designado pelo Ministro da Justiça, e guardará as normas de comportamento que lhe forem estabelecidas. Parágrafo único. Descumprida qualquer das normas fixadas de conformidade com o disposto neste artigo ou no seguinte, o Ministro da Justiça, a qualquer tempo, poderá determinar a prisão administrativa do estrangeiro, cujo prazo não excederá a noventa dias”. Ao decretar a prisão dos pacientes, a autoridade impetrada manifestou-se nos seguintes termos (fl. 08): “No caso dos autos, houve o decreto prisional no dia 26.09.2003 (fl. 06), cumprido na mesma data (fl. 11), sendo os réus mantidos na Penitenciária Estadual de Rio Grande até o dia 27.11.2003 (fls. 55-56), tendo transcorrido o prazo de 60 (sessenta) dias previsto no art. 61 do Estatuto do Estrangeiro. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 323 Nesse ínterim, por força do pedido de reconhecimento dos réus como refugiados estrangeiros houve a suspensão do processo de deportação em trâmite na Delegacia de Polícia Federal desta cidade, conforme ofício do Comitê Nacional de Refugiados (fls. 128-131). Com o indeferimento do pedido de reconhecimento necessário se faz a continuidade do processo de deportação dos vindiços. Diante disso, DEFIRO o pedido de prisão para deportação, pelo prazo máximo de 60 (sessenta) dias, com base no parágrafo único do art. 61 da Lei nº 6.815/80”. Provocado o juízo a quo por meio de pedido de revogação da custódia determinada, fundamentou a negativa conforme segue (fls. 06-07): “Nada há a questionar quanto ao caráter de faculdade atribuído pela Lei à prisão. De fato assim o é. Entretanto, nenhuma garantia tem o Juízo de que os réus permanecerão voluntariamente aguardando o término do processo de deportação. O convívio social e comportamento idôneo dos réus, alegados como motivadores para a manutenção dos mesmos em liberdade, não podem ser tidos como bastantes à revogação da prisão porque durante todo esse período mencionado os estrangeiros estavam aguardando a decisão de reconhecimento da qualidade de refugiados, ou seja, não havia razão para que evadissem do território nacional. Afora, com a decisão do DD. Ministro de Estado da Justiça, inexiste possibilidade da permanência dos mesmos em nosso país. Ademais, os alienígenas não possuem familiares ou residência que os acolham nesta cidade. Assim, INDEFIRO o pedido de revogação e mantenho o decreto prisional para garantir a efetividade do processo de deportação”. Com efeito, a questão a ser enfrentada é verificar a presença da necessidade do encarceramento dos pacientes, uma vez que não se trata de imposição legal, mas apenas faculdade do juízo frente à situação do caso concreto. No presente caso, a douta autoridade impetrada apenas referiu ser devida a prisão “para a efetividade do processo de deportação”. Ocorre que, a meu ver, com a vênia devida, isto, por si só, não basta para a decretação da custódia, sendo necessário indícios concretos e objetivos de que os estrangeiros irão evadir-se caso postos em liberdade. Afirmou o juiz monocrático que “nenhuma garantia tem o Juízo de que os réus permanecerão voluntariamente aguardando o término do processo de deportação”; entretanto, também não existem elementos que levem a acreditar que não aguardarão. Dessa forma, e tendo em vista que houve a noticiada boa integração dos pacientes com a comunidade, 324 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 deve prevalecer o status libertatis, uma vez que não restou evidenciada a necessidade da custódia. Entretanto, o artigo 72 antes transcrito impõe que os pacientes fiquem em liberdade vigiada, guardando as normas de condutas que lhe forem estabelecidas, o que se observará até a conclusão do processo de deportação, que, no presente momento, conforme ofício expedido em 06 de abril do corrente pelo Delegado da Polícia Federal de Rio Grande, “encontra-se pendente diligência junto a seguradora responsável pela aquisição das passagens no sentido de se obter o respectivo itinerário concernente a viagem a ser realizada (...) estima-se que tal procedimento demandará cerca de 30 (trinta) dias para ser concluído”. (fl. 20) Como os estrangeiros encontram-se no albergue da Penitenciária Estadual de Rio Grande (fl. 19), aí devem permanecer até que a autoridade impetrada especifique as normas de conduta que deverão ser cumpridas no período de liberdade vigiada. A eventual violação importará na revogação do benefício. Isto posto, voto no sentido de conceder a ordem de habeas corpus, nos termos da fundamentação. QUESTÃO DE ORDEM NO HC Nº 2004.04.01.022247-3/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado Impetrantes: Asdrubal Nascimento Lima Junior e outros Impetrado: Juízo Federal da 1ª Vara Federal de Santa Maria/RS Paciente: V. J. D. S. EMENTA Questão de ordem. Habeas corpus. Crime de formação de cartel. Postos de combustíveis. Lei nº 8.137/90. Lesão a interesse regional. 325 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Competência da Justiça Estadual. 1 - Se a suposta prática de crime de formação de cartel atinge interesse de consumidores de pequena região do Estado-membro, não há se falar em competência da Justiça Federal para processar a ação penal. 2 - O simples fato de existir eventual ofensa a órgão ou instituição que preserva coletivamente os interesses da sociedade, como no caso do CADE, ocorrendo violação da ordem econômica geral e as conseqüentes relações de consumo, não induz a competência da Justiça Federal. 3 - Questão de ordem acolhida para remeter os autos para a Justiça Estadual. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, vencido o Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, acolher a questão de ordem para reconhecer a incompetência da Justiça Federal para a ação penal nº 2004.71.02.002647-8, declarando nulos os atos praticados nesse âmbito, determinando a remessa dos autos à Justiça Estadual de Santa Maria, prejudicada a análise do presente habeas corpus,nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte do presente julgado. Porto Alegre, 9 de junho de 2004. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Trata-se de habeas corpus, com pedido de provimento liminar, objetivando o trancamento de ação penal proposta contra V. J. D. S. e outras dez pessoas, pela prática, em tese, dos delitos previstos nos artigos 4º, inciso II, alínea a, da Lei nº 8.137/90 (Cartel) e 288 do Código Penal. Os impetrantes sustentam que, com base em notícias publicadas em jornal local de Santa Maria/RS, sem as devidas provas de que os postos de combustíveis estariam praticando preços semelhantes, o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia pela prática de cartel perante a Comarca daquele município, que declinou da competência para a Justiça Federal. Ratificada a acusação pela Procuradoria da República, fazendo 326 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 incluir o tipo penal previsto no artigo 288 do CP, a inicial foi recebida pela autoridade impetrada. Aduzem que o paciente está sofrendo coação ilegal em razão: 1) da ausência de fundamentação do despacho que recebeu a denúncia; 2) da inexistência de condição de procedibilidade, pois “muito antes que se promova ação penal para julgamento do suposto crime de Cartel, deveria ter ocorrido o procedimento administrativo junto ao CADE porque é o órgão judicante competente para apreciação de questões dessa natureza”, conforme “disposições da Lei nº 8.884/94, notadamente com as modificações da Lei nº 10.149/00”; 3) da inconstitucionalidade da origem da apuração, já que “a denúncia apoiou-se exclusivamente em investigação desenvolvida pelo próprio Ministério Público, como reconhece em seu preâmbulo, fl. 13, onde afirma que a investigação foi feita pela 2ª Promotoria de Defesa Comunitária”, sendo que o Parquet “não tem competência para investigar ilícitos penais, e utilizar sua própria investigação para lastrear a denúncia”, conforme entendimento do STF; 4) da investigação inconclusa e ausência de justa causa, pois o “inquérito nº 26/02, da 2ª Promotoria de Defesa Comunitária que ensejou a denúncia, não foi concluído, e mesmo após o oferecimento da peça acusatória prossegue em atos de investigação, revelando que não havia na investigação elementos justificadores da ação penal, pois, se compreenderam necessário prosseguir a investigação, é porque não arrecadaram indícios suficientes para lastrear a acusação”, sendo que as pessoas investigadas nem foram ouvidas. Acrescentam que a “precariedade da investigação e a imaturidade da apuração” revelam a carência de justa causa para a ação penal; 5) da atipicidade da conduta, porque a acusação, que “seria de combinação para a fixação de preços”, admite que haviam diferenças praticadas pelos postos. Alegam que “se o tipo penal descreve fixação artificial é porque reconhece que o preço de venda não estará fixado com base na mera aplicação da margem de negócio ao preço de custo, mas na fixação artificial de preço que, majorado pela combinação entre comerciantes de valores que afrontem as relações de consumo, impingindo prejuízo ao consumidor que estaria pagando preço que segundo as leis naturais e econômicas deveria ser bem inferior”, acrescentando que “se o preço R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 327 fixado (...) decorreu da simples aplicação da margem do negócio ao valor de custo, seu resultado foi natural e não artificial, sendo evidentemente atípica a conduta”. Requerem, liminarmente, a suspensão dos atos processuais em relação ao paciente, especialmente do interrogatório marcado para o dia 16 de junho do corrente. Com base no artigo 37, inciso IV, do RITRF da 4ª Região, submete-se a presente questão de ordem à Turma para apreciar o pedido formulado. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Luiz Fernando Wowk Penteado: Antes de apreciar as alegações dos impetrantes, merece ser examinada a questão referente à competência da Justiça Federal para julgar a presente ação. Conforme já referido, a denúncia aponta para a prática do crime de cartel por postos de combustíveis na cidade de Santa Maria, no Estado do Rio Grande do Sul, definida na Lei nº 8.137/90 conforme segue: “Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: (...) II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;” Ofertada a denúncia perante a Justiça Estadual, houve declinação da competência para a Justiça Federal pelas razões que seguem (fls. 432433): “É que a Lei 8.884/94 (antitruste), que dispôs sobre as infrações da ordem econômica, atribui ao CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que possui status de autarquia federal, a competência para o julgamento de condutas que afrontem, entre outras, a limitação da livre concorrência ou da livre iniciativa (art. 20, I), a fixação de preços ou condições de venda de bens ou prestação de serviços (art. 21, I), a adoção de conduta comercial uniforme (art. 212, II). Então, a conduta criminal atribuída aos ora acusados também caracteriza infração administrativa, cabendo ao CADE sua apuração, com o que se evidencia seu interesse na causa. É bom deixar claro, para que não paire nenhuma dúvida, que o CADE ‘só pode exigir o cumprimento da sanção através do Poder Judiciário’ (Alberto Silva Franco Leis Penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo. RT, 2000, p. 67), bem como que ‘a execução das decisões do CADE será promovida na Justiça Federal 328 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 ...’ (art. 64 da Lei 8.884/94). Conclui-se do exposto que, embora a Lei 8.137/90 não determine a competência da Justiça Federal (inciso VI, do artigo 109), a conduta imputada aos acusados afeta os ‘serviços ou interesses da União ou suas entidades autárquicas’ (CADE), nos termos do inciso IV, do artigo 109, da Constituição Federal. Não se pode esquecer, ademais, que estamos diante, em tese, da prática de ‘Cartel’ na venda de combustíveis, cujo refino é monopólio da União. Nesse ponto, destaco a Lei 9.478/97, em seu artigo 7º, criou a Agência Nacional do Petróleo - Fica instituída a Agência Nacional do Petróleo, entidade integrante da Administração Federal indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do petróleo, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. A mencionada autarquia federal tem entre suas competências: Além das atribuições que lhe são conferidas no artigo anterior, caberá à ANP exercer, a partir de sua implantação, as atribuições do Departamento Nacional de Combustíveis - DNC relacionadas com as atividades de distribuição e revenda de derivados de petróleo e álcool, observado o disposto no art. 78 (artigo 9º) (destaquei)” - grifos do original Em que pesem as razões apresentadas pelo Juízo Estadual, não há como acolher o entendimento exposto. A Lei nº 8.884/94, que criou o CADE, em momento algum fixou a competência da Justiça Federal para julgamento dos casos em que há violação dos seus preceitos. Contudo, se esse órgão se fizer presente em lide judicial, tendo a referida lei lhe atribuído o status de autarquia federal, obviamente é perante a Justiça Federal que deverá demandar ou ser demandado, nos termos do artigo 109, inciso I, da Constituição Federal. Entretanto, em se tratando de ação criminal, a questão resume-se a perquirir acerca da existência de lesão praticada contra bens, serviços ou interesses da União ou das suas entidades autárquicas ou empresas públicas. (artigo 109, inciso IV, da CF) Como antes mencionado, a imputação constante na denúncia é da prática de cartel por postos de combustíveis, num total de onze, na cidade de Santa Maria. Com efeito, não se evidencia que esta conduta, verificada no município, atingindo os consumidores da circunscrita região, cause prejuízo em detrimento da União. Acerca da questão são os julgados do colendo Superior Tribunal de Justiça: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAL E ESTADUAL. PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. LEI 8.137/90. ART. 109, I, CF. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA AFASTADA. INTERESSES COLETIVOS DE CONSUMIDORES. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 329 COMPETÊNCIA ESTADUAL. Possíveis crimes praticados contra a ordem econômica, no caso o estipulado pela Lei nº 8.137/90 deve ser processado pelo juízo estadual, considerando o disposto no art. 109, I, da CF e não havendo qualquer determinação no sentido de se deslocar a competência para o juízo federal. Precedentes análogos. Conflito conhecido, declarando-se a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal de Apucarana/PR.” – grifado (CC nº 40.165/PR, 3ª Seção, Rel. Min. José Arnaldo, DJU, ed. 02.02.2004, p. 269) “HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA. CARTELIZAÇÃO. LEI Nº 8.137/90. COMPETÊNCIA. INTERESSE NACIONAL. RESTRIÇÃO À ATIVIDADE PROFISSIONAL EM VÁRIOS ESTADOS. JUSTIÇA FEDERAL. Inexistindo determinação expressa, os crimes contra a ordem econômica, previstos na Lei 8.137/90, reclamam a jurisdição estadual ou federal na medida em que restar comprovado o interesse em jogo, se local ou se nacional. In casu, ante a figura do crime sobrevindo da prática de cartel, onde a atuação do agente teve reflexo em vários estados-membros, restringindo o livre exercício da atividade profissional de transportadores pelo Brasil afora, resta patente o interesse supra-regional pelo qual se firmam a necessidade de interferência da União e competência da Justiça Federal. Tal se dá porque, apesar de a conduta ilícita ser oriunda de um núcleo determinado, a sua propensão ofensiva à ordem econômica se faz sentir em localidades diversas e em territórios distintos.” – grifado (HC nº 32.292, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU, ed. 03.05.2004) Do julgamento daquele Conflito de Competência, extrai-se do voto do eminente relator: 330 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 DIREITO PREVIDENCIÁRIO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 331 332 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 EMBARGOS INFRINGENTES EM AC Nº 1998.04.01.067435-7/RS Relator: O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva Relator p/acórdão: O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Embargante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogado: Dr. Milton Drumond Carvalho Embargada: Eronita da Cunha Flores Advogados: Drs. Jayro Jose Fonseca Dornelles e outro EMENTA Previdenciário. Aposentadoria urbana por idade. Perda da condição de segurado. Carência. Art. 24, parágrafo único, da Lei 8.213/91. Inaplicabilidade. Lei 10.666/03. Jus novum. Incidência imediata. Precedentes. Marco inicial: benefício e juros moratórios. Hipótese excepcional. Em face dos artigos 3º, § 1º, da Lei 10.666/03 e 462 do CPC, revela-se incabível a exigência contida no artigo 24, parágrafo único, da Lei 8.213/91, cobrando relevo a hermenêutica que emana do colendo STJ, no sentido da aplicabilidade imediata (e não retroativa) da norma previdenciária mais benéfica. Termos iniciais do benefício e dos juros moratórios que vão, excepcionalmente, assentados a partir da vigência do diploma superveniente e não da DER e da citação. ACÓRDÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 333 Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, dar parcial provimento aos embargos infringentes, nos termos do voto do Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus e notas taquigráficas, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 13 de maio de 2004. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, Relator p/acórdão. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva: Trata-se de embargos infringentes interpostos pelo INSS contra acórdão da Egrégia 6ª Turma deste Tribunal que decidiu, por maioria, que o direito ao benefício, nos termos do art. 98 da CLPS e do art. 102 da Lei nº 8.213/91, é incorporado definitivamente ao patrimônio do segurado, se todos os requisitos legais para a concessão foram preenchidos antes da perda dessa qualidade e a documental apresentada constitui início razoável de prova material, evidenciando a efetiva prestação laboral da autora. A Turma entendeu também que a legislação previdenciária não obriga o empregado rural a contribuir de forma direta aos cofres da Previdência, logo não pode dele ser exigido o período de carência previsto no art. 142. O embargante fundamenta o recurso no voto vencido do Relator, eminente Juiz Sebastião Ogê Muniz, segundo o qual, o tempo de contribuição da autora não restou suficientemente comprovado, porque a embargada extraiu sua CTPS em 23.05.95, na qual constam anotações do período entre 11/84 e 01/91, e a alegação de que perdeu sua CTPS anterior conforme comunicado à Polícia Civil (fl. 18), por si só, não prova a existência de relação de trabalho. O voto vencido também alavancou suas conclusões na apresentação de recibos pela embargada (fls. 11/17) de pagamentos feitos por seu alegado empregador, que afirmou em depoimento que não fornecia recibos de pagamento à autora, o que indica que os recibos não são contemporâneos. Além disso, o voto vencido entendeu que, mesmo que se considerasse que, entre 1984 e 1990, a autora tenha trabalhado pelo regime celetista, o fato é que ela perdeu a qualidade de segurada, só vindo a recuperá-la em 03/93, sendo necessário que ela completasse, pelo menos, 1/3 de 78 contribuições para ter o direito à aposentadoria em 1995, mas atingiu 334 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 somente 23 contribuições. A embargada apresentou impugnação. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Juiz Federal Fernando Quadros da Silva: 1 – O fato de ter sido confeccionada a nova CTPS somente em 23.05.95, “pouco mais de um mês antes da autora requerer o benefício”, não deslustra a prova contida em tal documento. Se pretendia comprovar a sua qualidade de segurada como empregada rural, a emissão de nova CTPS, na qual colheu a assinatura do seu ex-empregador, é meio lícito e válido, por ter perdido a CTPS anterior conforme comunicado à Polícia Civil (fl. 18). Não tivesse ela providenciado o novo documento, a Autarquia Previdenciária alegaria que a prova era rarefeita como argumento para denegar o benefício pretendido. Além disso, o antigo empregador não se negou a assinar a nova CTPS com as anotações do tempo de serviço prestado pela embargada, no período de 10.11.84 a 10.01.91. Os recibos passados pela embargada pelo recebimento do salário mensal também comprovam a relação empregatícia e, no depoimento que prestou em audiência, afirmou que assinava a carteira de trabalho da segurada, somente não recordando a época em que ela parou de trabalhar para o declarante, em serviços gerais na agricultura, cozinhando e cuidando da criação de animais. A assinatura em CTPS no período abrangido pelos recibos emitidos pela segurada constitui início razoável de prova material, corroborada pela prova testemunhal do próprio empregador que afirmou que ela foi sua empregada por largo período, tendo assinado a CTPS dentro do período abrangido pelos recibos de pagamento emitidos em seu favor pela empregada. Assim, tenho que o tempo de contribuição da segurada restou suficientemente comprovado. Quanto ao aspecto da contemporaneidade dos recibos emitidos, o empregador não negou sua emissão, e o INSS não alegou qualquer vício ou irregularidade formal na sua confecção e, no ponto, acompanho o entendimento do eminente Desembargador Luiz Carlos de Castro Lugon, que asseverou, com propriedade: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 335 “Ao Juiz descabe ampliar a área de contenciosidade. Em segunda instância, decidir com base em matéria alheia malfere princípios comezinhos de Direito Processual Civil: suprime-se uma instância e furta-se a oportunidade de defesa da parte prejudicada pela inovação”. Comprovado, assim, o labor exercido pela autora, no período de 10.11.84 a 10.01.91, passa-se à análise da carência. 2 – No caso dos autos, a autora perdeu a qualidade de segurada a partir de fevereiro/92 e readquiriu essa condição a partir de março/93 por ter contribuído como autônoma (contribuinte individual) de 03/93 a 01/95, conforme a dicção legal: “Art. 142. Para o segurado inscrito na Previdência Social Urbana até 24 de julho de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência Social Rural, a carência das aposentadorias por idade, por tempo de serviço e especial obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou todas as condições necessárias à obtenção do benefício: (...)”. Destarte, evidencia-se a legalidade da aplicação do art. 142 da Lei 8.213/91, não por força da interpretação que estende essa regra àqueles que, na data de 24 de julho de 1991, não mais mantinham a condição de segurado, embora inscritos no sistema em período anterior, mas sim em face da sua literalidade. Mas não se pode perder de vista que a autora era empregada rural, abrangida pelo Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – PRORURAL, instituído pela Lei Complementar nº 11, de 25.05.71, até a unificação da cobertura dos benefícios da Previdência Social pela Lei nº 8.213/91, que assegurou a transição através de tabela de carência prevista no seu art. 142. O art. 14 da LC nº 11/71 tem o seguinte enunciado: “Art. 14. O ingresso do trabalhador rural e dependentes, abrangidos por esta Lei Complementar no regime de qualquer entidade de previdência social não lhes acarretará a perda do direito às prestações do Programa de Assistência, enquanto não decorrer o período de carência a que se condicionar a concessão dos benefícios pelo nôvo regime.” Como visto, o art. 14 da LC nº 11/71 assegura a continuidade da cobertura dos benefícios do FUNRURAL até que decorra o período de carência do benefício postulado pelo novo regime. Não concordo com a tese de que o FUNRURAL não previa carência para a concessão dos benefícios concedidos sob sua égide. A leitura que faço do art. 27 da 336 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 norma em comento é de que o cumprimento do período de carência é exigido, ressalvados os direitos daqueles que contribuíram para o INPS através do ordenamento jurídico anterior, como se vê: “Art. 27. Fica extinto o Plano Básico da Previdência Social, instituído pelo Decreto-Lei nº 564, de 1º de maio de 1969, e alterado pelo Decreto-Lei nº 704, de 14 de julho de 1969, ressalvados os direitos daqueles que, contribuindo para o INPS pelo referido Plano, cumpram período de carência até 30 de junho de 1971. § 1º As contribuições para o Plano Básico daqueles que tiverem direito assegurado, na forma dêste artigo, serão recolhidas somente em correspondência ao período a encerrar-se em 30 de junho de 1971, cessando o direito de habilitação aos benefícios em 30 de junho de 1972. § 2º Caberá a devolução das contribuições descontadas, já recolhidas ou não, àqueles que, havendo começado a contribuir tardiamente, não puderem cumprir o período de carência até 30 de junho de 1971. § 3º As emprêsas abrangidas pelo Plano Básico são incluídas como contribuintes do Programa de Assistência ora instituído, participando do seu custeio na forma do disposto no item I do art. 15, e dispensadas, em conseqüência, da contribuição relativa ao referido Plano, ressalvado o disposto no § 1º.” Por sua vez, o art. 55 da Lei nº 8.213/91 estabelece que o tempo de serviço do trabalhador rural, anterior à data de início de vigência desta lei e da perda da qualidade de segurado, será computado, independentemente do recolhimento de contribuições, exceto para efeito de carência. Com isso, ficou estabelecido que somente será considerado o tempo de serviço anterior à vigência da nova norma e da perda da qualidade de segurado, se cumprida a carência instituída pelo art. 142. O art. 55 tem a seguinte inteligência: “Art. 55. O tempo de serviço será comprovado na forma estabelecida no Regulamento, compreendendo, além do correspondente às atividades de qualquer das categorias de segurados de que trata o art. 11 desta Lei, mesmo que anterior à perda da qualidade de segurado: (...) V – o tempo de contribuição efetuado por segurado depois de ter deixado de exercer a atividade remunerada que o enquadrava no art. 11 desta Lei; (...) § 2º O tempo de serviço do Segurado trabalhador rural, anterior à data de início de vigência desta Lei, será computado independentemente do recolhimento das contribuições a ele correspondente, exceto para efeito de carência, conforme dispuser o Regulamento.” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 337 Estabelecido que a segurada rural também estava sujeita à carência para a concessão dos benefícios estendidos pelo FUNRURAL, submete-se ela à carência exigida pela Lei nº 8.213/91. O benefício da autora foi denegado pelo INSS por falta de carência, por não ter considerado o período de trabalho de 10.11.84 a 10.01.91. Como a aposentadoria por idade foi requerida em 1995, seria necessária uma carência de 78 contribuições. No período acima, em que trabalhou como empregada rural, a autora contou com 74 meses, não completando a carência necessária. Assim posta a questão, é de se entender que à autora deve ser aplicada a regra de transição, exigindo-se-lhe o cumprimento na nova filiação de 1/3 da carência do benefício, o que permite o aproveitamento das contribuições vertidas anteriormente à perda da qualidade de segurada, nos termos do art. 24, parágrafo único, da Lei 8.213/91. Observe-se que em 01.01.95, quando a autora implementou o requisito etário (60 anos), a carência exigida para o benefício era de 78 contribuições. Como a autora perdeu a qualidade de segurada, somente vindo a recuperá-la em 03/93, seria necessário que ela completasse pelo menos 1/3 de 78 contribuições. No caso examinado, a autora recolheu 23 contribuições na nova filiação, quando seriam necessárias 26 para ter o direito de unificar as novas com as antigas contribuições. Com isso, não adimpliu a carência exigida para o benefício de aposentadoria por idade, nos termos do art. 142 da Lei 8.213/91. 3 - Face ao exposto, dou provimento aos embargos infringentes. VOTO-VISTA O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Pedi vista dos autos para melhor examinar a tese brandida pelo Juiz Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, que, discordando do Relator, afastou o parágrafo único do art. 24 da LB (“Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.”), preceito cuja incidência rendeu ensejo a estes infringentes. 338 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 As duas respeitáveis posições podem assim ser sintetizadas: “Observe-se que em 01.01.95, quando a autora implementou o requisito etário (60 anos), a carência exigida para o benefício era de 78 contribuições. Como a autora perdeu a qualidade de segurada, somente vindo a recuperá-la em 03/93, seria necessário que ela completasse pelo menos 1/3 de 78 contribuições. No caso examinado, a autora recolheu 23 contribuições na nova filiação, quando seriam necessárias 26 para ter o direito de unificar as novas com as antigas contribuições. Com isso, não adimpliu a carência exigida para o benefício de aposentadoria por idade, nos termos do art. 142 da Lei 8.213/91.” (fl. 102) “A conclusão é que deixou de ter qualquer relevância a regra do artigo 24, parágrafo único, da Lei nº 8.213/91 para a aposentadoria urbana por idade. Basta apenas o implemento do requisito etário e o cumprimento da carência, ainda que para isso haja necessidade de somar contribuições interpoladas. Regulando o parágrafo único do artigo 24 da Lei 8.213/91 situação ligada à perda da qualidade de segurado, não tem ele aplicação aos casos de aposentadoria por idade pois a concessão do benefício depende de base meramente atuarial: recolhimento do número mínimo de contribuições (desde que completada a idade obviamente).” (fl. 108) Pedindo vênia à relatoria, tenho que, em face dos arts. 3º, § 1º, da Lei 10.666/03 e 462 do CPC, revela-se sem cabimento ao desfecho do caso em liça o dispositivo questionado, porquanto ainda que seja a ele posterior, cobra relevo a hermenêutica que emana do colendo STJ, no sentido da aplicabilidade imediata (e não retroatividade) da norma previdenciária mais benéfica. Com efeito, estimo que a novel disposição, atenta à alteração da forma de cálculo dos benefícios introduzida pela Lei 9.786/99, consoante destaca o excerto da sua exposição de motivos reproduzido no voto divergente, há de ser tomada como mais uma medida, entre tantas que ao longo do tempo foram adotadas, voltada a abrandar os requisitos para a jubilação etária, de modo a garantir ao segurado nesta condição, a fruição com dignidade de sua velhice, dispensando-o do comparecimento ao posto de trabalho. Portanto, compreendo não haver vinculação ao precedente desta Seção na matéria, aprovado por voto de desempate na assentada de 12.02.2003, ora superado pelo direito superveniente, assim então ementado: “PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES. APOSENTADORIA POR IDADE. TRABALHADOR URBANO. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO, NO REGIME ANTERIOR, ANTES DO IMPLEMENTO DA CARÊNCIA. IMPOSR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 339 SIBILIDADE DE CONCESSÃO. Nos termos do parágrafo único do art. 24 da LBPS, se houve perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições. Na hipótese, não houve recolhimento de contribuições no regime atual, ocorrendo a perda da qualidade de segurado na vigência da lei anterior que, em caso de reingresso, previa novo cumprimento dos prazos de carência.” (EIAC 2001.71.01.000287-7, Rel. p/acórdão Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 12.03.2003) Por outro lado, apenas faço ressalva à pertinência da fundamentação trazida pela dissidência, no sentido de que o edito ostente nítido caráter interpretativo, haja vista que, no caso em apreço, a embargada detinha a qualidade de segurada por ocasião da DER, de modo que me parece não ser necessário, eis que refoge ao tema em debate, avançar-se na discussão sobre ter a lei em causa (art. 3º, caput) alçado aquele elemento à categoria de requisito do benefício, cujo atendimento ao lado dos demais (idade e carência) poderia se dar de maneira não simultânea, é dizer, em momentos distintos ao do requerimento administrativo. Quanto àquela idêntica qualificação sobre a discutida dispensa do recolhimento, ao menos, de uma terça parte das exações após o reingresso, o indigitado parágrafo primeiro, a meu sentir, configura jus novum e não diploma dirigido a espancar obscuridades e ambigüidades (STF, RE 120.446-0/PB, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 13.12.96), consabido que atualmente a orientação no âmbito do STJ e deste Tribunal preconiza o cumprimento da exigência: “PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. NORMA TRANSITÓRIA. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO. CONTRIBUIÇÕES ANTERIORES. CÔMPUTO. REGRA. (...) A legislação previdenciária fixou regra acerca do aproveitamento das contribuições anteriores em caso de perda da qualidade de segurado, exigindo que o beneficiário contribua com, no mínimo, 1/3 do número de contribuições necessárias para o cumprimento da carência do benefício a ser requerido para que se possa computar as contribuições efetuadas em filiação anterior. (...)” (AgRg no REsp 512.592, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, DJU 22.09.2003) Tenho, portanto, que a embargada faz jus ao acolhimento, em parte, da sua pretensão, ou seja, a aposentadoria por idade com DIB em 09.05.2003. 340 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 (publicação da Lei 10.666 no Diário Oficial da União) Finalmente, por força do efeito translativo dos embargos, entendo que, por se tratar de dívida de valor, a contar daquela data incidirão juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês (STJ, EREsp 230.222/CE, 3ª Seção, Rel. Min. Félix Fischer, DJU 16.10.2000). Explicito que a correção monetária observará a variação do IGP-DI (art. 10 da Lei 9.711/98) e que por “valor da condenação”, base de cálculo dos honorários arbitrados, compreendem-se apenas as parcelas devidas até aquele julgamento. Nessas condições, aderindo, mas em menor extensão, à divergência, dou provimento parcial aos embargos infringentes. É o voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 1999.70.09.003682-5/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Angela Maria de Barros Gregório Apelada: Eloina de Lourdes Carneiro d’Amico Advogados: Dr. Silmar Ferreira Ditrich Dra. Claudia Aparecida Colla EMENTA Previdenciário. Concessão de aposentadoria por idade urbana. Inscrição ocorrida até 24 de julho de 1991. Carência reduzida. Segurado obrigatório. Responsabilidade. Contribuições previdenciárias. Consectários. Omissão no julgado. Honorários advocatícios. Custas processuais. 1. Preenchidos os requisitos do art. 48 da Lei 8.213/91, ainda que não implementados simultaneamente, é devido o benefício da aposentadoria por idade. 2. Sendo a autora filiada obrigatória da Previdência Social, à R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 341 empresa cabem as obrigações em relação aos encargos sociais de seus empregados, não podendo a demandante sofrer qualquer prejuízo em virtude de qualquer omissão da empresa. 3. A correção monetária e os juros de mora são considerados implícitos no pedido, uma vez que decorrentes de lei, razão pela qual o Tribunal pode suprir a omissão da sentença nesse ponto, sem que se configure reformatio in pejus. 4. A condenação no quantum da verba honorária fixada na sentença deve ser mantida quando sua adequação ao entendimento desta Corte implicar reformatio in pejus. 5. O INSS está isento de custas quando demandado na Justiça Federal. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso e dar parcial provimento à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de junho de 2004. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de apelação interposta da sentença que, antecipando os efeitos da tutela, julgou procedente o pedido para declarar a inexistência de relação jurídica entre a autora e o INSS relativamente às contribuições previdenciárias do período entre 02/85 e 11/89, condenando o Instituto Previdenciário a: a) conceder à parte autora o benefício de aposentadoria por idade, computando-se o período supracitado; b) arcar com o pagamento dos honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor da causa; c) pagar as custas processuais. Interposto Agravo de Instrumento pelo INSS contra o provimento antecipatório deferido no julgado, foi dado provimento ao mesmo. (AI nº 2000.04.01.117775-5, DJU de 10.10.2001, Relator Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, 6ª Turma) A Autarquia Previdenciária apela, postulando a reforma da sentença, 342 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 argüindo, preliminarmente, litispendência com o Mandado de Segurança nº 97.0016743-7 impetrado perante a Vara Previdenciária de Curitiba, no qual se discutia a legalidade da cobrança das contribuições previdenciárias pela autora, nos termos da Lei 9.032/95. No mérito, sustenta que a autora é responsável pelo recolhimento das contribuições nos termos do art. 135 do CTN. Argumenta que, tendo o recolhimento natureza de indenização, o fato gerador da exação é fixado pelo pedido da contagem de tempo, descaracterizando qualquer alegação de retroação da lei. Por fim, alega que, tendo a demandante decaído em um de seus pedidos, deve ser aplicado o art. 21 do CPC no que diz respeito à sucumbência. Apresentadas contra-razões aos recursos, subiram os autos a este Tribunal. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição, pois proferida quando em vigor a disciplina contida na MP nº 1.561-1, de 17 de janeiro de 1997, convertida na Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, a qual estendeu às Autarquias a aplicação do disposto no art. 475, caput, e inciso II, do CPC. Inicialmente, deve ser afastada a preliminar de litispendência argüida pelo INSS, porquanto, para a sua caracterização, torna-se imprescindível a identidade entre as partes, a causa de pedir e do pedido. Destarte, sendo diversos os pedidos, não há se falar que a presente ação ordinária, onde se visa à declaração da inexistência de relação jurídica entre a autora e o INSS em relação às contribuições previdenciárias no período de 02/85 a 11/89, é repetição do Mandado de Segurança impetrado contra ato de autoridade que indeferiu a aposentadoria por idade à autora em face de não ter sido comprovado o recolhimento correto das contribuições previdenciárias no referido período. Assim, a controvérsia a ser dirimida nos presentes autos diz respeito à obrigação de a empresa na qual laborou a autora, na condição de sócia-gerente, recolher as contribuições previdenciárias no interregno supracitado. Alega o INSS que a responsabilidade pelo pagamento em questão é R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 343 da autora, uma vez que ela era sócia-gerente da empresa Confecções e Representações Françoise Ltda. Razão não assiste ao Instituto Previdenciário, porquanto, sendo a autora filiada obrigatória da Previdência Social, à empresa cabem as obrigações em relação aos encargos sociais de seus empregados, não podendo a demandante sofrer qualquer prejuízo em virtude de qualquer omissão da empresa. A omissão no recolhimento das contribuições da autora pela empresa em que trabalhava não produz qualquer efeito na relação do benefício mantida pela Autarquia Previdenciária com a autora. Essa omissão deve ser resolvida pelo INSS no plano da relação de custeio, através da fiscalização previdenciária, sem produzir qualquer prejuízo na relação de benefício mantida com a autora. A adoção de entendimento diverso levaria à absurda situação de redirecionamento de uma execução contra o sócio sem que o interessado - o INSS - tomasse qualquer providência no sentido de mover uma ação própria de cobrança desses valores - execução fiscal - do verdadeiro devedor - a empresa. Ademais, ainda que ele o fizesse a matéria refoge à competência previdenciária. Oportuno, ainda, transcrever os seguintes trechos da bem-lançada sentença (fls. 95/98); “De início, para que a discussão não resulte estéril, tenho que algumas questões devem ser postas de lado, por não se tratar de objeto da presente ação. É que a própria autora ressalta que a aplicação da Lei nº 9.032/95, no cálculo da contribuição devida, já foi motivo de discussão em mandado de segurança impetrado junto à Vara Previdenciária de Curitiba (autos nº 97.0016743-7), de modo que a única questão a ser posta em debate é aquela que se refere à própria obrigatoriedade da autora em providenciar a prova de seu recolhimento. Nesse particular, o INSS não recusa a tese de que, efetivamente, trata-se de débito da empresa. No entanto, dada à condição de sócia-gerente, diz que a autora tem a responsabilidade legal (art. 135 do Código Tributário Nacional) pelo seu recolhimento, tendo em vista a sua condição de responsável tributário, em decorrência de atos de sua administração. De fato, a Lei nº 3.807/60 dispunha que: ‘Art. 5º - São obrigatoriamente segurados, ressalvado o disposto no art. 3º: (...) III - os titulares de firma individual e diretores, sócios gerentes, sócios solidários, sócios quotistas, sócios de indústria, de qualquer empresa, cuja idade máxima seja no ato da inscrição de 50 (cinqüenta) anos; 344 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Por sua vez, o Decreto nº 83.081/79, em seu art. 54, I, a, impôs à empresa o dever de ‘descontar, no ato do pagamento da remuneração do (...) diretor e sócio, as contribuições e outras importâncias por eles devidas à previdência social’, para, posteriormente, recolhê-la juntamente com aquelas devidas pela própria empresa (item b). Isto quer dizer que a legislação substituiu a responsabilidade do sócio, repassando-a à própria empresa, tal como ocorre atualmente com o segurado empregado (art. 30, I, a, da Lei nº 8.212/91). E a jurisprudência, à exaustão e com acerto, tem dispensado o segurado da obrigação de comprovar os recolhimentos das contribuições descontadas de seus salários, cujo raciocínio deve ser estendido ao sócio-gerente, relativamente à legislação anterior. Feijó Coimbra, em seu Direito Previdenciário Brasileiro, assevera que ‘para conhecer a quem cabem as obrigações determinadas pela ocorrência da hipótese legal de incidência, e contra quem se formam os créditos de contribuições em favor das instituições de previdência, deve ser apreciado, com atenção, o texto da legislação. Nos casos de contribuições incidentes no pagamento de remuneração ao trabalhador, salvo em certos casos, apura-se que o contribuinte é sempre quem efetua o pagamento da remuneração - a empresa ou empregador. Só ela é compelida ao cumprimento de uma obrigatio dandi, consistente na obrigação da entrega do conteúdo material da prestação - a contribuição’ (ob. cit., Ed. Trabalhistas, 1993, p. 283). Desse modo, o inadimplemento da empresa não pode ser condizente ao indeferimento de benefício previdenciário de segurado a ela vinculado. Neste sentido, já se manifestou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região: ‘PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. COMPROVAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. PROVA DOCUMENTAL IDÔNEA, PROVA DO RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES. 1. Satisfeito o requisito da carência e comprovado o tempo de serviço questionado pelo INSS, por meio de prova documental idônea (certidão da Prefeitura Municipal) o autor faz jus à aposentadoria por tempo de serviço. 2. Uma vez que as atividades exercidas pelo autor, como sócio-gerente de empresa urbana, acarretavam a sua filiação obrigatória à previdência, a contagem do tempo de serviço é assegurada pela legislação previdenciária, não se exigindo a prova do recolhimento das contribuições (AC nº 95.04.62429-4/RS, 6ª Turma, DJ de 21.01.98, p. 535, Rel. Juiz Luiz Carlos Sobrinho).’ Ocorre que o INSS pretende, em vista de sua inércia na exigência das contribuições, em relação à própria empresa, impor à autora o dever de recolhê-las, dada a sua condição de sócia-gerente. Com isso, promove a execução de créditos tributários de terceiros, no próprio balcão de concessão de benefícios. (grifei) É dizer, ao invés de se utilizar dos mecanismos legais para a exigência de todo e qualquer crédito tributário - o executivo fiscal - opta por via mais cômoda, condicionando a concessão do benefício ao pagamento de tributo que não lhe compete. (grifei) Obviamente que, após exigir da empresa as contribuições e, verificando o insucesso R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 345 na cobrança, nada impede que, caracterizada a situação do art. 135 do CTN, redirecione a execução para os responsáveis tributários. Tudo isso, aliás, em conformidade com o disposto no § 3º do art. 4º da Lei nº 6.380/80: § 3º - Os responsáveis, inclusive as pessoas indicadas no § 1º deste artigo, poderão nomear bens livres e desembaraçados do devedor, tantos quantos bastem para pagar a dívida. Os bens dos responsáveis ficarão, porém, sujeitos à execução, se os do devedor forem insuficientes à satisfação da dívida. (grifei) Afinal, ‘ajuizada execução fiscal contra sociedade por quotas de responsabilidade limitada, a penhora deve recair em bens do seu patrimônio; só depois de comprovado que ela não tem bens suficientes para o adimplemento da obrigação pode o processo ser redirecionado contra o sócio-gerente’ (STJ, REsp nº 36.543/SP, Relator Ministro Ari Pargendler, in DJ de 14.10.96, p. 38.979). O que não se pode pretender é, ignorando todas essas condições, impor ao próprio segurado a condição de devedor principal, sem dirigir qualquer pretensão ao autêntico devedor - a empresa. Com isso, fica evidenciado que a autora não é sujeito passivo das contribuições exigidas, mas sim a empresa. Nem cabe, aqui, a discussão acerca de sua condição de responsável, pois o tributo nem mesmo foi exigido do devedor principal. (...)” Veja-se ainda seguinte acórdão assim ementado: “TRIBUTÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. PEDIDO DE APOSENTADORIA. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS EM ATRASO. EXIGÊNCIA COM FUNDAMENTO EM LEI POSTERIOR. CARACTERIZAÇÃO DE MORA ATUAL. OBRIGAÇÃO IMPOSTA AO SEGURADO E NÃO À PESSOA JURÍDICA. DESCABIMENTO DE MULTA E JUROS. INAPLICABILIDADE DO § 4º, ART. 45, DA LEI 8.212/91. 1. Ao condicionar o deferimento de benefício de aposentadoria a recolhimento de parcelas previdenciárias não pagas (período de 18.10.71 a 28.07.98), e aplicar lei posterior a esse interregno para exigi-las (Lei 8.212/91), a autarquia previdenciária optou por conferir contemporaneidade à obrigação reivindicada, não havendo que se falar em multa ou juros em razão de mora, senão na simples atualização monetária. 2. Se, no contexto legal em que se configurou a inadimplência de prestações previdenciárias, a obrigação era dirigida à pessoa jurídica, não há como, posteriormente, com fundamento em novo diploma legal, transmudar-se essa responsabilidade a segurado pessoa física, ainda que à época fosse ele sócio-gerente da empresa devedora (...)”. (REsp nº 531331 - PR (Processo nº 2003/0069040-0), Primeira Turma, DJ de 01.12.2003, Relator Ministro José Delgado) Dessa forma, claro está que a autora tem direito ao cômputo do período entre 02/85 e 12/89, uma vez que a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias de segurados obrigatórios do RGPS é da empresa. 346 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Vencida esta questão, passa-se à análise do pedido de aposentadoria por idade urbana, requerida administrativamente em 28.07.97. (fl. 67) São requisitos desta espécie de benefício a idade mínima de 60 anos para o sexo feminino ou 65 anos para o masculino e a carência exigida na data em que implementado o requisito etário. Conforme se depreende da leitura dos autos, o requisito idade está devidamente cumprido. (fl. 42) Quanto à carência exigida, observa-se que a parte autora esteve inscrita na Previdência Social no período anterior a 24 de julho de 1991, aplicando-se, desse modo, o art. 142 da Lei de Benefícios, com a redação dada pela Lei 9.032/95, em virtude de o requerimento ter sido efetivado em 1997, que assim dispõe: “Art. 142 - Para o segurado inscrito na Previdência Social Urbana até 24 de julho de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência Social Rural, a carência das aposentadorias por idade, por tempo de serviço e especial obedecerá à seguinte tabela, levando-se em conta o ano em que o segurado implementou todas as condições necessárias à obtenção do benefício: (omissis).” (Grifei) Dessa forma, a concessão do benefício está vinculada ao ano em que o segurado alcançou idade mínima, porquanto o mesmo é fator essencial, conformador do direito à aposentadoria por idade rural e, por conseguinte, determinante do período de carência a ser implementado. Assim, completando a demandante 60 anos em 02.01.94 (fl. 42), deve comprovar o exercício de atividade laborativa em período equivalente a 72 meses. Conforme se depreende da leitura do resumo de documentos para cálculo de tempo de serviço acostado na fl. 58, verifica-se que a demandante comprovou vínculo empregatício em períodos intercalados entre 01.08.84 e 30.06.97, demonstrando assim 142 meses de contribuição. Ressalta-se que mesmo que fosse desconsiderado o período em que a autora foi sócia-gerente da empresa Confecções e Representações Françoise Ltda., teria implementado a carência exigida, porquanto o tempo de trabalho apurado sem este interregno, soma 6 anos, 10 meses e 24 dias (83 meses), sendo inequívoco, portanto, o implemento da carência exigida. Desse modo, a sentença concessiva da aposentadoria por idade urbana não merece qualquer reparo. Quanto à data de início do benefício, deve ser esclarecido que, em R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 347 face da documentação juntada quando do ingresso do pedido na esfera administrativa, suficiente a ensejar a concessão do benefício já naquela oportunidade, e, ainda, em vista do que prevê o disposto no art. 49, II, da Lei de Benefícios, deve ser a partir da data de entrada do requerimento. No que pertine à atualização monetária e aos juros de mora incidentes sobre as parcelas atrasadas, deve ser registrado que o silêncio da sentença, ou mesmo da inicial, nesse ponto, não impede que esta Corte, em razão da remessa oficial, inclua os índices de correção monetária e a taxa dos juros aplicáveis ao presente caso na condenação do Instituto Previdenciário, cumprindo salientar que tal fixação não configura reformatio in pejus, como já se manifestou o STJ ao julgar os Recursos Especiais nos 104.107 e 297.695, in verbis, respectivamente: “PROCESSO CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO. REMESSA OFICIAL. INCLUSÃO DE JUROS MORATÓRIOS. ALEGAÇÃO DE REFORMATIO IN PEJUS - CPC, ARTIGOS 293 E 610. SÚMULAS 70/STJ E 254/STF. 1. A inclusão de juros moratórios na apreciação da remessa oficial, considerados implícitos no pedido, decorre de lei e podem ser considerados, inclusive nos cálculos de liquidação, mesmo na hipótese de omissão na inicial ou no título sentencial. Demais, se a inclusão não malfere a coisa julgada, com maior razão viabiliza-se no reexame decorrente de obrigatório duplo grau de jurisdição. Desconfiguração da reformatio in pejus. (...) PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. TRABALHADOR RURAL. APOSENTADORIA POR IDADE. PROVA DA ATIVIDADE RURÍCOLA. INÍCIO RAZOÁVEL DE PROVA DOCUMENTAL. SÚMULA 149/STJ. JUROS MORATÓRIOS. ÉPOCA DE FLUÊNCIA. SÚMULA 204/STJ. (omissis) A incidência dos índices inflacionários expurgados na atualização monetária do débito judicial, ainda que não fixados na sentença de primeiro grau, não consubstancia reformatio in pejus, pois traduz mera recomposição do valor nominal da moeda, em face do fenômeno da inflação, tampouco na hipótese em que o Tribunal, a despeito da inexistência de recurso da parte vencedora, supre a patente omissão existente na sentença, no tocante ao percentual devido a título de juros de mora.(...)” Assim, a correção monetária deve ser calculada pelo IGP-DI à luz da Lei nº 9.711/98, devendo incidir desde o vencimento de cada parcela e os juros de mora, segundo entendimento da Terceira Seção do e. Superior Tribunal Justiça (EREsp nº 207992/CE, DJ de 04.02.2002), ao qual se filia esta Turma, são devidos em 12% ao ano, incidindo, para regular a hipótese, a regra do art. 3º do Decreto-Lei 2.322/87, devidos a contar da 348 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 citação, nos termos da Súmula 03 desta Corte. Quanto aos honorários advocatícios, cujo pagamento deve ser suportado exclusivamente pelo INSS em face da sua sucumbência, conforme entendimento pacificado na Seção Previdenciária deste Tribunal (Embargos Infringentes em AC nº 2000.70.08.000414-5, Relatora Desembargadora Federal Virgínia Scheibe, DJU de 17.05.2002, pp. 478-498) e no Superior Tribunal de Justiça (EREsp nº 202291/SP, 3ª Seção, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJU de 11.09.2000, seção I, p. 220), devem ser fixados, em se tratando de ações previdenciárias, em 10% (dez por cento) sobre o valor das parcelas devidas até a prolação da sentença. Entretanto, tendo a sentença fixado essa verba em 10% sobre o valor da causa, deve ser mantida a condenação porquanto a sua adequação implicaria reformatio in pejus, uma vez que não houve recurso da parte autora nesse aspecto. Finalmente, cumpre esclarecer que o INSS está isento de custas a teor do artigo 8º, parágrafo 1º, da Lei 8.620/93. Frente ao exposto nego provimento ao recurso e dou parcial provimento à remessa oficial, nos termos da fundamentação. É o voto. REMESSA EX OFFICIO EM AC Nº 2002.04.01.008836-0/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu Parte Autora: Ana Maria Gonçalves Marques Advogados: Drs. Maria Sirlei Costa de Franceschi e outro Parte Ré: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Patrícia Helena Bonzanini Remetente: Juízo de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Cachoeira do Sul/RS R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 349 EMENTA Previdenciário. Restabelecimento de pensão. Novo casamento. Piora da condição econômica da pensionista. Manutenção do benefício. Súmula 170/TFR. Termo inicial. Data do ajuizamento. Consectários legais. 1. Não se extingue a pensão previdenciária, se do novo casamento não resulta melhoria na situação econômico-financeira da viúva, de modo a tornar dispensável o benefício. (Súmula nº 170/TFR) 2. Existindo início de prova material, corroborado por prova testemunhal idônea e consistente, quanto à inocorrência de melhoria na situação econômica da autora, a partir de seu segundo casamento, justifica-se o restabelecimento da pensão por morte de seu primeiro esposo. 3. Proposta a presente ação após longo período desde a cessação da quota de pensão paga à autora, bem como do cancelamento total do benefício face à maioridade dos filhos beneficiários, o termo inicial de seu restabelecimento deverá ser a data do ajuizamento da demanda. 4. Correção monetária calculada de acordo com as variações do IGP-DI. (Lei nº 9.711/98) 5. Os honorários advocatícios incidem sobre as parcelas vencidas até a data da prolação da sentença. (EREsp nº 202291/SP, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU, seção I, de 11.09.2000, p. 220) 6. Remessa oficial parcialmente provida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Colenda 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 4 de agosto de 2004. Des. Federal Nylson Paim de Abreu, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Ana Maria Gonçalves Marques ajuizou ação ordinária contra o INSS, em 09.09.99, objetivando o restabelecimento da pensão por morte de seu primeiro esposo, 350 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Miguel Andrade Marques, cancelada pela Autarquia em 20.08.88 face à constatação de seu novo matrimônio, contraído em 20.08.80. Sentenciando, o MM. Juízo a quo julgou procedente o pedido, condenando o INSS a restabelecer o benefício de pensão à parte autora, desde a data da sua cessação, e a pagar-lhe as prestações vencidas - observada a prescrição qüinqüenal - corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais, mais o pagamento das custas processuais por metade e dos honorários advocatícios, estes fixados em 5% sobre o valor da condenação. (fls. 58-59) Decorrido in albis o prazo para interposição de recurso voluntário, vieram os autos a esta Egrégia Corte, por força do reexame necessário. É o relatório. À revisão. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de pensão por morte recebida por cônjuge, ora autora, que foi cessada em 20.08.80, por ter a mesma contraído novas núpcias. À época desse matrimônio, a legislação previdenciária dispunha que, contraindo segundas núpcias, a pensão por morte recebida pelo cônjuge, oriunda do casamento anterior, seria cancelada. (artigo 18, VIII, alínea a, do Decreto nº 83.080/79) Todavia, a esse respeito pertine observar o que dispõe o enunciado nº 170 da Súmula do extinto Tribunal Federal de Recursos, verbis: “Não se extingue a pensão previdenciária, se do novo casamento não resulta melhoria na situação econômico-financeira da viúva, de modo a tornar dispensável o benefício.” Torna-se relevante, então, verificar se o benefício de pensão deixado pelo falecido primeiro marido da autora, Miguel Andrade Marques, passou a ser dispensável a partir de seu novo matrimônio com Sérgio Moacir Pereira de Carvalho, de quem se divorciou em 10.04.94. (fl. 10) Consta dos autos Atestado de Pobreza, fornecido pela Secretaria do Trabalho e Ação Social da Prefeitura de Cachoeira do Sul/RS, declarando que a autora possui baixa renda e integra projeto habitacional desse município. As testemunhas Lenir de Lourdes Cabral (fl. 50), Osla Dihl (fl. 50, verso) e Terezinha Dias de Lara (fl. 51), ouvidas na audiência de instrução 351 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 realizada em 19.06.2001, afirmaram que a demandante é pessoa pobre e que a sua situação financeira piorou com o seu segundo matrimônio. Disseram ainda que, atualmente, a autora mora sozinha e não possui renda, sobrevivendo da venda de doces e bolos, bem como da ajuda recebida da filha mais velha. Com efeito, há nos autos razoável início de prova material, corroborado por prova testemunhal idônea e consistente, quanto à inocorrência de melhoria na situação econômica da autora a partir de seu segundo casamento, ensejando o restabelecimento da pensão por morte de seu primeiro esposo. Assim, mantém-se a sentença que julgou procedente o pedido. Todavia, proposta a presente ação após transcorridos dezenove anos desde a cessação da quota de pensão paga à autora, em 20.08.80 (fl.29), e onze anos desde o cancelamento total do benefício face à maioridade dos filhos beneficiários, a 20.08.88 (fl. 11), o termo inicial de seu restabelecimento, no âmbito da remessa oficial, deverá ser a data do ajuizamento da demanda, em 09.09.99. As parcelas vencidas devem ser atualizadas monetariamente de acordo com os critérios estabelecidos na Lei nº 9.711/98 (IGP-DI), desde a data dos vencimentos de cada uma, em consonância com os enunciados nos 43 e 148 da Súmula do STJ. Quanto aos juros de mora, verifica-se que a sentença não explicitou o seu percentual, o qual fica definido neste ato como sendo de 1% ao mês, a contar da citação, em consonância com o entendimento da Colenda 3ª Seção do STJ expresso nos seguintes termos: “PREVIDENCIÁRIO - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - AÇÃO PREVIDENCIÁRIA - JUROS DE MORA - APLICABILIDADE - PERCENTUAL DE 1% - BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - INCIDÊNCIA DA SÚMULA 204/STJ - INOCORRÊNCIA DE DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. - Conforme jurisprudência firmada nesta Corte, os juros de mora, nas ações previdenciárias devem ser fixados à base de 1% (um por cento), ao mês, contados a partir da citação. Incidência da Súmula 204/STJ. - Precedentes. - Embargos de divergência conhecidos, porém, rejeitados.” (EREsp nº 207992/CE, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU, Seção I, de 04.022002, p.287) Ficam mantidos os honorários advocatícios estipulados no patamar de 5%, à míngua de insurgência a esse respeito, esclarecendo-se, porém, que 352 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 a sua incidência é limitada às prestações devidas até a data da prolação da sentença. (EREsp nº 202291/SP, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU, seção I, de 11.09.2000, p. 220) Por fim, cumpre anotar que a regra do § 2º do artigo 475 do Código de Processo Civil, acrescida pela Lei nº 10.352/01, em vigor desde 27.03.2002, não tem aplicação na espécie, porquanto nesta fase do processo não é possível determinar que o valor da controvérsia recursal seja inferior a sessenta salários mínimos. Em face do exposto, voto no sentido de dar parcial provimento à remessa oficial, nos termos da fundamentação retro. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2004.04.01.008406-4/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu Agravante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco Agravado: José do Nascimento Advogados: Drs. Nelmo José Beck e outros EMENTA Previdenciário. Antecipação da tutela. Auxílio-doença. Restabe lecimento. 1. Faz-se presente a verossimilhança do direito ao restabelecimento do auxílio-doença, se o segurado junta aos autos atestado médico comprovando que está incapacitado para o exercício de atividade laboral em face da mesma moléstia que ensejou a concessão do benefício na via administrativa. 2. O periculum in mora decorre da condição de incapacidade da parte segurada para o exercício de atividade laboratícia remunerada, circunsR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 353 tância geradora de risco de lesão de difícil reparação, porquanto relacionada diretamente com a sua subsistência, a qual, aliás, é o propósito dos proventos pagos pela Previdência Social, os quais têm caráter alimentar. 3. Agravo de instrumento improvido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Colenda 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 4 de agosto de 2004. Des. Federal Nylson Paim de Abreu, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão que deferiu liminarmente a antecipação da tutela requerida na petição inicial de ação previdenciária onde o autor postula o restabelecimento do benefício de auxílio-doença. (fls. 22-23) O agravante sustenta que o autor não está incapacitado para o trabalho, consoante a perícia realizada na via administrativa, sendo inservível o atestado emitido pela médica particular do segurado. Argumenta, ainda, que não é cabível a concessão do benefício indeferido em 1998, se o autor apresentou novo pedido na via administrativa em 2003 e percebeu benefício durante certo lapso de tempo. Por fim, aduz que não há receio de dano irreparável e que existe risco de irreversibilidade da medida. Foi indeferido o pedido de efeito suspensivo. (fls. 44-45) Fluiu in albis o prazo para resposta. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Nylson Paim de Abreu: Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que deferiu liminarmente a antecipação da tutela requerida na petição inicial de ação previdenciária onde o autor postula o restabelecimento do benefício de auxílio-doença. 354 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 O agravante sustenta que o autor não está incapacitado para o trabalho, consoante a perícia realizada na via administrativa, sendo inservível o atestado emitido pela médica particular do segurado. Argumenta, ainda, que não é cabível a concessão do benefício indeferido em 1998, se o autor apresentou novo pedido na via administrativa em 2003 e percebeu benefício durante certo lapso de tempo. Por fim, aduz que não há receio de dano irreparável e que existe risco de irreversibilidade da medida. Conforme se verifica dos termos da decisão agravada, o autor juntou aos autos atestado médico informando que está incapacitado para o trabalho em virtude de moléstia que implica dificuldade para deambular. (fl. 22) Tal incapacidade aparenta provir da mesma causa que ensejou a concessão do benefício em abril de 2003, enquadrada sob CID Z54.0 (fl. 25), correspondendo a convalescença após cirurgia. Destarte, havendo nexo entre a atual inaptidão laboral e a enfermidade anteriormente constatada pela perícia médica do INSS, é possível o acolhimento do atestado médico particular para fins de antecipação da tutela. Faz-se presente, pois, a verossimilhança do direito. O periculum in mora revela-se presente na espécie em face da condição de incapacidade da parte segurada para o exercício de atividade laboratícia remunerada, circunstância geradora de risco de lesão de difícil reparação, porquanto relacionada diretamente com a sua subsistência, a qual, aliás, é o propósito dos proventos pagos pela Previdência Social, os quais têm caráter alimentar. Quanto à irreversibilidade da medida, deve ser destacada a lição de Luiz Guilherme Marinoni: “Admitir que o juiz não pode antecipar a tutela, quando a antecipação é imprescindível para evitar um prejuízo irreversível ao direito do autor, é o mesmo que afirmar que o legislador obrigou o juiz a correr o risco de provocar dano irreversível ao direito que justamente lhe parece mais provável. A tutela sumária funda-se no princípio da probabilidade. Não só lógica mas também o direito à adequada tutela jurisdicional exigem a possibilidade de sacrifício, ainda que de forma irreversível, de um direito que pareça improvável em benefício de outro que pareça provável. Caso contrário, o direito que tem maior probabilidade de ser definitivamente reconhecido poderá ser irreversivelmente lesado.” (A antecipação da tutela na reforma do processo civil. 2. ed. - S. Paulo: Malheiros, 1996, p. 79-80) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 355 Ainda a respeito do tema, oportuno o ensinamento do eminente processualista e ministro do STJ Teori Albino Zavascki: “A vedação contida no § 2º do artigo 273 deve ser relativizada, sob pena de eliminar-se, quase por inteiro, o próprio instituto da antecipação. Sempre que houver um confronto entre o risco de dano irreparável ao direito do autor e o risco de irreversibilidade da medida antecipatória, deverá o Juiz formular a devida ponderação entre os bens jurídicos em confronto, para o que levará em especial consideração a relevância dos fundamentos que a cada um deles dá suporte, fazendo prevalecer a posição com maior chance de vir a ser, ao final do processo a vencedora. Assim, nos casos em que o direito afirmado pelo Autor seja de manifesta verossimilhança e que seja igualmente claro o risco de seu dano iminente, não teria sentido algum sacrificá-lo em nome de uma possível, mas improvável situação de irreversibilidade.” (Antecipação da tutela. S. Paulo: Saraiva, 1997, p. 88) Por fim, no tocante à concessão do benefício indeferido em 1998, 356 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 DIREITO PROCESSUAL CIVIL R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 357 358 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.001989-4/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde Agravante: Município de Joinville/SC Advogado: Dr. Affonso de Aragão Peixoto Fortuna Agravado: Ministério Público Federal Interessada: União Advogado: Dr. Luís Henrique Martins Dos Anjos Interessado: Estado de Santa Catarina EMENTA Administrativo. Processual Civil – Ação civil pública. Tratamento de saúde. Legitimidade passiva do município. Os Municípios têm legitimidade à ocupação do pólo passivo de ação visando assegurar a prestação do adequado atendimento médico-cirúrgico e o custeio do fornecimento e da implantação de próteses e/ou órteses a pacientes que delas necessitem para sua reabilitação profissional e social. Conclusão que deflui do dever de garantir a saúde do cidadão, imposto aos entes públicos em regime de co-gestão pelo artigo 196 da Constituição Federal. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 359 voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 16 de junho de 2004. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: Trata-se de agravo de instrumento interposto de r. decisão (fls. 164 a 167) proferida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal que se processa perante o MM. Juízo da 1ª Vara Federal de Joinville/SC, ao objetivo de assegurar a prestação do adequado atendimento médico-cirúrgico e o custeio do fornecimento e da implantação de próteses e/ou órteses aos pacientes que delas necessitem para sua reabilitação profissional e social. A insurgência é posta contra o deferimento de tutela antecipada que impõe aos demandados, de forma solidária, o fornecimento gratuito, no prazo de 30 (trinta) dias, à Sra. Cecília Elisa da Silva de todo o material necessário para o procedimento cirúrgico de implante de uma prótese de quadril ao qual deve ser submetida, arrolado no documento expedido pelo Responsável pelo Grupo de Cirurgia do Quadril e Joelho do Hospital das Clínicas de Curitiba/PR. Fixa multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por cada dia de atraso, sem prejuízo das medidas cabíveis quanto à improbidade administrativa decorrente desse descumprimento. Co-réu na ação, o Município de Joinville sustenta que inexiste solidariedade, já que as normas do Sistema Único de Saúde – SUS definem o que cabe a cada unidade da Federação. In casu, a exigência imposta extrapola a sua competência, que compreende ações básicas e de baixa complexidade. Por fim, a multa pelo descumprimento da medida é capaz de produzir prejuízo incalculável às finanças públicas. Em exame preambular, indeferi a atribuição de efeito suspensivo ao recurso. (fl. 175) Solicitadas, vieram aos autos as informações do MM. Juízo da causa. (fl. 176) A parte agravada apresentou resposta. (fls. 178 a 183) É o relatório. Sem revisão. 360 VOTO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 O Exmo. Sr. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde: O SUS consiste na integração das três esferas de governo, com competência para as mais variadas ações para o integral atendimento dos pacientes da rede pública de saúde. Os Municípios, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal são responsáveis pela consecução das atividades inerentes ao SUS – tal qual o fornecimento de todo o material necessário para o procedimento cirúrgico de implante de próteses de quadril – indispensáveis à conservação da saúde física e psíquica dos administrados. Em sendo conjunta a competência dos entes da federação, o autor pode escolher qualquer um deles para figurar no pólo passivo, ou ainda, pode litigar mediante a formação de litisconsórcio facultativo, como se dá in casu. A conclusão deflui do dever de garantir a saúde do cidadão, imposto aos entes públicos em regime de co-gestão pelo artigo 196 da Constituição Federal (“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”). A Lei nº 8.080, de 19.09.90, ao dispor sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, também prevê a responsabilidade conjunta das instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público para prestar as ações e serviços de saúde (art. 4º). Quanto à responsabilidade dos Municípios, o mesmo diploma legal estabelece em seu – “Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete: I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde; ... IV - executar serviços: a) de vigilância epidemiológica; b) vigilância sanitária; c) de alimentação e nutrição; d) de saneamento básico; e e) de saúde do trabalhador; V - dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde; ...” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 361 A gerência em sociedade entre a União, Estados e Municípios pelo atendimento gratuito – aí incluído o fornecimento de material à realização do procedimento em tela – a doentes hipossuficientes e portadores de doenças graves ou crônicas é entendimento que tem prevalecido no egrégio Superior Tribunal de Justiça (AGA 246642/RS; Rel. Min. Garcia Vieira, DJU de 16.11.99; REsp nº 195.159-RS, rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU de 11.03.02 e AGA nº 253938-RJ, rel. Min. José Delgado, DJU de 28.02.02), posicionamento que aliás se harmoniza perfeitamente com o que celebra o Pretório Excelso – “... AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - DOENÇA RARA. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.” (RE nº 195192/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 31.03.00, p. 60) Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento. É como voto. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.043270-0/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira Agravante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Mariana Gomes de Castilhos Agravados: José Francisco Pereira e outro Advogados: Drs. Werner Isleb e outros EMENTA Previdenciário. Processual Civil. Incompetência absoluta. Argüição não sujeita à preclusão. Competência para o julgamento da ação ordinária. Aplicação dos princípios da instrumentalidade da forma e do 362 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 processo. Cumulação de pedidos em que a competência para o julgamento é de juízos distintos. Impossibilidade. 1. A incompetência absoluta pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 113 do CPC), não estando sujeita à preclusão. 2. Em observância aos princípios da instrumentalidade da forma e do processo, vencida a questão limite do agravo referente sobre a possibilidade de argüição de competência absoluta em qualquer tempo e grau de jurisdição, a competência para o julgamento da ação ordinária pode ser definida no próprio agravo, se constar dos autos elementos suficientes para tanto. 3. Nos casos de pedido de revisão da renda mensal inicial do benefício, o valor da causa deve refletir somente a diferença entre a renda mensal atual e aquela advinda da majoração do percentual de incidência em seu salário-de-benefício. 4. O § 2º da Lei nº 10.259/2001 é aplicável às demandas que objetivarem, tão-somente, prestações vincendas. 5. Aplica-se o art. 260 do CPC para mensurar o valor da causa quando o pedido abranger parcelas vencidas e vincendas. 6. É impossível a cumulação de pedidos na mesma ação, quando a competência para o julgamento não é do mesmo órgão julgador, incidindo, então, a vedação prevista no artigo 292, § 1º, inciso II, do CPC. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2004. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de agravo de instrumento interposto pelo INSS, com pedido de efeito suspensivo, contra decisão que indeferiu argüição de incompetência absoluta do juízo, sob o fundamento de já ter decidido a respeito da competência, anteriormente, oportunidade em que o INSS se manteve silente. Sustenta, em síntese, que, a teor do disposto no art. 113 do CPC, a argüição de incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 363 e grau de jurisdição, não se submetendo ao instituto da preclusão como o fez a decisão atacada. Entende que, tendo a parte adentrado com seu pedido no Juizado Especial Federal, estaria desse modo, renunciando tacitamente aos valores superiores ao limite da competência do juizado, pois, sendo crédito previdenciário em discussão, requer a aplicação do art. 128 da Lei 8.213/91, ficando, desse modo caracterizada a renúncia dos valores excedentes pela parte agravada, fixada a competência do Juizado Especial Federal. Alega, ainda, a presença dos requisitos autorizadores do provimento antecipatório além do perigo de irreversibilidade da medida outorgada, constituindo-se situação de difícil e incerta reparação. Deferido o pedido de agregação de efeito suspensivo tão-somente em relação ao autor Antônio Francisco Pereira (fls. 79/84), transcorreu in albis o prazo para contraminuta ao agravo. (fl. 87) É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal João Batista Pinto Silveira: Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu argüição de incompetência absoluta do juízo, sob o fundamento de já ter decidido a respeito da competência, anteriormente, oportunidade em que o INSS se manteve silente. De acordo com a decisão initio litis, a matéria foi examinada nos seguintes termos: “(...) A decisão hostilizada é trancrita a seguir: ‘A argüição do INSS às fls.215/225 diz respeito a aspectos decididos às fls. 197, contra os quais não se manifestou oportunamente a autarquia. Destarte, restam mantidos os termos do referido decisum. Compulsando os autos verifico que o feito foi ajuizado na Vara do Juizado Especial Federal de Blumenau sendo remetido à redistribuição para uma das Varas Federais em função do valor superar os 60 salários mínimos (fls. 39). Acolhida a competência (fls. 40) pelo Juízo da 3ª Vara Federal de Blumenau, o feito seguiu o procedimento ordinário. Oportunidade em que o INSS não se manifestou acerca da competência. Posteriormente, a Autarquia argüiu a incompetência absoluta, daí a decisão agravada. Na forma do artigo 5º da Lei nº 10.259/2001, nos Juizados Especiais Federais, somente se admite recurso contra sentença definitiva ou a respeito de medida cautelar. Igualmente, na forma do disposto no referido diploma legal, a competência dos juizados 364 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 especiais é absoluta (§ 3º do artigo 3º). De outra parte, conforme afirma o INSS a incompetência absoluta pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 113 do CPC), não estando sujeita à preclusão. Contudo, não se mostra em concordância com os princípios da instrumentalidade da forma e do processo, a solução da questão, tão-somente, pela reforma da decisão atacada, já que o julgador a quo firmaria, novamente, sua competência originando novo recurso para esta Corte prolongando, desnecessariamente, o feito, quando a competência para a ação ordinária da questão pode ser definida já neste momento, eis que constam dos autos elementos suficientes para tanto. Inicialmente destaco que no pólo ativo da ação referida – correspondendo a parte agravada neste feito – encontramos os segurados José Francisco Pereira e Antonio Francisco Pereira. Pelos documentos constantes dos autos, principalmente, da memória discriminada de cálculos de fls. 33 e 35, realizada pelo Setor de Cálculos do Juizado Especial Federal Cível, verifico que o valor das parcelas vencidas somado ao valor de 12 parcelas vincendas implica valor bem acima dos 60 salários mínimos fixados como quantia máxima para exame do feito pelo Juizado Especial Federal no caso do segurado José Francisco Pereira e inferior àquele parâmetro para o segurado Antonio Francisco Pereira. Acerca dos critérios para atribuição do valor da causa, manifestou-se, com brilhantismo, o Juiz Celso Kipper, Relator no julgamento do Recurso contra sentença interposto no Processo nº 2002.72.07.000396-0, na Turma Recursal do Estado de Santa Catarina, cujo voto transcrevo, na parte em que converge com meu entendimento: ‘1. O valor da causa é a mensuração monetária da pretensão veiculada em juízo, ou seja, o benefício patrimonial economicamente pretendido. Daí que não me parece razoável qualquer interpretação da Lei dos Juizados Especiais Federais que exclua do valor da causa as prestações vencidas, ante a ausência de expressa disposição nesse sentido. O parágrafo 2º do artigo 3º da Lei 10.259/2001 não teve o escopo de excluir do valor da causa as prestações vencidas, mas o de limitar a doze, em seu cálculo, as prestações vincendas, quando for o caso. 2. A interpretação que desconsidera as prestações vencidas na apuração do valor da causa, quando a pretensão também versar sobre obrigações vincendas, poderia levar a um absurdo lógico, verificado no seguinte exemplo. a) A ajuiza ação pleiteando apenas prestações vencidas, no valor de 100 salários mínimos: a competência, sem sombra de dúvida, é da Vara Federal Comum; b) B ajuiza ação pleiteando prestações vencidas no mesmo valor de 100 salários mínimos, cumuladas com obrigações vincendas, sendo que a soma de doze parcelas equivale a 60 salários mínimos: a prevalecer o entendimento de que somente estas últimas seriam consideradas para o cálculo do valor da causa, a competência seria dos Juizados Especiais, apesar de que, neste caso, a toda evidência, tratar-se-ia de pretensão de valor superior ao anterior. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 365 3. A desconsideração das prestações vencidas na apuração do valor da causa poderia levar os Juizados Especiais Federais a julgar causas de valor bem superior a sessenta salários mínimos – alargando indevidamente a sua competência – tendo em vista que, via-de-regra, são justamente aquelas que consubstanciam a parcela mais expressiva da pretensão deduzida em juízo. Se assim fosse, o limite estabelecido no caput do art. 3º da Lei dos Juizados Especiais Federais seria fictício, eis que não guardaria correspondência com a realidade dos fatos, o que não parece ter sido a vontade do legislador.’ Entendo que o critério a ser aplicado para aferir o valor, para fins de fixação, ou não, da competência dos Juizados Especiais Federais é a totalidade do pedido, que deve ser avaliado em sua integralidade. Observe-se que as demandas previdenciárias versam, em síntese, sobre concessão/ restabelecimento de benefício ou revisão de seu valor. Considerando a peculiaridade destas ações, nas quais a grande parte busca somente diferenças vencidas (anteriores à propositura da ação), outras as vencidas e vincendas e um contingente menor só as vincendas, se o pedido abranger prestações vencidas e vincendas deve a soma destas ser considerada; se postular somente prestações vencidas a sua soma é o limite e, em sendo apenas vincendas a soma de doze. Não se mostra razoável, nem lógico, em havendo um pedido em que são postuladas parcelas vencidas e vincendas umas sejam consideradas como pertinentes aos Juizados Especiais Federais e outras para a Vara Federal Previdenciária. A parte deverá, então, propor duas ações, que tramitarão em ritos diversos, recursos e duração distintos, com possibilidade de deliberação judicial contendo orientação diversa, sobre matéria idêntica em claro desprestígio ao Poder Judiciário. Tal situação afrontaria os princípios da isonomia, da economia e celeridade processual bem como da efetividade. Assim, para verificar a integralidade do pedido a norma legal que melhor resolve esta questão é a do art. 260 do CPC: Art. 260. Quando se pedirem prestações vencidas e vincendas, tomar-se-á em consideração o valor de umas e outras. O valor das prestações vincendas será igual a uma prestação anual, se a obrigação for por tempo indeterminado, ou por tempo superior a 1 (um) ano; se, por tempo inferior, será igual à soma das prestações. O legislador não pretendeu afastar a aplicação da regra do art. 260 do CPC dos Juizados Especiais Federais. Ao dispor no § 2º do art. 3º da Lei nº 10.259/2001 que ‘quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput’, apenas repetiu, em parte, o comando da 2ª parte do art. 260 do CPC, ou seja, são disposições em absoluta consonância. De outra parte, o art. 7º, III e IV, da Lei Complementar nº 95/98, dispõe: Art. 7º. O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I – omissis; 366 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 II – omissis; III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa. Entretanto, não há ofensa ao art. 7º, III e IV, da Lei Complementar nº 95/98, porque na Lei dos Juizados Especiais Federais o legislador explicitou ‘quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput’, repetindo, em parte, o preceito do art. 260, 2ª parte, do CPC, tanto que a redação do prefalado artigo inicia com a palavra quando, a indicar que não é a única hipótese a ocorrer. Assim, não está configurada a hipótese do art. 7º, IV, porque não se trata de duas leis disciplinando o mesmo assunto. O que se verifica é que a norma da Lei dos Juizados Especiais Federais nada dispõe sobre o valor da causa quando há parcelas vencidas ou vencidas e vincendas. Dispõe apenas quando a prestação versar somente parcelas vincendas. Assim, devem ser aplicadas as normas da Seção II do capítulo VI do CPC que dispõe sobre o valor da causa quando os pedidos versarem sobre só parcelas vencidas ou vencidas e vincendas. Aplica-se o § 2º do art. 3º da Lei dos Juizados Especiais Federais quando a prestação versar somente sobre obrigações vincendas. Observado que a disposição da nova lei está em consonância com o disposto no art. 260 do CPC. Em suma, entendo que o pedido formulado pela parte deve ser considerado em sua integralidade para mensuração do valor, que por conseguinte, é o fator determinante para fixação da competência. Consoante anteriormente mencionado, se o pedido abranger prestações vencidas e vincendas deve a soma destas ser considerada; se postular somente prestações vencidas a sua soma é o limite e, em sendo apenas vincendas a soma de doze. Na hipótese em tela, são postuladas diferenças vencidas e vincendas e, conforme se depreende dos documentos de fls. 33/37 o valor das mesmas (em fevereiro/2003), devidas ao autor José Francisco Pereira ultrapassariam o limite dos sessenta salários mínimos, enquanto as diferenças devidas a Antonio Francisco Pereira importariam em valor inferior àquela quantia de salários mínimos. E, tratando-se de litisconsorte ativo facultativo, os pedidos devem ser considerados individualmente à aferição do valor da demanda. Tangenciando a problemática da renúncia ressalto que a parte agravada, à fl. 38, expressamente, manifestou-se no sentido de não ter interesse em renunciar ao valor excedente ao limite de competência do JEF. Assim sendo, pelo constante dos autos não há dúvida de que a competência do JEF se firma para os pedidos deduzidos pelo autor Antonio, e, no mesmo sentido, firma-se a competência da Vara Federal para os pedidos do autor José. Tudo conforme se vislumbra do constante nos autos. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 367 Desta forma, patente a impossibilidade de cumulação dos pedidos na mesma ação, tendo em vista que a competência para o julgamento dos pedidos não é do mesmo órgão julgador, incidindo, então, a vedação prevista no artigo 292, § 1º, inciso II, do CPC, não olvidando da competência absoluta do Juizado Especial e, também, da improrrogabilidade da jurisdição da Vara com as causas afetas ao JEF. Por via de conseqüência, verifica-se hipótese para indeferimento da inicial em conformidade com o estabelecido no artigo 295, inciso V, da Lei Adjetiva, tudo porque, o procedimento proposto não corresponde ao valor da causa e não pode ser adaptado ao tipo de procedimento previsto no tocante ao autor Antonio. Frente ao exposto, defiro o pedido de efeito suspensivo tão-somente no tocante ao segurado Antonio Francisco Pereira, cujos pedidos devem ser, como exposto supra, deduzidos no Juizado Especial Federal.” Frente ao exposto, pelos mesmos fundamentos os quais embasaram a decisão inicial, dou parcial provimento ao agravo, para excluir do feito o autor Antônio Francisco Pereira, cujos pedidos devem ser deduzidos no Juizado Especial Federal. É como voto. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.70.00.032783-1/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Apelante: Guilhobel Aurelio Camargo Advogado: Dr. José Cid Campelo Apelada: União Federal Advogado: Dr. Luís Henrique Martins dos Anjos Apelados: Caixa Econômica Federal - CEF Antelmo Diniz Coelho EMENTA Constitucional. Processual Civil. Ação popular. Pressupostos proces368 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 suais para o seu ajuizamento. Doutrina e jurisprudência. 1. Com efeito, no caso dos autos, em nenhum momento da inicial é apontada pelo autor, concretamente, a ilegalidade e a lesividade ao patrimônio público. Em alentado parecer, onde são analisados os pressupostos processuais que autorizam o ajuizamento da ação popular, leciona o ilustre Ministro Thompson Flores, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, verbis: “(...) 5. A ação em comentário, erigida em garantia constitucional, de alto destaque na vida democrática da Nação, atribuiu a ‘qualquer cidadão’ como parcela do Povo, de onde provém todo o poder, como é expressa a própria Lei Maior (art. 1º, § 1º), legitimidade ativa para fiscalizar a Administração, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto, ensejando-lhe, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente, a decretação e invalidade dos atos que sejam lesíveis ao Erário, obrigando os responsáveis ao ressarcimento do mal causado. Não poderia, como nem seria curial, que instaurasse ele a grave lide, sem que ‘aparelhado’ estivesse para ela. 6. Por isso, acentuou com propriedade José Afonso da Silva (ob. cit., p. 221, n. 189): ‘(...) A demanda, contudo, deverá ser idônea, para produzir os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências que precisam transparecer na petição inicial que necessita ser apta ao estabelecimento da relação processual. (...) A demanda popular propõe-se por petição na forma do art. 158 do CPC, com todos os requisitos ali especificados e mais os que no caso concreto exigir.’ O socorro ao CPC citado deflui do disposto no art. 22 da Lei 4.717/65; e o invocado art. 158 corresponde ao art. 282 do CPC vigente. 7. Destarte, o libelo inicial deve ser preciso quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da entidade indicada. É possível que o autor, de início, não disponha de todos os elementos necessários, porque não tenham sido fornecidos pelas entidades em questão. O remédio está, claramente, assegurado no art. 7º, I, b, e § 2º, da Lei 4.717. O certo, porém, é que os fatos, antes da citação devem estar devidaR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 369 mente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles, oferecer sua defesa. (...)”. (In Revista de Processo, 61/221) Portanto, para que a ação popular seja julgada procedente exige-se a comprovação, de forma cabal, da lesividade do ato e, também, de sua invalidade, por ser ele nulo ou anulável. Nesse sentido, é tranqüilo o entendimento da Suprema Corte, manifestado em inúmeros arestos. (In RTJ 54/95; 71/497; 72/421; 96/1.370 e 103/683) É o que deflui, igualmente, da redação do art. 5º, LXXIII, da Lei Maior, bem como da doutrina. (MOREIRA, Barbosa, in Ações Coletivas na CF de 1988, in Revista de Processo, 61/192) Incumbe ao autor da ação popular a prova da ocorrência do ato lesivo ao patrimônio público, de forma efetiva, concreta, e não de meras conjecturas, como se depreende do exame da peça vestibular. A respeito, claro e preciso o magistério de José Afonso da Silva, verbis: “É ônus do autor popular provar a ocorrência de ato lesivo ao patrimônio público. Enfim, incumbe-lhe comprovar a efetiva verificação dos fundamentos de fato (causa petendi próxima) da demanda, para que possa obter os efeitos pretendidos.” (In Ação Popular Constitucional. Doutrina e Processo. Ed. Rev. dos Tribs., 1968, n. 199, p. 228) Nessa mesma orientação é a lição do Ministro Thompson Flores, em seu já citado parecer, verbis: “(...) A propósito, com acerto, afirmou a Procuradoria do Estado, em sua contestação, firmada pelo ilustre Prof. Almiro do Couto e Silva (fl. 99): ‘Lesivo não é sinônimo de oneroso. Lesivo não é, por conseguinte, o que custou dinheiro, mas sim o que causou dano, desfalque ou prejuízo.’ No mesmo sentido a lição de José Afonso da Silva. (ob. cit., n. 119, pp. 149-50, e Enciclopédia Saraiva de Direito, III, 1977, pp. 400-1) Essa é, também, a conceituação da Suprema Corte como se verifica do julgamento proferido no RE nº 92.326-SP, já mencionado e posto em destaque. Proferindo seu voto, sublinhou, com prioridade, o Relator, o eminente Ministro Rafael Mayer (In RDA - 143/129): ‘Lesivo se há de entender o ato que, direta ou indiretamente, mas real ou efetivamente, redunde no 370 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 injusto detrimento de bens ou direitos da Administração, representativo de um prejuízo, de um dano, efetivo ou potencial de valores patrimoniais. Não faz sentido incluir aí, como pretendeu a instância ordinária, os ganhos que eventualmente tenham resultado à empresa por sua atividade quase como lucros cessantes da Prefeitura, pois não há relação causal e jurídica que lhes atribua.’ 4.8 Em remate, silente o autor, no traduzir, concretamente, como se teria caracterizado a lesividade dos contratos que impugnou, indispensável, como causa petendi, proporcionar a defesa dos réus, o que seria substancial, pois, como assinala Seabra Fagundes, ela - a lesividade - deve ser examinada caso a caso (Da Ação Popular, in RDA VI, n. 24/18-9; ob. cit., n. 129, nota 5, p. 366), para sua segura verificação; e, mais, sem qualquer prova de sua ocorrência, manifesto é que seria de todo inviável reconhecê-la.” (In Revista de Processo, 61/228) É exatamente o caso dos autos, eis que o autor não demonstrou, concreta e efetivamente, como se teria caracterizado a lesividade ao patrimônio público, ônus que lhes cabia a teor do art. 333, I, do CPC. O que se constata, de forma evidente, é a inconformidade do autor com o procedimento da CEF o que, com a devida vênia, não pode ser objeto de ação popular. Pertinente, a respeito, a jurisprudência da Suprema Corte, firmada quando do julgamento do RE nº 42.054-SP, em que foi relator o saudoso Ministro Barros Barreto, verbis: “Por sem dúvida, consoante é pacífico, ao Poder Judiciário não é dado rever os atos administrativos salvo quanto à sua legalidade ou legitimidade. E, de conseguinte, na ação popular, contra atos lesivos ao patrimônio público, há de se restringir e apurar - se eles são nulos ou anuláveis, sem discutir a sua conveniência ou oportunidade, visto que a função judicial tem por fim a aplicação do direito”. (In RTJ 10/600. Da mesma forma, Hely Lopes Meirelles, in Ação Popular, 13ª ed., Rev. dos Tribs., 1989, pp. 89 e 93) 2. Improvimento da apelação e da remessa oficial. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimiR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 371 dade, negar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 25 de novembro de 2003. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: É este o teor da r. sentença recorrida, a fls. 28/31, verbis: “Trata-se de ação popular proposta por Guilhobel Aurélio Camargo, com pedido de concessão de liminar, sob o fundamento de que a CEF não estaria procedendo ao creditamento de juros e correção monetária dos depósitos referentes a pagamentos de precatórios judiciais, efetuados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Aduz a ocorrência de ofensa a vários princípios constitucionais, tais como a legalidade, eficiência e moralidade administrativa. Afirma, ainda, que o ato praticado pela CEF e seu gerente geral mostra-se lesivo aos indivíduos, que não recebem integralmente os juros e correção monetária sobre os depósitos efetuados. Fundamenta sua pretensão, ainda, no possível ajuizamento de ações de indenização contra os réus, acarretando prejuízos aos entes públicos. 2. MOTIVAÇÃO De início, faz-se imprescindível averiguar a possibilidade de veiculação do pedido inicial em sede de ação popular. A ação popular detém natureza constitucional, estando regulada pela Lei nº 4.717/65, cujo artigo 1º delimita os requisitos imprescindíveis para a utilização desse instrumento processual. Nos termos legalmente estatuídos, destina-se a ação popular à anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. O parágrafo 1º do referido artigo define o patrimônio público como sendo integrado pelos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. ‘A ação popular é instrumento de dignidade constitucional de que se utiliza o cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (CF, art. 5º, LXXIII). Para sua admissibilidade, além dos pressupostos processuais e condições da ação, inscritas nas normas gerais de processo civil, exige-se a presença de requisitos específicos: ser o autor titular de cidadania (eleitor), ocorrer efetiva ilegalidade e lesividade em razão do atacado’(TRF 1ª Região, REO 01030995/ RO, 1ª Turma Suplementar, decisão de 10.12.2002, relatada pelo Juiz Francisco de Assis Betti, g. n.). Da análise da exordial, não vislumbro qualquer lesão, ainda que potencial, ao patrimônio público, apta a acarretar a legitimidade da propositura da ação popular. 372 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 A esse respeito, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu que: embora a ação popular, diversamente do mandado de segurança, permita ampla dilação probatória, não exigindo, pois, seja pré-constituída a prova da ilegalidade e lesividade do ato, necessário se demonstre o autor, ainda que minimamente, a potencialidade da lesão que indica possibilidade do indeferimento da inicial quando o pedido careça de suporte mínimo que o viabilize. (TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 01115702/DF, 1ª Turma, decisão de 30.10.2000, relatada pelo Juiz Aloísio Palmeira Lima, g.n.). O próprio autor afirma à fl. 15 que o ato praticado pela CEF e pelo seu administrador é lesivo à (sic) uma comunidade difusa de indivíduos, pois que não recebem integralmente sobre os depósitos, juros e correção monetária integral (...). Obviamente, a falta de recebimento de valores pelos beneficiários do pagamento de precatórios, via depósito judicial na CEF, não se configura em lesão ao patrimônio público. Idêntica conclusão é extraída face à alegação de suposto prejuízo aos entes públicos, decorrente do possível ajuizamento de ações de indenização em face dos requeridos. A possibilidade de futura discussão judicial e de eventual condenação ao pagamento de indenizações não pode ser utilizada como fundamento para a caracterização de dano ao patrimônio público. Para o ajuizamento de ação popular, apesar de ser admissível a dilação probatória, a lesão ao patrimônio público deve ser apresentada e evidenciada de forma concreta. Ademais, além de o acesso ao Judiciário estar constitucionalmente garantido como um direito fundamental (art. 5º, XXXV), o pagamento der indenizações, em reconhecimento ao direito dos litigantes, não configura lesão ao patrimônio público. Por outro lado, os possíveis prejudicados pelo não creditamento de juros e correção monetária em depósitos judiciais são facilmente identificados e determinados. A ação popular, dada a sua especificidade, não pode ser utilizada para evitar ou reparar lesão a direitos individuais, objetivo pretendido nestes autos. Deve-se ressaltar, ainda, que a legitimação ordinária concedida ao cidadão para a propositura de ação popular deve ser utilizada de maneira responsável e estritamente baseada no interesse público, pois, do contrário, ausentes os requisitos ou os meios de prova, configura-se inexcedível prejuízo ao erário o processamento e o prosseguimento do processo, que, então, deve ser indeferido de plano. (TRF 2ª Região, Apelação Cível nº 87889/RJ, 6ª Turma, decisão de 27.08.2002, relatada pelo Juiz França Neto). Diante do exposto, não revelando os fatos articulados na inicial qualquer lesividade ao patrimônio público, a via processual eleita pelo autor mostra-se inadequada, ensejando o indeferimento da inicial. Posto isto, julgo extinto o processo, sem julgamento do mérito, com fulcro nos arts. 267, VI, e 295, I, do Código de Processo Civil.” Interposta a apelação, postula o recorrente a reforma do julgado, onde, a fls. 41/2, alega, verbis: “6.1. A AÇÃO POPULAR não só é cabível, como quer a sentença apelada, quando há prejuízo ao patrimônio público, prejuízo este que se mede em dinheiro. 6.2. A AÇÃO POPULAR também é cabível quando já o prejuízo moral. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 373 6.3. No caso, há o prejuízo moral, de vez que a empresa pública ré, ora segunda apelada, não pagando os juros e correção monetária, de forma integral dos depósitos judiciais feitos à ordem dos respectivos Juízes Federais, causa o descrédito à própria administração pública. Ofende os princípios da moralidade pública que a CONSTITUIÇÃO FEDERAL, em seu art. 37, caput, exige dos administradores na prática de seus atos. 6.4. A Lex Legum, ainda, em seu art. 5º, LXXIII, como um dos direitos e garantias individuais, estabelece: ‘qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;’ 6.5. Ora, não pagar juros e correção monetária integral nos depósitos judiciais feitos na empresa pública, ofende os princípios da moralidade pública. É que, a empresa pública, não pagando as rubricas a que qualquer outro estabelecimento bancário ou de crédito estaria sujeito ao pagamento, estaria ela, se locupletando à custa do particular, quando ela, ainda que empresa pública, exercendo uma atividade típica do particular, estaria sujeita às mesmas regras deste. O estabelecimento de crédito particular, em seus depósitos, conforme opção do usuário, paga juros e correção monetária integral, é dever moral, que ela – empresa pública – também tenha a mesma obrigação do particular. 6.6. Portanto a ação popular não é só cabível quando haja prejuízo financeiro ao erário público. É ela cabível, também, quando o ato praticado pelo administrador fere o princípio da moralidade pública. 6.7. Valo invocar a anotação de THEOTONIO NEGRÃO, in CPC e legislação processual civil em vigor, 35ª ed., pág. 1.024: ‘São pressupostos essenciais da ação popular, que o ato seja ilegal e que seja lesivo ao patrimônio público (RT 714/116, maioria), ou a outros interesses tutelados pela CEF, 5º, LXXIII.’ 6.8. São tutelados, pois, outros interesses a que se refere o invocado art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, incluindo-se a moralidade administrativa.” O MPF opinou pelo improvimento do recurso. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz: Em seu parecer, a fls. 58/60, anotou, com inteiro acerto, o douto MPF, verbis: “Penso que o recurso interposto não merece provimento, devendo ser mantida a r. sentença recorrida. Nesse sentido, transcrevo as razões invocadas pelo Magistrado a quo, que por ocasião da prolação da sentença de extinção do feito lapidarmente concluiu (fls. 29- 374 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 30), verbis: ‘Da análise da exordial, não vislumbro qualquer lesão, ainda que potencial, ao patrimônio público, apta a acarretar a legitimidade da propositura da ação popular. A esse respeito, o Tribunal Regional da 1ª Região já decidiu que: embora a ação popular, diversamente do mandado de segurança, permita ampla dilação probatória, não exigindo, pois, seja pré-constituída a prova da ilegalidade e lesividade do ato, necessário se demonstre que o autor, ainda que minimamente, a potencialidade da lesão que indica. Possibilidade do indeferimento da inicial quando o pedido careça de suporte mínimo que o viabilize. (TRF 1ª Região, Apelação Cível nº 01115702/DF, 1ª Turma, decisão de 30.10.2000, relatada pelo juiz Aloísio Palmeira Lima, g.n.). O próprio autor afirma à fl. 15 que o ato praticado pela CEF e pelo seu administrador é lesivo à (sic) uma comunidade de indivíduos, pois que não recebem integralmente sobre os depósitos, juros e correção monetária integral(...). Obviamente, a falta de recebimento de valores pelos beneficiários do pagamento de precatórios, via depósito judicial na CEF não se configura em lesão ao patrimônio público. Idêntica conclusão é extraída face à alegação de suposto prejuízo aos entes públicos, decorrente do possível ajuizamento de ações de indenização em face dos requeridos. A possibilidade de futura decisão judicial e de eventual condenação ao pagamento de indenizações não pode ser utilizada como fundamento para a caracterização de dano ao patrimônio público. Para o ajuizamento de ação popular, apesar de ser admissível a dilação probatória, a lesão ao patrimônio público deve ser apresentada e evidenciada de forma concreta. Ademais, além de o acesso ao judiciário estar constitucionalmente garantido como um direito fundamental (art. 5º, XXXV), o pagamento de indenizações, em reconhecimento ao direito dos litigantes, não configura lesão ao patrimônio. Por outro lado, os possíveis prejudicados pelo não creditamento de juros e correção monetária em depósitos judiciais são facilmente identificados e determinados. A ação popular, dada a sua especificidade, não pode ser utilizada para evitar ou reparar lesão a direitos individuais, objetivo pretendido nestes autos. Deve-se ressaltar, ainda, que a legitimação ordinária concedida ao cidadão para a propositura de ação popular deve ser utilizada de maneira responsável e estritamente baseada no interesse público, pois, do contrário, ausentes os requisitos ou os meios de prova, configura-se inexcedível prejuízo ao erário o processamento e o prosseguimento do processo, que, então, deve ser indeferido de plano (TRF 2ª Região, Apelação Cível nº 87889/RJ, 6ª Turma, decisão de 27.08.2002, relatada pelo Juiz França Neto). Diante do exposto, não revelando os fatos articulados na inicial qualquer lesividade ao patrimônio público, a via processual eleita pelo autor mostra-se inadequada, ensejando o indeferimento da inicial’. Destaco ainda, nesse mesmo sentido, o entendimento jurisprudencial, verbis: ‘ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. EDITAL. AÇÃO POPULAR. AUSÊNCIA DE REQUISITO LEGAL INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CARÊNCIA DE AÇÃO. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 375 1. Os fatos articulados na inicial não revelam a ocorrência de lesividade ao patrimônio público, sendo pois, inadequada a via processual (Ação Popular) eleita, pelo que são carecedores de ação os Suplicantes. 2. Direitos subjetivos dos candidatos, acaso feridos pelas restrições constantes do edital, ensejariam a propositura de ações individuais próprias, que não podem ser substituídas por Ação Popular, situação em que também não se enquadrariam os Suplicantes, que não provaram estar inscritos no concurso. 3. De qualquer forma, indeferida a liminar, e realizadas as provas em 1992, sem objeto restou a ação. 4. Processo extinto conforme art. 267, VI, do CPC. 5. Remessa Oficial improvida’ (TRF 1ª Região, 2ª Turma, REO nº 1995.01.200817/MG, Rel. Juíza ASSUSETE MAGALHÃES, j. 24.02.00, DJ 23.03.00, pág. 100). Desse modo, na forma das razões anteriormente transcritas, penso que não merece prosperar a insurgência da recorrente. Pelo exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL opina, preliminarmente, pelo conhecimento do recurso, no mérito, pelo seu improvimento, com a manutenção da r. sentença recorrida.” Correto o parecer. Com efeito, no caso dos autos, em nenhum momento da inicial é apontada pelo autor, concretamente, a ilegalidade e a lesividade ao patrimônio público. Em alentado parecer, onde são analisados os pressupostos processuais que autorizam o ajuizamento da ação popular, leciona o ilustre Ministro Thompson Flores, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, verbis: “(...) 5. A ação em comentário, erigida em garantia constitucional, de alto destaque na vida democrática da Nação, atribuiu a ‘qualquer cidadão’ como parcela do Povo, de onde provém todo o poder, como é expressa a própria Lei Maior (art. 1º, § 1º), legitimidade ativa para fiscalizar a Administração, no pertinente ao patrimônio público que lhe está afeto, ensejando-lhe, através de meios prontos e eficazes, alcançar judicialmente, a decretação e invalidade dos atos que sejam lesíveis ao Erário, obrigando os responsáveis ao ressarcimento do mal causado. Não poderia, como nem seria curial, que instaurasse ele a grave lide, sem que ‘aparelhado’ estivesse para ela. 6. Por isso, acentuou com propriedade José Afonso da Silva (ob. cit., p. 221, n. 189): ‘(...) A demanda, contudo, deverá ser idônea, para produzir os efeitos procurados, ou seja, uma decisão de mérito. Para isso há certas exigências que precisam transparecer na petição inicial que necessita ser apta ao estabelecimento da relação processual. (...) A demanda popular propõe-se por petição na forma do art. 158 do CPC, com todos os requisitos ali especificados e mais os que no caso concreto exigir.’ 376 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 O socorro ao CPC citado deflui do disposto no art. 22 da Lei 4.717/65; e o invocado art. 158 corresponde ao art. 282 do CPC vigente. 7. Destarte, o libelo inicial deve ser preciso quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido; para a espécie, o ato cuja decretação de invalidade postula, o vício que o contaminou e em que consistiu sua lesividade ao patrimônio público da entidade indicada. É possível que o autor, de início, não disponha de todos os elementos necessários, porque não tenham sido fornecidos pelas entidades em questão. O remédio está, claramente, assegurado no art. 7º, I, b, e § 2º, da Lei 4.717. O certo, porém, é que os fatos, antes da citação devem estar devidamente expostos, bem como os fundamentos do pedido, para que os réus possam, com base neles, oferecer sua defesa. (...)”. (In Revista de Processo, 61/221) Portanto, para que a ação popular seja julgada procedente, exige-se a comprovação, de forma cabal, da lesividade do ato e, também, de sua invalidade, por ser ele nulo ou anulável. Nesse sentido, é tranqüilo o entendimento da Suprema Corte, manifestado em inúmeros arestos. (In RTJ 54/95; 71/497; 72/421; 96/1.370 e 103/683) É o que deflui, igualmente, da redação do art. 5º, LXXIII, da Lei Maior, bem como da doutrina. (MOREIRA, Barbosa. In Ações Coletivas na CF de 1988, in Revista de Processo, 61/192 ) Incumbe ao autor da ação popular a prova da ocorrência do ato lesivo ao patrimônio público, de forma efetiva, concreta, e não de meras conjecturas, como se depreende do exame da peça vestibular. A respeito, claro e preciso o magistério de José Afonso da Silva, verbis: “É ônus do autor popular provar a ocorrência de ato lesivo ao patrimônio público. Enfim, incumbe-lhe comprovar a efetiva verificação dos fundamentos de fato (causa petendi próxima) da demanda, para que possa obter os efeitos pretendidos.” (In Ação Popular Constitucional. Doutrina e Processo. Ed. Rev. dos Tribs., 1968, n. 199, p. 228). Nessa mesma orientação, é a lição do Ministro Thompson Flores, em seu já citado parecer, verbis: “(...) A propósito, com acerto, afirmou a Procuradoria do Estado, em sua contestação, firmada pelo ilustre Prof. Almiro do Couto e Silva (fl. 99): ‘Lesivo não é sinônimo de oneroso. Lesivo não é, por conseguinte, o que custou dinheiro, mas sim o que causou dano, desfalque ou prejuízo.’ No mesmo sentido a lição de José Afonso da Silva (ob. cit., n. 119, pp. 149-50, e R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 377 Enciclopédia Saraiva de Direito, III, 1977, pp. 400-1). Essa é, também, a conceituação da Suprema Corte como se verifica do julgamento proferido no RE nº 92.326-SP, já mencionado e posto em destaque. Proferindo seu voto, sublinhou, com prioridade, o Relator, o eminente Ministro Rafael Mayer (In RDA - 143/129): ‘Lesivo se há de entender o ato que, direta ou indiretamente, mas real ou efetivamente, redunde no injusto detrimento de bens ou direitos da Administração, representativo de um prejuízo, de um dano, efetivo ou potencial de valores patrimoniais. Não faz sentido incluir aí, como pretendeu a instância ordinária, os ganhos que eventualmente tenham resultado à empresa por sua atividade quase como lucros cessantes da Prefeitura, pois não há relação causal e jurídica que lhes atribua.’ 4.8 Em remate, silente o autor, no traduzir, concretamente, como se teria caracterizado a lesividade dos contratos que impugnou, indispensável, como causa petendi, proporcionar a defesa dos réus, o que seria substancial, pois, como assinala Seabra Fagundes, ela - a lesividade - deve ser examinada caso a caso (Da Ação Popular, in RDA VI, n. 24/18-9; ob. cit., n. 129, nota 5, p. 366), para sua segura verificação; e, mais, sem qualquer prova de sua ocorrência, manifesto é que seria de todo inviável reconhecê-la.” (In Revista de Processo, 61/228) É exatamente o caso dos autos, eis que o autor não demonstrou, concreta e efetivamente, como se teria caracterizado a lesividade ao patrimônio público, ônus que lhes cabia a teor do art. 333, I, do CPC. O que se constata, de forma evidente, é a inconformidade do autor com o procedimento da CEF o que, com a devida vênia, não pode ser objeto de ação popular. Pertinente, a respeito, a jurisprudência da Suprema Corte, firmada quando do julgamento do RE nº 42.054-SP, em que foi relator o saudoso Ministro Barros Barreto, verbis: “Por sem dúvida, consoante é pacífico, ao Poder Judiciário não é dado rever os atos administrativos salvo quanto à sua legalidade ou legitimidade. E, de conseguinte, na ação popular, contra atos lesivos ao patrimônio público, há de se restringir e apurar - se eles são nulos ou anuláveis, sem discutir a sua conveniência ou oportunidade, visto que a função judicial tem por fim a aplicação do direito” (In RTJ 10/600. Da mesma forma, Hely Lopes Meirelles, in Ação Popular, 13ª ed., Rev. dos Tribs., 1989, pp. 89 e 93) Por esses motivos, conheço da apelação e da remessa oficial, negando-lhes provimento. É o meu voto. 378 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 QUESTÃO DE ORDEM NO MS Nº 2004.04.01.012496-7/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus Impetrante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco Impetrado: Juízo Federal da 1ª Vara do Juizado Especial Federal de Passo Fundo/RS Interessada: Ernesta Penna Paim Advogados: Drs. Auri Alarcony e outro EMENTA Processo Civil. Mandado de segurança. JEF. Conflito de competência. Compete à Turma Recursal do Juizado Especial Federal examinar o cabimento do mandado de segurança impetrado contra ato de Juiz Federal no exercício da jurisdição desse último quando se tratar de substitutivo recursal. Tendo aquele Colegiado declinado da competência para exame do mandamus, é de ser suscitado conflito perante o STJ, a teor do disposto no artigo 105, I, d, da Constituição Federal. (CC 39876, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 19.12.2003) ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, suscitar conflito negativo de competência perante o Colendo STJ, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 24 de março de 2004. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo INSS em face de ato praticado pelo juízo federal titular do Juizado Especial Federal de Passo Fundo/ RS, que rejeitou embargos declaratórios opostos para ver corrigido erro material na sentença, expressa nos seguintes termos: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 379 “A autarquia-ré acima nominada ofereceu Embargos de Declaração à sentença proferida nestes autos, em que busca, através desta insurgência, ver sanado erro material nela contido. Ouvida a Contadoria deste Juízo, esta informou que, em que pese os termos desta peça recursal, não houve erro no cálculo elaborado, porquanto foi respeitada a limitação da renda ao teto; no entanto, no mês de dezembro de 1998, houve um reajustamento do teto pela EC nº 20 (R$ 1.200,00), fazendo-se, assim, imprescindível o cotejamento da renda anterior a essa data, aí desconsiderado o teto anterior, com aquele novo limite-teto. Ante o exposto, rejeito os presentes declaratórios.” (fl. 85) Sustenta o impetrante, em síntese, que o erro material pode ser corrigido a qualquer momento por não ser abrangido pela coisa julgada. Distribuídos os autos à Turma Recursal, a ilustre Relatora determinou a sua vinda a esta Corte, com base no artigo 3º, parágrafo 1º, inciso I, da Lei nº 10.259/2001. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Victor Luiz dos Santos Laus: Como se vê do Relatório, trata-se de mandado de segurança impetrado perante a Turma Recursal do JEF no Rio Grande do Sul, a qual declinou da competência para o seu exame. Este Colegiado, interpretando o disposto nos artigos 98, I, parágrafo único, e 108, I, c, ambos da Constituição Federal, firmou entendimento no sentido de que compete àquele órgão examinar o cabimento do mandado de segurança impetrado contra ato de Juiz Federal no exercício da jurisdição desse último quando se tratar de substitutivo recursal. A propósito: “QUESTÃO DE ORDEM. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO DE JUIZ FEDERAL DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. SUBSTITUTIVO RECURSAL. COMPETÊNCIA DA TURMA RECURSAL. 1. Compete à Turma Recursal do Juizado Especial Federal examinar o cabimento do mandado de segurança impetrado contra decisão de Juiz Federal no exercício da jurisdição do Juizado Especial Federal, quando substitutivo recursal. 2. Questão de ordem acolhida no sentido de declinar da competência para a Turma Recursal do Juizado Especial Federal do Rio Grande do Sul.” (TRF4, QO no MS 2003.04.01.036507-3/RS, 6ª Turma, Rel. Des. Federal Nylson Paim de Abreu, DJU 29.10.2003) No caso em tela, como referido alhures, cogita-se de decisão que 380 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 rejeitou embargos declaratórios, os quais restituem à parte o prazo para a interposição do recurso próprio (artigo 538 do CPC), caso que à evidência se subsume naquela inteligência, impondo-se, assim, suscitar conflito de competência. Referentemente à atribuição para o seu exame, há precedente da Corte Especial (CC 2003.04.01.036518-8, Rel. Des. Federal José Germano da Silva, DJU 1º.10.2003), no sentido de que competiria ao TRF dirimi-lo, tendo em vista que até então o e. Superior Tribunal de Justiça não pacificara a questão. Ocorre, porém, que a Terceira Seção do STJ, amparada em decisão da Suprema Corte, reformulou o entendimento que vinha adotando, sinalizando a sua competência em decisão assim ementada, verbis: “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. TURMA RECURSAL E TRIBUNAL DE ALÇADA DO MESMO ESTADO. COMPETÊNCIA DO STJ PARA DIRIMIR O CONFLITO. INTELIGÊNCIA DO ART. 105, I, d, da CF. DECISÃO PLENÁRIA DO STF. PRECEDENTES DO STJ. CRIME DE PREVARICAÇÃO. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. ART. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 10.259/01. RECURSO DE APELAÇÃO. JULGAMENTO SOB A ÉGIDE DA LEI NOVA. NORMA PROCESSUAL. INCIDÊNCIA IMEDIATA. 1. A Eg. Terceira Seção, em consonância com o Plenário da Suprema Corte, consolidou o entendimento de que, por não haver vinculação jurisdicional entre Juízes das Turmas Recursais e o Tribunal local (de Justiça ou de Alçada) - assim entendido, porque a despeito da inegável hierarquia administrativo-funcional, as decisões proferidas pelo segundo grau de jurisdição da Justiça Especializada não se submetem à revisão por parte do respectivo Tribunal - deverá o conflito de competência ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, a teor do art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal, que dispõe ser da competência deste Tribunal processar e julgar, originariamente, ‘os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, o, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos’. 2. a 4. Omissis”. (CC 39876, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 19.12.2003) Logo, ainda que os órgãos fracionários deste Regional, na forma do seu Regimento Interno, encontrem-se vinculados às decisões da Corte Especial, em se tratando de matéria constitucional, não há como desconsiderar a orientação adotada pelo Pretório Excelso. Em face do exposto, suscito conflito negativo de competência perante o Colendo STJ, com base no artigo 105, I, d, da Constituição. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 381 DIREITO TRIBUTÁRIO 384 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2000.71.13.000183-5/RS Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Apelante: Centrais Elétricas Brasileiras S/A - Eletrobrás Advogados: Drs. Maria Ester Antunes Klin e outros Apelante: Guifasa S/A Ind. e Com. Advogados: Drs. Rudinei Clenio Carvalho e outros Apelante: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin Apelados: (os mesmos) Remetente: Juízo Federal da Vara Federal de Bento Gonçalves/RS EMENTA Tributário. Empréstimo compulsório sobre energia elétrica. Legitimidade passiva ad causam da União. Prescrição. Correção monetária. Índices aplicáveis. Expurgos inflacionários. 1. A União é parte passiva legítima para responder à demanda na qual se reclamam as diferenças de correção monetária do empréstimo compulsório sobre a energia elétrica, pois, embora o tributo tenha sido instituído em favor da ELETROBRÁS, a União manteve sob sua responsabilidade e controle a arrecadação e o emprego dos recursos. 2. O prazo prescricional passa a fluir a partir da data fixada pelo DL nº 1.512/76 para o resgate do empréstimo compulsório, ou seja, vinte anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do contribuinte. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 385 3. A conversão antecipada em ações não pode ser considerada como marco inicial da prescrição, por estar ausente o direito exigível, atual, cuja violação acarreta o nascimento da ação (actio nata). Mesmo recebendo o crédito representado pelas ações, o credor não podia dispor livremente desses títulos, pois o art. 3º, § único, do DL nº 1.512/76 impunha gravame que impossibilitava a transferência dos papéis, até o vencimento do empréstimo. 4. O entendimento adotado, no âmbito da 1ª Turma, quanto à regra aplicável à prescrição, é de que incidem as disposições do Decreto nº 20.910/32, em face do litisconsórcio passivo necessário com a União. 5. Embora os créditos posteriores a 1988 ainda não estejam vencidos, por não ter transcorrido o prazo para sua devolução, não há por que excluí-los do alcance do provimento jurisdicional, visto que a declaração da relação jurídica não se destina a reger somente situações passadas, mas também as que irão se estabelecer futuramente. 6. Desde a Constituição de 1967 o empréstimo compulsório possui natureza jurídica tributária, estando submetido aos mesmos princípios, normas gerais em matéria de legislação tributária e limitações do poder de tributar inerentes aos demais tributos, entre os quais a proibição de utilizar tributo com efeito de confisco, contida no art. 150, IV, da Constituição de 1988. 7. Se o Estado não devolver ao contribuinte as importâncias tomadas compulsoriamente com a atualização integral, desde o recolhimento até o efetivo resgate, estará enriquecendo ilicitamente e confiscando o capital do contribuinte, valendo-se do seu poder de impor o empréstimo forçado. 8. Incluem-se os expurgos inflacionários previstos nas Súmulas nos 32 e 37 deste Tribunal. 9. Para o cálculo das diferenças relativas à conversão das ações, é descabida a utilização do valor de mercado, por falta de amparo legal e não estar evidenciada a finalidade confiscatória. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, dar parcial provimento à apelação da ELETROBRÁS e à remessa oficial e negar provimento à apelação da União, nos ter386 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 mos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 12 de maio de 2004. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Cuida-se de apelações contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, para o fim de declarar o direito da autora à correção monetária integral dos créditos relativos ao empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, desde o efetivo pagamento, pela variação da ORTN/OTN/BTN/INPC/UFIR, observando-se os expurgos inflacionários previstos nas Súmulas nos 32 e 37 desta Corte, bem como a incidência de juros de 6% ao ano, previstos no DL nº 1.512/76, após a atualização dos valores, a partir do período aquisitivo até o seu lançamento em ações. Foram os réus condenados a pagar os juros mediante compensação nas contas futuras de energia elétrica e a calcular as diferenças oriundas da conversão em ações da ELETROBRÁS de acordo com os critérios preconizados na sentença e utilizando o valor de mercado das ações na data das efetivas conversões, bem como a arcar com os honorários advocatícios, arbitrados em 10% sobre o valor da causa, suportados na proporção de 50% para cada um. A ELETROBRÁS argúi a prescrição, com fulcro no Decreto nº 20.910/32, e a decadência, com base no CTN. Sustenta a legalidade do termo inicial para a aplicação da correção monetária e dos índices de correção utilizados. Alega que inexiste diferença relativa aos juros de 6% anuais, decorrentes da correção monetária do principal. Salienta que não houve perda para os contribuintes que tiveram seus créditos convertidos em ações antecipadamente, porque, após a emissão das ações, seu valor é regido pelas variações de mercado. A União aduz a sua ilegitimidade passiva ad causam, a prescrição qüinqüenal e a legalidade da forma de correção monetária. Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte. É o relatório. VOTO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 387 O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Inicialmente, suscito a discussão sobre a ausência do interesse de agir, com fulcro no art. 267, § 3º, do CPC, relativamente aos valores recolhidos entre 1987 e 1993, por se tratar de questão controvertida no âmbito da 1ª Turma. 1 - Ausência de interesse de agir Embora os créditos posteriores a 1988 ainda não estejam vencidos, por não ter transcorrido o prazo para sua devolução, não há por que excluí-los do alcance do provimento jurisdicional, visto que a declaração da relação jurídica não se destina a reger somente situações passadas, mas também as que irão se estabelecer futuramente. A ação não é propriamente declaratória; a classificação mais adequada, de acordo com o que propõe o festejado Professor Agnelo Amorim Filho, é condenatória: “Convém acentuar, porém, que as sentenças condenatórias e as constitutivas também têm certo conteúdo declaratório, ao lado do conteúdo condenatório ou constitutivo, pois toda sentença deve conter, necessariamente, a declaração da existência da relação jurídica sobre a qual versa. O que as distingue das declaratórias propriamente ditas é que, nestas, tal conteúdo é total, ao passo que as condenatórias são, simultaneamente, declaratórias e condenatórias.” (Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, in RT, v. 49, nº 300, out. 1960, p. 16) Corrobora essa assertiva o fato de que haverá condenação exeqüível neste momento, porquanto a ELETROBRÁS deverá alterar seus registros para que constem os créditos deferidos por esta decisão judicial. Não há confundir a relação de direito material com a relação de direito processual. A primeira diz respeito à pretensão, pressupondo a existência de um direito atual atribuído ao seu titular e a violação desse direito; a segunda configura o direito de ação, de natureza autônoma (em relação ao direito subjetivo material) e instrumental (destina-se a obter o bem jurídico pretendido pelo autor, resolvendo a pretensão de direito material), conceituado pela doutrina, sucintamente, como o direito de invocar o exercício da função jurisdicional. Para que comece a correr a prescrição, obviamente, deve estar presente a actio nata, a pretensão resistida; todavia, cogita-se somente o nascimento da pretensão de direito material, não do interesse processual. Nas palavras do ilustre processualista Moacyr Amaral Santos, “o que move a ação é o interesse na composição da lide (interesse de agir), não 388 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 o interesse em lide (interesse substancial).” (Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Editora Saraiva, 1º volume, 18ª edição, página 167). A necessidade e a adequação da prestação jurisdicional solicitada devem ser aferidas in abstrato, independentemente da lesão concreta ao direito material invocado. Do contrário, se o interesse processual dependesse da existência da violação concreta do direito atribuído ao titular, à medida que fossem vencendo as obrigações do empréstimo compulsório teria o contribuinte que ajuizar nova demanda, o que se revela absolutamente oposto aos princípios que norteiam o direito processual. 2 - Legitimidade passiva ad causam da União: Embora o empréstimo compulsório de que trata a Lei nº 4.156/62 tenha sido instituído em favor da ELETROBRÁS, a União manteve sob sua responsabilidade e controle a arrecadação e o emprego dos recursos. O art. 4º, § 3º, dessa Lei ainda determina a responsabilidade solidária da União, em qualquer hipótese, pelo valor nominal dos títulos correspondentes ao valor das obrigações tomadas pelo consumidor. Em virtude dessa solidariedade legal, que se sobrepõe à regra do art. 242 da Lei nº 6.404/76, por ser norma especial, é a União legitimada para responder à demanda, em litisconsórcio passivo necessário. Nesse sentido, o seguinte precedente desta Corte: “EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. ELETROBRÁS. LEI Nº 4.156, DE 1962. LEI COMPLEMENTAR Nº 13, DE 1972. LEI Nº 5.824, DE 1972. LEI Nº 7.181, DE 1983. 1. A peculiar configuração da relação jurídica decorrente do empréstimo compulsório em causa - criado em favor da ELETROBRÁS, mas mantido sob absoluto controle da União no que se refere à arrecadação e aplicação - faz com que a União Federal, que é responsável solidária pela restituição, se legitime passivamente nas demandas dela exsurgentes. 2. Recurso provido (AC 94.04.02780-4, 2ª T., Rel. Juiz Teori Albino Zavascki, unânime, DJU 11.01.95).” Passo a enfrentar a questão de fundo. 3 - Prescrição Em conformidade com o art. 2º do Decreto-Lei nº 1.512/76, o montante das contribuições de cada consumidor industrial constituirá o seu crédito a título de empréstimo compulsório, que será resgatado no prazo de vinte anos. O prazo para o exercício do direito de ação passa a fluir R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 389 somente a partir da data fixada pelo DL nº 1.512/76 para o resgate do empréstimo compulsório, em decorrência do princípio da actio nata, ou seja, vinte anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do contribuinte. A jurisprudência do STJ registra: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO SOBRE ENERGIA ELÉTRICA. PRESCRIÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE. IMPROVIMENTO. É entendimento dominante nesta Corte que, nas questões atinentes ao empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, instituído pela Lei nº 4.156/62 e legislação posterior, a contagem do prazo prescricional tem seu início a partir de 20 anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do agravado. ... (omissis) Agravo regimental improvido.” (AGA nº 346.547/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, 1ª Turma, DJU 27.08.2001, p. 00279) Cumpre registrar que não concordo com o entendimento de que o termo a quo da prescrição, quanto aos créditos convertidos em ações, é a data das Assembléias Gerais Extraordinárias que deliberaram o pagamento antecipado (20.04.88 e 26.04.90), de acordo com o permissivo do art. 3º do DL nº 1.512/76. O nascimento da ação (actio nata) é determinado pela violação de um direito atual, atribuído a seu titular. Esta é a lição do Professor Agnelo Amorim Filho, no artigo supracitado: “Mas há um ponto que deve ficar bem ressaltado, porque interesse fundamentalmente às conclusões do presente estudo: os vários autores que se dedicaram à análise do termo inicial da prescrição fixam esse termo, sem discrepância, no nascimento da ação (actio nata), determinado, tal nascimento, pela violação de um direito. Savigny, por exemplo, no capítulo de sua monumental obra dedicada ao estudo das condições da prescrição, inclui, em primeiro lugar, a actio nata, e acentua que esta se caracteriza por dois elementos: a) existência de um direito atual, suscetível de ser reclamado em Juízo; e b) violação desse direito. Também Câmara Leal afirma, peremptoriamente: ‘Sem exigibilidade do direito, quando ameaçado ou violado, ou não satisfeita sua obrigação correlata, não há ação a ser exercitada; e, sem o nascimento desta, pela necessidade de garantia e proteção ao direito, não pode haver prescrição, porque esta tem por condição primária a existência da ação.’”(p. 18) A conversão antecipada em ações não pode ser considerada violação do direito, justamente porque lhe falta o requisito da atualidade. Veja-se a dicção do art. 3º do DL nº 1.512/76: “Art. 3º No vencimento do empréstimo, ou antecipadamente, por decisão da As- 390 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 sembléia Geral da ELETROBRÁS, o crédito do consumidor poderá ser convertido em participação acionária, emitindo a ELETROBRÁS ações preferenciais nominativas de seu capital social. Parágrafo único. As ações de que trata este artigo terão as preferências e vantagens mencionadas no parágrafo 3º, do artigo 6º, da Lei número 3.890-A, de 25 de abril de 1961, com a redação dada pelo artigo 7º do Decreto-ei nº 644, de 23 de junho de 1969 e conterão a cláusula de inalienabilidade até o vencimento do empréstimo, podendo a ELETROBRÁS, por decisão de sua Assembléia Geral, suspender essa restrição.” (grifei) Mesmo recebendo o crédito representado pelas ações, o credor não podia dispor livremente desses títulos, pois a legislação impunha gravame que impossibilitava a transferência dos papéis, até o vencimento do empréstimo. Uma vez que foi postergada a total disponibilidade do credor sobre as ações, não há falar em direito exigível, atual, cuja violação tem o condão de acarretar o início do prazo prescricional. Outrossim, a conversão antecipada em ações não tem o efeito de cumprimento da obrigação, porque os detentores de créditos convertidos não foram comunicados pessoalmente pela ELETROBRÁS. Segundo o “Boletim Informativo de Conversão de Créditos do Empréstimo Compulsório em Ações”, a empresa enviou, através das entidades arrecadadoras, os extratos demonstrativos dos créditos convertidos, elaborados segundo o Código de Identificação do Contribuinte; após a conferência, o detentor do crédito deveria solicitar a essas entidades os certificados de ações e o pagamento do saldo não convertido em ações, mediante preenchimento de formulário. A operacionalização do pagamento antecipado pressupõe o conhecimento e participação do credor, fato que, todavia, não pode ser presumido, não sendo razoável supor que ocorreu a efetiva entrega das ações, que consumaria o pagamento (desde que houvesse a disponibilidade). Ademais, em se tratando de obrigação alternativa cuja escolha compete ao devedor, a ausência de notificação do credor a respeito do objeto da prestação impede o nascimento da ação correspondente para que seja reclamado o adimplemento integral da prestação, como bem salientado pelo ilustre Desembargador Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator para Acórdão na AC nº 1999.71.00.006055-0/RS, julgada em 24.03.2004. Assim, aos créditos relativos ao empréstimo compulsório pago entre 1977 e 1986, que foram objeto da conversão em ações deliberadas pelas 72ª e 82ª Assembléia Geral Extraordinária, deve ser aplicada a mesma 391 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 regra geral supracitada, contando-se o prazo prescricional passados vinte anos da aquisição compulsória das obrigações. Quanto à regra aplicável à prescrição, não obstante a ELETROBRÁS seja uma sociedade de economia mista, cujo capital foi integralizado em grande parte com recursos da União, mas não é sustentada integralmente por tributos, recebendo verbas oriundas de tarifas, devendo a ela ser aplicado o prazo vintenário do art. 177 do Código Civil de 1916, curvo-me à posição firmada na Primeira Turma desta Corte. Prevaleceu a posição de que incide o Decreto nº 20.910/32, em virtude da presença da União no feito, na condição de litisconsorte passiva necessária. (AC 2001.04.01.065066-4/SC, Rel. Desa. Maria Lúcia Luz Leiria, DJU 11.12.2002, página 883, AC 2002.72.08.002002-4/SC, DJU 18.06.2003, página 527) Não incidem os dispositivos do CTN, visto que não se trata de ação de repetição de indébito, mas de cobrança de diferenças impagas de correção monetária de exação devida conforme a lei. Não se cuida, outrossim, de prazo decadencial, visto que a pretensão envolve a condenação do réu a uma determinada prestação, não se destinando a criar, modificar ou extinguir um estado jurídico. Considerando que a demanda foi ajuizada em 19.12.2000, inexistem parcelas prescritas, não merecendo reparos a sentença neste ponto. 4 - Correção monetária e juros No que concerne ao cerne da controvérsia, assim dispõe o Decreto-Lei nº 1.512/76, que alterou a Lei nº 4.156/62: “Art 2º O montante das contribuições de cada consumidor industrial, apurado sobre o consumo de energia elétrica verificado em cada exercício, constituirá, em primeiro de janeiro do ano seguinte, o seu crédito a título de empréstimo compulsório que será resgatado no prazo de 20 (vinte) anos e vencerá juros de 6% (seis por cento) ao ano. § 1º O crédito referido neste artigo será corrigido monetariamente, na forma do artigo 3º, da Lei número 4.357, de 16 de julho de 1964, para efeito de cálculo de juros e de resgate. § 2º Os juros serão pagos anualmente, no mês de julho aos consumidores industriais contribuintes, pelos concessionários distribuidores, mediante compensação nas contas de fornecimento de energia elétrica, com recursos que a ELETROBRÁS lhes creditará.” Por sua vez, o art. 3º da Lei nº 4.357/64 determina: “Art 3º A correção monetária, de valor original dos bens do ativo imobilizado das 392 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 pessoas jurídicas, prevista no art. 57 da Lei nº 3.470, de 28 de novembro de 1958, será obrigatória a partir da data desta Lei, segundo os coeficientes fixados anualmente pelo Conselho Nacional de Economia de modo que traduzam a variação do poder aquisitivo da moeda nacional, entre o mês de dezembro do último ano e a média anual de cada um dos anos anteriores.” O critério de correção monetária e o dies a quo demarcados pela Lei não preservam o equilíbrio da relação tributária. O crédito é corrigido pelo mesmo índice adotado para a variação do ativo imobilizado das pessoas jurídicas, não obstante tenha sido pago em dinheiro. Outrossim, recebe correção apenas a partir de sua constituição, no primeiro dia de janeiro do ano seguinte, ficando sem atualização os valores recolhidos durante o ano em que se verificaram as contribuições. Desde a Constituição de 1967, o empréstimo compulsório possui natureza jurídica tributária, estando submetido aos mesmos princípios, normas gerais em matéria de legislação tributária e limitações do poder de tributar inerentes aos demais tributos, insculpidos na Constituição e no Código Tributário Nacional. Dentre estes, a proibição de utilizar tributo com efeito de confisco, contida no art. 150, IV, da Constituição de 1988. A correção monetária tem por finalidade e natureza a recomposição do poder aquisitivo da moeda, recuperando a expressão econômica de valores expressos em pecúnia. Se o Estado não devolver ao contribuinte as importâncias tomadas compulsoriamente com a atualização integral, desde o recolhimento até o efetivo resgate, estará enriquecendo ilicitamente e confiscando o capital do contribuinte, valendo-se do seu poder de impor o empréstimo forçado. Inconsistente o argumento de que o empréstimo compulsório não tem cláusula de preservação do valor real, ante o princípio de vedação ao confisco. Neste sentido, colaciono os precedentes do Colendo STJ e desta Corte: “TRIBUTÁRIO - EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO - CORREÇÃO MONETÁRIA - TERMO INICIAL - LEI 4.357/64, ART. 3º - DL 1.512/76, ART. 2º. I - Na interpretação da lei tributária, não se pode fazer tabula rasa da vedação constitucional ao confisco velado (CF, art. 150, IV). II - Negar correção monetária a valores arrecadados a título de empréstimo compulsório é utilizar a lei tributária, como instrumento de confisco, em desafio à vedação constitucional. III - A conjunção entre o art. 2º do DL 1.512/76 e o art. 3º da Lei 4.357/64 disciplina o tratamento contábil reservado aos valores recolhidos pelos consumiR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 393 dores de energia elétrica, a título de empréstimo compulsório. Em homenagem à vedação de confisco velado (CF, art. 150, IV), tais valores antes de se inscreverem na rubrica ‘crédito’, devem ser corrigidos monetariamente. Não é lícito ao Estado colocar os créditos do contribuinte ao largo do tempo e da inflação, como se um e outra não existissem.” (REsp 194952/SC, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, DJU 29.11.99, p. 00127) “TRIBUTÁRIO - EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO SOBRE O CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA - CONSTITUCIONALIDADE - CORREÇÃO MONETÁRIA DEVIDA DE FORMA INTEGRAL, INCLUSIVE COM UTILIZAÇÃO DOS ÍNDICES DO IPC DE JANEIRO DE 1989, MARÇO, ABRIL, MAIO DE 1990 E FEVEREIRO DE 1991. É legítima a cobrança de empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, instituído pela Lei 4.156/62, inclusive na vigência da CF-88. Para evitar o enriquecimento sem causa, deve a correção monetária ser calculada de forma integral até o momento do efetivo pagamento, com o resgate completo do principal atualizado. Para tanto, devem ser utilizados no cálculo da correção monetária, inclusive, os índices de IPC de janeiro de 1989, março, abril de 1990 e fevereiro de 1991. Precedentes no STJ e no TRF 2ª Região.” (AC nº 96.04.65116-1/PR, 2ª Turma, Rel. Desa. Fed. Tania Escobar, DJU 10.03.99, p. 874) Deve incidir, portanto, a atualização monetária plena sobre os valores resgatados ou devolvidos mediante participação acionária, desde o pagamento até o efetivo resgate, pela variação da ORTN/OTN/BTN/ INPC/UFIR. Entendo descabida a incidência da taxa SELIC, pois há grande discussão na jurisprudência sobre a sua natureza, que engloba índice de correção monetária e taxa de juros. Uma vez que a legislação já prevê juros de natureza compensatória de 6% ao ano sobre as contribuições a serem devolvidas, a inclusão da SELIC implica incidência de juros sobre juros, sem autorização legal. Ademais, o art. 39, § 4º, da Lei nº 9.250/95 não se aplica à hipótese presente, regendo somente os casos de compensação ou restituição de tributo pago indevidamente ou a maior. Inexistindo substituto legal para a UFIR, cumpre ao Poder Judiciário suprir a lacuna. Tendo em vista que a UFIR era corrigida com base no IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado-série Especial), divulgado pelo IBGE, deve ser adotado este indexador, estando em conformidade, ainda, com a Resolução nº 242, de 03.07.2001, do Conselho de Justiça Federal, que aprova o Manual de Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal. 394 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Incluem-se, ainda, os expurgos inflacionários previstos nas Súmulas nos 32 (IPC de janeiro de 1989) e 37 deste Tribunal. (IPC de março, abril e maio de 1990 e fevereiro de 1991) Cumpre salientar que a correção monetária é devida tanto na restituição em dinheiro ou em ações, porquanto a Lei prevê tanto a devolução em espécie como mediante participação acionária, dependendo de decisão da Assembléia Geral da ELETROBRÁS. A conversão antecipada em ações não ilide o direito à diferença decorrente da atualização monetária aplicada a menor, relativa ao período anterior ao resgate. Outrossim, o art. 4º da Lei nº 7.181/83 determinou que a conversão dos créditos do empréstimo compulsório em ações da ELETROBRÁS poderá ser total ou parcial, conforme decidir a Assembléia Geral, e que sua conversão será pelo valor patrimonial das ações. O Supremo Tribunal Federal, no RE nº 146.615-4, considerou recepcionada pela atual Constituição Federal a conversão do crédito em ações, na forma determinada pela legislação. Este dispositivo é materialmente compatível com a Constituição de 1988, apresentando-se o critério escolhido pelo legislador em consonância com o direito fundamental de propriedade, encartado no art. 5º, XXII, inexistindo contrariedade, ainda, ao princípio que veda a estipulação de tributo com efeito de confisco, consagrado no art. 150, IV. O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo da empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa a correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade e o número de ações emitidas. Quanto ao valor de mercado, resulta de diversos fatores, nem sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa; caracteriza-se por ser extremamente volátil, flutuante e sujeito à especulação, não se revelando um parâmetro seguro para a avaliação do valor real de uma ação. Não se pode concluir, portanto, que a conversão pelo valor patrimonial das ações acarreta confisco, pelo simples fato de, em dado momento, haver descompasso com o valor de mercado. É de se observar, ainda, que a devolução em ações constitui prerrogativa da ELETROBRÁS, que pode optar pela devolução em pecúnia ou em participação acionária. A cláusula de inalienabilidade, consoante o § único do art. 3º do DL nº 1.512/76, somente pode ser afastada por decisão da Assembléia Geral. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 395 Ressalto que os juros de 6% ao ano, previstos no art. 2º, caput e parágrafo 2º, do DL nº 1.512/76, também devem fluir sobre o montante do empréstimo compulsório corrigido integralmente, sob pena de não ser cumprida de forma plena a restituição. A alteração legal na forma de pagamento dos juros não tem repercussão no reflexo gerado pela correção monetária do empréstimo compulsório. Ante o exposto, voto no sentido de dar parcial provimento à apelação da ELETROBRÁS e à remessa oficial, para afastar a condenação da ELETROBRÁS a pagar as diferenças relativas à conversão das ações de acordo com o valor de mercado, e negar provimento à apelação da União. VOTO DIVERGENTE A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Do Mérito O empréstimo compulsório em favor da Eletrobrás foi instituído em 1962 pela Lei nº 4.156, passando a ser cobrado, mensalmente, nas contas de consumo de energia elétrica de janeiro de 1964, com a finalidade de financiar a expansão do setor elétrico. Quanto ao mérito, a matéria encontra-se sumulada neste Tribunal conforme enunciado nº 23, com a seguinte redação: “É legitima a cobrança do empréstimo compulsório incidente sobre o consumo de energia elétrica, instituído pela Lei 4.156/62, inclusive na vigência da Constituição Federal de 1988.” Esta é a orientação do Egrégio Supremo Tribunal Federal, afastando a inconstitucionalidade em qualquer aspecto, inclusive no que se refere à devolução dos valores em ações da Eletrobrás: “EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. INSTITUÍDO EM BENEFÍCIO DA ELETROBRÁS. LEI Nº 4.156/62. LEGITIMIDADE DA COBRANÇA RECONHECIDA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALEGADA OMISSÃO QUANTO À ABUSIVA FORMA DE DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 146.615-4, reconheceu que o empréstimo compulsório, instituído pela Lei nº 7.181/83, cobrado dos consumidores de energia elétrica, foi recepcionado pela nova Constituição Federal, na forma do art. 34, parágrafo 12, do ADCT.” (Agravo Regimental no RE 194875-3, Relator Min. Ilmar Galvão, DJU 19.04.95) 396 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Da Prescrição Inicialmente, cumpre salientar que os recolhimentos de 1964 a 1973 foram quitados com a entrega de títulos ao portador (Obrigações da Eletrobrás), com dois prazos de resgate: de 10 anos para as obrigações emitidas entre 1965 e 1967; de 20 anos para os títulos emitidos entre 1968 e 1974. Já os recolhimentos de 1974 a 1976 foram quitados com a entrega de títulos ao portador, denominadas Cautelas de Obrigações da Eletrobrás, resgatáveis em 20 anos. Com o advento do Decreto-Lei nº 1.512, de 29.12.76, o montante das contribuições pagas pelo consumidor industrial em cada exercício, a partir de 1977, passou a constituir, em primeiro de janeiro do ano seguinte, o seu crédito a título de empréstimo compulsório, resgatável em 20 anos, em espécie ou mediante conversão do respectivo valor em participação acionária. Desta forma, o prazo prescricional para a ação que visa cobrar diferenças dos recolhimentos efetuados a partir de 1977 (constituídos após 1978) teria início vinte anos após a aquisição compulsória das obrigações emitidas em favor do contribuinte. Decorridos estes 20 anos, o prazo prescricional que se inicia obedece à regra do artigo 1º do Decreto-Lei nº 20.910/32 e é, portanto, qüinqüenal, já que litisconsorte necessária a União Federal, conforme acima exposto. Entretanto, não podemos olvidar que, em duas ocasiões, fazendo uso de prerrogativa legal (art. 3º do DL nº 1.512/76), a Eletrobrás procedeu à conversão dos créditos do empréstimo compulsório em participação acionária. A primeira conversão, aprovada pela 72ª Assembléia Geral Extraordinária, realizada em 20.04.88, abrangeu os créditos constituídos no período de 1978 a 1985 (relativamente aos pagamentos efetuados de 1977 a 1984); a segunda, aprovada pela 82ª AGE, realizada em 26.04.90, converteu em ações os créditos constituídos de 1986 a 1987 (pagamentos efetuados de 1985 a 1986). Esta emissão de ações é forma de resgate antecipado, de pagamento, ou seja, de devolução dos valores cobrados, correndo, a partir desse ato jurídico, o prazo para pleitear e apontar possíveis defasagens no pagamento, pois realizado, bem ou mal, o cumprimento da obrigação bilateral, de empréstimo e restituição, entre as partes envolvidas. Neste sentido, esta E. Corte já manifestou entendimento, proferido na Apelação Cível nº 96.04.37248-3/SC, no sentido de que o prazo prescricional para a propositura de ações visando à corR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 397 reção monetária integral dos valores pagos em virtude do empréstimo compulsório é de 5 anos (aplicável a regra do artigo 1º do Decreto-Lei nº 20.910/32), contados do dia seguinte à data de realização das Assembléias Extraordinárias da Eletrobrás que decidiu pela conversão do valor dos empréstimos em ações preferenciais. Neste contexto, no que tange ao prazo prescricional, podemos concluir que: a) no tocante às parcelas devolvidas (convertidas em ações) pelas Assembléias Gerais Extraordinárias nos 72 e 82, o prazo para postular a revisão judicial da correção monetária aplicada nos créditos constituídos de 1978 a 1987 (recolhimentos de 1977 a 1986) já se exauriu, uma vez que a presente demanda foi ajuizada após o qüinqüídio legal; b) quanto aos valores constituídos após 1988 (recolhidos a partir de janeiro/87), e ainda não convertidos em ações, porquanto ainda não transcorrido o período de 20 anos, mostra-se inexigível sua devolução. A ação declaratória envolve a necessidade de ser resolvida a incerteza a respeito da existência ou inexistência de relação jurídica, ou, na hipótese do art. 4º, II, do CPC, da falsidade ou autenticidade de documento. O interesse de agir envolve “a necessidade, concretamente demonstrada, de eliminar ou resolver a incerteza do direito ou da relação jurídica” (RTJ 83/934). No caso presente, não estão consumadas nem a devolução, nem a conversão em ações, com o que não há porque se pronunciar, antecipadamente, sobre uma relação ainda inocorrente. Somente a partir do implemento de uma das condições, é que surgirá o interesse de agir. No caso dos autos, concluo que inexistem diferenças devidas, pois, quanto às parcelas devolvidas (recolhimentos de 1977 a 1986 convertidos em ações da Eletrobrás - Assembléias Gerais Extraordinárias nos 72 e 82), a ação para postular a correção monetária está prescrita, e, quanto aos valores constituídos após 1988 (recolhidos após 1987), estes são inexigíveis, em face de não ter transcorrido o período de 20 anos previsto 398 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 para a devolução. Isso posto, de ofício, julgo extinto o processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC, quanto aos valores recolhidos entre 1987 e 1993, dou parcial provimento ao recurso da União e à remessa oficial e dou provimento ao recurso da Eletrobrás. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2000.72.07.000446-3/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas Apelante: Cia. Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina - CIDASC Advogados: Drs. Arno Gomes e outros Apelada: Seara Alimentos S/A Advogados: Drs. Rutineia Bender e outros Dr. José Morschbacher Dr. Fernando Gheller Morschbacher EMENTA Tributário. Taxa de classificação vegetal. Decreto-Lei 1.899/81. O Decreto-Lei 1.899/81, ao instituir a Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, definiu todos os elementos constitutivos do tributo, não havendo violação ao princípio da legalidade. É legítima a fixação do valor de taxa com base em um determinado valor por tonelagem de produto a ser fiscalizado. É cabível a atualização mediante portaria de valor de taxa originalmente fixado em lei. Apelação e remessa oficial providas. ACÓRDÃO R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 399 Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 10 de fevereiro de 2004. Des. Federal Surreaux Chagas, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Seara Alimentos S/A. impetra Mandado de Segurança contra o Representante da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina – CIDASC, em litisconsórcio passivo necessário com a União Federal, objetivando afastar a exigência da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais sobre milho importado para consumo industrial no crescimento e engorda de aves destinadas ao abate para produção de carne processada, prevista no Decreto-Lei nº 1.899/81. A exação é depositada judicialmente. (fls.78/80) A autoridade coatora presta informações. A União Federal apresenta contestação. O MM. Juízo, sentenciando, preliminarmente, exclui a União Federal do pólo passivo. No mérito, concede a segurança. (fls. 134-150) Inconformada, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina – CIDASC interpõe apelação, sustentando a necessidade da classificação dos produtos vegetais que ingressam no país, seja para comercialização, seja para industrialização, de forma a resguardar a produção nacional, em face do que a taxa é exigível. A impetrante apresenta contra-razões. Regularmente processada a apelação, sobem os autos. O Ministério Público opina pelo provimento da apelação e da remessa oficial. Causa sujeita a reexame necessário. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Controverte-se sobre a 400 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 constitucionalidade e a legalidade da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, tributo decorrente do respectivo serviço de classificação. A impetrante busca afastar a exigência da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais sobre sorgo importado para consumo industrial no crescimento e engorda de aves destinadas ao abate para produção de carne processada. A segurança foi concedida. Inicialmente, destaco que o serviço de classificação de produtos vegetais e a retribuição do respectivo serviço foram tratados separadamente em diplomas diversos, os quais passo a analisá-los. O serviço de classificação de produtos vegetais A classificação dos produtos vegetais e de seus subprodutos e resíduos de valor econômico destinados à comercialização interna foi instituída pela Lei 6.305/75, que definiu tal serviço como o ato de determinar as qualidades intrínsecas e extrínsecas de um produto, com base em padrões oficiais, físicos e ou descritos. (art. 2º) Nos termos da lei instituidora, a coordenação do serviço compete ao Ministério da Agricultura, podendo ser executado mediante convênio da União com os Estados e outras entidades públicas e privadas. (art. 3º) Posteriormente, a Lei 9.972, de 26.05.2000, revogou a Lei 6.305/75 e deu nova disciplina à classificação de produtos vegetais. A lei nova, embora mantivesse essencialmente as mesmas bases da lei anterior (obrigatoriedade da classificação, definição de classificação, competência, possibilidade de delegação da execução, etc.), alarga as hipóteses em que a classificação é obrigatória, que deixa de ser exigível apenas nos casos em que os produtos sejam destinados à comercialização interna. Portanto, a obrigatoriedade da classificação de produtos vegetais, desde a edição da Lei 6.305/75, não sofreu solução de continuidade, estando hoje a exigência calcada na Lei 9.972/2000. A retribuição do serviço e do exercício do poder de polícia relativos à classificação de produtos vegetais Examinada a evolução legislativa relativa ao serviço de classificação de produtos vegetais, passo à apreciação da legislação que regula a retribuição do referido serviço e do respectivo exercício do poder de polícia. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 401 A lei instituidora da classificação vegetal – Lei 6.305/75 – previa a cobrança de preços públicos como retribuição do serviço de classificação. (art. 6º) Posteriormente, com a edição do Decreto-Lei 1.899/81, o regime de preços públicos para a retribuição do serviço de classificação foi abandonado, instituindo-se a Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, nos seguintes termos: “Art. 1º. Ficam instituídas as Taxas de Classificação, Inspeção e Fiscalização, de competência do Ministério da Agricultura, relativas a produtos animais e vegetais ou de consumo nas atividades agropecuárias.” O Decreto-Lei define como fato gerador da taxa a prestação de serviço de classificação e o regular exercício do poder de polícia pela União ou pelas entidades a quem essas atividades tiverem sido delegadas. (art. 3º) O sujeito passivo é a pessoa física ou jurídica a quem o serviço de classificação é prestado ou colocado à disposição, ou o paciente do poder de polícia, quando este seja efetivamente exercido. (art. 4º) O valor da taxa é fixado em ORTN, em função da tonelagem da mercadoria a ser classificada, nos seguintes termos: “Art. 2º. O valor das taxas será determinado em função de múltiplos ou frações do valor nominal de uma Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional – ORTN, fixado para os meses de janeiro e julho de cada ano, na forma seguinte: (...) III – pela classificação de produtos vegetais: a) classificação: 2 (duas) ORTN por tonelada ou fração; b) reclassificação: 4 (quatro) ORTN, por tonelada ou fração.” A superveniência da Lei 9.972/2000, que, como vimos acima, alterou em parte a disciplina do serviço de classificação de produtos vegetais, mas o manteve em suas linhas gerais, não revogou o Decreto-Lei 1.899/81. Portanto, a retribuição do serviço e do exercício do poder de polícia relativo à classificação de produtos vegetais permanece regulada pelo Decreto-Lei 1.899/81. Colocados os fundamentos legais da Taxa de Classificação de Produtos Vegetais, enfrento agora os vícios alegados na exação em exame. Violação ao princípio da legalidade O Decreto-Lei 1.899/81, que instituiu a taxa em questão, define todos 402 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 os elementos constitutivos da exação: o sujeito ativo (art. 1º), o sujeito passivo (art. 4º), o fato gerador (art. 3º) e a base de cálculo. (art. 2º) Especificamente quanto à base de cálculo, a lei nem sempre há de ser exaustiva. Em algumas situações, o legislador é obrigado a editar normas “em branco”, cujo conteúdo final é deixado para outro poder regulamentar. O que importa é que a lei estabelece o valor máximo da taxa de classificação de duas ORTN por tonelada e quatro ORTN na reclassificação. É legítima a fixação do valor da taxa com base em determinado valor por tonelagem de produto a ser fiscalizado. Portanto, estando definidos em lei os elementos essenciais do tributo, não há que se falar em violação ao princípio da legalidade. Base de cálculo própria de impostos A impetrante alega que a base de cálculo da taxa, fixada na lei conforme a tonelagem dos produtos a serem classificados, não guarda qualquer relação com o custo do serviço a ser prestado pelo Estado, afeiçoando-se à base de cálculo própria de impostos, violando assim as regras do art. 77 do CTN e também do art. 145, § 2º, da CF/88, segundo a qual as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos. Contudo, a classificação dos produtos vegetais é feita por amostragem conforme previsto no Decreto 82.110/78. As amostras são retiradas de modo a representar, com segurança, a qualidade do produto a que se referem (art. 6º). Ora, se a amostragem é extraída de forma a representar com segurança o todo, é natural que os custos da classificação sejam diretamente proporcionais à quantidade (ou ao peso) de produtos a serem fiscalizados. Assim, está preservado o princípio da retributividade da taxa, havendo correlação entre os valores exigidos e o custo do serviço prestado. Concluindo, não há qualquer vício na base de cálculo que macule a exação em foco. Fixação do valor da taxa por ato administrativo O valor da taxa foi fixado na lei instituidora, o Decreto-Lei 1.899/81, em 2 ORTN por tonelada (art. 2º). O mesmo diploma legal autorizou o Executivo a, mediante portaria, reduzir até zero o valor das taxas, bem como de restabelecê-lo no todo ou em parte. (art. 8º) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 403 Inicialmente, ressalto que a delegação nada tem de ilegal ou inconstitucional. A lei instituiu o tributo, definindo todos seus elementos constitutivos e demarcando precisamente os limites em que o administrador poderia atuar. Não há qualquer competência legislativa indevidamente delegada. Com efeito, incabível seria a fixação por portaria de valor da taxa superior ao determinado na lei. Contudo, no caso de fixação pelo administrador da taxa em valor inferior ao legalmente previsto, estando ele expressamente autorizado pelo legislador para tanto, a par de não estar configurada qualquer ilegalidade, o contribuinte não teria nem interesse de agir, pois estaria sendo patrimonialmente beneficiado. Outrossim, os atos administrativos que fixam o valor da taxa são mera atualização do valor fixado na lei instituidora, e que são indispensáveis até pela extinção do indexador a que foi originalmente vinculada a exação. Constituindo-se em mera atualização e não em determinação do valor ou em majoração do tributo, incide o princípio inscrito no art. 97, § 2º, do CTN (a atualização do valor monetário da base de cálculo, por não constituir majoração de tributo, independe de lei), não havendo óbice para sua veiculação por portaria. No caso, a lei instituidora fixou o valor máximo da taxa, admitindo sua redução pela Administração nos casos em que entender conveniente. Assim, a fixação de valores diversos, conforme o tipo de produto a ser fiscalizado, desde que respeitado o limite previsto na lei, tem amparo na lei e corresponde exatamente aos ditames nela previstos. Outrossim, é cabível a atualização mediante portaria de valor de taxa originalmente fixado em lei. Inexigibilidade da taxa em relação a produtos que não se destinam à comercialização interna A impetrante alega que a classificação no caso não é obrigatória, pois os produtos teriam sido adquiridos diretamente no exterior pelo importador e não se destinariam à comercialização interna, mas sim à utilização pelo próprio importador em seus aviários. Assim, como a lei prevê a classificação apenas para os produtos destinados à comercialização interna, seria indevida a respectiva taxa. No regime da lei anterior (Lei 6.305/75), a classificação era exigível 404 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 para produtos vegetais e respectivos subprodutos e resíduos de valor econômico destinados à comercialização interna. Contudo, no caso dos autos, essa questão restou superada porque a exigência está sendo discutida já na vigência da Lei 9.972/2000, que, como vimos, instituiu a obrigatoriedade da classificação independentemente do produto ser destinado ao mercado interno. Com efeito, a classificação é obrigatória para os produtos vegetais, seus subprodutos e resíduos de valor econômico importados, nos termos do art. 1º, III, da Lei 9.972/2000: “Art. 1º. Em todo o território nacional, a classificação é obrigatória para os produtos vegetais, seus subprodutos e resíduos de valor econômico: (...) III – nos portos, aeroportos e postos de fronteira, quando da importação.” Portanto, a classificação de produtos vegetais importados é obrigatória, independentemente deles se destinarem à comercialização interna. Conseqüentemente, é exigível a respectiva taxa. Em face do exposto, dou provimento à apelação e à remessa oficial para denegar a segurança. Custas pela impetrante. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.70.01.006376-5/PR Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Apelantes: Elson Bento de Araujo Fi e outros Advogada: Dra. Ana Roberta Biazoto Apelado: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA Advogados: Drs. Luciane do Carmo Scheffer de Souza e outros R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 405 EMENTA Taxa de controle e fiscalização ambiental – Natureza jurídica de contribuição especial de intervenção no domínio econômico – Constitucionalidade. 1. Conforme o art. 4º do CTN, o fato de o legislador dar à entidade que cria nome diverso daquele que ela representa não lhe mudará a natureza. 2. Embora a Lei 10.165/2000 referir-se à exação criada como taxa, veio, na realidade, instituir uma contribuição de intervenção no domínio econômico, com suporte no art. 149 da CRFB/88, estando tal finalidade representada pela defesa do meio ambiente, princípio da ordem econômica estampado no art. 170, VI, CRFB/88. 3. É exação vinculada, cobrada com base em atividade estatal de caráter geral pelo IBAMA: monitoramento de atividade potencialmente poluidora. 4. O sujeito passivo é a empresa potencialmente poluidora ou utilizadora de recursos naturais, e o fato gerador é o mero exercício desta atividade. O controle e fiscalização, embora constem na lei como fato gerador do tributo, são a finalidade para a qual é ele instituído. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 2 de junho de 2004. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de recurso de apelação, em mandado de segurança, contra sentença que denegou pedido de declaração de inconstitucionalidade da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental - TCFA, prevista no § 1º do art. 17-B da Lei 6.938/81, com a redação que lhe atribuiu a Lei 10.165/00, reconhecendo a propriedade do fato gerador. 406 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Insurge-se a impetrante, sustentando, em síntese, a inexistência de poder de polícia para fins de reconhecimento da exigibilidade e constitucionalidade da “taxa de fiscalização e controle ambiental” efetivamente como taxa. Alega que a exação não configura uma taxa, mas verdadeiro tributo. Ademais, afirma que cobrança semelhante já era efetuada pelo SISNAMA, competente para tanto, implicando a ocorrência de bis in idem. Alega a inconstitucionalidade da Lei 10.165/00. Com contra-razões, subiram os autos. Parecer do Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso de apelação. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: A Lei 9.960/00 foi implicitamente revogada pela Lei 10.165/2000, que, alterando mais uma vez a redação da Lei 6.938/81, instituiu exação denominada Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental - TCFA, substituindo a TFA. A lei nova visou a não incorrer nos mesmos erros da Lei 9.960/00 e inseriu o art. 17-B à Lei 6.938/81, determinando ser o fato gerador o exercício regular do poder de polícia, conferido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais. Assim determina: “Art. 17-B: Fica instituída a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental - TCFA, cujo fato gerador é o exercício do poder de polícia conferido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais.” A ação foi julgada improcedente mediante entendimento do MM. Juízo de primeiro grau no sentido de que a Lei 10.165/00 criou uma taxa preenchendo todos os requisitos legais e constitucionais. Tenho que a decisão deve ser mantida, porém por fundamentos diversos. Para tanto, faz-se necessário um estudo detalhado sobre a natureza tributária da TCFA, nos termos do art. 4º do CTN. In verbis: “Art. 4º: A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;” R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 407 Os nomes empregados aos tributos criados, por critérios científicos de segurança e de objetividade, devem corresponder à realidade. Nem sempre, porém, esta recomendação é seguida. De nada adianta o legislador dar à entidade que cria nome diverso daquele que ela representa, porque a mera designação não lhe mudará a natureza. É o fato gerador que lhe demonstrará a natureza e sua respectiva base de cálculo. Excluo, desde logo, a possibilidade de a exação criada ter natureza de taxa, conforme foi denominada, ou de imposto. Quanto à primeira possibilidade, aquela prevista na lei de criação e adotada pela decisão monocrática, refuto ante o fato de ter sido escolhido como fato gerador hipótese diversa daquelas constitucionais e legalmente previstas para seu cabimento. Conforme o art. 17-B da Lei 10.165/00, o aspecto material da hipótese de incidência da “taxa” é o exercício do poder de polícia conferido ao IBAMA para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais. Porém, não há a descrição de qual é a ação policial que irá ser exercida, ou qual será o serviço de utilização efetiva, ou de utilização potencial, específica e divisível. Não se enquadra, assim, no art. 77 do CTN ou no art. 145, II, da CRFB/88, pois não se vislumbra como taxa de serviço, ante seu não-fruimento, nem taxa de polícia, eis que não há concreta manifestação deste poder, através do efetivo exercício de dada atividade, nos limites e condições prefixados na CRFB/88. Aqui esbarra a denominação conferida ao tributo. A espécie também não pode ser tratada como um imposto propriamente dito. Considero, na esteira doutrinária, ser suficiente ao reconhecimento da espécie da exação instituída identificar a materialidade da hipótese de incidência e referibilidade de seus elementos constitutivos com a obrigação. Assim, os impostos se reconhecem por exclusão. Voltando à lei em tela, o tributo, de acordo com o art. 16 do CTN, conforme alegação da impetrante, teria como fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte. Assim, obedecendo ao art. 154, I, da CRFB/88, para a instituição de um novo imposto, seria necessário a elaboração de uma Lei Complementar, o que não ocorreu. Posto ser evidente o não-enquadramento da exação como contribuição de melhoria ou empréstimo compulsório, exações que exaurem as 408 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 espécies tributárias previstas na Constituição Federal, passo a apreciar a possibilidade da mesma tratar-se de uma contribuição especial. Minuciosamente detalhada é a classificação das contribuições especiais esposada por Leandro Paulsen (Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 38): (1) contribuições especiais do interesse das categorias profissionais - art. 149, CRFB/88, terceira parte; (2) contribuições especiais de intervenção no domínio econômico - art. 149, CRFB/88, segunda parte; (3) contribuições especiais sociais, divididas em (a) gerais - art. 149, CRFB/88, primeira parte; (b) de seguridade social - art. 195, I, II, III, CRFB/88; (c) de previdência e assistência do funcionalismo público estadual, municipal e distrital - art. 149, § único, CRFB/88. Começo por aquela que me parece mais adequada, presente no art. 149 da Constituição Federal como contribuição de intervenção no domínio econômico, cuja competência resta à União ou pessoa jurídica da administração pública indireta federal, nos casos em que intervém necessariamente no sentido da realização dos princípios que informam a ordem econômica, estampados nos incisos do art. 170 da CRFB/88. O Estado, assim, executa atividades que lhe são constitucionalmente designadas em prol da coletividade, de acordo com as competências constitucionais. À União, no exercício destas atividades, é facultada a instituição de cobranças. Nada aleatório ou discricionário, mas necessidade especial da qual se vale, sendo um grupo específico que vai pagar a atuação estatal. Conforme determinação da Lei 10.165/00, o grupo é o das empresas potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais, a pagar pela possibilidade de afetar o meio ambiente, protegido pelo inciso VI do supramencionado art. 170. A cobrança está vinculada a uma atuação estatal, exercida por meio de uma autarquia legalmente criada, qual seja o IBAMA, em benefício do indivíduo, enquanto membro do grupo. O sujeito ativo é o IBAMA, de forma que não há, então, violação à Lei 6.938/81, in totum, ou incompatibilidade com a atividade exercida pelo SISNAMA ou pelos órgãos estaduais (como a FEPAM) competentes para fornecer licenciamento às entidades que exercem atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais. A instituição da TCFA é compatível com R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 409 os artigos 3º; 4º; 6º, e incisos; 8º; 9º, IV; 10º e §§ 3º e 4º; 11 e § 1º, da Lei 6.938/81. As contribuições, assim, são vinculadas a uma atuação estatal, apenas e tão-somente, de modo indireto e mediato ao contribuinte. Não há, também, incompatibilidade com as taxas de licenciamento cobradas supletivamente pelo IBAMA ou nas hipóteses do § 4º do art. 10 da Lei 6.938/81. A finalidade, por sua vez, é requisito inafastável para a caracterização da contribuição e não deve ser confundida com a destinação. Vislumbro uma atividade desenvolvida em caráter geral pelo IBAMA de monitoramento das atividades potencialmente poluidoras. Conforme se depreende da lei, a pretensa taxa é cobrada semestralmente sem que a empresa tenha necessariamente sofrido fiscalização específica. Basta, para a cobrança do valor fixado, estar a empresa operando naquela atividade legalmente prevista, e ter o Instituto ingerência sobre tal matéria. Ou seja, o sujeito passivo é a empresa potencialmente poluidora, e o fato gerador, extraído do art. 17-C, é o mero exercício, pelo contribuinte, desta atividade. O controle e fiscalização destas atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais, embora constem na lei nominalmente como fato gerador do tributo, são, em verdade, a finalidade para a qual é ele instituído. Entendo que se está diante de uma contribuição especial para cuja instituição tem a União competência. Trata-se de situação ensejadora da instituição de contribuição de intervenção no domínio econômico, quando o Estado intervém como agente normativo e regulador, exercendo, na forma da lei criada, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, no custeio das metas fixadas na Ordem Econômica. Lá, no art. 170, VI, CRFB/88, está a defesa do meio ambiente. Quanto aos contribuintes e ao valor da contribuição, guardam adequação à finalidade visada, pois são sujeitos passivos as empresas cujas atividades estão ligadas diretamente ao ambiente e às quais diz respeito o monitoramento realizado. Prevê, também, que o valor variará de acordo com o tamanho da empresa e o potencial de poluição e o grau de utilização de recursos naturais de cada uma das atividades sujeitas à fiscalização. Ou seja, a impetrante deve recolher a taxa ao IBAMA, a partir da vigência da Lei 10.165/00, segundo o grau de risco que impõe ao meio ambiente, assim previsto na lei. Desta forma, demonstra relação de pertinência com a atividade estatal a ser desenvolvida no sentido de 410 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 defesa do meio ambiente. Não há violação ao princípio constitucional do não-confisco. É contribuição de intervenção no domínio econômico, com suporte no art. 149 da CRFB/88, estando tal finalidade representada pela defesa do meio ambiente, princípio da ordem econômica estampado no art. 170, VI, CRFB/88. Relembro que não se faz necessário o veículo específico da lei complementar para a instituição desta espécie de contribuição, necessidade restrita às contribuições residuais de seguridade social. Assim o é frente à previsão específica formulada na CRFB/88, em seu art. 195, § 4º, quando determina que essa instituição deverá observar a técnica da competência residual da União prevista no art. 154, I. Ademais, há que se guardar a obrigação do julgador de preservar as normas legais, quando há possibilidade de dar-lhes uma interpretação conforme a Carta Constitucional, ao invés de extirpar-lhe do mundo jurídico considerando-a completamente inconstitucional. Embora o tributo criado não venha se enquadrar nos moldes conceituais da taxa, ele preenche os requisitos da contribuição. Considero, aliás, o nobre objetivo que compreende a Lei nº 10.165/00, posto o efetivo prejuízo das já combalidas ações de controle e fiscalização ambientais, que, diga-se, merecem toda atenção e zelo possíveis não somente do Poder Judiciário, como de toda coletividade, por tratarem de questões diretamente relacionadas com a qualidade de vida, senão com a própria sobrevivência. Deve a legislação, que vem lhe proteger, receber interpretação conforme o texto constitucional, de maneira que se afaste qualquer declaração de inconstitucionalidade que impossibilite o exercício da proteção que o IBAMA realiza. Esta decisão não viola os seguintes artigos, que desde já tenho por prequestionados: 145, II, § 1º; 150, IV; 167, IV, da CRFB/88; 4º; 16; 78, do CTN; 3º; 4º; 6º, e incisos; 8º; 9º, IV; 10º e §§ 3º e 4º; 11 e § 1º; 17-B; 17-C; 17-D; 17-F; 17-G; 17-H; 17-I e 17-O da Lei 6.938/81, que gozam de plena constitucionalidade. Ademais, todos os princípios constitucionais foram preservados conforme fundamentação supra. Ante o exposto, nego provimento ao recurso de apelação. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 411 APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2002.70.01.015827-2/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida Apelante: Cooperativa Agroindustrial Nova Produtiva Advogados: Drs. Frederico de Moura Theophilo e outros Apelada: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin EMENTA Tributário. Mandado de segurança. PIS. COFINS. CSLL. IRPJ. Atos cooperativos. Operações da cooperativa com terceiros. Distinção. Lei 5.764/71. Tributação. Revogação da isenção do art. 6º da Lei 70/91 pela Lei 9.430/96. Possibilidade. Lei complementar e lei ordinária. Hierarquia. Inexistência. IN 23/2001. Legalidade. CIDE. Lei 10.336/01. Vinculação da receita. Referibilidade. Isonomia. Lei complementar. Desnecessidade. Alteração da alíquota por ato do executivo. Possibilidade. Invasão à reserva material de competência. Desvio de finalidade das receitas. Inocorrência. Compensação com tributos de destinação diversa. Benefício legal. 1. Inexiste inconstitucionalidade na revogação da isenção da COFINS, prevista na LC nº 70/91, em relação às cooperativas, pela Medida Provisória nº 2.113-27/2001, que resulta da transformação da Medida Provisória nº 1.858-09/99, consoante a Argüição de Inconstitucionalidade na AMS nº 1999.70.05.003502-0/PR, Corte Especial, Rel. p/ acórdão Des. Fed. Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 23.01.2002, p. 177. 2. Inexistindo lei complementar oferecendo o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, preconizado pelo art. 146, III, c, da Constituição, a matéria pode ser regulada por lei ordinária ou medida provisória. 3. A Lei Complementar nº 70/91, ao instituir a contribuição prevista no art. 195, I, da Constituição, é materialmente lei ordinária, não colhendo o argumento de que seu art. 6º, I, possui status de lei complementar, porquanto ainda pendente de regulamentação o art. 146, III, c, da CF/88. O tratamento que vier a ser dado ao ato cooperativo por lei ordinária não colide com os preceitos da Lei nº 5.764/71, recepcionada pela Constituição com o mesmo status normativo. 412 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 4. As alterações introduzidas na base de cálculo e alíquota da COFINS pela Lei nº 9.718/98 dispensam a edição de lei complementar, exigida apenas para a eventual instituição da contribuição prevista no art. 195, § 4º, da Constituição. 5. A Lei 5.764/71 diferencia entre ato cooperativo (artigo 79) e operações da cooperativa (artigo 86), considerando como renda tributável a receita obtida pela venda de mercadorias e serviços a terceiros. 6. A Instrução Normativa 23/2001 não desbordou da competência ao regular o artigo 74 da Lei 9.430/96, nele encontrando seu fundamento de validade. 7. O art. 182 do Decreto 3.000/99 prevê não-incidência do IRPJ sobre as atividades econômicas das sociedades cooperativas, desde que em proveito comum dos associados. Há que se distinguir, pois, entre a própria cooperativa e seus sócios componentes. 8. O regramento dispensado à CIDE vertida pela Lei 10.336/01 não destoa dos preceitos entabulados nos artigos 149, § 2º, e 177, § 4º, da Constituição Federal. 9. É desnecessária lei complementar para regulamentar o art. 177, § 4º, da CF, eis que a remissão ao art. 146, III, feita pelo art. 149 da Carta Maior se refere tão-somente a normas gerais de direito tributário, estas que, na ausência da lei complementar referida, estão contidas no CTN. 10. Apelação improvida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de junho de 2004. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Cooperativa Agroindustrial Nova Produtiva, almejando obter ordem no sentido de determinar que R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 413 o Delegado da Receita Federal de Londrina/PR se abstenha de exigir a CIDE cobrada com base na Lei 10.336/01. Diz-se impossibilitada de efetuar a dedução da CIDE dos valores devidos ao PIS e à COFINS, de acordo com o art. 8º da referida lei, porque é isenta do pagamento dessas contribuições sociais, porquanto o ato cooperativo não denote capacidade contributiva. Alterca que o art. 174 da CF não legitima o Estado a estabelecer planos econômicos cogentes para o setor privado. Entende desrespeitado o princípio da vinculação das receitas, que participa da definição do tributo. Aponta, ainda, a infringência ao princípio da isonomia, porque a alíquota específica estabelecida pelo art. 5º da Lei 10.336/01 onera em mesma proporção contribuintes que se encontram sob situação fática diversa. Esgrime que o art. 9º do diploma normativo, que prevê a possibilidade de alteração da alíquota por ato do Poder Executivo, é eivado de inconstitucionalidade. Refere, outrossim, que a incidência da contribuição sobre idêntica hipótese material do ICMS fere o princípio da reserva material de competências, vício que recai sobre o art. 3º, inc. II, da Lei 10.336/01. Por derradeiro, assesta contra o regime de dedução autorizado pelo já citado art. 8º, dada a impossibilidade de compensação entre contribuições de vinculação diversa - a CIDE está destinada à intervenção no domínio econômico, o PIS ao custeio do salário-desemprego e do abono salarial e a COFINS ao financiamento da seguridade social. (fls. 02-37) Regularmente processado o feito, sobreveio sentença denegatória. (fls. 206-215) Desapontada, apela a impetrante, dando novo impulso ao intento inicial. (fls. 216-235) Contra-razões. (fls. 238-250) Parecer do MP pelo desprovimento do recurso. (fls. 252-254) É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Wellington Mendes de Almeida: Das contribuições ao PIS e à COFINS Importa, para precisar os limites do regime de tributação das cooperativas, definir o que se deve entender por ato cooperativo. Este vem 414 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 conceituado no art. 79 da Lei 5.764/71, nestes termos: “Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais. Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.” O ato cooperativo não deve implicar operação de mercado. A cooperativa é entidade personificada que atua em substituição aos sócios, encaixando-se no conceito civil de associação, que pressupõe uma organização de pessoas sem fins econômicos (CC, art. 53). Ocorre que, para a consecução do seu objeto social, a cooperativa acaba por empreender atos com significação econômica, ainda que não seja esse o fim colimado no estatuto. Daí que esses atos, importando operação de mercado, não se ajustam ao conceito de ato cooperativo, afastando-se, pois, do art. 79 da Lei 5.764/71. Em seu conteúdo há uma expressa manifestação de riqueza, que atrai a incidência da norma impositiva sem que se ultime maculado o princípio da capacidade contributiva. A MP 2.158/2001, em seu artigo 15, estipula as espécies de receita passíveis de exclusão da base de cálculo do PIS e da COFINS, e já foi objeto de análise pela Segunda Turma deste Tribunal, conforme decisão assim ementada: “CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. COOPERATIVA. ATO COOPERATIVO. CF/88 ART. 174 PAR 2 E ART 146 INC. III ALÍNEA A. EXEGESE. PIS. COFINS. LC 70/91 ART 6º INC I. LEI 9.715/98 ART. 2º INCISO II. LEI 9.718/98, ARTS. 2º E 3º. MP 2.158-35, ARTS. 13, 15, 93. CONSTITUCIONALIDADE. IRPJ. ATOS NÃO COOPERATIVOS. INCIDÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO DE RESULTADO. TRIBUTAÇÃO. 1. A circunstância de a autora ostentar natureza de cooperativa e/ou de praticar atos cooperativos, em nada a diferencia das demais pessoas jurídicas com fins lucrativos porquanto somente ‘haverão de ter um adequado tratamento tributário, quando sobrevier a lei complementar programada no texto complementar [art. 146, III, c, da CF/88]. Nada mais do que isso. Enquanto não foi editada a lei complementar prevista no art. 146, III, c, da CF de 1988, as sociedades cooperativas permanecem na situação de qualquer sociedade quanto à imposição de tributos’ (TRF 4ª R, Corte Especial, AMS 1999.70.05.003502-0/PR, RTRF4 nº 43). 2. O art. 93, II, a, da MP 2.158-35, de 24.08.2001, ao revogar isenção da COFINS sobre ato cooperativo (LC 70/91, art. 6º-I), tão-só extraiu maior eficácia do princípio da solidariedade no financiamento da seguridade social (CF/88, art. 195, caput), em nada vulnerando o art. 146-III-c da CF/88. 3. O STF já assentou que a LC 70/71, por ter matriz constitucional no art. 195-I da R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 415 CF/88, versa matéria atinente à lei ordinária razão por que pode ser alterada sem o rito qualificado da lei complementar. 4. A Lei 9.718/98 não padece de eiva de inconstitucionalidade seja no alargamento da base de cálculo seja na majoração da alíquota. Entendimento afeiçoado ao do Pleno desta E. Corte apurado em sede de argüição de inconstitucionalidade nº 1999.04.01.080274-1. 5. A receita da UNIMED oriunda da venda de serviços a pessoas físicas e/ou jurídicas não-cooperadas e prestadas por laboratórios e hospitais também não-cooperados constituem receita ordinariamente tributada pelo PIS e COFINS por não configurarem atos cooperativos, ainda que necessários à consecução dos objetivos sociais da cooperativa. Inteligência dos artigos 79 e 86 da Lei 5.764/71. 6. O PIS e a COFINS, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei 9.718/98, incidirão sobre o faturamento podendo a cooperativa abater, da base de cálculo, os valores repassados aos médicos-cooperados ex vi do disposto no inciso I do art. 15 da MP 2.158-35. Não se alegue que o inciso I do art. 15, seja endereçado unicamente a cooperativas agrícolas porque por ‘produtos por eles [cooperados] entregue à cooperativa’ se deve entender também os serviços posto ser corrente na mídia a utilização do termo produtos para expressar serviços a exemplo da publicidade veiculada em prol de instituições financeiras. Conseqüentemente, deduzidas da base de cálculo as parcelas pagas aos médicos-cooperados, os valores repassados pela Unimed a laboratórios e hospitais ou outras entidades, ou seja, a não-cooperados, restam ordinariamente tributados pelo Cofins e pelo PIS. Por força do disposto no artigo inciso I do par. 2º do art. 15 c/c art. 13, caput, todos da MP 2.158-35, incide também contribuição para o PIS, em um por cento sobre a folha de salários, em havendo dedução da base de cálculo de que trata o inciso I do artigo 15 da mesma MP precitada. 7. Não poderia o Fisco, com base no § 2º do art. 168 do RIR/94, desclassificar a Unimed como cooperativa porque a exegese do § 2º leva a conclusão, considerada a alusão ao § 1º, de que, se distribuído resultado em favor das quotas-partes de capital, o que é vedado, a penalidade é a tributação desse resultado distribuído nos termos do que o RIR ordinariamente dispõe - ou seja, tributado é como lucro distribuído. 8. A Secretaria da Receita Federal não tem competência para fiscalizar o cumprimento, pelas sociedades cooperativas, das normas próprias desse tipo societário, com o fim de descaracterizá-la. Não prevalece o lançamento fundado exclusivamente na descaracterização da cooperativa. 9. Apelação provida nos termos dos fundamentos. 10. Recurso adesivo improvido.” (AMS 199971000266395/RS, 2ª Turma, j. 26.11.2002, p. DJU 11.12.2002, p. 909, Relator Juiz Alcides Vettorazzi, unânime) Ademais, a questão aqui vertida foi dirimida no julgamento da Argüição de Inconstitucionalidade incidente sobre a AMS nº 1999.70.05.003502-0/PR, apreciada por este Tribunal, que, por maioria, houve por bem rejeitar a inconstitucionalidade do art. 56, inciso II, 416 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 alínea a, da Medida Provisória nº 2.113-27/2001. O julgado em referência restou ementado nos seguintes termos: “TRIBUTÁRIO. CONSTITUCIONAL. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONA LIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.113-27/2001. COOPERATIVAS. HISTÓRICO DO COOPERATIVISMO NO DIREITO COMPARADO E NO BRASIL. NATUREZA JURÍDICA. NECESSIDADE DE SOBREVIVÊNCIA DOS PEQUENOS EM FACE DA GRANDEZA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS. AUSÊNCIA DE FINALIDADE LUCRATIVA. SITUAÇÃO TRIBUTÁRIA. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. LEGISLAÇÃO PÁTRIA CONFERIU FAVORECIMENTO ÀS COOPERATIVAS. TRATAMENTO EXPRESSO SOMENTE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. COOPERATIVAS PRETENDIAM GARANTIR NA CONSTITUINTE AMPLA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA SOBRE ATO COOPERATIVO. CONSTITUINTES NÃO ATENDERAM EXTENSAS PRETENSÕES AO REDIGIREM O ART. 146, INCISO III, ALÍNEA C, DA CF/88. HERMENÊUTICA DO ‘ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO’. NORMA DE EFICÁCIA REDUZIDA. DEPENDÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR REGULADORA. PROJETO DE LEI PARALISADO DESDE 1989. CONSTITUINTE PRETENDEU FAVORECER COOPERATIVAS, DE ALGUM MODO, EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. ATOS COOPERATIVOS E INCIDÊNCIA DE TRIBUTOS. DISTINÇÃO DE ATOS INTERNOS E EXTERNOS. PRECEDENTE. FAVORECIMENTO DO ATO COOPERATIVO SUJEITO À CONVENIÊNCIA DO PODER TRIBUTANTE ATÉ A EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR. COOPERATIVAS E CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. COFINS. MODIFICAÇÃO DO SISTEMA DE CUSTEIO DA SEGURIDADE SOCIAL PELA CF/88. PARTICIPAÇÃO UNIVERSAL DO FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL, SALVO ENTIDADES BENEFICENTES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.INEXISTÊNCIA DE QUALQUER DIREITO À IMUNIDADE OU ISENÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS À SEGURIDADE PELAS COOPERATIVAS. COFINS: FATO GERADOR EXISTENTE NAS ATIVIDADES DAS COOPERATIVAS. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2113-27/2001 APENAS REDUZIU O FAVOR LEGAL DADO ÀS COOPERATIVAS PELA LEI COMPLEMENTAR Nº 70/91, REVOGANDO A ISENÇÃO MAS LIMITANDO O ÂMBITO DA BASE DE CÁLCULO. CONFORMIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL PÁTRIO. OPÇÃO POLÍTICA CUJO CONTROLE FOGE AO PODER JUDICIÁRIO. REJEITADA A ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 56, INC. II, ALÍNEA A, DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.113-27/2001. 1. As sociedades cooperativas têm uma grande importância, o que a evolução histórica e a valorização dos diversos países demonstra, uma vez que assegura a sobrevivência dos pequenos em face da grandeza das sociedades comerciais, mormente nesta era de profundas modificações motivadas pela globalização. 2. No Brasil, houve uma sucessão de privilégios fiscais em relação a tais entidades. 3. Quando se tratou de elaborar uma nova constituição, foi proposta regra que R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 417 beneficiava amplamente as cooperativas. 4. Somente a atual Constituição tratou expressamente das cooperativas. 5. A pretensão foi satisfeita em extensão bem menor do que a apresentada. Todavia, a norma era de eficácia reduzida. 6. O termo ‘adequado tratamento tributário’ refere-se à correta adequação dos fatos decorrentes das atividades cooperativas aos preceitos que criam os tributos. 7. Enquanto não for editada a lei complementar prevista no art. 146, III, c, da CF de 1988, as sociedades cooperativas permanecem na situação de qualquer sociedade quanto à imposição de tributos. 8. O que não se pode fazer é tributar em hipóteses em que impossível a incidência, o que é o caso do lucro, que inexiste no ato cooperativo segundo a própria lei de regência estabelece. Hipóteses de não-incidência. 9. Da análise do precedente nº 89.04.04242-9/RS é possível estabelecer as distinções entre os atos cooperativos internos e externos. 10. A modificação do financiamento da seguridade social operada pela Constituição de 1988 determinou que toda a sociedade deve financiar a Seguridade Social, estando isentas apenas as entidades de assistência social. 11. As cooperativas têm o dever de se submeter à tributação. 12. Se, por decisão política, forem beneficiadas com preceito legal de isenção, o mesmo poder terá o direito de revogar tal norma. 13. Nem o art. 146, III, c, nem a norma programática do art. 174, § 2º, da CF de 1988 impedem o legislador ordinário de emitir tal juízo político através da regra cabível. 14. A singularidade da situação fiscal das cooperativas se resume no seguinte: não tipificam a regra de alguns tributos, porque o ato cooperativo não caracteriza lucro, e haverão de ter um ‘adequado tratamento tributário’, quando sobrevier a lei complementar programada no texto constitucional. Nada mais do que isso. 15. No estágio atual do sistema normativo brasileiro, especialmente em matéria de contribuições para a seguridade, constitui um erro imaginar-se que uma lei que revoga ou diminui o âmbito de isenção tributária ofende algum texto da Carta de 1988. 16. A Medida Provisória nº 2.113-27/2001 apenas reduziu o favor legal dado às cooperativas pela lei complementar nº 70/91. 17. Não há, portanto, eiva de inconstitucionalidade na Medida Provisória nº 2.11327/2001. 18. Rejeitada a argüição de inconstitucionalidade do art. 56, inc. II, alínea a, da Medida Provisória nº 2.113-27/2001.” (AMS nº 1999.70.05.003502-0/PR, Corte Especial, Rel. p/ acórdão Des. Fed. Fábio Bittencourt da Rosa, DJU 23.01.2002, p. 177) Saliento que a Medida Provisória nº 2.113-27/2001 resulta da transformação da Medida Provisória nº 1.858-09/99. Em suma, inexistindo lei complementar oferecendo o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, preconizado pelo art. 146, III, c, 418 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 da Constituição, a matéria pode ser regulada por lei ordinária ou medida provisória. Dessarte, não se apresenta inconstitucional a revogação da isenção da COFINS, prevista no art. 6º, I, da LC nº 70/91, pela MP nº 1.858-09/99, tampouco a alteração no regime legal do PIS. A Lei Complementar nº 70/91, ao instituir a contribuição prevista no art. 195, I, da Constituição, é materialmente lei ordinária, não colhendo o argumento de que seu art. 6º, I, possui status de lei complementar, porquanto ainda pendente de regulamentação o art. 146, III, c, da CF/88. Nesse diapasão, o tratamento que vier a ser dado ao ato cooperativo por lei ordinária não colide com os preceitos da Lei nº 5.764/71 (a qual define a política nacional de cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas), recepcionada pela Constituição com o mesmo status normativo. Por outro lado, a Lei Complementar nº 07/70 foi recepcionada pela Constituição como lei ordinária, podendo ser modificada por lei de igual hierarquia. As alterações introduzidas na base de cálculo e alíquota da COFINS e do PIS pela Lei nº 9.718/98 dispensam a edição de lei complementar, ante reiteradas decisões do STF, no sentido de que apenas a eventual instituição da contribuição prevista no art. 195, § 4º, da Constituição, exige lei complementar, observando-se a técnica da competência residual da União, não sendo necessária para a criação das contribuições previstas nos incisos I, II e III do referido artigo. (RE nº 138.284/CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28.08.92; ADC nº 1, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 01.12.93) Quanto à aventada afronta ao art. 146, inciso III, alínea c, da CF, vê-se que o dispositivo em foco fala em “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”, o que não se confunde com ato da cooperativa praticado com terceiros. Invoque-se, ademais disso, o conteúdo dos artigos 79, 86 e 111 da Lei 5.764/71, in verbis: “SEÇÃO I Do Ato Cooperativo Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 419 Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria. SEÇÃO III Das Operações da Cooperativa Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei. Parágrafo único. No caso das cooperativas de crédito e das seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas, o disposto neste artigo só se aplicará com base em regras a serem estabelecidas pelo órgão normativo. CAPÍTULO XVIII Das Disposições Gerais e Transitórias Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei.” Assim, de notar que, conforme a melhor exegese dos dispositivos, cuidou o legislador de diferenciar entre ato cooperativo, que é realizado entre a cooperativa e seus associados, e as operações da cooperativa, que é a prestação de bens e de serviços a terceiros. Também referiu expressamente que as receitas auferidas das transações descritas no artigo 86 seria objeto de tributação. Dessarte, não há valer a tese da impetrante em relação à não-sujeição aos tributos em comento, visto não se confundirem, para efeitos de incidência tributária, o ato cooperativo, definido no artigo 79, e as operações da cooperativa, delineadas no artigo 86 e enquadradas na hipótese do art. 111, todos da Lei 5.764/71. Também de remissiva a extensão do conceito de faturamento engendrada pela Lei 9.718/98, do qual não se furtam as relações empreendidas pela cooperativa com terceiros, no que toca à venda de mercadorias e serviços. Com efeito, a verba levantada a tal título entra na sociedade como receita, integrando-se ao faturamento da mesma, desimportando que seja, depois, endereçada à realização do objeto social da cooperativa. E, como é auferida a título de resultado positivo, preenche o suporte fático da norma do art. 111 da Lei 5.764/71, constituindo renda tributável. Não calha, portanto, argüir-se a impossibilidade de dedução da CIDE, uma vez que as cooperativas contribuem para a Seguridade Social. Da vinculação das receitas ou referibilidade 420 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Essa Turma vem entendendo que a caracterização constitucional da contribuição de intervenção no domínio econômico prescinde da vinculação do produto arrecadado ao custeio da atividade material de interferência no setor econômico. Em diversos precedentes sobre o tema, decidiu-se que o destino das verbas granjeadas a título de CIDE desimporta para sua qualificação jurídica e, bem assim, para o exame de sua constitucionalidade, porque a própria arrecadação assume vestes interventivas, em certos casos, tornando despicienda a atuação concreta do Estado nesse mister, na medida em que preserva o caráter finalístico que informa a contribuição. Neste sentido: AG 2003.04.01.010960-3/ PR, AMS 2001.70.00.016722-3/PR, AMS 2002.70.00.025746-0/PR. Sem embargos, não é o que acontece com a CIDE estatuída pela Lei 10.336/01, porque o artigo 1º, em seu § 1º, determina: “§ 1º. O produto da arrecadação da CIDE será destinado, na forma da lei orçamentária, ao: I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”. Dessa forma, não colhe a insurgência da autora no tangente à destinação das verbas auferidas pela incidência da CIDE em comento. O art. 5º da Lei 10.336/01 em cotejo com o princípio da isonomia O art. 149 da CF prescreve que a contribuição de intervenção no domínio econômico poderá ter alíquota ad valorem ou específica (CF, art. 149, § 2º, inc. III, alíneas a e b). A Lei 10.336/01, no art. 5º, inc. VII, escolheu alíquota específica, de acordo com a unidade de medida adotada, não incorrendo em inobservância da CF, uma vez que o art. 177, § 4º, inc. I, preconiza que a alíquota poderá ser diferenciada por uso ou produto, circunstância respeitada, eis que a lei cuidou de diferenciar as operações envolvendo os vários produtos nela mencionados. Por conseguinte, a Lei 10.336/01 não extrapolou os limites designados pela Constituição. O argumento da impetrante foi construído sob a premissa de que a alíquota específica não serve para tributar de forma isonômica a comercialização de combustíveis, por não refletir a real dimensão econômica do fato-tipo presuntivo de capital e riqueza. A alíquota traduz o aspecto 421 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 quantitativo da hipótese de incidência, enquanto a comercialização de álcool etílico combustível representa o aspecto material da norma impositiva. Quando o legislador recorta da realidade um determinado fato, tornando-o jurídico e, no passo seguinte, dota-lhe do efeito de gerar a obrigação de pagar tributo, necessita quantificar esse dever, dimensionando as conseqüências financeiras que irão atingir o patrimônio do sujeito passivo. Para o desiderato, pode valer-se de duas técnicas, consistentes na eleição de alíquota específica ou ad valorem, inexistindo regra jurídica que determine a obrigatoriedade da eleição do valor monetário da operação como base de cálculo da contribuição, bastando que este seja expressão de um valor econômico. No caso da Lei 10.336/01, a cada unidade (m3) comercializada corresponde um valor determinado de CIDE a ser recolhido (art. 5º), desconsiderando-se o valor da operação, sem que se configure o descompasso com a regra constitucional. A igualdade não resta arranhada, na espécie, porque a diferença da expressão monetária resulta da decisão do contribuinte no momento em que fixa o preço da operação de venda e não constitui decorrência direta da norma abstrata que erige o dever tributário. O quadramento das quantias pecuniárias deflui da venda da quantidade estipulada pelo legislador, sem que influencie, no caso, o valor da operação. Tendo em conta o permissivo do art. 149, soa deveras desinfluente acoimar-se a invalidade do artigo em face da Constituição, pois nela própria estão contidas a regra-matriz e a compleição normativa da CIDE. Desnecessidade de Lei complementar O comando esquadrinhado no artigo 149 faz remissão aos artigos 146, III, e 150, I e III, todos da Constituição Federal. Assim estão vazados os dispositivos a que deve obediência a lei instituidora da CIDE: “Art. 146. Cabe à lei complementar : (...) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; 422 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. (...) Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (...) III - cobrar tributos: a) em relação a fato geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;” De plano, cabe rechaçar, por estar alheia à esfera de discussão, a alínea c do inciso III do artigo 146. Determinou, pois, o legislador constituinte originário, que a União pudesse instituir contribuição de intervenção no domínio econômico, desde que observados os preceitos aqui transcritos. O artigo 146 trata da lei complementar, cujo conceito nos cumpre destrinçar, doravante. Seguindo o judicioso tirocínio de Alexandre de Moraes, temos que a razão de existência da lei complementar “consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não poderiam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através de um processo legislativo ordinário. O legislador constituinte pretendeu resguardar determinadas matérias de caráter infraconstitucional contra alterações volúveis e constantes, sem, porém, lhes exigir a rigidez que impedisse a modificação de seu tratamento, assim que necessário”. (Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo:Atlas, 2003, pág. 548) Nesse diapasão, a lei complementar, como o próprio nome assinala, visa a preencher, do ponto de vista do direito positivo, os espaços específicos deixados pelo legislador constituinte em relação a algumas matérias cuja relevância não era tal a merecer previsão constitucional expressa, nem tão desimportante que pudesse ser veiculada por lei ordinária, sujeita, portanto, às inconstâncias legislativas comuns em nosso ordenamento jurídico. As matérias destinadas à edição via complementar ostentam a condição de cristalizarem-se em normas cujo tratamento legislativo é diferenciado, repousando aí uma das distinções entre ela e a lei ordinária. A 423 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 outra diferença existente entre as duas espécies normativas tem aspecto substancial, e diz com a expressa menção constitucional às matérias que devem ser normatizadas via lei complementar, sobejando um campo residual de competência atribuído à lei ordinária. A lei complementar seria um tertium genus, colocada, dentro da concatenação sistêmica da ordem jurídica positiva, entre a Constituição e as lei ordinárias. Assim, resta elucidado o conceito de lei complementar. Cabe verificarmos se a referência expressa da regra-matriz da CIDE ao artigo 146 cuida da exigência de lei complementar que a institua ou apenas faz menção à lei que estabeleça normas genéricas sobre os tributos, aplicando-se-lhe tais regras. O argumento levantado pelos consectários da primeira resposta é o de que o texto constitucional permite pelo menos duas interpretações sobre o tema, ambas desembocando na necessidade de lei complementar. A primeira seria a de que toda e qualquer contribuição de intervenção sobre o domínio econômico demandaria veiculação pela via mencionada. A segunda seria a de que, ainda que sua instituição pudesse ser feita mediante lei ordinária, a Constituição exigiria que uma lei complementar anterior definisse as normas gerais sobre a matéria, não calhando supri-la o Código Tributário Nacional em razão de não conter disposições específicas sobre a CIDE. Entretanto, não vemos como assumir postura semelhante. Com efeito, o artigo 146 erige a competência da lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, em especial sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem ainda quanto à obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários. No caso da CIDE, despicienda se faz a lei enfocada para sua definição, porquanto encontre sua regra-matriz no próprio corpo constitucional, ou seja, no art. 149. Ademais disso, é de se observar que ambas as espécies normativas extraem seu fundamento de validade da própria Constituição. Tal fato é importante para elucidar que, a despeito de regra hermenêutica, gize-se, com razão, afirmar a impossibilidade de dispositivo de lei ordinária contrariar dispositivo inserto em lei complementar, esse postulado de interpretação encontra razão não em regra de hierarquia, senão em regra 424 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 de competência material. Id est, os motivos que fulminam a lei ordinária contraditória à lei complementar repousam não na hierarquia, mas no juízo do legislador constituinte que escolheu determinados fatos-tipos, hipóteses materiais, cuja regulação ficou reservada a esta via legislativa. Em suma, a lei complementar presta-se para regular tema previsto expressamente na Constituição. Se regular matéria não colacionada no texto constitucional, é materialmente lei ordinária, apesar de formalmente complementar, cuja conseqüência mais patente é a possibilidade de sua revogação por uma lei ordinária. Vale relembrar que a CIDE é tributo com validação finalística, o que eqüivale a dizer que sua hipótese de materialidade não é condição para a deflagração da competência legislativa em relação àquela figura tributária, senão que a validade da norma que a institui se fulcra unicamente no aspecto teleológico revelado pela situação ensejadora de criação de contribuição, e que reside, in casu, na necessidade de intervenção do Estado sobre o domínio econômico, recordando que essa finalidade, outrossim, é constitucionalmente prevista. Doutra banda, escorreito é que, se a respeito de definição de tributos não pode a Lei nº 5.172/66 substituir lei complementar que preveja tal definição quanto aos tributos naquela não contidos e que não encontram respaldo constitucional, o mesmo não se pode afirmar em relação à criação de obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, porquanto tenha o legislador referido a necessidade de lei complementar para esse desiderato de forma genérica, cumprindo-o perfeitamente o CTN. Nessa esteira, segue que a CIDE pode ser instituída por lei ordinária, prescindindo da forma complementar para que encontre guarida no ordenamento jurídico pátrio. Possibilidade de alteração da alíquota por ato do Executivo No particular, basta repousar o olhar sobre o art. 177, § 4º, inc. I, alínea b, da CF/88: “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool etílico combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser: (...) R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 425 b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b”. Portanto, o delineamento legal da figura tributária enfocada não se desalinha do tratamento constitucional que lhe foi expressamente outorgado, sendo possível ao Poder Executivo modificar a alíquota. Veja-se, ademais, que o dispositivo não permite o aumento da alíquota, senão o mero deslocamento dentre as margens legais já previstas, ou seja, ajusta-se à natureza extrafiscal que é precípua à CIDE, autorizando a redução da alíquota e, se for o caso, o restabelecimento ao valor original, desde que observe o teto estabelecido no art. 5º da Lei 10.336/01. Leia-se o artigo 9º ora discutido: “O Poder Executivo poderá reduzir as alíquotas específicas de cada produto, bem assim restabelecê-las até o valor fixado no art. 5º.” Dessarte, insubsiste o argumento. Invasão à reserva material de competência dos Estados (ICMS) O art. 155, § 3º, da CF/88, com a redação determinada pela EC 33/01, estabelece que à exceção do ICMS (155, caput, II) e dos impostos de importação (153, I) e de exportação de produtos nacionais ou nacionalizados (153, II), nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a derivados de petróleo e combustíveis. Com efeito, a vedação não alcança as outras espécies tributárias, como as contribuições do art. 149, dentre as quais a CIDE, pois diz respeito apenas a impostos, nesse aspecto alcançando o campo de competência material reservado aos outros entes federativos. Vale dizer, a União e os Municípios não poderão criar impostos sobre operações envolvendo tais matérias. Como a competência para criação da contribuição de intervenção no domínio econômico é exclusiva da União (art. 149), nada obsta a que institua uma CIDE sobre as operações mencionadas pelo art. 155, sem que tal mister implique invasão de reserva material, mormente porquanto a própria Constituição tenha erigido, no art. 177, § 4º, a possibilidade de CIDE relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível. Compensação com tributos de vinculações diversas No que pertine ao tópico, não há confundir destinação constitucional, 426 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 atrelada ao caráter finalístico que identifica as contribuições do art. 149, com o benefício estatuído pela Lei 10.336/01, autorizando a dedução dos valores devidos à CIDE das importâncias vertidas ao PIS e à COFINS. Ora, é certo que nesse Egrégio se vem atentando para os limites da compensação, nos moldes previstos nas Leis 8.383/91 e 9.430/96, sedimentando-se o entendimento pelo qual, a autorizar-se judicialmente o procedimento compensatório, dever-se-ia observar a mesma destinação constitucional, isso para não arruinar o aspecto finalístico que informa as contribuições. Ocorre que, no caso, não se cuida de compensação judicial, havendo lei no sentido formal e material estabelecendo um abatimento entre tributos, instituído como um benefício aos contribuintes, e não como uma afronta ao princípio da destinação. Relembre-se que mesmo o administrador detém a faculdade de, a requerimento do interessado, deferir pedido de compensação entre tributos diversos (Lei 9.430/96, art. 74, com a redação dada pela Lei 10.637/02 - “O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão”). Assim, não havendo desvirtuamento direto da finalidade constitucional, não há óbice à criação de benefício fiscal que preveja a compensação entre tributos de diferentes espécies. Do desvio de finalidade das receitas Também aqui não vinga a tese envergada pela impetrante. O precitado art. 1º, § 1º, da Lei 10.336/01 apenas reproduziu, textualmente, o que já vinha escrito no artigo 177, § 4º, inc. II e alíneas, da CF. Vejamos: R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 427 “§ 4º, inc. II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”. Já o art. 1º, § 1º, da Lei 10.336/01: “§ 1º. O produto da arrecadação da CIDE será destinado, na forma da lei orçamentária, ao: I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”. À vista do exposto, não desbordou o legislador ordinário na regulamentação do art. 177, § 4º, inc. II, da CF/88, apenas cuidando de realocar, na via legal, preceito material tal qual incrustado na Constituição. Dispositivo Do exposto, nego provimento à apelação, nos termos da fundamentação. APELAÇÃO CÍVEL Nº 2002.72.09.002838-0/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Apelante: Mannes Ltda. Advogados: Drs. Fabio Girolla e outro Apelante: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin 428 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Apelados: (os mesmos) Remetente: Juízo Substituto da 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul/SC EMENTA Tributário - IPI - Insumos não-tributados - Energia elétrica - Creditamento - Impossibilidade. 1 - A regra da não-cumulatividade do IPI, encartada no art. 153, § 3º, II, da Constituição de 1988, somente alberga a compensação do que for devido a título de IPI, em cada operação, com o montante do mesmo IPI cobrado nas anteriores. Só pode haver compensação quando os produtos ou insumos intermediários são industrializados e, assim, também sujeitos à incidência do IPI. Os produtos não-tributados, constantes da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, são produtos não-industrializados, não sujeitos à incidência do IPI. 2 - A classificação do produto na TIPI como não-tributável faz presumir que se trata de hipótese de não-incidência do IPI, cabendo ao contribuinte a prova em contrário. 3 - A energia elétrica não representa insumo ou matéria-prima que integra o produto final, uma vez que não se aglutina no processo de transformação do qual resultará o produto industrializado. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, não conhecer do agravo retido, dar provimento à apelação da União e à remessa oficial e negar provimento à apelação da parte autora, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 11 de maio de 2004. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: Mannes Ltda. ajuizou ação ordinária, objetivando o reconhecimento do direito aos créditos do IPI relativos às aquisições de insumos não-tributados, dentre os quais energia elétrica, gás natural e óleo diesel, que são consumidos R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 429 direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos finais onerados por este imposto. Requereu, ainda, o reconhecimento do direito aos créditos referentes aos 10 anos que antecedem a data do ajuizamento da ação e do direito à correção monetária desses créditos pela UFIR, com o cômputo dos expurgos inflacionários, e pela taxa SELIC, a partir de janeiro de 1996. A União Federal contestou, sustentando a ausência de interesse da autora, ao argumento de que o valor do IPI é agregado ao preço do produto e repassado nas operações seguintes, sendo que a empresa não comprovou estar expressamente autorizada pelos seus consumidores a receber eventual crédito decorrente de recolhimento indevido, nos termos do art. 166 do CTN. Alegou, ainda, que a concessão de crédito presumido depende de lei federal específica e que a autora não pode se creditar de valores que não pagou. A União Federal interpôs agravo de instrumento contra a decisão que deferiu o pedido de tutela antecipada, recurso esse convertido em agravo retido, com fundamento no inc. II do art. 527 do Código de Processo Civil. Sobreveio sentença que revogou em parte a tutela antecipada, reconheceu a prescrição qüinqüenal e, no mérito, julgou parcialmente procedente o pedido “para declarar o direito da autora ao Crédito Presumido do Imposto sobre os Produtos Industrializados - IPI, advindo de aquisições de ‘insumos’ não-tributados (matérias-primas, materiais de embalagem, energia elétrica, gás natural e óleo diesel) ainda não-atingidos pela prescrição qüinqüenal (na forma do Decreto nº 20.910/32), que são consumidos direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos tributados”. Diante da sucumbência recíproca, determinou que cada parte arcasse com o pagamento dos honorários advocatícios de seus respectivos patronos. Apelou a autora, sustentando que tem direito aos créditos do IPI referentes aos 10 anos que antecedem a data do ajuizamento da ação, e que deve incidir correção monetária sobre esses créditos. Apelou a União Federal, repisando os argumentos da contestação. Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte. É o relatório. VOTO 430 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: 1 - Inicialmente, nos termos do § 1º do art. 523 do CPC, deixo de conhecer do agravo retido, pois a União Federal não requereu expressamente sua apreciação nas razões de apelação. 2 - Cumpre ressaltar que a controvérsia cinge-se tão-somente à possibilidade de compensar os valores creditados a título de IPI, decorrentes da aquisição de insumos não-tributados, dentre os quais energia elétrica, gás natural e óleo diesel, que são consumidos direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos finais onerados por este imposto. 3 - É certo que, a teor da jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal, é admissível o creditamento do IPI relativo a produtos isentos e sujeitos à alíquota zero. Tal jurisprudência, porém, não pode ser invocada para sustentar também o creditamento em relação a insumos e produtos intermediários não-tributados, como postulado pela autora e deferido na sentença. A regra da não-cumulatividade do IPI, encartada no art. 153, § 3º, II, da Constituição de 1988, somente alberga a compensação do que for devido a título de IPI, em cada operação, com o montante do mesmo IPI cobrado nas anteriores. Parece evidente que só pode haver compensação quando os produtos ou insumos intermediários são industrializados e, assim, também sujeitos à incidência do IPI. Ora, os produtos não-tributados, constantes da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, são produtos não-industrializados, não-sujeitos à incidência do IPI. Em regra, são produtos primários. Examinando-se a TIPI, verifica-se, por exemplo, que o primeiro código - 01 - refere-se a Animais vivos das espécies cavalar, Asinina e Muar (01.01), Animais vivos da espécie bovina (01.02), Animais vivos da espécie suína (01.02), Animais vivos das espécies ovina e caprina (01.04), galos, galinhas, patos, gansos, perus, peruas e galinhas-d’angola (pintadas), das espécies domésticas, vivos (01.05), e outros animais vivos (01.06). O mesmo ocorre com os peixes vivos (03.01.). Observe-se que as carnes desses animais, que já sofreram um processo artificial de transformação em alimentos, são incluídas na TIPI como sujeitas à alíquota zero (códigos 02 e 03.02/03.03).O leite e o creme de leite in natura, não-concentrado nem acrescido de açúcar ou outro R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 431 edulcorante, não são tributados (04.01). Mas se o leite e o creme de leite forem concentrados ou adicionados de açúcar ou de outros edulcorantes (portanto, artificialmente modificados), passam a ser tributados, embora à alíquota zero (04.02). Em regra a TIPI mantém coerência com o art. 46 do CTN, que tem por industrializado “o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”, classificando como não-tributados os produtos primários, que não sofreram qualquer transformação artificial, e como tributados os resultantes da interferência humana. Assim, são tributados à alíquota zero as manteigas, requeijões e queijos (4.5. e 4.6), para cuja obtenção é necessária intervenção do engenho humano. Não são tributados os ovos frescos, com casca, de aves (0407); mas são sujeitos à alíquota zero quando submetidos a qualquer processo de transformação. É certo que a TIPI pode conter equívocos, classificando como não-tributados produtos industrializados, hipótese que deve ser equiparada à da alíquota zero, já que não seria caso de isenção, que só a lei pode conceder (art. 150, § 6º, da CF). O inverso pode ocorrer, ou seja, encontrar-se produto não-tributável classificado entre os sujeitos à alíquota zero. No entanto, é ônus do contribuinte, que pretende o benefício da compensação constitucional dos créditos de IPI, demonstrar, caso a caso, tais equívocos. Portanto, incabível é conceder o pretendido crédito, de forma genérica. A classificação do produto na TIPI como não-tributável faz presumir que se trata de hipótese de não-incidência do IPI, cabendo ao contribuinte a prova em contrário, que não foi feita no caso concreto. 4 - A autora alega que tem direito ao creditamento do imposto pago 432 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 sobre a energia elétrica, gás natural e óleo diesel que são consumidos direta ou indiretamente no processo de industrialização de produtos finais onerados pelo IPI. A energia elétrica não representa insumo ou matéria-prima que integra o produto final, uma vez que não se aglutina no processo de transformação do qual resultará o produto industrializado. Nesse sentido, destaco os seguintes precedentes deste Tribunal: “TRIBUTÁRIO. IPI. ENERGIA ELÉTRICA. -Inexiste direito ao crédito do IPI, relativamente à aquisição de energia elétrica consumida no processo produtivo.” (AC 2002.72.00.008438-7/SC, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Dirceu de Almeida Soares, DJU de 17.09.2003, p. 761) “TRIBUTÁRIO. IPI. ENERGIA ELÉTRICA. CREDITAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. -Não representa a energia elétrica insumo ou matéria-prima propriamente dita, que se insere no processo de transformação do qual resultará a mercadoria industrializada. Sendo assim, incabível aceitar que a eletricidade faça parte do sistema de crédito escritural derivado de insumos desonerados, referentes a produtos onerados na saída, vez que produto industrializado é aquele que passa por um processo de transformação, modificação, composição, agregação ou agrupamento de componentes de modo que resulte diverso dos produtos que inicialmente foram empregados neste processo.” (AC 2001.72.01.005155-6/SC, 1ª Turma, Rel. Desa. Fed. Maria Lúcia Luz Leiria, DJU de 01.10.2003, p. 423) Conseqüentemente, a mesma inteligência se aplica ao gás natural e ao óleo diesel, porquanto também não integram o produto final. Em face do exposto, não conheço do agravo retido, dou provimento à apelação da União Federal e à remessa oficial para julgar improcedente o pedido e nego provimento à apelação da autora. Condeno a autora ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. É o voto. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 433 APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2003.70.00.024307-6/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Apelante: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogada: Dra. Sibele Regina Luz Grecco Apelado: INAP - Instituto Nacional de Administração Prisional S/C Ltda. Advogados: Drs. Leonardo Sperb de Paola e outros Remetente: Juízo Substituto da 10ª Vara Federal de Curitiba/PR EMENTA Tributário - Mandado de segurança - Certidão de regularidade fiscal. 1 - A Constituição assegura, independentemente do pagamento de taxas, o fornecimento de certidões em repartições públicas para esclarecimento de situação de interesse pessoal e defesa de direitos (art. 5º, XXXIV, b). Essa garantia não se confunde com o direito à obtenção de certidões negativas de débito, pois a expedição destas está condicionada à inexistência efetiva de débitos fiscais. 2 - Se o contribuinte apresenta uma justificativa plausível para afastar o óbice à obtenção da certidão de regularidade fiscal, não é lícito o INSS recusar o fornecimento do documento sem apontar qualquer motivo razoável para sua recusa. Não é dado à autoridade fiscal furtar-se do dever de fundamentar suas decisões. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 1º de junho de 2004. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: INAP 434 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 - Instituto Nacional de Administração Prisional S/C Ltda. impetrou mandado de segurança, visando à concessão de certidão negativa de débito, pedido indeferido no âmbito administrativo, sob o argumento de que existe diferença entre os valores declarados na GFIP e os valores recolhidos a título de contribuição previdenciária, na competência de 12/2002. A impetrante alega que, somando o valor retido na fonte, pelos tomadores de serviços, com o valor que recolheu em guia própria ao INSS, não existem débitos a pagar. Aduz, ainda, que tem direito à certidão negativa, porquanto inexiste crédito formalizado através de lançamento, ato que, conforme preconiza, compete privativamente à administrativa, a teor do art. 142 do CTN. A autoridade impetrada prestou informações, sustentando que a impetrante possui débitos e, em razão disso, não tem direito à Certidão Negativa de Débitos. Sobreveio sentença que concedeu a segurança “para que a autoridade impetrada expeça Certidão Positiva com Efeitos de Negativa, conforme requerido, enquanto não forem realizados os respectivos lançamentos tributários, indispensáveis à constituição do crédito tributário”. Apelou o INSS, repisando os argumentos das informações prestadas pela autoridade coatora. Com contra-razões, vieram os autos a esta Corte, onde, com vista ao Ministério Público Federal, o seu ilustre representante opinou pelo improvimento do recurso de apelação do INSS. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira: 1 - A autoridade impetrada forneceu certidão positiva de débito à impetrante, na qual consta o seguinte: “É CERTIFICADO, NA FORMA DO DISPOSTO NA LEI 8.212/91, E SUAS ALTERAÇÕES, QUE EXISTEM OS SEGUINTES IMPEDIMENTOS À EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO: Existe diferença entre GFIP e os valores recolhidos na competência 12/2002” A jurisprudência deste Tribunal tem entendido que a entrega, pelo contribuinte, de declarações representativas dos fatos geradores de determinados períodos importa em lançamento tributário. Nessa hipótese, não recolhido o tributo, as próprias declarações servem de suporte à 435 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 inscrição dos respectivos débitos em dívida ativa, sendo legítima a recusa à autoridade administrativa em fornecer certidão de regularidade fiscal. Essa orientação, contudo, não se aplica na hipótese vertente. Com efeito, considerações mais detidas sobre as peculiariedades do caso se impõem. A impetrante alega que a diferença apontada entre os valores declarados e os valores recolhidos, na realidade, não existe. Para exata compreensão de sua justificativa, retiro, da inicial, trecho relevante: “Sucede que, na última renovação de certidões junto ao INSS, a Impetrante foi informada que não seria possível conceder-se-lhe certidão negativa ou mesmo positiva com efeitos de negativa, em razão da suposta existência de débito perante aquela autarquia. Em lugar disso, e a pedido da Impetrante, emitiu-se certidão positiva com os seguintes dizeres: ‘Inutilmente tentou a Impetrante demonstrar, na esfera administrativa que tinha honrado suas obrigações. Nesse sentido, apresentou documentos provando que, somado o valor retido na fonte, pelos tomadores de serviços, com o valor que recolheu em guia própria ao INSS, verificava-se estar integralmente pago seu débito. Confira-se: - valor devido à previdência social - competência 12/02 (declarado em Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social -GFIP) = R$ 119.581,45 (valor incidente sobre a folha do operacional da empresa) + 2.111,37 (valor este declarado em GFIP complementar, correspondente ao INSS incidente sobre a folha da administração da empresa), num total de R$ 121.692,82; - valor retido na fonte, em dezembro de 2002, pelos tomadores dos serviços, a título de antecipação da contribuição previdenciária, nos termos da Lei 9.711/98 = R$ 198.439,82 (o valor expressivo da retenção deve-se ao fato de que em dezembro de 2002, foram faturados os serviços prestados em novembro - notas datadas de 2 de dezembro - e no próprio mês de dezembro - notas datadas de 27 de dezembro); - valor compensado com a totalidade da contribuição previdenciária incidente sobre a folha de salários (excluídas as contribuições de terceiros - SESC/SENAC/SEBRAE, salário-educação, INCRA, não passíveis dessa compensação) no mês de dezembro (conforme declarado pela Impetrante em Retificação de Dados do Empregador- FGTS/ INSS) = R$ 103.284,74; - valor recolhido pela Impetrante, relativamente à mesma competência em guia da previdência social, relacionado às contribuições de terceiros (SESC/SENAC/SEBRAE, salário-educação, INCRA, que não podem ser compensadas com o valor retido na fonte) = R$ 18.540,52. Tem-se, assim, que: R$ 121.692,82 (total das contribuições correspondentes a dezembro) R$ 198.439,82 (total retido na fonte em dezembro) 436 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 R$ 103.284, 74 (parte do total correspondente à contribuição previdenciária) R$ 103.284, 74 (parte do valor retido em notas fiscais e compensado com a contribuição previdenciária) R$ 95.155,08 (valor retido e não compensado no mês de dezembro, e que foi compensado nos meses subseqüentes) R$ 18.540,52 (GPS - contribuições de terceiros - note-se que houve recolhimento a maior correspondente a R$ 132,44)’ Diante dessa singela demonstração, fica claro que a Autoridade Coatora, ao negar Certidão Negativa de Débitos à Impetrante, incorreu em constrangimento que se verifica ilegal e abusivo, já que não há qualquer pendência real acerca do tributo devido na competência 12/02.” Com a inicial, a impetrante juntou cópias das faturas atinentes aos serviços prestados para a Secretaria de Estado e Segurança Pública do Paraná, nas quais consta que houve “retenção para a seguridade social”, na forma da Instrução Normativa 209/99, que regulamenta a retenção de 11% sobre os valores brutos das faturas dos contratos de prestação de serviço, pelas empresas tomadoras dos serviços, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212/91, com a redação da Lei nº 9.711/98. Ao prestar suas informações, a autoridade impetrada assim se manifestou: “A Autora impetrou o presente writ of mandamus pedindo liminar e segurança para determinar a expedição de Certidão Negativa de Débito, tendo em vista não haver débito devidamente constituído através de regular notificação. O pedido não tem nenhum respaldo jurídico e deve ser indeferido, com a denegação da segurança. O INSS possui sistema informatizado que verifica o atraso nos recolhimentos mensais das contribuições, apontando, com certeza, qualquer atraso nos recolhimentos. Ou seja, mesmo antes da notificação, já se pode apurar se o contribuinte está atrasado com contribuições previdenciárias. Havendo débitos, a CND deve ser negada. No presente caso, o impetrante possui débitos, por sinal, débitos confessados na inicial do writ, não tendo direito, a impetrante, à Certidão Negativa de Débitos.” Como se vê, a autoridade impetrada sequer se deu ao trabalho de verificar se estão corretos os cálculos apresentados pela impetrante. Simplesmente ignorou as alegações desta. É certo que a Constituição assegura, independentemente do pagamento de taxas, o fornecimento de certidões em repartições públicas para esclarecimento de situação de interesse pessoal e defesa de direitos (art. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 437 5º, XXXIV, b). É certo, também, que essa garantia não se confunde com o direito à obtenção de certidões negativas de débito, pois a expedição destas está condicionada à inexistência efetiva de débitos fiscais. Se o contribuinte apresenta uma justificativa plausível para afastar o óbice, não é lícito o INSS recusar o fornecimento do documento de regularidade fiscal sem apontar qualquer motivo razoável para sua recusa. Não é dado à autoridade fiscal furtar-se do dever de fundamentar suas decisões. O procedimento da autoridade impetrada, além do mais, está a violentar o princípio constitucional da proporcionalidade, expressamente adotado pela Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, cujo art. 2º, parágrafo único, estabelece: “Art. 2°. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: ... IV - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.” Não se compatibiliza com o princípio da proporcionalidade a imposição à pessoa jurídica de restrição às suas atividades que importem em inviabilizá-la, sem que sequer se aponte onde está a necessidade desse tratamento. Cabe à administração, sim, investigar e coibir a sonegação fiscal, mas deverá fazê-lo com respeito aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, não lhe sendo dado criar, por omissão, sanções de qualquer espécie, sem suporte em lei. Vale ressaltar que as pessoas jurídicas necessitam da comprovação da regularidade fiscal para a habilitação em certames licitatórios. De se ressaltar, ainda, que a própria alíquota de 11%, a ser aplicada sobre as notas fiscais ou faturas de prestação de serviços, foi fixada a partir de cálculos baseados na relação média entre o faturamento e a 438 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 folha de salários das empresas locadoras de mão-de-obra. Isso foi bem esclarecido por Fernando Osório de Almeida Júnior, em trabalho publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 45, págs. 55-60, do qual destaco: “Afinal, qual a lógica da fixação do montante de 11% sobre o faturamento das empresas cedentes de mão-de-obra? Para respondermos a esta questão basta sabermos que o lançamento por arbitramento de contribuições sociais com base na remuneração dos trabalhadores, que no âmbito do INSS é chamada de aferição indireta (art. 33, § 6º, da Lei nº 8.212/91), se faz quando, ante a impossibilidade de se calcular dita contribuição por ausência, insuficiência ou inidoneidade de documentos pertinentes ao montante de remuneração paga ou devida aos trabalhadores, a fiscalização arbitra, em regra, esse montante de ‘rendimentos’ em, no mínimo, 40% do valor dos serviços prestados constantes das faturas emitidas pela empresa cedente de mão-de-obra. Trata-se de uma presunção - decorrente da experiência - de que tal percentual do faturamento representa em média a parcela da receita da empresa que presta serviços mediante cessão de mão-de-obra e a qual costuma ser absorvida pelo pagamento dos trabalhadores a seu serviço. Sobre essa base de cálculo arbitrada, incidirá a alíquota de 20% devida pela empresa (art. 22, I, da Lei nº 2.212/91), mais 1%, 2% ou 3% (art. 22, II, da citada Lei) a título de adicional do SAT (Seguro de Acidente do Trabalho), de acordo com o grau de risco e a atividade preponderante da empresa, e, por fim, a contribuição dos trabalhadores, que será calculada mediante a aplicação da alíquota mínima (no caso, 8%). Tomando-se em consideração a alíquota mínima do SAT (1%), em consonância com o fato de que para a contribuição dos trabalhadores também se considera a alíquota mínima (8%), além do percentual da parte patronal (20%), temos uma alíquota global de 29% que incidirá sobre a base de cálculo arbitrada correspondente a 40% do faturamento, pelo que o montante arbitrado a título de contribuições devidas ao INSS sobre os rendimentos dos trabalhadores [29% (20 + 8 + 1) X 40% do faturamento] representa 11,6% do faturamento. Ou seja, eliminando-se os décimos, encontramos 11% do faturamento. Coincidência? Claro que não. Aliás, deve-se dizer que o próprio INSS confirma o exposto, como assim já o fez brilhantemente o seu ilustre Coordenador-Geral em Seminário ao qual nos referimos no início.” Portanto, se há relação de pertinência entre o percentual de 11% e o fato gerador e base de cálculo da contribuição sobre a folha de salários, e estando comprovado nos autos que houve a retenção de 11% sobre os valores brutos das faturas pela Secretaria de Estado e Segurança Pública do Paraná, tomadora dos serviços da impetrante, esta tem direito líquido R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 439 e certo à obtenção da certidão negativa de débito. Ainda que não se tenha certeza absoluta dessa correlação, não se pode dizer que a situação da impetrante junto ao Fisco é irregular. Nesse sentido, transcrevo excerto do parecer exarado pelo digno representante do Ministério Público Federal: “Nada obstante, o contribuinte afirma ter havido o pagamento integral da contribuição, e o INSS não se deu ao trabalho de ao menos alegar a insuficiência do pagamento. Não há outro caminho senão presumir verdadeiros os fatos narrados pelo contribuinte, à míngua de qualquer impugnação da autoridade coatora. Ao menos para os fins deste mandado de segurança, é de se presumir que o tributo foi pago.” 2 - Em face do exposto, nego provimento à apelação e à remessa oficial. É o voto. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2003.70.00.032946-3/PR Relatora: A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria Apelante: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin Apelada: Master Imp. Ltda. Advogados: Drs. Marcelo Arthur Gomes Osti e outros Remetente: Juízo Substituto da 2ª Vara Federal de Curitiba/PR EMENTA Liberação de mercadoria. Regime de entreposto aduaneiro. Interposição fraudulenta de pessoas. 1. A empresa impetrante possuía à época dos fatos um capital social de 440 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, apenas nos últimos doze meses, realizou importações no valor aproximado de US$ 6.600.000,00 (seis milhões e seiscentos mil dólares). 2. Configuradas as condições necessárias para a adoção do procedimento especial previsto na IN/SRF 228/02, na medida em que a empresa apelada não possui capital social que comporte as operações de comércio exterior realizadas. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de junho de 2004. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relatora. RELATÓRIO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Trata-se de mandado de segurança impetrado com o objetivo de reconhecer a nulidade do ato que vinculou a devolução ao exterior da lancha marca Cranchi, modelo “Mediterranee 50”, importada, à apresentação de garantia equivalente ao valor da mercadoria acrescido de frete e seguro internacional. Alegou a impetrante na inicial que a lancha pertence à empresa uruguaia Kilkee Corporation S.A., asseverando que requereu a devolução do bem para o exterior a pedido do exportador. Relata que este pedido restou indeferido em razão do procedimento especial de fiscalização sob o qual se encontra. Sustenta que a mercadoria foi admitida em regime de entreposto aduaneiro, no qual não há transferência de propriedade do remetente para o beneficiário do regime, não havendo nacionalização ou importação da mercadoria, inexistindo, por conseqüência, a situação fática prevista no art. 7º da IN/SRF nº 228/2002. Foi indeferida a liminar pleiteada. Requerida por meio da petição de fls. 63/66, foi deferida a reconsideração da decisão que não concedeu a liminar, determinando o prosseguimento do despacho aduaneiro sem a exigência da prestação de garantias. R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 441 A Fazenda Nacional prestou informações às fls. 82/91, sustentando a ausência tanto do periculum in mora quanto do fumus boni iuris para a concessão da segurança. Alegou que a ação fiscal foi pautada na estrita legalidade e no atendimento ao interesse público. Referiu a existência de litispendência em relação ao Mandado de Segurança nº 2003.32.00.003370-5, ajuizado em Manaus. Relata que a) a impetrante registrou a Declaração de Admissão em Entreposto Aduaneiro em 11.03.2003; b) em maio de 2003 foi iniciado o procedimento especial, visando à comprovação da origem dos recursos utilizados em todas as operações de comércio exterior realizadas pela empresa; c) após o início dos procedimentos de apuração de interposição fraudulenta de pessoas, a impetrante requereu a devolução da lancha para o seu efetivo proprietário; d) a empresa impetrante possui um capital social de R$ 10.000,00 e importou em 12 meses mercadorias no valor de US$ 6.600.000,00. Refere a aplicabilidade do inciso V do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76, com a redação dada pelo art. 59 da Lei nº 10.637/02. Opinou o Ministério Público Federal, em primeiro grau de jurisdição, pela extinção do processo sem julgamento de mérito, tendo em vista a perda do objeto em razão da concessão da liminar. Sobreveio sentença que julgou procedente o pedido formulado na inicial, concedendo a segurança. Apela a União, sustentando, preliminarmente, a existência de litispendência com o já mencionado processo nº 2003.32.00.003370-5. No tocante ao mérito, alega que a empresa apelada está sendo submetida ao procedimento especial de fiscalização de que trata a IN/SRF 228/02, a qual autoriza a retenção da mercadoria até a conclusão do procedimento, salvo quando apresentada garantia em substituição. Assevera a legalidade do procedimento adotado. Contra-razões apresentadas às fls. 148/153. Manifestou-se o Ministério Público Federal, opinando pelo provimento da apelação, para que seja denegada a segurança. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria: Inicialmente, entendo que não há como comprovar a existência de litispendência entre 442 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 o Mandado de Segurança nº 2003.32.00.003370-5 e este processo, tendo em vista a precariedade de informações acerca daquela ação nestes autos. Mesmo a pesquisa no sistema de consulta processual nada revela além da identidade de partes. Assim, afasto a preliminar argüida pela apelante. No tocante ao mérito, a questão posta para o exame desta Corte cinge-se à aplicabilidade das disposições contidas na IN/SRF nº 228/02 ao caso em tela. A referida Instrução Normativa autoriza a adoção de procedimento especial de fiscalização em relação às operações realizadas por empresas que revelarem indícios de incompatibilidade entre os volumes transacionados no comércio exterior e a sua capacidade econômico-financeira. Nestes casos, a empresa será intimada para comprovar seu efetivo funcionamento e a condição de real adquirente ou vendedor das mercadorias, bem como a origem lícita, a disponibilidade e a efetiva transferência, se for o caso, dos recursos necessários à prática da operação, sob pena de condicionamento do desembaraço ou entrega das mercadorias na importação à prestação de garantia, equivalente ao preço da mercadoria, até a conclusão do procedimento especial. Compulsando os autos, verifico que foi juntada ao processo cópia do contrato social da apelada, onde consta que a empresa impetrante possuía à época dos fatos um capital social de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, de acordo com as informações prestadas pela Fazenda Nacional (fl. 86) e com o parecer oferecido pelo Ministério Público Federal (fl.158), apenas nos últimos doze meses realizou importações no valor aproximado de US$ 6.600.000,00 (seis milhões e seiscentos mil dólares). Ressalto, ainda, que foi acostada a esta ação cópia da tradução de correspondência recebida pela Receita Federal em 09.06.2003, enviada pelo Setor de Investigação da Alfândega e Impostos de Sua Majestade, Londres, Inglaterra (fls. 94/96), cujo teor corrobora as suspeitas de incompatibilidade entre a capacidade econômico-financeira da empresa e os volumes transacionados no comércio exterior. Transcrevo a seguir os termos da referida correspondência, grifando alguns trechos. “SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA ADMINISTRATIVA MÚTUA (AAM) Prezada Sra. Herica Gomes Vieira Ref.: FAIRLINE BOATS PLC A Sra. Ahasan e eu fizemos uma visita à Fairline Boats PLC, Barnwell Road, OunR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 443 dle, Peterborough, PE8 5PA, e falamos com o Sr. Derek Carter, Presidente e Diretor Executivo, e o Sr. James Robinson, Diretor de Vendas e Marketing. Eles nos explicaram que estavam totalmente cientes dos problemas no Brasil envolvendo seus barcos, e disseram que haviam sido contatados diretamente pelo Adido da Alfândega Brasileira em Washington, e pelo serviço da Alfândega dos EUA com relação a esse assunto. Antes de tratar dos nossos achados, devo informá-la que nem a Sra. nem os Estados Unidos têm qualquer jurisdição no Reino Unido e que, contatando diretamente a Fairline Boats PLC, os Srs. infringiram todos os acordos, protocolos e tratados que respaldam e tratam da cooperação internacional. Ainda, qualquer informação assim obtida seria considerada como obtida ilegalmente e, como tal, seu uso fica prejudicado no suporte de qualquer ação futura. Não pretendo me aprofundar nesse ponto, mas existem vias bem estabelecidas de assistência mútua, e a Alfândega e Impostos (HM Customs and Excise) dedica-se a prestar serviços-irmãos e a atender outras solicitações de órgãos responsáveis pelo cumprimento da lei no exterior, em benefício de todos. Durante nossa visita à Fairline Boats PLC, o Sr. Robinson explicaram que a Master Importação Ltda., agiu como revendedora dos seus barcos no Brasil, e que é uma revendedora muito expressiva em termos de vendas em seu país. A Fairline Boats PLC tem um escritório nos Estados Unidos, o Fairline Boats of N. America, 1000 Main Street, Suite 200B, P.O. Box 21376, Hilton Head Island, SC 29925, que trata de suas atividades de marketing para América Latina, i.e, vendas, administração e faturamento. Uma vez recebido um pedido, o barco é construído no Reino Unido e então exportado para o cliente, de acordo com as instruções deles nos EUA. No caso da Master Importação Ltda., eles solicitaram, em algum ponto de suas negociações com a Fairline Boats PLC, que os barcos fossem mandados para o Uruguai e de lá enviados para o Brasil. Eles também estavam cientes que nesses termos a Finistere S.A. agia pela Master Importação Ltda. no Uruguai, mas não sabiam qual o papel ou função da Finistere S.A. em relação às importações, nem estavam cientes do porquê dos barcos serem enviados via Uruguai em vez de diretamente ao Brasil. Pedimos para ver a fatura comercial referente à exportação de um barco Phantom 46, número de série GBFLN09824J102, números de série do motor 2071152896 e 20711152897. Dos arquivos e registros da empresa o Sr. Robinson extraiu uma cópia da fatura, numerada 20143, datada de 12 de novembro de 2001, tirada pela Fairline Boats of N. America para cobrir a venda. Uma cópia da fatura vai anexa para ‘Fins do Serviço de Inteligência Somente’. Mostramos ao Sr. Robinson sua relação de 17 importações de barcos feitas durante os anos 2000 e 2001, para a qual os Srs. solicitaram cópias autenticadas da declaração de exportação ou de uma lista de preços. Ele explicou que já havia fornecido essa informação à Alfândega dos EUA logo depois da visita desta à Fairline Boats of N. America em 7 de outubro de 2002. Uma cópia da carta e cópias das faturas fornecidas ao Agente Especial Tony Smith, do Serviço de Alfândega dos EUA, 4401 Belle Oaks 444 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Drive, Suite 400, North Charleston, SC 29405 datadas de 11 de outubro de 2002 nos foi entregue. O Sr. Robinson explicou que enquanto estava preparando sua resposta, descobriram que vários dos números da fatura citados eram falsos, mas que foram fornecidas cópias das faturas para todos os números verdadeiros citados. Uma cópia da carta e das faturas vão anexas para ‘Fins do Serviço de Inteligência Somente’. Em 21 de maio de 2003, a Sra. enviou uma solicitação de follow-up referente a um barco Phanton 4s, número de série GBFLN10035F203, número do barco 88, relativo à fatura 0023/2003 da Finistere S.A., datada de 19 de janeiro de 2003, e ao Conhecimento de Embarque nº SA004864 da Grimaldi Compagnia di Navigazione one SpA, datado de 19 de janeiro de 2003. Falei com o Sr. Robinson e ele providenciou para que uma cópia da fatura da Fairline Boats of N. America, de número 20238, datada de 9 de setembro de 2002 cobrindo a transação me fosse passada por fax. Comparando as duas faturas fica aparente que o barco que entrou sob a fatura da Finistere S.A. foi avaliado bem aquém do valor, em US$ 152,015.21. Uma cópia da fatura vai anexa para ‘Fins do Serviço de Inteligência Somente’. Espero ter sanado suas dúvidas. Caso necessite de mais assistência em relação ao assunto, teremos prazer em ajudar. Atenciosamente [Assinatura] John Keep Funcionário da Alfândega e Impostos”. Ainda das informações prestadas pela Fazenda Nacional, colho a notícia de que a apelada somente postulou a devolução da lancha importada para o seu efetivo proprietário após o início dos procedimentos de apuração de interposição fraudulenta de pessoas. Ademais, a impetrante não logrou demonstrar o motivo pelo qual foi requerida a admissão da mercadoria em território brasileiro no regime de entreposto aduaneiro. De outro lado, a IN/SRF 228/02 não está em desconformidade com o regulamento aduaneiro (Decreto nº 4.543/02), que determina a aplicação R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 445 da pena de perdimento da mercadoria estrangeira, na importação ou na exportação, por considerar dano ao Erário, quando houver ocultação dos sujeitos da operação de comércio exterior mediante a interposição fraudulenta de pessoas. Este é o teor do art. 618, inciso XXII, daquele diploma legal, que transcrevo a seguir: “Art. 618. Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (...) XXII - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros. (...)” Também em consonância com a IN/SRF 228/02 são as disposições do Decreto-Lei nº 1.455/76, com a redação dada pela MP 2.158-35/01, o qual determina que os requisitos e condições para a aplicação do regime de entreposto aduaneiro serão estabelecidos pelo Poder Executivo, competindo-lhe, da mesma forma, definir as hipóteses de suspensão ou cassação do mencionado regime. É o que se vê da transcrição a seguir: “Art. 69. Os arts. 9º, 10, 16, 18 e o caput do art. 19 do Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, passam vigor com as seguintes alterações: (...) Art. 19. O Poder Executivo estabelecerá, relativamente ao regime de entreposto aduaneiro na importação e na exportação: (...) II - os requisitos e as condições para sua aplicação, bem assim as hipóteses e formas de suspensão ou cassação do regime; (...)” Portanto, tenho que restam configuradas as condições necessárias para a adoção do procedimento especial previsto na IN/SRF 228/02, na medida em que a empresa apelada não possui capital social que comporte as operações de comércio exterior realizadas, motivo pelo qual não vislumbro a existência da certeza do direito alegado, impondo-se a reforma da sentença com a denegação da segurança. Diante de todo o exposto, voto no sentido de dar provimento à apelação e à remessa oficial. 446 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2003.70.09.005966-1/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas Apelante: Coralplac Compensados Ltda. Advogado: Dr. Luiz Rogério Moro Apelada: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin EMENTA Tributário. Imunidade de contribuições sobre receitas derivadas de exportação. CF/88, art. 149, § 2º, I, na redação dada pela emenda constitucional nº 33/2001. Contribuição Social sobre o Lucro. O Constituinte elegeu o pagamento de salários, a receita ou faturamento e o lucro das empresas como hipóteses de incidência, independentes e autônomas, de contribuições sociais para a seguridade social. Assim, se as receitas derivadas de exportações são imunes a contribuições, conforme previsto no art. 149, § 2º, I, da CF/88, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 33/2001, isso não implica que o lucro advindo dessas receitas também o seja, pois receita e lucro não se confundem, sendo bases de incidência de contribuições diversas, com disciplinas legais independentes. Portanto, a imunidade instituída pela Emenda Constitucional nº 33/2001 não alcança a contribuição social sobre o lucro das empresas exportadoras. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 4 de maio de 2004. Des. Federal Surreaux Chagas, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: Coralpalc Compensados 447 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 Ltda. impetra Mandado de Segurança contra o Delegado da Receita Federal em Ponta Grossa/PR, objetivando que lhes seja garantido o direito de exclusão da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das receitas decorrentes das exportações efetuadas a partir da Emenda Constitucional nº 33, de 12.12.2001, bem como as receitas decorrentes das exportações futuras. Sustenta que a EC 33/2001 criou a imunidade tributária sobre as receitas de exportação, ao inserir o § 2º ao art. 149 da Constituição Federal; que, dessa forma, para a apuração da base de cálculo da CSLL, devem ser excluídas da receita bruta as receitas decorrentes das exportações. A liminar é indeferida. A autoridade coatora apresenta informações. O MM. Juízo, sentenciando, denega a segurança. Inconformada, a impetrante interpõe recurso de apelação, repisando os termos da inicial. Regularmente processado o recurso, sobem os autos. O Ministério Público Federal opina pelo desprovimento da apelação. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Surreaux Chagas: A controvérsia centra-se no alcance da imunidade das receitas decorrentes de exportação em relação a contribuições para a seguridade social e intervenção no domínio econômico, prevista no art. 149, § 2º, I, da CF/88, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 33/2001, verbis: “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais e econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6°, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. (...) § 2º. As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: I - não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação; (...)” A impetrante sustenta que a imunidade prevista alcançaria também a contribuição social sobre o lucro relativa à parte do lucro que a empre448 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 sa obtém com exportações, ao contrário do entendimento da Fazenda Nacional. Inicialmente, há que se referir que não há fundamento na exclusão das contribuições para a seguridade social da regra da imunidade, sob a alegação de que estariam elencadas no preceito apenas as “contribuições sociais, as de intervenção no domínio econômico e as de interesse de categorias profissionais e econômicas”. De fato, as contribuições para a seguridade social, disciplinadas especificamente no art. 195 da Constituição, integram o conceito de contribuições sociais, genericamente previstas no art. 149 da CF/88, conforme a consagrada classificação da espécie tributária das contribuições efetuada pelo eminente Ministro Carlos Velloso no julgamento do Recurso Extraordinário n° 138.284. (DJU de 28.08.92) Aliás, é de se perceber que a legislação ordinária já exclui a incidência da COFINS e do PIS-PASEP, contribuições sociais para a seguridade social, sobre as receitas decorrentes de exportação, em consonância com a regra constitucional. Contudo, a questão não se encerra neste ponto. Com efeito, a regra imunitória refere-se expressamente a receitas decorrentes de exportação, enquanto a pretensão envolve a contribuição incidente sobre o lucro. Poder-se-ia argumentar que a questão é apenas terminológica, pois o lucro decorrente de exportação advém necessariamente de receita de exportação e, se a receita não pode ser tributada, também não o pode o lucro que ela produz. Ocorre que receita e lucro, em que pese serem conceitos econômicos intimamente imbricados, são diferenciados explicitamente e tratados à parte enquanto fatos geradores de contribuições sociais para a seguridade social. De fato, o art. 195 da CF/88 prevê, em alíneas diversas de seu inciso I, a contribuição social incidente sobre a receita ou o faturamento (alínea b) e a contribuição incidente sobre o lucro (alínea c). As contribuições são diversas, com disciplinas legais independentes, correspondendo a primeira à COFINS e ao PIS-PASEP e a segunda à CSLL - Contribuição sobre o Lucro Líquido. Portanto, receita e faturamento são tributados distintamente. Todas as R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 449 empresas, em geral, devem uma contribuição social para a seguridade social, devida em decorrência da receita ou faturamento apurados, e outra incidente sobre o lucro auferido. Assim como todas empresas devem a contribuição incidente sobre a folha de salários e demais pagamentos efetuados a pessoas físicas que lhe prestem serviço, a terceira hipótese de incidência que enseja a obrigação de pagar contribuição à seguridade social prevista no art. 195 da CF/88, ao lado da receita ou faturamento e do lucro. Dessa forma, havendo previsão de tributação autônoma das três dimensões da atividade empresarial - pagamento de salários, faturamento apurado e lucro auferido -, o fato de existir previsão constitucional ou legal de não tributar determinadas receitas não implica a não-tributação do pagamento dos salários necessários para que a receita pudesse ingressar na empresa, nem do lucro que ela eventualmente possa gerar. Outrossim, a exoneração da contribuição das receitas advindas da exportação e não do lucro delas decorrentes está em consonância com a política econômica de desoneração das exportações, necessária para dar maior competitividade aos produtos nacionais no mercado internacional. Com efeito, os incentivos fiscais à exportação - dentre eles a exoneração das contribuições sobre a receita ou faturamento (COFINS e PIS) no caso de vendas para o mercado externo - permitem melhores condições para o desempenho das empresas no mercado internacional, excluindo tributos indiretos que influenciam negativamente na composição dos preços finais. Contudo, isso não implica que, incrementadas as vendas para o exterior em decorrência dos incentivos concedidos, que desoneram a produção e a comercialização e possibilitam a redução dos preços do produto nacional no mercado internacional, seja o lucro assim auferido e majorado também exonerado da tributação, criando tratamento desigual em relação aos demais contribuintes no plano interno da economia. Portanto, não há fundamento para a imunidade pretendida. Ante o exposto, nego provimento à apelação. É o voto. 450 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003.72.01.000969-0/SC Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Apelante: Celso Mario Gochs Advogados: Drs. Carlos Adauto Virmond Vieira e outros Apelada: União Federal (Fazenda Nacional) Advogada: Dra. Dolizete Fátima Michelin EMENTA Tributário. Imposto de renda. Percepção acumulada de rendimentos. Incidência sobre a sua totalidade. 1. Não há ilegalidade na retenção do IR sobre a totalidade das parcelas de benefícios previdenciários recebidos em atraso, pelo Autor, de forma acumulada, pois tal conduta da Autoridade Previdenciária encontra respaldo legal no art. 12 da Lei 7.713/88, regulamentada pelo art. 56 do Decreto nº 3.000/99. 2. Precedentes desta Corte no sentido de que o chamado “regime de caixa” não viola as disposições do CTN, também não havendo falar em ofensa ao princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º) ou de efeito confiscatório da exação, pois o art. 12 da Lei 7.713/88 determina que, nas hipóteses de percepção acumulada de rendimentos, serão considerados na sua totalidade, incidindo o IR de forma proporcional à renda auferida. 3. Em relação à incidência sobre os juros de mora, tal possibilidade encontra-se albergada no art. 640 do RIR/99. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos entre as partes acima indicadas, decide a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 9 de março de 2004. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares, Relator. RELATÓRIO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: Trata-se de ação de repetição de indébito ajuizada contra a União, objetivando a restituição do Imposto de Renda Retido na Fonte sobre os valores receR. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 451 bidos pelo Autor através de precatório, relativamente a diferenças nos valores da aposentadoria percebida pelo Autor, sustentando, em síntese, que percebeu várias parcelas acumuladas. Refere, ainda, que a soma das parcelas ultrapassou o limite legal de isenção para os rendimentos, mas que, consideradas mensalmente, de forma individual, os valores recebidos se manteriam dentro da faixa de isenção. Sobreveio sentença, julgando improcedente o pedido veiculado na inicial, ao fundamento de que o IR adota o “regime de caixa ou financeiro”, consumando-se o fato gerador com a disponibilidade dos rendimentos auferidos, no caso, os benefícios atrasados. Condenou o Demandante ao pagamento de honorários advocatícios, arbitrados em 10% sobre o valor da causa (R$ 10.000,00). Insurgiu-se o vencido, sustentando que o pagamento previdenciário com atraso, acumuladamente, não poderia sofrer desconto a título de imposto de renda. Presentes as contra-razões, subiram os autos a esta Corte. É o relatório. VOTO O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares: A retenção contra a qual se insurgiu o Autor encontra-se prevista em lei, mais precisamente no art. 12 da Lei 7.713/88, in verbis: “No caso de rendimentos recebidos acumuladamente, o imposto incidirá, no mês do recebimento ou crédito, sobre o total dos rendimentos, diminuídos do valor das despesas com ação judicial necessárias ao seu recebimento, inclusive de advogados, se tiverem sido pagas pelo contribuinte, sem indenização.” (grifei) Já o Decreto nº 3.000, de 26.03.99, ao regulamentar tal dispositivo legal, dispôs: “Art. 56. No caso de rendimentos recebidos acumuladamente, o imposto incidirá no mês do recebimento, sobre o total dos rendimentos, inclusive juros e atualização monetária (Lei nº 7.713, de 1988, art. 12). Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, poderá ser deduzido o valor das despesas com ação judicial necessárias ao recebimento dos rendimentos, inclusive com advogados, se tiverem sido pagas pelo contribuinte, sem indenização (Lei nº 7.713, de 1988, art. 12).” (grifei) Esta Corte já decidiu que o chamado “regime de caixa” não ofende o art. 43 do CTN. Vejam-se, a propósito, os seguintes julgados desta Corte: 452 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 109-452, 2004 ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 453-465, 2004 453 454 R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 15, n. 53, p. 453-465, 2004 INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE NA AC Nº 96.04.28893-8/PR Relator: O Exmo. Sr. Des. Federal Dirceu de Almeida Soares Apelantes: Imaribo S/A Ind. e Com. e outro Advogados: Drs. Christiano da Rocha Kuster Neto e outros Drs. Geraldo Bemfica Teixeira e outr