Risco e riso na crônica brasileira contemporânea: Traços de uma identidade nacional
Teresa Cristina da Costa Neves1
RESUMO: A abordagem da temática do risco sob o enfoque do riso é prática recorrente nas crônicas brasileiras
contemporâneas. Tais textos sintetizam uma tendência na qual o risco se impõe como objeto e o riso se revela
como estratégia. Sugerem ainda que, ao tornar risíveis as ameaças, os cronistas exprimem o ânimo dos
brasileiros para enfrentar aflições pessoais ou coletivas. O estudo desses relatos permitirá identificar, na
confluência entre risco e riso, aspectos culturais significativos de uma identidade nacional.
Palavras-chave: Crônica; Riso; Risco; Identidade.
O exercício da crônica permite ao prosador ser poeta,
ao jornalista ser filósofo, ao contador de casos ser
historiador, ao escritor trágico ser cômico, e assim por
diante. (William Valentine Redmond)
Influenciado pelos sentimentos de solidariedade e confraternização suscitados pelo
espírito de Natal, Luis Fernando Verissimo (2008, p. 47-48), em sua crônica Definições,
indaga: “Como seria se, em vez do exemplo de Cristo, nos defrontássemos com uma
emergência definidora de caráter? Como o anúncio de que um asteróide iria se chocar com a
Terra, e não houvesse nada a fazer para evitar o fim?” Neste caso, raciocina o cronista,
seríamos a primeira geração do planeta a viver com a certeza pré-calculada de seu fim – “e a
última, claro”.
No texto, o autor se dedica a confrontar possibilidades antagônicas para nosso
comportamento diante do suposto fim iminente:
Nos convenceríamos, finalmente, de que somos uma única espécie frágil num planeta precário
e viveríamos nossos últimos anos em fraternidade e paz ou reverteríamos ao nosso cerne básico
e calhorda, agora sem qualquer disfarce? Nos tribalizaríamos ainda mais ou descobriríamos
nossa humanidade comum, e como eram ridículas as nossas diferenças? [...] Perderíamos todo
interesse nos prazeres da carne e trataríamos de salvar nossa alma ou, pelo contrário, nos
entregaríamos à lascívia, ao deboche e à gula, pagando tudo com cheque? (VERISSIMO, 2008,
p. 47-48)
Ao considerar a hipótese de haver “foguetes salvadores e bases na Lua e em Marte
esperando os sobreviventes”, cogita quem seriam os escolhidos numa eventual fuga do
1
Doutoranda do PPG Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFJF; Professora adjunta do
Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFJF
“planeta condenado”. Concorda que uma “natural hierarquização” incluiria os fortes e férteis,
em benefício da continuidade da espécie. Também médicos e técnicos, por razões óbvias, bem
como empreendedores, em prol dos negócios. Mas não abre mão: na lista de passageiros desta
última viagem teriam de estar “cronistas de meia-idade (ou, vá lá, dois terços de idade), sem
dúvida”. E justifica: “A humanidade precisa de cronistas, para lhe explicar seu destino
desconhecido e distraí-la. [...] Cronistas são indispensáveis! Ou então espero que aceitem
reais.”
Já em Grande qualidade de vida, João Ubaldo Ribeiro (2009) se diz “um dos sujeitos
mais ameaçados” que conhece, confessando-se em dúvida sobre a “considerável melhora da
qualidade de vida” que – asseguram – vem experimentando. Sua suspeita advém das
“providências” que o fazem tomar e das “violências” que é obrigado a cometer contra si
mesmo.
Antes eu comia do que gostava. [...] Meus avós, todos mortos depois dos noventa [...], comiam
banha de porco e torresmo regularmente. [...] Depois disso, [...] fulminaram o leite [...]. O ovo
sofreu ataque violentíssimo, assim como o açúcar [...]. Claro, mudaram de ideiaa respeito do
ovo recentemente, mas a mudança de ideia deles só pode ser vista com desconfiança.
(RIBEIRO, 2009)
A lista de restrições prossegue: “Melhor, na verdade, abolir manteiga inteiramente.
[...] Carne vermelha é uma abominação. Carne de porco é um terror. [...] Sorvete? Só para
crianças, e crianças de pais irresponsáveis.” Sobre o “infeliz consumidor” de peixe grelhado
paira a “ameaça” de que o produto esteja contaminado. Mesmo comendo “um peito de galinha
sem uma gota de gordura” e acompanhado somente de legumes, “o infeliz se arrisca”. O
cronista lamenta que até sua pressão arterial, antes considerada boa para sua idade, agora é
alta, “e o pessoal dos 12 por 8 já começa a entrar na faixa de risco”.
Mas, aqui entre nós, se vocês no futuro virem um gordão tomando caldinho de feijão com
torresmo no boteco, depois de um chopinho, [...] talvez seja eu [...]. Tanto eu quanto vocês
vamos morrer [...], mas vocês [...] vão ter uma ótima qualidade de morte, falecendo em perfeita
saúde e eu lá, no meu velório, com um sorriso obeso e contente no rosto dissoluto. (RIBEIRO,
2009)
Millôr Fernandes (2008), por sua vez, trata das “mágoas e dores” humanas em O
Banheiro. Em suas palavras: “Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade
desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta, só o banheiro é um recanto livre, só essa
dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranqüilidade.”
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Na versão do cronista, tendo se dado conta da falta de espaços livres, particulares e
públicos, onde possa se proteger da “fúria destrutiva da proximidade forçada” de seus
semelhantes, o homem civilizado se desesperou. Só recobrou “um instante de calma no dia
em que de novo descobriu seu santuário” dentro da própria casa. “Se não lhe batem à porta”,
ali, no banheiro,“tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere,
assalta”.
O chefe da casa, por exemplo, “examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil,
verifica o grau de sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar
definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num
mundo encharcado de instabilidades”. A filha adolescente verifica certo detalhe físico, motivo
de comentário ouvido na rua “com um misto de medo e desprezo”. A dona de casa, mãe de
família, “pode amargurar-se até os soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e
tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os outros misteriosos e
distantes seres que vivem no mesmo lar”.
Se o banheiro é “o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem
moderno”, Millôr roga a Deus que “Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo
também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais
gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento da solidão ocasional”. Afinal, é aqui,
“neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo
tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade”, que a atual civilização “encontrará sua
máxima expressão, seu último espelho que é o propriamente dito”.
Os três textos e seus autores servem de ilustração ao que parece ser uma prática
recorrente nas crônicas brasileiras contemporâneas: a abordagem da temática do risco sob o
enfoque do riso. Sintetizam uma tendência na qual o risco se impõe como objeto e o riso se
revela como estratégia. Sugerem ainda que, ao tornarem a ameaça risível, os cronistas
exprimem nosso ânimo para enfrentar aflições pessoais ou coletivas.
Se a crônica é “por definição um texto datado”, que “consegue sobreviver [...] como
gênero” estando “vinculada a um tempo” (CONY, 2008), presta-se então a pôr em evidência
aspectos culturais relevantes de uma dada sociedade em determinado momento. E se suas
manifestações, no Brasil de hoje, enlaçam risco e riso, é provável que nesta confluência
residam traços de nossa condição atual. Investigar, portanto, por meio da expressão de seus
cronistas, como e por que os brasileiros riem dos perigos que os cercam é conduta pertinente
para melhor compreender características distintivas de uma identidade nacional.
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1. Justificativa
O riso sempre foi um dos enfoques mais reveladores do homem exatamente pelos
vínculos estreitos que mantém com seus desejos, sonhos e temores. Ainda que possam ter sido
múltiplas suas atribuições em diferentes momentos da trajetória humana, uma de suas funções
mais frequentes tem sido afugentar o medo, o pavor e o conflito, especialmente em períodos
de crise e transição. Serve assim como válvula de escape, alívio, catarse. A sátira romana
caçoou dos costumes; a paródia medieval tornou mais tolerável as aflições da Idade Média; a
comicidade renascentista traiu a ambigüidade humana entre o fascínio por novas
possibilidades e a incerteza diante da perda de referências. Ao longo do século XIX o riso
alcançou progressivo prestígio; no século XX generalizou-se e invadiu diferentes esferas da
vida.
Se o obscurantismo medieval rechaçou o riso, nosso tempo o tornou respeitável e
popular. Se sua capacidade de abalar o poder já era conhecida, hoje se evidencia também sua
habilidade em ocultar formas de dominação, porque estas dele se apoderaram. A Igreja, a
política, os meios de comunicação se apropriaram do cômico, destituindo o riso de sua
autenticidade e o aprisionando num disfarce onipresente. Rir é agora uma aptidão
indispensável; levar-se muito a sério se tornou conduta inconveniente.
Admitir certa preponderância imprescindível do riso na vida contemporânea não
significa, porém, destituí-lo de sua função crítica ou engajada. Denota, sim, o necessário
reconhecimento da complexidade do universo que o envolve, especialmente quando se almeja
entender sua conexão com outra particularidade inescapável de nosso tempo: viver em
condições de risco. E se nos dias que correm o riso se faz tão essencial é porque sua feição
contemporânea atribuiu-lhe um novo papel, o de prestar-se à constatação de nossa impotência.
Sentimo-nos impotentes, cotidiana e permanentemente, por força da desproporção
verificada
entre
nossas
responsabilidades
objetivas
–
socialmente
solicitadas
e
circunstancialmente exigidas – e aquelas que estamos efetivamente aptos a aceitar, assumir e
praticar. O princípio da interdependência, que rege as relações contemporâneas globalizadas,
faz de cada um de nós, queiramos ou não, objetivamente responsável por todos os outros.
Ocorre, contudo, que as ações possíveis (quase sempre solitárias e empreendidas de maneira
isolada) e as ferramentas disponíveis (com freqüência, adquiridas e operadas de modo
individual) são recursos inadequados para lidar com conjunturas constantemente instáveis e
produzidas por forças que transcendem nossa compreensão e nossa capacidade de atuar.
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Responsabilidade e impotência compõem, portanto, o estatuto paradoxal da existência
humana na atualidade. A ambígua combinação entre práticas locais e implicações globais
envolve contraditoriamente o poder e a incapacidade de agir e tomar decisões.
A única certeza possível é a de que estamos compelidos a viver em situações de risco.
Riscos que não escolhemos correr e que, em muitos casos, estão fora de nosso controle. Não
há quem possa ser chamado para pôr as coisas em ordem. A intensidade dos perigos, a
dimensão presumível de suas conseqüências e a hipótese de que seja baixa a probabilidade de
sua ocorrência despertam em nós um senso de destino. E a idéia de destino refere-se menos à
natureza peculiar de seus golpes e mais à incompetência humana em antecipá-lo, que dirá
dominá-lo.
Curiosamente, a sensação de que as coisas vão seguir, de qualquer forma, o próprio
curso reaparece num mundo que um dia, animado por ideais iluministas, se julgou capaz de
assumir domínio racional sobre si mesmo. Ironia do destino humano que se faz risível por sua
incongruência, insubmissão, sua feição aflitiva e trágica. E se o risco pode ser traduzido em
cômico no limite de sua tragicidade, como sugerem as crônicas inicialmente mencionadas, é
possível que se situe aí sua interseção com o riso.
Com efeito, o cômico apresenta em sua estrutura um caráter eminentemente dialético. Ele
inclui o trágico e se define dialeticamente por seu intermédio. Nas situações de comicidade, a
conduta resultante é uma síntese e uma superação desses contrários. Há sempre um misto de
alegria e tristeza no cômico e no risível. (MENEZES, 1974, p.11)
Na intenção de delimitar tal confluência por meio do estudo das crônicas brasileiras
contemporâneas, cabe então indagar que riscos nos mobilizam e nos fazem rir segundo a
percepção de nossos cronistas? Como se relacionam em suas escrituras os diferentes tipos de
risco e as diversas expressões do riso? Como se articulam nos textos os traços globais e as
marcas locais do risco e do riso? Que características distintivas podem aí ser observadas como
definidoras de uma identidade nacional?
Gênero híbrido entre a literatura e o jornalismo que assume características peculiares
no Brasil, a crônica distingue-se, afinal, como lugar privilegiado para a investigação das
interfaces presentes em nossas práticas culturais. Modalidade jornalística prestigiada ou
categoria literária “menor”, ela se oferece como espaço de mediação entre o registro do
comportamento coletivo e a recriação artística de tais experiências. Permite, deste modo, a
revitalização do debate em torno dos vínculos entre o sujeito da criação literária e as
complexas relações interindividuais que se exprimem por seu intermédio.
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2. Objetivos
Em termos gerais, pretende-se (1) estudar a temática do risco sob o enfoque do riso em
crônicas contemporâneas brasileiras e (2) distinguir na produção de nossos atuais cronistas
traços de uma identidade nacional.
São ainda propósitos específicos do estudo (1) reconhecer risco e riso como noções
características e definidoras da vida contemporânea; (2) compreender a crônica como gênero
literário-jornalístico adequado à manifestação de práticas culturais; (3) identificar a temática
do risco em convergência com a abordagem do riso nas atuais crônicas brasileiras; (4)
pesquisar as articulações entre as múltiplas espécies de risco e as variadas expressões do riso
na produção atual de cronistas brasileiros e (4) investigar, nas crônicas a serem estudadas,
traços globais e marcas locais do risco e do riso capazes de estabelecer vínculos identitários
de nacionalidade.
3. Referencial teórico
Em princípio, o conceito de risco pode parecer desvinculado de qualquer importância
peculiar para o nosso tempo em comparação a períodos precedentes. Afinal, os seres humanos
sempre tiveram que se defrontar com adversidades ou acontecimentos casuais. Entretanto,
culturas anteriores não se valeram da noção de risco. Na civilização romana, na China
tradicional ou na Idade Média, as percepções de destino, sorte ou vontade dos deuses foram
usadas em circunstâncias nas quais hoje tendemos a utilizar a concepção de risco. De acordo
com Giddens, só se tem notícia de uma ampla utilização do vocábulo em sociedades
orientadas para o futuro, ou seja, aquelas que encaram o tempo vindouro como um território a
ser conquistado.
As culturas tradicionais não tinham um conceito de risco porque não precisavam disso. Risco
não é o mesmo que infortúnio ou perigo. Risco se refere a infortúnios ativamente avaliados em
relação a possibilidades futuras. [...] O conceito de risco pressupõe uma sociedade que tenta
ativamente romper com seu passado – de fato, a característica primordial da civilização
industrial moderna. (GIDDENS, 2007, p. 33)
Embora desde o advento da Modernidade a idéia de risco sempre estivesse presente, é
no momento atual que esta noção assume relevância original e específica. Se o pensamento
moderno supôs que o risco se configuraria como um modo de regular e normatizar o futuro,
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submetendo-o ao domínio humano, hoje “vivemos num mundo em que os perigos criados por
nós mesmos são tão ameaçadores, ou mais, quanto os que vêm de fora”. (GIDDENS, 2007,
pp. 37, 48)
Nosso tempo não é mais perigoso nem arriscado que o das gerações que nos
antecederam. Tampouco é provável que nossa insegurança derive de uma escassez de
proteção, na medida em que herdamos um universo social organizado de modo a perseguir
incessantemente proteção e segurança. Para Bauman, a aguda e irremediável experiência de
insegurança é um “efeito colateral” da convicção moderna de que, empenhadas as habilidades
corretas e aplicado o esforço conveniente, será possível se obter segurança. Se não é assim,
deve haver um vilão, “um ato iníquo com intenção maldosa” capaz de explicar esta falha.
Podemos afirmar que a variedade moderna de insegurança é caracterizada distintamente pelo
medo da maleficência e dos malfeitores humanos. Ela é desencadeada pela suspeita em relação
a outros seres humanos e suas intenções, e pela recusa em confiar na constância e na
confiabilidade do companheirismo humano, e deriva, em última instância, de nossa inabilidade
e/ou indisposição para tornar este companheirismo duradouro e seguro, e portanto confiável.
(BAUMAN, 2007, p. 63)
Ao substituir os vínculos inter-humanos naturais de parentesco e vizinhança por
equivalentes artificiais, unificados por interesses compartilhados e rotinas comuns, a
Modernidade nos levou a crer que a solidariedade triunfaria sobre a pertença como principal
defesa contra um destino cada vez mais arriscado. Sob a pressão de forças globais
irrefreáveis, porém, as proteções modernas artificialmente geridas foram atenuadas, desfeitas
ou afastadas, sem que novas formas sociais estivessem aptas a assumir seu lugar. A tarefa de
lidar com as incertezas é, assim, amplamente deixada a diligência e sagacidade individuais. À
maior liberdade de escolha corresponde a crescente obrigação em optar por um estilo de vida
capaz de garantir a própria segurança.
Paulo Vaz (2008) considera que este intervalo corresponde à passagem da sociedade
disciplinar, descrita por Michel Foucault, para uma sociedade “de controle ou da fragilidade”,
na qual a norma (ao mesmo tempo uma regularidade observada e um regulamento proposto) é
substituída pelo risco, conceito primário com base no qual se estabelece a relação do
indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Já Bauman (2008, p. 18) lembra
que riscos são perigos “cuja probabilidade podemos (ou acreditamos poder) calcular”; assim
definidos, são “o que há de mais próximo da (infelizmente inatingível) certeza”. Cientes dos
perigos envolvidos em nossas escolhas, nos damos conta de que a virtude que melhor pode
servir a nossos interesses, agora, não é a conformidade às regras, que, afinal, são poucas e
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contraditórias. A aptidão que mais nos será útil é a flexibilidade, ou seja, a presteza em mudar
subitamente de tática e estilo, a agilidade em abandonar compromissos e lealdades, para
perseguir oportunidades mais convenientes detectadas numa dada conjuntura.
Nessa perspectiva não surpreende que o risco tenha se revestido de comicidade nos
dias de hoje. Ao estudar o malogro da vontade humana como expressão do risível, Propp
(1992, p. 177) diz que “o riso nasce quando a vontade passa a ser de repente menosprezada e
derrotada e quando esta derrota se torna visível a todos através de sua projeção exterior”.
Deste modo, tanto “será cômico um revés nas coisas miúdas do dia-a-dia do homem,
provocado por circunstâncias banais”, quanto aquele causado por circunstâncias externas que
revelem mesquinhez, mediocridade ou egoísmo. Nesse caso, conforme o autor, não existe
“qualquer mescla de tristeza”, há antes “certa parcela de alegria maldosa”, posto que este
último tipo de revés “possui um caráter de punição merecida”. Mesmo no caso em que
aparentemente não haja culpa, o revés é justamente provocado por “uma falha de previsão e
de espírito de observação, pela incapacidade de orientar-se na situação, o que leva ao riso
independentemente das intenções”. (PROPP, 1992, p. 94-95)
Tendo se dedicado a investigar o riso na história do pensamento, Verena Alberti
(2002, p. 30) constata que “há, no campo das ciências humanas, toda uma série de estudos, ao
mesmo tempo empíricos e teóricos, que investigam o riso e o risível em relação à vida social e
à linguagem”. Nestes casos, nos quais se leva em conta um sistema, uma ordem ou uma
norma, “o lugar do riso é em geral o da desordem ou da transgressão”. No âmbito das ciências
sociais, por exemplo, nota-se a reiteração da índole transgressora do riso, embora se trate de
uma violação concedida: “ao riso e ao risível seria reservado o direito de transgredir a ordem
social e cultural, mas somente dentro de certos limites”. Percebe-se aí uma dupla face do riso.
Por um lado, a ligação do riso com o espaço da desordem tem como conseqüência o fato de a
transgressão tornar-se, ela também, uma norma. [...] Por outro, observa-se que o
posicionamento do riso ao lado da desordem confere-lhe um valor de liberdade, de purgação
quase, em relação às coerções sociais. (ALBERTI, 2002, p. 31)
Alberti (2002, pp. 201-2) conclui, contudo, que o riso, tal como compreendido
contemporaneamente, “é o que nos faz ver o mundo com outros olhos, [...] o que permite
ultrapassar os limites do pensamento sério”. De acordo com tal entendimento, rimos “do
desconhecido, da surpresa, daquilo que inverte subitamente as concepções estáveis do
mundo”, pois o desvio da ordem nos revela o “outro lado” do ser.
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[...] o desconhecido faz rir. Faz rir por passar muito bruscamente, repentinamente, de um
mundo onde cada coisa é bem qualificada, onde cada coisa é dada em sua estabilidade, em uma
ordem estável em geral, para um mundo onde de repente nossa segurança cai por terra, onde
percebemos que essa segurança era enganadora e que, lá onde havíamos acreditado que toda
coisa era estritamente prevista, ocorreu o imprevisível, um elemento imprevisível e
arrebatador, que nos revela, em suma, uma verdade última: que as aparências superficiais
dissimulam uma perfeita ausência de resposta à nossa expectativa. (BARTAILLE apud
ALBERTI, 2002, p. 201)
Se, como afirma Propp (1992, p. 192), o riso tem o caráter de uma explosão e se um de
seus princípios é a brevidade como norma de natureza artística, então podemos considerar
que, em virtude da força de seu laconismo, a crônica é espaço potencialmente oportuno para a
expressão do risível. Além disso, se há no riso, conforme acentua Propp (1992, p. 32),
“diversidades nacionais historicamente determinadas”, a crônica – especialmente em sua
modalidade satírico-humorística, de acordo com a classificação proposta por Beltrão (1980) –
é “um modo genuinamente brasileiro de perceber e representar a realidade”. (PINTO, 2007, p.
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Como manifestações culturais, as crônicas são capazes de “produzir sentidos sobre „a
nação‟, [...] com os quais podemos nos identificar” (HALL, 2002, 51), construindo, assim,
identidades. Permitem também ser compreendidas como “parte do estoque de respostas
„locais‟ que a sociedade foi capaz de formular para lidar com problemas globais e universais
que lhe foram impostos”. (BARBOSA, 2006, p. xxi) Para Manuel da Costa Pinto, a escrita em
“tom menor” da crônica relaciona-se com certa auto-imagem do Brasil, visto como país
periférico, “apartado das grandes questões ocidentais” e “filho ilegítimo da civilização
européia”.
Neste contexto, a crônica aparece como o lado positivo de nossa problemática identidade
nacional: a uma realidade apequenada, sem alcance ou possibilidade de utopia, corresponde um
gênero que dá cor e forma às miudezas da vida cotidiana, que encontra no humor, no deboche e
na banalidade uma expressão saudável dessa informalidade social [...]. Ironicamente, portanto,
a crônica surge de uma espécie de complexo de inferioridade da sociedade e da literatura
brasileiras, para se transformar num gênero autenticamente brasileiro, com um acervo de textos
cuja riqueza poucas potências literárias conseguiram acumular. (PINTO, 2007, p. 10)
RÉSUMÉ: L'approche de la thématique du risque sous l´éclairage du rire devient de plus en plus courante dans
les chroniques brésiliennes contemporaines. Ces textes font le point de la tendance à imposer le risque comme
objet aussi bien qu´à révéler le rire comme stratégie. Tout en rendant risible ce que nous accable, les
chroniqueurs expriment l´hardiesse des Brésiliens face à des chagrins affligeants. L`étude de ces récits qui
misent sur la jonction du risque au rire, mettra en évidence des aspects culturels significatifs d´une identité
nationale.
Mots-clé: Chronique; Rire; Risque; Identité.
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Referências
ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2006.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
______. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980.
CONY, Carlos Heitor. A crônica como gênero e como antijornalismo. Disponível em:
<http://www.saa.com.br/quadro/ponto/cronica.htm>. Acesso em: 27 ago. 2008.
FERNANDES,
Millôr.
O
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Disponível
em:
<http://www2.uol.com.br/millor/aberto/textos/005/003.htm>. Acesso em: 02 set. 2008.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Trad.
Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
RIBEIRO,
João
Ubaldo.
Grande
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vida.
Disponível
em
<http://br.geocities.com/dinesil/jur/2003/20030706-grande_qualidade_de_vida.html>. Acesso em 12 ago.
2009.
MENEZES, Eduardo Diatay B. de. O riso, o cômico e o lúdico. In: Revista de Cultura Vozes,
ano 68, vol. LXVIII, nº 1, p. 5-16. Petrópolis; RJ: Vozes, janeiro-fevereiro 1974.
PINTO, Manuel da Costa. Crônica, o mais brasileiro dos gêneros literários. In: ______ (org).
Antologia de crônicas: crônica brasileira contemporânea. São Paulo: Moderna, 2005, p. 7-13.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fortoni Bernardini, Homero Freitas de
Andrade. São Paulo: Ática, 1992.
VAZ, Paulo. Corpo e risco. Disponível em <http://www.ipv.pt/forumedia/fi_4.htm>. Acesso
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VERISSIMO, Luis Fernando. Definições. In: ______. O mundo é bárbaro e o que nós temos a
ver com isso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 47-48.
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