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Apostila n.º 01 de Histórias
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Histórias
A Carta ............................................................................................. 3
A Casa que João Construiu ............................................................... 5
A Centopéia que Sonhava ................................................................ 7
A Flor da Honestidade ................................................................... 11
A Loucura ....................................................................................... 13
A Menina que não era Maluquinha ............................................... 15
A Moça Tecelã ............................................................................... 17
A Ratoeira ...................................................................................... 20
A Volta ........................................................................................... 22
Amigos ........................................................................................... 24
Brincadeira..................................................................................... 28
Cachorro Velho .............................................................................. 31
Chapeuzinho Amarelo.................................................................... 33
Classificados ................................................................................... 37
Cornita ........................................................................................... 40
Dois mais Dois. ............................................................................... 43
Estragou a Televisão ...................................................................... 45
Estrelas em Greve .......................................................................... 48
Graças ao Menino!......................................................................... 50
Mãe Executiva ............................................................................... 53
Mineirinho dando Má Notícia ........................................................ 55
Nomes ........................................................................................... 56
O Cego e o Caçador........................................................................ 59
O Homem Trocado......................................................................... 63
O Homem, seu Filho e o Burro ....................................................... 65
O Lixo ............................................................................................. 66
O Rei dos Animais .......................................................................... 70
Pai não entende nada .................................................................... 72
Pânico ............................................................................................ 73
Peça Infantil ................................................................................... 76
Pneu Furado .................................................................................. 79
Prova Falsa ..................................................................................... 80
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A CARTA
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
Esta outra história é de dois namorados, ele chamado Haroldo e ela, por
coincidência, Marta. Os dois brigaram feio, e Marta escreveu uma carta
para Haroldo, rompendo definitivamente o namoro e ainda dizendo uma
verdade que ele precisava ouvir. Ou, no caso, ler. Mas Marta se
arrependeu do que tinha escrito e no dia seguinte fez plantão na calçada
em frente do edifício de Haroldo, esperando o carteiro. Precisava
interceptar a carta de qualquer jeito. Quando o carteiro apareceu, Marta
fingiu que estava chegando ao edifício e perguntou:
- Alguma coisa para o 702? Eu levo.
Mas não tinha nada para o 702. No dia seguinte tinha, mas não a
carta de Marta. No terceiro dia, o carteiro desconfiou, hesitou em
entregar a correspondência a Marta, que foi obrigada a fazer uma
encenação dramática. Não era do 702. Era a autora de uma carta para o
702. E queria a carta de volta. Precisava daquela carta. Era
importantíssimo ter aquela carta. Não podia dizer por quê. Afinal, a carta
era dela mesma, devia ter o direito de recuperá-la quando quisesse! O
carteiro disse que o que ela estava querendo fazer era crime federal,
mas mesmo assim olhou os envelopes do 702 para ver se entre eles
estava a carta. Não estava. No dia seguinte – quando Marta ficou
sabendo que o carteiro se chamava Jessé e, apesar de tão jovem, já era
viúvo, além de colorado – também não. No outro dia também não, e o
carteiro convidou Marta para, quem sabe, um chope. Na manhã depois
do chope, a carta ainda não tinha chegado e Marta e Jessé combinaram
ir ver Titanic juntos. No dia seguinte – nem sinal da carta – Jessé
perguntou se Marta não queria conhecer sua casa. Era uma casa pobre,
morava com a mãe, mas, se ela não se importasse... Marta disse que ia
pensar.
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No dia seguinte, chegou a carta. Jessé deu a carta a Marta. Ela
ficou olhando o envelope por um longo minuto. Depois a devolveu ao
carteiro e disse:
- Entrega.
E, diante do espanto de Jessé, explicou que só queria ver se tinha
posto o endereço certo.
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A CASA QUE JOÃO CONSTRUIU
Conto Popular francês
(Ideal para improviso com fantoches e bonecos)
Esta é a casa que o João construiu.
Este é o queijo que estava na casa que o João construiu.
Este é o rato, que comeu o queijo que estava na casa que o João
construiu.
Este é o gato, que pegou o rato que comeu o queijo que estava na casa
que o João construiu.
Este é o cão, que perseguiu o gato que pegou o rato que comeu o queijo
que estava na casa que o João construiu.
Esta é a vaca do chifre quebrado, que bate no cão ,que persegue o gato,
que pegou o rato,que comeu o queijo que estava na casa que o João
construiu.
Esta é a menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do chifre
quebrado, que bateu no cão, que perseguiu o gato que pegou o rato que
comeu o queijo que estava na casa que o João construiu.
Este é o rapaz esfarrapado, que beijou a menina do cabelo trançado que
tira leite da vaca do chifre quebrado,que bateu no cão,que perseguiu o
gato que pegou o rato que comeu o queijo que estava na casa que o
João construiu.
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Este é o padre da igreja ao lado, que casou o rapaz esfarrapado com a
menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do chifre quebrado,
que bate no cão, que persegue o gato que pegou o rato que comeu o
queijo que estava na casa que o João construiu.
Este é o galo do canto desafinado, que acordou o padre da igreja ao
lado, que casou o menino esfarrapado com a menina do cabelo
trançado, que tira leite da vaca do chifre quebrado, que bate no cão que
perseguiu o gato que pegou o rato que comeu o queijo que estava na
casa do João.
Este é o fazendeiro que cuida do roçado para alimentar o galo do canto
desafinado, que acordou o padre da igreja ao lado, que casou o menino
esfarrapado com a menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do
chifre quebrado, que bate no cão que perseguiu o gato que pegou o rato
que comeu o queijo que estava na casa do João. Este é o João que
depois de tanta confusão cumprimenta a todos com muita satisfação.
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A CENTOPÉIA QUE SONHAVA
Autor Desconhecido
(Para uma, duas ou mais pessoas / Para crianças / Aceita fantoches e bonecos)
Personagens:
- A Centopéia.
- Andorinha / peixinho / curió / macaco.
Lá ia a centopéia pensando com seus botões.
―Mas que vontade de voar‖, pensou, ao ver a andorinha lá no alto.
―Mas que vontade de nadar‖, pensou ela, quando viu o peixinho
vermelho fazer maravilhas dentro da água.
―E cantar como o curió, que dobra suas notas que é uma beleza!‖
―É, mas centopéia não voa, não nada e nem canta‖, concluiu com
tristeza. ―Tenho que me conformar e ficar andando com minhas cem
perninhas e ainda achar bom‖.
Aí ouviu uma vozinha que chegava do alto de uma árvore. Era a
andorinha, que lhe disse:
– Dona Centopéia, estou vendo que a senhora tem vontade de
voar.
– É verdade — respondeu –, mas não posso, não tenho asas, só tenho
perninhas, que servem para andar mas não para voar.
– Mas a senhora pode voar comigo, nas minhas costas!
– Será mesmo que posso realizar esse sonho, ir lá em cima, nas nuvens,
ver tudo do alto?
– É claro que pode, venha!
Mais que depressa a centopéia subiu nas costas da andorinha,
que saiu voando. Em poucos instantes já estava lá no alto. Era uma
maravilha ver tudo ficar pequeno ali embaixo. Como o mundo era grande
lá de cima, e bonito, azul, e que ventinho gostoso ela sentia. Nem teve
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medo, de tão animada que estava com a experiência. ―Devo ser a
primeira centopéia do mundo a voar‖, pensou ela com suas perninhas.
– Vamos descer, dona Andorinha, é emoção demais. E desceram.
– Quando quiser voar de novo é só falar — disse a andorinha, e
sumiu no céu como um raio.
―Voar foi possível‖, pensou a centopéia. ―Mas nadar não tem jeito, aí só
sendo peixe mesmo.‖ Ela, então, ouviu outra vozinha que vinha da água.
– Ei, dona Centopéia, a senhora tem vontade de nadar? Ir lá no
fundo e descobrir um outro mundo colorido?
– Mas como, seu Peixinho? Será possível? Não vou morrer afogada?
– Não — disse o peixinho – a senhora sobe nas minhas costas, se
agarra direitinho e prende a respiração por uns minutos. Boca
fechada e olhos bem abertos. Vai dar certo. — E deu mesmo.
A centopéia subiu nas costas do peixinho, prendeu a respiração e… foi
outra maravilha! Como era bonita a água azul, limpa, cheia de outros
peixinhos coloridos.
A centopéia levou um susto enorme quando apareceu um peixão. ―E se
ele pensar que sou uma minhoca?‖ Mas não pensou. Nadar era uma
maravilha. A vida debaixo da água é outra coisa. Mas só para quem
consegue prender a respiração por bastante tempo, e ela já estava aflita
para subir. E subiram.
– Obrigada, seu Peixinho, foi uma beleza!
– Quando quiser nadar de novo é só falar — disse o peixinho – Mas
tenho outra surpresa para a senhora.
O peixinho pegou uma conchinha, amarrou num barbante fino e disse:
– Suba, dona Centopéia, vamos correr por cima da água! — E saiu
nadando, puxando a centopéia a uma velocidade incrível. Foi o máximo!
É, a coisa estava ficando boa. Ela, uma simples centopéia, já havia
voado e nadado, e não tinha asas nem era peixe!
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Mas cantar como o curió, isso sim que não podia nem deveria haver
jeito. Não tinha voz, não sabia produzir uma melodia. Mas de novo a
centopéia ouviu uma voz, que desta vez vinha lá do alto de uma
laranjeira. Era o curió, que dizia:
– Olha, dona Centopéia, cantar a gente aprende. Tem gente que
sabe educar a voz e canta que é uma beleza. Mas eu tenho uma
coisa melhor que cantar: é tocar uma flautinha.
– Como pode ser isso, seu Curió?
– Eu faço uma flauta de bambu bem feitinha, ensino as notas para a
senhora e aí podemos tocar e cantar juntos.
– Essa eu nem acredito.
– Mas vai acreditar.
E o curió fez uma flautinha com um som muito doce e bonito. A
centopéia ficou tão entusiasmada com as aulas que aprendeu logo. Ela
tocava bonito, e todos os bichos da floresta iam ouvir a centopéia
flautista.
A centopéia agora tinha um último desejo: pular de galho em galho lá no
alto das árvores da floresta. Mas como, se não conseguia nem dar uns
saltinhos aqui na terra? Foi quando chegou o macaco, com um riso bem
esperto nos lábios.
– Se a senhora quiser saltar, é só subir aqui nas minhas costas e se
segurar bem.
– Claro que quero! Vai ser muito divertido ir saltando por aí de galho em
galho!
E foi uma algazarra. O macaco pulando, gritando e rindo, com a
centopéia agarradinha nas suas costas. Parecia um circo, o macaco era
mestre no salto.
A noite foi chegando e a centopéia estava muito feliz com todas as
aventuras daquele dia. De repente se deu conta do que havia
acontecido: ela não sabia que tinha tantos amigos na floresta e que tudo
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o que ela não conseguia fazer sozinha ela podia fazer com a ajuda dos
outros bichos. Podia voar sem ser pássaro, nadar sem ser peixe, cantar
sem ter voz e pular sem ter pernas e braços de macaco.
– Quem tem esses amigos pode tudo — concluiu ela. — Juntos vamos
muito longe!
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A FLOR DA HONESTIDADE
Autor Desconhecido
(Para uma pessoa)
Há muito, muito tempo, um príncipe de um grande país, em vésperas de
ser coroado imperador, precisava se casar para cumprir a lei.
Resolveu, então, escolher uma entre todas as jovens da corte e do país.
Anunciou que receberia numa celebração especial todas as pretendentes e
que lançaria um desafio.
Uma mulher, serva do palácio havia muitos anos, ouviu comentários acerca
dos preparativos da festa e deixou cair uma lágrima. Conhecia bem o amor que a
sua filha tinha pelo príncipe.
Quando, em casa, contou para a filha a novidade, surpreendeu-se com a
reação.
– Minha filha querida, que vai lá fazer? Estarão presentes as mais belas e
ricas jovens da corte. Não transforme o seu sofrimento em loucura.
Mas a filha respondeu:
– Não, mãe, não sofro nem estou louca. Sei que jamais poderei ser a
escolhida, mas assim terei oportunidade de ficar, pelo menos alguns momentos,
perto do príncipe. E isso já me torna feliz.
Na noite marcada, chegou ao palácio. O brilho das luzes não conseguia
ofuscar os vestidos, as jóias e os penteados das pretendentes.
O príncipe não demorou a lançar o desafio:
– Darei a cada uma de vocês uma semente. Aquela que, dentro de seis
meses, me trouxer a mais bela flor será minha esposa.
O tempo passou. A jovem não tinha muita habilidade na arte da
jardinagem, mas cuidava da sua semente com paciência e ternura. Sabia que, se
a beleza da flor surgisse na mesma medida do seu amor, não precisaria se
preocupar com o resultado.
Mas passaram três meses e nada surgiu; seis meses, e a semente não se
transformou em flor…
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Mesmo assim ela voltou ao palácio no dia combinado. Estava feliz com a
perspectiva de passar mais alguns instantes na companhia do príncipe. Nada
mais esperava. Chegou ao palácio com o vaso vazio…
Todas as outras apareceram com flores belíssimas, das mais variadas
formas, cores e perfumes. O palácio transformara-se num imenso jardim.
Chegou finalmente o momento esperado. O príncipe passou junto das
pretendentes, observando com muito cuidado todas as flores.
Por fim, anunciou que a sua futura esposa seria… a menina que não trazia
flor.
Isto provocou as mais variadas reações de espanto. Por isso, o príncipe
quis explicar a sua escolha:
– Esta jovem foi a única que cultivou a flor que torna uma pessoa digna de
se tornar minha esposa: a flor da honestidade. Porque todas as sementes que
entreguei eram estéreis.
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A LOUCURA
Autor desconhecido
(Para uma pessoa)
A Loucura resolveu convidar os amigos para tomarem um café em sua
casa. Todos os convidados foram.
- O que é isso? Perguntou a Curiosidade.
- Esconde-esconde é uma brincadeira em que eu conto até cem e
vou procurar. O primeiro a ser encontrado será o próximo a contar.
Todos aceitaram, menos o Medo e a Preguiça.
- 1,2,3... A Loucura começou a contar.
A Pressa se escondeu primeiro, em qualquer lugar.
A Timidez, tímida como sempre, escondeu-se na copa da árvore. A
Alegria correu para o meio do jardim; já a Tristeza começou a chorar,
pois não achava um local apropriado para se esconder. A Inveja
acompanhou o Triunfo e se escondeu perto dele, debaixo de uma pedra.
A Loucura continuava a contar e os seus amigos iam se
escondendo.
O Desespero ficou desesperado ao ver a Loucura que já estava no
noventa e nove, cem... Gritou a Loucura: - Vou começar a procurar.
A primeira a aparecer foi a Curiosidade já que não agüentava
mais, querendo saber quem seria o próximo a contar.
Ao olhar para o lado, a Loucura viu a Dúvida em cima do muro,
sem saber em qual dos lados se esconderia melhor. E assim foram
aparecendo, a Alegria, a Tristeza, a Timidez...
Quando estavam todos reunidos, a Curiosidade perguntou: - Onde
está o Amor?
Ninguém o tinha visto. A Loucura começou a procurar. Procurou
em cima da montanha, nos rios, debaixo das pedras e nada do Amor
aparecer. Procurando por todos os lados, a Loucura viu uma roseira,
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pegou um pauzinho, começou a procurar entre os galhos, e de repente
ouviu um grito. Era o Amor, gritando por ter furado o olho com o espinho.
A Loucura não sabia o que fazer. Pediu desculpas, implorou pelo
perdão do Amor e até prometeu servi-lo para sempre.
O Amor aceitou as desculpas. Desde então e até hoje...
"O amor é cego,
e a loucura sempre
o acompanha".
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A MENINA QUE NÃO ERA MALUQUINHA
Ruth Rocha
(Para uma pessoa / Crianças)
Maluquinha, eu? Eu não! Não sou nenhuma maluquinha! Quem me pôs
esse apelido foi aquele menino de casacão e panela na cabeça.
Ele me botou esse apelido quando eu fui brincar na casa do
Mauricinho. Eu nem queria ir. Mas a mãe dele telefonou pra minha mãe,
ela disse que o Mauricinho era muito tímido e que ela queria que ele
brincasse com umas crianças mais... Não sei o que ela disse, acho que
ela queria que ele brincasse com umas crianças mais descoladas... aí
minha mãe me encheu um pouco e eu acabei indo.
A gente chegou na casa do Mauricinho e foi logo almoçar. E
depois do almoço a mãe dele botou a gente pra fazer a lição. Eu não me
incomodo de fazer lição logo depois do almoço, porque eu fico logo livre.
Mas a mãe do Mauricinho começou a fazer uns discursos sobre
responsabilidade e coisa e tal, que a gente já era grandinha e tinha que
cumprir com os compromissos... Um saco! Eu tô careca de saber disso!
E então eu fiz minha lição correndo e o Mauricinho ficou lá toda a vida,
ele não acabava mais de fazer a lição dele. Aí eu comecei a rodar pela
casa até que encontrei um gato. Gato não, gata. Chamava Pom-pom. Ou
era Fru-fru... Ou era Bom-Bom, sei lá. E eu peguei a gata e ela estava
meio fedida.
Então eu resolvi dar um banho nela. Gato não gosta de banho,
vocês sabem. Mas meu avô tinha me contado que quando ele queria dar
banho no gato ele botava o bicho dentro da banheira e ele não
conseguia sair e meu avô dava banho à vontade!
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Mauricinho tinha um banheiro dentro do quarto dele. Quando eu fui
chegando perto da banheira a gata arrepiou toda e eu joguei ela bem
depressa lá dentro e tapei o ralo e enchi de água.
E esfreguei a gata todinha com um shampoo todo perfumado que tinha
lá e eu estava achando que todo mundo ia gostar de ver a gata toda
limpinha. A gata estava muito infeliz e ela miava miaaauuu... e tentava
sair do banho, mas meu avô tinha razão: ela arranhava a parede da
banheira, mas não conseguia sair.
Mas acho que aí caiu shampoo no olho da gata, porque ela deu
um pulo e agarrou na minha roupa e conseguiu pular fora e saiu
correndo, espalhando espuma de shampoo por todo lado e nisso a mãe
do Mauricinho vinha chegando e levou o maior susto e caiu sentada e a
gata continuou correndo e assustando todo mundo e respingando tudo
de espuma. Eu não sei quem estava mais assustado: se era o
Mauricinho, a mãe dele, a gata, ou se era eu.
Eu corri atrás da gata, mas ela pulou pela janela, atravessou o
jardim, saiu pela rua e eu atrás. Só que no meio da rua estava a turma
daquele menino, aquele da panela na cabeça, e a gata passou pelo meio
deles todos e eu atrás! E eles levaram o maior susto, cada um correu
para um lado, e atrás de mim vinha a mãe do Mauricinho e o Mauricinho
e a cozinheira e o jardineiro todos correndo e gritando e eu resolvi correr
para a minha casa e me esconder lá.
Mas no dia seguinte... a escola toda já sabia da história e aquele
menino, aquele da panela na cabeça começou a me chamar de
maluquinha... Mas eu não sou maluquinha, não! Só se for a vó dele!
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A MOÇA TECELÃ
Marina Colasanti
(Para uma pessoa)
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das
beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela
ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da
manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em
longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça
colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.
Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata,
que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha
cumprimentá-la à janela.
Mas, se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as
folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos
fios dourados para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus
dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com
cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser
comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o
tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas, tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se
sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um
marido ao lado.
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Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma
coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as
cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado,
sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último
fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o
chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos
lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado
em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em
nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E parecia
justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor
de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas, pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
- Para que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou. Sem
querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com
arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e
portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela
não tinha tempo para chamar o som. A noite chegava, e ela não tinha
tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar
batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal, o palácio ficou pronto. E, entre tantos cômodos, o marido
escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
- É para que ninguém saiba do tapete – disse. E, antes de trancar
a porta a chave, advertiu:
- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
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Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era
tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe
pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela
primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho,
subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a
lançadeira ao contrário e, jogando-a veloz de um lado para o outro,
começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as
estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas
as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e
sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura,
acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar.
Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés
desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo
corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma
linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz,
que a manhã repetia na linha do horizonte.
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A RATOEIRA
Autor desconhecido
(Para uma pessoa)
Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo
um pacote. Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali.
Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado. Correu ao pátio da
fazenda advertindo a todos:
- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa !!!
A galinha, disse:
- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema
para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.
O rato foi até o porco e lhe disse:
- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira !!!
- Desculpe-me Sr. Rato, disse o porco, mas não há nada que eu possa
fazer, a não ser rezar. Fique tranqüilo que o senhor será lembrado nas minhas
preces.
O rato dirigiu-se então à vaca.
Ela lhe disse:
- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que
não!
Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a
ratoeira do fazendeiro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma
ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia
pego.
No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra
venenosa. E a cobra picou a mulher... O fazendeiro a levou imediatamente ao
hospital. Ela voltou com febre.
Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que
uma canja de galinha.
O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.
Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitála. Para alimentá-los o fazendeiro matou o porco.
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A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o
funeral.
O fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.
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A VOLTA
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
Da janela do trem o homem avista a velha cidadezinha que o viu nascer. Seus
olhos se enchem de lágrimas. Trinta anos. Desce na estação – a mesma do seu
tempo, não mudou nada – e respira fundo. Até o cheiro é o mesmo! Cheiro de
mato e poeira. Só não tem mais cheiro de carvão porque o trem agora é elétrico.
E o chefe da estação, será possível? Ainda é o mesmo. Fora a careca, os bigodes
brancos, as rugas e o corpo encurvado pela idade, não mudou nada.
O homem não precisa perguntar como se chega ao centro da cidade. Vai a
pé, guiando-se por suas lembranças. O centro continua como era. A praça. A
igreja. A prefeitura. Até o vendedor de bilhetes na frente do Clube Comercial
parece o mesmo.
— Você não tinha um cachorro?
— O Cusca? Morreu, ih, faz vinte anos.
O homem sabe que subindo a Rua Quinze vai dar num cinema. O Elite.
Sobe a Rua Quinze. O cinema ainda existe. Mas mudou de nome. Agora é o Rex.
Do lado tem uma confeitaria. Ah, os doces da infância... Ele entra na confeitaria.
Tudo igual. Fora o balcão de fórmica, tudo igual. Ou muito se engana ou o dono
ainda é o mesmo.
— Seu Adolfo, certo?
— Lupércio.
— Errei por pouco. Estou procurando a casa onde nasci. Sei que ficava ao
lado de uma farmácia.
— Qual delas, a Progresso, a Tem Tudo ou a Moderna?
— Qual é a mais antiga?
— A Moderna.
— Então é essa.
— Fica na Rua Voluntários da Pátria.
Claro. A velha Voluntários. Sua casa está lá intacta. Ele sente vontade de
chorar. A cor era outra. Tinham mudado a porta e provavelmente emparedado
uma das janelas. Mas não havia dúvida, era a casa da sua infância. Bateu na
porta. A mulher que abriu lhe parecia vagamente familiar. Seria...
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— Titia?
— Puluca!
— Bem, meu nome é...
— Todos chamavam você de Puluca. Entre.
Ela lhe serviu licor. Perguntou por parentes que ele não conhecia. Ele
perguntou por parentes de que ela não se lembrava. Conversaram até escurecer.
Então ele se levantou e disse que precisava ir embora. Não podia, infelizmente,
demorar-se em Riachinho. Só viera matar a saudade. A tia parecia intrigada.
— Riachinho, Puluca?
— É, por quê?
— Você vai para Riachinho?
Ele não entendeu.
— Eu estou em Riachinho.
— Não, não. Riachinho é a próxima parada do trem. Você está em Coronel
Assis.
— Então eu desci na estação errada!
Durante alguns minutos os dois ficaram se olhando em silêncio. Finalmente
a velha pergunta:
— Como é mesmo o seu nome?
Mas ele estava na rua, atordoado. E agora? Não sabia como voltar para a
estação, naquela cidade estranha.
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AMIGOS
Luís Fernando Veríssimo
(Para dois homens)
Personagens:
- Careca, de óculos.
- Barrigudo tirador de sarro.
Os dois eram grandes amigos. Amigos de infância. Amigos de
adolescência. Amigos de primeiras aventuras. Amigos de se verem
todos os dias. Até mais ou menos 25 anos. Aí, por uma destas coisas da
vida - e como a vida tem coisas! – passaram muitos anos sem se ver.
Até que um dia...
Um dia se cruzaram na rua. Um ia numa direção, o outro na outra.
Os dois se olharam, caminharam mais alguns passos e se viraram
ao mesmo tempo, como se fosse coreografado. Tinham-se
reconhecido.
- Eu não acredito!
- Não pode ser!
Caíram um nos braços do outro. Foi um abraço demorado e
emocionado. Deram-se tantos tapas nas costas quantos tinham sido os
anos da separação.
- Deixa eu te ver!
- Estamos aí.
- Mas você está careca!
- Pois é.
- E aquele bom cabelo?
- Se foi...
- Aquela Cabeleira.
- Muito Gumex...
- Fazia sucesso.
- Pois é.
25
- Era cabeleira pra derrubar suburbana.
- Muitas sucumbiram...
- Puxa. Deixa eu ver atrás.
*Vira-se* Ele se virou para mostrar a careca atrás. O outro exclamou:
- Completamente careca!
- E você?
- Espera aí. O cabelo está todo aqui. Um pouco grisalho, mas firme.
- E essa barriga?
- O que é que a gente vai fazer?
- Boa vida...
- Mais ou menos...
- Uma senhora barriga.
- Nem tanto.
- Aposto que futebol, com essa barriga...
- Nunca mais.
- E você era bom, hein? Um bolão.
- O que é isso.
- Agora tá com bola na barriga.
- Você também.
- Barriga, eu?
- Quase do tamanho da minha.
- O que é isso?
- Respeitável.
- Quem te dera um corpo como o meu.
- Mas eu estou com todo o cabelo.
- Estou vendo umas entradas aí.
- O seu só teve saída. *Ri da própria piada*
Ele se dobra de rir com a própria piada. O outro muda de assunto.
- Faz o quê? Vinte anos?
- Vinte cinco. No mínimo.
26
- Você mudou um bocado.
- Você também.
- Você acha?
- Careca...
- De novo a careca? Mais é fixação.
- Desculpe, eu...
- Esquece a minha careca.
- Não sabia que você tinha complexo.
- Não tenho complexo. Mas não precisa ficar falando só na careca. Estou
falando nessa barriga indecente? Nessas rugas?
- Que rugas?
- Ora, que rugas? Meu Deus, sua cara está que é um cotovelo.
- Espera um pouquinho...
- E essa barriga? Você não se cuida não?
- Me cuido mais que você.
- Eu faço ginástica, meu caro. Corro todos os dias. Tenho uma saúde de
cavalo.
- É. Só falta a crina.
- Pelo menos não tenho barriga de baiana.
- E isso, o que é? *Cutuca o outro*
- Não me cutuca.
- Me diz. O que é? Enchimento? *Cutuca novamente*
- Não me cutuca!
- E esses óculos são para quê? Vista cansada? Eu não uso óculos.
- É por isso que está vendo barriga aonde não tem.
- Claro, claro. Vai ver você tem cabelo e eu é que não estou
enxergando.
- Cabelo outra vez! Mas isso já é obsessão. Eu se fosse você procurava
um médico.
- Vá você, que está precisando. Se bem que velhice não tem cura.
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- Quem é que é velho?
- Ora, faça-me o favor...
- Velho é você.
- Você.
- Você.
- Você!
- Ruína humana.
- Ruína não.
- Ruína!
- Múmia!
- Ah, é? Ah, é?
- Cacareco! Ou será cacareca?
- Saia da minha frente!
Separaram-se, furiosos. Inimigos para o resto da vida.
28
BRINCADEIRA
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
- Eu sei de tudo.
Depois de um silêncio, o outro disse:
- Como é que você soube?
- Não interessa. Sei de tudo.
- Me faz um favor. Não espalha.
- Vou pensar.
- Por amor de Deus.
- Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
- Sei de tudo.
- Co-como?
- Sei de tudo.
- Tudo o que?
- Você sabe.
- Mas é impossível. Como é que você descobriu?
A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
- Alguém mais sabe?
Outras se tornavam agressivas:
- Está bem, você sabe. E daí?
- Daí, nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
- Se você contar para alguém, eu...
- Depende de você.
- De mim, como?
- Se você andar na linha, eu não conto.
- Certo.
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
- Sei de tudo.
- Tudo o que?
29
- Você sabe.
- Não sei. O que é que você sabe?
- Não se faça de inocente.
- Mas eu realmente não sei.
- Vem com essa.
- Você não sabe de nada.
- Ah, quer dizer que existe alguma coisa para saber, mas eu é que não sei
o que é?
- Não existe nada.
- Olha que eu vou espalhar...
- Pode espalhar, que é mentira.
- Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
- Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
- Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um telefonema.
- Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre aquilo.
- Aquilo o que?
- Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximaca dele
e sussurrava:
- Você contou para alguém?
- Ainda não.
- Puxa, obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi
procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
- Por que eu? – quis saber.
- A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei
você.
- Por quê?
- Pela sua discrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a
boca para falar de ninguém. Além de bem informado, um gentleman. Até que
recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
- Sei de tudo.
30
- Co-como?
- Sei de tudo.
- Tudo o que?
- Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu
desaparecimento repentino. Investigaram. O que ele estaria tramando?
Finalmente foi descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que uma noite
vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa.
Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que a voz que mais se ouvia era a dele,
gritando:
- Era brincadeira! Era brincadeira!
Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado.
Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia demais.
31
CACHORRO VELHO
Autor Desconhecido
(Para uma pessoa)
Uma velha senhora foi para um safari na África e levou seu velho vira-lata com ela. Um
dia, caçando borboletas, o velho cão, de repente, deu-se conta de que estava perdido.
Vagando a esmo, procurando o caminho de volta, o velho cão percebe que
um jovem leopardo o viu e caminha em sua direção, com intenção de conseguir um bom
almoço.
O cachorro velho pensa:
-Oh, oh! Estou mesmo enrascado! - Olhou à volta e viu ossos espalhados
no chão por perto. Em vez de apavorar-se mais ainda, o velho cão ajeita-se junto ao
osso mais próximo, e começa a roê-lo, dando as costas ao predador.
Quando o leopardo estava a ponto de dar o bote, o velho cachorro exclama
bem alto:
-Cara, este leopardo estava delicioso ! Será que há outros por aí?
Ouvindo isso, o jovem leopardo, com um arrepio de terror, suspende seu ataque,
já quase começado, e se esgueira na direção das árvores.
- Caramba! pensa o leopardo, essa foi por pouco ! O velho vira-lata quase me
pega!
Um macaco, numa árvore ali perto, viu toda a cena e logo imaginou como fazer
bom uso do que vira: em troca de proteção para si, informaria ao predador que o viralata não havia comido leopardo algum...
E assim foi, rápido, em direção ao leopardo. Mas o velho cachorro o vê correndo
na direção do predador em grande velocidade, e pensa:
-Aí tem coisa!
O macaco logo alcança o felino, cochicha-lhe o que interessa e faz um acordo
com o leopardo.
O jovem leopardo fica furioso por ter sido feito de bobo, e diz: -'Aí, macaco! Suba
nas minhas costas para você ver o que acontece com aquele cachorro abusado!'
Agora, o velho cachorro vê um leopardo furioso, vindo em sua direção, com um
macaco nas costas, e pensa:
-E agora, o que é que eu posso fazer ?
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Mas, em vez de correr ( sabe que suas pernas doídas não o levariam longe...) o
cachorro senta, mais uma vez dando costas aos agressores, e fazendo de conta que
ainda não os viu, e quando estavam perto o bastante para ouvi-lo, o velho cão diz:
-Cadê o desgraçado daquele macaco? tô morrendo de fome! disse que ia trazer
outro leopardo para mim e não chega nunca!
33
CHAPEUZINHO AMARELO
Chico Buarque
(Para uma pessoa)
Era a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada, nem descia.
Não estava resfriada, mas tossia.
Ouvia conto de fada, e estremecia.
Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.
Tinha medo de trovão.
Minhoca, pra ela, era cobra.
E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra.
Não ia pra fora pra não se sujar.
Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.
Era a Chapeuzinho Amarelo…
E de todos os medos que tinha
O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO.
Um LOBO que nunca se via,
que morava lá pra longe,
do outro lado da montanha,
num buraco da Alemanha,
cheio de teia de aranha,
numa terra tão estranha,
34
que vai ver que o tal do LOBO
nem existia.
Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo do medo do medo
do medo de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia.
E Chapeuzinho amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz de comer duas avós,
um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz…
e um chapéu de sobremesa.
Finalizando…
Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo:
o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.
O lobo ficou chateado de ver aquela menina
olhando pra cara dele,
só que sem o medo dele.
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Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo,
porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.
É feito um lobo sem pelo.
Um lobo pelado.
O lobo ficou chateado.
Ele gritou: sou um LOBO!
Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!!
E a Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!!
Chapeuzinho, já meio enjoada,
com vontade de brincar de outra coisa.
Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando e a menininha saber
com quem não estava falando:
LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO
Aí, Chapeuzinho encheu e disse:
"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"
E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim.
Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim.
Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo,
porque sempre preferiu de chocolate.
Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato.
Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato,
Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha,
com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro,
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com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.
Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:
O raio virou orrái;
barata é tabará;
a bruxa virou xabru;
e o diabo é bodiá.
FIM
(Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo:
o Gãodra, a Jacoru,
o Barãotu, o Pão Bichôpa…
e todos os tronsmons).
37
CLASSIFICADOS
Luís Fernando Veríssimo
(Para um homem e uma mulher)
Personagens:
- Mulher.
- Homem.
- Alô?
- Alô, é daí que anunciaram um trombone nos classificados?
- É daqui, sim.
- Laura, é isso?
- É. Sou eu.
- E o trombone é seu?
-É
- Você toca trombone?
-É
- E como é?
- Bom, é de vara e...
- Não, não. Você.
- Eu?
- É. Como é que você é?
- O que que isso tem a ver com...
- Desculpe, mas é muito importante pra mim.
- Você quer comprar um trombone ou não quer?
- Olhe, não leve a mal. Mas eu preciso saber como você é.
- Bom, tenho trinta e dois anos. Sou clara, cabelos castanhos...
- E os olhos?
- Castanhos também. Um pouco cinzentos.
- São puxados, assim, pra cima?
- É. Um pouco.
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- Escute. Eu vou dizer uma frase e você vai me dizer se ela significa
alguma coisa para você. “Para que bichos de estimação, se tenho
os teus pés?”
- ―Para que...‖
- “Bichos de estimação, se tenho os teus pés.” Pense bem.
- Não estou me lembrando...
- Pense bem. É muito importante.
- Não. Sinto muito. Não me lembro.
- Você tem um sinal na coxa esquerda?
- Como é que você sabe?
- Tem ou não tem?
- Tenho.
- Altura, um e cinqüenta, por aí.
- Por aí.
- É de Quarai?
- Sou!
- Come de tudo, menos miúdos.
- Exato.
- Gosta de azul, de caminhar na chuva e de J. Simmel¹.
- Vem cá, quem é que está falando?
- Ainda não posso dizer. Agora ouça. É muito importante. Você
esteve em Foz do Iguaçu no verão de 70?
- Estive!
- Tem certeza?
- Claro. Fui com a minha tia.
- Uma que fraturou o braço?
- Isso mesmo! Quem é você?
- Tente se lembrar. “Para que bichos de estimação, se tenho os teus
pés?”
39
- Não me lembro. Já tentei me lembrar, mas nunca ouvi essa frase
antes.
- É pena...
- Por quê?
- Você não é a pessoa que estou procurando.
- Mas...
- Tchau.
1. Johannes Mario Simmel, escritor austríaco nascido em 1924.
40
CORNITA
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
Personagens:
- O Pai.
- O Filho / A Professora (alternadamente).
- Pai, o que é cornita?
- Como é que se escreve?
- Ce, o, erre, ene, i, te, a.
O pai pensou um pouco. Não podia dizer que não sabia. O garoto há
muito tempo descobrira que o pai não era o homem mais forte do
mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não era dos mais burros.
Perguntou como é que a palavra estava usada.
- Aqui diz, “a cornita da igreja...” – respondeu o garoto.
- Ah, esse tipo de cornita. É um ornamento, na forma de corno, que fica
do lado do altar.
- Pra que que serve?
- Pra, ahn, nada. É um símbolo.
- Ah.
- Pai, usei “cornita” numa redação e a professora disse que a
palavra não existe.
- O que? Mas que professora é essa?
- Ela diz que nunca ouviu falar.
- Pois diga a ela que ―cornita‖, embora não faça mais parte da arquitetura
canônica, era muito usada nas igrejas medievais.
- Tá.
41
- Pai, a professora continua dizendo que “cornita” não existe. E diz
que também não se diz “arquitetura canônica”.
- Preciso ter uma conversa com essa professora. Essa educação de
hoje...
- Não quero discutir com a senhora. Mas também não quero ver meu
filho duvidando do próprio pai. Para começar, minha senhora, aqui está o
livro que meu filho estava lendo. E aqui está a palavra. ―Cornita‖.
- Deixa eu ver. Obviamente, era pra ser “cornija”. É um erro de
imprensa.
- O quê?
- Um erro de revisão. “Cornija”. Ornamentação muito usada na
arquitetura antiga. “Cornita” não existe.
- Pai, vamos pra casa...
- Um momentinho. Um momentinho! Claro que eu sei o que é ―cornija‖.
Mas existem as duas palavras. ―Cornija‖ e ―cornita‖. Duas coisas
completamente diferentes.
- Então me mostre “cornita” no dicionário.
- Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia nos nossos dicionários?
- Pai, vamos embora...
- O que é isso, pai?
- Um pequeno tratado que fiz para a sua professora, aquela mula, ler.
Dezessete páginas. Pouca coisa. Nele, traço desde a origem etimológica
da palavra ―cornita‖, no sânscrito, até a sua simbologia no ritual da igreja
antes do concílio de Trento, incluindo o número de vezes em que o
termo aparece na obra de Vouchard de Mesquieu sobre a arquitetura
canônica, para a mula aprender a jamais desmentir um pai.
- Certo, pai.
42
- Pai...
- O que é?
- A professora leu o seu tratado.
- E então?
- Mandou pedir desculpas. Diz que o senhor é um homem muito
etudito.
- Erudito.
- Erudito. Mandou pedir desculpas. A burra era ela.
- Está bem, meu filho. Pelo menos agora ela sabe com quem está
tratando.
Valera a pena. Valera até as noites perdidas inventando os dados
do tratado. Sabia que acabaria convencendo a mulher com um ataque
maciço de erudição, mesmo falsa. Vouchard de Mesquieu. Aquele fora o
golpe de mestre. Vouchard de Mesquieu. Perdera uma hora só para
encontrar o nome certo. Mas estava redimido.
43
DOIS MAIS DOIS.
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, já que a sua
minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a
professora resolveu contar uma história. Contou a história do Super Computador.
Um dia, disse a professora, todos os computadores do mundo serão
unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cidade do
Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo, terão terminais do
Super Computador. Toda a informação do mundo estará nos circuitos do Super
Computador. As pessoas usarão o Super Computador para compras, para
recados, para reservas de avião, para consultas sentimentais. Para tudo.
Ninguém mais precisará de relógios individuais, de livros ou de
calculadoras portáteis. Não precisará mais nem estudar. Tudo que alguém quiser
saber sobre qualquer coisa estará na memória do Super Computador, ao alcance
de qualquer um. Em milésimos de segundo a resposta à consulta estará na tela
mais próxima. E haverá bilhões de telas espalhadas por onde o homem estiver,
desde lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar um
botão para ter a informação que quiser.
Um dia, um garoto perguntará ao pai:
- Pai, quanto é dois mais dois?
- Não pergunte a mim – dirá o pai -, pergunte a Ele.
E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo de segundo a
resposta aparecerá na tela. E então o garoto dirá:
- Como é que sei que essa resposta é certa?
- Porque Ele disse que é certa – responderá o pai.
- E se Ele estiver errado?
- Ele nunca erra,
- Mas se estiver?
- Sempre podemos contar nos dedos.
- O quê?
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- Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora
mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O computador está certo.
- Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá pra contar nos dedos. A não ser
reunindo muita gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber se a
resposta d’Ele está certa?
Aí o pai suspirou e disse:
- Jamais saberemos...
O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais
soubesse matemática e não pudesse pôr o Computador à prova, então não faria
diferença se o Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a
única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada, e...
Aí foi a vez da professora suspirar.
45
ESTRAGOU A TELEVISÃO
Luís Fernando Veríssimo
(Para um homem e uma mulher)
Personagens:
- Geraldo/Eduardo.
- Valdusa/Maria Ester.
- liiih...
- E agora?
- Vamos ter que conversar.
- Vamos ter que o quê?
- Conversar. É quando um fala com o outro.
- Fala o quê?
- Qualquer coisa. Bobagem.
- Perder tempo com bobagem?
- E a televisão, o que é?
- Sim, mas aí é a bobagem dos outros. A gente só assiste. Um falar
com o outro, assim, ao vivo... Sei não...
- Vamos ter que improvisar nossa própria bobagem.
- Então começa você.
- Gostei do seu cabelo assim.
- Ele está assim há meses, Eduardo. Você é que não tinha...
- Geraldo.
- Hein?
- Geraldo. Meu nome não é Eduardo, é Geraldo.
- Desde quando?
- Desde o batismo.
- Espera um pouquinho. O homem com quem eu casei se chamava
Eduardo.
- Eu me chamo Geraldo, Maria Ester.
46
- Geraldo Maria Ester?!
- Não, só Geraldo. Maria Ester é o seu nome.
- Não é não.
- Como, não é não?
- Meu nome é Valdusa.
- Você enlouqueceu, Maria Ester?
- Pelo amor de Deus, Eduardo...
- Geraldo.
- Pelo amor de Deus, meu nome sempre foi Valdusa. Dusinha, você
não se lembra?
- Eu nunca conheci nenhuma Valdusa. Como é que eu posso estar
casado com uma mulher que eu nunca... Espera. Valdusa. Não era a
mulher do, do... Um de bigode...
- Eduardo.
- Eduardo!
- Exatamente. Eduardo. Você.
- Meu nome é Geraldo, Maria Ester.
- Valdusa. E, pensando bem, que fim levou o seu bigode?
- Eu nunca usei bigode!
- Você é que está querendo me enlouquecer, Eduardo.
- Calma. Vamos com calma.
- Se isso for alguma brincadeira sua...
- Um de nós está maluco. Isso é certo.
- Vamos recapitular. Quando foi que casamos?
- Foi no dia, no dia...
- Arrá! Tá aí. Você sempre esqueceu o dia do nosso casamento...
Prova de que você é o Eduardo e a maluca não sou eu.
- E o bigode? Como é que você explica o bigode?
- Fácil. Você raspou.
- Eu nunca tive bigode, Maria Ester!
47
- Valdusa!
- Tá bom. Calma. Vamos tentar ser racionais. Digamos que o seu nome
seja mesmo Valdusa. Você conhece alguma Maria Ester?
- Deixa eu pensar. Maria Ester... Nós não tivemos uma vizinha
chamada Maria Ester?
- A única vizinha de que eu me lembro é a tal de Valdusa.
- Maria Ester. Claro. Agora me lembrei. E o nome do marido dela
era... Jesus!
- O marido se chamava Jesus?
- Não. O marido se chamava Geraldo.
- Geraldo...
- É.
- Era eu. Ainda sou eu.
- Parece...
- Como foi que isso aconteceu?
- As casas geminadas, lembra?
- A rotina de todos os dias...
- Marido chega em casa cansado, marido e mulher mal se olham...
- Um dia marido cansado erra de porta, mulher nem nota...
- Há quanto tempo vocês se mudaram daqui?
- Nós nunca nos mudamos. Você e o Eduardo é que se mudaram.
- Eu e o Eduardo, não. A Maria Ester e o Eduardo.
- É mesmo...
- Será que eles já se deram conta?
- Só se a televisão deles também quebrou.
48
ESTRELAS EM GREVE
João A. Carrascoza
(Para uma pessoa)
Quase todas as noites o universo nos oferece um belo espetáculo. As estrelas
cintilam no céu e a lua aparece em suas diferentes fases. Só que os homens
cochilam no sofá ou assistem futebol. As mulheres assistem à novela. As crianças
ficam brincando com os computadores.
Sem platéia para assistir este lindo espetáculo, as estrelas decidiram entrar
em greve por tempo indeterminado. A lua, solidária com as amigas, aderiu ao
protesto e também se escondeu.
Foi um fuzuê no mundo inteiro.
As galinhas que dormiam com a estrela-dalva, perderam o sono e deixaram
de botar ovos.
As corujas pararam de piar.
Os grilos silenciaram.
Os anjos da guarda que desciam à noitinha para ninar as crianças,
perdiam-se no caminho.
Os poetas caíram em desânimo e a produção de poesia imediatamente
cessou.
Os agricultores ignoravam se era ou não época certa para semear.
As marés, desorientadas, subiam e desciam à deriva.
Então os homens descobriram que aquilo tinha a ver com o sumiço das
estrelas. Chamaram os melhores astrônomos, mas eles não souberam explicar o
ocorrido. Convocaram as bruxas para resolver o assunto, elas fizeram lá suas
mandingas, mas não adiantou nada. A coisa estava realmente preta.
Até que, numa noite, um homem saiu de casa e se pôs a contemplar o céu
na escuridão. Recordou das histórias de lua cheia, quando aparecia o lobisomem.
Outro homem lembrou que uma nascera uma verruga no dedo porque, quando
garoto, apontara para as Três-Marias. Apareceu uma mulher e comentou que só
cortava o cabelo na Lua minguante.
49
Outra mulher falou que, havia alguns anos, vira uma estrela cadente e
fizera um pedido, que depois se realizou.
Aos poucos as pessoas foram saindo de casa e cada um tinha sua história
para contar sobre a Lua e as estrelas.
Quando todos estavam na rua olhando o céu vazio, as estrelas, que
observavam do fundo da noite, apareceram de surpresa, acendendo-se ao
mesmo tempo.
Foi lindo: parecia uma chuva de gotas prateadas. Em seguida despontou a
Lua, com seu brilho magnífico de Lua Cheia.
Aí todos entenderam o motivo daquela greve. E, imediatamente, decidiram
em consenso: Podiam ver televisão, dormir no sofá e brincar nos computadores
todas as noites.
Mas, de vez em quando, iriam dar uma espiadinha no céu pra ver o show
das estrelas.
50
GRAÇAS AO MENINO!
Rosana Pamplona e Dino Bernardi Jr
(Para uma pessoa)
Era época de Natal. Pelos gelados caminhos do norte da Europa, seguia
uma caravana de ciganos. Assustados com aquele inverno precoce e
mais rude do que o habitual, os ciganos resolveram mudar seu curso e
tentar terras mais quentes.
Um dia, acampados à beira da estrada, perceberam a ameaça de
uma iminente tempestade de neve. Às pressas, recolheram suas coisas
e seguiram com suas carroças, sem perceber que haviam deixado para
trás um deles, um menininho que se havia abrigado numa espécie de
gruta que encontrara. O pequeno cigano ali ficou, dormindo
inocentemente por algumas horas, até a borrasca passar. Quando
acordou, deu-se conta de que estava sozinho. Chamou, chamou, mas só
sua voz ressoava no silêncio daquele mundo amortecido pela grossa
coberta de neve.
Resolveu esperar com paciência que o fossem buscar, mas logo
sentiu fome e tentou achar algo para iludir seu estômago. Em vão.
Nenhuma fruta teria forças para crescer naquele frio, nenhum bichinho
ousaria enfrentar a neve inclemente. As horas foram passando e o
menino, enregelado e faminto, decidiu sair dali e procurar ajuda na
cidade mais próxima.
Andou, andou e por fim chegou a um pequeno povoado. Cheio de
esperanças, bateu à porta da primeira casa que encontrou.
Ali morava uma velha senhora, que havia passado o dia todo
limpando e arrumando sua casa, pois era a véspera de Natal e ela
queria que tudo estivesse impecável para festejar o sagrado nascimento
do Menino. Assim, quando foi abrir a porta e viu aquela criança suja, mal
vestida, ficou aborrecida e o enxotou, dizendo:
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- Cuidado com esses pés imundos! Você não vê que pode sujar
meu tapete, estragar todo meu trabalho? Saia daqui, seu pequeno vadio!
O garoto nem ousou responder; achou melhor tentar a porta da
segunda casa.
Ali morava um marceneiro, que havia passado o dia todo
reformando seus móveis, pois, afinal, era véspera de Natal, e tudo
deveria estar perfeito para festejar o nascimento do Menino. E ele estava
justamente lixando a última de suas cadeiras quando ouviu baterem.
Contrariado com aquela interrupção, foi abrir e, vendo o cigano, gritou:
- Como ousa atrapalhar meu serviço? Fora daqui, não vê que
estou ocupado?!?
O menino, assustado, saiu correndo o quanto lhe permitiram as
perninhas cansadas e assim chegou à terceira casa.
Ali morava uma jovem viúva e seu filho pequeno. Quando ela viu o
cigano, amedrontou-se: um garoto como aquele não podia ser boa
companhia para seu filho. Era melhor evitar problemas, principalmente
na noite em que se festeja o sagrado nascimento do Menino. E assim
pensando, gritou, batendo a porta:
- Vá embora, você vai assustar meu filho!
O menino cigano, transido de fome e frio, arrastou-se pela neve,
tentando afastar-se daquele povoado, que nenhum conforto lhe dera. Já
ia longe, quando avistou uma última casinha. Sentindo que, se não fosse
socorrido, morreria ali mesmo, para lá se dirigiu, até cair, sem forças, na
soleira da casa.
Ouvindo o barulho, o velho mestre da aldeia, que ali morava, abriu
a porta e recolheu o menino. Aqueceu-o ao pé da lareira, deu-lhe de
comer e beber e reconfortou-o com amor.
Enquanto isso, com a noite chegando...
A velha senhora, sentada no seu sofá impecavelmente escovado,
admirava o brilho de suas louças, a limpeza de sua sala, porém... Não se
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sentia feliz. Doía-lhe a solidão. ―De que adianta‖, refletia ela, ―ter a casa
tão arrumada se ninguém a compartilha comigo na noite de Natal? Bem
que eu podia ter deixado aquele garoto entrar. Pensando bem, um pouco
de neve no tapete não faria mal algum e agora eu teria alguém com
quem conversar.‖ E assim, arrependida, abriu o armário da cozinha,
escolheu o maior pão que encontrou e saiu à procura do menino.
O marceneiro, por sua vez, acabara o trabalho. Sentado na sua
cadeira nova, entediava-se, mergulhado em remorsos. ―Para que tantas
cadeiras, se todas ficam vazias na noite de Natal? Bem que eu podia ter
deixado aquele garotinho entrar. Talvez ele até me ajudasse e agora
estaríamos festejando juntos.‖ E assim pensando, foi até sua adega,
escolheu o melhor vinho e saiu à procura do menino.
Enquanto isso, a jovem viúva observava o filho brincando sozinho
e, arrependida, lamentava-se. ―Que pena ter mandado aquele cigano
embora! Fui tola e medrosa. Uma criança tão pequena nada nos faria de
mal; ao contrário, só nos traria alegria.‖ E, assim pensando, encheu uma
cestinha com as melhores castanhas que encontrou na despensa e,
carregando seu filho no colo, saiu à procura do menino.
Assim, seguindo as pegadas que o menino deixava na neve, todos
eles se encontraram diante da casa do velho mestre. Ele abriu a porta e
convidou-os a entrar. Lá dentro, ao pé do fogo, estava o menino, que,
contente, sorriu-lhes. O velho mestre então lhes perguntou, já que
estavam todos lá e haviam trazido tantas coisas boas, por que não se
sentavam ao redor do fogo e festejavam juntos o Natal.
E assim foi que, naquele ano, todos eles tiveram um Natal mais
farto, mais alegre e caloroso, graças ao menino.
Assim pode ser também o Natal de todos nós que abrimos a porta
de nosso coração para quem sofra de frio ou de fome. Qualquer espécie
de frio ou de fome.
Assim será, graças ao Menino!
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MÃE EXECUTIVA
Luís Fernando Veríssimo
(Para um homem e uma mulher)
Personagens:
- Thiago, o filho.
- A mãe executiva.
- Acampar? De jeito nenhum! Você só tem 7 anos.
- Tenho 15, mãe!
- Mas já?! Não é possível! Tem certeza?
- Absoluta. É que nos meus últimos aniversários você estava trabalhando e
esqueceu de ir.
- Esqueci, não. É que caíram em dia de semana. Se tivessem feito
como eu sugeri...
- Você sugeriu que mudassem o dia do meu aniversário para o primeiro
domingo de maio.
- Exato. Domingo eu nunca trabalho.
- Papai contou que vocês se casaram num domingo e você trabalhou
durante a cerimônia.
- Eu só assinei uns documentos enquanto o padre falava. Ele nem
percebeu.
- E em vez do vovô... Você entrou na igreja de braço dado com o contador!
- Claro! O balanço da firma era para o dia seguinte!
- E a lua-de-mel...
- Tá. Eu não fui. Mas mandei o boy do escritório me representando.
Seu pai no começo resistiu, mas acabou aceitando.
- E quando eu nasci? Qual é a desculpa?
- Desculpa por quê? Você nasceu como qualquer criança.
- Nasci numa mesa de reuniões!
- Era numa reunião de diretoria! Não podia sair assim, só porque a
bolsa estourou. E você devia se orgulhar! Foi o presidente de uma
grande multinacional que fez teu parto.
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- Já sei. E a secretária cortou meu cordão umbilical com o clipe. Não
brinca. Fiquei traumatizado.
- Eu fiquei. Você nasceu em cima de uma papelada importante.
Quase perdi o emprego...
- E quando você foi me pegar na escola pela primeira vez? A vergonha que
eu passei...
- Eu só estava com medo de não te reconhecer... Não te via fazia
um tempinho...
- Tive que segurar um cartaz, que nem parente desconhecido em
aeroporto, escrito "Eu sou o Thiago".
- Thiago? Foi esse o nome que eu te dei?
- Que a moça do cartório me deu! Quando completei 8 anos e consegui ir
sozinho a um tabelião. Fiquei sem nome durante oito anos! Oito anos sendo
chamado de pssit!!
- Pssit? Até que não é feio!
- Tudo por causa dessa porcaria do teu trabalho! Faz uma coisa. Pra provar
que você quer mudar, vem acampar comigo.
- Por que nós não acampamos lá no meu escritório? Do lado do fax
tem um espação. E umas samambaias artificiais. Posso contratar
algum estagiário para ficar coaxando pra gente.
- Pára de brincar. Larga tudo e vem comigo.
- Bom, se você tá insistindo tanto, eu... Então tá.
Eu... Tudo bem, eu vou.
- Jura? Ótimo! Você vai adorar!
- Ah, difícil pensar em programa melhor. Aquelas árvores, aqueles
macacos guinchando, aquelas aranhas bacanas.
- Então está tudo certo.
- Só preciso saber assim, de um detalhe. A respeito do mato. Uma
besteira.
- O quê? Se no mato tem mosquito? Se tem cobra?
- Não. Se no mato tem tomada.
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MINEIRINHO DANDO MÁ NOTÍCIA
Autor Desconhecido
(Para dois homens, ou um homem e uma mulher)
Personagens:
- Mineirinho caseiro do sítio.
- Patrão.
- Alô, Sô Carlos? Aqui é o Uóshito, casêro do sítio.
- Pois não, Seu Washington. Que posso fazer pelo senhor? Houve algum
problema?
- Ah, eu só tô ligando para visa pro sinhô qui o seu papagai morreu.
- Meu papagaio? Morreu? Aquele que ganhou o concurso?
- Ele mermo.
- Puxa! Que desgraça! Gastei uma pequena fortuna com aquele bicho! Mas...
Ele morreu de que?
- Dicumê carne istragada.
- Carne estragada? Quem fez essa maldade? Quem deu carne para ele?
- Ninguém. EIe cumeu a carne dum dos cavalo morto.
- Cavalo morto? Que cavalo morto, seu Washington?
- Aqueles puro-sangue qui o sinha tinha! Eles morrero de tanto puxa carroça
d’água!
- Tá louco? Que carroça d'água?
- Pra apaga ô incêndio!
- Mas que incêndio, meu Deus?
- Na sua casa... Uma vela caiu, ai pegô fogo nas curtina!
- Caramba, mas ai tem luz elétrica! Que vela era essa?
- Do velório!
- De quem?
- Da sua mãe! Ela apareceu aqui sem avisa e eu dei um tiro nela pensando que
fosse ladrão!
- Meu Deus, que tragédia *começa a chorar*
- Perai sô Carlos, o sinhô num vai chora par causa dum papagai, vai???
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NOMES
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
Um dia, todos os bonecos e bonecas da Helena começaram a falar. O
primeiro foi o Urso Pompeu. Helena estava dormindo e acordou de
manhã com a voz do Pompeu, que dizia:
- Olha a hora, preguiçosa.
Helena abriu os olhos em volta. Quem a chamara?
- Fui eu – disse Pompeu.
- Urso não fala – disse Helena.
- Mas eu não sou um urso de verdade – respondeu Pompeu, como
se isso explicasse tudo.
Helena levantou da cama e levou um susto. Todos os seus
bonecos e bonecas a cumprimentaram.
- Bom dia – disse a Suzi.
- Oi – disse o Molengão.
- Hello – disse o cachorro, que era americano.
Helena ficou de boca aberta.
- Eu não sabia que vocês falavam! – disse.
- Nem nós – disse a Suzi.
- É o maior barato! – disse a boneca de pano, que a Helena
chamava de Matilde e era muito espevitada.
- Eu até sei cantar – disse o Pompeu. E começou a cantar, até que
os outros fizeram ―sssh‖ e o mandaram parar.
- Mas isto é ótimo! – disse Helena. – Agora eu vou poder conversar
com vocês de verdade. Antes só eu falava e ninguém respondia.
- Tem uma coisa... – disse o Molengão.
- O que é?
- Você nos chama pelos nomes errados.
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- Mas fui eu que botei os nomes em vocês. A não ser pela Suzi,
que já veio da loja com esse nome.
- Pois eu nem me chamo Suzi – disse a Suzi. – Meu nome mesmo
é Eunice.
- O meu é Geraldo – disse Pompeu.
- O meu é Felipe – disse o Molengão. – Mas você pode me chamar
de Felipão.
- E o seu, como é? – perguntou Helena, apontando para o
cachorro.
- What? – disse o cachorro, em inglês.
- Como é o s-eu no-me? – repetiu Helena. Quando a gente fala
com estrangeiro é só falar bem devagar que eles entendem.
- Meu nome é Sam – disse o cachorro. – Sam Smith.
- E o meu nome vocês nem desconfiam qual é – disse a boneca de
pano. – É Saralara!
- Que nome esquisito! – disse o Molengão. Quer dizer, o Felipão.
- Esquisita é a sua cara! – disse a boneca.
- Não briguem – pediu Helena.
- E o seu verdadeiro nome, como é, Helena? – quis saber Geraldo,
o ex-Pompeu.
- É Helena, né.
- Helena é o nome que deram para você. Como é que você se
chama?
Helena ficou pensativa. Gostava do nome Helena. Mas, no fundo,
no fundo, sempre se achava com cara de Rejane Devia ser o seu nome
de verdade.
- É Rejane – disse.
A mãe de Helena entrou no quarto e disse que era para ela
interromper aquele papo com os bonecos porque estava na hora de
escovar os dentes, tomar café e ir para a escola. Antes de sair do quarto,
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Helena, ou Rejane, ainda fez uma pergunta para os bonecos. Era uma
coisa que a estava intrigando.
- Eu botei os nomes em vocês porque vocês não falavam e não
podiam dizer seus nomes de verdade, certo?
- Certo.
- Quer dizer que todas as outras coisas neste quarto também têm
nomes que a gente não sabe. Se pudessem falar, elas nos diriam qual é.
- Exatamente.
- Eu, por exemplo – disse Saralara - , sei que cama não se chama
―cama‖.
- E como é que ela se chama? – quis saber Helena.
- É ―Frunfra.‖ – disse Saralara.
- E armário é ―Bozório‖ – revelou Geraldo.
- Tapete se chama ―Abajur‖ – disse Eunice.
- E abajur, como se chama? – perguntou Helena.
- Carlos Henrique.
Helena contou tudo isso para os seus pais, que acharam
engraçado mas não acreditaram muito. Os adultos não têm nenhuma
imaginação.
- Senta direito na cadeira – disse a mãe de Helena.
- Cadeira, não – corrigiu Helena. – Sploct.
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O CEGO E O CAÇADOR
Conto da África Ocidental – Adaptado por Hugh Lupton
(Para uma pessoa)
Era uma vez um homem cego que morava numa palhoça, com sua irmã, numa
aldeia na orla da Floresta. Esse homem era muito inteligente. Apesar de seus
olhos não enxergarem nada, ele parecia saber mais sobre o mundo do que as
pessoas cujos olhos viam tudo.
Costumava sentar-se à porta de sua palhoça e conversar com quem
passava. Quando alguém tinha problemas, perguntava-lhe o que fazer e ele
sempre dava um bom conselho.
Quando alguém queria saber alguma coisa, ele dizia, e suas respostas
eram sempre corretas. As pessoas balançavam a cabeça, admiradas:
- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar?
E o cego sorria, dizendo:
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Bem, um dia a irmã do cego se apaixonou. Ela se apaixonou por um
caçador de outra aldeia. E logo o caçador se casou com a irmã do cego. Depois
da festa de casamento, o caçador foi morar na palhoça, com a esposa. Mas o
caçador não tinha paciência com o irmão da mulher, não tinha nenhuma paciência
com o cego.
- Para que serve um homem cego? - ele dizia. E a mulher respondia:
- Ora, marido, ele sabe mais coisas do mundo do que as pessoas que
enxergam. O caçador ria:
- Ha, ha, ha, o que pode saber um cego, que vive na escuridão? Ha, ha,
ha...
Todos os dias, o caçador ia para a floresta com seus alçapões, lanças e
flechas. E todas as tardes, quando o caçador voltava à aldeia, o cego dizia:
- Por favor, amanhã deixe-me ir com você caçar na floresta.
Mas o caçador balançava a cabeça:
- Para que serve um homem cego?
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Dias, semanas e meses se passavam, e todas as tardes o homem cego pedia:
- Por favor, amanhã deixe-me caçar também.
E todas as tardes o caçador dizia que não.
Uma tarde, porém, o caçador chegou de bom humor. Tinha trazido para
casa uma bela caça, uma gazela bem gorda. Sua mulher temperou e assou a
carne e, quando eles acabaram de comer, o caçador disse ao homem cego:
- Pois bem, amanhã você vai caçar comigo.
Assim, na manhã seguinte os dois foram juntos para a floresta, o
caçador carregando seus alçapões, lanças e flechas, e conduzindo o cego pela
mão, por entre as árvores. Andaram horas e horas.
Então, de repente, o cego parou e puxou a mão do caçador:
- Psss, um leão!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um leão, sim, mas está tudo bem. Ele não está faminto e está dormindo
profundamente. Não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um leão dormindo a
sono solto, debaixo de uma árvore.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do leão?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Andaram por mais quatro horas, e então o cego puxou de novo a mão do
caçador:
- Psss, um elefante!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um elefante, sim, mas tudo bem. Ele está dentro de uma poça
d'água e não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um elefante imenso,
chapinhando numa poça d'água, esguichando lama nas próprias costas.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do elefante?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
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Continuaram seu caminho, se aprofundando cada vez mais na floresta, até
chegarem a uma clareira. O caçador disse:
- Vamos deixar nossos alçapões aqui.
O caçador armou um alçapão e ensinou o cego a armar o outro. Quando
os dois alçapões estavam armados, o caçador disse:
- Amanhã vamos voltar para ver o que pegamos. E os dois voltaram juntos
para a aldeia.
Na manhã seguinte, acordaram cedo. Mais uma vez, foram andando pela
floresta. O caçador se ofereceu para segurar a mão do cego, mas o cego disse:
- Não, agora já conheço o caminho.
Dessa vez, o homem cego foi andando na frente. Não tropeçou em
nenhuma raiz nem toco de árvore. Não errou o caminho nem uma vez. Andaram,
andaram, até chegarem à clareira em que tinham armado os alçapões.
De longe, o caçador viu que havia um pássaro preso em cada alçapão.
De longe, viu que o pássaro preso em seu alçapão era pequeno e cinzento
e que o pássaro preso no alçapão do cego era lindo, com penas verdes,
vermelhas e douradas.
- Sente-se ali - ele disse.
- Cada um de nós apanhou um pássaro. Vou tirá-los dos alçapões.
O cego sentou-se e o caçador foi até os alçapões, pensando:
- Um homem que não enxerga nunca vai perceber a diferença.
E o que foi que ele fez? Deu ao cego o pequeno pássaro cinzento e ficou
com o lindo pássaro de penas verdes, vermelhas e douradas. O cego pegou o
pássaro cinzento nas mãos, levantou-se e os dois rumaram de volta para casa.
Andaram, andaram, e a certa altura o caçador disse:
- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma
coisa: por que há tanta desavença, ódio e guerra neste mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo está cheio de gente como você, que pega o que
não é seu.
O caçador se encheu de vergonha. Pegou o pássaro cinzento da mão do
cego e deu-lhe o pássaro lindo, de penas verdes, vermelhas e douradas.
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- Desculpe - ele disse.
Os dois continuaram andando, e a certa altura o caçador disse:
- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma
coisa: por que há tanto amor, bondade e conciliação neste mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo está cheio de gente como você, que aprende com
seus próprios erros.
Os dois continuaram andando, até chegarem à aldeia.
E, a partir daquele dia, quando alguém perguntava ao cego:
- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar?, Era o
caçador que respondia:
- É que ele enxerga com os ouvidos... E ouve com o coração.
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O HOMEM TROCADO
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de
recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.
- Tudo perfeito – diz a enfermeira, sorrindo.
- Eu estava com medo desta operação...
- Por quê? Não havia risco nenhum.
- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...
E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma
troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de
orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos
redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com
sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não
soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.
- E o meu nome? Outro engano.
- Seu nome não é Lírio?
- Era pra ser Lauro. Se enganaram no cartório e...
Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não
fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na
universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.
- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês
passado tive que pagar mais de Cr$ 300 mil.
- O senhor não faz chamadas interurbanas?
- Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram
felizes.
- Por quê?
- Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar
dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o
médico dizer:
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- O senhor está desenganado.
Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma
simples apendicite.
- E se você diz que a operação foi bem...
A enfermeira parou de sorrir.
- Apendicite? – perguntou, hesitante.
- É. A operação era para tirar o apêndice.
- Não era para trocar de sexo?
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O HOMEM, SEU FILHO E O BURRO
Esopo
(Para uma pessoa)
Um homem ia com o filho levar um burro para vender no mercado.
– O que você tem na cabeça para levar um burro estrada afora sem nada
no lombo enquanto você se cansa? – disse um homem que passou por eles.
Ouvindo aquilo, o homem montou o filho no burro, e os três continuaram
seu caminho.
– Ô rapazinho preguiçoso, que vergonha deixar o seu pobre pai, um velho
andar a pé enquanto vai montado! – disse outro homem com quem cruzaram.
O homem tirou o filho de cima do burro e montou ele mesmo. Passaram
duas mulheres e uma disse para a outra:
– Olhe só que sujeito egoísta! Vai no burro e o filhinho a pé, coitado...
Ouvindo aquilo, o homem fez o menino montar no burro na frente dele. O
primeiro viajante que apareceu na estrada perguntou ao homem:
– Esse burro é seu?
O homem disse que sim. O outro continuou:
– Pois não parece, pelo jeito como o senhor trata o bicho. Ora, o senhor é
que devia carregar o burro em lugar de fazer com que ele carregasse duas
pessoas.
Na mesma hora o homem amarrou as pernas do burro num pau, e lá se
foram pai e filho aos tropeções carregando o animal para o mercado. Quando
chegaram, todo mundo riu tanto que o homem, enfurecido, jogou o burro no rio,
pegou o filho pelo braço e voltou para casa.
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O LIXO
Luís Fernando Veríssimo
(Para um homem e uma mulher)
Personagens:
- Mulher.
- Homem.
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a
primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei
cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns
restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
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- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como
moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivínhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro
amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
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- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.
Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até
bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer
que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de
conhecê-Ia. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam
dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem
que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
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- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O
que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.
O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode ...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?
70
O REI DOS ANIMAIS
Millôr Fernandes
(Para uma pessoa)
Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda era o Rei das
Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso alterado a
psicologia e os métodos de combate das feras, as relações de respeito entre os
animais já não eram as mesmas, de modo que seria bom indagar. Não que
restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se é uma
das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal. Ouvir da
boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando ele nos é
favorável, eis um prazer dos deuses.
Assim o Leão encontrou o Macaco e perguntou: "Hei, você aí, macaco quem é o rei dos animais?" O Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, deu
um salto de pavor e, quando respondeu, já estava no mais alto galho da mais alta
árvore da floresta: "Claro que é você, Leão, claro que é você!".
Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio:
"Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta, não
é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom de improvisar, mas apenas
o de repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão? Não é o Leão?
Currupaco, não é o Leão?".
Cheio de si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca de novas afirmações
de sua personalidade. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja, não sou eu o
maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas disse de sábia, não de crente.
E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais alto de cabeça. Encontrou o tigre.
"Tigre, - disse em voz de estentor -eu sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu,
hesitou, tentou não responder, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e
disse, rugindo contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal humorado e já
arrependido, quando o leão se afastou.
Três quilômetros adiante, numa grande clareira, o Leão encontrou o
elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei, Imperador,
Presidente da República, dono e senhor de árvores e de seres, dentro da mata?"
O elefante pegou-o pela tromba, deu três voltas com ele pelo ar, atirou-o contra o
tronco de uma árvore e desapareceu floresta adentro. O Leão caiu no chão, tonto
71
e ensangüentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou: "Que
diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão zangado".
72
PAI NÃO ENTENDE NADA
Luís Fernando Veríssimo
(Para um homem e uma mulher)
Personagens:
- Pai.
- Filha.
- Um biquíni novo?
- É, pai.
- Você comprou um no ano passado!
- Não serve mais, pai. Eu cresci.
- Como não serve? No ano passado você tinha 14 anos, este ano
tem 15. Não cresceu tanto assim.
- Não serve, pai.
- Está bem, está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.
- Maior não, pai. Menor.
Aquele pai, também, não entendia nada.
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PÂNICO
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
O pai do aniversariante foi abrir a porta. Era outro pai.
- Vim buscar o Edmundo.
- Ah, o Edmundo.
- Acho que a turma chama ele de Bocó.
- O Bocó. Certo. Não quer entrar?
- Obrigado. Espero aqui.
O pai do aniversariante entrou na sala e anunciou:
- Vieram buscar o Bocó!
Só conseguiu ser ouvido na terceira vez, porque a algazarra era grande.
- Bocó! Seu pai está aí.
Ninguém se apresentou.
- Edmundo? Tem algum Edmundo?
Ninguém. O aniversariante não sabia do Bocó. Nem se lembrava de tê-lo
visto na festa. Pensando bem, não conhecia nenhum Bocó.
- Como não conhece? Ele está aqui. O pai dele veio buscar.
O pai e a mãe do aniversariante saíram pelo apartamento atrás do Bocó.
Bateram na porta do banheiro, ocupado por oito meninas ao mesmo tempo. O
Bocó não estava entre elas. Procuraram pelos quartos. No quarto do
aniversariante tinha se instalado uma dissidência literária. Um grupo espalhado
pelo chão lia as revistinhas do aniversariante. Nenhum deles era o Bocó. Mas um
se chamava Edmundo.
- Tem certeza que seu apelido não é Bocó?
- Não. É palito.
O pai e a mãe do aniversariante se entreolharam. E agora? Não podiam
simplesmente dizer ao pai do Bocó que seu filho desaparecera. Decidiram reunir
todos os convidados na sala. As meninas foram corridas do banheiro, os quartos
foram esvaziados, todos para a sala.
- Quem é que se chama Edmundo? Você não, Palito.
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Ninguém, além do Palito, se chamava Edmundo. E Bocó? Tinha algum
Bocó no grupo? Nenhum. Alguém sabia que fim levara o Bocó?
Loreta, uma gordinha de cor-de-rosa, levantou a mão.
- Acho que o pai dele já veio buscar.
- Ai, meu Deus – disse a mãe do aniversariante, baixinho.
- Você viu o Bocó sair com alguém?
- Acho que vi. Com um homem.
- Como era o homem?
- Tinha uma barba preta.
- Ai, meu Deus – repetiu a mãe do aniversariante.
Precisavam dizer alguma coisa para o pai do Bocó. Mas o que? Oferecer
outra criança em lugar do Bocó? O Palito? ―Ele é um pouquinho magro, mas olhe:
damos esta gordinha de brinde.‖ A responsabilidade Ra deles. Precisavam evitar
o escândalo. Precisavam, antes de mais nada, ganhar tempo.
Foram até a porta.
- O senhor tem certeza de que não quer entrar?
- Obrigado.
- Não nos leve a mal, mas o senhor pode provar que é pai do Bocó?
- Provar? Como, provar?
- Hoje em dia, todo cuidado é pouco.
- Mas é só trazer o Bocó aqui. Ele vai me reconhecer.
- Sei não. Criança é muito sugestionável.
- Mas isto é um absurdo! Eu não tenho nenhum documento que diga ―Pai
do Bocó‖.
- Uma foto...
- Tenho!
O pai do Bocó produziu uma foto. Ele, a mulher, o Bocó e outra criança, de
colo. O pai do aniversariante pegou a foto, disse ―Um momentinho‖ e levou a foto
para a sala. A Loreta examinou a foto. Confirmou que fora aquele Bocó que vira
sendo levado pelo homem de barba preta. ―Ai, meu Deus!‖, disse a mãe do
aniversariante. O pai do aniversariante levou a foto de volta ao pai do Bocó.
- Ele não o reconheceu.
- O quê?!
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O pai do Bocó tentou entrar no apartamento, mas foi contido pelo pai do
aniversariante.
- Epa! Epa! Aqui o senhor não entra. Aliás, nem sei como entrou no prédio.
- Eu disse ao porteiro que vinha buscar uma criança na festa do 410.
- Eu vou falar com esse porteiro. Que segurança é essa? Deixam entrar
qualquer um. Homem de barba preta...
- Homem de barba preta? – perguntou o pai do Bocó.
- 410? – perguntou o pai do aniversariante, dando-se conta.
- Que homem de barba preta?
- Este não é o 410. É o 510.
- Que homem de barba pré... Este é o 510?
- Você bateu no apartamento errado.
- Aqui não é a festa de aniversário do Piolho?
- Não. É a festa de aniversário do Felipe. Foi por isso que seu filho não o
reconheceu!
- Está explicado!
Os dois apertaram-se as mãos e o pai do Bocó foi buscar o filho no
apartamento de baixo, aliviado. A história só não acabou bem para a Loreta, que
levou tanto safanão que chegou em casa sem o tope do vestido.
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PEÇA INFANTIL
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
A professora começa a se arrepender de ter concordado (―Você é a única que tem
temperamento pra isso‖) em dirigir a peça quando uma das fadinhas anuncia que
precisa fazer xixi. É como um sinal. Todas as fadinhas decidem que precisam,
urgentemente, fazer xixi.
- Está bem, mas só as fadinhas – diz a professora. – E uma de cada vez!
Mas as fadinhas vão em bando para o banheiro.
- Uma de cada vez! Uma de cada vez! E você, onde é que pensa que vai?
- Ao banheiro.
- Não vai não.
- Mas tia...
- Em primeiro lugar, o banheiro já está cheio. Em segundo lugar, você não
é fadinha, é caçador. Volte para o seu lugar.
Um pirata chega atrasado e com a notícia de que sua mãe não conseguiu
terminar a capa. Serve uma toalha?
- Não. Você vai ser o único de capa branca. É melhor tirar o tapa-olho e
ficar de anão. Vai ser um pouco engraçado, oito anões, mas tudo bem. Por que
você está chorando?
- Eu não quero ser anão.
- Então fica de lavrador.
- Posso ficar com o tapa-olho?
- Pode. Um lavrador de tapa-olho. Tudo bem.
- Tia, onde é que eu fico?
É uma margarida.
- Você fica ali.
A professora se dá conta de que as margaridas estão desorganizadas.
- Atenção, margaridas! Todas ali. Você não. Você é coelhinho.
- Mas o meu nome é margarida.
- Não interessa! Desculpe, a tia não quis gritar com você. Atenção,
coelhinhos. Todos comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. Lavradores daquele
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lado, árvores atrás. Árvore, tira o dedo do nariz. Onde é que estão as fadinhas?
Que xixi mais demorado.
- Eu vou chamar.
- Fique onde está, lavrador. Uma das margaridas vai chamá-las.
- Já vou.
- Você não, Margarida! Você é coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá
chamar as fadinhas. Piratas, fiquem quietos.
- Tia, o que eu sou? Eu esqueci o que eu sou.
- Você é o sol. Fica ali que depois a tia... Piratas, por favor!
As fadinhas começam a voltar. Com problemas. Muitas se enredaram nos
véus e não conseguem arrumá-los. Ajudam-se mutuamente, mas no seu
nervosismo só pioram a confusão.
- Borboletas, ajudem aqui – pede a professora.
Mas as borboletas não ouvem. As borboletas estão etéreas. As borboletas
fazem poses, fazem esvoaçar seus próprios véus e não ligam para o mundo. A
professora, com a ajuda de um coelhinho amigo, de uma árvore e de um
camponês, desembaraça os véus das fadinhas.
- Piratas, parem. O próximo que der um pontapé vai ser anão.
Desastre: quebrou a ponta da lua.
- Como é que você conseguiu isso? – pergunta a professora sorrindo,
sentindo que o seu sorriso deve parecer demente.
- Foi ela!
A acusada era uma camponesa gorda que gosta de distribuir tapas entre
os seus inferiores.
- Não tem remédio. Tira isso da cabeça e fica com os anões.
- E a minha frase?
A professora tinha esquecido. A lua tem uma fala.
- Quem diz a frase da lua é, deixa ver... O relógio.
- Quem?
- O relógio. Cadê o relógio?
- Ele não veio.
- O quê?
- Está com caxumba.
- Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que falar pela lua. Sol, está me ouvindo?
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- Eu?
- Você, sim senhor. Você é o sol. Você sabe a fala da lua?
- Me deu uma dor de barriga.
- Essa não é a frase da lua.
- Me deu mesmo, tia. Tenho que ir embora.
- Está bem, está bem. Quem diz a frase da lua é você.
- Mas eu sou caçador.
- Eu sei que você é caçador! Mas diz a frase da lua! E não quero
discussão!
- Mas eu não sei a frase da lua.
- Piratas, parem!
- Piratas, parem. Certo.
- Eu não estava falando com você. Piratas, de uma vez por todas...
A camponesa gorda resolve tomar justiça nas mãos e dá um croque num
pirata. A classe é unida e avança contra a camponesa, que recua, derrubando
uma árvore. As borboletas esvoaçam. Os coelhinhos estão em polvorosa. A
professora grita:
- Parem! Parem! A cortina vai abrir. Todos a seus lugares. Vai começar!
- Mas tia, e a frase da lua?
- ―Boa noite, sol.‖
- Boa noite.
- Eu não estou falando com você!
- Eu não sou mais o sol?
- É. Mas eu estava dizendo a frase da lua. ―Boa noite, sol.‖
- Boa noite, sol. Boa noite, sol. Não vou esquecer. Boa noite, sol...
- Atenção, todo mundo! Piratas e anões nos bastidores. Quem fizer um
barulho antes de entrar em cena, eu esgoelo. Coelhinhos nos seus lugares.
Árvores, para trás. Fadinhas, aqui. Borboletas, esperem a deixa. Margaridas no
chão.
Todos se preparam.
- Você não, Margarida! Você é coelhinho!
Abre o pano.
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PNEU FURADO
Luís Fernando Veríssimo
(Para uma pessoa)
O carro estava encostado no meio-fio, com um pneu furado. De pé ao lado do
carro, olhando desconsoladamente para o pneu, uma moça muito bonitinha. Tão
bonitinha que atrás parou outro carro e dele desceu um homem dizendo ―Pode
deixar‖. Ele trocaria o pneu.
- Você tem macaco? – perguntou o homem.
- Não – respondeu a moça.
- Tudo bem, eu tenho – disse o homem. – Você tem estepe?
- Não – disse a moça.
- Vamos usar o meu – disse o homem.
E pôs-se a trabalhar, trocando o pneu, sob o olhar da moça. Terminou no
momento em que chegava o ônibus que a moça estava esperando. Ele ficou ali,
suando, de boca aberta, vendo o ônibus se afastar. Dali a pouco chegou o dono
do carro.
- Puxa, você trocou o pneu pra mim. Muito obrigado.
- É. Eu... Eu não posso ver pneu furado. Tenho que trocar.
- Coisa estranha.
- É uma compulsão. Sei lá.
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PROVA FALSA
Stanislaw Ponte Preta
(Para uma pessoa)
Quem teve a idéia foi o padrinho da caçula – ele me conta.Trouxe o
cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho.
Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde
que seja obediente e com um mínimo de educação.
- Mas o cachorro era um chato – desabafou.
Desses cachorrinhos de raça, cheios de nhém-nhém-nhém, que
comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um
chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono
da casa.
- Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu
entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de
cachorro de francesa.
Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da
oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro
ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num
corredor ou qualquer outra dependência da casa, o desgraçado rosnava
ameaçador, mas quando a patroa estava por perto abanava o rabinho,
fingindo-se seu amigo.
- Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico,
minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro cínico
e eu é que implicava com o ―pobrezinho‖.
Num rápido balanço poderia assinalar: O cachorro comeu oito
meias suas, roeu a manga de um paletó de casemira inglesa, rasgara
diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para locais
incríveis. A vida lá em casa estava se tornando insuportável. Estava
vendo a hora em que se desquitava por causa daquele bicho cretino.
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Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma choradeira das
crianças e uma espinafração da mulher.
- Você é um desalmado – disse ela, uma vez.
Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do
adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias
vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete
da sala. Fez duas vezes na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes
fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em
cima do vestido novo de sua mulher.
- Aí mandaram o cachorro embora? – perguntei.
- Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo
que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova
residência.
- Ué... mas você não o detestava? Como é que ainda arranjou
essa sopa pra ele?
- Problema de consciência – explicou: - O pipi não era dele.
E suspirou cheio de remorso.
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Apostila n.º 01 de Histórias – Instituto História Viva