Entrevista com Renata1
Marco Antonio Coutinho Jorge
Lia Amorim
Dados fornecidos antecipadamente pelo Dr. Ivan Nogueira Bastos, diretor do Instituto
Médico Legal do Rio de Janeiro: Renata, transexual masculino, operado há onze meses em São
Paulo. Seu interesse em falar conosco foi a possibilidade de veiculação de sua causa, que é a
de obter juridicamente a mudança de identidade quanto ao sexo (e conseqüentemente quanto
ao nome), no registro civil. Outro motivo que a levou a querer entrar em contato conosco foi o
de conhecer pessoas, uma vez que, por causa dos problemas que tem no momento, sente-se
muito só.
Ao declararmos nossa intenção de gravar, Renata não permite, alegando que não quer
ter seu nome divulgado, embora, de início, lhe tivéssemos afirmado que não declinaríamos
seus nomes.
Ela diz: “Se vocês quiserem saber de mim vocês têm que me acompanhar, ir
aonde eu for.”
Diante de nossa insistência, ela argumenta: “O que for importante, vocês vão lembrar,
o que não for, vão esquecer.”
O gravador é desligado e Renata começa a falar.
Marco Antonio Coutinho Jorge – Renata, como é que tudo isso começou, quero dizer,
essa mulher que se chama Renata?
Renata – Aos sete anos de idade eu já sabia quem eu era. Eu tinha um pirú que estava
lá e não era pra estar. Eu rezava para ele cair. Tinha tudo de menina. Nunca pensei o
contrário. Então, fui procurar um padre alemão, lá na minha terra (Paraíba) e ele me disse que
isso na terra dele era comum, mas aqui era pecado. Ele não me ajudou. Encontrei, depois,
muita compreensão no espiritismo. Rezei até a adolescência e, então, saquei que milagre não
existe – sou muito realista. Vi que não ia cair mesmo e eu tinha mais era que ir à luta.
Vim para o Rio de Janeiro com meu empreguinho no INAMPS e trabalhei sete anos
juntando o que podia, para a operação. Aqui no Rio, procurei o IEB e lá tive entrevistas com
uma psicóloga, depois com um psicanalista que me mandou namorar uma mulher, assumir o
sexo que eu tinha. Foi uma merda. Me senti homossexual. Era uma vida ruim, eu não podia
amar... Então, fui a um psiquiatra e depois a um endocrinologista, que me indicou o cirurgião
que mais tarde me operou.
Lia Amorim – Quem disse pela primeira vez que você é transexual?
1
Ficcionamos um nome com correspondente no masculino, como é o caso de seu “verdadeiro” nome. Nossa escolha
não foi, entretanto, casual, uma vez que incidiu no próprio dito da entrevistada que se diz re-nata.
Renata – O cirurgião. Foi ele. O mesmo que me deu o corpo que eu tenho.
Lia Amorim – E agora, sua relação com seu corpo novo...
Marco Antonio Coutinho Jorge – Está valendo a pena?
Renata – Ah! Agora eu sou macaca de mim mesma. Macaquíssima! Me olho no espelho
e curto o meu corpo. Antes, eu tinha vergonha do meu corpo, mesmo porque ele não tinha
nada a ver comigo. Valeu a pena toda a dor que eu senti. Eu nasci com a cirurgia, proque aí o
meu corpo ficou de acordo com o que sempre pensei de mim.
Lia Amorim – E os outros, as outras pessoas...
Renata – Bom, não vou te dizer que a situação é fácil. Os “heteros” me aceitam com
mais facilidade do que os homossexuais. Acho que é porque os homossexuais não assumem
nada, não são nem homem nem mulher. Eles, no fundo, gostariam de fazer o que eu fiz.
Travesti então, nem se fala! Travesti é falso.
Lia Amorim – Então você acredita na heterossexualidade...
Renata – (rindo muito) Não me venha falar em bissexualidade porque isso não existe. A
confusão é que, no fundo, o homem está sempre querendo a mãe na mulher. No dia seguinte
ao da cirurgia, adotei uma criança que nasceu junto comigo. É o filho da minha empregada.
Ele me chama de mãe, e a ela chama pelo nome. Eu boto ele no colo e não se pode negar que
seja um homenzinho – a gente conhece desde que nasce. Ele fica no meu colo com as pernas
abertas, brincando com o piruzinho, coisa de homem mesmo; eu nunca fiquei no colo da
minha mãe com as pernas abertas. Isso já é do sexo mesmo.
Eu sei que meu filho pode ser um obstáculo para um homem se aproximar de mim. O
homem pode pensar que eu estou querendo que ele sustente a criança e a mim. Eu sempre
digo aos homens que sou independente. Agora não estou muito bem, financeiramente, por
causa dos gastos com a cirurgia, mas, com o tempo, claro que vou comprar tudo o que uma
pessoa normal precisa. Não preciso de homem pra isso. Eu me sustento!
Lia Amorim – Renata, o que é ser uma mulher?
Renata – Nada! A mulher não é nada se não tem um homem ao lado. Quer ver? Um
casal me convida para uma boate. O homem não olha pro meu corpo – eu sei que não tenho
corpo bonito, não tenho cintura.
Marco Antonio Coutinho Jorge – Mas tem jogo de cintura...
Renata – Isso eu tenho. Aliás, tenho pernas muito bonitas. Mas o homem fica
impressionado é com o meu papo. A mulher não gosta disso, é aí que ela dança. Se o homem
quiser, ele larga a mulher e fica comigo. Homem é bicho-cão. É ele quem decide.
Lia Amorim – Vivemos, então, no imperialismo do pau?
Renata – Mas é claro! Tudo depende do homem e é com papo que eu ganho ele. Eu sei
que não sou burra, sou uma mulher inteligente, emancipada. Você, que pelas informações que
tive, também é uma mulher emancipada, sabe muito bem disso. Uma mulher assim rouba o
espetáculo, a outra se sente apagada. Não é pelo corpo, é pela cabeça. Mas é o homem que
faz a mulher.
Lia Amorim – Mas, se uma mulher como essa que você descreveu está com “seu
homem”, você acha que isso impede que um outro homem a admire? E, sendo assim, não
seria pelo fato de ser uma mulher sozinha, não é?
Renata – A sociedade não aceita mulher sozinha.
Marco Antonio Coutinho Jorge – E o amor? Você há pouco disse que antes da cirurgia
nunca tinha amado.
Renata – Os homens hoje em dia só querem cama, não querem amor. Amor é alguma
coisa de sensibilidade, de carinho. Ter uma companhia, alguém que participe das coisas junto
com a gente, que nos curta. Quer saber? Acho que nunca vou amar ninguém, porque os
homens olham para mim com outras intenções. Não estão nem aí pra saber que sou uma
menina-moça que está desabrochando nos seus trinta e um anos para se tornar mulher, tudo
o que eu passei, como é que eu me sinto... Não se importam com o processo que está
acontecendo em mim, mus seios crescendo, meus quadris tomando forma, todo o meu corpo
que vai se ajustar...
Lia Amorim – Renata, e o sexo?
Renata – Sexo está entre as orelhas e não entre as pernas. Toda a questão sexual é
uma questão de emoções. E tem gente que tem a ousadia de perguntar como é que eu gozo!
Lia Amorim – Você falou agora há pouco que o homem faz confusão querendo a mãe na
mulher...
Renata – É claro, mas eu não confundo essas coisas. Sou mãe para o meu filho e quero
ser mulher para o homem. Essa história de trocar de lugar não dá. Mulher é uma coisa, mãe é
outra.
Dr. Ivan lembra a questão legal com que Renata está no momento envolvida, para ter
reconhecida sua nova identidade. E Renata nos fala de uma realidade que enfrentam os
transexuais operados. Ela, por exemplo, não pode sair à rua com um vestido (“Não que isso
seja importante, andar de vestido, mas, de repente, dá vontade”). Se for abordada
pela
polícia e mostrar seus documentos que a identificam como homem, ela terá que explicar a
questão na delegacia, apesar de andar sempre com a certidão do médico que a operou, e que
lhe atesta a mudança de sexo. Isso limita sua vida social. É perigoso andar sozinha, a não ser
na praia. Mesmo no trabalho, o não reconhecimento legal de sua nova identidade traz
problemas – trabalha sempre de jeans e procura se apresentar de maneira “ambígua”, coisa
que a desagrada, porque acha que, com isso, engana as pessoas, e ela não gosta de enganar
ninguém.
Renata é membro ativo de uma associação de auxílio a transexuais pobres e lidera um
movimento cuja proposta é obter a legalização da mudança de identidade sexual no registro
civil.
Download

Entrevista com Renata1 Marco Antonio Coutinho Jorge Lia Amorim