Rafael (1483 — 1520) Êxtase de Santa Cecília (c.1514) josé manuel rodrigues O quadro representa Santa Cecília, padroeira da música, olhando enlevadamente um céu de azul escuríssimo. Ao alto, o azul abre-se em dourado e seis anjos cantam numa nuvem de algodão em rama. Nas suas delicadas mãos, segura com algum desagrado, um órgão portátil. Tem os pés nus por entre sandálias e sobre eles, uma Viola da Gamba e vários instrumentos de percussão: triangulo, pandeireta, e outros. A explicação clássica para esta pintura aponta para um certo descontentamento de Cecília no que se refere particularmente à música dos humanos, a música que ela própria cultivou. Por isso, despe-se dos seus instrumentos e fica a sonhar com a agradável sinfonia de sons (Boethius, De Institutione Musica) semelhante aos coros angélicos (William Shakespeare, The Merchant of Venice1). 1 In Act V, Scene I, Lorenzo contempla a música das esferas celestes. Mas, a figura central poderá não ser um factor muito surpreendente, talvez se deva reparar mais nas figuras que a acompanham. Essas sim, causam alguma perplexidade. Em primeiro plano, está São Paulo à esquerda e Santa Maria Madalena à direita. Paulo, de grande túnica encarnada, espada à cinta e uma das epístolas na mão direita, tem o queixo apoiado na mão esquerda e nem céu nem anjos parecem dizer-lhe seja o que for. Com ar magoado (não parece estar triste!), olha absorto nos objectos jazentes (para os instrumentos quebrados no chão), como se aquela destruição o perturbasse ou a não compreendesse. Não vê mais nada, nem vê mais ninguém. Do lado oposto, Madalena, com o vaso dos perfumes na mão direita, é a única figura que nos olha de frente e que nos surpreende de facto. Apresenta-se como se fosse ela a encenadora da acção. Tem cabelos louros mais brilhantes do que o Sol, os olhos são verdes, o seu rosto é de ouro puro, tem um ar altivo e está sumptuosamente vestida. No segundo plano, à esquerda, S. João Evangelista, do qual só é possível ver a cabeça e o busto. À direita, Santo Agostinho, com as vestes episcopais. Olham-se um ao outro e parecem estar a comentar alguma situação da qual eles poderão também não compreender, ou, quem sabe, a falar sobre algum estado de graça que gratuitamente encontram ali. Do grupo, emerge o báculo de Agostinho, a única nota escura no tal azul do céu. * Como se poderá explicar o ensimesmamento de Paulo e o colo de garça de Madalena? Que mistério une e que mistério separa essas figuras? Porquê um tal par? Uma última nota: compreende-se a atitude de Cecília ao despregar-se de si mesma para se entregar nesse momento voluntariamente a uma força vinda sabe-se lá de onde.