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O SIGNIFICADO DO TRABALHO NO SETOR PÚBLICO: UM ESTUDO
EXPLORATÓRIO
INTRODUÇÃO
O trabalho é o meio pelo qual o homem se relaciona com o mundo exterior, onde,
permanentemente, busca o prazer e luta contra o sofrimento. Resultando desse embate
vivências que determinam a qualidade das relações em todos os aspectos de sua
existência.
Assim, o trabalho, com seus elementos causadores de prazer e sofrimento,
constitui-se numa atividade decisiva para o equilíbrio psíquico do indivíduo e para o
desenvolvimento da comunidade que integra, influenciando-se mutuamente, através de
uma rede complexa de sentimentos e representações em constante movimento.
Este estudo procura analisar o significado do trabalho no setor público, a partir
dos fatores de prazer e sofrimento presentes no fazer cotidiano dos servidores públicos,
em particular, daqueles que desenvolvem suas funções na área-meio da administração
direta estadual.
A relevância do estudo encontra-se na possibilidade de contribuir com as
mudanças em andamento no Estado, repercutindo na vida dos servidores, através dos
investimentos em políticas e planejamento de recursos humanos.
A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de analisar a influência dos fatores de
prazer e sofrimento no significado do trabalho e na formação da identidade dos
servidores da Secretária de Administração e Recursos Humanos do Estado do Rio
Grande do Sul.
Nosso estudo é dividido em três partes: na primeira parte é tratada a evolução
das representações do servidor público,paralelamente aos períodos de alterações
políticas e econômicas que repercutiram nas especificidades empregatícias da categoria,
assim como as possíveis implicações em sua identidade. Na segunda parte é destacada o
método de pesquisa utilizado, no caso, a análise de contéudo. Finalmente, na terceira
parte são discutidos os resultados obtidos e apresentadas sugestões para futuras
pesquisas.
1 - SERVIDOR PÚBLICO: REPRESENTAÇÕES, CARREIRA E IDENTIDADE
No Brasil, o emprego público sempre registrou o encontro de posicionamentos
contraditórios que, dispensando o exame de fatores que concorreram para a formação
de suas representações, capazes de atestar-lhes os limites, colocaram-no, de um lado,
como símbolo de poder e relevância social e, de outro, alvo de críticas desabonadoras,
porém sempre desejado nas várias camadas da sociedade.
Na Constituição Federal em vigor, nos Arts. 37 a 41 que tratam “Da
Administração Pública”, é utilizada a expressão servidor público civil para referir os
que exercem cargo, função ou emprego público não militar.
Assim, neste trabalho, serão encontradas a palavra funcionário, assim como,
mais freqüentemente, a expressão servidor público.
No Brasil, assim como nas sociedades européias antes da Revolução Industrial,
até o final do século XIX, o trabalho era associado à escravidão e à baixa condição social
e as relações dos homens livres baseadas no favor, em que o emprego público constituíase numa das formas que permitia aos não-proprietários se integrarem à classe dos que o
eram (SCHWARS apud VENEU, 1990).
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A década de 20, já desenharia mais nitidamente os destinos do pequeno burguês,
categoria em que se alistavam os funcionários públicos, situada entre as oligarquias
agrárias e a burguesia industrial e os novos grupos sociais que esta fazia emergir, como
o operariado industrial, com novos comportamentos culturais e políticos.
Com o esgotamento da República Velha, a radicalização política da década de 30
passou a requerer dos intelectuais simpatizantes um romance proletário brasileiro. A
base política do regime, então, passava a ser o proletariado urbano no pólo oposto às
medidas que atiçavam a burguesia industrial e as oligarquias agrárias, que, também,
investiam na indústria (DEAN, 1971).
Apesar da polarização política, o governo continuava a dar o exemplo no campo
trabalhista, demonstrado, entre outras formas, pela criação do IPERGS, em 1931, com a
finalidade de oferecer previdência — pensão e pecúlio — aos servidores públicos do
Estado. O Estado Novo, em 37, juntamente com a polícia política e o DIP, criava o
DASP, que justificava um corpo funcional calcado na capacidade técnica e
pretensamente neutro.
O emprego público, com o tratamento diferenciado dispensado aos servidores,
destinado a retribuir a fidelidade esperada dos agentes executores das políticas públicas,
poderia representar, então, um espaço imediato de tranqüilidade entre proprietários e
operários envolvidos em suas penúrias, nos períodos em que se acirravam os
movimentos dos trabalhadores em busca de proteção legal por melhores salários e
condições de vida e trabalho, tanto antes como depois da promulgação da CLT, em
1943.
O desprezo ao pequeno-burguês, cada vez mais atrelado ao crescente contingente
dos pequenos funcionários públicos, aumenta de maneira marcante nos anos 50.
As opções de desenvolvimento, concentradoras de renda, fizeram-se acompanhar
de crescente contratação de servidores públicos, desde a era de Vargas até o regime
militar, deflagrado em 64, em que a exacerbação das funções do Estado, nos anos 70,
contratou grande contingente de pessoal sem concurso, em regime celetista, logrando a
estabilidade no emprego na Constituição de 1988.
No final da década de 80, o servidor público volta à cena nacional, representado,
então, pelo Marajá, que de forma alguma reflete a realidade dos baixos salários pagos à
expressiva maioria dos servidores públicos.
De fato, dependendo da origem sócio-econômica, do grau de escolaridade e das
expectativas sócio-profissionais, o emprego público ganha importância ao representar a
possibilidade de um emprego seguro ante o temor e supervalorização do mercado de
trabalho, de vagas escassas, exigente em escolaridade e experiência, que trata e paga
mal. A identidade pressupõe um processo anterior de representação do indivíduo e que
o constitui, como ser filho de determinada família ou pertencente a algum grupo social.
Tal configuração se concretiza na confirmação dessa representação pelas relações
que o envolvem, em cuja ação e interação o indivíduo atualiza sua identidade, através do
processo da confirmação ou anulação (CIAMPA, 1985).
Assim, concursado ou nomeado, ao ingressar no serviço público, o novo servidor
raramente tem a compreensão da realidade onde se insere. A noção de Estado e do seu
papel é difusa e freqüentemente confundida com governantes e lideranças políticas.
As regras do jogo formam “(...) imagens que permitem a coerência das condutas
coletivas, levando, de forma secundária, os indivíduos a se comportarem de maneira
uniforme e previsível e livre das interrogações próprias e dos demais.” (MOTTA, 1991,
p. 8).
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O emprego público que se caracteriza pelo alijamento da ação transformadora do
trabalhador, em que a organização assume a conotação de ente distante, intocável, de
empregador desconhecido e mutável, parece pôr em risco, além do significado do
trabalho, que conjuga o meio sócio-cultural e histórico com a subjetividade do
indivíduo, o sentido de utilidade e reconhecimento social do trabalho que fornece a
identidade necessária ao equilíbrio humano.
2. -PRAZER E SOFRIMENTO NO TRABALHO
DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX (1993) compreendem que, através das
diferentes relações do indivíduo com seu trabalho, sua saúde seja implicada no mais alto
nível. Segundo a Organização Mundial da Saúde, “(...) a saúde é um estado completo de
bem-estar físico, mental e social e não consiste, somente, em uma ausência de doença ou
enfermidade.”(DEJOURS, 1993, p. 99).
DEJOURS critica tal conceito, pelo fato de ser muito difícil dar-lhe uma
definição, visto que cada pessoa tem, intuitivamente, uma idéia de saúde e do que
significa este completo bem-estar, pondo em dúvida sua existência, chegando a afirmar
que ele não existe. Prefere, entretanto, considerar o completo bem-estar mais como um
ideal do que uma realidade, numa perspectiva em que a saúde não seria um estado, mas
um objetivo.
Para a escola dejouriana, diferentemente da perspectiva de carga física no
trabalho, da qual se ocupa a ergonomia e em que o perigo é o emprego exagerado das
aptidões fisiológicas, na carga psíquica do trabalho, o risco é a retenção da energia
pulsional, a chamada tensão nervosa. Desta forma, se o trabalho permite o
rebaixamento da tensão, produzindo o alívio da carga psíquica do trabalho e o prazer,
ele é um instrumento de equilíbrio para o trabalhador. Porém, um trabalho que não
ofereça nada de importante para fazer e ainda obriga a presença do trabalhador,
fazendo-o fingir que está ocupado, rapidamente irá gerar um aumento da carga
psíquica, transformando-se em fonte de tensão e desprazer, seguida por uma intensa
fadiga, posteriormente a astenia e, finalmente, a patologia.
Para DEJOURS, “(...) o modelo de homem construído pela Psicopatologia do
Trabalho é inteiramente centrado no sofrimento e seus destinos, em função da situação
real de trabalho e das características da organização do trabalho.” (DEJOURS;
ABDOUCHELLI e JAYET, 1994, p. 161).
A posição central que a Psicopatologia do Trabalho confere ao sofrimento é
determinada pelo seu valor tanto no domínio da subjetividade e das condutas como da
produção, bem como nos destinos do sofrimento. A eliminação do sofrimento no
trabalho configura-se um objetivo inatingível, pois sua supressão implicaria seu
reaparecimento em outras formas propiciadas pela realidade.
Na escola dejouriana, o termo psicopatologia não é compreendido no sentido
mórbido; além da psicopatologia do cotidiano e da psicopatologia do trabalho, aborda
uma psicopatologia da normalidade (DEJOURS; ABDOUCHELI e JAYET, 1994).
Na lacuna entre a organização do trabalho prescrita e a real, a sublimação tem
seu espaço, onde é nutrida a expectativa da descoberta e da criação socialmente úteis
que conferem reconhecimento e identidade — a contrapartida do sofrimento criativo
que lhe dá sentido.
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O sofrimento patogênico, por sua vez, consiste na luta em busca da paralisia da
atividade psíquica, travada em função da cisão excessiva entre a concepção e a execução,
em que o pensamento voluntário interfere na atividade. Tarefas anti-sublimatórias
promovem a repressão pulsional, que instala um torpor progressivo, aumentando a
sensação de inércia e reduzindo a capacidade de reação, geralmente culminando com a
manifestação aguda de doença somática. Também chamada depressão essencial, tal
repressão pode extrapolar o espaço da organização, instalando-se também em outros
aspectos da vida, com prejuízo significativo nas trocas afetivas e, em especial, sobre as
crianças que estão voltadas à atividade lúdica e interações fantásmicas, das quais o
sujeito distancia-se, por colocarem em risco a defesa que tanto lhe custou adquirir
(DEJOURS, 1993).
A ressonância simbólica, originada da imaginação da criança, no processo de
tentativa de compreender o sofrimento dos pais, posteriormente é responsável pela
capacidade do indivíduo engajar-se na situação de trabalho para a realização de sua
curiosidade e epistemofilia, transferindo o sofrimento original para a realidade social.
Assim, a ressonância simbólica depende de condições concretas para o seu
estabelecimento. A primeira condição é a escolha da profissão, que sofre a ação da
violência simbólica, posto que é determinada pela origem social do indivíduo, que lhe
permitirá ou não a formação necessária à profissão escolhida (BORDIEU; PASSERON,
1992). A segunda se refere às condições reais de trabalho, decorrentes das diferenças
entre profissão e função, que restringem o espaço para o investimento sublimatório e a
ressonância simbólica, determinado pela responsabilidade relativa à concepção. A
terceira diz respeito ao caráter coletivo do trabalho, que supõe o julgamento dos pares,
esperando pelo reconhecimento social e a conquista da identidade (DEJOURS, 1993).
A falta de condições favoráveis impede o sujeito de beneficiar-se do trabalho,
para transformar seu sofrimento em criatividade, levando-o a engajar-se num círculo
vicioso, que favorece sua desestabilização e o impele à doença, caracterizando o
sofrimento patogênico.
A alienação, institucionalizada pela administração pública, parece ter-se
transformado num mecanismo de redução de culpas, mediando contradições entre os
governantes e sociedade, mantendo um nível de ineficiência tolerável, em nome da
manutenção da ordem social.
Ser servidor público tem significado alienar sua autonomia nos escalões
superiores, especialmente aos representantes dos governos onde a rara presença na
formulação de políticas públicas, incumbe-se de levar as determinações dos dirigentes,
pondo o conhecimento à disposição de idéias e interesses alheios a sua visão sobre a
administração pública. Relegados ao anonimato, esses servidores despojam-se do
produto de seu trabalho, configurando-se a institucionalização da expropriação.
Entre os servidores comuns, o trabalho reduz-se a pequenas tarefas atreladas a
formulários e à guarda de regulamentos que esvaziam o trabalho individual, fazendo
perder a noção da produção coletiva, privado de significado social. Na esteira da
alienação, o servidor público inclui, também, sua imagem, tomada pela figura do
barnabé, confundida, ainda, com os marajás e ações de políticos que institucionalizam o
assalto aos cofres públicos e que nada têm a ver com os servidores e seus baixos salários
(MATOS, 1994).
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Diante da alienação produzida, o servidor em muito se aproxima da figura do
pobre-diabo apresentada por PAES (1988), pequeno burguês que cede às imposições
sociais, satisfaz-se com pouco, vivendo o cotidiano como um percevejo social ou um
parafuso insignificante na máquina do Estado.
Além disso, há a rivalidade levada a efeito por tratamentos distintos, conferidos
aos vários órgãos executores das funções do Estado, segundo a ênfase de sucessivos
planos de governos, também existindo entre os servidores no interior das organizações
públicas, que fomenta os nichos de proteção de subgrupos, voltados para objetivos
próprios e interesses particulares, encarregando-se de manter a ineficiência dos serviços
públicos com a ausência de condições favoráveis a situação real de trabalho, capazes de
beneficiar o seu caráter coletivo.
Dentro do quadro de circunstâncias históricas e sociais que envolvem o servidor
e, por extensão o emprego público, desde a confusão entre Estado e lideranças políticas,
pessoal de carreira e cargos comissionados, ausência de finalidades efetivas e
distanciamento ou impropriedade de objetivos, contratação pouco criteriosa e ausência
de qualificação, desenvolve-se a reprodução da sociedade que Schwartzmann identifica
como “(...) acovardada, submetida, mas por isso mesmo, fugidia e freqüentemente
rebelde.” (SCHWARTZMANN, 1988, p. 14).
Um profundo silêncio encobre a dissociação entre emprego e trabalho, colocando
a condição de servidor público ao nível do desconforto do trabalho que estigmatiza e
desprepara, desencoraja e debilita. A ocultação da origem de tal estado de coisas parece
desencadear formas consentidas de fraudar os órgãos públicos em todos os níveis
hierárquicos.
O ajustamento da organização prescrita no trabalho, com freqüência, impele os
servidores para a ilegalidade e, de alguma forma, a correr riscos. Para Dejours, “(...) o
risco psíquico circula entre todos os atores em cena, de um lado a outro e de cima para
baixo. E, queiramos ou não, esse risco faz parte integrante da carga de trabalho.”
(DEJOURS, 1993, p. 169).
Embora o prazer e o sofrimento remetam a um sujeito que tem uma história
particular, de maneira que não possam ser vivenciados por todos da mesma forma,
vários sujeitos vivendo um sofrimento individualmente podem reunir esforços para
construir uma estratégia de defesa comum, que funciona como uma regra, destinada a
proteger na luta contra a organização do trabalho, conferindo ao sujeito uma
estabilidade que ele sozinho seria incapaz de garantir (DEJOURS; ABDOUCHELI;
JAYET, 1994).
Como as estratégias defensivas deformam a expressão do sofrimento, há o risco
da alienação, e o sofrimento pode deixar de ser reconhecido como conseqüência do
trabalho e de sua organização. A estratégia defensiva passa, então, a ser um fim em si
mesma, mobilizando esforços para combater tudo o que possa ameaçá-la, passando à
categoria de ideologia.
A ideologia defensiva, opondo-se à elaboração do sofrimento e à avaliação da
realidade e, por conseguinte, à ação transformadora sobre a organização do trabalho,
culmina em conflitos de poder que tendem a agravar os efeitos patogênicos do trabalho.
Assim, atitudes julgadas imaturas, individualistas, sem qualquer
comprometimento com uma possível causa comum ou com a organização, não
suscetíveis sequer de pressões econômicas, poderiam remeter ao entendimento
precipitado de uma falta de responsabilidade generalizada.
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No entanto, experiências demonstram que a reconstituição de um espaço de
palavra — necessário à pesquisa em Psicopatologia do Trabalho — pode fazer emergir a
compreensão de comportamentos e conhecimentos sobre o trabalho real, via de regra,
ocultados pelas defesas contra o sofrimento. Invariavelmente, o resgate da palavra sobre
o trabalho reestabelece a palavra comum da organização, modificando, sensivelmente,
as condutas individuais e as relações (DEJOURS, 1993).
As contribuições da escola dejouriana, numa primeira análise do contexto onde
se insere a problemática da atitude do servidor público ante o trabalho, parecem indicar
a existência de uma ideologia defensiva, desencadeada por posturas políticas, que
imprimiram na administração pública a licenciosidade necessária para atenuar o
autoritarismo, enquanto instrumento eficaz no solapamento da cidadania.
Na esteira das imposições da nova ordem mundial, com profundas mudanças
econômicas e políticas, o novo Estado que se desenha tem chamado a sociedade civil
organizada a participar das transformações do país, argüídas pela necessidade de
restituir-lhes as funções de que precisa descartar-se, pelo imperativo da redução do seu
papel.
Independentemente do agravamento dos sérios problemas implicados nesse
processo, no âmbito das organizações pode-se observar significativos investimentos em
recursos humanos, em face da competitividade, com vistas a desempenhos que,
juntamente com o desenvolvimento tecnológico, concorrem para a qualidade e
produtividade, das quais o Estado não poderá eximir-se.
Diante de tais demandas, torna-se oportuno ouvir os servidores públicos no que
concerce aos fatores de prazer e sofrimento no trabalho, no sentido de formular políticas
e estratégias de recursos humanos, capazes de implementar modificações efetivas na
administração pública, através de novos formatos organizativos, que promovam novos
comportamentos cujos resultados só serão atingidos a médio e longo prazos.
2 - METODOLOGIA
Este trabalho tem características de um estudo exploratório, descritivo,
considerando-se a pequena produção de pesquisas sobre servidores públicos, sua atitude
frente ao trabalho, sua visão do serviço público e as peculiaridades dessa atividade.
Ao se basear a metodologia na análise de conteúdo, temos como objetivo compreender
criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as
significações explícitas ou ocultas, o que tende a valorizar o material analisado,
especialmente quando a interpretação tiver como parâmetro o contexto social e histórico
onde foi produzido (BARDIN, 1977).
2.1 - DESCRIÇÃO DA AMOSTRA
A nossa amostra é composta nove assessores administrativos que atuam no
Departamento de Administração de Recursos Humanos da Secretaria da Administração
e Recursos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul (DARH). O número de
entrevistados atendeu a 51% da população sem qualquer prejuízo para a pesquisa que,
por ser qualitativa, observou a regularidade do fenômeno.
O DARH possui como principal competência promover estudos, pesquisas e
programas relativos ao recrutamento e à seleção de pessoal para a administração direta
e indireta do Estado, bem como coordenar a execução de processos seletivos de pessoal.
2.4.1 - COLETA E ANÁLISE DE DADOS
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A coleta de dados foi realizada de maneira aleatória através de entrevista semiestruturada.A interferência do pesquisador foi mínima, restringindo-se apenas à
retomada dos tópicos, quando necessária, deixando a palavra livre ao entrevistado.
Os dados foram analisados mediante o método de categorização da análise de
conteúdo, seguindo os três pólos de pré-análise, exploração do material e tratamento dos
resultados, inferência e interpretação.
O desmembramento do texto, de acordo com os conteúdos temáticos dos
parágrafos, acompanhados de suas sínteses, deram origem às categorias iniciais. Estas
categorias foram agrupadas por afinidade, tendo cada grupo uma síntese, dando origem
às categorias intermediárias.
As categorias finais resultaram do agrupamento das categorias intermediárias
que, sendo mais abrangentes, permitiram o tratamento dos dados com maior
aprofundamento da interpretação e compreensão do conteúdo do material coletado.
3. - DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A partir das categorias emergentes da análise de conteúdo, que ofereceram
informações exaustivas, as categorias iniciais e intermediárias convergiram para as
categorias finais: o caráter ideológico do emprego público, a carreira e identidade e
significado do trabalho.
3.1 - O CARÁTER IDEOLÓGICO DO EMPREGO PÚBLICO
A concentração de motivos no desemprego e na estabilidade empregatícia
poderiam remeter à instabilidade econômica e à escassez de oportunidades no mercado
de trabalho, como a causa do ingresso e permanência no emprego público.
Porém, o fato de a família, especialmente os pais, serem também empregados do
Estado, ao lado de posturas aparentemente passivas ante ao reconhecimento dos graves
problemas que envolvem os servidores, causando-lhes sofrimento, incluindo suas
representações, fazem surgir o caráter ideológico do emprego público.
A ideologia, assim, atua como elemento de coesão da estrutura social,
estabelecendo o terreno onde os indivíduos identificam-se com seus semelhantes,
adquirem consciência de sua posição e lutam. E, se por um lado, confere hegemonia à
classe que passa a ser dominante, ao integrar o senso comum e determinar o consenso,
por outro, é capaz de formar a ideologia dos dominados, através da construção sobre
elementos do senso comum e do instinto de classe, uma vez que estes não permanecerão
submissos indefinidamente.
O caráter ideológico do emprego público surge expresso na reincidência da falta
de razões pessoais consistentes para o ingresso, assim como a influência familiar direta e
mesmo indireta na valorização do emprego público, assentadas no medo do mercado,
aprendido no meio social e perpetuado por práticas autoritárias de cerceamento da
cidadania, que se mostra acentuado nas justificativas de permanência perante a
estabilidade empregatícia e aos benefícios diferenciados dos trabalhadores do setor
privado, relegando o sofrimento no trabalho à condição de preço a ser pago pela
inserção social.
Embora o sofrimento não possa jamais ser vivido da mesma forma por dois
sujeitos, há que se levar em consideração que esse sujeito constrói sua história particular
num contexto histórico, social e econômico que incide em sua conduta, assim como sobre
os demais atores que nele se inserem, produzindo defesas comuns contra o sofrimento
que se impõe sobre o grupo social que integra.
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Assim, podemos verificar a existência de um círculo vicioso que se estabelece a
partir do contexto sócio-econômico e histórico em que todo um sistema de valores
ordena o campo da produção, e o mundo do trabalho exige dos trabalhadores a
construção de defesas contra o sofrimento que extrapolam o espaço de trabalho, levando
a influência familiar, com suas angústias e preocupações, a incidir no sofrimento do
futuro adulto e, de certo modo, determinar as bases de sua existência nesse mesmo
mundo do trabalho.
Se o discurso ideológico media as relações políticas, é a organização que lhe dá a
forma e o cristaliza, através de mecanismos que, para além das leis, assegura a
continuidade do cerceamento da expressão do indivíduo, justamente no trabalho, campo
de excelência à sua realização, onde ocupa seu lugar no desenvolvimento da comunidade
humana.
3.2 - A CARREIRA
A carreira, na instância do espaço social do trabalho, exibe seu poder de
aprisionamento transformando benefícios em ardis, na qual os servidores procuram o
reconhecimento do trabalho capaz de lhes conferir identidade e equilíbrio em
alternativas possíveis para um trabalho subtraído de possibilidades.
A categoria emergente, que abarca o trabalho em si, caracteriza-se pelo pequeno
espaço que lhe foi dispensado nos depoimentos, ao contrário da regulações e práticas
que o envolvem, evidenciando que representam a fonte maior de sofrimento pelo seus
efeitos nocivos sobre o fazer cotidiano.
O trabalho, predominantemente rotineiro, atrelado a leis e estatutos que regem
os diferentes Quadros e Conjuntos de Cargos da Administração Direta, sujeito à
supervisão de instâncias superiores, surge como fator de sofrimento, enquanto
impeditivo ao movimento, às relações interpessoais e à interação com o novo.
Tais restrições, atribuídas somente às características do trabalho, dificultam a
leitura da realidade, fazendo sua compreensão um exercício doloroso e freqüentemente
evitado. O aspecto positivo do trabalho aparece vinculado a um possível papel a ser
desempenhado, assim como ao reconhecimento da sua utilidade, enquanto formas de
valorização das habilidades pessoais compreendida como possibilidade restrita, fora do
alcance da maioria dos servidores que atuam na área meio.
A raiz dos fatores de sofrimento concentra-se na ingerência política, que
determina os cargos de chefia, cuja gratificação pecuniária desencadeia conflitos que
pontuam de um lado disputas de poder e, de outro, o desengajamento dos servidores.
As “ilhas de competência”, longe de responder ao desempenho eficiente, podem
encontrar no excesso de trabalho o prazer de serem identificadas como insubstituíveis e
capazes de trabalhar como nenhum outro, mas nos seus opostos criam o servidor
“parasita” e o dirigente irresponsável para quem sua existência é essencial, uma vez que
fertiliza o campo onde prolifera a prática da indicação política e em cuja esteira correm
os descalabros da administração pública e o aviltamento da figura do servidor.
Nesse sentido, retomando o percurso ideal, a avaliação de desempenho colabora
com a organização na indispensável avaliação dos seus objetivos ao constituir-se, ao
mesmo tempo, instrumento de negociação permanente entre subordinados, chefias e a
cúpula administrativa, que amparada pelo subsistema de treinamento e
desenvolvimento subsidia a ascensão profissional e os processos de sucessão e mudança.
As condições concretas de trabalho precisam ser avaliadas, tendo em vista as
relevantes diferenças entre profissão e função, encontradas em diversas organizações,
limitando o campo de concepção. Situado entre o trabalho prescrito e o executado, o
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espaço de criação é a segunda condição para a realização da ressonância simbólica, onde
é feito o investimento sublimatório, que buscará no espaço social do trabalho o
reconhecimento dos pares e a estabilização da identidade.
3.3 - IDENTIDADE E SIGNIFICADO DO TRABALHO
No encontro da imagem do serviço público com a auto-imagem, é gestada a
identidade sobre o vazio de significações ao nível do trabalho, ao qual é conferido o
status de sofrimento suportado como preço da inserção social, vínculo precário com o
valor cultural e idealizações de que se reveste o trabalho em seu sentido mais amplo.
A imagem do serviço público, tida como palco de práticas políticas marcadas por
decisões de governo e atitudes de dirigentes públicos pautadas na arbitrariedade,
desconhecimento, descaso e descomprometimento, responderiam pelas deficiências e
desvios da administração pública, mas não chegam a ser vinculadas ao valor do
emprego público enquanto uma opção, para quem não tem condições.
A auto-imagem, por sua vez, é perpassada não pelas especificidades do serviço
público, mas por suas características lesivas ao trabalho e aos próprios servidores, ainda
que lhes tenham garantido o ingresso e a inserção social assegurada, que surge nas
verbalizações como o mais caro valor atribuído ao emprego público.
A auto-imagem é, assim, o resultado de uma leitura confusa da organização
social, fundada nos valores sociais inculcados, e das representações de fatos e seus
atributos, que determinam o caráter ideológico do emprego público.
Ligada à dimensão coletiva do trabalho, a terceira condição para a realização da
ressonância simbólica diz respeito à sublimação da atividade útil e valorizada
socialmente, que importa no julgamento emitido pelos parceiros, na comunidade a que
pertence, sobre a qualidade do trabalho executado. Tal confrontação é indispensável a
qualquer atividade de criação.
Dejours demonstra que, a partir dessa relação com a comunidade, o trabalhador
não pode prescindir das relações sociais de trabalho, nem fugir às relações do mercado,
que o influenciam e concorrem para a construção do contexto sócio-histórico no qual
também deixa as marcas “(...) desse contexto e das formas sociais e culturais da época e
do país de origem. Certamente, é devido a isso que podemos identificar a obra de um
artista sem conhecer sequer seu nome.” (DEJOURS, 1993, p. 158).
Assim, a sublimação, em vista do reconhecimento esperado, tem um papel
essencial na conquista da identidade, conferindo-lhe uma função preponderante na
saúde mental.
A ressonância simbólica permite que o indivíduo no trabalho retome as questões
do sofrimento oriundo dos incidentes do desenvolvimento psíquico da infância e que
criaram uma zona de fragilidade para seu equilíbrio psíquico.
Entretanto, a omissão sobre o significado do trabalho no setor público revela sua
negação, fundada nos fatores de sofrimento que permeiam desde a imagem do serviço
público e se estendem sobre as características de sua cultura, tanto nas práticas de
gestão como na auto-imagem negativa, que assevera as representações configuradas no
servidor relapso, passivo, incapaz de reagir e submetido às decisões de escalões
superiores, nos quais não tem qualquer participação.
Estudos no campo da psicopatologia do trabalho mostram que o jogo
sublimatório não depende tanto da incapacidade psíquica do sujeito, mas dos
impedimentos postos pela ausência de condições organizacionais. Tais carências, fazem o
destino do sofrimento desviar-se da criatividade, que lhe concede o reconhecimento e o
prazer, para engajar-se num círculo vicioso, em cujo processo atuam estratégias
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defensivas contra o sofrimento, nas quais o trabalhador paralisa sua atividade psíquica
espontânea, que o impede de sofrer, trazendo conseqüências graves tanto à sua saúde
física e mental, como ao ambiente.
Como apontam DEJOURS, ABDOUCHELLI e JAYET (1993), o primeiro
procedimento defensivo é o desvencilhamento das responsabilidades, deixando de tomar
iniciativas, cercando-se de proteção face às dificuldades e limitando-se, estritamente, à
execução, relegando decisões aos escalões superiores.
As verbalizações são pontuadas pelas críticas que evidenciam revolta, e por
posicionamentos passivos, marcados pelo alheamento e conformismo, que remetem o
emprego público à condição de um trabalho suportado em troca não do reconhecimento
que produz prazer, mas da mera inserção social.
No âmbito desse estudo, realizado entre servidores administrativos da área-meio
do Estado, o trabalho parece apresentar prejuízos ao nível do reconhecimento da
hierarquia e dos pares, assim como ao nível da própria organização.
O reconhecimento da hierarquia, que concorre para o registro da identidade em
função da utilidade do trabalho, mostra-se prejudicado na medida em que a ação
gerencial encontra-se esvaziada, tanto pela falta de critérios objetivos que a
determinam, como ao nível de suas atribuições que, de forma ideal, fazem do gerente um
coordenador de esforços, responsável pelo desenvolvimento de sua equipe em nível
técnico e interpessoal, mediando suas expectativas e os objetivos do setor e da
organização.
As relações com os pares, que concorreria para o reconhecimento da
originalidade, encontra-se prejudicado pela homogeneização dos grupos, estabelecida
nas estratégias defensivas contra o sofrimento oriundo das pressões impostas pela
organização, cuja força atua na revisão da identidade posta cotidianamente e à qual o
indivíduo adere para sobreviver no meio e dele fazer parte. (CIAMPA, 1984).
A organização, enquanto fornecedora desses fatores condicionantes, cristaliza
através dos seus formatos organizativos as determinações disseminadas ao nível
ideológico das quais se vale, mas que se revertem num processo destrutivo ao
mostrarem-se impeditivas à realização da ressonância simbólica.
A subtração das condições da ressonância simbólica parecem sedimentar a
identidade do servidor público num consenso de resignação e impotência, presente nas
representações do pobre-diabo e do barnabé, incapazes de absorver ou combater a do
marajá, porque essa não lhe corresponde, sendo utilizada para manipular o emprego
público numa crise em que lhe é reservado um papel em torno do qual são justificadas
medidas de racionalização administrativa.
Assim, a identidade profissional e significado do trabalho são categorias
dependentes, uma vez que a primeira sofre a interferência de vários fatores que incidem
sobre o fazer cotidiano, conjugados com a leitura particular do indivíduo sobre o
contexto sócio-histórico que o produz e sobre o qual atua e de onde é extraído o
significado particular e coletivo do trabalho.
4. - CONCLUSÕES
No que diz respeito às representações, foi possível constatar sua incorporação,
embora sempre expostas nas atitudes ou na fala de outros, mas causadora de sofrimento
ao indivíduo que se manifestava.
Relativamente à carreira, compreendida como a trajetória do servidor no
emprego público, com possibilidades e restrições ao seu progresso profissional, os
11
depoimentos concentraram-se nas pressões originárias das relações de trabalho
instauradas pelos estatutos e mecanismos que regulam a vida no trabalho, constituindose a fonte maior dos fatores causadores de sofrimento, demonstrando-se impeditivos ao
reconhecimento e à ascensão profissional.
Entre essas duas questões, aportou a identidade cujo ponto de coesão demonstra
ser o consenso de resignação e impotência, condicionado pela imagem do Estado
enquanto empregador permissivo, construída ao nível cultural e cristalizada nas
particularidades das regulações do emprego público.
A pequena referência ao trabalho, propriamente dito, veio a corroborar com a
descoberta de DEJOURS (1994), de que os conflitos não são explicados pela análise da
organização prescrita no trabalho, mas pela análise das pressões reais de trabalho, cuja
realização depende de um espaço público que resgata a palavra sobre o trabalho,
envolvendo todos os níveis hierárquicos.
O significado do trabalho no setor público demonstrou-se esvaziado de sentido,
na medida em que foi negado em termos objetivos, evidenciando, entretanto, a existência
de uma ideologia defensiva decorrente das defesas contra o sofrimento, notadamente
pela extensão dos fatores de sofrimento, concentrados nas relações sociais do trabalho,
para as quais em nenhum momento foi apontada qualquer alternativa de solução ou
reação, numa clara evidência de conformidade.
Assim, foi possível verificar que a contribuição da organização burocrática à
gênese trabalho-sofrimento-prazer reside no cerceamento da criatividade, que se mostra
impeditivo ao reconhecimento da originalidade e utilidade do trabalho, uma vez que está
calcada na importância dada aos regulamentos e na freqüência de sua evocação, para
ocultar manobras de poder e explicar privilégios num meio onde a regra principal seria
a igualdade (CROZIER, 1981).
A compatibilização da organização burocrática com as novas características dos
recursos humanos, que o Estado em mudança está a exigir, podem ser caracterizados
pelas palavras qualificação, profissionalização e engajamento, ao tomar-se os discursos
que propõem e justificam as reformas em andamento.
Entendendo-se o Estado como uma organização em processo de modernização,
revendo finalidades, estrutura e filosofia de trabalho, para enfrentar novos desafios, e na
qual políticas e planejamento de recursos humanos integrariam tal revisão, é necessário
reconhecer que estes exigem um ambiente estimulador para sua implementação,
obtendo-se resultados somente a médio e longo prazos, uma vez que atuam sobre a
cultura. (LUCENA, 1988).
No entanto, tal ambiente não se instala somente ao nível do discurso e menos,
ainda, quando este apresenta um pano de fundo permeado por ações de conotação
ameaçadora. Embora se reconheçam os esforços envidados, atualmente, pelo Poder
Executivo, no sentido de mapear a força de trabalho que emprega, bem como de
proceder o levantamento de leis que determinam o enquadramento de cada servidor em
um ou outro quadro funcional, com as respectivas vantagens e deveres ( FLORES,
1997), sem o que seria impossível avançar para uma reforma efetiva.
Paralelamente à revisão da estrutura do Estado e dos estatutos de seu efetivo, que
encontra dificuldades expressivas ao nível legal, o desafio se coloca em nível de
flexibilização das organizações burocráticas, promovendo novas práticas de trabalho e
condutas que privilegiam o espaço da concepção, o reconhecimento e a identidade,
reconciliando o trabalhador e os objetivos de produção (DEJOURS, 1994), tornando
imprescindível a implementação de setores de recursos humanos nos órgãos públicos,
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cuja atuação tem se demonstrado restrita a funções de registros e ações tímidas e
isoladas de treinamento e desenvolvimento.
Os resultados da pesquisa demonstram que o significado do trabalho para o
segmento pesquisado influencia na formação de sua identidade, através de fatores
ideológicos e do contexto sócio-econômico, tanto nas razões atribuídas ao ingresso, como
nas justificativas de permanência no emprego público, assim como nos aspectos que se
constituem fatores de prazer e sofrimento, inscritos na organização do trabalho,
entendida como divisão do trabalho, enquanto divisão das atribuições ao lado da divisão
de homens, em nível da divisão hierárquica e das responsabilidades (DEJOURS, 1994).
A análise de conteúdo demonstrou que os fatores de sofrimento se, por um lado,
têm origem nos desvios da burocracia estatal, juntamente com as práticas políticas, por
outro, são intensificados por carências que se estabelecem na lacuna da
profissionalização que não provê o conhecimento especializado do trabalhador do
Estado, cuja ascensão é praticamente inexistente pela falta de uma carreira,
propriamente dita, a conferir-lhe o sentimento de irrelevância e uma identidade frágil,
que deteriora as relações de trabalho, revertendo-se em prejuízo dos indivíduos e da
organização.
Entretanto, a implementação de políticas e planejamento de recursos humanos,
por parte do Estado, e a simples instalação de Departamentos de Administração de
Recursos Humanos nos órgãos públicos não supõem a efetividade de mudanças que
visam à qualidade e produtividade nos serviços públicos e que requerem mais do que
administrações atuantes e servidores qualificados, uma atitude pró-ativa, capaz de
permanentemente avaliar seu desempenho e responder com rapidez às demandas do
ambiente.
Tais condições envolvem tempo e esforço para superar a obsolescência da força
de trabalho, não-habituada a vivências de gestão de recursos humanos que, fatalmente,
apresentará muita resistência a iniciativas dessa ordem.
A passagem da situação atual para a desejada já vem mostrando sua face
dramática, porquanto a mudança na organização burocrática, como constatou
CROZIER (1981), é realizada em bloco, afetando todos os setores, provocando
inquietações. A continuidade do processo, assim, requererá estratégias que minimizem
as resistências e despertem credibilidade junto aos servidores.
Tanto mais, quando tais mudanças abrangem o dimensionamento da força de
trabalho, que inclui decisões delicadas como as demissões de pessoal não-estável, a
queda ou a revisão da estabilidade e o remanejamento de pessoal, que se supõe
inevitável.
Para tanto, os Departamentos de Administração de Recursos Humanos
precisarão ter claro seu papel na educação dentro do contexto organizacional, uma vez
que qualificação não é sinônimo de engajamento.
A qualificação diz respeito à função, onde o indivíduo aplica corretamente
conhecimentos e habilidades, cuja aprendizagem é avaliada em serviço, validando ou
não os resultados de cursos ou treinamentos. O engajamento do indivíduo no coletivo de
trabalho, porém, resulta do processo de desalienação e do poder de co-autoria do
trabalho coletivo, decorrentes da criação de condições psicossociais, econômicas e
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políticas, entendendo-se que os grupos organizacionais detêm, potencialmente, a maioria
das soluções dos problemas que se lhes apresentam (MATTOS, 1988).
A dimensão educacional, na organização, privilegia seus recursos humanos na
produção de conhecimento, extinguindo a separação entre os que pensam e os que
executam, como demonstram MOTTA (1991) e DEJOURS (1994).
Tais pressupostos não se destinam a remover as causas de sofrimento no
trabalho, até porque isto seria impossível, mas a criar condições para que o destino do
sofrimento possa dirigir-se para a criatividade, da qual se beneficiam o indivíduo, o
coletivo de trabalho e o processo produtivo (DEJOURS, 1993).
Porém, tendo em vista que as mudanças já envolvem várias medidas que se
destinam a conter excessos na administração pública, cabe questionar até que ponto a
extensão desse propósito poderá remeter ao recrudescimento da rigidez da lei, da norma
e da impessoalidade, impedindo qualquer possibilidade de flexibilização e, portanto, de
novos formatos organizativos capazes de promover o engajamento dos servidores e
manter um padrão de desempenho elevados dos órgãos públicos.
Tendo em vista o quadro de alterações que se apresenta no processo de
redefinição do Estado e dos serviços públicos, a pesquisa encontrou-se limitada pela
exigüidade de tempo, não permitindo que a investigação se estendesse mais atentamente
sobre alguns fatores de sofrimento no trabalho, a exemplo do processo de avaliação de
desempenho, assim como sobre as distorções salariais existentes, uma vez que a análise
foi feita entre Técnicos-Científicos lotados apenas em um cargo de um Departamento da
SARH, mas que se subdividem em vários cargos e órgãos públicos.
Por outro lado, tratando-se de apenas um estudo que por isso não pode ser
generalizado, julga-se imprescindível a realização de outras pesquisas nesse sentido.
A avaliação de desempenho na administração direta, assim como as
características da ação gerencial e as distorções salariais dentro de um mesmo quadro
funcional poderiam ser objeto de outras pesquisas.
Outra questão, que se mostra instigante, refere-se aos aspectos favoráveis e
restritivos de quadros funcionais, voltados para as especificidades do órgão público,
como o da Secretaria da Fazenda, e dos quadros gerais que se distribuem em vários
órgãos públicos, como Quadro Técnico-Científico e o Quadro-Geral.
Sem dúvida, a administração pública estadual, devido às suas peculiaridades,
constitui-se numa área fértil para pesquisa em ciências sociais e, em particular, no que
se refere a recursos humanos.
Finalizando-se, espera-se que este trabalho contribua, de algum modo, para as
reformas em andamento e represente uma possibilidade de melhoria para os servidores
públicos estaduais.
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