FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO MARIANA DE OLIVEIRA BUSSAB A CELEBRIDADE E SEUS FÃS: contribuição ao estudo das comunidades de marca no setor do entretenimento São Paulo 2004 MARIANA DE OLIVEIRA BUSSAB A CELEBRIDADE E SEUS FÃS: contribuição ao estudo das comunidades de marca no setor do entretenimento Dissertação de apresentada Administração São Paulo Vargas, obtenção de à Escola Empresas de da Fundação Getúlio como requisito para do título de Mestre em Administração de Empresas Campo de conhecimento: Administração Mercadológica Orientadora: Prof. Gisela Black Taschner São Paulo 2004 MARIANA DE OLIVEIRA BUSSAB A CELEBRIDADE E SEUS FÃS: contribuição ao estudo das comunidades de marca no setor do entretenimento Dissertação de São apresentada Administração Paulo Vargas, obtenção de à Escola Empresas de da Fundação Getúlio como requisito para do título de Mestre em Administração de Empresas Campo de conhecimento: Administração Mercadológica Data de Aprovação: __/__/_____ Banca Examinadora: Prof. Gisela Black Taschner (orientadora) FGV – EAESP Prof. Marcos Henrique Nogueira Cobra FGV – EAESP Prof. Letícia Moreira Casotti COPPEAD - UFRJ Para meu Tio Hugo, que se foi levando o passado; e para minhas meninas, Luiza e Julia, que chegaram trazendo o futuro. AGRADECIMENTOS Quando eu comentava sobre o assunto desta dissertação, era comum que as pessoas me questionassem, curiosas, de onde tinha surgido a idéia. O grande “culpado”, e a quem devo um especial agradecimento, é o professor Rubens da Costa Santos. Na primeira disciplina que cursei no programa de mestrado, ele lançou o desafio para que cada aluno estudasse algum tipo de comportamento compulsivo de consumo. Assim, diante dos resultados que apresentei, frutos dos meus primeiros contatos com fãs e fã-clubes, o professor Rubens percebeu o potencial investigativo deste fenômeno e me incentivou a perseguí-lo como objeto de pesquisa da minha dissertação. A professora Gisela Black Taschner me recebeu de braços abertos como orientadora, quando eu tinha muitas idéias na cabeça, mas muito pouco em mãos. À ela agradeço principalmente por ter me apresentado à antropologia do consumo, fazendo com que eu finalmente me “encontrasse” na busca pelo entendimento do comportamento do consumidor. Ao Wilton Bussab, o professor, agradeço imensamente o papel de “orientadoroculto”. Cada conversa nossa me desconstruía de tal forma que eu achava que seria impossível juntar os pedaços, mas os desafios lançados só me faziam retornar mais inteira e confiante. Ao Wilton Bussab, o pai, já tão ciente da importância que desempenha na minha vida, agradeço pela sua forma tão única e tão própria de sempre torcer por mim, mas mais tocante, de sempre acreditar em mim. A minha mãe, Celia Bussab, as palavras jamais serão suficientes para expressar toda a minha admiração e gratidão. A sua generosidade de sempre foi colocada à prova durante este período. Saber que ela estava ali por perto, compartilhando comigo o turbilhão de sentimentos alternados de angústia e de euforia, me proporcionava o conforto e serenidade necessários para seguir em frente. Ao meu marido Edvard Ghirelli Filho devo a co-autoria deste projeto. Este trabalho alterou a rotina e a vida de nossa família. E mesmo sendo envolvido de forma involuntária, eu não escutei nada além de incentivos e, mais ainda, recebi seu suporte incondicional. Obrigada pelo “investimento”. Eu jamais me esquecerei disto. Muitas outras pessoas também participaram deste trabalho, de forma direta ou indireta, e a eles todos devo minha gratidão. Aos professores que fizeram a experiência da minha “volta às aulas” memorável, principalmente ao professor Francisco Aranha, que incansavelmente mostra quão especial e produtiva pode ser a relação professor-aluno. Aos meus colegas que construíram o curso junto com os professores e cujas experiências compartilhadas me ajudaram a crescer. Entre tantos, agradeço a Sumaia Saheli, Odair Pastore, Márcia Vicari, Roberta Cardoso e, claro, Mauricio Cruz pelo privilégio de ter convivido com vocês nestes anos. Ao pessoal da Biblioteca da EAESP, principalmente na figura de Dionísio, pela incansável busca das mais diferentes publicações que eu insistentemente solicitava. Aos meus parentes e amigos de Brotas, principalmente Melânia e Daniel Arlanch, Gustavo Batista e Nilton Camillo pelo interesse e disposição em intermediar o contato com o Daniel. Ao cantor, agradeço pela prontidão com que atendeu a solicitação. Aos fãs do Daniel, entrevistados diretamente por mim – Rita, Rose, Adriana, Aisha, Marcos, Kátia e Lucimara – agradeço enfaticamente pelo desprendimento com que me permitiram entrar e vasculhar não somente suas casas, mas também suas vidas. A todos, muito, muito, obrigada. Termino este trabalho consciente de que aqui reportei muito menos do que de fato aprendi. “UBUNTU” (ditado africano que significa “eu sou porque nós somos”) RESUMO Dados os altos níveis de competitividade que caracterizam a maioria dos mercados contemporâneos, muito tem sido estudado a respeito da lealdade, comprometimento e retenção de consumidores na literatura de marketing. As estratégias propostas focam a conquista de consumidores comprometidos afetivamente com as marcas, que entre outros benefícios seriam responsáveis por espontaneamente defendê-la e divulgá-la. Observando o fenômeno pós-industrial do agrupamento de pessoas em torno de padrões de consumo próximos, e em alguns casos mais extremos, em torno de uma marca em específico, alguns estrategistas propuseram a criação de comunidades de marca como forma de retenção de seus clientes atuais e mesmo de atração de novos. No setor do entretenimento estas comunidades são muito características e apresentam-se de forma evidenciada através dos inúmeros fã-clubes que podem ser encontrados. Além desta característica, observa-se também que no setor do entretenimento há uma maior evidência e concentração dos consumidores comprometidos, os fãs devotos. Assim, com o objetivo de ajudar na compreensão da relação das comunidades de marca com a lealdade de clientes, buscou-se compreender o papel do fã-clube para um consumidor que individualmente já apresenta um comportamento comprometido, o fã devoto. Entre as diversas possibilidades de fã-clubes dentro do setor, optou-se por estudar o caso de uma celebridade, pela importância cultural e econômica que a fama tem na sociedade pósindustrial. Assim sendo, como objetivo secundário, o trabalho chama a atenção para as relações de consumo deste tipo específico de produto, a celebridade. O estudo de caso foi realizado com o cantor Daniel e seus fã-clubes. De fato, o estudo levantou que o comprometimento afetivo do fã devoto se dá pelo processo de sacralização da marca que ocorre em âmbito individual. Assim, neste trabalho não se evidenciou o fã-clube como gerador do comprometimento afetivo com a marca. Este é um evento que se mostrou ocorrer anterior e independentemente da agremiação. Porém, nos limites do caso estudado, o fã-clube demonstrou ser fundamental para a manutenção e intensificação deste tipo de comprometimento. Ao representar o locus privilegiado para a realização de procedimentos de sustentação da sacralização da marca, através dos rituais, peregrinações e sacrifícios coletivos, o fã-clube mantém operante o antecedente que gerou o comprometimento afetivo deste fã. A intensificação do comprometimento através do fã-clube acontece porque ele proporciona para o fã um senso de comunidade, nutrido tanto pelos rituais como pelos sensos de pertencimento e responsabilidade moral que se estabelecem entre os membros. Fica claro, então, que apesar das vantagens estratégicas de um fã-clube, quando criado pela empresa ele perde a característica de comunidade de marca e passa a representar mais um programa de relacionamento e fidelidade, assumindo um inerente interesse comercial. Este “clube de fãs” não demonstra funcionar plenamente como uma comunidade de marca porque uma vez que os significados são atribuídos pelos consumidores, a empresa não domina o processo de sacralização. O fã-clube, enquanto comunidade de marca, não pode ser criado nem gerenciado pela empresa. A empresa pode, porém, dar suporte e incentivo para que o ciclo de vida desta comunidade se prolongue. Palavras-chave: entretenimento, comportamento do consumidor, celebridades, lealdade, fã-clubes. ABSTRACT Given the high level of competition that is typical in most contemporary markets, much has been studied in marketing literature regarding loyalty, commitment and retention of consumers. The focus of strategies that have been proposed is the conquering of consumers emotionally committed to the brands, who, amongst other benefits, would be responsible for spontaneously defending and divulging them. By observing the postindustrial phenomenon of grouping of people around similar consumption patterns and, in some extreme cases, around a specific brand, some strategists have proposed the creation of brand communities as a way to retain their current clients and even attract new ones. In the entertainment sector, these communities are quite typical and appear in a very evident way thorugh numerous fan clubs. Besides such characteristic, it is also possible to observe that in this sector there is much more evidence and concentration of committed consumers, the so-called devoted fans. Thus, in order to aid the comprehension of the relationship between brand communities and consumers loyalty, we have pursued to understand the role played by a fan club towards a consumer that individually already shows a behavior of commitment, i.e. a devoted fan. Amongst the various possible forms of fan clubs in this sector, we have chosen to study the case of a celebrity, taking into consideration the cultural and economic importance that fame has in post-industrial society. Therefore, as a secondary objective, this work focuses on the consumption relationships of this specific kind of product, the celebrity. The study case has been done based on the singer Daniel and his fan clubs. In fact, this study has concluded that the emotional commitment of a devoted fan takes place through the process of sacralization of the brand on the individual level. Thus, in the present study, a fan club has not proven to be a generator of affective commitment to the brand. Such is an event that takes place prior to and independently from the grouping process. However, within the boundaries of this study case, fan clubs have shown to be essential to maintain as well to intensify such kind of commitment. By representing the ideal locus to perform proactive sustaining behaviors through rituals, pilgrimage and collective sacrifices, fan clubs keep alive the antecedent that generated fans affective commitment. The intensification of fans commitment through fan clubs occurs due to the fact fan clubs offer sense of community, nurtured both by rituals and by the senses of belonging and of moral responsibility that takes places amongst the members. As a result, it becomes clear that despite of the strategic advantages of a fan club, when created by the marketer, it looses its characteristics of brand community and turns to be a representation of just another relationship and loyalty program, assuming an intrinsic commercial interest. Such fan club does not prove to fully operate as a brand community in view of the fact that, once meanings are attributed by consumers, the marketer does not lead the sacralization process. The fan club, as a brand community, cannot be created or managed by the marketer. However, it may provide support and incentive so that the life cycle of such community is prolonged. Keywords: entertainment, consumer behavior, celebrity, loyalty, fan clubs. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Visões do Relacionamento Consumidor-Marca .................................................. 17 Figura 2 - Antecedente de Comprometimento - Coletividades ............................................ 19 Figura 3 - Antecedente do Comprometimento: Sacralização............................................... 20 Figura 4 - Metáforas do Consumo....................................................................................... 38 Figura 5 - Modelo de Desenvolvimento do Consumo Devoto.............................................. 50 Figura 6 - Classificação dos Fãs de Celebridades .............................................................. 53 Figura 7 - Diferenças entre Fã e Aficionado ........................................................................ 58 Figura 8 - Estratégias de Pesquisa ..................................................................................... 83 Figura 9 - Rede de Relacionamentos do caso fã-clube de uma celebridade da música ...... 83 Figura 10 - Logomarca...................................................................................................... 104 Figura 11 – Fã- Clube formado por senhoras.................................................................... 110 Figura 12 - Altar com peças tocadas pelo Daniel .............................................................. 117 Figura 13 - Fãs com Tatuagem do Daniel ......................................................................... 125 Figura 14 – Tentativas de diferenciação............................................................................ 128 Figura 15 - Almofada gigante confeccionada pelos fãs ..................................................... 129 Figura 16 – Logomarca da Turma do Dani........................................................................ 132 Figura 17 – Fotos do Encontro Nacional de Fãs – Estância Nathalya (Botucatu/SP). ....... 132 Figura 18 – Reunião do Fã-Clube Estação Somente Você Daniel .................................... 138 Figura 19 – Logomarca do Fã-Clube Estação Somente Você Daniel - RJ ........................ 139 Figura 20 – Bandeira de Nossa Senhora .......................................................................... 140 Figura 21 – Logomarca do Fã-Clube Daniel Dentro do Coração....................................... 141 Figura 22 – Outdoor em homenagem ao aniversário do Daniel ........................................ 148 Figura 23 – Grupos Formados dentro do Fã-Clube........................................................... 161 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Comparação entre os elementos que compõem a comunidade nos modelos de Muniz e O´Guinn e McMillan e Chavis ......................................................................... 73 Quadro 2 – Etapas da Pesquisa ......................................................................................... 88 Quadro 3 - Perfil dos Entrevistados..................................................................................... 89 Quadro 4 - Nomenclaturas Atribuídas por Tipo de Evidências ............................................ 96 Quadro 5 – Resumo da Biografia da Celebridade Daniel .................................................. 100 Quadro 6 – Identidade da Marca Daniel............................................................................ 105 Quadro 7 – Exemplo de Propriedades do Sacrado, segundo BELK et AL (1989) encontrados na imagem da marca Daniel ...................................................................................... 112 Quadro 8 – Características do Fã Devoto ......................................................................... 169 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 14 1.1 Introdução .............................................................................................................. 14 1.2 Objetivos e Delimitação do Problema .............................................................. 18 1.3 Contexto e Relevância da Pesquisa ................................................................. 21 1.4 Organização do Trabalho.................................................................................... 26 2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ....................................................................................... 28 2.1 A Indústria Cultural .............................................................................................. 28 2.1.1 A Importância Cultural da Fama..................................................................... 32 2.1.2 O Produto Celebridade.................................................................................... 35 2.2 O Consumo de Celebridades ............................................................................. 36 2.2.1 O Relacionamento Fã-Celebridade ............................................................... 38 2.2.2 Fã e o Consumo Devoto ................................................................................. 47 2.2.3 O Estigma de ser Fã........................................................................................ 56 2.3 O Consumo Coletivo ............................................................................................ 61 2.3.1 Senso de Comunidade.................................................................................... 62 2.3.2 Comunidades e Consumo .............................................................................. 67 2.3.2.1 Comunidades de Consumo ..................................................................... 70 2.3.2.2 Comunidades de Marca ........................................................................... 72 2.3.2.3 Subculturas de Consumo......................................................................... 76 3. MÉTODO ....................................................................................................................... 80 3.1 Questão da Pesquisa ........................................................................................... 80 3.2 Estratégia de Pesquisa........................................................................................ 82 3.3 Seleção do Caso ................................................................................................... 84 3.4 Desenho da Pesquisa .......................................................................................... 86 3.5.1 Entrevistas ........................................................................................................ 89 3.5.2 Observação ...................................................................................................... 92 3.5.3 Documentação ................................................................................................. 93 3.5.4 Artefatos Físicos .............................................................................................. 94 3.6 Procedimentos de Validação.............................................................................. 94 3.6.1 Triangulação..................................................................................................... 94 3.6.2 Criação de um Banco de Dados .................................................................... 95 3.6.3 Ética .................................................................................................................. 96 4. ANÁLISE DE DADOS.................................................................................................. 97 4.1 A Celebridade: Daniel .......................................................................................... 97 4.1.1 Biografia............................................................................................................ 97 4.1.2 O Produto e a Marca ..................................................................................... 101 4.2 O Fã Devoto ......................................................................................................... 106 4.2.1 A Imagem da Marca Daniel .......................................................................... 107 4.2.2 A Sacralização ............................................................................................... 110 4.2.3 A Assimetria da Relação............................................................................... 119 4.2.4 O Desejo e A Sedução.................................................................................. 123 4.2.5 Os Processos de Singularização ................................................................. 127 4.3 O Fã Clube............................................................................................................ 129 4.3.1 Apresentação dos Fã-Clubes do Daniel...................................................... 131 ............................................................. 135 ! ! ! # " ............................... 136 .............................................. 139 4.3.2 Procedimentos de Sustentação da Sacralização ....................................... 142 4.3.3 Senso de Pertencimento............................................................................... 149 4.3.4 Senso de Responsabilidade Moral .............................................................. 154 4.3.5 Atingimento dos Objetivos Individuais ......................................................... 159 4.3.5.1 Singularização......................................................................................... 159 4.3.5.2 Os Sócios: Tipos e Objetivos ................................................................ 161 4.3.6 Análise dos Dados em Conjunto .................................................................. 167 5. CONCLUSÕES........................................................................................................... 171 5.1 Conclusões .......................................................................................................... 171 5.2 Limitações ............................................................................................................ 174 5.3 Pesquisas Futuras.............................................................................................. 175 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 177 7. ANEXOS...................................................................................................................... 184 14 1. INTRODUÇÃO 1.1 Introdução Dados os altos níveis de competitividade que caracterizam a maioria dos mercados contemporâneos, muito tem sido estudado a respeito da lealdade, comprometimento e retenção de consumidores na literatura de marketing, mais especificamente, branding e no comportamento do consumidor. No ambiente de marketing atual, sustentar uma vantagem competitiva utilizando apenas diferencial de produto é uma tarefa muito exaustiva. A tecnologia está num tal nível de desenvolvimento, que a concorrência em pouquíssimo tempo encontra condições de entregar os mesmos benefícios funcionais, quando não de os superar. Forma-se, assim, um ciclo de auto-recriação constante difícil de ser sustentado por muito tempo. Na maior parte dos mercados e das categorias, um diferencial com base em produto não consegue ser mantido por muito tempo. Schmitt (1999), tanto em seu trabalho solo, como em seu trabalho com Simonsen (SCHMITT; SIMONSEN, 1997), chama a este marketing baseado em características e benefícios de produtos, de abordagem tradicional de marketing, ou Marketing Tradicional. Uma das maneiras que eles mesmos propõem de criar uma diferenciação mais duradoura e significativa é através da entrega de experiências ao consumidor. Esta abordagem tem ganhado bastante popularidade na literatura recente de marketing, e adquire diferentes denominações, como Marketing dos Sonhos (LONGINOTIBUITONI, 1999), Marketing Experimental (SCHMITT, 1999 e SCHMITT; SIMONSEN, 1997), Marketing Emocional (ROBINETTE; BRAND; LENZ, 2001), entre outros. 15 Nesta mesma linha, Wolf (1999) afirma que para se manter no mercado todo e qualquer produto deve conter o, por ele denominado, “e-factor”, o fator-e, de entretenimento. Por de trás destas novas abordagens está implícita a intenção das empresas de adequarem suas estratégias de marketing ao novo paradigma relacional, em substituição ao anterior transacional. Através do Marketing de Relacionamento, que como observa Bentivegna (2002) foi o assunto da moda no mundo dos negócios durante a década de 90, expandiu-se o foco tradicional do marketing para além das fronteiras da atração de novos clientes. As empresas passaram a investir mais na manutenção e na intensificação do seu relacionamento com os consumidores. Ao se estreitar as relações com consumidores, busca-se a conversão deles em consumidores comprometidos, aqueles que dispostos a investir na relação, têm expressa vontade de continuar nela. Para Prado e Santos (2003), o comprometimento, sinônimo de lealdade atitudinal, é um antecedente à lealdade comportamental. David Aaker (1991), quando descreve o componente lealdade do Brand Equity, afirma que somente os consumidores localizados no topo da pirâmide de lealdade estão de fato comprometidos com uma determinada marca. O principal valor deste tipo de consumidor é que o conjunto deles atua como canal de divulgação, tornandose responsável por um processo de comunicação pelo boca-a-boca positivo. Os consumidores comprometidos acabam se transformando em verdadeiros missionários da marca. E, conforme Reichheld (2003), a forma mais competente de se mensurar o comprometimento do consumidor é através do grau de disposição que ele tem em divulgar a marca para amigos e colegas. Estes “consumidores-topo” assumem na vasta literatura a respeito diversas nomenclaturas, como “defensor”, “especial”, “fã”. Eles desenvolvem um relacionamento individual com a marca que pode até ter se iniciado a partir da 16 satisfação de uma necessidade funcional, mas que parece ter continuado por proporcionar a satisfação de uma necessidade de expressão. Pimentel e Reynolds (2004) descrevem este consumidor de comprometimento extremo como consumidor devoto. O termo devoção aplica-se a este comportamento porque remete a um fervor religioso em relação ao objeto de consumo, sentimento este que já vem sendo verificado em outros contextos de estudos de comportamento do consumidor (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989). Embora obviamente de extrema importância, os estudos sobre marketing de relacionamento têm consumidor-marca. se Mas concentrado alguns na indícios compreensão vêm do evidenciando relacionamento que o alto comprometimento pode também ser atingido através da formação de uma sólida comunidade de usuários da marca (ROZANSKI; BAUM; WOLFSEN, 2002). Neste caminho, o vínculo “extremo” se estabelece quando o fato de pertencer a tal comunidade se transforma em um fim em si mesmo. Portanto, a marca, ao proporcionar o consumo coletivo, transforma-se em um vínculo para as pessoas. O trabalho de Muniz e O’Guinn (2001) tem a grande importância de incluir na visão “díade” do relacionamento consumidor-marca um terceiro elemento, um outro consumidor, “o consumidor companheiro”, mostrando a importância que a comunidade de marca tem para cada um dos seus indivíduos-membros. Mas é no trabalho de McAlexander, Shouten e Koenig (2002) que é desenhado um modelo bem mais completo, do ponto de vista mercadológico, que inclui todos os elementos que vão funcionar juntos para que uma comunidade de marca seja criada. Para estes autores, a comunidade de marca é formada e alimentada por um conjunto de relações de um determinado consumidor, com a marca, com o produto em si, com o “consumidor-companheiro” e com a empresa (FIGURA 1). Desta forma, eles adicionam aos estudos de comunidade de marca, o elemento necessário para a sua concepção, justificado na crença de que esta é uma forma de se criar, manter e fortalecer os elos de uma marca com seu consumidor. Em outras palavras, em seu trabalho, estes autores colocam a possibilidade da criação de uma comunidade de 17 marca como um instrumento poderoso e completo para a retenção dos consumidores, ou, pelo menos, como uma forte barreira de saída, já que implicaria num alto custo emocional para o consumidor. Quanto mais oportunidades o indivíduo tem de encontrar outras pessoas que consomem a mesma marca, mais vontade ele tem de reencontrá-las em outros momentos, já que laços sociais acabam se estabelecendo. Não importa se um indivíduo busca a comunidade de marca pela própria necessidade de sentir-se parte de uma comunidade, ou se por motivos mais utilitários, como a necessidade de conhecer e integrar-se melhor com seu produto/marca, o fato é que os laços da comunidade se tornam barreiras de saída, à medida que os indivíduos percebem que o valor destes relacionamentos inter-pessoais pode se modificar e até mesmo se perder, caso o indivíduo mude de marca. Modelo Tradicional do Relacionamento Cliente-Marca cliente marca Modelo Muniz e O´Guinn de Comunidade de Marca (2001) marca cliente cliente Modelo McAlexander et all de Comunidade de Marca (2002) marca produto Cliente focal cliente empresa Figura 1 - Visões do Relacionamento Consumidor-Marca adaptado de McAlexander, Shouten e Koenig (2002) Ao participar de uma comunidade de marca, um consumidor tem a oportunidade, através do compartilhamento de experiências, de conhecer melhor o produto e, portanto, melhor usufruir dele (consumidor-produto); conhecer e integrar-se com 18 pessoas que partilham as mesmas paixões (consumidor-consumidor); aprofundar-se mais e perpetuar os valores da marca (consumidor-marca) e, finalmente, aproximar a empresa do consumidor (consumidor-empresa). Os benefícios para uma empresa em cultivar uma comunidade em torno de sua marca são vários, bem descritos no seguinte trecho: [...] clientes integrados por comunidades funcionam como missionários da marca, trazendo a mensagem de marketing para outras comunidades. Estes clientes estão mais propensos a perdoar lapsos ou falhas dos produtos em relação à qualidade de seu serviço (Berry, 1995). São menos suscetíveis a mudar de marca, mesmo quando confrontados com produtos concorrentes de performance superior. Estes consumidores se motivam a dar retorno, feedback à empresa, eles formam um forte mercado para produtos licenciados e extensões de marca [...] Consumidores que estão fortemente integrados numa comunidade de marca se sentem emocionalmente envolvidos com o bem estar da companhia e desejam contribuir para seu sucesso.” (MCALEXANDER; SHOUTEN; KOENIG, 2002, p.51, tradução nossa) 1.2 Objetivos e Delimitação do Problema Os estudos que têm abordado as coletividades de consumo e as comunidades de marcas (MUNIZ; O´GUINN, 2001; KOZINETS, 2001; SHOUTEN; McALEXANDER, 1995; HOLT, 1995; CELSI; ROSE; LEIGH, 1993) indicam que os relacionamentos entre consumidores atuam de forma enfática e significativa na equação da lealdade à marca. Para estes autores, conforme mostra FIGURA 2, as coletividades são vistas como antecedente ao comprometimento. 19 Comunidade de Marca Comprometimento Figura 2 - Antecedente de Comprometimento - Coletividades Entre as justificativas dadas, a mais contundente é que, através da conexão com outros consumidores da mesma marca, o indivíduo experimenta um senso de comunidade (McMILLAN; CHAVIS, 1986) que lhe ajuda a estruturar e a compor a sua identidade social. Nas indústrias de bens de consumo, as comunidades de marca conhecidas e significativas ainda são poucas. Os exemplos citados e estudados sempre recaem sobre as mesmas marcas, como Harley Davidson, Jeep, Saab, Bronco, Saturn e McIntosch. O mesmo não acontece na indústria do entretenimento. A tradução do consumidor comprometido nesta indústria é o fã, que entre outras particularidades, apresenta a vocação para contatar outros fãs no intuito de intensificar o consumo de seu produto e marca de interesse. Estes consumidores são delimitados tanto de uma forma mais generalizada, e assim tratados por fandom1, como através de estruturas organizadas, conhecidas como fã-clubes. O fã-clube pode ser visto como uma associação de pessoas que se reúnem por terem um gosto em comum e a vontade de trocar e difundir informações, histórias e fotos deste gosto que os une. Reúne pessoas que embora possuam diferentes níveis de devoção ao “objeto” em questão, apresentam um grau de interesse por ele, superior ao da grande maioria das pessoas que o consomem. Estas comunidades são muito características da indústria do entretenimento e se manifestam em seus mais diversos setores: filmes (Jornada nas Estrelas, Guerra 1 Fandom é uma expressão que não possui tradução para a língua portuguesa. Pode ser definido como tudo aquilo que gira em torno da cultura e do comportamento do fã, ou ainda, o estudo do fã e do seu comportamento. Mas este termo não se aplica, especificamente, a uma estrutura organizada como a existente no fã-clube. 20 nas Estrelas), livros (Senhor dos Anéis, Harry Potter), música (Grateful Dead, Beatles), programas de TV (Friends), entre outros. Mas a maioria dos fã-clubes se organizam em torno das celebridades, personagens reais e fictícias, que foram produzidas e circulam nestes diferentes setores. Tanto pelo aspecto cultural como econômico da fama, as celebridades se tornaram um importante produto de consumo, em torno do qual se estruturou, nas palavras de Rein, Kotler e Stoller (1997), uma “indústria de fabricação de celebridades”. Segundo estes autores, o objetivo de marketing deste produto é a manutenção da alta visibilidade e para tanto suas marcas têm sido trabalhadas de forma a garantir a sua exposição, inclusive através de extensão de marca, traduzida no imenso negócio que o licenciamento representa. Além da procura de outros fãs, este consumidor se caracteriza também pela intensidade do seu relacionamento individual com a marca, a devoção. Segundo Pimentel e Reynolds (2004), este consumidor desenvolveu, após processo de sacralização, um comprometimento afetivo com a marca. Mais do que isto, num movimento cíclico (FIGURA 3), o consumidor devoto investe nesta relação ao utilizar, constantemente, procedimentos para sustentar esta sacralização. Sacralização Comprometimento Procedimentos Proativos de Sustentação Figura 3 - Antecedente do Comprometimento: Sacralização Sacralização e coletividade foram mostradas, pelas teorias encontradas e aqui apresentadas, como antecedentes importantes, embora independentes, para o desenvolvimento de relações duradouras entre consumidores e marcas. Porém, na indústria do entretenimento, ambos são características muito presentes no comportamento de consumo do fã. 21 O objetivo desta pesquisa é compreender qual o papel que uma comunidade de marca pode desempenhar na relação consumidor-marca, para um consumidor que já tem como característica individual o comprometimento afetivo com ela, traduzido no consumo devoto. O questionamento que se faz através da pergunta formulada “Qual o papel do fãclube no consumo do produto cultural celebridade para o fã devoto?” busca entender por que um fã devoto se engaja num fã-clube. Dentre os diversos tipos de produtos da indústria cultural, optou-se por estudar a comunidade de marca em torno de celebridade, não só por sua importância cultural e econômica, mas também porque este produto se relaciona de forma matricial com os demais setores desta indústria. Será estudado o papel do fã-clube no consumo da celebridade, cujo nome é aqui considerado como uma marca. Investigam-se as relações estabelecidas entre o fã e a celebridade, o fã e o fã-clube e o fã-clube e a celebridade, bem como as conseqüências destas relações para todos os integrantes deste sistema. 1.3 Contexto e Relevância da Pesquisa O século XX testemunhou o apogeu do poder industrial, quando aconteceu o que Morin (1969) chamou de a segunda industrialização, a que se processa nas imagens e nos sonhos, a industrialização do espírito. Ele faz esta referência devido à enxurrada de mercadorias culturais, de palavras, imagens e sons produzidos e vendidos comercialmente que invadiu o mercado logo após a Segunda Guerra Mundial. Neste momento, a cultura de massa se estabelece de forma definitiva como característica de nossa sociedade. Esta cultura, que é produzida em larga escala, seguindo a dinâmica da fabricação industrial, se propaga também de forma maciça e se destina a um grande público. 22 A mídia de massa e cultura popular são características muito explícitas também na sociedade pós-industrial ocidental. A indústria cultural possui em seu portfólio uma série de produtos como gravações, livros, revistas, programas de TV, filmes e celebridades. A celebridade tem um papel cultural importante porque ela atende a uma necessidade humana de ser único (BRAUDY, 1986). No contexto da indústria cultural, ser reconhecido é algo democrático, já que não se faz necessária a realização de uma conquista especial para se atingir a fama. Graças à mídia de massa, podemos ser famosos simplesmente por sermos famosos (BOORSTIN, 19622 apud BRAUDY, 1986). Aparentemente, qualquer um pode ser famoso, por mais paradoxal que seja: muitos têm que ser anônimos para que um seja estrela. Esta relação – tão perto, tão longe – com as celebridades ajuda os indivíduos a se transcenderem de suas vidas rotineiras numa sociedade que é ao mesmo tempo massificada e individualista. A análise da fama feita por Braudy (1986) sugere que o `fanship´ seja uma conseqüência necessária para a disseminação de idéias e imagens através da mídia: não haveria fama se não houvesse fãs; e não existiriam fãs se não houvesse mídia, impressa ou eletrônica. Fãs diferem dos consumidores comuns porque eles constroem vínculos afetivos especialmente fortes com seus objetos de interesse e acabam utilizando estes vínculos como pontes tanto para desenvolver relacionamentos com outros fãs como com os próprios famosos. Os fãs, enquanto consumidores, articulados e “heavy users” que são, possuem um poder muito grande que direciona o processo produtivo das celebridades. O consumo de celebridades faz parte de nossa vida, de nosso dia-a-dia e movimenta muito dinheiro. Rein, Kotler e Stoller (1997) mostram a extensa rede existente por de trás da celebridade e que é responsável pela sua concepção, produção e distribuição. Os autores citam alguns dos seus componentes: a 2 Boorstin, D. (1962). The Image, Or, What Happened to the American Dream. New York 23 representação (agentes, empresários), a publicidade (agências de relações públicas, empresas de pesquisa de mercado), as comunicações (jornais, revistas, rádio, TV, filmes), o entretenimento (teatros, casas de shows, cinemas, estúdios, estádios), a aparência (estilistas, maquiadores, cabeleireiros), o treinamento (professores, técnicos), os serviços legais e financeiros (advogados, consultores de investimentos) entre outros. A receita gerada pela celebridade vai além de sua principal atividade, ela é incrementada em várias vezes pela sua utilização em associações com outras marcas, o chamado endosso, através dos cachês publicitários e na extensa indústria de licenciamento de produtos. Oficialmente, os produtos ligados a Elvis Presley, por exemplo, que vão desde perucas com seu topete passando por macacões de jérsei cravejados de pedras de plásticos coloridos, até seus discos geraram US$ 600 milhões nos EUA no ano de 1994, 17 anos após sua morte. Estimava-se, então, que o somatório de esforços de vendas de todos os ídolos americanos gira em torno de US$ 70 bilhões anuais (FREITAS; GOLDBERG, 1995). No Brasil, estima-se que em 2002, a apresentadora de TV Xuxa Meneguel gerou R$ 30 milhões através de 300 produtos licenciados com sua marca Xuxa3. Diante dos números, não se pode mais encarar com ingenuidade a adoração de celebridades. A imagem de que fã-clubes eram coisas de adolescentes que gritavam ensandecidos nos aeroportos, nas portas de hotéis e de casas de shows faz parte do passado. Cientes disso existem algumas empresas que foram criadas com o único intuito de “gerenciar fãs”. É o caso da Fanemporium, da FansRULE e da iFANZ. O folder de apresentação da FansRULE disponível na Internet deixa muito claro o papel destas empresas. São companhias de gerenciamento de fãs que prestam serviços tanto para artistas como para os próprios fãs. Elas se colocam como intermediárias, especialistas, que ajudarão a cultivar “um relacionamento duradouro e direto entre fã 3 Fonte: http://www.estadao.com.br/divirtase/noticias/2002/jun/28/155.htm 24 e celebridade”. Para tanto, em troca da cobrança de um taxa anual de adesão, a FansRULE, por exemplo, oferece serviços customizados para seus clientes. Entre eles4: a) venda de ingressos “on line”: conseguem com artistas e promotores de eventos uma quantidade de ingressos em lugares preferenciais e os disponibilizam para seus sócios antes da abertura das vendas para o público em geral; b) experiências de fãs e pacotes de viagens: desenvolvem promoções específicas, segundo o perfil de fãs de cada artista, como shows e eventos exclusivos e organizam viagens para os fãs acompanharem seus ídolos em turnês; c) desenvolvimento e vendas de produtos de merchandising: oferecem serviços de criação, produção, estocagem e distribuição de produtos de merchandising dos ídolos que são vendidos on line ou por mala direta; d) Aquisição de assinatura e gerenciamento da comunidade/clube de fãs: para acesso aos conteúdos dos sites mantidos, atualizados e hospedados pela empresa, através do qual os outros serviços são oferecidos e que acabam por constituir um canal de comunicação oficial e exclusivo entre fã e celebridade. Entre as celebridades que utilizam os serviços da FansRULE e da Fanemporium existem alguns nomes famosos da música pop internacional: Aerosmith, Christina Aguilera, Celine Dion e Cindy Lauper, para citar alguns. A disposição dos fãs em consumir tudo o que diz respeito a seus ídolos, de notícias, fotos, cd’s, programas até todos os licenciados, despertou o interesse de alguns aproveitadores que fundam fã-clubes, com o intuito de fazer lucro através de suas 4 Fonte: http://www.fanemporium.com 25 “lojinhas” e mensalidades. Estes presidentes geralmente não estão envolvidos emocionalmente com o ídolo que promovem e acabam se utilizando de atividades de pirataria para aumentar o portfolio de produtos que disponibilizam aos fãs (MACEDO ET AL., 1992). Consternada com estes tipos de iniciativas e preocupada em salvaguardar a responsabilidade e confiabilidade dos fã-clubes, Blanche Trinajstick, uma expresidente de um fã-clube norte-americano fundou a NAFC (traduzindo, Associação Nacional de Fã-Clubes). Desta iniciativa foi gerado um guia “The Fan Club Guide – tudo o que você sempre quis saber sobre como começar e administrar um fã-clube mas não sabia onde perguntar” com importantes recomendações e uma espécie de teste para que o indivíduo reflita, diante de toda a responsabilidade e sacrifício incluídos na sua condução, se quer mesmo abrir um fã-clube (ANEXO A). Os fã-clubes de celebridades respeitam demais seus artistas, possuem códigos de conduta, conhecem profundamente seus ídolos e, assim, representam importantes grupos de influência aos quais os produtores culturais podem recorrer. Acredita-se que, do ponto de vista acadêmico, esta pesquisa pode contribuir para o entendimento da relação consumidor-marca, através do estudo de um caso especÍfico de devoção e comunidade de marca dentro da indústria do entretenimento. Também se espera evidenciar as especificidades do consumo de um produto característico, a celebridade, que a despeito de sua importância cultural e econômica ainda não despertou grande interesse acadêmico. O entendimento da relação existente entre fã e ídolo pode ajudar na compreensão da dinâmica do funcionamento do consumo de produtos licenciados e da utilização de celebridades para o enriquecimento do brand equity de outras marcas, através das campanhas de endosso. 26 1.4 Organização do Trabalho O trabalho foi estruturado em cinco partes, incluindo esta primeira, a Introdução, que tem como objetivo apresentar o tema e o problema do trabalho, a sua relevância e possíveis aplicações práticas e acadêmicas. Na parte dois, é apresentado o referencial teórico utilizado. A discussão se faz a partir de três grandes temas: a produção de celebridades e sua importância cultural e econômica; as características do consumo de celebridades, onde é apresentado o modelo de consumo devoto e, finalmente, a importância das comunidades para a apresentação do conceito de consumo coletivo. Faz-se importante notar que não foram encontrados na literatura5 trabalhos específicos sobre fã-clubes. Alguns trabalhos (como o de KOZINETS, 2001 e OBST; ZINKIEWICZ; SMITH, 2002a, 2002b) tratam, de forma mais genérica, do “fandom”. Na parte três, é explicada a metodologia desta pesquisa. A estratégia utilizada foi a de estudo de caso único – uma celebridade, o cantor Daniel bastante popular no Brasil inteiro – através de três unidades de análise, representadas por diferentes fãclubes desta celebridade. Para a coleta de dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas com fãs presidentes e atuantes na organização do fã-clube, além da observação passiva, da observação de segunda mão (fotografias) e do levantamento de artefatos físicos. Documentos também foram utilizados como dados, obtidos através de uma extensa coleção de cartas escritas para o cantor e para os fã-clubes e de materiais e depoimentos publicados na Internet, na mídia eletrônica e na impressa. 5 Com exceção de um pequeno trabalho de O’Guinn, M. (1991): “Touching Greatness: the central midwest Barry Manilow Fan Club” 27 A parte quatro integra a análise de todos os dados coletados e que foram organizados segundo os modelos de devoção de Pimentel e Reynolds (2004) e de comunidade de marca, de Muniz e O’Guinn (2001). Finalmente na parte cinco são articuladas as conclusões deste trabalho, além das suas limitações e sugestões para discussões futuras a respeito do tema. 28 2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 2.1 A Indústria Cultural A discussão acerca da indústria cultural nos leva necessariamente à abordagem das polêmicas que envolvem o assunto. Existem diferentes versões em relação aos papéis e conseqüências da indústria cultural na vida das pessoas e das sociedades como um todo. Embora o aprofundamento destas versões não faça parte do escopo deste trabalho, o seu entendimento torna-se importante para a contextualização das relações estabelecidas entre fãs e celebridades que esta pesquisa busca apreender. De forma simplificada, o conceito de indústria cultural pode ser definido como um conjunto de complexos empresariais, concentrados técnica e economicamente, que produzem e distribuem objetos culturais em larga escala (TASCHNER, 1992). A autora evidencia a importância da característica-chave destes objetos para a completa compreensão do conceito: estes objetos culturais são elaborados pela lógica da produção capitalista, e portanto são caracterizados como mercadorias desde a sua concepção. É necessário que a distinção entre produtos culturais que também são mercadorias e os produtos culturais que são integralmente mercadorias seja feita: “À primeira categoria pertencem as obras culturais e artísticas cujas regras de concepção e elaboração distinguem-se da lógica do sistema social, embora sejam eventualmente objeto de compra e venda no mercado. Este grupo, portanto, inclui boa parte do patrimônio artístico e cultural que preexiste à era da indústria cultural e continua a existir à sua margem [...]. À segunda categoria, 29 pertencem os produtos típicos da indústria cultural. Aqui a distinção entre lógica da obra e do sistema é dissolvida pelo primado do efeito, pela busca de fórmulas, de sucesso comercial; o produto é concebido como mercadoria e produzido com vistas ao lucro” (GOLDENSTEIN, 1987, p.22) A transformação da cultura em mercadorias ganhou proporções imensas e potencializou seu poder em meados do século XX, com o desenvolvimento de novos meios de comunicação em massa, da expansão da indústria do entretenimento e da intensificação na comercialização do lazer. Os intelectuais da Escola de Frankfurt, com sua perspectiva crítica da sociedade são os representantes da visão negativa da indústria cultural. Este termo inclusive foi cunhado e proposto por Adorno e Horkheimer num livro publicado em 1947. O objetivo era deixar explícito que a cultura de massa não é a cultura do povo (feita pelas pessoas), mas sim fabricada (feita para ser consumida pelas pessoas). De acordo com estes teóricos, a indústria cultural americana transformou a cultura que era antes, um processo de autocriação potencialmente liberador em um instrumento de controle social, uma força manipuladora que bloqueia a consciência das classes, forja ou deforma a individualidade, transformando as pessoas em receptores passivos e homogeneizados numa massa (ADORNO, 1971). A visão crítica traduz a indústria cultural como uma fábrica de ilusões e de consumo superficial inserido num sistema maior da dominação burguesa na tentativa de alienar as “classes subalternas”. Neste processo, a estética assume um importante papel. Os críticos acreditam que a suposta pobreza estética atribuída à cultura de massa tem um efeito ideológico importante já que a arte, esta impossível de seguir uma lógica industrial capitalista, é acessível apenas a uma elite. Adotando uma posição extremamente oposta à crítica, a visão positiva da indústria cultural, notadamente representada por Shils, lhe atribui um papel educacional e lhe credita a democratização da cultura. Julga-a uma manifestação de interesses do 30 conjunto da sociedade, um produto dela, e por isto, um meio de comunicação que exerce uma ação benéfica sobre a população, reproduzindo o que ela quer e estabelecendo um consenso de valores que unem diversos grupos de interesse em um todo (TRAUBE, 1996). A visão mais conciliatória dos efeitos da indústria cultural é representada por Morin (1969). Esta abordagem questiona o consumo passivo e a absorção indiscriminada da cultura produzida. As audiências são vistas como partes ativas no processo, uma vez que elas selecionam e utilizam criteriosamente aqueles produtos que irão satisfazer suas necessidades subjetivas. A dinâmica de mercado e as relações de consumo são as mesmas que as de outros tipos de indústrias, isto é, os consumidores não consomem o que não lhes convém, o que não lhes representa significado algum. Este autor é categórico ao afirmar que a despeito da produção cultural criar um público de massa, ela é determinada pelo próprio mercado: “A cultura de massa, no universo capitalista, não é imposta pelas instituições sociais, ela depende da indústria e do comércio, ela é proposta. Ela se sujeita aos tabus (da religião, do Estado, etc...), mas não os cria; ela propõe modelos, mas não ordena nada. Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isto mesmo toma emprestada certas características do produto vendável, como a de se dobrar à lei do mercado, da oferta e da procura. Sua lei fundamental é a do mercado. [...] A cultura de massa é o produto de um diálogo entre uma produção e um consumo” (MORIN, 1969, p.46) Diferente dos críticos da Escola de Frankfurt, este autor acredita que se há um processo de alienação promovido pela cultura de massa, não é a alienação das pessoas-consumidoras, mas do autor/artista que muitas vezes para seguir a padronização do processo produtivo cultural não se reconhece, não se justifica nem se transcende a partir de sua obra. Apesar de enxergar uma analogia com o operário industrial, o autor aponta uma diferença essencial entre os dois casos: o “produtor cultural” é devidamente bem pago para se alienar. 31 Alguns trabalhos (TRAUBE, 1996 e LUNN, 1990) apontam também posturas intermediárias entre as visões pessimistas e otimistas da indústria cultural. Nesta abordagem, acredita-se que a cultura popular não pode ser reduzida a uma forma de controle social imposto “de cima”, mas tampouco pode ser entendida como uma cultura puramente expressiva, emersa “de baixo”. Ou seja, não há imposição, mas também não há consenso. Embora o capital econômico seja importante na diferenciação entre os tipos de cultura, é o capital cultural que acaba reforçando esta segregação, recurso este exigido para que se possa acompanhar e se apropriar da “alta” cultura. Capital este importante também para a delimitação de uma elite cultural. Assim como a definição da indústria cultural independe das polêmicas visões quanto ao seu papel, algumas características comuns a esta indústria podem ser apontadas: 1) a extrema fragmentação do mercado em diversas áreas como cinema, música, teatro, rádio, imprensa, etc., a variedade de segmentação dentro de cada um destes setores e a diversidade de gêneros extremamente estimulada pela indústria (TRAUBE, 1996); 2) a rapidez do consumo e volatilidade do conteúdo de seus produtos; 3) a originalidade (MORIN, 1969), motivada pela necessidade da novidade, sendo assim um ótimo exemplo do chamado “padrão fashion de consumo” (McCRACKEN, 1990); 4) a concentração técnico-burocrática alienada do criador, ou seja, o produto originalmente concebido pelo autor é submetido à burocracia da organização que faz um primeiro filtro e depois a repassa para os técnicos que, por sua vez, fazem sua própria manipulação (MORIN, 1969). 32 A indústria cultural segue “a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo idéias que servem para sua própria perpetuação e legitimação” (VIANA, 2004). A fama, representação da busca pelo reconhecimento na sociedade de massa, é uma destas idéias. Em seu trabalho sobre estrelas de cinema, Morin (1972) discute o papel do cinema como difusor de mitos e mostra como a indústria cultural se aproveita da necessidade do homem de se projetar em mitos, transformando-os em mercadoria, a que ele chama de estrela-celebridade. 2.1.1 A Importância Cultural da Fama A história mostra as diferentes formas pelas quais determinados indivíduos têm buscado atrair a atenção de outros sobre si mesmos. O reconhecimento social é necessário para que o indivíduo sinta a sua existência (VERNANT, 19786, apud COELHO, 1999). A busca pelo reconhecimento é algo antigo e a admiração que nutrimos pelos reconhecidos perpetua e retro-alimenta esta busca. Desde Alexandre, o Grande, o reconhecimento requer publicidade. A imagem para ser reproduzida utilizou e acompanhou os meios disponíveis. Assim, no passado, a literatura, o teatro, os monumentos públicos faziam o papel de reprodução dos mitos, depois, com o Renascimento, contribuíram para a função as pinturas e os retratos. E, finalmente, a era moderna adicionou a fotografia, o cinema, o rádio e a televisão (BRAUDY, 1986 e MORIN, 1969). Mais do que novos canais de publicidade, pelo alcance e força propagadora que possuem, esses novos canais mudaram toda a dinâmica da construção do renome. No mundo da comunicação em massa, o fenômeno da fama é maximizado e ganha contornos específicos, dada a possibilidade que proporciona de associação de um nome a um rosto, ambos divulgados, agora, maciçamente. 6 Vernant, J.P (1978). A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado. Discurso. Depto de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (9): 31-62, 1978. 33 Em seu trabalho, Coelho (1999) trata de algumas formas de construção de renome: a glória, a honra, a reputação e a fama. Ela mesma chama atenção ao uso intercambiável destes termos muitas vezes de forma indistinta na obra de um mesmo autor. São de fato formas nuançadas de construção de renome. “O nome, primeira percepção de si, individualiza; mas é no renome que se constrói a identidade, através da interação com o olhar do outro” (COELHO, 1999, p.30) A honra é vista por dois aspectos ao mesmo tempo: é individual, uma vez que traduz um sentimento (“honra sentida”), e é coletiva, uma vez que se torna um fato social (“honra provada”). Ao fazer uma auto-afirmação face ao olhar coletivo, a honra era uma forma de construção de identidade de si através dos outros. Ela tem um caráter conciliador entre as dimensões das existências privada e pública. Esta associação íntima da honra com as convenções sociais é uma das explicações para o obsoletismo da noção de honra. Berger, Berger e Kellner (19747, apud COELHO, 1999) acreditam que a “dignidade” é a substituta contemporânea da honra, que não sobreviveu à “incapacidade moderna de compreender insultos (isto é, ataques à honra) e às dificuldades jurídicas envolvendo alegações de ‘ofensa à honra’” (COELHO, 1999, p.26). No caso da honra, a identidade estaria vinculada aos papéis institucionais, e, portanto, para ter sentido, ela pressupõe um mundo estável com instituições e convenções críveis. Mas à medida que se desenvolve o mundo moderno, essas instituições e convenções são questionadas, fragmentadas e mesmo desacreditadas, e a construção da identidade se desvincula do papel institucional, tornando-se mais solitária. É esta nova forma de construção de identidade que se denominou “dignidade”. A glória, assim como a honra, também tem as dimensões individuais e coletivas. Mas o que a distingue é que a glória singulariza o indivíduo. Se de alguma forma a honra é acessível a todos os mortais, a glória não, ela destaca o indivíduo. Por algum feito, a glória significa o termo último da honra, e sendo este feito várias vezes 7 Berger, P.; Berger, B., & Kellner, H. (1974). On the obsolescence of the concept of honor. In: The Homeless Mind. New York: Vintage Books. 34 acompanhado da morte, atribui-se à glória o sinônimo de “honra heróica”, aquela que será celebrada por toda a posteridade. A fama é descendente da glória. Não possui a sua mesma nobreza porque ela tem um caráter bem mais efêmero e democrático, afinal todos ainda terão seus “15 minutos de fama”. Ao contrário da glória, para se atingir a fama não se faz necessário que o indivíduo tenha realizado algum feito, no extremo de sua honra. O uso correto dos meios de comunicação em massa, o alcance e a manutenção da alta visibilidade são os fatores que alçarão o indivíduo moderno à condição de famoso. A sorte, mais do que o merecimento é o que acaba determinando o sucesso de alguém. No fundo somos todos estrelas esperando o momento de sermos descobertos. A busca pela fama é a tradução moderna da busca pela singularização. A fama é uma forma de se destacar, de se diferenciar totalmente aceita em sociedades que possuem pressupostos igualitários, já que ela não hierarquiza os indivíduos. Os famosos são cercados de privilégios que são espontaneamente ofertados como sinal de reconhecimento. A fama se opõe ao anonimato e ao esquecimento aos quais a maioria dos mortais está fadada, e aos quais todos tentam fugir. E alimenta um paradoxo, porque exige o anonimato de muitos para o estrelato de um (COELHO, 1999). O desejo pela fama – promessa sedutora de se escapar do anonimato e da massificação – é alimentada por uma tensão constante no mundo das sociedades de massa: o anseio pela singularização versus o anseio da proteção da intimidade individual. A indústria cultural tem um papel fundamental na disseminação da fama, porque a fama necessita da comunicação em massa e vice-versa. Uma se alimenta da outra. O portador da fama torna-se o que se conhece hoje como celebridade. 35 2.1.2 O Produto Celebridade Existem variados tipos de celebridades dadas as diferentes áreas de origem onde elas podem ser produzidas: cinema, televisão, esportes, mundo de negócios, entre outros (TURNER, 2004). Não importa qual o tipo de celebridade, todos têm em comum a capacidade de despertar uma certa fascinação, porque ao mesmo tempo em que possuem uma aura de imaginário e divino (ROJEK, 20018; FROW, 19989 apud TURNER, 2004 inclusive atribuem às celebridades funções paralelas às que são normalmente designadas às religiões), as celebridades são pessoas que se pode encontrar numa situação cotidiana e ordinária de pessoas “normais”. É por isto que as celebridades devem ser diferentes o suficiente para serem atraentes e despertarem o interesse de consumo, mas similares o suficiente para não serem ameaçadoras e destrutivas (BRAUDY, 1986). É uma mistura de ordinário com extraordinário que alimenta o consumo da celebridade. É a verificação de que “poderia ser eu”, que aumenta o fascínio e a curiosidade acerca deste produto. As pessoas se projetam nas celebridades e através delas transcendem vicariamente a rotina de suas vidas diárias. Daí a curiosidade em torno de tudo o que diz respeito a uma celebridade, principalmente em relação à sua vida privada. Turner (2004) é categórico ao afirmar que celebridades são criadas e desenvolvidas para gerar dinheiro. Seus nomes e imagens são usados como elos para o desenvolvimento e conexão entre as mais diferentes formas de se entregar entretenimento ao consumidor: filmes, cd’s, revistas, jornais, programas de televisão, sem contar na gama de produtos licenciados com a marca das celebridades. 8 Rojek, C. (2001). Celebrity. London: Reaktion. Frow, J. (1998). Is Elvis a God? Cult, Culture, questions of method. International Journal of Cultural Studies, 1:2, pp. 197-210. 9 36 Por causa de seu poder em chamar a atenção para si, as celebridades, entre outros, são utilizadas em diferentes projetos para atrair investimentos, para alavancar produtos e marcas através de endossos e para garantir audiência e publicidade em programas e eventos. A celebridade ganha e faz dinheiro na mesma proporção em que é capaz de chamar atenção e gerar notícia. Por isto que visibilidade é fator chave de sucesso para este produto, fator este altamente explorado no livro de Rein, Kotler e Stoller, Marketing de Alta Visibilidade (1997) As celebridades – pela própria natureza efêmera da fama – têm um ciclo de vida curto e por isto é comum que sejam contratados terceiros para a administração de suas carreiras. São agentes, produtores e empresários, todos especialistas que, da mesma forma que acontece na indústria manufatureira, desenvolvem um plano mercadológico, um sistema de melhoria e modificação do produto para prolongar o estágio de amadurecimento e desenvolvem estratégias de construção e manutenção de lealdade do consumidor (TURNER, 2004). 2.2 O Consumo de Celebridades A visão tradicional de que o consumo está estruturado pelas propriedades do objeto consumido está mais do que contra-argumentada nos estudos de comportamento do consumidor (BELK, 1995). Pelo contrário, entende-se agora que o consumidor é parte ativa na atribuição de significados do que está sendo consumido. Através da antropologia do consumo e da adoção da perspectiva simbólica e do significado das posses, em detrimento da econômica, foram produzidos vários estudos (McCRACKEN, 1986; HOLBROOK; HIRSCHMAN, 1982; DOUGLAS; ISHERWOOD, 1979; e um dos mais explícitos, BELK, 1988), que, com foco na simbologia de produtos, objetos e bens físicos, apresentam algumas peculiaridades - e perdem outras - que não se aplicam, ou não explicam bem, o consumo do produto cultural celebridade. 37 Holt (1995) propõe uma estrutura de estudo do comportamento do consumidor, que ao invés de focar na compreensão do por que os indivíduos consomem este ou aquele objeto, busca entender a variedade de formas, dos vários “como” os indivíduos consomem. Assim, como o materialismo envolve o como as pessoas consomem e não o que elas consomem não se restringe e não envolve somente os objetos consumidos, mas como observa este mesmo autor “serviços e atividades como entretenimento, férias e mesmo educação podem ser consumidos de uma maneira materialista” (p.14). Na lógica da indústria cultural, a celebridade também pode ser consumida de uma forma materialista. O interesse então, para o presente estudo, da estrutura proposta por este autor se dá tanto por esta visão do consumo simbólico, como também pelo próprio objeto de estudo utilizado por ele: audiência (torcedores de futebol universitário). Utilizando uma matriz formada por duas dimensões (FIGURA 4)– a estrutura e o motivo do consumo – Holt (1995) organiza a maneira pela qual os diferentes aspectos do consumo vêm sendo tratados por pesquisas anteriores. As quatro situações são descritas, então, por meio de metáforas: consumo como uma experiência, como integração, como classificação e como brincadeira, diversão (play). O consumo como experiência tem no trabalho de Holbrook e Hirschman, “The Experimental Aspects of Consumption” (1982) a sua origem e enfatiza os estados emocionais que se formam durante o consumo. A abordagem do consumo como integração descreve como os consumidores adquirem e manipulam os significados dos objetos, através de vários processos como rituais, auto-extensão e de sacralização. Russell Belk tem clássicos trabalhos neste sentido, como “Possessions and the Extended Self” (1988) e “The Sacred and The Profane in Consumer Behavior: theodicy on the odyssey” (1989, junto com Melanie Wallendorf e John Sherry). Na terceira situação, consumo como classificação, o foco é como os objetos atuam na classificação dos seus consumidores, ou seja, a classificação do indivíduo se dá através da posse e da exibição do objeto consumido. O trabalho de Douglas e Isherwood (1979), “O Mundo dos Bens”, é um clássico exemplo desta abordagem. E, 38 finalmente, consumo como diversão, que na visão de Holt (1995) foi a dimensão do consumo, até então, menos estudada. Para ele, o “ato de consumir não apenas envolve o compromisso direto com o objeto consumido, mas também inclui o uso deste objeto como fonte de interação com seus ‘consumidores companheiros’”. Esta pouca atenção que Holt percebeu em 1995 está sendo corrigida em trabalhos bem recentes como os de Obst, Zinkiewicz e Smith (2002a e 2002b), Muniz e O’Guinn (2001), Kozinets (2001) Shouten e McAlexander (1995) e outros que vêm estudando com grande enfoque o fenômeno das coletividades de consumo. Estes autores serão abordados na próxima seção deste trabalho. MOTIVO DO CONSUMO Ações Autotélicas Ações Instrumentais Ações do Objeto CONSUMO COMO EXPERIÊNCIA CONSUMO COMO INTEGRAÇÃO Ações Inter-pessoais CONSUMO COMO DIVERSÃO CONSUMO COMO CLASSIFICAÇÃO ESTRUTURA DA AÇÃO Figura 4 - Metáforas do Consumo fonte: HOLT (1995, p.3) Assim, antes de se aprofundar na característica de agremiação que os fãs tendem a possuir, ou seja a relação fã-fã, nesta seção será abordada a relação fã-celebridade. Isto dará um bom embasamento para melhor compreender a dinâmica estabelecida dentro de um fã-clube. 2.2.1 O Relacionamento Fã-Celebridade No levantamento conceitual que Fournier (1998) fez para seu trabalho sobre o relacionamento consumidor-marca, ela aponta que para que um relacionamento de 39 fato exista, seja qual for a sua natureza, deve ser evidente uma interdependência entre as duas partes. Quando uma destas partes é então uma marca, o mecanismo que o indivíduo acaba utilizando para legitimar esta relação é de alguma forma transformando-a em algo animado, humanizado e até personificado. É comum consumidores se referirem a suas marcas como se elas fossem pessoas (BELK, 1988 e AAKER, J., 1997). Faz-se importante notar que no caso do produto celebridade a marca é uma pessoa e portanto se poderia supor que não há necessidade de usar qualquer mecanismo para que se possa estabelecer um relacionamento. Mas esta é uma falsa impressão. Como bem afirma Ferris (2001), o encontro fãcelebridade é um tipo único de relação social, e um dos motivos que o faz singular é que nestes encontros há uma assimetria de conhecimento entre os participantes: o fã sabe muito mais sobre a vida e a identidade da celebridade do que vice-versa. Aliás, na grande maioria das vezes a celebridade não sabe absolutamente nada a respeito do fã que o encontra e o abraça como a um velho conhecido. Horton e Wohl (1956) têm uma interessante teoria sobre estes “falsos relacionamentos”. Eles caracterizaram a interação entre mídia e audiência como relacionamento para-social. A crença é que por uma falha, um vazio que a sociedade moderna deixa de preencher, as pessoas acabam desenvolvendo falsas relações com seus ídolos, seus objetos de adoração, na busca do preenchimento desse vazio. Já em 1956, estes autores alertavam que algumas forças estavam afetando a qualidade das relações sociais: o declínio da comunidade e o aumento do poder da mídia de massa. Em sua visão, fazemos parte de uma sociedade mais desenvolvida tecnologicamente, sim, mas o preço desta modernidade tem sido pago com a decadência dos relacionamentos sociais, da cultura e dos valores. O declínio da sociedade e o aumento da mídia de massa proporcionam um terreno fértil para o desenvolvimento destes falsos relacionamentos. A comunidade antes dava suporte, 40 proteção, identificação e conexão aos indivíduos. Sem esta referência, eles ficam mais vulneráveis e irracionais. A chamada mídia de massa (rádio, televisão e cinema) proporciona aos indivíduos uma ilusão de que existe um relacionamento real, face a face, com a persona, independentemente se ela está representando um papel ou sendo ela mesma. Aliás, quanto mais real parecer esta persona, mais íntima parecerá a relação – e as próprias técnicas televisivas se desenvolveram para isto – maior a lealdade que o público poderá desenvolver com esta personagem. As pessoas acabam vivendo uma ilusão de intimidade tão forte que acreditam que de fato têm um relacionamento com aquele agente, justificando então o termo “relacionamento para-social”, criado por estes autores. Para a maioria das pessoas o relacionamento para-social é complementar aos relacionamentos reais que elas têm. Jenson (1992) afirma que o fato de os fãs serem vistos com preconceito e com distanciamento tanto pela mídia como pelos pesquisadores demonstra uma falta de percepção de que tais relacionamentos parasociais são conseqüência de uma sociedade que não supre as necessidades sociais de seus tipos individuais, e que portanto, todos nós recorremos num maior ou menor grau a esse tipo de relacionamento, sendo alguns deles culturalmente mais aceitos do que os outros (quanto mais ligado à cultura popular, mais discriminado será este relacionamento). Horton e Wohl (1956) discutem os papéis que este tipo de relacionamento desempenha para as diferentes idades, mas principalmente para os que eles denominam “social e psicologicamente isolados”: o relacionamento para-social lhes proporciona uma chance de desfrutar do “elixir da sociabilidade”, mas pode acabar prejudicando ou mesmo substituindo suas relações sociais reais. Os autores ainda citam que, com o tempo, os fãs acabam acreditando que eles conhecem a pessoa-objeto mais íntima e profundamente que os outros, e mais, que 41 entendem seu caráter e apreciam seus valores e motivos. Este “personagem” pode ser visto pela sua audiência como amigo, conselheiro, modelo, etc. O conhecimento e “convivência” cada vez maior do fã com seu ídolo acabam funcionando como uma motivação para que o fã busque então um contato real com a celebridade. Ferris (2001) acredita que quando um fã consegue finalmente ficar face-a-face com a celebridade é como se dois mundos colidissem, o mundo comum e ordinário dos fãs com a vida espetacular da celebridade. O real e o imaginário se fundem. Tanto que, divergindo um pouco do Horton e Wohl, Caughney (198410 apud FERRIS, 2001) acredita que a relação fã-celebridade contém tanto elementos reais como imaginários e que o fato de ser imaginário, não é algo necessariamente prejudicial, disfuncional ou patológico. Em seu trabalho, Ferris (2001) identifica três dinâmicas possíveis em que o encontro – numa primeira leitura, a efetivação de relacionamento – pode ocorrer. Os encontros programados, ou eventos públicos, seriam aqueles formalmente organizados por produtores e outros grupos com o objetivo claro de aproximar as celebridades de seus fãs. São convenções, lançamentos, noites de autógrafos, presenças em festas e boates, bailes de debutantes (muito freqüentes no Brasil) que teoricamente aproximam as duas partes, porém, são claramente uma forma não usual de interação, porque as relações de poder entre elas são claramente desiguais. A celebridade continua no comando, protegida, enquanto a condição de ação do fã continua restrita. A segunda forma de encontro, a não armada, “celebrity sighting”, é aquela que acontece por acaso, quando a celebridade está circulando por lugares públicos na mesma condição do fã, ou seja, realizando tarefas rotineiras, como uma “pessoa normal”, muito embora na maioria das vezes, disfarçado. Este encontro casual é muito mais autêntico e satisfatório para o fã que o encontro programado, por causa da espontaneidade que acomete ambas as partes. Este autor nota, porém, que esses encontros são mais raros. Já que o primeiro tipo os deixa numa condição inferiorizada e o segundo tipo não é confiável, alguns fãs partem para um terceiro tipo de encontro identificado, a busca ativa, ao armarem 10 Caughney, J. (1984). Imaginary Social Worlds: A Cultural Approach. Lincoln: University of Nebraska Press. 42 seus próprios encontros com as celebridades. Neste tipo de encontro é o fã que detém o controle, que pega a celebridade desprevenida. Como a maioria das celebridades guarda zelosamente sua privacidade, os fãs usam das mais diversas, engenhosas – e até criativas – armações para conseguirem a informação que os colocará no caminho delas. À medida que o fã ganha poder, a celebridade perde proteção. A busca constante por este tipo de encontro forçado pelo fã pode se tornar uma obsessão. No estudo de Ferris (2001), todos os entrevistados que chegaram a provocar estes encontros forçados afirmaram jamais considerar colocar ou impor risco de vida às celebridades que eles seguiam. De qualquer forma, é um limite sutil que diferencia estes fãs dos “desviados”, e as celebridades de uma certa forma, temem e evitam estes encontros, já que não conseguem detectar a diferença, numa primeira impressão. A assimetria da relação fã-celebridade também foi comprovada por Coelho (1999) em sua pesquisa baseada em cartas de fãs para diferentes atores e atrizes de novelas da Rede Globo. E ela vai além: ciente deste desequilíbrio, o fã busca o que ela chamou de “singularização”, ou seja, conseguir um destaque no meio de uma multidão de fãs. O objetivo final da singularização é diminuir a desigualdade da relação, e conseguir finalmente uma reciprocidade, traduzida não só num contato físico (porque aparentemente um contato apenas não satisfaz) mas num relacionamento físico. É como se o fã ao ser conhecido e reconhecido pelo ídolo se tornasse tão ou mais famoso e importante do que ele. Afinal ele seria famoso para o famoso. É importante abrir um parênteses aqui e discutir a função do sexo nestes relacionamentos. Coelho (1999) concluiu que quando os dois sexos são masculinos, a celebridade representa para o fã um modelo a ser imitado e não um arquétipo sagrado a cultuar. Quando os dois são do sexo feminino, há uma identificação muito grande por parte da fã e a vontade profunda de travar amizade. Quando os sexos são opostos há sempre um discurso amoroso muito intenso, porém não erotizado, confirmando novamente o processo de sacralização em que o ídolo é submetido 43 pelo fã. A utilização do discurso amoroso tem na discussão que a autora faz sobre amor e carisma uma justificativa. Na lógica da indústria cultural é aceito estar apaixonado, mas não fascinado. Assim, atrás do discurso amoroso do fã existe uma tentativa de resgatar a legitimidade dos seus próprios sentimentos em termos mais favoráveis. No esforço de singularizar-se os fãs recorrem a inúmeras estratégias, solicitações de fotos, autodescrições, de confissões íntimas, pedidos enfáticos de retorno entre outros. Como resposta ao êxito deste esforço, o fã precisa uma confirmação de que a carta chegou realmente às mãos da celebridade e que uma resposta autêntica e personalizada será recebida. No levantamento feito por Coelho (1999) os artistas todos, independentemente do estágio da carreira em que se encontravam não respondiam mais, pessoalmente, a estas cartas. Entre os motivos citados, tempo e disponibilidade eram os mais recorrentes. Porém mais profundamente, foi levantado que o grande motivo é que a celebridade não tem interesse em estabelecer um vínculo estreito com seus fãs, não quer personalizar a relação. Em alguns casos, motivados por interesse mercadológico ou pelo que chamam de ‘respeito’, alguns destes artistas contratam alguém para ler e/ou responder a estas cartas. E neste sentido, então, fica mais contundente a assimetria da relação fã-celebridade, confirmando a teoria dos relacionamentos para-sociais de Horton e Wohl (1956): as cartas, aqui representando um ato de comunicação, em geral não chegam ao seu receptor, permanecendo assim incompleto. Conforme observa Coelho (1999): “A chance de o(a) remetente receber uma resposta aparece, na sua representação, vinculada à possibilidade de distinguir-se dos demais fãs, singularizando-se; consciente, por um lado, de sua condição anônima, o fã lança mão de inúmeros recursos para transcendê-la, desta forma enredando-se em um dilema entre a consciência do seu anonimato e a certeza de sua singularidade.“ (p.61) Este paradoxo – anonimato versus singularização – fica evidente através da análise que a autora fez a partir da recorrência (e formas) da utilização da expressão “fã numero 1”. Os fãs que assim se autodefiniam representaram 25% do total de cartas 44 analisadas. Esta que seria a forma mais explícita de singularização, é porém, ao mesmo tempo, a mais utilizada. Quanto mais diferente ele tenta ser dos demais fãs, mais ele se iguala. Este é o paradoxo da indústria cultural. Em sua metáfora de consumo como Integração, Holt (1995) mostra como alguns consumidores interagem com seus objetos consumidos uma vez que eles são elementos importantes na constituição da sua identidade. A integração representa um ato instrumental perseguido para proporcionar o uso simbólico de um objeto. Esta integração pode ocorrer de duas formas: o objeto consumido é integrado à identidade do indivíduo, processo este que acabou sendo denominado na literatura como auto-extensão (self extension, por BELK, 1988); ou ainda de uma forma mais intensa, onde o indivíduo se reorienta para um melhor alinhamento com a identidade institucionalmente definida. O interessante é que HOLT (1995) demonstra que com objetos de produção massificada (automóveis, celebridades...) o processo de integração torna-se problemático pelo próprio paradoxo apontado por Coelho (1999): ao mesmo tempo em que as estruturas institucionais proporcionam recursos para a criação de experiências repletas de significados para os indivíduos, a “objetificação” necessária para constituir este mundo social tem um “efeito irônico de tornar mais difícil a apropriação dos significados dos objetos consumidos pelos consumidores” (HOLT 1995, p.6). Os métodos, então, que os consumidores utilizariam para quebrar, ou pelo menos, diminuir esta distância institucional entre o consumidor e o objeto consumido são: assimilação, quando todo o significado está de tal forma internalizado que passa a ser uma forma natural de pensar e agir; a produção, quando os indivíduos passam a acreditar que seus atos ajudam na própria construção do objeto consumido e; a personalização, onde o indivíduo adiciona elementos extra-institucionais na relação com seu objeto com o objetivo de imprimir a sua individualidade. O conceito de “singularização” colocado por Coelho (1999) equipara-se, assim, ao que Holt (1995) levantou sobre a extensa literatura a respeito dos “atos de personalização”, descrito como as diversas formas em que consumidores acabam 45 transformando, alterando simbólica e fisicamente objetos produzidos de forma massificada, com o objetivo de adquirir e manipular os significados que lhe são conferidos. Além da desigualdade de conhecimento entre as partes que existe no relacionamento fã-celebridade, outra característica o torna um tipo de interação social único: a busca pelos troféus de contato. Como espécies de prova do seu relacionamento com os ídolos, os fãs buscam obter alguma lembrança – que é guardado como verdadeira relíquia e troféu – dos seus encontros. Autógrafos, fotos, qualquer coisa que possa prolongar – e personificar (HOLT, 1995) – aquele encontro. Como observa Fiske (1992), “fãs são ávidos colecionadores”, e as fotos e autógrafos, provas dos seus encontros, são os itens mais especiais de sua coleção, porque são únicos, exclusivos, personalizados. Ferris (2001) observa que destes encontros os fãs levam na melhor das hipóteses uma fotografia ou autógrafo e na pior das hipóteses uma história para contar. E, para eles, isto é o bastante, é informação diferenciada. Verdadeiro ou não, real ou imaginário, o fato é que os relacionamentos são importantes porque eles estruturam e adicionam significados às vidas das pessoas. O desenvolvimento da personalidade depende em grande parte da fabricação do relacionamento com outras pessoas. Estas relações podem ajudar a resolver temas de vida, problemas existenciais e tensões que vão surgindo no dia-a-dia das pessoas (FOURNIER, 1998). Os relacionamentos diferem pelos tipos de laços que unem as partes envolvidas. Estes laços podem estar fundamentados por questões utilitárias, como por emocionais. Os laços emocionais, por sua vez, variam em intensidade de afeição superficial e um simples gostar para uma afeição amigável, amor passional até uma obsessão doentia. Belk, Ger e Askegaard (2003) afirmam que consumidores potencialmente passionais são consumidos por desejo. A compreensão dos mecanismos do desejo tem recebido bem menos atenção do que as necessidades; o desejo é entendido como uma emoção forte e cíclica que é ao mesmo tempo desconfortável e prazerosa. A 46 constante tensão do desejo alimenta a paixão e envolve questões como o outro (otherness), a sociabilidade, perigo e inacessibilidade. No estudo realizado pelos autores, o desejo é visto pelos consumidores como fogo (“the fire of desire”), um sentimento quente, uma emoção passional completamente diferente do discurso sem sentimentos da busca pela “satisfação de necessidades”. Alguns comportamentos como compra por impulso e comportamento compulsivo possuem componentes do desejo, mas não representam completamente o comportamento motivado pelo desejo. No caso de compra por impulso, observam os autores, o senso de urgência persistente e forte que surge no impulso são característicos do desejo, porém sua característica repentina e de satisfação imediata não. O desejo é alimentado pelo tempo, pela busca, mais ainda, pela dificuldade da busca. O inatingível é um elemento muito importante na compreensão do desejo. Já o conceito de comportamento compulsivo divide com o desejo a intensidade e o poder das emoções geradas. Mas o estado de ansiedade do comportamento compulsivo pode dar mais satisfação e alívio para o indivíduo compulsivo do que o próprio objeto perseguido. A perseguição é mais importante. No caso do desejo, por mais importante que seja o papel da perseguição, a satisfação só ocorrerá quando o objeto desejado for enfim conquistado. Isto, porém, não significa que o objeto não possa perder valor quando finalmente atingido, levando o consumidor a partir em busca de novos objetos de desejo, ou a reciclar os antigos. Os autores falam num ciclo do desejo: desejo, aquisição, reformulação do desejo. Esta alimentação contínua, este ciclo sem fim, dão indícios de que na verdade existe o desejo pelo desejo. A vida sem desejo é vista como sem graça, sem tempero, e mais, sem esperança. O desejo e a chance de realização deste desejo criam um estado de esperança que por si só é altamente prazeroso. Aqui fica clara a necessidade de existir um equilíbrio entre a distância e a acessibilidade do objeto desejado. Ele tem que ser distante o suficiente para causar o interesse da perseguição, porém perto o suficiente para dar esperança de que poderá ser alcançado. 47 Os autores ainda nos colocam uma visão diferente do desejo ao se embasarem em Baudrillard (198311, apud BELK; GER; ASKEGAARD, 2003) que reverte a perspectiva para o objeto. Assim, não é mais o sujeito que deseja, mas o objeto que seduz. E, de acordo com ele, tal sedução é uma alternativa fundamental para a racionalidade da sociedade contemporânea, porque ela está enraizada em tudo que é oposto à racionalidade: destino, mágica e paixão. Independentemente da perspectiva adotada, o desejo é parte fundamental na composição do consumo devoto. 2.2.2 Fã e o Consumo Devoto Várias foram as escalas desenvolvidas para definir e classificar os tipos de relacionamento entre consumidor e marca (OLIVER, 1999; BOWEN; SCHNEIDER, 1999; GRIFFIN, 1995; RAPHEL; RAPHAEL, 1995; AAKER, D., 1991). Elas apresentam ora diferenças muito sutis, de nomenclatura, ora conceituais referentes à própria definição de lealdade. A aqui utilizada é a feita por David Aaker (1991), que conceitua lealdade como uma “medida da ligação entre consumidor e marca” (p. 40) refletindo a probabilidade de o consumidor mudar ou não para outra marca, especialmente se a concorrente fizer uma mudança, quer em preço, quer em característica de produto. A proposta feita por Bowen e Schneider (1999) chamou a atenção porque sugere acrescentar à escala comum de 5 pontos de insatisfação/satisfação mais outros dois, nos extremos. O que determina estes pontos é justamente a experiência e as emoções que o contato com uma marca/produto propiciou. Mais do que insatisfeito, o consumidor pode se sentir ultrajado, o que seria um grande problema, já que provavelmente ele se posicionaria como um verdadeiro “terrorista” contra as marcas. E, na outra extremidade, estaríamos lidando com um consumidor que foi 11 Baudrillard, J. (1983). Les strategies fatales. Paris: Grasset. 48 positivamente surpreendido na sua relação com a marca, pois a sua experiência com ela excedeu à sua expectativa. Este extremo incluiria os chamados advogados, missionários ou, como às vezes aparece na literatura, fãs da marca ou consumidores apaixonados (ROZANSKI; BAUM; WOLFSEN, 2002). Todas as escalas têm em comum colocar em seu topo os consumidores “defensores”, “especiais”, “comprometidos” ou seja, aqueles que se envolvem de tal forma com a marca que acabam fazendo sua divulgação e defesa espontaneamente como elos de um processo boca-a-boca. Pimentel e Reynolds (2004) acreditam que em alguns casos as conexões dos consumidores com suas marcas atingem um nível de lealdade tão intenso que elas sobrevivem à baixa performance de produto, a escândalos, má publicidade, altos preços e ausência de esforços promocionais. Estes autores desenvolveram o conceito de devoção do consumidor como uma possível extensão do valor da marca (Brand Equity). O valor da marca é definido por David Aaker (1991) como o “conjunto de todos os ativos e passivos ligados a uma marca, seu nome e seu símbolo, que se somam ou se subtraem do valor proporcionado por um produto ou serviço para uma empresa e/ou para os consumidores dela” (p.16). A lealdade é um dos mais importantes ativos de uma marca que contribuem para sua valorização. Entre os consumidores que estão dentro do nível mais alto de lealdade proposto por Aaker (1991), Oliver (1999) ainda diferencia aqueles que possuem o “ultimate loyalty”, ou a lealdade extrema, final. Em suas palavras, “o consumidor que deseja ardorosamente adquirir um determinado produto ou serviço [...] contra tudo e a qualquer custo” (p.35). No modelo de Pimentel e Reynolds (2004), este consumidor de extremo comprometimento é descrito como o consumidor devoto. Os autores utilizaram fãs de futebol universitário para o desenvolvimento do seu modelo e depois o aplicaram em consumidores de outros tipos de produtos como Coca-Cola, Saturn, Levi’s e Nike. Eles acreditam fortemente que gerentes de marcas podem aprender mais 49 sobre a devoção do consumidor analisando fãs de esportes e de produtos de entretenimento do que outras marcas de produtos. O modelo (FIGURA 5) começa com uma série de antecedentes que podem levar o indivíduo a um comprometimento calculativo e/ou normativo, já que um não exclui o outro. Entre estes antecedentes, os autores identificaram normas mesmo que implícitas em adotar uma determinada marca; a busca pelo preenchimento de vazios e lacunas na vida do indivíduo; a necessidade de pertencimento e reconhecimento de um grupo que surge no momento que se interage com outros fãs; a necessidade de distinção, que tem toda a relação com a metáfora de Holt (1995) de consumo como classificação; e necessidade de identificação, de definição e compreensão de sua própria identidade, já que os indivíduos podem desenvolver, através da integração um forte relacionamento com a organização. Estes antecedentes podem levar o indivíduo para um comprometimento calculativo se estiver baseado numa boa relação custo-beneficio. É um relacionamento mais superficial do ponto de vista de lealdade porque está sustentado pela necessidade. Ou seja, enquanto a relação for proveitosa para o indivíduo, ela existe. No caso dos fãs de futebol, os autores exemplificam com torcedores que se manifestam apenas durante temporadas vencedoras. Estes não são considerados pelos outros fãs como verdadeiros. O comprometimento normativo, outro caminho ao qual os antecedentes podem levar é o que está estabelecido a partir de um senso de obrigação por parte do indivíduo. É como se fosse moralmente esperado e certo fazer, já que eles se sentem responsáveis pelo sucesso do objeto. Estas duas formas de comprometimento não são excludentes. Como colocam os autores “a potencial sobreposição destes dois tipos de comprometimento é explicada ao percebermos que os benefícios calculados e as pressões normativas são diferentes dimensões e não pólos opostos de uma mesma dimensão” (p.10). Ambas as formas são temporárias ou transitórias. O calculativo só persiste enquanto 50 benefícios forem maiores que os custos. O normativo, embora um pouco mais duradouro, também só persistirá enquanto as normas vigentes se sobrepuserem ao indivíduo. Em qualquer dos casos, cessados os estímulos, a conseqüência é a atrofia do comprometimento. Figura 5 - Modelo de Desenvolvimento do Consumo Devoto fonte: PIMENTEL e REYNOLDS (2004) 51 Enquanto, a partir deste ponto, o comprometimento de alguns fãs pode atrofiar-se, o de outros pode através de um processo de sacralização, progredir para um comprometimento afetivo, este, sim, uma forma muito mais pessoal e intensa. Belk, Wallendirf e Sherry (1989) acreditam que embora a religião seja o contexto onde o conceito de sagrado é mais operante, não é o único: o comportamento do consumidor pode exibir certos aspectos do sagrado. Conforme estes autores, sagrado é algo que seja respeitado, venerado, temido e tratado com o máximo de deferência. Em seu trabalho, eles descrevem sete formas através dos quais um objeto pode se sacralizar: através de ritual, de peregrinação, de quintessência, do ato de presentear, do ato de colecionar, através da herança e de sanções externas. Em seu estudo, Pimentel e Reynolds (2004) identificaram vários resultados deste grau de comprometimento que é intrinsicamente motivado: os fãs afetivamente comprometidos atribuíam características positivas para seu próprio time, enquanto diminuiam e atribuíam características negativas aos times rivais. A lealdade a seus times persistia e sobrevivia em temporadas ruins, muito embora a má performance fosse profundamente sentida e levada para o lado pessoal dos fãs. Como resultado do próprio processo de sacralização não era incomum os fãs se expressarem em relação a seus times através de referências religiosas. Embora muito mais duradouro do que os outros dois tipos de comprometimento, o afetivo não é necessariamente permanente. Ele precisa de sustentação, de ações adicionais no sentido de não ocorrer a dessacralização do objeto. Através do hábito, do abuso, de limites ultrapassados, o objeto pode se profanar (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989). Em isto ocorrendo, novamente, o comprometimento pode se atrofiar. Neste modelo, a devoção ocorre a partir do comprometimento afetivo e se manifesta no comportamento proativo de sustentação da condição de sagrado do objeto. Se por conta própria eles se imbuem desta missão, então eles se vêem compelidos a se 52 manter leais, até mesmo para garantirem sua consistência. Os fãs então sustentam a sagração a partir de atos como a participação regular em rituais, a exposição de símbolos através de vestuário e coleções, construção de verdadeiros altares em suas casas, separando os itens da sua coleção (o sagrado) dos objetos comuns (o profano). Alguns até assumem um papel de missionários, ao ativamente tentar arregimentar novos fãs. Para adorar, acompanhar e apoiar seus objetos, são realizados os mais diferentes tipos de sacrifícios. Assim, a partir do modelo desses dois autores, o consumidor devoto pode ser definido como aquele que apresenta comprometimento afetivo acompanhado de comportamentos proativos de sustentação do objeto adorado. Embora o objeto do presente estudo seja os fãs devotos, a literatura indica que há diversos tipos de fãs. O próprio significado da palavra (do latim, fanático - fanaticus – significa “pertencente a um templo” [fanum = templo]) nos leva a imaginar o fã devoto. Existem algumas definições para a palavra fã na literatura: no caso de celebridades pode ser considerado um admirador entusiasta e no referente a esportistas a palavra mais adequada é um seguidor mais entusiasta. O termo fanático refere-se a um fã que obcecado por sua devoção, despe-se de sua autocrítica e acaba por exceder-se em seu entusiasmo. Em nenhum momento na literatura foi encontrada alguma referência ou modelo que quantificasse e classificasse este excedente. Focando seu trabalho no consumidor de celebridades, chamado por eles mais genericamente de audiência, Rein, Kotler e Stoller (1997) propõem uma classificação baseada nos diferentes níveis de interesse e intimidade que estas audiências trazem para seu “relacionamento” com as celebridades (FIGURA 6). Esta classificação parece uma tradução das escalas de lealdade mais genéricas encontradas na literatura (acima citadas) para o caso das audiências e o linguajar da indústria cultural. 53 No nível inferior, e ainda aquém dos olhares de interesse da indústria, encontram-se os consumidores invisíveis. Diferentes das pessoas que não consomem celebridades (embora tanto estes autores como KOZINETS, 2001 e GROSSBERG, 1992 defendem fortemente que é muito raro encontrar alguém completamente desprovido, desinteressado de algum tipo de celebridade) estes consumidores invisíveis só parecem invisíveis por estarem longe do mainstream. Figura 6 - Classificação dos Fãs de Celebridades fonte: REIN, KOTLER e STOLLER (1987) Logo acima estão posicionados os espectadores. O consumo desta parcela da audiência é passivo, uma vez que só ocorre quando o preço e a responsabilidade requerida são baixos. A partir do momento que o interesse do espectador aumenta e ele sai do consumo casual para o contato mais intencional, ele passa a ser considerado um perseguidor, que aqui pode ser livremente traduzido como um fã “normal”, no sentido não preconceituoso da palavra. Estes consumidores, através da aquisição de CD’s, ingressos, revistas passam a efetivamente gastar dinheiro no consumo da celebridade, e portanto são os primeiros a chamar a atenção da indústria. 54 Os colecionadores não só buscam ativamente a celebridade como guardam lembranças físicas dos eventos. Embora alguns poucos possam ter um interesse econômico em suas coleções – e seriam considerados muito mais investidores do que colecionadores – a grande maioria devota um grande respeito e cuidado com suas coleções, e não demonstra nenhum interesse em se desfazer dos seus itens. Entre outras coisas, eles representam os elos com seus ídolos – no já referido “troféu de contato” – e com os demais fãs. Através do licenciamento de sua marca, as celebridades têm neste segmento o grupo que começa a se interessar e a consumir as suas extensões de marca. Para os membros dos fã-clubes, o quinto nível descrito, uma nova variável se introduz: a necessidade mais forte de interação. Não mais satisfeitos com o anonimato da multidão da audiência, estas pessoas querem ser reconhecidas pelos seus ídolos como os seus fãs. Através da agremiação, estes fãs encontram na companhia dos demais membros o encorajamento e o conforto dos que sentem a devoção na mesma intensidade que a sua. Eles investem um tempo e energia consideráveis no ídolo e o retorno atingido, como um bilhete, uma menção da celebridade, lugares preferenciais e rápidos encontros no camarim, é para eles uma troca mais do que justa. Os insiders, embora possam ter um sentido mais pejorativo, são definidos por Rein, Kotler e Stoller (1997) como aqueles fãs que não querem mais se comunicar com seus ídolos através do fã-clube, mas sim de uma maneira mais direta, individual, e possivelmente mais íntima. O objetivo destes fãs é conseguir ultrapassar a barreira existente entre a celebridade e a audiência, alcançando assim a sua própria notoriedade junto ao ídolo. Nestes níveis mais altos de comprometimento, a maior parte dos casos já passa a ser considerada patológica e, portanto, não representa o tipo de consumidor que a celebridade quer e tem interesse em propagar. O staff é composto por aqueles membros comuns da audiência que acabaram entrando nos círculos de relacionamento mais próximos da celebridade por conta de alguma ocupação legitimada em posições autorizadas no seu sistema de suporte, ou 55 aqueles que pela proximidade do seu trabalho acabam desenvolvendo grande lealdade e afeição pela celebridade. Entre os vários exemplos citados pelos autores, cabelereiros, figurinistas, parentes, agentes, etc. Para este grupo, privilegiado sob o ponto de vista da audiência, além da proximidade e do relacionamento real com a celebridade, eles desfrutam de informação. Detalhes da vida e dos gostos das celebridades que lhes conferem poder. Eles não necessariamente precisam dividir esta informação para se sentirem poderosos, diferenciados. Para eles, basta possuíla. E, finalmente, os exploradores. Esta é a mais intensa das formas de relacionamento, porém é também a mais negativa, ameaçadora, e às vezes até, fatal. Entre os subtipos de exploradores existem os fãs obsessivos, geralmente invisíveis, que catapultam suas obsessões em sua própria forma de celebridade. Os bisbilhoteiros, ao contrário dos obsessivos, agem de forma mais “calculada e profissional”. São os jornalistas e outros tipos que ganham suas vidas buscando inconsistências e excessos das celebridades para posterior divulgação. Estes são muito ameaçadores para a carreira. E, por último, os destruidores, pessoas suicidas, que representam uma ameaça à sua própria integridade física e à dos seus ídolos. Neste sentido podemos notar a importância assumida dos membros de fã-clubes, porque representam o nível mais alto de devoção considerada saudável e sinérgica. Hunt, Bristol e Babshaw (1999) desenvolveram a seguinte tipologia baseada em torcedores de futebol: fãs temporários são aqueles que só são fãs por um determinado período de tempo, uma determinada época do ano. Fãs locais são aqueles definidos geograficamente. Ao mudarem de localidade, passam a torcer por diferentes times. Os devotos são os fãs que não possuem limitações temporais nem geográficas: onde quer que estejam, qualquer que seja a época, eles se mantêm fiéis aos seus objetos de devoção. E os fanáticos são aqueles que apresentam devoção só que são muito mais extremos em suas atitudes e comportamentos. Por último, os fãs disfuncionais, ou os casos violentos e/ou patológicos. 56 Nota-se uma distinção na concepção de fanático. Apesar destes autores terem denominado os casos patológicos como disfuncionais e Rein, Kotler e Stoller (1997) de obsessivos e destrutivos (na literatura pesquisada estes casos também apareceram com a nomenclatura “desviados”), o uso da palavra fanático ficou popularizado como o exagero doentio destes, relativamente, poucos casos. Em seu trabalho sobre consumidores fanáticos, Redden e Steiner (2000) apontam que na história multidisciplinar do estudo de fanatismo na política, na religião e no esporte, quatro são as características sempre relacionadas: entusiasmo, ardor, excesso e intolerância. Esta visão popular e comum do fanatismo, acabou contaminando as manifestações não patológicas da devoção, trazendo para a “categoria” um pesado estigma que os fãs demonstram consciência de carregar. Os fãs reconhecem que o que eles acreditam que são atos de sua devoção podem se tornar na visão dos outros, incluindo das celebridades, como estranhos, obsessivos, invasivos e ameaçadores (FERRIS, 2001). 2.2.3 O Estigma de ser Fã Sempre que o fã é abordado como objeto de estudo – além de poucas, as iniciativas neste sentido predominam no campo da psicologia – ele é visto como um ser passivo e manipulável, um resultado ou uma resposta do “sistema de celebridades”, que é veiculado através da mídia de massa. Ou seja, o fã é um produto, ou uma conseqüência da mídia de massa. Eles têm nas celebridades seus modelos e grupos de referência e por causa de uma “relação unilateral”, acabam desenvolvendo com seus objetos de adoração, relações sociais artificiais. Além disso, o enfoque às vezes distorcivo da mídia faz com que o conceito fã nos remeta via de regra a somente dois tipos de indivíduos, ambos violentos, de atitudes extremas e comportamento patológico: o tipo obsessivo solitário, como Mark David 57 Chapman, o assassino de John Lennon; e o tipo histérico membro de uma multidão, como os muito estudados “hooligans”, ou então aquele estereótipo de fãs de rock, que gritam, agarram, arranham e choram por seus ídolos. Porém, se utilizarmos a concepção de Jenkins (1992) de que ser fã significa mostrar interesse, afeição e compromisso por um determinado campo, objeto ou figura de interesse ampliamos este conceito para todos nós e assim poderemos entender muito do padrão de consumo dos “consumidores interessados”. As mais novas práticas de marketing estabelecem que para manter consumidores leais é necessário entregar-lhes “algo mais”, uma experiência marcante e inesquecível com sua marca, para transformá-lo em um fã de sua marca. Ao longo de sua vida, assim como demonstra Kozinets (2001), conforme seu estágio biológico e social de vida, o ser humano vai mudando de interesse, e a cada novo que surge, um novo “pacote de consumo” é adquirido para extravasar e saciar aquele interesse específico. Qual é a diferença então, entre ser um aficionado, ou um expert num determinado assunto, ou ser um fã? Jenson (1992) explora três (FIGURA 7): A primeira se refere ao objeto de desejo, enquanto o aficionado é um consumidor da “alta cultura”, representada pela arte, o fã é exclusivamente o consumidor de bens culturais industrialmente produzidos e distribuídos. Em segundo lugar, como decorrência do objeto, o aficionado requer um nível educacional elevado para poder compreender a obra; enquanto que o fã possui um nível educacional de médio para baixo o que acaba também sendo traduzido por estratos sociais mais baixos . A terceira diferença se refere à forma com que o interesse é demonstrado, nas palavras de Jenkins (1992) à “demonstração emocional”. Enquanto o aficionado demonstra um comportamento mais reservado, o fã é mais passional e dramático. A audiência que é considerada admirável, boa, é aquela que é mais passiva, mais contida, quieta e, portanto, respeitosa. Tanto que este autor até questiona se é a 58 paixão que diferencia os dois neste aspecto, para depois se utilizar de exemplos que mostram que o limite entre a “obsessão racional” do primeiro e a “obsessão emocional” do segundo não é claro, e portanto muitas vezes transponível. Razão Educado Estratos mais AFICIONADO: altos “alta” cultura X X X x Emoção Não Educado Estratos mais FÃ: baixos cultura de massa Figura 7 - Diferenças entre Fã e Aficionado É no contexto da indústria cultural, ou daquilo que se chama cultura de massas, que se insere a condição de ser fã. Mais precisamente, “a cultura do fã” é uma característica inerente à dimensão popular da cultura de massa. O fã seleciona, de um repertório de produtos de entretenimento produzidos e distribuídos em massa, certos artistas, narrativas e gêneros e os leva para dentro de uma “cultura fração”. É por isto que o “mundo do fã” está tipicamente associado a formas culturais que o sistema de valor dominante denigre: a música popular, novelas, romances, histórias em quadrinhos, celebridades Globais e Hollywoodianas. A partir dos produtos da indústria cultural, todas as audiências produzem significados e prazeres que sejam pertinentes a sua situação social. Os fãs criam uma cultura própria com seus sistemas também próprios de produção e distribuição que formam o que Fiske (1992) definiu como “economia cultural das sombras” Inspirado em Bourdieu, o autor vê os fãs como produtores e usuários ativos de um “capital cultural popular”, que é o equivalente para as formações sociais subordinadas e serve para os mesmos propósitos que o “capital cultural oficial” tem para o contexto dominante. O que Fiske (1992) busca provar é que a cultura do fã é uma forma de cultura popular que ecoa muitas das instituições da cultura oficial, mas num formato popular e sob controle popular. Em outras palavras, o “fandom” 59 proporciona meios de preencher uma falta, um espaço cultural e proporciona prestígio social e auto-estima para um segmento social. Assim, num fã-clube, são prestigiados valores também importantes na alta cultura, como por exemplo, autenticidade e conhecimento. Uma das características mais notáveis entre as comunidades de fãs é a fronteira entre o clube e o “resto do mundo”. E esta fronteira é fortemente marcada e patrulhada pelos dois lados. Da mesma forma que os espectadores comuns não querem ser tachados de “fãs” (devido ao estigma da palavra), os fãs pertencentes a um fã-clube se autodenominam e se enxergam como os “verdadeiros” fãs. Neste sentido são altamente discriminatórios e fazem da autenticidade a sua forma de distinção. Tanto no “fandom”, como na cultura oficial, o acúmulo do conhecimento é fundamental para o acúmulo de capital cultural. A indústria cultural reconhece esta característica e explora-a produzindo uma enorme variedade de materiais desenhados para prover o acesso do fã à informação a respeito do seu objeto de “fandom”. Assim como a autenticidade, o conhecimento proporciona prestígio ao fã dentro do seu grupo e ele acaba atuando como líder de opinião. Este poder intragrupo também funciona entre grupos, ou seja, o conhecimento serve como uma forma de distinguir um fã-clube de outro, aumentando a sua rivalidade. Conhecimento, assim como dinheiro, também é fonte de poder. Este acúmulo de capital cultural é materialmente traduzido pelas coleções dos fãs: livros, fotos, cartazes, discos, etc, guardados numa condição sacra, sob a forma de uma coleção. A produtividade do fã ocorre através da interface entre commodities culturais industrialmente produzidas e a vida cotidiana do fã. A partir deste material, ele, individualmente produz, dos recursos semióticos, significados de identidade e experiências sociais. É um processo essencialmente interno, ao qual Fiske (1992) 60 chama de produtividade semiótica. A partir do momento em que estes significados são explicitados e divididos com outras pessoas, e adquirem um formato público, passam a ser denominados de produtividade enunciada. As conversas, a linguagem verbal são uma forma de gerar e circular significados de um objeto de “fandom”, dentro de uma comunidade local. Muito do prazer do “fandom” está na possibilidade de pertencer a uma comunidade, fato este proporcionado pela produção enunciada. A produção enunciada tem curta duração e restrita circulação, já que só existe enquanto o grupo está reunido. Finalmente a terceira forma de produção, a textual. Esta forma de produção se apresenta de duas maneiras: através da produção artística dos fãs que recontam, melhoram, incluem e retrabalham seus objetos de “fandom“ (novamente a singularização, a personificação). É a que se aproxima mais das produções artísticas da cultura oficial; e também através da participação dos fãs na construção do texto original (atuação de torcedores num jogo; audiência num show) Este tipo de participação ajuda a reforçar o sentimento de posse que o fã desenvolve em relação ao seu objeto de adoração, já que ele faz parte, constitui seu capital cultural popular, e conseqüentemente, a idéia que as celebridades são construídas pelas mãos de seus fãs e que devem seu estrelato inteiramente a eles. Os integrantes da indústria cultural têm consciência da capacidade produtiva (e por que não, destrutiva) dos fãs e por isto “levam seriamente em consideração as cartas dos fãs que tentam participar e influenciar a produção e a distribuição dos textos”. As commodities comerciais da indústria cultural são modificadas e retrabalhadas pela produção cultural dos fãs, em outras palavras, são a fonte, a matéria prima da cultura popular dos fãs. Ao mesmo tempo, a indústria cultural vê no fã um mercado adicional que não somente compra produtos “spin off”, sempre em grandes quantidades (são “heavy users”), mas também proporciona um valioso e gratuito feedback acerca das preferências e das tendências do mercado. Neste sentido podemos perceber as funções contraditórias que as mercadorias culturais promovem: de um lado suprem os interesses econômicos da indústria, e de 61 outro, suprem os interesses culturais dos fãs. Assim, não é difícil de se prever o constante conflito existente entre fãs e indústria. A cultura de massa não tem a pretensão de ter o status da exclusividade existente dos objetos de arte, já que suas mercadorias são reconhecidamente industrialmente produzidas. Mas estes produtos culturais, ao contrário da arte, estimulam a produtividade do seu consumidor, que irá retrabalhá-los, reescrevê-los e completálos, de uma forma jamais permitida num trabalho de arte. Assim, se conseguir livrar-se do estigma de ser um louco obsessivo, o fã logo se depara com outro: o da “baixa cultura”. Existem, na sociedade de consumo de massa, sanções sociais para a exibição e a perseguição dos desejos; elas só são autorizadas em determinadas épocas, lugares e para certas atividades (BELK; GER; ASKEGAARD, 2003). Ao encontrar outras pessoas que dividem o mesmo sentimento de devoção, os fãs se sentem protegidos e seguros para extravasar sua adoração, para completar seu processo de consumo como integração e como diversão. Por isto a relação fã-fã é tão importante para o consumo do produto cultural celebridade. 2.3 O Consumo Coletivo Tradicionalmente se reconhece na teoria do comportamento do consumidor que grupos específicos impactam de alguma forma o padrão de consumo dos indivíduos. Estes chamados grupos de consumo relevantes incluem família, grupos sociais formais e informais (amizades), grupos de compra, entre outros (SCHIFFMAN; KANUK, 1978). Mas fato é também que até bem pouco tempo não foram dedicados muitos estudos, dentro da área mercadológica, para ir além do mero reconhecimento da importância dos grupos no consumo e tentar entender, explicar e mensurar esta influência. Esta aparente negligência parece estar sendo corrigida como observa Cova (1997, p.297, tradução nossa): 62 “a última conferência da Associação para Pesquisa do Consumidor dirigiu suas atenções para o fenômeno da comunidade, importância sempre social na considerada nossa era como uma pós-moderna, imensa porém curiosamente negligenciada na nossa disciplina”. Está claro que para aumentar nosso entendimento a respeito do comportamento do consumidor é necessário que estendamos as fronteiras do marketing para além do nível individual de análise e entender a dimensão coletiva do consumo. Kiely (1997) afirma que os consumidores estão sedentos por conexão e que mais do que programas de lealdade, que sistemas elaborados de banco de dados, são as comunidades de marcas que geram real emoção e lealdade intensa. Os pesquisadores sociais já identificaram esta tendência – ou será uma condição inerente ao ser humano? – pelo desejo de se sentir parte de um grupo que divida seus mesmos valores. 2.3.1 Senso de Comunidade O conceito comunidade parece vir despertando polêmica há algum tempo como levantado por Friedman, Abeele e De Vos (1993) e Obst, Zinkiewicz e Smith (2002). Em 1955, foi feito um levantamento por Hillery que, naquela época já conseguiu identificar 94 diferentes definições para a palavra. Se dentro da própria sociologia já existiam tantas formas de conceituá-la, imagine-se então quando psicólogos, antropólogos e agora, mercadólogos começam a empregá-la também em seus diferentes contextos. De qualquer forma, em sua origem e do ponto de vista sociológico, Fischer (197612, apud FRIEDMAN; ABEELE; DE VOS, 1993) apurou que os dois significados mais 12 Fischer, C. S. (1976). The urban experience. New York: Harcourt Brace Jovanovich 63 freqüentemente utilizados se referiam a um “grupo de pessoas com certas características em comum” (p.37). Para Gusfield (197513, apud OBST; ZINKIEWICZ, SMITH, 2002), a primeira característica definidora – e também sua forma mais clássica e empregada – é a residência de uma mesma localidade. São as comunidades geográficas, as vizinhanças. A segunda característica definidora aceita é a existência de relações sociais contínuas entre os membros do grupo. Estas são chamadas de comunidades relacionais (FRIEDMAN; ABEELE; DE VOS, 1993) ou de interesse (OBST; ZINKIEWICZ, SMITH, 2002). Embora, conforme observado por Durkheim (196414, apud OBST; ZINKIEWICZ, SMITH, 2002), a sociedade moderna propicie melhor o desenvolvimento de comunidades em torno de interesses do que de localidades, ainda hoje existe uma quantidade muito maior de trabalhos em torno das comunidades geográficas do que em torno das relacionais. Obst, Zinkiewicz e Smith (2002b) investigaram em sua pesquisa o senso de comunidade geográfico e relacional pelos membros de um fã-clube de ficção científica e descobriram que os membros geralmente sentiam laços mais fortes de comunidade entre os membros do fã-clube do que entre sua vizinhança, muito embora a maior parte da comunicação feita entre estes membros fosse realizada através da Internet. As autoras também afirmam que, ao contrário do inicialmente imaginado, a Internet não destrói a comunidade, mas facilita, mesmo que virtualmente, o encontro de pessoas com interesses comuns. É importante notar que, do ponto de vista sociológico, existe um fator comum a todos tipos de comunidade que é o pressuposto de interação face-a-face entre os seus membros. Porém, com as novas formas de interação social e comunicação (Internet) estudos foram feitos e resultados apresentados no sentido de que mesmo não podendo ser configurados como comunidades sob o ponto de vista sociológico tradicional, grupos de pessoas proporcionavam um senso de comunidade aos seus indivíduos membros. 13 14 Gusfield, J. (1975). The community: a critical response. New York: Harper Colophon. Durkheim, E. (1964). The division of labor in society. Glencoe (IL): Free Press of Glencoe 64 Este trabalho não tem objetivo de julgar se os conceitos que serão apresentados podem ou não ser considerados como “comunidades”, no sentido sociológico tradicional. Para a proposta final desta pesquisa é importante que estes grupos proporcionem aos seus membros este senso de comunidade. Existe um campo dentro da Psicologia chamada de psicologia da comunidade, que sentiu sua própria necessidade de definir o que comunidade significaria. Foi neste contexto que Sarason (1974) apresentou o conceito de senso psicológico de comunidade, o PSOC (Psychologic Sense of Community). Este momento foi considerado a origem do estudo acadêmico do senso de comunidade. O modelo ainda hoje mais utilizado para o estudo do senso de comunidade veio de dois psicólogos, McMillan e Chavis (1986), a partir de um trabalho onde utilizaram análise fatorial para identificar os quatro principais elementos do senso de comunidade: agremiação, influência, integração e satisfação de necessidades, e conexão através de emoções e experiências vividas. Baseados nestes elementos, eles definiram senso de comunidade como “sentimento que os membros possuem de pertencimento, sentimento de que eles são importantes para os demais membros e para o grupo como um todo e uma crença comum de que as necessidades dos membros serão supridas através do seu comprometimento de estarem juntos” (apud Calgary document) A primeira dimensão do modelo de McMillan e Chavis (1986) é Agremiação (‘membership”). Esta dimensão se refere ao sentimento de pertencimento, de ser parte de um coletivo. São cinco os atributos envolvidos: a) Fronteiras: a definição de quem é parte e de quem não é parte da comunidade. As fronteiras são muito importantes para as comunidades porque elas servem para proteger conexões sociais mais íntimas; protegemnos contra os estranhos ao grupo, evitam infiltrações de membros não legítimos. 65 b) Sistema Simbólico Comum: é através dos símbolos como rituais, cerimônias, ritos de passagem, formas de linguagem, roupas, que os grupos indicam suas fronteiras e legitimam quem é membro. c) Segurança Emocional d) Senso de Pertencimento e Identificação e) Investimento pessoal A segunda dimensão é a Influência. Este é um conceito bidirecional porque ao mesmo momento em que o indivíduo deve sentir que desfruta de um certo poder para exercer influência sobre o grupo, e por isto se sentir motivado a participar do grupo, a coesão do grupo só existe se o grupo exercer influência sobre os indivíduos membros. Ou seja, a conformidade é essencial para que haja coesão no grupo. E, por sua vez, a coesão é fundamental para o senso de comunidade. Em Integração e Satisfação das Necessidades, a terceira dimensão do modelo, está implícita a idéia de que para que se mantenha na comunidade um senso positivo de conjunto é necessário que a associação indivíduo-grupo seja recompensadora para o indivíduo. A integração acontece também na medida em que as similaridades entre os membros vão sendo encontradas. A quarta e última dimensão deste modelo é chamada de Conexões baseadas em Emoções Compartilhadas. Esta dimensão está baseada na história comum dos membros e na sua identificação com a comunidade. A premissa utilizada pelos autores é a de que quanto mais as pessoas interagem, mais propensas estão a desenvolver relacionamentos mais próximos. Quanto mais positivas são estas interações, mais fortes se tornam os laços que os unem. Dez anos após o desenvolvimento deste modelo central de PSOC, McMillan (1996) fez uma releitura do seu trabalho em conjunto com Chavis e propôs algumas 66 adaptações, através de metáforas. A agremiação passa a ser Espírito, reforçando o sentimento de amizade e pertencimento que representam o espírito, a alma da comunidade. Influência para a ser Confiança, já que em nome da coesão do grupo, regras são criadas para manter a ordem e a igualdade de poder no grupo. Integração e Satisfação de Necessidades foi renomeado Troca, deixando assim explícita a necessidade de recompensa dos interesses individuais que a comunidade deve satisfazer. E a dimensão de Conexões baseadas em Emoções Compartilhadas passa a se denominar Arte. São as histórias vividas em conjunto que passam a fazer parte do grupo. É interessante notar pela descrição das quatro dimensões que compõem o modelo de McMillan e Chavis (1986) que a relação entre elas é circular. Cada uma delas reforça as outras, da mesma forma que, juntas, criam e mantêm o senso de comunidade geral. As histórias compartilhadas entre os membros do grupo geram um maior sentimento de pertencimento e reforçam a agremiação, que por sua vez representa a base para que haja a confiança e influência nos relacionamentos internos da comunidade, que por sua vez, são a base para que as trocas e recompensas aconteçam. Todos juntos, estes elementos aumentam e intensificam o repertório de histórias que o grupo divide, alimentando o ciclo. Sarason (1974) tinha consciência das dificuldades associadas ao estudo empírico do conceito senso de comunidade porque ele necessariamente implica um julgamento de valor. Mesmo assim, a partir do modelo inicial, Chavis, McMillan, Hoges e Wandersman (1999), conjuntamente com os dois primeiros autores desenvolveram o SCI – Sense of Community Index – que desde 1986, segundo um levantamento de Obst, Zinkiewicz e Smith (2002b) ainda vem sendo o instrumento mais utilizado nas pesquisas sobre PSOC, principalmente entre os psicólogos de comunidade. Vários outros autores vêm desenvolvendo e testando escalas a partir deste index (CHIPUER; PRETTY, 199915; BUCKNER, 198816; entre outros citados no trabalho 15 Chipuer, H., & Pretty, G. (1999). A Review of the Sense of Community Index: Current Uses, Factor Structure, Reliability and Further Development. Journal of Community Psychology, 27 (6), pp. 643-658 16 Buckner, J. (1988). The Development of na Instrument to Measure Neighbourhood Cohesion. American Journal of Community Psychology, 16(6), pp. 771-791 67 de SENSE OF COMMUNITY PARTNERS, 2004) e além de aprimorarem a técnica foram melhorando e complementando o modelo, como o ocorrido no caso de Obst, Zinkiewicz e Smith (2002), que além das quatro dimensões desenhadas no modelo anterior, sugerem a partir da analise fatorial empregada em seu trabalho, a inclusão de uma quinta dimensão, a Identificação Consciente, que é a existência de uma forte relação entre a auto-imagem do indivíduo e a agremiação numa comunidade. Sentir-se parte de uma comunidade é importante para o indivíduo porque aumenta seu senso de bem estar: na medida em que aumenta sua felicidade, diminui suas preocupações e aumenta seu senso de eficácia (Davidson e Cotter, 199117, apud SENSE OF COMMUNITY PARTNERS, 2004). Por meio das comunidades, pessoas compartilham recursos essenciais que podem ser cognitivos, emocionais ou materiais. Dependendo do tipo de comunidade, diferentes coisas podem ser compartilhadas, mas em todas há algo que é sempre dividido: a criação e a negociação de significados (McALEXANDER; SHOUTEN; KOENIG, 2002). 2.3.2 Comunidades e Consumo Larsen (2002) em texto seu publicado pelo Copenhagen Institute for Future Studies aponta que diferentemente do que caracterizava as comunidades antigas, a saber, ser formadas por pessoas que habitavam uma mesma localidade, participavam de uma mesma atividade e partilhavam uma mesma mentalidade, atualmente, basta apenas uma destas características para que um grupo de pessoas funcione como uma comunidade. Segundo o autor, isto possibilitou a formação de comunidades mais divertidas e variadas, mas também, mais fracas, instáveis e transitórias, embora não menos valiosas e importantes. 17 Davidson, W., & Cotter, P. (1991). The Relationship Between Sense of Community and Subjective WellBeing: a First Look. Journal of Community Psychology, 19, pp. 246-253. 68 Mas o fato é que as pessoas ainda têm uma necessidade de se agrupar e se agremiar, mesmo que por motivos, ou melhor, em torno de motivos diferentes dos de antes. Cova (1997) faz um interessante levantamento do papel dos laços sociais na vida do indivíduo, desde as coletividades tradicionais até o que ele chama de neo-tribalismo, ou laços pós-modernos. De acordo com o autor, os laços sociais tradicionais eram impostos e resultavam no que ele chamou de “má comunidade”, aquela que escravizava o indivíduo, onde o ser social vinha antes do individual. A modernidade vinha, então, como uma força progressiva que trazia a promessa de liberar a humanidade de toda a ignorância e irracionalidade, e colocar o ser humano no seu devido lugar, ou seja, no centro do universo. Uma vez podendo – e devendo – fazer racionalmente suas escolhas, o pertencimento a uma comunidade passa a ser contratual, uma escolha voluntária e racional. A diferenciação, mais do que a comunhão, passa a guiar as ações do homem moderno. Ao longo do século XX, o homem praticou na sua maior intensidade o mito da liberação do indivíduo. Ele nunca esteve tão livre em suas escolhas privadas e públicas como nesta época; e também nunca esteve tão sozinho e tão distante do sentimento de coletividade. Assim, na pós-modernidade, o homem que conquistou o seu “eu” se torna o único responsável, independentemente de sua origem, por se tornar alguém, por “fazer” e por mostrar a sua existência, através do seu próprio esforço de diferenciação. A mobilidade, tanto espacial como social, é o que caracteriza este homem pósmoderno, um verdadeiro nômade que quase não possui laços sociais duráveis. Nas palavras de Cova (1997, pp. 300, tradução nossa): “a fragmentação da sociedade e em particular a fragmentação – e natureza efêmera – do consumo estão entre as mais visíveis conseqüências deste individualismo pós-moderno. [...] pelo desenvolvimento da indústria e do comércio [...] a partir de sua própria casa e sem a necessidade do contato social físico, o indivíduo pós-moderno pode obter quase tudo o que deseja. Todos os produtos e serviços oferecidos aumentam o isolamento do 69 indivíduo pós-moderno ao mesmo tempo em que lhe permitem estar em contato virtual com o resto do mundo.” Assim, a pós-modernidade pode ser caracterizada como um período de extremo individualismo e de redefinição de padrões de sociabilidade. Na medida em que ele se libera dos laços sociais tradicionais e obrigatórios, ele passa a escolher com quais grupos sociais ele quer estar envolvido. Esta poderia ser uma das explicações do crescimento da importância das comunidades relacionais sobre as geográficas. Se na pré-modernidade a identidade social vinha antes da identidade individual, e na modernidade ocorre uma troca nesta ordem, parece que na pós-modernidade o indivíduo passou a buscar um melhor equilíbrio entre as duas. E o que é mais complicado ainda: a contínua busca pela resposta da pergunta “quem sou eu” vai alterar conforme o momento, ou a situação (LARSEN, 2002) que a pessoa se encontra ao longo do seu dia. Cada indivíduo pós-moderno pertence a diferentes tribos e em cada uma delas poderá desempenhar diferentes papéis e usar diferentes máscaras (COVA, 1997). O ser humano que agora opta e busca qual a comunidade a que quer pertencer, ou melhor, a que tem sentido ele pertencer utiliza fatores agregadores diferentes dos utilizados no passado: são emoções compartilhadas, estilos de vida, crenças morais, senso de injustiça e práticas de consumo que unem estes homens. O fenômeno de retorno das comunidades vem sendo verificado nas sociedades ocidentais, e sendo chamado de “neo-tribalismo”. E um dos fatores agregadores destas comunidades é o seu padrão de consumo. Por isto, cada vez mais estudiosos do comportamento do consumidor necessitam dos conceitos de antropologia e sociologia para entender o fenômeno do consumo. O próprio Cova (1997) tenta explicar a dimensão coletiva do consumo, através de um conceito emprestado de trabalhos recentes da antropologia e sociologia, o “valor de conexão” de produtos e serviços, ou seja, a capacidade de produtos e serviços em gerar elos entre os consumidores. Ele acredita que este conceito “é capaz de dar uma luz ao consumo pós-moderno” (p.297). 70 Nos itens que se seguem, tem-se como objetivo explorar as comunidades que se agregam em torno do consumo. As teorias vão desde o consumo mais genérico, como as comunidades de consumo, passando por pessoas que se agregam em torno do consumo de uma atividade e do “pacote” de objetos e serviços para expressar aquela atividade (subculturas de consumo) até o agrupamento em torno do consumo específico de uma determinada marca (comunidades de marca). 2.3.2.1 Comunidades de Consumo O conceito “comunidades de consumo” foi originalmente proposto por Daniel Boorstin, um historiador americano, em 1973. De lá para cá várias outras denominações surgiram como subculturas de consumo (KOZINETS, 2001), “consumption villages” ou aldeias de consumo (OLIVER, 1999), comunidades de marcas (MUNIZ; O´GUINN, 2001). Apesar de sutis diferenças nestas conceituações todas partem da mesma base boorstiniana: grupos de pessoas que adquirem identidade social através de seu comportamento de consumo . Pessoas que consomem o mesmo tipo de produtos compartilham o mesmo senso de bem estar, os mesmo riscos, interesses e preocupações. Este foi o fenômeno observado por Boorstin (1973) no seu trabalho sobre a história social da América, comunidades novas e invisíveis criadas e preservadas pelo como e o que os homens consomem. A propaganda teve um papel muito importante na criação deste fenômeno uma vez que as marcas veiculadas nacionalmente passavam mensagens de que ao consumir determinado produto você acabava pertencendo a um grupo seleto ou especial de pessoas. Numa época em que, devido ao grande crescimento no número de imigrantes, as pessoas sentiam-se perdidas e deslocadas, esta promessa de pertencimento parecia muito tentadora e acabou dando aos produtos e marcas uma função social até então inesperada. 71 A origem das comunidades de consumo data do final do século XIX e início do século XX, época de grande mobilidade social, com grande fluxo tanto de imigrantes estrangeiros como dos que vinham das áreas rurais para os centros urbanos. No meio do sentimento de saudade e enfraquecimento dos laços das comunidades de origem, a vizinhança geográfica deixou de ser a única forma de agremiação. Um dos pontos mais interessantes da teoria de Boorstin (1973) é que a necessidade de se desvincular de comunidades geograficamente localizadas ainda é muito atual. Globalização, expatriações (FRIEDMAN; ABEELE; DE VOS, 1993) e principalmente a Internet quebraram definitivamente os limites geográficos das comunidades. Mais uma vez vivemos uma era de alta mobilidade social, embora diferente da do início do século passado. A busca por uma identidade social e um senso de pertencer continuam presentes. Foram os elos que mudaram. A premissa básica que está por trás de todas as teorias de “comunhão” através do consumo é que os elos agora são os estilos de vida das pessoas, expressos em áreas como roupas, alimentação e entretenimento. A crítica que alguns sociólogos fazem em relação ao conceito de Boorstin (1973) é que ele não atende a nenhuma das duas formas mais correntes de se definir comunidade, conforme discutido anteriormente. Os autores compreendem que a legitimidade do termo comunidade utilizada por Boorstin (1973) pode ser questionada do ponto de vista sociológico, porém ao se referirem ao conceito de PSOC, legitimam-no novamente sob o aspecto da “psicologia de comunidades”. Sob este ponto de vista é bem possível que uma pessoa desenvolva um alto sentimento de comunidade em relação a determinado grupo, mesmo que este grupo não se enquadre na definição sociológica tradicional de comunidade. A visão deste autor é mais genérica sim, já que não inclui exclusivamente o consumo específico, “compulsivo”, obcecado até, de colecionadores ou de fãs de qualquer natureza, praticantes de atividades de lazer em comum, etc. Conforme 72 afirmado por ele, não é necessário o “consumo do item exótico e dramático” para despertar o elo entre os consumidores. Ao invés disto, e dos demais autores, ele se refere aos produtos mais comuns que são encontrados nos pontos de venda. 2.3.2.2 Comunidades de Marca O conceito de comunidade de marca foi introduzido por Muniz e O´Guinn (2001). A intenção dos autores era explorar a importância da comunidade no comportamento do consumidor. Os autores notaram a importância dada ao papel da comunidade em diferentes campos e áreas de estudo, porém, notaram também a falta de compreensão do significado delas no contexto do consumo. Através do estudo de três comunidades que se relacionavam em torno de três diferentes marcas – Ford Bronco, Macintosh e Saab – os autores conseguiram identificar nelas três características fundamentais existentes nas comunidades tradicionais: senso de pertencimento, rituais e tradições e senso de responsabilidade moral. Assim, através do seu estudo, definiram uma comunidade de marca como “uma comunidade especializada baseada não em aspectos geográficos, mas num conjunto estruturado de relacionamentos sociais entre admiradores de uma determinada marca”. (p. 412). Em outras palavras, o que une as pessoas nas comunidades de marcas é o seu interesse comum acerca de uma determinada marca. Este elo, aparentemente superficial, fraco e consumista, mostra-se numa análise mais profunda, bastante relevante e poderoso, já que conforme visto, na cultura do consumo, as marcas adquiriram uma função sócio-cultural até então não imaginada (BELK, 1988). Por de trás da marca, elemento expresso deste elo, está uma série de significados e representações (McCRACKEN, 1986, 1990). Os elementos de caracterização da comunidade identificados por Muniz e O´Guinn (2001), embora um pouco mais simplificados e agrupados de uma forma diferente, 73 representam os mesmos elementos que compõem o modelo de senso de comunidade de McMillan e Chavis (1986), conforme mostra QUADRO 1. Muniz & O’Guinn (2001) McMillan & Chavis (1986) 1. Senso de Pertencimento 1. Membership 2. Rituais 2. Influência & Tradições 3. Senso de responsabilidade moral 3. Integração e Preenchimento das Necessidades 4. Conexão baseado em emoções compartilhadas Quadro 1 – Comparação entre os elementos que compõem a comunidade nos modelos de Muniz e O´Guinn e McMillan e Chavis O senso de pertencimento é a consciência de quem é ou não parte da coletividade. É o sentimento de conexão que existe entre os membros e a identificação dos elementos em comum, que os unem. É o sentimento compartilhado de pertencimento. O segundo elemento de caracterização identificado por Muniz e O´Guinn (2001) é a presença de rituais e tradições. Os rituais, além de estabelecerem o sistema de símbolos da comunidade com seus significados e definições, servem para perpetuar a história construída e a cultura do grupo. As tradições são o conjunto de práticas que além de celebrar, enraízam nas comunidades as suas normas e valores. O terceiro marco é o senso de responsabilidade moral, ou seja, a noção de obrigação e dever do indivíduo tanto para com a comunidade como um todo como para com seus membros em particular. Estes autores afirmam ainda que a definição tradicional e geográfica de comunidade não se adequa mais às novas formas de agregação das pessoas. Esta definição não previa a evolução e domínio da comunicação massificada e nem da virtual. Portanto, eles embasam o fenômeno comunidades de marca, na definição de comunidade de 74 Bender (197818, apud MUNIZ; O´GUINN, 2001): uma rede de relações sociais, marcadas pela reciprocidade e por laços emocionais”. Os autores definiram algumas características muito claras das comunidades de marcas, que as diferenciam de outras formas de agremiações como as sub-culturas e tribos. Ao contrário dessas, as comunidades de marcas são sensíveis aos meios de comunicação em massa. Em segundo lugar, as comunidades de marca são explicitamente comerciais. Elas também não são tão efêmeras como vistas as novas formas de agremiações porque seus membros mostram-se bastante comprometidos com a marca. São agrupamentos relativamente estáveis, e que mostram fortes graus de comprometimento. Portanto, dentro da própria pirâmide de lealdade de David Aaker (1991), podemos supor que nestas agremiações encontramos os consumidores mais leais a uma marca. Outra característica, em oposição às outras, é que elas não precisam estar fora do “mainstream”, nem ser marginais. Muniz e O´Guinn (2001) argumentam que estas comunidades podem se formar em torno de qualquer marca, mas que provavelmente estão mais propensas a se formar em torno daquelas com forte imagem, com uma longa e rica história e que sofrem com uma concorrência mais acirrada. McAlexander, Shouten e Koenig (2002) publicaram um trabalho onde dinamizam o conceito de comunidade de marca, antes proposto por Muniz e O´Guinn (2001). O questionamento e complementação propostos por eles giram em torno de três dimensões das comunidades de marca definidas pelos autores pioneiros: a geografia, o contexto social e a temporalidade/existência. Estes três autores vêem as comunidades de marcas como uma espécie de evolução das comunidades de consumo observadas por Boorstin (1973). Para eles, o que era uma comunidade amorfa e invisível em 1973, se tornou, no momento da observação de Muniz e O´Guinn (2001) “visível, vibrante e multifacetado”. São observações do mesmo 18 Bender, T. (1978). Community and Social Change in America. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press. 75 fenômeno e as principais diferenças encontradas nas definições de cada um destes autores são decorrência do momento histórico em que foram observados. Para estes autores, Muniz e O´Guinn (2001) foram muito estáticos e pouco flexíveis em algumas das caracterizações das comunidades de marcas. Na dimensão geográfica, muito embora a definição original determine que as comunidades de marcas não são geográficas, estes autores acreditam que elas possam variar desde a alta concentração geográfica, até serem tão difusas como as comunidades de consumo de Boorstin (1973). Ou seja, elas podem variar de um espaço totalmente livre, sem fronteiras, como a Internet, até algumas concentrações que podem ser até temporárias, como as chamadas “brandfests”, encontros de marcas planejados como os que os próprios autores vivenciaram em seus estudos com Jeep e Harley Davidson (MCALEXANDER; SHOUTEN, 1995, 1998). No que diz respeito ao contexto social, o questionamento destes autores se dá também por causa da variedade de tipos e intensidade de contatos que pode existir entre os membros de uma comunidade de marca, sem contudo descaracterizá-la como uma comunidade de marca. Contatos esporádicos pela Internet podem evoluir para um relacionamento pessoal, face a face constante. “A comunicação entre os membros pode ser tanto face-a-face, mediada por meios eletrônicos ou ainda uma função da mídia corporativa de massa” (McALEXANDER; SHOUTEN; KOENIG, 2002, p. 40). Pode acontecer uma ou outra de cada vez, ou uma ou outra, ou todas elas concomitantemente. O contexto social, da mesma forma que o geográfico é dinâmico. Novamente, nos dois casos, estes autores enxergam a existência da comunidade de marca. Finalmente, a falta de dinâmica observada na terceira dimensão, a temporalidade, ou seja, o tempo de existência de uma determinada comunidade de marca. Muniz e O´Guinn (2001) questionaram a teoria de novo tribalismo (COVA, 1997) que caracteriza os agrupamentos pós-modernos como efêmeros. Pelo contrário, eles afirmam que as comunidades de marca são “grupos relativamente estáveis e com fortes graus de comprometimento” (2001, p. 415). McAlexander, Shouten e Koenig 76 (2002) acreditam que algumas são estáveis e duradouras, mas também encontraram em outros estudos comunidades que bem poderiam ser consideradas de marcas mas que eram temporárias ou periódicas. Todos estes estudos mostravam que mesmo em comunidades situacionais, experiências de consumo com fortes significados eram compartilhadas entre os participantes. 2.3.2.3 Subculturas de Consumo Os livros de comportamento do consumidor e de marketing costumam prever a segmentação do público-alvo pelas suas subculturas como uma forma importante e estratégica de se explorar oportunidades de mercado. Neste contexto, a subcultura é encarada como a divisão da sociedade em pequenos subgrupos que são homogêneos em relação a hábitos e comportamentos específicos. Os membros de uma subcultura específica tendem a possuir crenças, valores e hábitos que os destacam dos outros membros da mesma sociedade. Assim, é colocado que o perfil cultural de uma sociedade deve ser encarado de duas formas: primeiro, os temas culturais centrais que são partilhados pela maior parte da população, independentemente das agremiações subculturais específicas e, segundo, as crenças, valores e costumes compartilhados apenas pelos membros de subculturas específicas. Até hoje as formas mais utilizadas de subdividir a cultura vigente em pequenos subgrupos são: por nacionalidade, religião, região geográfica, etnia, idade, gênero, ocupação e classe social (SCHIFFMAN; KANUK, 1978). Não é à toa que do ponto de vista mercadológico, Larsen (2002), Cova (1997) dentre outros se lançam a uma tarefa de alertar a necessidade de se utilizarem outros critérios de segmentação, além do tradicional. O mundo evoluiu de uma forma que não é mais possível classificarem-se os consumidores dentro de segmentos como 77 estes. Na visão de Larsen (2002) está mais do que na hora de pararmos de encarar o consumidor individual e de colocarmos foco no consumidor “situacional”, aquele indivíduo que ao longo do dia é diversas pessoas, e portanto, o que determinará seu padrão de consumo, não é uma classificação estática e definitiva, mas uma situação, um determinado momento do dia, algo que mudará entre os dias e ao longo do mesmo dia. A subcultura do consumo, da forma em que foi apresentada por Celsi, Rose e Leigh (1993), Shouten e McAlexander (1995) e por Kozinets (2001) dão bem uma dimensão da maneira diferente com que a subcultura está sendo definida. Ela não se classifica mais por estas “categorias analíticas” pré-definidas comumente proferidas pela academia, mas o que as delimita é a maneira como uma pessoa gasta seu tempo e dinheiro. As subculturas, assim chamadas por estes autores, se aproximam muito do que Muniz e O´Guinn (2001) apresentam como as “novas tribos”. A partir do trabalho de Maffesoli (199619, apud MUNIZ e O´GUINN, 2001) eles as definem como formas de “reagregações da sociedade hiperindividualista”, caracterizada pela sua “fluidez, encontros ocasionais e dispersão” (p.414). Assim, estas tribos, se formam, se desformam, se formam novamente agora em torno de algo diferente refletindo assim a constante mudança de identidade do consumidor pós-moderno. Cova (1997) vai além, descrevendo que estas novas tribos não se atêm a laços físicos, à presença física, mas exibem um “senso local de identificação, religiosidade, sincretismos e narcisismo grupal” (p. 300). Schouten e McAlexander (1995) cunharam o termo subcultura de consumo e o definiram como um subgrupo característico da sociedade que se auto-seleciona a partir de um comprometimento partilhado em relação a uma categoria específica de produtos, a uma marca ou, ainda, a uma atividade de consumo. Elas também são identificáveis e possuem uma estrutura social hierárquica, um conjunto próprio de 19 Maffesoli, M. (1996). The Time of the Tribes: The Decline of Individualism in Mass Society. Thousand Oaks (CA): Saage. 78 crenças e valores, e rituais, linguajar, símbolos e modos de expressão únicos. Uma subcultura de consumo passa a existir a partir do momento em que pessoas se identificam com certos objetos ou atividades de consumo e, a partir deles, se identificam também com outras pessoas. Estas subculturas propiciam significados e práticas que estruturam as identidades, as ações e os relacionamentos dos consumidores (KOZINETS, 2001). A partir de um levantamento feito da literatura de subculturas, Kozinets (2001) aponta três importantes questões a serem consideradas quando se analisa o interrelacionamento dos significados e práticas de consumo entre as subculturas e a cultura macro, ou ‘principal’. O primeiro cuidado que deve ser tomado é para que não haja confusão entre o que é uma atividade de lazer com o que é uma subcultura. Muitas atividades podem não possuir a profundidade e a coerência de um estilo de vida, e portanto, não pode a ela ser auferida o status de subcultura. Em segundo lugar, é freqüentemente feita a associação de subcultura com comportamento ‘desviado’, desconforme. Acredita-se que esta associação é derivada até da interpretação do prefixo “sub” que pode passar a idéia de que os grupos sociais investigados como subculturas são subordinados em relação à cultura dominante, ou ainda são “subterrâneos” e rebeldes, ou ainda possuem uma qualidade inferior em relação à dominante. O autor afirma ainda que, de um lado, é interessante que as subculturas sejam vistas como desviadas, porque isto ajuda a esclarecer a ordem moral a que se está resistindo e contestando. Entretanto, o autor concorda que seria também útil se designar um outro termo que fosse livre de tais conotações. O terceiro alerta que ele coloca é que do desenvolvimento empírico do conceito subcultura de consumo infere-se que o consumo compartilhado de um produto necessariamente expressa uma identidade também compartilhada. Esta inferência deve ser evitada para que possa ser revelada uma potencial heterogeneidade dentro do grupo. No estudo que este autor conduziu com participantes do “fandom” que envolve o filme de ficção científica Guerra nas Estrelas, foi constatada a presença de indivíduos com motivações, significados e ações muito diferentes no grupo, considerado por ele uma subcultura. Assim, esta 79 subcultura de consumo heterogênea, era formada por diversos subgrupos homogêneos, que se organizavam conforme a suas “afinidades eletivas”. 80 3. MÉTODO 3.1 Questão da Pesquisa Conforme visto na revisão da literatura, o consumo da celebridade pelo consumidor devoto contém um conjunto de características que num primeiro momento parecem acentuar o caráter individualista deste tipo de consumo, a saber: a) a relação assimétrica e para-social que cria uma espécie de mundo paralelo e imaginário onde apenas o/um fã atua; b) o processo de singularização no qual o fã utiliza diversos artifícios para destacar-se da massa de admiradores e conseguir finalmente uma reciprocidade que validará seu relacionamento com o ídolo; c) o sentimento de posse do indivíduo em relação ao seu ídolo; e d) o evento sacralizador, que é internalizado de maneira bastante particular e individual. Ao mesmo tempo em que isto acontece, as coletividades de consumo, as comunidades formadas em torno de uma marca de celebridade representam um fenômeno muito comum na indústria do entretenimento e um integrante já reconhecido nos mercados onde a esta indústria atua. A questão que aqui se coloca é : $% & ' # ( # ' )* # # # # 81 Entendendo o fã-clube como uma comunidade de marca que representa o consumo coletivo, busca-se compreender de que forma ele pode afetar a relação entre um consumidor individual caracteristicamente já comprometido afetivamente com a marca, o fã devoto. A hipótese de trabalho é que o fã-clube é o locus privilegiado para a ocorrência de procedimentos de sustentação da sacralização, que são fundamentais à manutenção e ao fortalecimento do comprometimento afetivo existente na relação consumidor devoto-celebridade. Acredita-se também que, mais particularmente, o fã-clube é importante para o fã devoto, porque: 1. os relacionamentos reais, físicos ou virtuais, que são estabelecidos entre os fãs participantes de um fã-clube proporcionam um senso de comunidade que ameniza o desconforto que o relacionamento para-social com a celebridade pode causar em certos momentos aos fãs, uma vez que assimetria é reconhecida por eles; 2. o fã consegue – ou tem mais chances – de conseguir atingir seus objetivos individuais através do pertencimento ao grupo. Primeiro, como uma organização o fã ganha massa crítica tornando mais fácil e “oficial” conseguir o reconhecimento do ídolo, e, assim finalmente, a singularização. Segundo, porque o fã-clube é o lugar onde o fã pode expressar toda a sua devoção e o fato de pertencer, ser “fã de carteirinha”, legitima e corrobora diante dos outros o direito de “possuir” o ídolo. 82 3.2 Estratégia de Pesquisa Embora o “fandom” seja um campo delimitado e de existência reconhecida, faltam pesquisas e modelos específicos do agrupamento dos fãs em organizações com fronteiras delimitadas. A função desta pesquisa, então, é ajudar a construir o conhecimento a respeito da dinâmica de um fã-clube para fomentar o levantamento de novos problemas e suas respectivas hipóteses a serem aprofundadas em estudos posteriores. Baseando-se nas indicações de Yin (1994) para a escolha da estratégia de pesquisa - embora ele deixe claro de que elas não são mutuamente exclusivas e, mais, podem se sobrepor uma às outras - a mais indicada para o atendimento do objetivo deste trabalho foi o estudo de caso (FIGURA 8). De acordo com o autor, em geral, os estudos de caso são conduzidos quando as questões que levam à pesquisa são do tipo “Como?” ou “Por quê?”; quando o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos e ainda quando o foco é um fenômeno contemporâneo da “vida real”. Com o objetivo de entender a totalidade de uma situação, a adequação da estratégia de estudo de caso se dá porque ela permite que se recorra a uma variedade muito grande de evidências (além das mais comumente utilizadas entrevistas, pode-se aplicar também a observação, documentos, artefatos, entre outros) e reunir informações de um modo mais integrado do que outras estratégias permitiriam. 83 forma da questão da pesquisa exige controle sobre eventos comportamentais ? focaliza acontecimentos contemporâneos ? experimento como, por que sim sim levantamento quem, o que, onde, quantos, quanto não sim análise de arquivos quem, o que, onde, quantos, quanto não sim/não pesquisa histórica como, por que não não estudo de caso como, por que não sim estratégia Figura 8 - Estratégias de Pesquisa fonte: YIN, Robert (1994), p.3 O caso é um sistema integrado e delimitado, onde partes individualmente atuantes formam um todo. É uma rede de relacionamentos com toda sua complexidade (STAKE, 2000). A utilização de uma celebridade da música e seus fã-clubes como um caso permite que se possa entender toda a rede de relacionamentos que envolve um típico produto cultural (FIGURA 9). IMPRENSA FÃ CLUBE GRAVADORA / CANAL PESSOA CELEBRIDADE (persona) FÃ STAFF TÉCNICO E OPERACIONAL EMPRESARIO Figura 9 - Rede de Relacionamentos do caso fã clube de uma celebridade da música O tipo de estudo de caso definido é o chamado por Stake (2000) de estudo de caso instrumental, já que o objetivo desta exploração é chamar a atenção e promover insights a respeito do fenômeno fã-clube e todo o seu potencial produtivo cultural e 84 econômico. O caso em si tem aqui uma função muito importante, ainda que secundária, porque mesmo com o olhar profundo que é feito em relação ao caso, com o “esmiuçamento” realizado em relação ao seu contexto e ao detalhamento de suas atividades rotineiras, o interesse e a visão externa foi sempre mantido ao longo de toda a investigação. 3.3 Seleção do Caso Para este estudo foi definido como caso a celebridade Daniel e seus fã-clubes. Entre os diversos motivos, destacam-se: 1. perfil do fã do Daniel: embora o cantor atraia um grande número de crianças e adolescentes, percebe-se uma grande concentração de mulheres adultas entre seus consumidores. A escolha deste público-alvo mais adulto é importante para a pesquisa, para se tentar isolar desta forma a característica de colecionadores do público infantil bem como a característica de “inconseqüência” e “irreverência” do público pré-adolescente e adolescente. Partiu-se do pressuposto que as mulheres adultas possuem uma maior liberdade – inclusive financeira – para dar vazão a sua devoção; 2. fenômeno comercial: como conseqüência da grande capacidade de atração de consumidores que o Daniel têm, os números que o cantor movimenta são bastante significativos. a. Com uma equipe de 55 pessoas, entre técnicos, banda, bailarinos e staff, o cachê para shows do cantor custa em torno de R$ 90,00020. b. Faz em media 15 shows por mês21. c. 50 produtos licenciados com a marca do cantor22. 20 21 valor informado por presidente de fã clube, porém não confirmado pela equipe do cantor. Dado fornecido pelo staff em 26/10/2004 (E-M03) 85 d. Possui um número aproximado de 13 milhões de discos vendidos23 3. relacionamento com fãs: parece haver uma unanimidade entre os fãs em relação à atenção que o cantor sempre dedicou a eles. Em diversas oportunidades o cantor expressou literalmente a forma especial com que trata seus seguidores. A importância que os fãs têm no consumo da marca é reconhecida e refletida na estrutura especialmente desenvolvida para o seu atendimento e manutenção24. a. fã clube-oficial Turma do Dani, que conta com 04 pessoas em sua estrutura e faz uma média de 108 atendimentos/dia 25; b. Estimam-se existir 300 fã-clubes não oficiais26; c. mailing list: o cantor tem aproximadamente 387 mil pessoas 27 cadastradas ; d. Publicação de uma revista mensal, distribuída em bancas, com uma tiragem de 30 mil exemplares a um preço de venda de R$ 3,0028; e. site oficial do cantor que divulga notícias a respeito da sua carreira, agenda de shows, discografia, shopping, cadastro para a Turma do Dani e contato para shows (www.daniel.art.br); f. Estância Nathálya: espécie de clube em Botucatu para atendimento aos fãs do fã-clube oficial e realização das versões do Encontro Nacional de Fãs, que na sua terceira edição em 2002 chegou a reunir 1,700 fãs. A opção pelo estudo de caso único se justifica pela força mobilizadora e econômica da celebridade Daniel e pelos indícios de que seus produtores vêm desenvolvendo a 22 o diretor de comunicação, Silvio Finato, forneceu esta informação, mas afirmou não ter certeza de ser este o número correto. As informações solicitadas a respeito do faturamento dos produtos licenciados e do cachê publicitário e de shows do cantor foram negadas. 23 ídem 24 dados referentes a 2004 25 em junho de 2004 foram 2,408 contatos: 1,383 telefonemas, 384 cartas e 641 e-mails. Dados de Silvio Finato 26 dado fornecido em 26/10/2004 por Silvio Finato. 27 dado fornecido em 12/07/2004 28 idem 86 relação com os fãs de uma forma antes sem precedentes no mercado cultural brasileiro. O trabalho que é realizado junto aos fãs torna o Daniel e seus fãs devotos um caso exemplar. 3.4 Desenho da Pesquisa Uma vez selecionado o caso, a pergunta da investigação foi aplicada e reescrita para: $! + # ' # ! ' , ' # ( , ' )* A primeira questão que foi colocada para a estruturação da investigação foi em relação à unidade de análise. Existe uma distinção entre um fã-clube oficial e não oficial. Para fundar um fã-clube, um fã não precisa realizar nenhum procedimento legal, muito embora seja recomendada (por Blanche Trinajstick, “O Guia do Fã Clube”, ANEXO A) a permissão da celebridade a ser honrada, para a concessão de reprodução de imagens oficiais, e quem sabe até obter um apoio através de doação de materiais (fotos, pôsteres) a serem distribuídos pelo fã-clube. Estes são os fãclubes não oficias, espontâneos, que nascem da iniciativa dos próprios fãs. Já o fãclube oficial é iniciativa do produtor cultural, que pode ou não contar com ajuda de fãs e/ou terceiros para sua estruturação e gerenciamento. Mas estes contam com total apoio, anuência, e subordinação à celebridade e portanto, costumam possuir uma abrangência muito maior. Então, a primeira etapa (QUADRO 2) desta pesquisa empírica buscou a compreensão da estrutura, função e escopo do fã-clube oficial do Daniel e tinha como principal objetivo a apropriação do linguajar dos envolvidos com a marca e a delimitação das demais etapas da pesquisa. De início, acreditava-se que a Turma do 87 Dani - nome dado ao fã-clube oficial do cantor - seria a unidade de análise do caso, porém após esta primeira etapa notou-se que os fã-clubes espontâneos, pela sua própria natureza, apresentariam uma riqueza maior de dados para a compreensão da importância do fã-clube no consumo do Daniel. A estrutura da Turma do Dani tem como foco o gerenciamento do consumidor com a marca, e não necessariamente do consumidor-consumidor através da marca. Assim, durante entrevista com Silvio Finato, o diretor de comunicação da Turma do Dani e principal responsável pela sua administração, foi solicitado que ele apontasse alguns fã-clubes espontâneos que eram considerados parceiros e consistentes na relação com a celebridade. Na segunda etapa da pesquisa (QUADRO 2), dos quatro fã-clubes indicados foram utilizados três como unidades de análise. O fã-clube Portal do Daniel foi descartado pela dificuldade em se contatar as dirigentes já que sendo exclusivamente virtual, elas não se concentravam geograficamente. Originalmente a pesquisa havia sido desenhada para contemplar uma terceira etapa a ser realizada com o empresário Hamilton Policastro e com o cantor José Daniel Camillo com o objetivo de captar as suas percepções da importância das unidades de análise acima no consumo da marca e também como uma forma de validação e controle. Mas o cantor estava com indisponibilidade de tempo devido à sua agenda de shows e o empresário não retornou às tentativas de contato realizadas. 88 ETAPA 1 Objetivos ETAPA 2 - compreensão da estrutura, - exploração da importância do função e escopo do fã-clube fã-clube para o consumidor oficial devoto - apropriação do linguajar dos envolvidos com a marca - delimitação das demais etapas da pesquisa Instrumentos - análise do conteúdo de sites - entrevistas semi-estruturadas de Coleta de fã-clubes com presidentes de fã-clubes e - reportagens publicadas pessoas próximas à (revista Turma do Dani® e organização meios “abertos”) - análise de cartas de fãs - entrevista semi-estruturada endereçadas aos fã-clubes com diretor de comunicação - depoimentos de fãs da Turma do Dani, Silvio publicados em meios Finato eletrônicos (sites) e impressos (revistas) - documentos e artefatos produzidos pelos fã-clubes - correspondência e telefonemas trocados com fãs. - observação direta (reunião de fã-clube) Período da - novembro 2003 a jullho 2004 Coleta - entrevista em 12/06/2004 Agosto 2004 com Silvio Finato Quadro 2 – Etapas da Pesquisa 89 3.5 Instrumentos de Coleta de Dados 3.5.1 Entrevistas As entrevistas representaram neste estudo empírico o principal instrumento na coleta de dados, fato este comum e bem característico dos estudos de caso. Através de seis entrevistas realizadas foram contatados sete consumidores, representantes dos três diferentes fã-clubes, além do responsável pelo fã-clube oficial do cantor (QUADRO 3). As entrevistas foram conduzidas individualmente com exceção do presidente do fã-clube Dentro do Coração, que foi entrevistado na presença da vice-presidente e de sua prima, uma fã bastante engajada neste fãclube. No grupo então, o relato das experiências individuais foi prejudicado, em favorecimento, porém, da melhor compreensão e observação da dinâmica de relacionamento destes três integrantes. Fã clube Nome Sexo Turma do Dani® Silvio Finato M Ida de 40 Função Diretor Cidade de Botucatu Comunicação A Jiripoca vai Piar Rita de Cássia Batista F 39 Presidente São Paulo Rosemeire Parra F 36 Fã ativa, porém Guarulhos sem cargo oficial Dentro do Coração Marcos Brasil M 50 Presidente Indaiatuba Kátia Cristina Milanio F 29 Vice-presidente Indaiatuba Lucimara Milani F 36 Fã ativa, porém Indaiatuba sem cargo oficial Estação Somente Adriana Gonçalves F 30 Presidente Você Rio de Janeiro Aisha Figueiredo F 23 Diretora Rio Administrativa Janeiro Quadro 3 - Perfil dos Entrevistados de 90 Vale lembrar que estes presidentes de fã-clubes e seus principais colaboradores, possuidores ou não de funções oficiais, dedicam uma grande quantidade de recursos, como tempo, energia e dinheiro, na organização, condução e divulgação dos respectivos fã-clubes, sem contudo receber remuneração econômica. Parte-se, então, do pressuposto que o comportamento devoto se manifesta de maneira mais explícita e intensa nestes fãs. Com o objetivo de estimular o entrevistado a relatar a série de experiências do contexto do consumo era lançada uma “questão gerativa narrativa” (FLICK, 2002, p. 110) do tipo “quem é você e como chegou até aqui?”. Naturalmente isto levou os entrevistados a seguirem uma ordem cronológica de relato. Pela própria natureza informal das entrevistas semi-estruturadas, técnica utilizada que permite que novas situações e dados se moldem e mostrem no decorrer da coleta das informações, foram criados roteiros de entrevista para as duas etapas (que podem ser consultados no Protocolo de Estudo de Caso – ANEXO B) para garantir que os pontos principais do problema de pesquisa fossem abordados. Mais especificamente, o roteiro da segunda etapa foi desenvolvido a partir dos dois modelos centrais discutidos na revisão bibliográfica: o consumo devoto (PIMENTEL; REYNOLDS, 2004) e a comunidade de marca (MUNIZ; O’GUINN, 2001). Com a permissão dos entrevistados e visando evitar a perda de informações e detalhes importantes, bem como economizar tempo e limitar as anotações ao estritamente necessário, as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Acumulou-se um total aproximado de 14 horas de entrevistas e quase 100 mil palavras transcritas. A entrevista realizada com Aisha foi uma exceção. Com duração de 1 hora e meia ela foi concedida no caminho da casa dela, no Leblon (Rio de Janeiro/RJ) até o local onde é realizado o encontro mensal dos fãs, em Irajá (Rio de Janeiro/RJ). Anotações foram feitas e, quando redigidas naquele mesmo dia, foram enviadas por e-mail para a entrevistada, que respondeu validando o conteúdo. 91 É comum que a utilização de entrevistas acabe se restringindo a algumas limitações desta técnica (GIL 1989, apud PESSANHA FILHO, 1999). Mas pela própria natureza desta pesquisa estas limitações acabaram sendo minimizadas e não representaram uma ameaça à qualidade dos dados coletados. A saber: a) falta de motivação de alguns entrevistados para responder às perguntas em nenhum momento isto foi verificado já que a própria indicação destes fãclubes pelo Silvio Finato, representante da equipe do cantor, significou para os entrevistados um forte gesto de reconhecimento. Além disto, faz parte do trabalho e do interesse deles a divulgação do fã-clube e de suas atividades; b) fornecimento de respostas falsas, determinadas por razões conscientes ou inconscientes como será reportado no item de procedimentos o intuito de falar com mais de uma pessoa pertencente a um mesmo fã-clube serviu como um balizador das informações dadas. Mas pela própria natureza aberta e das informações serem passadas em forma de narrativa, se elas se tornavam incoerentes, na mesma hora eram elucidadas; c) inabilidade ou incapacidade do entrevistado em responder adequadamente os entrevistados eram os presidentes dos fã-clubes, ou pelo menos, pessoas muito próximas e atuantes na concepção e/ou manutenção destes mesmo fãclubes. Decorrente desta posição, os entrevistados apresentavam um perfil comum de ótima articulação, liderança e exposição; d) influência exercida do entrevistador sobre o entrevistado talvez de todos os itens o mais difícil em administrar. Era necessário explicar e reforçar o caráter estritamente acadêmico desta pesquisa e assim desvincular a pesquisadora do ídolo e de seu staff. 92 3.5.2 Observação A técnica de observação direta foi utilizada de modo informal, em dois momentos: durante as entrevistas e numa visita de campo realizada no Rio de Janeiro (RJ) num encontro mensal das fãs do Fã-Clube Estação Somente Você Daniel. Durante as entrevistas muito se utilizou a observação de fotografias, a “observação de segunda mão”. Como parte da característica colecionadora dos fãs, eles possuem grandes quantidades de fotografias. Na grande maioria das vezes, cada evento relatado era ilustrado através delas, que serviam ao mesmo tempo para comprovar e confrontar algumas situações como para estimular novos relatos. Junto com os fãs foram vistas algo em torno de 250 fotografias, pré-selecionadas pelos mesmos. No dia 22 de agosto de 2004, 50 integrantes do fã-clube Estação Somente Você Daniel se encontraram no bairro de Irajá (Rio de Janeiro/RJ). Mais do que uma versão das costumeiras reuniões mensais, neste dia, uma equipe iria gravar o encontro, onde seria realizada a uma homenagem para a comemoração de aniversário do Daniel, e que eles tentariam negociar espaço no programa Domingão do Faustão, da Rede Globo. Embora não tenha sido veiculado, a gravação ocorreu logo após a reunião da qual tive a oportunidade de participar como observadora. Totalmente cientes do objetivo de minha presença, tive a oportunidade de conhecer as estórias de algumas integrantes e, mais importante, observar a dinâmica das relações entre os participantes. Os dados coletados neste Encontro geraram notas e fotografias. 93 3.5.3 Documentação As informações documentais podem assumir diversas formas. Nesta pesquisa, elas foram coletadas durante as entrevistas que eram realizadas preferencialmente na casa dos entrevistados, onde todo o seu material se encontrava disponível. Daí estes documentos terem desempenhado sua função principal de “corroborar e valorizar as evidências oriundas de outras fontes” (YIN, 1994, p.109) Estes documentos foram coletados de seis formas: 1) mensagens de fãs endereçadas para os fã-clubes e/ou para os presidentes destes fã-clubes. Estas mensagens foram coletadas ou em forma de cartas, de mensagens assinadas nos livros de visitas dos sites dos fã-clubes, ou ainda em mensagens publicadas em sessões especiais destes sites (ex.: Cantinho do Fã do site www.portaldodaniel.com) e de outras publicações impressas; 2) recortes de jornais e outros artigos e entrevistas publicados na mídia eletrônica (TV e Internet) e impressa (jornais e revistas); 3) Revista da Turma do Dani: 38 exemplares (da edição número zero, de julho de 2000 a edição ano IV número 37 – julho 2004); 4) Jornais e publicações internas dos fã-clubes; 5) Conteúdos de sites dedicados ao cantor; 6) E-mails trocados com os entrevistados. 94 3.5.4 Artefatos Físicos A criatividade e a “produção cultural das sombras” (FISKE, 1992) característicos dos fãs também é uma fonte rica de informações. Na constante busca pela singularização, como indivíduos ou como fã-clubes, os fãs criam vários artefatos físicos, principalmente na forma de presentes e agrados para o ídolo. Em cartas escritas em rolos de papel higiênico, em bolas de futebol onde os fãs coletaram autógrafos de todos os jogadores do time de futebol preferido pelo ídolo e nos próprios objetos que eles fazem para si mesmos para organizar suas coleções (pastas, altares, cadernos) estão impregnados os significados da devoção e da importância do ídolo na vida cotidiana dos fãs. Parte destes artefatos foi relatada nas entrevistas e mostrada em fotografias que os documentavam; parte deles eu retive através de fotografias tiradas e outros me foram doados para compor o banco de dados desta pesquisa. 3.6 Procedimentos de Validação O objetivo desta seção é mostrar os cuidados que foram tomados para a validação de todos os dados coletados e garantir assim a qualidade das análises e das conclusões que serão apresentadas. 3.6.1 Triangulação “Triangulação é o processo de utilização de percepções múltiplas com o objetivo de esclarecer significados e verificar a capacidade de repetição de uma observação ou interpretação” (STAKE, 2000) 95 Considerando que observações e interpretações não se repetem perfeitamente, a triangulação também pode ser utilizada para esclarecer significados ao identificar diferentes formas pelas quais um fenômeno pode ser visto. Neste sentido, três procedimentos foram adotados: 1) a adoção de diferentes unidades de análises, representados pelos três fãclubes diferentes; 2) entrevista com no mínimo duas pessoas pertencentes a um mesmo fã-clube, sempre na figura do presidente e de alguém próximo à sua administração; 3) utilização de diferentes fontes de evidências. 3.6.2 Criação de um Banco de Dados Todas as evidências coletadas foram organizadas, catalogadas e arquivadas em um banco de dados que poderá ser acessado a qualquer momento. Ao longo da análise cada vez que é feita uma referência a uma determinada evidência há um código que identifica o material utilizado e qual sua localização. A codificação dos dados segue a seguinte nomenclatura (conforme QUADRO 4), sempre acompanhado de um número que quantifica: No caso das entrevistas, este procedimento tem o duplo sentido de localizar a evidência e preservar os entrevistados. 96 EVIDÊNCIA NOMENCLATURA Entrevista ENT Carta CAR Materiais produzidos pelos fã clubes MAT E-mails E-M Conteúdo de site SIT Fotografia FOT Artigos ART Revista da Turma do Dani RTD Quadro 4 - Nomenclaturas Atribuídas por Tipo de Evidências 3.6.3 Ética Os seguintes cuidados foram tomados: 1) o envolvimento do cantor e de sua estrutura, através de seu empresário e de seu diretor de comunicação nos objetivos desta pesquisa e na presença da pesquisadora no campo, coletando dados junto aos fã-clubes por eles indicados; 2) antes de cada uma das entrevistas começar era novamente esclarecido o objetivo da pesquisa bem como o contexto em que os fã-clubes haviam sido indicados; 3) depois de transcritas e editadas as entrevistas foram enviadas para os entrevistados que retornaram expressando a autorização da utilização de seus testemunhos; 4) todos os materiais obtidos no momento das entrevistas foram dados e/ou copiados com total anuência dos entrevistados que estavam cientes de que eles seriam utilizados como dados. 97 4. ANÁLISE DE DADOS A análise dos dados será exposta em três diferentes seções. A primeira delas tem como objetivo apresentar a celebridade Daniel através de sua biografia e da forma como a sua marca é trabalhada. Esta análise introdutória proporciona o contexto para a compreensão da relação que se estabelece entre o cantor e seus fãs devotos, abordado na segunda seção. Utilizando o modelo teórico desenvolvido por Pimentel e Reynolds (2002) esta seção tem como objetivo analisar a relação individual e particular do fã com a marca, caracterizando o seu comportamento como devoto, portanto comprometido afetivamente. Finalmente na terceira seção, estudase o fã-clube, através das relações estabelecidas entre os fãs e destes, enquanto um grupo organizado, com a marca. O modelo teórico que norteou a análise nesta terceira seção foi o de comunidade de marca, apresentado por Muniz e O´Guinn (2001). 4.1 A Celebridade: Daniel 4.1.1 Biografia José Daniel Camillo nasceu em Brotas em 09 de setembro de 1968. Em 2004, com 36 anos, conhecido como cantor Daniel, é uma celebridade reconhecida nacionalmente (QUADRO 5). Por três anos foi eleito, através de voto popular promovido pela Rede Globo, como o Melhor Cantor do Brasil. Em 2003 ganhou também o prêmio “Arena de Ouro”, uma espécie de “Oscar dos rodeios” (RTD35) concedido pela Confederação Nacional de Rodeio e, também, sua gravação da música “Evidências” ganhou o prêmio de “Música Mais Executada”, concedido pela Crowley Best, que audita mensalmente as programações das emissoras de rádio. 98 Em 1978, começou a ter aulas de violão e formou uma dupla, chamada Teodoro & Daniel que se apresentava na rádio brotense, no bar da família. Teodoro, embora a maioria das pessoas não soubessem, na verdade era seu pai, José Sebastião Camillo. Em saraus nas praças da cidade e em festivais promovidos, seu principal e constante rival era o futuro parceiro José Henrique, pedreiro, que, como dupla Néri & Nerinho, cantava em companhia de seu irmão Francisco. Com a desistência de Francisco após seu casamento, a parceria entre Daniel e Jose Henrique foi firmada e nasceu, em 1980, a dupla José Néri e Daniel, assim batizada pelo pai de Daniel. A partir daí, os dois começaram a se apresentar em festas, circos e a conseguir boas colocações nos festivais em que participavam. O primeiro disco foi gravado em 1985 e patrocinado pelo pai de Daniel, que na época já era dono de uma transportadora. Pela biografia do cantor e pelos depoimentos do cantor pode-se perceber o papel de extrema relevância desempenhado pelo pai José Camillo na carreira de seu filho. Em entrevista (ART05) Daniel conta que, de origem pobre, pai e mãe trabalhavam na roça. Suas vidas tomaram um novo rumo a partir de uma proposta de sociedade feita pelo dono da fazenda onde trabalhavam. Ao José Camillo foi dado um caminhão e, com os fretes das viagens para o transporte de materiais, ele pagava sua parte. O negócio cresceu e se transformou na sua própria transportadora, a Translíquido Brotense. Acreditando numa possível carreira de cantor para o filho, foi seu pai quem o incentivou em sua iniciação à música, comprando-lhe seu primeiro violão e pagandolhe aulas para o seu aprendizado. O lançamento do primeiro disco aconteceu através da gravadora Continental, que mais tarde foi comprada pela multinacional Warner Music. Neste momento, o nome da dupla foi alterado para João Paulo e Daniel. A sugestão inicial de seu produtor Paraíso (o cantor e compositor José Plínio Trasferetti) era João Paulo e Gabriel, “o nome de um papa e de um anjo” (ART05). Apesar dos dois artistas não quererem mudar seus nomes, apenas Daniel conseguiu manter o seu. A principal dificuldade da dupla passou a ser a realização da divulgação deste primeiro disco, atividade 99 esta crucial para o seu estabelecimento no mercado. Neste momento, então, entra para a equipe um novo integrante: Hamilton Regis Policastro. Até hoje empresário de Daniel, Hamilton é dono da HRP Produções Artísticas, empresa sediada em Botucatu, que representa o cantor e uma nova dupla Guilherme & Santiago, além de já ter representado uma dupla com relativo sucesso no segmento de música sertaneja, Rick & Renner. A entrada de fato na mídia aconteceu com o lançamento do terceiro disco, em 1993, com a regravação de uma música conhecida como “Desejo de Amar”. Esta música foi para todas as paradas de sucesso das principais emissoras de rádios. Isto despertou a atenção de programas específicos na mídia televisiva, o que acabou levando a dupla a uma visibilidade nacional. Foi em 1996 quando uma música do repertório de seu sétimo título recém lançado – “Estou Apaixonado” – entrou para a trilha sonora de uma telenovela da TV Globo, que a sagração na mídia se deu. A dupla alcançou o patamar de 500 mil cópias vendidas, uma grande exposição em programas de rádio e TV e requisição para shows. Em setembro de 1997, no auge da divulgação do oitavo disco da dupla, que confirmava o sucesso do anterior, com 1 milhão de cópias vendidas, discos de platina, platina duplo e ouro29 concedidos, João Paulo veio a falecer num acidente automobilístico a caminho de Brotas, após uma apresentação em São Paulo. Este fato e a maneira com a qual Daniel reagiu a esta fatalidade são fundamentais para a carreira solo futura do cantor e para a compreensão do comportamento que os fãs devotos passaram a ter em relação a ele. O luto e a dúvida na continuação de uma carreira sem o parceiro tornaram-se públicos, o que levou a uma comoção, especulação e curiosidade muito grandes por parte da audiência, e, obviamente 29 Concedidos pela ABPD, Associação Brasileira de Produtores de Discos, até 2004, o disco de ouro equivale a 100 mil cópias vendidas, platina a 250 mil, platina duplo a 500 mil, platina triplo a 750 mil, diamante a 1 milhão e diamante duplo a 2 milhões de cópias vendidas. A partir deste ano, como reflexo da recessão e da pirataria no mundo da música, os níveis de vendas necessários para a emissão dos certificados foram reduzidos em, respectivamente, 50%. (fonte: http://www.abpd.org.br acesso em 22/10/2004 100 devidamente explorada pela mídia. Em maio de 1998, já oito meses passado o incidente, programas de TV mostraram uma foto que registraria uma suposta aparição de João Paulo ao lado de Daniel, enquanto se apresentava num show (ART05). Em 1998 é oficializada sua carreira solo, com o lançamento do CD Daniel, que teve grande aceitação do público. Em 2000, participou de um filme com a apresentadora Xuxa, “Requebra”, onde seus personagens faziam um par romântico. Três anos depois voltou às telas com a participação em “Didi - o Cupido Trapalhão”. Tanto Xuxa como Renato Aragão são celebridades sólidas no mercado e sua associação com ambos, atuando no papel de galã nos dois filmes, confirmam a força e estabelecimento de Daniel como celebridade reconhecida. Em 2001, a carreira internacional foi iniciada, e atualmente contando o lançamento de um CD gravado em espanhol o cantor totaliza aproximadamente 13 milhões de cópias vendidas. Ano Idade do Evento Cantor 1968 0 nascimento em Brotas (SP) 1978 10 inicia-se na música, dupla com pai: Teodoro e Daniel 1980 12 dupla José Néri e Daniel 1985 17 gravação do primeiro CD como João Paulo e Daniel 1993 25 música “Desejo de Amar” traz visibilidade nacional 1996 28 música “Estou Apaixonado”, trilha de telenovela, traz sagração na midia 1997 29 morte de João Paulo 1998 30 início da carreira solo 2000 31 grava filme com Xuxa 2001 32 mercado estrangeiro, com cd em espanhol 2003 34 grava filme com Renato Aragão Quadro 5 – Resumo da Biografia da Celebridade Daniel 101 4.1.2 O Produto e a Marca Para apresentar as considerações a respeito da marca Daniel, faz-se importante antes aprofundar um pouco a discussão acerca das particularidades do produto celebridade. Produto é um termo genérico que designa o que satisfaz a necessidade e desejo do cliente, seja um bem tangível como alimento, roupa e carro; um bem intangível (serviço) ou ainda outro meio de satisfação como pessoas, idéias e emoções, entre outros (LIMEIRA, 2003, p. 4). Na prática de marketing já existem algumas “subáreas” a respeito da administração mercadológica para produtos-pessoa, como o marketing político e o marketing pessoal. Em comum com o que Rein, Kotler Stoller (1997) chamaram de marketing da alta visibilidade, o marketing de celebridades, o produto que se planeja, produz, implementa e controla é representado por uma pessoa. Segundo estes mesmo autores, produzir uma celebridade é transformar uma pessoa privada em figura pública. E é na característica pessoal deste tipo de produto que reside uma das grandes dificuldades em se trabalhar com celebridade: uma vez representado pela pessoa que a incorpora, existe uma contaminação muito grande entre ambos, e a partir daí, o controle deste tipo de produto é muito mais complicado de se realizar. A história da celebridade Daniel é construída a partir da história de José Daniel Camillo. De forma recíproca, o que acontece com a celebridade interfere na vida da pessoa. Embora o limite entre pessoa e persona seja difuso, tanto celebridade como fã o reconhecem e ressentem-se dele. Foram encontradas, em várias cartas e através das entrevistas, diversas manifestações dos fãs para conhecer o “verdadeiro Daniel”, “o José Daniel Camillo”, o “Daniel antes da fama”. O assédio que acaba se estendendo à família do cantor representa uma tentativa de aproximação com o filho, irmão e sobrinho que Daniel é, e não com a celebridade que ele representa. 102 Por parte do cantor, em alguns depoimentos ele mostra a consciência e a dificuldade em lidar com esta distinção. Questionado se sabia diferenciar a mulher apaixonada por ele daquela impressionada por sua fama, respondeu: “Vai ser difícil encontrar uma pessoa com quem realmente me sinta seguro de que ela gosta mesmo de mim“ (ART05). Porém, quanto mais o fã tenta mesclar persona com pessoa, eliminando a fronteira existente entre ambos, mais o produto deve ser protegido da contaminação. As vulnerabilidades da pessoa não podem interferir de forma não planejada na administração da celebridade, porque poderiam assim representar uma ameaça à identidade cuidadosamente construída. Exemplos desta proteção podem ser observados nos seguintes depoimentos: “Existem momentos em que você está com o pavio curto. Mas nessas horas tento evitar ter contato com fã. Porque ela não quer saber se você está bem, se você não está. Você tem que estar sempre legal com elas, sorridente, e de bem com a vida” (Daniel, ART05) “Tinha uma fã em Itapecerica da Serra que eu percebi que queria ser íntima [do Daniel]. [Eu falei] ‘Pára de tentar querer ser íntima que você vai perder o encanto do ídolo. Quando o cara for ser amigo vai perder todo o encanto’” (Silvio Finato, diretor de comunicação da Turma do Dani) Assim como acontece nos demais tipos de produtos, o consumo da celebridade também se baseia no princípio da troca, conceito fundamental de marketing. A celebridade proporciona estórias, entretenimento, diversão, experiências e emoções, transcendendo a rotina da vida cotidiana do consumidor. Em troca o consumidor proporciona visibilidade, fama, dinheiro e poder aos “detentores” da celebridade. Para que a celebridade possa entregar os benefícios esperados e previstos no chamado produto núcleo são tomadas decisões acerca dos atributos do produto, da 103 embalagem e da marca. Todas estas decisões devem ser tomadas de forma conjunta para que o conceito e posicionamento estratégico da celebridade tenham respaldo e consistência. Após a morte do seu parceiro, e com o processo de sacralização do Daniel que este evento desencadeou (que será abordado mais especificamente nas próximas seções), houve um reposicionamento da marca, explícito no depoimento abaixo transcrito do seu empresário. “Se eu deixasse o Daniel cantar apenas sertanejo, ele estaria fazendo o mesmo que Sergio Reis. Se fosse só romântico, seria mais um José Augusto” (ART13, grifos meus) Assim, de uma dupla sertaneja, formada por um negro e um branco, que representava a amizade, tolerância e o não preconceito, a marca Daniel passou a representar a humildade, ingenuidade, família e raízes oriundas do seu veio sertanejo, com a sedução, o amor e esperança da sua incorporação com o romântico. Para as celebridades, as decisões acerca de atributos e embalagem podem ser comparadas ao que Rein, Kotler e Stoller (1997) chamaram de aparência (rosto e cabelo, vestimenta), voz (tom, sotaque, dicção), movimento (gesticulação, andar); conduta e material. A decisão de marca equivale ao nome da celebridade. O sotaque típico do interior paulista, do “caipira”, e a maneira de falar informal e despojada do cantor reforçam seu posicionamento sertanejo, “humanizam” a celebridade, trazendo-a mais próxima das pessoas que o consomem. Por outro lado, através do histórico das fotos de divulgação do cantor, ao longo de sua carreira, pode-se notar como o seu reposicionamento, com a incorporação do elemento romântico, se explicitou notadamente na aparência. O figurino mais “country” utilizado na época da dupla com João Paulo onde predominavam jeans, 104 botas, e couro cede espaço a uma versão mais cosmopolita e eclética, com ternos de marcas famosas, calça social e camisa. Através da inclusão de momentos de dança em seus shows, busca-se investir também numa movimentação mais sensual e provocativa, agregando também uma porção sedutora ao romântico. O material, definido como “o conteúdo que o artista leva até o público” (REIN; KOTLER; STOLLER, 1987, p.180), do repertório do Daniel é notadamente composto por canções românticas. Em projetos especiais e amplamente divulgados, como os discos Meu Reino Encantado 1 e 2 (respectivamente 2000 e 2002), que reúne músicas de moda de viola e conta com a participação dos grandes nomes da chamada “verdadeira música raiz sertaneja”, a celebridade resgata sua origem sertaneja e reforça as associações inerentes a ela. O nome de uma celebridade é a marca utilizada para identificá-la. O ato de nomear, de marcar um produto (brand naming) é algo que cada vez mais tem sido discutido estrategicamente. Um bom nome pode ajudar um produto a se estabelecer no mercado, da mesma forma que um mau nome pode prejudicá-lo. Este cuidado com o nome parece ser algo inato à produção de celebridades. Issur Danielovitch Demsky, Bette Joan Perske, Melvin Kaminsky e Allen Konigsberg talvez não tivessem tido o mesmo sucesso como celebridades se não tivessem remarcados seus nomes para Kirk Douglas, Lauren Bacall, Mel Brooks e Woody Allen, respectivamente. A marca Daniel tem uma logomarca, representada pela assinatura do cantor (FIGURA 10). Figura 10 - Logomarca 105 A partir de depoimentos do cantor coletados na mídia impressa pode-se inferir qual o conjunto exclusivo e estratégico de associações – a identidade – que a marca Daniel pretende criar e/ou manter (QUADRO 6). A identidade da marca traduz de forma consistente o posicionamento sertanejo-romântico adotado. A vantagem de um produto celebridade é que a marca tem literalmente um rosto, um nome e uma personalidade o que torna a projeção dos seus valores mais direta e automática. O produto Daniel é tangibilizado em diversos objetos físicos, como cd´s, vídeos e dvd´s, camisetas, fotografias e bottons. Humildade e “Eu sigo as raízes da minha família, que além de ser Simplicidade humilde, sempre nos ensinou a sermos simples. É uma qualidade que aprendi e que ainda sigo. Não mudei e não vou mudar” (SIT04) Dedicação “Amo o que faço – não tiro férias há dezoito anos, mas não sei o que é estresse, se tive, não percebi” (SIT04) Bom caráter “Se me convidassem como ator, acho que toparia fazer um personagem com muito prazer, galã, não sei. Seria mais fácil fazer um cara bom caráter, parecido comigo” (SIT04) Família “O convívio familiar é meu esteio, onde sempre encontro as forças que preciso” (SIT04) Religiosidade “Sou católico, rezo, acredito em Deus” (ENT05). É devoto de Nossa Senhora. Romantismo “As fãs percebem que sou romântico, que me identifico com as coisas que digo em minhas músicas” (SIT04) Sedução “Se Deus fez alguma coisa melhor do que mulher, guardou só pra ele” (SIT04) Quadro 6 – Identidade da Marca Daniel Como conseqüência natural do brand equity (valor da marca) de Daniel, a marca foi estendida para diversas categorias, através de licenciamento de produtos. Em 2004, 106 conta com 50 produtos encontrados em diversas categorias, entre elas: instrumentos musicais (violão), brinquedos (cavalinho, bonecos “com cheirinho de Daniel” e palhacinhos), jóias, vestimentas e acessórios (botas e chapéus) e alimentos (goiabada e extrato de tomate), conforme ANEXO C. Todos os produtos que possuem a marca Daniel são desejados pelos seus fãs, para comporem suas coleções pessoais. Ciente do direito do cantor da posse de sua marca, existe uma ética entre eles, que se expressa no seu comportamento em relação à pirataria. “Fã que é fã não compra produto pirateado”, afirma uma entrevistada (ENT06). O site Portal do Daniel, mantido por um grupo de 7 fãs, tem uma seção específica divulgando a campanha contra a pirataria e convoca os fãs do Daniel, em nome de sua lealdade ao cantor, a não comprarem cd´s piratas (SIT06) 4.2 O Fã Devoto Foi mostrado na revisão bibliográfica que tanto o fã consumidor de uma celebridade, como o consumidor devoto, possuem comportamentos característicos em relação ao seu objeto de consumo. Esta seção tem o objetivo de mostrar como o fã devoto se comporta em relação à celebridade Daniel, informação esta importante para a compreensão do engajamento deste mesmo fã em um fã-clube. Embora a forma estereotipada do fã, amplamente divulgada e explorada pela mídia, pressuponha o comportamento devoto, nem todo fã pode assim ser considerado. Segundo o modelo de Pimentel e Reynolds (2004), o consumidor devoto é aquele que, a partir de um processo de sacralização do objeto desejado, desenvolve um comprometimento afetivo com a marca e se engaja em procedimentos de sustentação desta sacralização, que representam investimentos do consumidor na manutenção do comprometimento com a marca. 107 Os antecedentes que levam o fã a sacralizar o Daniel não foram foco neste trabalho. Não se buscou saber por que o Daniel, dentre as opções de celebridades, mas sim, uma vez detectado um já estabelecido comprometimento afetivo em relação ao Daniel, por que se engajar num fã-clube. Mesmo não tendo este foco, pode-se perceber através dos depoimentos, que de uma certa maneira, o antecedente mais comum que levou os fãs pesquisados ao consumo devoto do Daniel é o que Pimentel e Reynolds (2004) chamaram de “preenchimento de vazio”, reforçado pela importância da fama no contexto cultural atual. Esta seção inicia-se apresentando a imagem da marca Daniel, ou seja, as associações que o consumidor fazem em relação ao Daniel, mostrando uma coerência muito grande com a identidade da marca, anteriormente apresentada. Em seguida são mostradas as características reunidas num fã devoto: a sacralização e os procedimentos de sustentação (exemplificados ao longo do texto), do comportamento devoto e a relação assimétrica, o sentimento de posse, a singularização, tão característicos do relacionamento fã-celebridade. 4.2.1 A Imagem da Marca Daniel Para entender o processo de desenvolvimento do comportamento devoto dos fãs do Daniel faz-se necessário compreender a forma com que a marca é por eles percebida. As associações ao nome Daniel, em última instância, levam a sua audiência a desenvolver um forte sentimento de identificação com ele. Uma sessão específica da Revista da Turma do Dani solicita às suas fãs que descrevam por que Daniel é importante para elas. Invariavelmente as respostas fazem menção à simplicidade do cantor, à sua humildade e aos seus fortes laços familiares, antes mesmo da sua valorização enquanto intérprete. 108 A associação de simplicidade está fortemente relacionada com a forma pela qual o cantor trata as suas fãs, exemplificado pela declaração abaixo. “Ele é importante pela importância que dá às pessoas; pelo interesse que demonstra ao conversar conosco (...) ele conversa como se já nos conhecesse há muito tempo... eu já estive na fazenda dele e vi a atenção que dá aos funcionários, do mais simples ao mais importante” (CAR34). Além desta atenção característica, o cantor é exaltado pela forma igualitária com que trata a todos. Esta postura não preconceituosa é reforçada pela divulgação de sua própria história com o parceiro João Paulo, um negro a quem sempre se refere como irmão. Em suas biografias é divulgado o preconceito que a dupla dizia sentir. Como exemplo, são contadas histórias de shows contratados por telefone mas que eram cancelados quando a dupla se apresentava fisicamente ao contratante, além de “conselhos de carreira” que Daniel alega ter recebido para se separar do parceiro. “Admiro a sua fidelidade ao saudoso amigo João Paulo, podemos sentir que a amizade deles é eterna e que o João Paulo foi e sempre será o amigo e irmão camarada, e que através dessa amizade ele mostrou que o ato de descriminar (sic) é algo muito pequeno e que na verdade o que importa é a personalidade” (CAR54) Este ato de “abraçar e beijar a todos sem nenhum preconceito” (CAR80) se estende notadamente a deficientes e idosos. Padrinho da AACD e grande mobilizador da causa da APAE, Daniel prioriza o atendimento de pessoas deficientes físicas, visuais e mentais. Seu carinho por elas, visualmente comprovado em diversas fotografias publicadas, é autenticado e legitimado pela sua própria história pessoal. Seu irmão mais velho, Gilmar, sofre de paralisia cerebral desde os 3 meses. Em toda oportunidade, Daniel manifesta publicamente, seu especial carinho pelo irmão: “Meu irmão Gilmar é uma pessoa maravilhosa, uma luz que a gente tem dentro de casa”. (RTD10) 109 De maneira geral, o trabalho filantrópico de Daniel é altamente divulgado. O cantor e seu empresário idealizaram em 2000 um time de futebol, que formado por amigos de ambos, realizam jogos beneficentes em cidades espalhadas por todo o Brasil. Em casos de cobrança de ingressos, 10% da arrecadação é revertida à Fundação João Paulo e Daniel. O restante fica para as entidades da cidade promotora do evento. No caso de troca de ingressos por alimentos, toda a arrecadação fica na cidade. Estes jogos são muito disputados pelos fãs, já que como Daniel participa deles, se tornam verdadeiros espetáculos. Na maioria dos estádios por onde passou, o Daniel F.C. bateu recordes históricos de público. Este projeto alcançou proporções tão grandes que nos primeiros 70 jogos realizados, arrecadou um total de 1,6 milhões de reais e 1700 toneladas de alimentos. Este tipo de ação é bastante divulgado pelo site e revista oficiais do cantor, mas principalmente movimenta as cidades onde os jogos são realizados, gerando muita exposição na mídia regional. Isto acaba reforçando a identidade da marca não somente para seus fãs devotos, mas para a opinião pública em geral. Embora não quantificado, é de conhecimento dos fãs que o público idoso também forma uma boa parte da audiência do cantor (ilustrado na FIGURA 11). Marcos Brasil, presidente entrevistado do fã-clube Dentro do Coração (Indaiatuba/SP) conta que durante um tempo, este fã clube era conhecido como o “fã clube da terceira idade” em função do número proporcional de idosos-membros. “O Dani é importante para mim porque ele não faz distinção entre seus fãs. Tanto ele beija uma pessoa idosa como eu, uma criança ou um jovem. Ele dá atenção a todos” (CAR47) 110 Figura 11 – Fã-Clube formado por senhoras fonte: Revista Turma do Dani É interessante notar que grupos histórica e socialmente discriminados - mulheres, idosos, crianças, negros e deficientes – se sentem completamente valorizados pelo cantor o que ajuda a lhe imprimir, além da simplicidade, a associação de humildade. (...) porque Daniel é uma pessoa humilde e isto me cativa. É muito bom saber que alguém tão famoso como ele consegue ficar lado a lado com a gente. Ele entende como é importante para o fã chegar perto, tocar, falar, sorrir e chorar por ele.” (CAR54) Em diversas oportunidades, ele atribui ao seu público a razão do sucesso. Ao se colocar numa situação de passividade, os papéis são invertidos e isto dá ao fã a sensação de controle. “Sempre atendo ao público porque ele é o responsável pelo sucesso da gente” (SIT04). Mas a associação de humildade não seria tão forte se ficasse apenas no discurso. A presença da família do Daniel, principalmente de pai e mãe, pessoas de aparência e atitudes em público humildes, e a forma com que ele a valoriza publicamente acabam por lhe atribuir esta associação de “bom moço”, “moço de família” e a reforçar a de simplicidade e de humildade. 4.2.2 A Sacralização A imagem da marca apresentada até agora, essencialmente de humildade e simplicidade, reforçada pelo fato de o produto ser representado por uma pessoa, cria num primeiro momento entre seus consumidores um forte sentimento de 111 identificação. Porém, por mais que os fãs devotos o vejam como alguém parecido com eles, simples e humildes, sabem que Daniel não é igual a eles. Para estes fãs, assim como um pastor, o cantor inspira sentimentos puros, de amor e amizade, e os propaga através de suas canções. A sacralização deste ídolo é tão intensa que quase se banaliza. É reveladora a intensidade e a constância da utilização de expressões religiosas para se referirem ao ídolo. Daniel passa a ganhar outra importante associação à sua marca: santidade. Belk, Wallendorf e Sherry (1989) mesmo acreditando que a melhor forma de compreender o sagrado é contrastando-o com o profano, tentam caracterizá-lo através de 12 propriedades. Algumas delas são muito claras nos depoimentos dos fãs de Daniel o que confirma a condição de sagrado da marca, e conseqüentemente, corroborando seu comportamento devoto (verificar resumo na QUADRO 7). É no momento da sagração do cantor que as “características funcionais do produto” começam a ganhar evidência, num tom de justificativa. Para os fãs, Daniel canta muito bem, mas também as referências à sua voz vêm envoltas numa aura mística: é um dom divino. Escutá-lo, então, torna-se uma experiência extática, uma das propriedades do sagrado. “Escutar ele cantar, ao vivo ou pela TV, deixa a alma mais leve, os problemas são esquecidos” (CAR35) “acordar e saber que será possível ao menos ouvir a voz do Daniel, já é uma dádiva” (CAR49) Mas a sua característica funcional não sobreviveria sozinha. Daniel, suas associações, sua voz e sua interpretação se fundem de tal maneira que ele acaba sendo a própria personificação das letras de suas músicas. É como se ele fosse o porta-voz de uma força divina: “suas mensagens através das canções transmitem sensibilidade, emoção, sentimentos que estão no coração de cada fã” (CAR30) “sãos suas belas músicas que me fazem viver e ter esperanças” (CAR78) 112 Propriedade Definição Êxtase é uma experiência “Escutar ele cantar, ao vivo que Evidencia promove um ou pela TV, deixa a alma estado de quem se mais leve”. (CAR35) encontra como que Em relação à experiência de transportado para vê-lo pela primeira vez em fora de si e do um show: mundo sensível “Fiquei parada, vidrada, sem me mexer” (ENT06) “Eu lembro que fiquei uma verdadeira estátua, assistindo” (ENT02) Hierofania aparecimento e/ou “É até estranho falar, tento manifestação do buscar uma explicação mas sagrado não consigo. Quando apareceu o Daniel não sei o que me deu. Ele me passou uma coisa muito boa” (ENT04) Contaminação através do contato o “Minha coleção de cd´s é sagrado tem o sagrada. Ninguém mexe.” poder de (ENT06) contaminar coisas. Num extremo, as possessões das pessoas sagradas se tornam ícones venerados porque estão contaminados com a santidade Quadro 7 – Exemplo de Propriedades do Sacrado, segundo BELK et AL (1989) encontrados na imagem da marca Daniel 113 As suas canções embalam e fazem a trilha sonora da vida dos fãs. Elas marcam, ou melhor, traduzem momentos de vida destes fãs. Através de suas letras de músicas eles expressam seus próprios sentimentos. É como se Daniel os entendesse e os traduzisse. “Aí eu lembro que ele cantava aquela música lá, e eu falei assim: `Nossa Senhora!’ Achei que ele tinha feito a música para mim porque ele falava...`eu só quero seu amor, por que você me deixou, por que você foi embora, o que eu vou fazer da minha vida agora’ (...) E eu no maior pranto escutava aquela música (...) Parecia que fez [a música] agora, é uma coisa assim do outro mundo” (ENT02) Mais até do que um simples porta-voz, ele é visto como um mensageiro divino: “todos os dias, antes de me deitar, agradeço a Deus por nos ter enviado este anjo para alegrar nossa vida” (CAR32); “é um ser superior e especial” (CAR61); “é um presente de Deus” (CAR49); “Deus lhe deu um coração de ouro (...) a importância do seu brilho e de sua existência vai muito além da vida, vai muito além da matéria, você é importante para mim, para o mundo, você é importante para Deus (CAR51)”; “Dani, seu D é de Deus por isso você faz a diferença na vida de qualquer um” (CAR86); “DEUS e DANI, nomes com quatro letrinhas que nos dá amor e alegrias” (SIT06) “ele tem o dom de fazer as pessoas sonhar acordadas e chorar de alegria” (CAR67); Em vários editoriais na Revista do Dani, o próprio Daniel assume para seus fãs seu “dom” e diz acreditar que tem uma missão a cumprir, através da sua música. Em suas mensagens, seu mantra é “acredite em sonhos”, sendo, ironicamente, que ele é o sonho de grande parte de seus fãs devotos. “Aconteceu comigo e pode acontecer com você” imprime uma esperança muito grande na vida de seus 114 seguidores. E este “acredite sempre em seus sonhos” é algo que repercute constantemente no discurso dos fãs. No dia da reunião do fã-clube Estação Somente Você Daniel – RJ, as fãs montaram dois cartazes intitulados “Sonhos Realizados” e “Sonhos a Realizar”. No primeiro figuravam as fotos do Daniel com as fãs, uma a uma. Num contraste claro, no segundo estavam as fotos das fãs do Daniel, sozinhas, aguardando o dia que teriam a felicidade de, enfim, realizarem seu sonho de “conhecê-lo”. Numa primeira leitura, mais rápida e superficial, sim, Daniel é o sonho deles. Mas esta crença, esta esperança e justificativa de busca impregnam a vida dos fãs. Se o primeiro sonho, o Daniel, pode ser realizado, todos os outros também podem. Uma das questões que se coloca (BELK; WALLENDORF; KOENIG, 1989; PIMENTEL; REYNOLDS, 2004) em relação à sacralização do secular é que uma vez que o consumo pode se tornar um veículo de experiência transcendente, qualquer coisa pode se tornar sagrada. Porém, este é o tipo de significado construído necessariamente a partir do consumidor. No caso do Daniel, o processo de sacralização dos fãs estudados se deu muito em função das características e histórias de vida pessoais e através de um processo particular e individual. Porém, a morte de seu parceiro fez com que, para alguns, o processo se intensificasse, mas para a maioria representou o evento detonador da sacralização. Poderíamos dizer que foi um processo coletivo de sacralização. O sofrimento público do Daniel comoveu sua audiência, que passou a admirá-lo mais. “Emocionou todo mundo. Cada vez que ele cantava aquela música `Estou Apaixonado’, este tipo de música que ele cantava com João Paulo. Às vezes, ele parava, dava um nó na garganta dele. Aí a arquibancada, todo mundo gritando `João Paulo` direto, `João Paulo, João Paulo`. Ficava aquele silêncio. Ele parava e ficava com o microfone, e não conseguia cantar, ... dava um nó na garganta” (ENT03). 115 “E aparece ele cantando uma música, acho que ‘Estou apaixonado’. Ele não sabia se cantava ou se chorava de tão envolvido com a morte de João Paulo. Ai, que dó deste cara” (ENT05) “todo mundo começou a prestar atenção no Daniel, porque todo mundo estava sentindo o que ele estava sentindo. A gente começou a acompanhar ele aí” (ENT03) Esta comoção gerou uma curiosidade e desencadeou, ou pelo menos potencializou, o processo de identificação, que aproxima o cantor de seu fã. Afinal de contas, finalmente a dupla estava alcançando o sucesso, coroando todo o esforço e história de luta. As pessoas não queriam que ele parasse. Não achavam justo. E diante de sua dúvida na continuidade da carreira se sentiram de certa forma responsáveis, tendo que mostrar a ele que, não, o público não o deixaria sozinho, e que mesmo sem o parceiro, ele não estava abandonado. Os fãs passaram a ser seus companheiros. “teria que continuar pois ele não estava mais sozinho; já tinha atingido o sucesso de milhares de fãs em todo o Brasil, que rezavam e torciam para que seu ídolo percebesse que sua missão era cantar e trazer alegria a todos que viam nele uma pessoa humilde, carismática e especial” (SIT06); Em alguns casos, a perda do parceiro desencadeou o processo de sacralização de uma forma imediata, através, mais uma vez, da identificação mais pessoal – e não somente da curiosidade ou dó. A perda de alguém causa uma dor muito profunda e um sentimento de solidão imensos. Inevitavelmente a morte se conecta à religiosidade, mesmo que em forma de questionamento, uma vez que desperta a consciência da própria vida. Algumas pessoas viveram seus lutos particulares junto com o do Daniel, potencializando a sua sacralização. “O primeiro programa que ele foi, depois que o João Paulo morreu foi no Gugu. E eu estava lá em Olímpia, ainda sozinha na minha casinha, chorava que nem não sei o quê. E tudo o que ele [Daniel] 116 falava [eu pensava] ‘eu sei o que é isso, eu sei o que é isso’. É aquela sensação de você ter vontade de chegar perto da pessoa, de por a mão nela e falar: `Eu sei exatamente o que você está sentindo (...) Eu quero por a mão, eu preciso dar um abraço nesse cara e falar para ele que eu sei que a dor dele é igual a minha’” (ENT02, o marido da entrevistada faleceu num acidente automobilístico 40 dias antes de João Paulo). “simultaneamente passamos por situações difíceis na vida, eu fiquei viúva e ele perdeu seu par vocal ... ele precisou do público para superar-se, eu precisei dele” (RTD28, depoimento de fã, que tatuou o nome do Daniel, ao lado do nome de seu filho, no lado esquerdo de seu peito). Após este episódio, uma nova associação é atribuída à celebridade: mais do que um batalhador, Daniel é um vencedor, que com muita força de vontade superou um terrível obstáculo. Completa-se assim o modelo a ser admirado, adorado e seguido. A propriedade do sagrado de contaminação, isto é, a capacidade da santidade ser espalhada pelo toque ou posse do que foi tocado pelo sagrado também é manifestado em relação ao Daniel. Tudo o que ele toca também é venerado, inclusive o fã devoto. Se até agora ele só queria vê-lo, agora precisa tocá-lo. Rita, presidente do fã clube “A Jiripoca Vai Piar” (São Paulo/SP) relata uma história de uma conhecida, moradora de uma pequena cidade do interior do Ceará que fez questão de tirar uma foto com ela, segurando uma das fotos onde Rita aparecia junto com o Daniel. O objetivo desta foto é provar para seus amigos do Ceará que ela conheceu “alguém que já tocou o Daniel”. É o mito da fama se propagando. Rosas, autógrafos, toalhas, peças de roupas, tudo o que o Daniel tocou, “contaminou” vale muito para o fã. “Ele beijou a flor, deu na minha mão e falou `obrigado’. Tem o perfume ainda. E eu não mostro para ninguém que é para não sair o perfume” (ENT03) 117 “Quando você veio na minha cidade fazer o show eu não pude ir (...) Mas o meu pai foi e me trouxe uma foto na qual estão você e o João Paulo, eu digo que esta foto é como um tesouro para mim, só pode ver de longe, mas pegar, não!”(CAR28) A deferência, o cuidado e a transformação destes objetos em peças de suas coleções representam a forma individual mais recorrente do fã devoto em sustentar a sacralização. Uma fã me mostrou o “altar” (literalmente, foi este o termo utilizado por ela) feito a partir de uma caixa de vinhos, devidamente encapada com fotos do Daniel (FIGURA 12). Dentro as “preciosidades”, também devidamente etiquetadas: um copo descartável de água “que o Daniel bebeu no show tal”; rosas já murchas que o Daniel jogou no show tal; toalhinha (o cantor costuma enxugar o suor de seu rosto em toalhinhas brancas com seu nome bordado e jogá-las a platéia) que o cantor jogou no show tal. Ao separar fisicamente estes objetos “contaminados” com santidade, a fã evita que eles se “contaminem” com os objetos profanos, sustentando assim a sacralização do Daniel. Figura 12 - Altar com peças tocadas pelo Daniel Obs: fotos tirada na reunião do fã-clube carioca 118 A simples visão do ídolo, ao vivo, de longe ou de perto parece ser uma experiência sublime, que reforça tanto a condição humana dos fãs quanto a divina do ídolo, aumentando ainda mais sua distância. Diante do ídolo, o fã é petrificado, não consegue falar, não consegue se mexer. “Você pensa que é um Deus, você acha que é diferente (...) Eu lembro que a hora que ele apareceu, que eu falei assim `Gente! Eu não to acreditando que eu to vendo este homem, que este homem existe’” (ENT02) Nove meses depois da morte de João Paulo morre Leandro, também a segunda voz da dupla Leandro e Leonardo. Novamente a audiência fica comovida. Embora Leonardo também tenha continuado na carreira, este evento não foi o que o consagrou, e ele não se transformou no mito e no fenômeno mobilizador que Daniel representa. Em primeiro lugar, a dupla já estava mais estabelecida no mercado quando da morte de Leandro; Leonardo não incorpora as mesmas características de personalidade que Daniel, e é considerado malandro, imagem esta aparentemente cultivada pelo cantor. “O Leonardo, ele inspira um pouco de cuidado, é bocudo, é malandro, coisa que o Daniel não [é]. Eu nunca vi o Daniel tratar diferentemente uma fã de outra, com malicia, um abraço malicioso...” (ENT03) Mas, principalmente, a morte não sacralizou Leonardo como o fez com Daniel, porque a audiência acompanhou toda a luta, a dor e o sofrimento de Leandro. Ele morreu de câncer, e embora num processo rápido, durante 2 meses seus fãs acompanharam a sua doença. Ele sim foi sacralizado (seu filho, também cantor, tem um imenso rosto do pai tatuado em sua barriga). Não houve transferência desta dor para seu parceiro na proporção em que aconteceu com Daniel. Assim a morte que “heroifica” não só permeia mas é fator determinante na construção do ídolo Daniel. Construção esta que teve participação das pessoas. 119 Mais concretamente do que simplesmente partilhar de sua dor, elas participaram ativamente na produção dos seus primeiros shows solo, gritando “João Paulo” e cantando junto com o cantor, fazendo coro, preenchendo o espaço vazio deixado por seu parceiro. A imagem da marca Daniel está fortemente relacionada às associações humilde, simples, batalhador e sagrado. A categorização do comportamento destes fãs como devoto, vem desta última associação. 4.2.3 A Assimetria da Relação O grande paradoxo da relação fã-celebridade fica bastante explícito nestes dois processos de identificação (humilde, simples e batalhador) e sacralização (sagrado). Ao mesmo tempo em que o ídolo reflete a imagem de seu fã o fã tem nele seu modelo de vida. Muito embora sejam constantes as referências ao Daniel com intimidade, “Dani”, eles têm completa consciência da assimetria existente na sua relação. O Daniel é para estas pessoas “o companheiro em horas de solidão” (CAR64). Presente em todos os momentos – alegres ou tristes – de seus fãs. Este companheiro fiel é aquele que os ajuda a transcender a rotina de suas vidas, “[com o Daniel] esquecemos todos os problemas e mágoas que carregamos em nosso dia-adia” (CAR67). Ávido por informações sobre o seu ídolo, o fã devoto conhece toda a biografia, gostos e desgostos da celebridade e acredita, por isto, conhecê-lo muito bem. Aliás, impressionam também os detalhes da vida de Daniel que são conhecidos pelos seus fãs. Num concurso entre seus membros, o fã-clube Portal do Daniel fez uma promoção na qual os fãs deveriam responder a um questionário. Eram 15 perguntas que variavam do nome da professora de catequese do cantor e do médico que fez o seu parto até a quantidade de pintas que ele tem no rosto. E, sim, este concurso teve vencedor. 120 Dada a assimetria que a caracteriza, a relação entre o fã e seu ídolo é na verdade para-social, conforme teorizaram Horton e Wohl (1956). E o fã, ao mesmo tempo em que compreende isto, se ressente deste fato: “(...) vou continuar na esperança de que um dia você arrume um tempo em sua vida e me dê a oportunidade de te conhecer (...) porque te amo do fundo do meu coração e espero que um dia você possa também saber quem é essa pessoa que tanto ama você, bom isso se você se interessar em saber quem sou eu, porque de certa forma eu te conheço, pelas revistas, televisão, mas você não sabe quem sou”. (CAR17) “(...) estou bastante triste porque você se esqueceu de minha pessoa. (...) Eu queria tanto um dia poder lhe conhecer pessoalmente” (CAR07, grifos meus) O fã parte desesperadamente em busca de uma forma de quebrar esta assimetria, e acredita que ao conhecê-lo finalmente estabelecerá a relação. O grande sonho de conhecer o cantor significa para a maioria deles dois minutos de contato com o artista: o tempo para um beijo, um abraço e o click de uma máquina fotográfica. Os fãs que têm uma foto junto ao Daniel – e pela seção “No coração do Dani” da Revista da Turma do Dani onde são publicadas as fotos enviadas pelos fãs pode-se ter uma idéia da quantidade deles (ANEXO D) – falam e escrevem do prazer em têlo conhecido. “Conhecer” é estar alguns minutos ao seu lado. “Pensei mil coisas, pra lhe dizer, mas não deu tempo para as palavras, é tudo tão rápido, os seguranças apressando a saída antes mesmo da entrada. Ah! Mas o abraço, o beijo, o olhar que trocamos, será inesquecível, a sensação de bem-estar foi inexplicável. Guardo esta foto com muito carinho” (CAR92) Mesmo “conhecendo”, os fãs sabem que não têm com ele ainda a validação da sua relação imaginária. O relacionamento real se estabelece quando o fã passa a ser 121 reconhecido pelo seu ídolo, não necessariamente pelo nome, mas por qualquer sinal e forma que ele utilize para expressar que se lembra da pessoa. O fã força este relacionamento de forma quantitativa. Por isto que “quanto mais a gente vê, mais quer ver” (ENT03). São necessários vários encontros até que o ídolo consiga reconhecer o fã. O que move este comportamento persecutório de alguns fãs é o desejo do reconhecimento real. “Primeiro a gente quer ver, depois tocar, e depois ser visto” (ENT02). O momento em que o reconhecimento existe é revelador, o indivíduo finalmente se destaca da multidão. O reconhecimento de um ídolo é mais do que um reconhecimento qualquer. É ser mais famoso do que o famoso. É conseguir que aquele a quem todos conhecem, conheça você. Além da fama, ganha-se identidade. “ele falou comigo...eu existo, meu Deus, ele falou comigo” (ENT02). Neste contexto, as fotografias adquirem uma importância muito grande. Além de prolongarem aquele encontro revivendo todas as sensações do momento, elas são tidas como uma prova da existência da relação. Em todas o Daniel aparece abraçado, ou beijando a fã. “Minha fotografia ao lado do meu ídolo, que para muitos não passa de uma simples foto, para mim significa a prova viva daquele momento que transformou minha vida. Significou a mudança de uma total descrença nos sonhos para a retomada desses sonhos em que tudo pode acontecer, basta acreditar.” (CAR38) Os fãs têm plena consciência da “condição de ser fã”, da total assimetria na relação, dos sacrifícios e dos investimentos que são feitos. Sempre variando entre razão e emoção, tentam justificar suas ações, das mais diversas formas, para se conciliarem consigo mesmos. “Quando eu falo do Daniel, as pessoas falam que falo com muita intimidade. Eu não falo como o cantor, é o Daniel, como se 122 estivesse do meu lado. Eu sempre falei dele como se eu tivesse intimidade. Não que eu tenha. (...) Eu acho que tenho um carinho muito grande. Então é como falar da mãe, do pai. Você tem uma intimidade, não sei. As pessoas param `você fala dele, como se ele estivesse ao seu lado”. Mas não esta, não tenho nada com ele (...). É que do jeito que falo parece ter” (ENT04) “Eu não confio nestas coisas [se referindo a uma cartomante que lhe leu cartas]. Acho que é mais Deus. Ela falou que numa vida passada fui casada com o Daniel. É um absurdo, não podia ser agora? [risos]. Aí eu ia gostar do meu marido como artista...O meu marido é virginiano, ele faz aniversário na sexta. O Daniel é virginiano e faz aniversário dia 9... Já é quase igual, né? Ela já falou que fui casada com ele numa vida passada. A gente só não teve ligação nesta vida, porque na época foi assassinado. Então, teve um corte na minha vida com relação a ele. Então, a gente continua nesse mesmo elo, só que não no sentido marido e mulher. Eu não sei se isto procede. O meu pai é Daniel, meu sobrinho é Daniel e minha sobrinha é Daniela, e eu não conhecia o Daniel (...) Então eu não sei qual a ligação que a gente tem em questão de outras vidas. Talvez não tenha nada, é coisa que a mulher falou...” (ENT05) Esta característica assimétrica tão particular da relação fã-celebridade, parece reforçar a associação de sagrado, porque a celebridade é distanciada do fã e colocada numa outra dimensão, num mundo paralelo, uma espécie de Olimpo, onde ele trava relações reais com outras celebridades apenas. Esta característica pode nos fazer compreender porque é mais comum que o comportamento devoto se manifeste no consumo de celebridades do que proporcionalmente em outras categorias de produtos. 123 4.2.4 O Desejo e A Sedução O fascínio da celebridade alimentado pelo paradoxo do imaginário e divino de um lado (persona) versus a percepção da existência de uma pessoa normal, de “carne e osso” de outro (pessoa) é muito claro na relação de Daniel com suas fãs. O imaginário é traduzido nas diversas menções e referências a ele como um anjo, um mensageiro de Deus, um iluminado. Ao mesmo tempo porém expressam insistentemente o desejo de conhecer o “Jose Daniel Camillo”, o homem por de trás do mito. A sacralização do fã devoto acaba convivendo, então, com um outro paradoxo: o amor pelo ‘anjo’ e o desejo pelo homem. Muito embora na grande maioria das vezes, as fãs afirmam, veementemente, sentir um amor fraternal, não erotizado, pelo Daniel, através de várias manifestações (como fotos, estórias relatadas, gestos e em algumas cartas) percebe-se o desejo de possuí-lo. Pelas fotos, e a forma com que elas explicam o momento em que foram tiradas, os suspiros, indicam a existência de uma outra motivação. As poses das fotos variam principalmente entre duas posições: da fã estar ao lado do cantor, abraçando, com a mão em sua barriga ou em seu peito; ou da fã posicionada à frente do cantor, que a envolve com seus braços. Esta última é particularmente mais valorizada pela fã, porque parece transmitir a intimidade de um relacionamento amoroso. Questionadas a respeito de como é decidida a pose para a fotografia, elas respondem “nós pedimos para ele nos abraçar por trás”. “(...) tem uma foto sua aqui com o Daniel que está dando o que falar, conforme eu bati parece que vocês estão se beijando na boca. Ficou o maior barato! Você precisa ver!” (CAR28) “Neste dia quase o Daniel me deu um beijo na boca, tenho até foto” (ENT05, pelo ângulo em que a foto foi tirada, não pela intenção de fato) 124 Também através de algumas histórias relatadas, o desejo, mais do que amor, fica explícito. “Eu cheguei para ele, “posso te dar um abraço?”. Aí ele cantou no meu ouvido “me abraça, me beija, me ama”. Tem uma música dele que é assim. Eu disse, “Não repete, hein?” Eu sai de lá com um sorriso de orelha a orelha. Isto é uma fração de segundo, mas eu sai de lá...” (ENT03) “Aí saí de lá com o perfume dele, aquele homem é demais. Acho que até as meias dele cheiram a Azzaro. Eu já saí e liguei para a família inteira: `o que eu vou fazer para ficar com o cheiro dele?” O João [marido] falou assim: `espera sair, depois você toma banho’” (ENT03) “E aquele perfume Azzaro me envolvendo, me deixando enlouquecida. O meu coração estava aqui fora, não tinha como me segurar” (ENT04) Algumas fãs partem para uma atitude mais extrema e definitiva, embora metafórica, de posse: a tatuagem (FIGURA 13). “Em 18 de fevereiro de 2003 dei início à primeira parte da maior loucura de fã que pode existir [singularização]. Tatuei o Dani nas minhas costas [posse]. Foi um trabalho de cinco horas na primeira seção. Em 26 de fevereiro de 2003 fui terminar a segunda seção e também tatuei o autografo do Dani [intimidade]. Ao todo, foram 11 horas para que meu sonho fosse realizado. [sacrifício e mantra]. Por ser casada e ter 3 filhos, enfrento muitas criticas, mas o importante é estar feliz. Eu sou a fã do Dani mais feliz deste mundo” (RTD32) 125 Fonte: Revista Turma do Dani foto tirada no Encontro do Fã Clube Estação Somente Você Daniel – RJ em 22/08/2004. Figura 13 - Fãs com Tatuagem do Daniel Embora muito mais raras, existem também manifestações mais diretas, explícitas e assumidas da motivação sexual na relação com o cantor. “Te admirando, te observando, te desejando. Ao acabar este brilho desse show que você é, passo a usar a minha imaginação; peço todo esse brilho só para mim. Todo esse calor, essa ternura, para mim, te desejando (...) Só eu te vendo ... [volto a ser] mais uma na multidão de estrela” (SIT04) 126 “(...) quero ser sua donzela (...) olha que meu corpo é um labirinto de prazer (...) farei você sentir o segredo do prazer e do amor. Gostoso, lindo. Aquela foto que você está enrolado na toalha, você está irresistível e até fez meu coração disparar e até ficar sem ar” (CAR24) A sedução é o outro lado da moeda do desejo. Em diversos artigos e depoimentos em mídia eletrônica, em algumas fotos promocionais, o cantor alimenta o desejo das fãs também pelo indivíduo. Sempre que indagado da possibilidade de relacionar-se com uma fã ele afirma já ter tido este tipo de relação. Com isto, Daniel consegue alimentar o desejo das fãs ao mesmo tempo em que reforça as associações de simplicidade e humildade. O importante é que a forma pela qual Daniel seduz não é ameaçadora. “Quando percebo que a coisa é séria, sou capaz de ficar meses só no jogo do olhar, para depois me aproximar” (SIT04). Ao sobrepujar o romantismo à existente sedução, reforça sua mensagem sacra de disseminação do amor. Desta forma consegue administrar de forma bastante competente o alimento do desejo sem contudo, dessacralizar-se. Mesmo com o desejo latente, as fãs são os principais responsáveis pela manutenção do Daniel em seu posto sagrado. Os procedimentos de sustentação da sacralização descritos por Pimentel e Reynolds (2004) estão muito presentes nos discursos e ações dos fãs de Daniel. Os sacrifícios realizados são físicos (longas horas de espera para ver o ídolo, para conseguir uma senha no atendimento, para ver o artista por poucos minutos), financeiros (gastos com passagens, presentes, shows, hotéis) e emocionais (a reconhecida “loucura”). Existe peregrinação, quer seja atrás do ídolo (“a gente vai em todos os shows da região) ou aos lugares sagrados ao ídolo, como sua cidade natal (tem fã que se mudou para a cidade de Brotas; há uma grande movimentação de pessoas na frente de sua casa em Brotas; “eu vi a porta da casa do homem!!” (ENT02)). Mas estes procedimentos se tornam mais intensos quando há a companhia de outro fã. Eles serão então mais explorados na próxima seção deste capitulo. 127 4.2.5 Os Processos de Singularização Primeiro se quer vê-lo ao vivo, “tirá-lo da televisão”, depois se quer tocar. Mas isto não basta: agora o fã quer ser visto. O mito contemporâneo da fama - a busca contínua pelo estrelato - é também percebido claramente em todas as formas que os fãs utilizam para serem reconhecidos pelo ídolo. E isto só acontece a partir da diferenciação, da singularização. A ansiedade e o quase desespero de chamar a atenção detonam a criatividade destas pessoas, que também se manifesta através de diversas formas. Conforme já mencionado, tenta-se quantitativamente provar a sua devoção. A presença constante em shows, em porta de hotéis, e em todas as aparições públicas, a quantidade de cartas enviadas e de fotografias tiradas constituem a divulgação maciça do fã. A criatividade aparece nas diversas formas pelas quais o fã busca chegar perto do ídolo, “entrar” no círculo onde o artista está. Escondem-se nos mais inusitados lugares (armário, embaixo da cama, no banco de automóveis), fingem que são repórteres para obter as informações de local e horário da presença do cantor, vestem-se de noiva, de freira, tatuam-se, entre outros (FIGURA 14). “Um dia [entrei] de carregador. Não tinha como entrar, não tinha mais jeito. Aí, uma pessoa da equipe dele trouxe um tapete bem grande. `Pra onde será que ele vai com este tapete?’. Quando ele bateu na porta para entrar, eu agarrei atrás do tapete e coloquei o tapete no meu ombro. O cara entrou e eu entrei junto com ele. O segurança não falou nada.” (ENT03) Por este caminho, provavelmente o reconhecimento acontecerá primeiro através do staff do cantor. Este é um relacionamento no qual o fã investe, primeiro pelo motivo utilitário agora apresentado. Mas acaba-se desenvolvendo um vínculo emocional também com o staff, com a equipe técnica e artística. 128 Figura 14 – Tentativas de diferenciação Fonte: Revista Turma do Dani A outra forma de diferenciação acontece nas mais originais formas de prestar homenagens e presentear o ídolo. Estes presentes, o “amor materializado” (RTD37), são quase todos eles manufaturados pelos próprios ou encomendados a terceiros. Para citar apenas alguns exemplos: a) bandeira de 200m2 de Nossa Senhora, confeccionada pelos fãs do fã-clube Dentro do Coração, que acabou virando orgulho do povo indaiatubense; b) pratos e sabonetes confeccionados a partir de fotos do cantor (CAR05 e RTD23) c) retratos desenhados do cantor sozinho (ENT05), com seu pai (RTd23) d) bolo com a forma e cores do símbolo do time de futebol preferido pelo cantor (RTD23) e) uma almofada gigante, em forma de coração (FIGURA 15) 129 Figura 15 - Almofada gigante confeccionada pelos fãs fonte: Revista Turma do Dani As maneiras são as mais variadas, mas individualmente é mais difícil se conseguir destacar. As fãs passam a perceber que juntas aumentarão as suas chances de serem reconhecidas. 4.3 O Fã Clube Conforme explorado na seção anterior, o comportamento do fã devoto é marcado por uma série de forças opostas e de contradições que, uma vez descontextualizados, fazem o estigma do fã ser mais difícil de ser carregado. Em várias das evidências coletadas foi comum encontrar o fã definindo com a palavra loucura as suas ações e sentimentos no que se refere ao Daniel. Mas eles a utilizam num sentido de auto-valorização, já que estas loucuras, tradução de seus sacrifícios, são vistas entre os fãs como comprovações da sua condição de “fã verdadeiro”. Porém, quando o fã devoto se encontra entre um grupo que não partilha da sua mesma devoção, mais notadamente, entre o grupo familiar, a denominação “loucura” adquire um tom pejorativo, ridículo e preconceituoso fazendo com que o fã se iniba, controle ou disfarce a sua devoção. Ao racionalizar o comportamento deste tipo de fã, as contradições do relacionamento com o Daniel ficam mais claras para aqueles que não compartilham 130 da mesma intensidade de consumo: a diferença entre pessoa e persona; a assimetria da relação; o sentimento de posse e os sacrifícios envolvidos no incansável processo de singularização. Os fãs devotos mostram em algumas manifestações que também, quando racionalizam, são cientes destas contradições que tornariam injustificadas as suas ações. Quando tentou compreender “a constelação de comportamentos nos quais consumidores se esforçam para conseguirem contatos com as figuras públicas consideradas notáveis”, definida por O´Guinn (1991, p.102) como o “fenômeno Tocando a Grandeza” (“Touching Greatness phenomenon”), o autor comparou-o à religião. Encarando Daniel como quase um deus, ou pelo menos alguém mais próximo a ele do que eles próprios, os fãs minimizam, convivem e passam a se alimentar destas contradições. É neste contexto que aparece o fã-clube. Se Daniel é quase como um deus, o seu fã-clube acaba adquirindo algumas das funções sociais de uma igreja. Nele, pessoas que partilham de uma mesma devoção e profunda admiração pelo cantor – mesmo que por razões particulares diferentes – se encontram e formam importantes laços e acabam, assim, preenchendo necessidades sociais fundamentais para o ser humano. Além de compor os elementos que levam o indivíduo a desfrutar do senso de comunidade, como pertencimento e responsabilidade moral, através do fã-clube o fã fica mais propenso a atingir seus objetivos individuais em relação ao Daniel, e também a manter de forma mais eficiente a sacralização do cantor através, principalmente, dos rituais coletivos existentes. Antes de aprofundar a análise do fã-clube, a partir das evidências comuns coletadas principalmente através das entrevistas e da observação, torna-se necessária uma breve apresentação de cada um dos fã-clubes pesquisados para apontar as suas particularidades. 131 4.3.1 Apresentação dos Fã-Clubes do Daniel Estima-se que existam hoje pelo menos 300 fã-clubes do Daniel30, incluindo o localizado no Japão, o “Luti Japan Fã-Clube Daniel”, com 100 associados. O controle ou acompanhamento total destes fã-clubes é dificultado, se não impossibilitado, pela não obrigatoriedade da existência de nenhum tipo de registro para oficializar a sua fundação. Basta um grupo de pessoas, de qualquer tamanho, tomar a iniciativa e o fã-clube é criado. A seriedade com que o grupo fundador encara a tarefa, traduzida na sua divulgação e manutenção (publicação de fanzines31, organização de idas e viagens a shows, uniformes e homenagens ao cantor), acaba por determinar a sua longevidade. Uma vez estabelecidos, estes fã-clubes “sérios” acabam chamando atenção do staff do cantor. Não só pela sua presença constante, insistente e organizada em boa parte das aparições públicas do ídolo, mas também pela necessidade que têm em buscar informações privilegiadas a respeito do Daniel (agenda de shows, de compromissos de divulgação, programas de rádio e TV), estes fã-clubes acabam desenvolvendo relacionamentos com o staff, e assim tornam-se conhecidos e reconhecidos. No caso específico do cantor Daniel, além destes fã-clubes espontâneos, foi criado em 2000 um fã-clube oficial que tinha como objetivo inicial a organização da proliferação de fã-clubes administrados por pessoas que queriam explorar economicamente a força da marca, através da cobrança de taxas de mensalidade, de vendas de fotografias, e outros artigos produzidos extra-oficialmente, sem contudo prestar “um serviço” aos fãs. Esta foi a divulgada principal preocupação do empresário Hamilton e de Daniel quando da idéia de criação do fã-clube oficial Turma do Dani (ver logomarca devidamente registrada na FIGURA 16). 30 Dado inicialmente coletado na mídia impressa (ART02) e posteriormente confirmado pelo Silvio Finato (EM03), que porém afirma que não há um registro destes fã clubes. 31 Fanzine é o termo inglês criado a partir das palavras fan e magazine, para definir as publicações feitas pelos fãs para os fãs, como revistas, jornais e boletins. 132 Figura 16 – Logomarca da Turma do Dani O termo “oficial”, diferencia este fã-clube dos demais, porque ao contrário dos outros, é gerenciado pelo staff do cantor. O seu empresário, Hamilton Policastro, tem o cargo de Presidente Nacional do Fã-Clube Oficial Turma do Dani e mantém uma coluna regular na Revista da Turma do Dani, chamada de “Palavra do Presidente”. Junto da divulgação de futuros empreendimentos e eventuais esclarecimentos, a coluna disponibiliza o número do “celular do presidente” para que os fãs possam, na teoria, contatá-lo diretamente. O gerenciamento da Turma do Dani é realizado pelo jornalista contratado para esta função, Silvio Finato, que tem o cargo de Diretor de Comunicação do fã-clube. Como suporte, possui quatro atendentes que se revezam no cadastramento e atendimentos aos fãs, via telefone, e-mail e cartas. Além destas funções este grupo produz a revista mensal do fã-clube (uma publicação mensal, de 32 páginas coloridas), atualiza o conteúdo do site oficial do cantor, organiza os contatos dos fãs com o Daniel nos camarins dos shows (por eles chamados de atendimento), através da preparação de listagens com os nomes dos fãs selecionados, e planejam promoções, que variam desde o comum sorteio de produtos licenciados (presente em todas as edições da revista) até o Encontro Nacional dos Fãs, anualmente realizado na Estância Nathalya (Botucatu/SP), de propriedade do empresário Hamilton. (FIGURA 17) Figura 17 – Fotos do Encontro Nacional de Fãs – Estância Nathalya (Botucatu/SP). 133 Até 2003 era cobrada uma semestralidade de R$ 40,00. Além dos serviços acima descritos, o fã associado tinha acesso a uma carteirinha oficial que lhe dava prioridade no acesso ao ídolo no atendimento realizado em shows e hotéis, um disco comemorativo no ato da inscrição e o recebimento de seis edições da Revista da Turma do Dani. A partir deste ano, porém, o sistema foi mudado. O fã-clube oficial não representa mais uma associação, mas um cadastro de fãs. O motivo alegado é o de que os fãs, uma vez com posse das carteirinhas “oficiais” se sentiam com direito adquirido de serem atendidos em todas as suas tentativas de contato com o ídolo. Segundo dado de Silvio Finato (ENT01), alguns shows chegavam a reunir de 300 a 400 associados exigindo o contato com o Daniel. Assim, decidiu-se pela não mais emissão de carteirinhas, nem cobrança da semestralidade. A Turma do Dani continuou prestando os mesmos serviços anteriormente descritos, mas agora como uma espécie de central de fã-clubes, servindo como intermediária no relacionamento do cantor com os fã-clubes extraoficiais. A revista passou a ser distribuída e vendida em banca, a um preço de R$ 3,00 e a participação das promoções se estende aos compradores das revistas, já que são realizadas através do envio de cupons publicados nas edições. Da forma como funciona hoje, o fã-clube Turma do Dani parece representar o formato inicial do Marketing de Relacionamento, que prioriza a relação marcaconsumidor (FOURNIER, 1998), e não necessariamente, a integração consumidorconsumidor através da marca (MUNIZ; O´GUINN, 2001). As atendentes trabalham com um software de cadastro dos fãs, que chega a somar 387,000 pessoas (ENT01). Mas não há nenhum tipo de tratamento e classificação das informações contidas nos cadastros. O relacionamento estabelecido entre a estrutura do fã-clube oficial com os fã-clubes não oficiais é resultado de um investimento intenso por parte dos integrantes, mais notadamente dos presidentes, dos não oficiais. Mais especificamente as relações mantidas com as atendentes da Turma do Dani, algumas até indicadas para serem madrinhas de fã-clubes não oficiais, são intensas 134 e através desta dita “amizade” estabelecida com alguém de dentro da estrutura do cantor, o fã-clube não oficial consegue enfim alguns privilégios como prioridade no atendimento ao fã e acesso a informações novas a respeito do cantor e da estrutura. Os fãs entrevistados tinham grande envolvimento com seus próprios fã-clubes. Em maior ou menor intensidade, o fã-clube oficial não representou grandes benefícios extras, com exceção do Encontro Nacional, unanimidade entre eles. Para uma fã, mais do que indiferença, ela se mostra indignada com o modelo inicialmente proposto: “Pagar 40 reais para ter o que eles têm que dar de graça? Um mínimo de informação. Se a gente tivesse um pouquinho da verba [que eles têm] faríamos muito mais do que eles?” (ENT06) Para os fãs que já pertenciam ao um fã-clube não oficial “sério”, já estabelecido e reconhecido, o fã-clube Turma do Dani não representou muito, porque comparativamente aos outros, ele não proporciona o relacionamento real entre os fãs dificultando assim as condições para aparecimento do senso de comunidade. Foram três os fã-clubes pesquisados: “A Jiripoca Vai Piar”, “Estação Somente Você Daniel – RJ” e “Dentro do Coração”. Cada um deles sediados em cidades diferentes, com número de membros diferentes e portanto escopo de atuação diferentes, conforme pode ser observado na descrição abaixo. O que parece direcionar estas diferenças é seu contexto geográfico. O primeiro, apesar de localizado em Guarulhos-SP, pela proximidade com a capital acaba se “perdendo” na imensidão da região metropolitana. O segundo, se orgulha de representar um estado todo, o Rio de Janeiro. E o terceiro, localizado numa cidade do interior de São Paulo, Indaiatuba, pelas relações sociais mais próximas característico de uma cidade menor, apresenta comparativamente maior do que os dois outros fã-clubes. e portanto facilitadas, influência e exposição 135 O fã clube “A Jiripoca Vai Piar” é o menor dentre os pesquisados, formado por 33 fãs, a maioria delas vindas de um extinto fã clube, chamado “Show de Bola”. O “Show de Bola” terminou quando a sua presidente, por alegados motivos pessoais, não pode continuar a frente do fã clube. Este fato, aliado à forma com que os entrevistados se referem ao fã-clube que pertencem, mostram que o fã-clube tem dono, representado pelo seu presidente, que necessariamente participou da fundação do clube. Esta “posse” é legitimada e respeitada pelos demais, conforme será melhor explorada no item 4.3.5.2. Quando então um presidente desiste do cargo, o fã-clube pode continuar, mas provavelmente não com o mesmo nome. Isto foi observado na história da criação do “A Jiripoca Vai Piar”. Rita de Cássia Batista, conheceu a presidente do “Show de Bola” em um show e, além de se filiar a este fã-clube, tornou-se sua amiga próxima. Em 2002, este fã-clube deixou de existir. O fim não foi oficializado, mas a então presidente não mais organizava nenhuma atividade e ela não mais contatava, nem conseguia ser encontrada, pelos demais membros. Mesmo sem fã-clube, Rita e suas amigas mais próximas continuaram indo em shows e eventos juntas, prestando homenagens ao cantor até que Rita resolveu “oficializar” o grupo junto ao fã-clube Turma do Dani, fundando assim o “A Jiripoca Vai Piar”. O nome escolhido – assim como o do antigo fã-clube – é inspirado em título de musica do cantor, prática esta comum aos fã-clubes do cantor. Até pelo seu tamanho, comparativamente este é um grupo onde há bastante proximidade entre os membros já que todos conhecem. Não têm acesso a Internet, e a divulgação do fã-clube não é intencional, acontece espontaneamente nos lugares por onde vão juntos com a camiseta do grupo. Quando outros fãs se interessam, procuram a presidente, único cargo oficial da estrutura. A despeito da não utilização 136 da Internet, a comunicação entre eles é muito eficiente, feita por telefone, as notícias se propagam como “uma corrente”. Não fazem encontros regulares, mas além dos eventos do Daniel, se reúnem em aniversários. Possuem um informativo mensal que é postado mensalmente. Não é cobrada formalmente nenhuma taxa, mas os participantes acabam contribuindo com selos, envelopes e outros suprimentos de escritório. Este fã-clube é muito concentrado geograficamente e, embora nem todos morem em Guarulhos, são reconhecidos como fã-clube desta cidade. Apesar de também possuírem uma logomarca, não têm nenhuma estratégia mercadológica nem administrativa, diferente do que acontece com os outros dois fãclubes pesquisados. Pode-se classificar sua organização como algo mais caseiro, quase acidental. Isto reflete na própria percepção que têm de si mesmos em relação ao Daniel. “Quem somos nós?” mostra que mesmo como grupo reconhecido pelo staff e pelo cantor, acreditam que o Daniel é mais importante para o fã-clube, do que o fã-clube para o Daniel. ! " Este fã-clube apresenta uma postura diametralmente oposta a do “Jiripoca Vai Piar”. Ele apresenta grandeza em número de membros, em escopo de atuação, em estrutura administrativa, em programa de divulgação, na seriedade e quase profissionalismo com que encaram suas funções e em sua auto-percepção. O próprio texto de apresentação do fã-clube divulgado em seu site (www.estacaodaniel.com.br) mostra tanto na forma, como no conteúdo, que este é um grupo muito bem estruturado e de grande porte. 137 “O fã clube Estação Somente Você Daniel – RJ nasceu da união de dois grandes fã-clubes: a Estação Daniel, fã clube virtual contando, na época, com 7 anos de experiência no atendimento e suporte aos fãs do cantor através da Internet e o Somente Você Daniel, com até então 4 anos de plena atividade na realização de sonhos, aproximando de maneira eficiente os fãs do artista, se tornando unânime no estado do Rio de Janeiro. Após uma série de reuniões organizadas em abril /2003, as então presidentes, Aisha de Figueiredo (Estação) e Adriana Gonçalves (Somente Você) resolveram juntar forças e reunir experiências e formar, em 21/05/2003, o que seria sagrado depois o Melhor e Mais Bem Organizado Fã-Clube do Rio de Janeiro, título este concedido pelo programa “O Rio é Show”, do Canal 3 da Net Rio, com premiação de troféu, curiosamente no mesmo evento em que Daniel levou o premio de melhor cantor sertanejo, contando em especial com o reconhecimento de toda a Equipe Daniel e, principalmente do próprio. Acumulando em seu 2º. Ano de atuação os títulos referentes ao Daniel herdados dos dois antigos fã clubes, de: primeiro site existente, primeiro fã clube virtual, único fã clube do Estado do Rio de Janeiro e maior fã clube não oficial, alem do já citado “melhor e mais bem organizado fa-clube do Rio de Janeiro, e contando com associados de todo o Brasil e de diversos outros paises, nosso trabalho se baseia em aproximar cada vez mais, da maneira que nos couber e que nos for possível os fãs do artista .... (SIT01)” O Estação Somente Você Daniel-RJ contém um organograma que contempla, além da presidente Adriana Gonçalves, 30 anos, e de Aisha Figueiredo, 24 anos, diretora Administrativa, uma vice, uma secretária e uma equipe de quatro pessoas que formam a Diretoria de Comunicação, entre outros, responsável pela atualização do conteúdo do site. Não só virtualmente, este grupo é muito ativo fisicamente. Fazem duas reuniões mensais: uma da diretoria a cada terceiro domingo do mês, onde discutem o que será abordado na outra reunião, onde todos os membros são convocados, que acontece no quarto domingo de todo mês. Nesta reunião, além dos assuntos a respeito do Daniel e do fã-clube, os integrantes aproveitam para confraternizarem- 138 se. A presença média é de 35 pessoas, de idades variadas entre 8 e 70 anos. Algumas levam amigas, acompanham filhas e netas que apesar de nutrirem uma simpatia especial pelo Daniel, seu comprometimento não passa dos níveis calculado e/ou normativo. Estão lá para se distraírem, fazendo uma passeio de domingo. Há também as fãs devotas, mas que não são tão ativas e não participam, geralmente por motivos financeiros, tão ativamente de todas as atividades propostas pelo fãclube. Tanto estas, como as “visitantes” apresentam um comportamento mais tímido e retido, contrastando com o grupo formado pelas fãs com função administrativa e pelo círculo mais próximo de fãs, ou seja, aquelas que acompanham todas as atividades. Há naturalmente uma integração maior entre eles, uma maior quantidade e troca de brincadeiras, onde se nota um forte elo de amizade estabelecido. Quando a reunião de fato começa, a presidente se coloca no centro de um semi-círculo, lidera uma oração e conduz a reunião. (FIGURA 18). As reuniões acontecem num salão na parte superior da casa da tia da presidente, localizada em Irajá, um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro (RJ). Na entrada é colocado um livro de presença, onde cada uma registra seu nome. Ao lado, é disponibilizada uma mesa onde, à medida que chegam, os fãs vão depositando os biscoitos e refrigerantes que costumam trazer. Na semana anterior à reunião específica em que a observação aconteceu uma música de um novo trabalho do cantor havia sido lançada. Uma fita inteira foi gravada com esta música e a letra distribuída aos presentes para que todos saíssem da reunião com “a música na ponta da língua, pronta para ser cantada em show”. Figura 18 – Reunião do Fã Clube Estação Somente Você Daniel 139 Para se associar, também não é cobrada nenhuma taxa. Os gastos correm por conta da diretoria (a hospedagem do site, por exemplo, custa 35 reais mensais), que por vezes realiza pequenos eventos para a arrecadação de verba. O conteúdo do site e do blog é constantemente atualizado. Possuem bastante cuidado com a parte jurídica de suas publicações. Antes de publicarem qualquer material, seja foto ou declaração providenciam junto ao autor uma declaração de autorização de utilização de imagem e conteúdo. Uma vez estabelecida a cor vermelha para identificar o grupo, tomam especial cuidado na identidade visual de seus materiais, inclusive uniformes, bem como na utilização de sua logomarca (FIGURA 19). Figura 19 – Logomarca do Fã-Clube Estação Somente Você Daniel – RJ Orgulham-se, conforme se apresentam, em representar o Daniel no Rio de Janeiro. Cientes de sua importância e participação na divulgação do trabalho do cantor no Rio de Janeiro e crentes na sua diferenciação enquanto fã-clube, ressentem-se constantemente do staff, principalmente com a Turma do Dani, pelo pouco apoio e reconhecimento que percebem receber. ! ! # Este fã-clube tem uma dimensão intermediária entre os dois anteriormente apresentados. A característica de ser localizado numa cidade do interior, de aproximadamente 150 mil habitantes, faz com este fã-clube, embora pequeno e que 140 não utiliza a Internet como meio de comunicação consiga uma exposição muito grande na cidade em que atua. Muito ativo, este grupo se articula com pessoas importantes, da mídia e da gestão pública para a realização de atividades em nome do fã-clube, atividades estas que viram notícias e são amplamente divulgadas nos principais veículos da cidade, junto com o telefone de contato do fã-clube. Além de atividades assistenciais, este grupo é responsável por uma das grandes atrações na FAICI, a Feira Agropecuária, Industrial e Comercial de Indaiatuba. Há oito anos o cantor Daniel se apresenta no encerramento da festa. Na sua 12ª. versão, em 2001, o grupo teve a idéia de comemorar a sua presença com uma grande – literalmente – homenagem ao ídolo: sabendo que o cantor incluiria no seu repertório a música Nossa Senhora (de autoria de Roberto Carlos) da qual o cantor é devoto, o fã-clube confeccionou uma bandeira de 200 m2 que foi estendida pela arquibancada (FIGURA 20). Na ocasião, o ato emocionou a todos, cantor, staff e presentes e a bandeira, que já viajou a vários shows do cantor, é presença esperada e obrigatória nas versões do FAICI. Figura 20 – Bandeira de Nossa Senhora 141 O grupo também é famoso pela confecção e distribuição de bandeirinhas (15,000 a cada festa) e bexigas nos shows do Daniel. A idéia de criar o fã-clube foi de Kátia Milanio, 29 anos, cuja devoção pelo cantor se tornou maior após a experiência que sua prima Lucimara teve de encontrar o cantor após um show. Animadas, convenceram o namorado de Kátia, Marcos Brasil, 50, a presidir o fã-clube. Em fevereiro de 1998, inauguraram o Fã-Clube Daniel Dentro do Coração, e se tornaram o fã-clube do Daniel de Indaiatuba, agora também reconhecido como o “fã-clube da bandeira”. Ele começou com 40 sócios e teve uma ampla divulgação na mídia local, além de pontos de adesão, montados em lanchonetes e shoppings pelos participantes. O grupo se encontrava mensalmente numa sala de reuniões do Ginásio de Esportes, cedida pelo então Secretário de Esportes da cidade, ou no escritório da fábrica de Marcos Brasil, endereço este transformado na sede do fã-clube. Cobrava uma taxa mensal de 5 reais, para cobrir os gastos com papelaria e xerox (confecção das bandeirinhas) e para as despesas das festas de final de ano realizadas. Nestas reuniões discutiam atividades e homenagens a serem feitas, organizavam caravanas para shows nas cidades próximas e trocavam fotos. As reuniões deixaram de acontecer porque a presença era baixa, mas continuam ativos nos demais serviços que prestam. O nome foi criado em referência a letra de uma música interpretada pelo Daniel. Em toda sua produção impressa, colocam o logo do fã clube (FIGURA 21) junto com o logo da Turma do Dani. Figura 21 – Logomarca do Fã-Clube Daniel Dentro do Coração 142 As similaridades existentes entre estes três fã-clubes permitiram que inferências fossem feitas a respeito do que estas organizações representam para o consumo da celebridade Daniel pelo consumidor devoto. As funções que o fã-clube adquire serão aprofundados nos próximos itens. 4.3.2 Procedimentos de Sustentação da Sacralização O fato do comprometimento afetivo ser mais duradouro e profundo do que o calculado e o normativo (PIMENTEL; REYNOLDS, 2002) não permite assumir que necessariamente esta forma de comprometimento é permanente. É possível que o objeto de devoção perca o status de sagrado. O produto celebridade é difícil de ser controlado pela mescla existente entre persona e pessoa. Assim, o status de sagrado da celebridade é constantemente ameaçado pelas ações do indivíduo que a representa. Evitar que a dessacralização ocorra é, porém, um esforço não exclusivo aos produtores. Os próprios fãs, pela dimensão e importância que o consumo da celebridade acaba assumindo em suas vidas, imbuem-se em evitar a profanização do seu objeto adorado reforçando, num círculo virtuoso, o seu comprometimento com a marca. Assim, os fãs acabam proativamente se engajando em procedimentos de sustentação da sacralização. A discussão sobre o fã devoto do Daniel apresentada na seção anterior mostra que os fãs já individualmente apresentam estes comportamentos. A exposição espontânea da marca através de vestimentas, dos mais diversos artefatos por eles produzidos, as tatuagens, além da criação e manutenção de suas coleções guardadas em verdadeiros altares representam alguns exemplos destes comportamentos. 143 Porém, evidências sugerem que, intensificado pelo estigma que o fã devoto carrega, o esforço em manter o status de sagrado do Daniel é muito grande quando feito individualmente. No fã-clube, este fã encontra pessoas que partilham da sua devoção e que estão dispostas a investir na sua sustentação. O primeiro motivo comum retratado para a procura de um fã-clube foi a busca por companhia para ir a shows e/ou aparições públicas do cantor (presença em rádios, gravações de programas de televisão, entre outros). Em suas primeiras experiências de “contato” com a celebridade, costumam conseguir a companhia de pessoas de seus círculos sociais existentes, como familiares e amigos mais próximos. Mas para o fã devoto, um “encontro” gera a necessidade de outro “encontro” e assim sucessivamente. “Eu estava louca para ir, mas não tinha ninguém para ir comigo (...) Eu senti necessidade de conhecer pessoas que gostassem para ir junto comigo. Aí eu cheguei na fila [de entrada de um show no Olimpia] e falei `é a gora que eu tenho que fazer amizade porque aqui só vai ter fã, é aqui que eu tenho que fazer amizade, aqui que vai ser ter meu ponto para fazer amizade com alguém e ter companhia para poder ir nos lugares porque eu não tinha ninguém”. (ENT02) “quero me filiar ao fã clube, quero ter amiga, quero ter companhia” (ENT02) “é por isto que gostaria de fazer parte do fã clube, já que sempre que é possível estou nos shows do Dani, mas tudo é meio complicado...dependo sempre dos meus pais para me acompanharem (...) possamos nos unir rumo a um simples objetivo: o nosso querido Daniel’ (CAR13) Para os fãs não devotos, não existe sentido nem lógica que justifique a ida a todos os shows de uma temporada, muito menos a partir numa peregrinação pelos lugares onde o cantor novamente se apresentará. Mas esta é uma propriedade de um “fã 144 verdadeiro”. Assim como acontece com torcedores de futebol (BARROS, 1978), o fã que não peregrina não é fã de verdade. “Ela só quer aproveitar o artista enquanto esta ali (...) Quem não é do fã clube, é só naquela hora ali e acabou. Não vai acompanhar ele. [o fã clube] é igual a torcida organizada, todo mundo corre atrás” (ENT03) “fã que se preza dá sempre um jeitinho de estar em contato com seu ídolo”(RTD29, moradora do Japão, cadastrada na Turma do Dani e participante do Luti Japan Fã Clube Daniel) Fazer a peregrinação através do fã-clube é garantia de companhia e sentimento de segurança e proteção. A peregrinação é segundo Pimentel e Reynolds (2004) um das possíveis formas de sustentação da sacralização, e no caso dos fãs devotos do Daniel, anda junto com outra forma: o sacrifício. O sacrifício – financeiro e emocional – que envolve a peregrinação também é mais fácil de ser suportado quando em grupo. Se necessário for, um fã acaba auxiliando outro financeiramente para que o sonho, isto é, o “encontro” com o Daniel, seja realizado, ou pelo menos, os custos com transportes, hotéis, presentes são rateados. Existe uma solidariedade muito grande entre eles que ameniza as horas de espera, as dificuldades de acesso, e auxilia na administração da culpa que às vezes lhes arremete, quando por alguns momentos racionalizam suas “loucuras” e pensam em suas famílias. Kelly, pertencente a um fã clube, manda fazer um quadro com o Daniel pintado a grafite e entra em contato com as dirigentes do fã clube para que elas possam ajudá-la nesta missão: “A Kelly com dois quadros enormes, uma mala enorme nas costas, nós andamos...Nossa, a gente se perdeu em Campinas, quase no horário do show. Estava muito quente naquele dia (...) O hotel que a gente ia ficar era horrível, ninguém merece aquilo lá (...) Este foi o dia mais desesperador da minha vida, andei igual a uma camela, 145 quase não tinha comido direito (...) Me deu um desespero e comecei a chorar. Quando finalmente conseguiram encontrar o Daniel veio a recompensa: “Quando ele me viu, me deu um baita beijo no rosto. Ela [Kelly] falou assim para ele `Daniel, a gente quase morreu hoje, mas estou aqui por causa dela’. Ele me olhava e fazia assim [sinal de aprovação e reconhecimento]” (ENT05) No aspecto religioso, os sacrifícios têm a importante função de preparar e purificar o indivíduo para sua comunhão com o sagrado, e mais, indica a sua deferência com o sagrado (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989). Parece que quanto maior for o sacrifício do fã, mais facilitada fica o contato com o cantor. Os relatos indicam que esta deferência é percebida pelo staff e pelo Daniel, que talvez constrangidos pela responsabilidade que acabam sentindo por estes sacrifícios, acabam facilitando o acesso destes fãs. A leitura que estes fazem, porém, é de que foram recompensados e valorizados pela sua lealdade, o que retroalimenta este tipo de comportamento. Os rituais têm um duplo papel na explicação da importância do fã-clube para os fãs devotos. Ao mesmo tempo em que representam uma forma de manutenção da sacralização (PIMENTEL; REYNOLDS, 2004) são também fundamentais para que o senso de comunidade se desenvolva (MUNIZ; O’GUINN, 2001). A importância dos rituais no consumo da celebridade Daniel fica mais clara quando vista sob a ótica da antropologia do consumo, que aborda o ato de consumir como uma forma de atribuição de significados. Para Douglas e Isherwood (1979), o principal problema da vida social é fixar os significados de modo que fiquem estáveis por algum tempo. Os rituais representam um conjunto de regras social e visivelmente estabelecidas que devem ser observadas em qualquer ato solene. Desta forma, têm o importante papel de conter a flutuação dos significados. Para estes mesmos autores, “viver sem rituais é viver sem significados claros, e possivelmente, sem memória” (p. 112). 146 Para os fãs, a própria inserção num fã-clube representa um ritual, que o transforma de um simples e comum fã, num fã verdadeiro, um “fã de carteirinha”, legitimando, assim, a sua devoção. Neste sentido, a carteirinha de sócio do fã-clube é a materialização deste ritual e adquire um significado muito grande para o fã, que a exibe com bastante orgulho. Outra forma de materialização desta transformação é a possibilidade da utilização dos uniformes dos fã-clubes. Comparados com as carteirinhas de sócio, os uniformes representam uma forma mais explícita de comunicar a condição de ser fã de verdade. “Gostaria muito de poder usar a camiseta do fã clube” (CAR20), em carta endereçada a um fã-clube, pedindo para ser considerada a associação A transformação em fã verdadeiro também perpassa pela aceitação e conformidade em relação aos códigos de conduta. Eles representam um forte instrumento de manutenção e enraizamento da cultura de um grupo, porque desempenham o fundamental papel de perpetuar suas normas e valores. Os códigos de conduta relatados pelos fãs do Daniel entrevistados são muito parecidos, o que indica sua mesma fonte geradora: o staff do cantor. Quando comunicam a este staff sua vontade de fundar um fã-clube são doutrinados no tipo de comportamento que devem então seguir. Estas lições acabam sendo difundidas através dos fã-clubes para todos os fãs, ajudando então a organizar, controlar, ou pelo menos minimizar, as demonstrações mais efusivas dos fãs. “Nesse meio tempo eu já tinha ligado para São Paulo, para HRP na época e falei com o irmão do Hamilton, o Laércio. Aí ele me passou as coisas que precisava. ‘Tem que ter muito amor e carinho’ [ele falou]. `Isso você não se preocupa’ [respondeu a presidente]” (ENT04) 147 “ele [do staff do Daniel] falou assim `você tem que agir assim, fazer isto ... quando o pai dele estiver em algum evento, tentam pedir autografo para o pai dele que ele também gosta. Vocês nunca peçam para o Daniel autografar caderno porque lê não autografa...’” (ENT05) “Mas estas pessoas [fãs que passavam a noite inteira no porta do hotel... coitadas] não eram de fã clube. Os fã clubes são muito bem organizados. Nos temos os nossos códigos de respeito ao ídolo tipo: não gritar em porta de hotel, não invadir, não ser grosseira. Então, a gente faz o contrario do que essas pessoas pensam. As pessoas pensam que quem faz a bagunça são os fã-clubes e não são os fãclubes. É o contrário.” (ENT03) “Existem um conjunto de regras que todas têm que respeitar. Elas são importantes porque mantêm a integridade do fã-clube, a imagem do fã-clube” (ENT06) A primeira foto tirada com o cantor é o quarto ritual observado nas evidências, porque traduz o “sonho realizado” de conhecer ídolo. Todos se mobilizam para esta primeira foto: o fã, os demais membros e o próprio staff do Daniel procuram priorizar em seus atendimentos aqueles que nunca tiraram foto com ele antes, traduzido, por aquelas que nunca “conheceram” o ídolo. A ansiedade diante da eminência de um primeiro encontro não se restringe apenas ao fã em questão, mas contamina o restante do grupo, que torna a viabilidade deste momento um objetivo coletivo, que justifica as peregrinações e os sacrifícios. A primeira foto, materialização deste encontro, é sagrada e recebe uma posição de destaque na coleção de fotos típica do fã. A celebração de certas datas também constitui o conjunto de rituais dos fãs pertencentes a fã-clubes. Estas datas, cientes por todos os fãs membros, estão carregadas de significados e cada uma delas é celebrada com um respectivo sentimento comum. A morte de João Paulo, por exemplo, é relembrada com solene respeito. Muito embora, boa parte destes fãs não acompanharam a carreira da dupla, pela deferência que nutrem pelo Daniel e pela consciência da dedicação do 148 cantor com a memória do parceiro falecido, celebram esta data. O aniversário do cantor é aguardada com muito ansiedade. Buscam das formas mais criativas parabenizar o cantor e mostrar que elas se lembram desta data (FIGURA 22). A expectativa desta data é marcada por uma grande movimentação entre os membros, reuniões, telefonemas, numa intensa troca de idéias e de preparativos. A cada ano querem surpreender e se superar. Mesmo que a homenagem não aconteça, o ritual acontece nos preparativos. Figura 22 – Outdoor em homenagem ao aniversário do Daniel “Nós fizemos uma festa. Tentamos fazer porque a festa não aconteceu. Eu organizei tudo, na festa teria todos os doces que o Daniel gosta (...). Então tinha quindim, tinha Baba de Moça, banana com Leite Moça porque ele adora, tinha pudim, tinha aveia, pudim, tudo o que o Daniel gosta. Foram 56 pessoas para Teresópolis [o Daniel se encontrava hospedado num hotel nesta cidade]. Uma senhora estava internada, pediu licença médica para poder ir, porque se ela morresse, queria antes ver o Daniel. (...). A irmã da Ivete Sangalo fez uma música, ‘Sou sua fã’, para a Ivete. Nós readaptamos para o Daniel (ANEXO VI). Aí fizemos lá e fomos gravando. Como era dia 10 de setembro, era um dia depois do aniversário do Daniel e três dias antes da comemoração de aniversario de morte do João. Então, a gente queria prestar uma homenagem para o Daniel e para o João Paulo, que era 149 aquela música que ele gravou no cd sertão, ‘Meu Reino Encantado’, que era o ‘Saudades’”. (ENT04) Os aniversários do fã-clube e de seus membros, principalmente dos presidentes e dos fãs mais assíduos, também são datas celebradas. Existe uma expectativa, por mais racionais que sejam os testemunhos nesta hora, de que um dia o Daniel prestigie as festas de aniversario do fã-clube com sua presença. Para eles isto seria o verdadeiro presente que reconhecem merecer por sua dedicação ao ídolo. Os aniversários dos membros é comemorado com ida aos shows, e novamente o grupo todo se mobiliza para que Daniel saiba que é aniversario daquele fã em particular. O staff do cantor também prioriza os aniversariantes que como presente querem um abraço – e uma foto – do cantor. Irônico é que, embora sejam os fãs os aniversariantes, eles mesmos levam presentes para dar ao Daniel, e assim celebrar este dia. Todos estes procedimentos – peregrinações, sacrifícios e os rituais – sustentam a sacralização do Daniel, mas também ajudam na delimitação das fronteiras entre o fã verdadeiro e os outros, peça fundamental na construção do senso de pertencimento. 4.3.3 Senso de Pertencimento Os rituais ajudam na tradução da chamada conscientização compartilhada (MUNIZ; O’GUINN, 2001), ou seja, da consciência de quem é ou não parte da coletividade. Isto gera um sentimento forte de conexão entre os membros, que acaba lhe ajudando na construção de sua identidade social. Tornar-se um fã verdadeiro é uma forma de provar sua seriedade em relação a sua devoção, tanto para seus familiares e amigos não devotos, como para o próprio Daniel, já que esta condição os diferencia dos “fanáticos”. A partir da transformação não é mais preciso esconder-se, e agora, dentro de um grupo constituído por pessoas não somente mais tolerantes e compreensivas, mas que estimulam seus comportamentos em outros grupos 150 reprováveis, o fã passa a viver sua devoção de forma plena. O fã-clube transmite para o fã devoto o que McMillan e Chavis (1986) definiram de “segurança emocional”, ou seja, a vontade do indivíduo em revelar o que realmente sente. No fãclube, finalmente a aceitação do seu sentimento e conseqüente comportamento em relação ao ídolo acontece. Uma vez estabelecida a fronteira entre o fã comum ou o fanático, do verdadeiro, membro de um fã-clube, o limite da diferenciação torna-se mais específico: entre os fã-clubes do Daniel existentes. Diferente do que é apontado na literatura sobre os fãs de esportes, notadamente dos torcedores de futebol, não foi percebida rivalidade entre os fã-clubes. Primeiro porque não existe o encontro de um fã-clube de uma celebridade com o fã-clube de outra celebridade. Isto não tem lógica na indústria da celebridade. Não há um jogo onde duas torcidas rivais se encontram. Mas, poderiase acreditar numa disputa pelo tempo e atenção da celebridade entre os seus diversos fã-clubes. Ao contrário disto, constatou-se que, de maneira geral, os fãclubes se respeitam mutuamente e até se unem quando se trata de delimitar a fronteira existente entre eles e os “outros” fãs. Porém, se através do fã-clube, o indivíduo consegue se diferenciar da grande massa de fãs, o fã-clube agora quer se diferenciar um do outro. E para isto, cada um cria seu sistema simbólico próprio para que Daniel os reconheça. Esta é uma clara característica das comunidades, a construção dos limites, nitidamente reconhecidos por que está dentro e por quem está fora. Estas formas de diferenciação acabam se transformando nos rituais de cada um dos fã-clubes. “Já na escolha do nome: “não podia ser nome de música [a grande maioria dos fã-clubes tem nome de música do Daniel, [nomes estes que acabam se repetindo]. Tem que ser um nome que marque presença, tem que ser uma coisa que ele lembre que somos nós, tem que ser uma coisa diferente (...). Eu virei para o Daniel e falei assim, toda contente, ele estava com a mão assim na van e eu 151 coloquei a mão em cima da dele ‘Daniel, tá formado, como você já deve ter visto por aí, você hoje tem um fã-clube no Rio. O Daniel olhou para mim, eu sempre falei com ele olho no olho, isso sempre teve. Eu virei para ele “você hoje tem um fã-clube no Rio e eu sou a presidente”. Ele colocou a mão em cima da minha ‘engraçado, todo lugar que eu chego tem um fã clube [na leitura da depoente havia ressentimento e mágoa em sua voz...] Eu coloquei a outra mão em cima da mão dele e falei assim: não igual ao meu, porque o meu é especial, o meu é diferente e eu vou te provar’ (ENT04) As cores e logotipos dos uniformes também são importantes nas distinções dos fãclubes. A escolha da cor segue sempre um racional: a cor vermelha de um fã-clube foi escolhida porque “chama a atenção”, a cor azul de outro porque é a cor predileta do ídolo. As faixas também são obrigatórias e fazem parte do “kit show”. O cantor tem o hábito de ler estas faixas que trazem mensagens com a assinatura do fãclube. Alguns rituais, praticados através de símbolos, reforçam os limites de fã-clubes específicos. O fã afiliado ao “A Jiripoca Vai Piar”, por exemplo, leva em todo contato que tiver com o cantor uma rosa para lhe entregar; se não puder ser dada em mãos, os fãs as atiram para o cantor. Os pompons vermelhos também fazem parte do “kit show” do Jiripoca. Como afirmou a presidente, junto com as faixas, eles fazem parte do patrimônio do fã-clube. O fã-clube “Estação Somente Você Daniel” também considera ter o que chamou de “marca registrada”, um coração. Mesmo que em forma de cartaz, “tem um coração sempre presente”. Todos estes símbolos que ajudam na delimitação de um fã-clube servem também como uma forma de divulgá-lo. “Estas meninas novas que entram, elas falam isto (..): ‘Ah, eu já tinha visto vocês em outro lugar, já vi que vocês são super animadas, são tudo arrumadinha’, porque a gente vai tudo de camisa, a gente tem ido de pompom (...), leva bexiga” (ENT02) 152 Mesmo as normas de conduta acabam sendo personalizadas, distinguindo os fãclubes entre si: “no início [as regras] eram mais severas. Primeiro tem que respeitar o Daniel como pessoa, antes do artista. Não arranhar, não gritar no ouvido dele, porque ele não é surdo. Não beliscar, não morder, tentar se conter ao lado dele e não poderia nenhum envolvimento com ninguém da equipe do Daniel. A gente não precisava fazer nada que sujasse nossa imagem primeiro como mulher, segundo como fã e terceiro como fã clube. Não poderia fazer isto. Era proibido” [grifo meu] (ENT04) Uma evidência em particular chamou bastante a atenção que é a importância da delimitação geográfica dos fã-clubes pesquisados como mais uma forma de compor o senso de pertencimento e, portanto, o senso de comunidade. Na definição original de comunidade de marca (MUNIZ; O’GUINN, 2001), a variável geografia não interferia no senso de comunidade proporcionado por aquelas comunidades formadas em torno de uma marca. Pelo contrário, estas comunidades foram por estes autores definidas como “difusas”, não geograficamente determinadas. Estes fã-clubes utilizam as suas origens e alcances geográficos como forma de identificação, principalmente os localizados fora da cidade de São Paulo. “O pessoal de Indaiatuba”. Quando ele falava só faltava enfartar na hora (...) Ele tem que saber que estamos ali, prestigiando, isso é importante. Muitas vezes ele falou “o fã-clube está sempre presente”, porque íamos em todas as cidades. É um reconhecimento... E ele falar lá do palco.... (ENT03) “Ele costuma agradecer: ‘a todas as fãs, ao fã-clubes, ao Jiripoca que está ali’. Quase tem um ataque, a gente grita tanto, pula tanto” (ENT02) “Tenho um segredo para contar para vocês, eu tenho um fã clube no Rio” A gente chorava, gritava, pulava, não sabia o que fazer. Nossa, 153 nos fomos à loucura. Foi tipo um muito obrigado pra gente. Eu sei que vocês existem, ponto.” (ENT04) “Fã clube marca. A nossa cidade está marcada com ele porque o trabalho que o fã-clube faz, que cada cidade é uma coisa que marca na vida do cantor”. (ENT03) Além dos limites que a participação de um fã-clube estabelecem, a medida em que os fãs membros convivem, peregrinam juntos, sacrificam-se juntos, e são juntamente recompensados, histórias de vida vão sendo construídas conjuntamente, reforçando os laços criados entre estes membros. As experiências vividas e compartilhadas através do fã clube fazem as amizades nascidas dentro dos fã-clubes se tornarem o que por eles é considerada “verdadeiras”. É dentro desta lógica que explicam que “cada show é um show”, com sua história, com sua diversão, independentemente de ele já ter sido visto várias vezes. “Minha irmã fala `você não enjoa de tanto ir em show?’. Eu falei que cada show é um dia, cada dia é um dia e não tem igual (...). É uma viagem que você faz assistindo a um show”. (ENT02) “o fã clube é bom porque está acompanhando a pessoa que você gosta e também porque esta viajando e conhecendo tudo, o mundo fora da sua cidade, conhecendo outras cidades, outras pessoas, ne? Então une o útil ao agradável”. (ENT05) Da mesma forma que se criam aqui a amizades, acontecem também os desafetos, conseqüência normal de qualquer tipo de interação real entre pessoas de um grupo. Alem das relações amistosas, das “amigas de verdade”, são demonstrados sentimentos como ciúmes, inveja, disputa de poder e outros tipos de desgate. Estes fãs acabam experimentando, enfim, os sabores e dissabores dos relacionamentos reais. Este compatilhamento de histórias reforça o comportamento de acompanhamento das atividades do fã-clube, principalmente naquelas de “perseguição” ao ídolo, 154 porque o fã demonstra um certo receio de se marginalizar do grupo, caso falte a algum destes eventos, e portanto, não participe de mais um capítulo da história do fã-clube. Além do relacionamento entre os membros, o pertencimento de um fã-clube permite estabelecer outros tipos de relacionamento, intermediários entre o real e constante com os demais fãs e o idealizado e assimétrico com o ídolo: o relacionamento estabelecido com os membros do staff. Corpo de balé, músicos, equipe técnica, Turma do Dani, todos eles são passíveis de se manter relacionamento. Estes relacionamentos além de ajudarem na aproximação com o cantor, são por si só recompensadores para os fãs membros. Neste momento, a importância do Daniel e do fã-clube se mistura. Daniel é um meio é algo que lhes proporcionou desfrutar o que Horton e Wohl (1956) chamaram de “elixir da sociabilidade”. Assim, recompensados, acabam desenvolvendo um senso de responsabilidade com o fã-clube como um todo, com o seus membros, e naturalmente, com o Daniel. 4.3.4 Senso de Responsabilidade Moral Responsabilidade moral é um senso de dever que o indivíduo tem em relação à comunidade como um todo e em relação aos membros individualmente (MUNIZ; O’GUINN, 2001). No caso do fã-clube, estende-se ao senso de dever também em relação ao Daniel. O comprometimento dos fãs em relação ao fã-clube como um todo é uma tradução do lema “um por todos”. Em consonância com o que McMillan e Chavis (1986) definiram como influência, a segunda dimensão para o florescimento do senso de comunidade, nota-se que o fã, uma vez engajado no fã-clube, acaba voluntariamente sucumbindo seus interesses individuais em nome do interesse 155 coletivo. A conformidade é essencial para que haja coesão no grupo, que por sua vez é essencial para o senso de comunidade. Isto justifica a aceitação de um dos termos – comum em todos os fã-clubes pesquisados – do código de conduta: “a ordem é a seguinte: quem nunca viu o Daniel na frente, senhoras e crianças depois, e depois vão aquelas que há mais tempo não vêem o Daniel” (ENT04) O cumprimento desta regra pode implicar para o fã devoto na ida a vários shows sem que “reencontre” o ídolo. Aqueles que conseguem entrar nos camarins e/ou nas áreas mais restritas, e portanto mais próximas do cantor (camarotes e bretes32) tentam sempre “puxar” sem companheiros que não tiverem a mesma sorte de estar no local privilegiado, convencendo ou mesmo burlando os seguranças e/ou equipe do Daniel. A recepção de novos membros também é feita de maneira especial, traduzida na norma acima. A integração dos novos fãs, junto com a manutenção dos membros mais antigos, é fundamental para a longevidade do fã-clube. Outra forma de manifestação do compromisso com o fã-clube pode ser percebida pela deferência e respeito com que a figura do presidente é tratada pelos demais membros. De uma certa maneira, o presidente acaba personificando o fã-clube e às vezes até a sua posse é reconhecida. Era comum o presidente se referir ao “meu fãclube”. Assim, há relatos em relação ao controle que o presidente mantém, “apenas pelo jeito que olha”, e a espera dos membros até que o presidente “resolva a melhor forma de agir”. 32 Nos rodeios, o brete é o local onde o animal a ser montado fica confinado até o momento de ser liberado na arena. Uma área pequena, o brete é considerado o melhor local para assistir a shows que são realizados nas festas de boiadeiro, logo após os rodeios. 156 O respeito é tanto que alguns fãs pedem autorização para o presidente para ir a um show, caso o fã-clube, sempre traduzido na figura do presidente, por algum motivo não vá. A submissão em relação ao fã-clube existe porque se sabe que haverá uma troca. Através do fã-clube o fã consegue satisfazer as suas necessidades individuais, conforme será abordado no próximo item, o 4.3.5. Existe no fã-clube também a manifestação do “todos por um”. A união do grupo para realizar o que eles denominam de “sonhos”, traduzidos nos encontros com o Daniel, nas fotos a serem tiradas, no abraço de aniversário desejado, no presente especial que ser quer ter a oportunidade de entregar mostra o clima de solidariedade que envolve aqueles que fazem parte do grupo. “O fã-clube me fez crescer como pessoa. São pessoas muito diferentes e que a gente tem que aprender a lidar com elas todas. Afinal, a gente ajuda muitas delas. É um trabalho meio que filantrópico. Tem gente que tem depressão, que sai dela por causa do Daniel. Uma menina, anoréxica, mal, não queria sair de casa por nada. Saiu para ir no show do Daniel”. (ENT06) Em relação ao cantor, o senso de dever é explicitado de diversas formas. O’Guinn (1991) continua na comparação do fã-clube com uma igreja. Diz: “assim como na maioria das religiões, esta igreja tem trabalho a ser feito. Importantes tarefas são realizadas em nome de Barry [Manilow], protegendo-o contra maus fãs, recrutando novos seguidores, e sempre estando lá por ele” (p. 107). Os fãs acreditam que, através do fã-clube, têm a função de servir ao Daniel, dando todo o tipo de suporte necessário, no que diz respeito à divulgação de seu trabalho, mas principalmente na manutenção de uma imagem impecável da marca. 157 A divulgação da marca acontece de diversas formas, mas mais notadamente com a participação dos fã-clubes em programas de rádio, televisão, ou concedendo entrevistas para a mídia impressa. Mais notadamente utilizam com maior intensidade as emissoras de rádio, porque podem participar tanto com entrevistas formais, previamente agendadas, ou de formas mais improvisadas quando ligam nas rádios pedindo para que sejam tocadas músicas do cantor. De fato, quando acontece o lançamento de uma nova canção, estes fãs fazem uma espécie de corrente, com pedidos sucessivos às emissoras para tocarem a nova música do cantor. Têm com isto o intuito de ajudá-lo na divulgação do novo trabalho, evidenciando-a ao colocálas no “topo das paradas”. E o que o fã-clube fez pelo seu ídolo, que e o Daniel. E bandeirinha, e bandeirona, acompanhando eles em varias cidades levando faixa, divulgando o nome dele. Que é o que faz, ele divulga” (ENT03) Os três fã-clubes pesquisados também se dedicam a atividades filantrópicas, organizando eventos com instituições de caridade, em nome do fã-clube, reproduzindo o “modelo institucional” e propagando as atividades que o Daniel faz com seu time de futebol. Em 2000, aconteceu um episódio que mobilizou fã-clubes. Uma antiga fã foi a um programa de televisão reinvidicar junto ao Daniel direitos por tê-lo ajudado no inicio da carreira. Como fã, ela organizou caravanas de pessoas para assistirem a seus shows, divulgando sua marca deste o início de sua carreira. Silvio Finato, diretor de comunicação da Turma do Dani, convidou alguns presidentes de fã-clubes para participarem da platéia deste programa, que dá oportunidade para que os presentes se manifestem. Inconformados, revoltados e defendendo tanto o Daniel como a “sua classe”, eles participaram ativamente, mostrando que aquela pessoa não era fã de verdade, mas uma aproveitadora. 158 “Não entra na cabeça da pessoa que uma fã vai chegar no ponto de dizer ‘eu ajudei na carreira dele’. É impossível. (...) Se ele não fosse tão carismático, por mais que a gente fizesse... Não da pra gente cobrar. Eu faço porque quero, porque gosto. (...) Se ela acompanhou o Daniel desde o início, do comecinho, foi porque ela quis. O Daniel não precisa, tem um empresário para encaminhar ele. Ele tem o talento, o dom de cantar, o dom de cativar as pessoas” (ENT03) O fã-clube é um grande guardião dos valores da marca do Daniel. E, quando necessário, se mobilizam para defender a marca e protegê-la de qualquer tentativa de profanação. “a fã de fã-clube é diferente porque ela esta em todos os lugares, ela só compra cd original, ela vai comprar todas as revistas, ela vai defender o Daniel quando chamam ele de gay, quando falam que ele é cabeção, isso ou aquilo, o que ele fez ou deixou de fazer... é aquela coisa do Marketing...(ENT04) “A minha maior preocupação era daquelas fanáticas. Eu não era daquelas loucas. Eu queria estar perto, olhar. Tem mulher que belisca, arranha” (ENT04) Nenhuma ação, seja participação em programas, organização de homenagens para o cantor ou qualquer outro evento é feito sem a anuência oficial. Os presidentes sempre entram antes em contato com a Turma do Dani por dois motivos: primeiro para “não se queimarem”, para não correrem o risco de fazerem algo que possa desagradar ao cantor e seu staff; em segundo lugar, porque ao divulgar seu trabalho, buscam reforçar uma proximidade. Para a marca Daniel, esta regra tácita tem um valor especial, porque ao mesmo tempo que descentraliza o relacionamento com os fãs através dos fã-clubes, os mantém ainda no controle da imagem da marca. 159 4.3.5 Atingimento dos Objetivos Individuais A integração e o preenchimento de necessidades é também uma das dimensões do senso de pertencimento desenhada por McMillan e Chavis (1986) e que mais tarde foi metaforizado por McMillan (1996) como troca. Neste conceito está implícita a idéia de que existe uma recompensa individual quando da participação de uma comunidade. No fã clube, além do reconfortante senso de pertencimento, da própria importância que o senso de responsabilidade moral atribui e à manutenção da sacralização do objeto adorado, a inclusão num fã clube permite que alguns objetivos pessoais sejam atingidos. Estes objetivos podem tanto ser aqueles inerentes ao tipo único de relacionamento fã-ídolo (necessidade de singularização) ou ainda aqueles mais pessoais, classificados como antecedentes à devoção. 4.3.5.1 Singularização Tanto o processo de singularização, como os procedimentos de sustentação da devoção – comportamentos estes típicos do fã devoto – são comportamentos que o fã percebe terem mais êxito quando feitos em companhia de outro fã, em grupo. É como se a unidade deixasse de ser o indivíduo e passasse a ser coletiva, de um determinado grupo. Assim, quem passa a se diferenciar é o fã-clube, e não o fã individualmente. O objetivo final da singularização é a diminuição da desigualdade da relação entre fã e celebridade e a garantia de reciprocidade. Num fã-clube, esta reciprocidade acontece mais rapidamente, uma vez que os fã-clubes são organizações altamente valorizadas pelo ídolo e seu staff e, portanto, possuem um tratamento diferenciado. Novamente se vê aqui de forma muito explicita o paradoxo da indústria cultural: não 160 é possível atender ao indivíduo, mas é urgente a necessidade da diferenciação. O fã-clube se apresenta, assim, como uma resposta a este dilema, porque através do grupo o fã será evidenciado. O reconhecimento, na grande maioria das vezes só acontece através do fã-clube. Seja nas reportagens da Revista do Dani, seja nas leituras dos cartazes e faixas, ou no agradecimento da presença do fã-clube feita do próprio palco, ao longo do show. Não individualmente, mas como integrante do grupo, o fã consegue o reconhecimento, e sua notoriedade, seu momento de fama. . É importante não só que Daniel os veja e os reconheça uma vez. Não é suficiente que ele saiba apenas que tem um fã-clube. É importante que ele reconheça que aquele é um fã-clube “verdadeiro”, ou seja leal. Que estará com ele sempre, não importa o que aconteça, ou o que venha a ser falado a seu respeito. A partir do reconhecimento fica claramente estabelecido um compromisso com o Daniel: eles nem precisam necessariamente falar com o cantor no atendimento de um determinado show, mas é fundamental que Daniel saiba que eles estavam ali, prestigiando. O Daniel reconheceu o pessoal pela primeira vez por causa das faixas e das camisetas (...) Ele tem uma memória privilegiada ... Ele guarda o rosto das pessoas, por isto é tão importante que ele nos veja” (ENT03) De fato, estes fã-clubes conseguem se diferenciar e acabam até ganhando “apelidos” por parte do Daniel e staff. Assim, o Estação Somente Você Daniel é conhecido como “as vermelhinhas”, ou ainda “fã-clube Coca-Cola”, em razão da cor da camiseta do clube; Daniel Dentro do Coração, que já foi conhecido como o “fãclube da Terceira Idade”, hoje é conhecido, como o “Clube da Bandeira”, em referência à bandeira de Nossa Senhora e a tradição deste fã-clube de confeccionar bandeirinhas de papel distribuídas nos shows (MAT01, MAT02 e MAT03), e quando 161 percebe uma “chuva de rosas”, o cantor parece identificar que “A Jiripoca Vai Piar” está presente. O fã-clube atinge este seu objetivo já que o reconhecimento do grupo vem antes do individual, na grande maioria das vezes. Numa edição da Revista da Turma do Dani (RTD18) ele faz, através da menção de 5 fãs, uma homenagem a todos eles. Das 5 citadas, quatro eram presidentes de fã-clube. 4.3.5.2 Os Sócios: Tipos e Objetivos Rein, Kotler e Stoller (1997) classificaram os fãs em diferentes níveis, onde todos os membros de fã-clube se encontravam juntos, no mesmo agrupamento. Foi constatado, porém, que dentro do próprio fã-clube existem diferentes tipos de fãs membros. O que os diferencia são os motivos para a agremiação, as diferentes formas de participação na estrutura do fã-clube e, finalmente, a localização geográfica. Com estas três variáveis determinando conjuntamente as diferenças, três grupos foram identificados: a) os presidentes; b) staff, ‘panela’ e ‘vizinhos’ e c) distantes (FIGURA 23) PRESIDENTE STAFF “PANELAS” e VIZINHOS DISTANTES Figura 23 – Grupos Formados dentro do Fã-Clube 162 A) Presidente Os presidentes dos fã-clubes estudados apresentaram entre si algumas características muito comuns e marcantes: pessoas simples, batalhadoras, carismáticas, líderes, bem-relacionadas e muito bem articuladas. Os demais membros vêem reproduzidas nos presidentes as mesmas características do Daniel. Mais ainda, estas pessoas, mais do que qualquer outro membro, ganham a notoriedade com o Daniel e assim, experimentam elas mesmas o sabor da fama. Dentro de suas áreas de atuação, dentro do grupo que representam, os presidentes viram celebridades. São tratados como tais, assediados por mídia e adorados pelos fãs. Num escopo menor, o mito da fama acaba sendo reproduzido. Eles assumem um importante papel de intermediação, que os coloca em destaque: para os demais fãs do clube, representam o Daniel; para Daniel e equipe, representam o fã clube; para a mídia representam a ambos, Daniel e fã clube. Os presidentes são assediados pelos mais diversos meios. As emissoras de rádio lhes solicitam participar de programas especiais para concederem entrevistas tanto sobre as relações da celebridade com seus fã-clubes, como pela natural curiosidade sobre a “condição de ser fã”. As chamadas “loucuras de fãs” parecem ser um material de alto potencial de consumo e interesse nos noticiários. As emissoras de TV têm interesse predominante na presença de fã clubes para comporem os programas de auditório. Através das caravanistas os fã-clubes participam da audiência ao vivo destes programas. Jornais e revistas, principalmente as publicações regionais, costumam dar ampla cobertura às atividades e homenagens realizadas pelos fãs. “Foi uma experiência super diferente [a entrevista concedida no Programa da Monique Evans]. Eles foram me pegar em casa, fizeram uma transformação no meu cabelo, fizeram pintura em mim. 163 Eu fui com uma blusa amarela e depois comecei a prestar atenção, todo mundo estava de amarelo. A apresentadora do Jornal Nacional estava de amarelo, daí a outra semana a moreninha do Fantástico estava de amarelo. Agora todo mundo gosta de amarelo só porque fui na Monique de amarelo. Fiquei meio que viajando. Mas foi a melhor experiência da minha vida” (ENT05) Os demais membros dos fã-clubes costumam nutrir um respeito e admiração muito grandes pelos presidentes. Primeiro em função do reconhecido esforço, dedicação e investimento que eles fazem na estrutura do clube. São pessoas empreendedoras que estimulam a mobilização das pessoas em torno de seu ídolo. Não raro adotam uma postura “filantrópica”. Acreditam que seu papel é a realização dos sonhos dos outros, e assim, acabam eles mesmos emprestando um pouco da aura divina do cantor. “Eu comecei a ir atrás e todas pessoas que eu sabia que queriam conhecer o Daniel, eu movia montanhas para conseguir fazer a pessoa entrar [no atendimento] também (...).Ela acha que eu fui um anjo caído na vida dela [porque ajudei a entrar no atendimento]” (ENT05) “Agora vamos passar um elogio também para o Marcos [presidente]. Não só para o Daniel. Mas o Marcos é uma pessoa que eu falo assim é de se invejar a disposição. Ele é festeiro, pau pra qualquer obra. Ligo, Marcos... Ta ta na mão. Bora, Bora” (ENT03) Além do reconhecimento do papel do presidente, acaba-se fazendo uma transferência da devoção. Os presidentes representam o Daniel nos seus clubes, e encantam os membros pela proximidade que acabam conseguindo ter com o ídolo e mais notadamente com o staff do ídolo. Mas ao contrário do que acontece com seu ídolo, os membros conseguem estabelecer uma relação próxima e verdadeira com esta outra celebridade, que demonstra e retribui de forma mais personalizada o carinho que é devotado ao ídolo. 164 “Não é o meu fã clube, é o fã-clube do Daniel. Eu só tenho o trabalho de organizar isto para ele. Apesar que elas não deixam de ser um pouquinho minhas fãs também (...) Elas têm um carinho e eles [staff do Daniel] já perceberam isto. (...). Eu recebo um pouco do carinho que é para ele, eu fico com um pouquinho para mim. As pessoas acabam associando uma pessoa a outra ate mesmo porque (...) eu sempre corro para realizar o sonho [delas]” ENT04 O reconhecimento do Daniel, o assédio da mídia e a adoração dos demais membros dos fã-clubes espalham a notoriedade dos presidentes também entre seus familiares, vizinhos e demais círculos de amizades. E este reconhecimento é realmente conquistado a partir de muito investimento pessoal. A agenda, a vida dos presidentes gira em função da vida do Daniel e do fãclube. “Daniel foi de férias para o NE e ficou um bom tempo por lá, eu até achei bom [para eu poder] cuidar da família” (ENT02) “É muito minha vida, está muito no meu dia-a-dia. Eu acordo já pensando em coisas que a gente tem [que fazer]” (ENT04) Longe de um constrangimento, ser presidente de um fã-clube não só extravasa de forma ímpar toda a paixão de um consumidor extremamente devoto, como acaba sendo uma experiência que muda o estilo de vida da pessoa. “na volta dentro do ônibus, nossa, quanta bagunça que eu fiz, aí lembro que tava conversando com a Andréia (...) ‘no to me conhecendo, não sou eu que to aqui, se minha tivesse aqui ela ia falar que não sou eu, porque eu nunca fui assim. Ai eu comecei a conversar com ela `eu sou viúva, perdi não sei o que, tive uma depressão danada, contei que eu era muito tímida. E eu não acreditava em mim, porque eu não sentei no ônibus e todo mundo me chamava e cada vez que elas me chamavam eu já ia com brincadeira, nunca fui assim. Minha irmã é assim, minha irmã é bem 165 brincalhona e eu nunca fui assim. Sempre fui que nem ela fala: ela sempre foi o show e eu sempre fui a platéia” (ENT02) -. '', / 01 2 3 O staff são as pessoas que possuem outras funções oficiais no fã-clube (secretários, diretores de comunicação e administrativos). A “panela” são os fãs que assiduamente vão aos shows, reuniões e outros eventos organizados pelo clube. Os vizinhos são aquelas pessoas que mesmo que não de forma tão assídua como a “panela”, conseguem se encontrar e, que pelo menos, conhecem pessoalmente os membros “superiores” da estrutura do fã-clube. O conjunto deles formam um grupo muito importante, porque legitimam o código de conduta do fã-clube. O primeiro interesse destas pessoas ao procurarem o fã clube é encontrar companhia para ir aos shows. Logo após a ocorrência do processo de sacralização o fã se vê sozinho e isolado na sua devoção. Porém, o que inicialmente começou com a busca de companhia se transforma em amizades sólidas. Com a convivência, o relacionamento até então utilitário com os demais membros se transforma em afetivo. Eles aqui têm todos o mesmo status, ou seja, não desfrutam do mesmo glamour das duas celebridades, ídolo e presidente. Tornam-se companheiros não mais para o consumo exclusivo do ídolo. O intuito é diversão, na melhor representação do que HOLT (1995) metaforizou como “consumo como diversão”. Neste grupo, através da observação de uma reunião de fãs, notou-se que se encontram alguns fãs que, mesmo fazendo parte do fã-clube, não são devotos. As atividades do fã clube representam para estes uma forma a mais de lazer e se apresentam um comportamento calculado ou normativo com o cantor. Provavelmente começaram a freqüentar o fã-clube por acaso, como companhia para alguém, mas acabaram eles mesmos a desenvolver amizades com os demais 166 membros. Embora estas pessoas estejam expostas à possibilidade da sacralização do Daniel ocorrer a estas fica claro, então, que não se pode afirmar que todos os membros de fã-clubes são fãs devotos. .! Neste grupo encontram-se as pessoas que estão mais distantes dos demais, quer seja porque sua rotina, ou condição econômica, não permite o acompanhamento das atividades reais do fã-clube, ou ainda porque se localizam geograficamente muito longe de onde os outros grupos se concentram. Para eles, a procura pelo fã-clube acontece por duas razões identificadas. Principalmente para os que estão longe geograficamente dos centros urbanos, espalhados pelas diversas pequenas cidades do Brasil, o acesso à informação e fotos é sua primeira demanda. Estes fãs são devotos e estão tentando manter o status de sagrado que Daniel tem para eles. “preciso me manter informada sobre sua vida, seus shows, eventos e tudo mais. Por isto escrevo a vocês” (CAR03) “Me ajude (...), como vocês gostam do Daniel e eu também gosto, aqui onde eu moro não tem nenhum fã clube. Se vocês pudessem mandar pelo menos uma foto dele com chapéu na cabeça. Nossa, eu iria ficar muito feliz” (CAR15) Isto não significa, porém, que o principal desejo deles não seja conhecer o Daniel. O que acontece é que ao contrário dos outros dois tipos de fãs, esta é uma possibilidade muito distante, quase impossível, embora esperada. E também, estes fãs, continuam na solidão do consumo devoto individual. Nota-se o desespero de ser correspondido pela finalização comum de todas as cartas endereçadas ao fã-clube. Há sempre um pedido insistente de “retorno”, “por 167 favor”, “ansiosamente” e agradecimento antecipado pela simples possibilidade da carta estar sendo lida. Algumas cartas são endereçadas ao Daniel, mas remetidas ao fã clube. Isto mostra o quanto a fama da “segunda celebridade” também se propaga. Acreditando na proximidade da relação Daniel-presidente, estes fãs pedem a eles que entreguem suas cartas ao cantor, em mãos. E se, os grupos que convivem com os presidentes já lhe reverenciam, estas pessoas que não os conhecem, mas recebem sua atenção a partir das respostas às suas cartas, os veneram tanto quanto ao próprio Daniel. “Oi, inesquecível amiga (...). depois de eu ter passado a noite do dia 18/06/2003 cheia de dores fortes no dia seguinte eu tive um aborto de gêmios (sic), um menino, uma menina. Os dois fetos, ou seja embriões, tavam (sic) perfeitamente formados. Até o sexo a gente via bem. Quando vi, a primeira coisa que pensei comigo mesma, que veio do meu coração, foi se eles tivessem agüentado espera (sic) os últimos 4 meses que faltava (sic) para eles nascerem, eu teria colocado neles os nomes de duas pessoas que eu amo de paixão. A menina seria Adriana e o menino seria Jose Daniel” (CAR93, respectivamente se referindo a presidente do fã clube e ao cantor) 4.3.6 ANÁLISE DE DADOS EM CONJUNTO As características do comportamento próprio ao consumidor devoto verificadas neste trabalho representam mais uma evidência de que o consumo representa muito mais do que um meio de satisfação das necessidades cotidianas, assim como o objeto consumido assume funções muito maiores do que as características funcionais assumidos na sua concepção. Assim, para o fã devoto do Daniel, o seu consumo traz muito mais do que a satisfação e o lazer de ouvir música e portanto, significa 168 muito mais do que um cantor. Consumir Daniel se transforma num veículo que proporciona experiências transcendentais e, portanto, o comportamento do consumidor acaba assumindo certos aspectos religiosos. A sacralização do Daniel e todos os procedimentos para sustentá-la mostram a deferência e a dimensão espiritual que acabaram impregnando a marca. Através dos novos significados que foram dados pelos consumidores ao Daniel, a celebridade é transformada numa espécie de deus, o fã num fiel e o fã-clube em sua igreja. Esta “religião” tem pontos de contato com muitos aspectos da vida pessoal dos seus fiéis, tornando muitas vezes difícil encontrar uma linha que os separe. Esta pode ser uma das explicações do estigma da condição de ser fã. Daniel preenche tanto a vida dos fãs devotos, que para aqueles que não partilham da mesma adoração, eles são considerados todos fanáticos. O levantamento do padrão de comportamento destes fãs do Daniel sugere que o relacionamento com a marca é formado por paradoxos e sentimentos contraditórios que, ao contrário do que se poderia supor, acabam por dinamizar esta relação, reforçando estes comportamentos. Conforme demonstrado, já o início da relação é marcado, pela própria natureza particular do tipo de produto que a celebridade representa, por um conflito: do lado do consumo, o fã busca ultrapassar o limite sutil que separa pessoa da celebridade; do lado da produção, busca-se reforçar esta fronteira, para proteger principalmente a celebridade. Enquanto os produtores buscam afastar o “Daniel” do “José Daniel”, o fã tenta aproximá-los, o que o acaba levando a um comportamento ávido, às vezes compulsivo, de aproximação e obtenção de informações. O segundo conflito, agora interno do fã, está criado a partir de dois sentimentos contraditórios que o fã, notadamente do sexo feminino, nutre em relação ao Daniel: ao mesmo tempo em que ele é considerado sagrado, as fãs demonstram um grande desejo em possuí-lo. Os fãs devotos não expressam literalmente este desejo, pelo 169 contrário, tentam reconciliar-se através de um discurso amoroso, porém não erotizado, este sim permitido. A terceira dinâmica estabelecida é a busca pela singularização, resultante da assimetria da relação fã-celebridade. Ciente do caráter para-social de sua relação com o Daniel, de seu anonimato e do prosaísmo que esta condição confere à sua vida, o fã busca se evidenciar e estabelecer um relacionamento real com o ídolo. Para alguns, “conhecer” o ídolo é tirar uma foto com ele, mostrada e cultivada como prova material desta “relação”. Para outros, como os presidentes de alguns fãclubes, a relação torna-se verdadeira, quando o Daniel dá provas de reconhecimento, seja fazendo referências a situações anteriores, seja mencionando e fazendo agradecimentos ao fã-clube, ou ainda como forma mais intensa, chamando o fã pelo seu próprio nome. Quando este reconhecimento por parte do Daniel acontece, o fã desfruta um pouco da fama do Daniel, porque acaba sendo reconhecido por aquele que todos reconhecem. Estas características da relação do fã-Daniel e as suas conseqüências na caracterização do comportamento do fã devoto foram resumidas no QUADRO 8. Antecedentes Características do Fã Devoto aspecto religioso estigma de fanático confusão entre pessoa e comportamento persecutório, ávido e persona até compulsivo de aproximação relação assimétrica busca pela singularização sacralização e desejo discurso do amor não erotizado Quadro 8 – Caracterísricas do Fã Devoto Compreendidas as características e comportamentos do fã comprometido afetivamente, a importância do fã-clube fica contextualizada e torna-se passível de entendimento. As evidências coletadas sugerem que a adesão ao fã-clube do Daniel proporciona aos seus fãs já devotos: 170 1. a legitimação da condição de fã: ao se tornar um membro de fã clube, o fã confirma a seriedade de sua devoção e valida-se como “fã verdadeiro”. Ao distinguir-se dos “outros” fãs, o fã-membro liberta-se do estigma de fanático diante dos demais membros e, tão importante quanto, diante do cantor e de seu staff; 2. o locus privilegiado para a realização de procedimentos de sustentação da sacralização do cantor: individualmente as peregrinações, os sacrifícios e os rituais que alimentam o status de sagrado do Daniel são mais difíceis de serem sustentados. Assim como através da igreja, o fiel pode melhor servir ao seu deus, através do fã-clube, o fã consegue melhor servir e expressar a sua devoção ao Daniel; 3. o senso de comunidade: através dos rituais e dos sentimentos de pertencimento e de responsabilidade moral que são desenvolvidos no fã clube, o fã concilia as contradições existentes na relação para-social que tem com seu ídolo, ao estabelecerem finalmente relações reais (físicas ou virtuais) com os demais membros do fã-clube; 4. a fama: o interesse inicial do fã no fã-clube é atingir seu objetivo individual de singularização, de se fazer conhecido através do reconhecimento do Daniel. O fã-clube, que legitima, que dá massa crítica, aproxima o fã do ídolo e, portanto, serve como um veículo para se alcançar a celebridade. O fenômeno da fama permeia a relação. O fã quer ser famoso. 171 5. CONCLUSÕES 5.1 Conclusões No campo da pesquisa do consumidor, o aspecto social do consumo costuma ser tratado como uma variável moderadora do processo cognitivo individual (O´GUINN; MUNIZ, 2004). O esforço do entendimento dá-se no sentido de considerar a influência dos outros nos pensamentos e julgamentos do consumidor individual. Mais profundamente do que esta visão, surge um veio teórico acreditando que o comportamento do consumidor é formado e executado dentro de agrupamentos moldados, sancionados e fundamentados nos papéis dos relacionamentos, instituições e outras formações sociais. Baseando-se no papel fundamental atribuído às comunidades para a explicação do comportamento humano, estes teóricos buscam comprovar que o efeito recíproco existente entre comunidade e consumo é central para a total compreensão de como vivemos e por que consumimos da forma que o fazemos. Ao mesmo tempo, um outro veio teórico, representado pela antropologia do consumo, mostra que historicamente, em qualquer sociedade as “coisas” sempre tiveram um significado social. Porém, na cultura do consumo, característica da sociedade industrial ocidental, as marcas das “coisas” assumiram grande parte na representação dos significados. Assim, mesmo que num primeiro momento a formação de comunidades de marca pareça algo contraditório (afinal, as marcas representam um ícone do processo produtivo capitalista, tido como destruidor das comunidades), pela importância das marcas na vida das pessoas e pela necessidade do ser humano de se agrupar, estas comunidades de marca floresceram, evidenciaram e passaram a chamar a atenção dos mercadólogos como uma possível estratégia para obtenção do nível de lealdade mais desejado, o consumidor comprometido. 172 A estas comunidades de marca é atribuída a função de criar, manter e potencializar os elos com o consumidor e a partir daí desfrutar dos benefícios para a marca, decorrentes do comportamento do consumidor comprometido (McALEXANDER; SHOUTEN; KOENIG, 2002). O consumidor que se encontra no mais alto estágio de comprometimento afetivo com a marca, faz investimentos na relação que acabam sustentando e reforçando este comprometimento. Este consumidor foi denominado de devoto por Pimentel e Reynolds (2004). Na indústria do entretenimento, é comum observar o agrupamento de fãs devotos nos chamados fã-clubes. Como comunidades de marca que são, o objetivo principal deste trabalho foi compreender o real papel do fã-clube para o fã devoto, porque pela sua própria definição, estes consumidores já são altamente comprometidos com a marca e, portanto, para eles a comunidade de marca não representaria um antecedente para o comprometimento afetivo. De fato, o estudo levantou que o comprometimento afetivo do fã devoto se dá pelo processo de sacralização da marca que ocorre em âmbito individual. Assim, neste trabalho não se evidenciou o fã-clube como gerador do comprometimento afetivo com a marca. Este é um evento que se mostrou ocorrer anterior e independentemente da agremiação. Porém, nos limites do caso estudado, o fã-clube demonstrou ser fundamental para a manutenção e intensificação deste tipo de comprometimento. Ao representar o locus privilegiado para a realização de procedimentos de sustentação da sacralização da marca, através dos rituais, peregrinações e sacrifícios coletivos, o fã-clube mantém operante o antecedente que gerou o comprometimento afetivo deste fã. A intensificação do comprometimento através do fã-clube acontece porque ele proporciona para o fã um senso de comunidade, nutrido tanto pelos rituais como pelos sensos de pertencimento e responsabilidade moral que se estabelecem entre os membros. 173 Para as marcas, as vantagens do fã-clube encontradas são muito claras e coerentes com o teorizado. Os fã-clubes representam a marca tanto junto aos membros como às demais pessoas e instituições. Assim sendo, pela sua manifestação pulverizada, estendem a rede de relacionamentos da marca para um horizonte muito além do que ela sozinha conseguiria atingir. A marca obtém divulgação e conhecimento. Mais importante do que somente o conhecimento do nome de marca, o respeito e a fidelidade que o fã-clube nutre pela marca, fazem a divulgação ser feita em plena conformidade com os seus valores, disseminando assim também as associações da marca. O fã-clube mostra seu importante papel na valorização do brand equity porque interfere em três importantes ativos: conhecimento de marca, associações e lealdade. Com o trabalho intenso de exposição da marca, seja propagando-a, arregimentando novos fãs ou defendendo-a, os fã-clubes participam ativamente no prolongamento do ciclo de vida do produto e da marca. Podemos definir estas vantagens como uma “descentralização controlada” da administração da marca. No papel de intermediários que assumem , os fã-clubes também representam os fãs junto à marca. Assim o feedback para a empresa é altamente motivado e dado de forma mais relevante, consistente e organizada do que o retorno promovido por manifestações individuais dos fãs. Fica claro, então, que apesar das vantagens estratégicas de um fã-clube, quando criado pela empresa ele perde a característica de comunidade de marca e passa a representar mais um programa de relacionamento e fidelidade, assumindo um inerente interesse comercial. Este “clube de fãs” (ou ainda “fã clube oficial”) não demonstra funcionar plenamente como uma comunidade de marca porque uma vez que os seus significados são atribuídos pelos consumidores, a empresa não domina o processo de sacralização. O fã-clube, enquanto comunidade de marca, não pode ser criado nem gerenciado pela empresa. Porém, a empresa pode dar suporte e incentivo para que o ciclo de vida desta comunidade se prolongue. 174 O objetivo secundário deste trabalho foi chamar a atenção para as especificidades do consumo do produto celebridade, que a despeito de sua importância cultural e econômica, ainda não provocou grande interesse acadêmico. A fama, que fundamenta o consumo da celebridade, é um conceito embutido de contradição: embora vários desejem a fama (a representação de uma forma de singularização do indivíduo), e qualquer um possa conquistá-la, muitos têm que permanecer anônimos, para que poucos atinjam o estrelato. Esta contradição inicial permeia o comportamento do consumidor da celebridade e apresenta-se de forma mais explícita na consciência da existência da assimetria na relação. Ao contrário de desestimular o consumo, esta conscientização intensifica-o, porque desafia o fã a buscar formas para se singularizar e, assim, em busca do reconhecimento do ídolo desfrutar de sua fama. Neste momento o fã-clube se apresenta ao fã devoto como um meio, também contraditório, para se atingir a este objetivo individual de singularização. O fã-clube propicia massa crítica para chamar atenção do ídolo. O reconhecimento do fã-clube soa para o fã membro como um reconhecimento individual. 5.2 Limitações A maior limitação do estudo está relacionada à característica da estratégia de pesquisa utilizada, o estudo de caso, que impede qualquer tentativa de generalização dos resultados da analise aqui executada. Dentro da indústria do entretenimento o caso aqui mostrado pode ajudar na compreensão da comunidade de marca e seu papel na relação da celebridade com seus fãs e, num escopo maior, pode proporcionar insights para o estudo de comunidades de marca. Outro limitador metodológico é a escolha dos fã-clubes que serviram como unidades de análise do caso. Todos eles foram indicados pela equipe do cantor, na figura do 175 seu diretor de comunicação. Assim, limitam-se a unidades que já conseguiram o reconhecimento do cantor, o que especifica ainda mais a análise apresentada. Uma última questão se refere à limitação da visão da importância do fã clube à perspectiva do consumidor. Outros elementos da vasta rede de relacionamentos que se forma no consumo poderiam abranger a análise, a começar pelos próprios produtores da marca, gravadora, emissoras de TV e radio, entre outros. 5.3 Pesquisas Futuras Da mesma forma que nem todos os fãs devotos são membros de fã-clubes, nem todos os membros de fã-clubes são fãs devotos. Para estes fãs, o comprometimento com a marca está limitado aos níveis calculado e/ou normativo. Eles não passaram por um processo de sacralização da marca. A questão que se pode colocar é em relação ao efeito que a convivência com consumidores devotos, a participação nos rituais do fã-clube e as experiências com a marca partilhadas entre os membros provoca nestes consumidores. Estes consumidores apresentam relevância para a marca, porque mesmo não apresentado lealdade atitudinal em relação a marca, pode apresentar um elevado padrão de consumo. Uma segunda linha de investigação que este estudo levanta diz respeito a importância da variável geográfica na definição de uma comunidade de marca. Ao contrário da definição de Muniz e O´Guinn (2001) e a favor da posição de McAlexander, Schouten e Koenig (2002), as evidências deste trabalho mostraram que, embora não seja obrigatória, a localização geográfica é um importante componente do senso de comunidade. Além de melhor proporcionar a possibilidade do contato físico, o pertencimento a uma mesma localidade ajuda na criação da identidade do fã clube. Os fãs devotos membros de um fã-clube, mas que não tiveram a oportunidade de conhecer fisicamente pelo menos a figura do presidente podem constituir um bom objeto de estudo para a averiguação da importância desta variável na composição do senso de comunidade de um fã-clube. 176 Como ávidos colecionadores que são, os fãs de celebridade provavelmente são responsáveis pela maior parte do consumo dos produtos licenciados. Da mesma forma, estão muito atentos às mensagens das marcas que se associam aos seus ídolos através do endosso. Do ponto de vista gerencial, os efeitos destas atividades, licenciamento e endosso, são analisados pelos fabricantes e empresas donas das marcas respectivamente. Para a administração de uma celebridade torna-se relevante compreender se estas atividades essencialmente comerciais podem de alguma maneira profanar a marca da celebridade, abalando seu status de sagrado, e portanto, ameaçar o comprometimento afetivo do fã devoto. Uma quarta sugestão para pesquisa futura nasce da particularidade da natureza do produto celebridade. Não só pela importância do significado da fama para a nossa sociedade, mas pelo fato deste produto ser representado por uma figura humana (embora não necessariamente verdadeira) pode-se supor que o comportamento devoto seja mais fácil de ser estabelecido. Conseqüentemente, a formação de comunidades de marca em torno de celebridades, mais proliferada. Além disto as referências religiosas no trato da marca se tornam mais claras de serem entendidos. A questão que se coloca é em relação à forma com que estes sentimentos são traduzidos em categorias de produtos onde a personificação da marca não é tão natural. 177 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aaker, D. (1991). Marcas: Brand Equity gerenciando o valor da marca. São Paulo, Brasil: Negócio Editora, 1998. Aaker, J. (1997). Dimensions of Brand Personality. Journal of Marketing Research, XXXIV(august), 347-356. Adorno, T. (1971). A Indústria Cultural. In G. Cohn (org.), Comunicação e Indústria Cultural (cap.16, pp. 287-295). São Paulo: Companhia Editora Nacional-USP. Barros, S. M. (1978). Os Gaviões da Fiel: Torcida Organizada do Corinthians. RAE, 18(2), 43-46. Bars, S. (2000). Paulo Coelho: Mito e Mercado. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, São Paulo, Brasil. Belk, R. (1988). Possessions and The Extended Self. 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História do Fã Identificar o processo de sacralização - outros ídolos que - como o Daniel entrou na vida comprometimento afetivo e caracterizou - por que o Daniel o consumo devoto História do Fã Clube Identificar a importância do coletivo no - como surgiu / como ingressou consumo anterior: levou o consumidor ao - por que / mudou alguma coisa na - intensificação do consumo condição de ser fã - atividades de sustentação do sagrado - rotina e encontros (estórias do fã - consumo como integração: produção clube) e processo de singularização História da Turma do Dani Identificar a capacidade da construção - impacto para a fã no consumo do (e apropriação) de uma comunidade da Daniel marca, por parte do detentor - impacto para o fã clube no consumo do Daniel Relacionamentos - com Daniel => importância da assimetria relação consumidor-ídolo e confirmação dos antecedentes do consumo devoto e do processo de sacralização 189 - com staff (produção, bailarinos e => importância da empresa na músicos) construção da comunidade de marca - com outras fãs do mesmo fã clube => construção do PSOC - com fãs de outros fã clube => extensão da comunidade, da rede de relacionamentos e confirmação do PSOC - fãs sem fã clube => reflexão da importância do consumo coletivo - não fãs => avaliação do estigma e das conseqüentes limitações impostas Coleções Identificar processos de sacralização, - itens de poder entre os membros através das - importância simbólica posses, limites do consumo através da extensão da marca. Questões literais, para finalização da entrevista: a) O que você acha de criticas como: - a música do Daniel é ruim - ele só fez sucesso porque o João Paulo morreu O que teria que acontecer para você deixar de ser fã do Daniel? Checar defensores da marca, lealdade à marca b) Qual a importância do Daniel para sua vida c) Qual a importância do fã clube para sua vida? d) Qual a sua importância para o Daniel? e) Qual a importância do seu fã clube para o Daniel? 190 7.3 Anexo C – Exemplos de produtos licenciados com a marca Daniel Violão Chapéu Jóias Bonecos Cavalo Palhaço Goiabada Extrato de Tomate Doces Doces 191 7.4 Anexo D – Fotos de Fãs com Daniel (RTD36)