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Memória é Luta!
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Boletim do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa . Ano IV . No12 . Junho de 2009
Caixa Postal 14576 . CEP.: 22412-970 . Rio de Janeiro . RJ . [email protected] . http://www.farj.org/
A (in)visibilidade de Maria de Lourdes Nogueira:
mulher, militante, libertária
Dentre os inúmeros militantes estrangeiros e brasileiros que
atuaram no Rio de Janeiro durante a Primeira República defendendo as idéias libertárias e combatendo o modelo capitalista,
é possível constatar a presença ativa de determinadas mulheres. E um nome que merece ser (re)encontrado é o de Maria
de Lourdes Nogueira - uma libertária que marcou presença
tanto nos movimentos políticos, quanto nas mobilizações
sócio-culturais.1
Como a maioria dos libertários dessa época, Maria de Lourdes não deixou registros
biográficos. São escassas as referências
sobre sua vida e, apenas mediante o
exame detalhado de alguns periódicos
libertários, é possível perceber sua
presença no movimento anarquista. Sua
aparição no cenário político data da segunda
década do século XX. Consta que era professora
e seguidora do anarco-comunismo sistematizado por
Kropotkin e Malatesta.2 Foi discípula de José Oiticica,
com quem tomava aulas de latim e grego.3 Na militância,
participou de atos grevistas, proferindo discursos inflamados, redigiu artigos para jornais, organizou grupos de
estudos e ligas femininas, ensinou nas escolas libertárias,
escreveu poemas.
Na defesa das idéias e metas libertárias, Maria de Lourdes e suas companheiras não pouparam esforços. Seguindo a trilha traçada pelo Partido Comunista do
Brasil, fundado no Rio de Janeiro a 23 de março
de 1919 pelos anarquistas que equivocadamente achavam que a Revolução Russa
tomaria caminhos libertários, as militantes fluminenses, por ela lideradas,
fundaram a Liga Comunista Feminina
em 27 de maio de 1919, cujo estatuto
trazia no apêndice o seguinte adendo:“Princípios do Socialismo
Anarquista”.4 Essa Liga, fundada, orientada e administrada por
mulheres anarquistas, teve vida curta, porém marcante, procurando mobilizá-las em defesa da luta por sua emancipação.5
No mesmo ano da fundação, já sofria o assalto da polícia num
caso típico da rotina repressiva que marcou o governo Epitácio
Pessoa.6 Enquanto pôde funcionar, a Liga, teve, por exemplo,
um importante papel no combate a um decreto apócrifo que
corria o mundo e divulgava idéias segundo as quais o governo
bolchevista estabelecia a socialização das mulheres na Rússia
pós-revolucionária.
Segundo um panfleto escrito e distribuído pela Liga Comunista
Feminina, com o objetivo de esclarecer a verdade dos fatos, esse
tal decreto anônimo que “horrorizou todo mundo e[ra] obra
dos propagandistas anti-bolchevistas que t[inham] dinheiro e
meios em abundância para o seu trabalhinho”.7
Depois de mostrar que o decreto só poderia
ser obra dos burgueses para desmoralizar as
idéias socialistas presentes na Revolução
de Outubro, o panfleto trazia o seguinte
esclarecimento: “...os bolchevistas e os
anarquistas, longe de pensarem em socializar as mulheres, o que desejam é que tanto
para elas como para os homens haja inteira
liberdade e independência”.8 Na defesa do
comunismo, as Maria de Lourdes e outras
militantes fizeram questão de esclarecer
que a revolução não tornara nem tornaria a
mulher uma coisa pública e que tampouco a
liberdade que reivindicavam para ambos os
sexos significava libertinagem.
Mais uma vez sob a liderança de Maria de
Lourdes, fundou-se em 22 de janeiro de
1920, no Rio de Janeiro, o Grupo Feminino de Estudos Sociais, uma organização
de cunho educacional que tinha por
meta o aprimoramento da mulher. A
idéia básica era libertar a mulher do
único aprendizado que a sociedade lhe
permitia: o maternal e o doméstico. E,
assim, inseri-la num horizonte intelectual capaz de levá-la a refletir sobre
as condições históricas da sua dominação. No artigo intitulado
Um manifesto à mulher brasileira, publicado pela imprensa operária de tom libertário, o Grupo esclarecia que sua proposta
consistia em “...agremiar as mulheres emancipadas do Brasil,
a fim de combater sistemática e eficazmente a escravização
clerical, econômica, moral e jurídica, que asfixiam, degradam e
aviltam o sexo feminino”.9 O Grupo parecia ter consciência da
situação degradante, opressiva e exploradora em que a mulher
se encontrava na chamada sociedade burguesa, herdeira de uma
tradição misógina, bem como da necessidade da união feminina
na luta por sua libertação. Esse Grupo explicava, também, seu
interesse em estudar e debater “...com ardor os palpitantes
problemas da questão social...procura[ndo] elevar, por meio de
conferências, congressos, escolas e cursos de ciências e artes, o
nível intelectual e moral de suas associadas”.10 Finalizando o manifesto, o Grupo sinalizava para a inclusão de todas as mulheres,
independente “...de raça, nacionalidade, crença ou profissão”.11
E conclamava “professoras, funcionárias, costureiras, floristas,
operárias ...trabalhadoras em artes domésticas”12 para a luta
pela liberdade pessoal, social e intelectual da mulher.
Por ocasião da greve da Cia. Leopoldina, em 1920, considerada como um dos movimentos que mais se aproximou da
greve geral sonhada pelos anarquistas, a atuação feminina
foi marcante. Acreditando na greve geral revolucionária, elas
se mobilizaram para a arrecadação de fundos de auxílio aos
grevistas. No comício do jardim da Praça da República, Maria
de Lourdes, apoiando a greve, proferiu às companheiras o
seguinte discurso:
(...) Eu vos concito! Agrupai-vos! conosco! Filiai-vos ao nosso
Grupo Feminino de Estudos, a fim de que possais ensinar, transmitir aos vossos filhos e às pessoas que convivem convosco,
os grandes, e santos ideais do progresso humano! Tomai hoje
a resolução de seguir o programa: organizar e lutar! Lutar
intemeratamente pela verdade, pela justiça e pela redenção da
humanidade! Os tempos são chegados e, com eles, a vitória
do Bem, eliminando a desigualdade econômica, os contrastes
sociais, as guerras a prostituição, a indigência e a miserável
exploração do homem pelo homem. (...).13
os homens. A fé inabalável que me alenta é a mesma fé que faz
entreabrir em sorrisos os lábios dos nossos camaradas, atirados
nos fundos dos calabouços ou desterrados inclementemente
para as inóspitas regiões da África. Que lhes importa, porém,
que a cegueira burguesa e capitalista lhes chame hoje
incendiários, dinamiteiros e quejandras? Que lhes importa a
estreiteza de um calabouço ou porão infecto de um navio, se
a vitória do grande ideal lhes constitui a razão de ser da vida?
Não nos detenhamos, pois!”14
Maria de Lourdes Nogueira foi uma testemunha reveladora
da experiência feminina do anarquismo no Brasil. Por meio
da análise de alguns exemplos da sua experiência, verifica-se
a presença ativa das mulheres nas lutas sociais e políticas
que marcaram a Primeira República. Ela se manifestou com
arrebatamento para defender os ideais libertários. Foi firme no
combate à exploração do capital, determinada na contestação
das ideologias que procuravam justificar sua condição de
dominação. Ela, assim como outras mulheres militantes,
escreveram uma história de luta e resistência que é preciso
querer perscrutar para romper as amarras do silêncio!
Angela Maria Roberti Martins
Este texto é parte de uma pesquisa que desenvolvi intitulada “O anarquismo: um recorte de gênero” junto à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 1995.
Angela Maria Roberti Martins é doutora em História Social pela PUCSP. Docente da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), onde atua
no mestrado em Letras e Ciências Humanas e no curso de graduação em
História; e professora concursada do Ensino Superior da FAETEC.
Notas
Alguns dados sobre Maria de Lourdes Nogueira, consultar RODRIGUES,
Edgar. Os companheiros. Florianópolis: Insular, 1997.v. 4. p. 116-118.
2
Para aprofundamento dos princípios do comunismo libertário, ver: KROPOTKIN, Pyotr. O anarquismo. Salvador: Progresso, 1954.; KROPOTKIN,
Pyotr. A questão social: o humanismo humanitário em face da ciência. Rio
de Janeiro: Mundo Livre, s.d.
3
Essa informação foi obtida graças a Milton Lopes do Núcleo de Pesquisa
Marques da Costa e consta do depoimento de José Oiticica sobre a greve
geral insurrecional de 1918. Maiores informações, consultar: BANDEIRA,
Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A.T. O ano vermelho: a revolução russa e
seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 336.
4
Esse Partido não era uma organização político-partidária, mas uma espécie
de agremiação dos seguidores do anarco-comunismo de Kropotkin. Sobre
as “Bases de Acordo” do Partido Comunista do Brasil e da Liga Comunista
Feminina, consultar A Plebe, edições de 19 de abril de 1919. p. 3. e de 24 de
maio de 1919. p. 2. Ver, ainda, RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura
social; 1913-1922. Rio de Janeiro: Laemmert, 1972. p. 234-243.
5
NOGUEIRA, Maria de Lourdes. Era nova. Liberdade, Rio de Janeiro, jul.
1919. p. 1.
6
RODRIGUES, Edgar. Os companheiros. Florianópolis: Insular, 1997.v. 4. p.
117.
7
Acerca do panfleto da Liga Comunista Feminina, ver ARQUIVO NACIONAL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓCIOS INTERIORES. Processo de
Adolfo Alonso. Pacotilha IJJ7 138. Comentário sobre o decreto pode ser
encontrado em A Plebe, 7 de setembro de 1919. p. 3.
8
Id. Ibid., Pac. IJJ7 138.
9
GRUPO FEMININO DE ESTUDOS SOCIAIS. Um manifesto à mulher
brasileira.Voz do Povo, Rio de Janeiro, 7 fev. 1920. p. 2.
10
Id. Ibid., p. 2.
11
GRUPO FEMININO DE ESTUDOS SOCIAIS. Op. cit. , p. 2.
12
Id. Ibid., p. 2.
13
NOGUEIRA, Maria de Lourdes. Pelo ideal de regeneração. Voz do Povo,
Rio de Janeiro, 29 mar. 1920. p. 2.
14
RODRIGUES, Edgar. Os companheiros. Florianópolis: Insular, 1997.v. 4. p.
117-118.
1
Maria de Lourdes, acreditando que a revolução era iminente,
conclamava as mulheres a se inteirar do ideal anarquista com
vistas a uma participação decisiva na transformação da sociedade. Aproveitando-se de um momento de insatisfação social
geral, pois à greve da Leopoldina juntou-se a paralisação de
outras categorias profissionais, a anarquista denunciou as contradições da ordem capitalista, apontando o anarquismo como
o caminho para a libertação e o bem-estar da humanidade.
A experiência libertária de Maria de Lourdes foi além das organizações grupais e dos protestos públicos. Assinou alguns
artigos na imprensa libertária, revelando determinação na luta
pelos ideais anarquistas, coragem na defesa dos companheiros
perseguidos e deportados pelo governo Epitácio Pessoa, consciência da necessidade de transformação social e esperança na
chegada da sociedade ácrata.
Em artigo publicado na revista A Obra, dirigida por Florentino
de Carvalho, em agosto de 1920, manifestava-se de forma
incisiva e audaciosa, considerando-se a ação policial da época,
caracterizada pela invasão e perseguição violentas a redações
de jornais anarquistas e a sedes de agremiações libertárias.
Escrevia ela:
“Desde que me alistei nas fileiras dos combatentes pela
nova ordem social assumi implicitamente a responsabilidade
enormíssima de pugnar, sem tréguas, para o advento da nova
era, em que há de existir mais justiça e mais harmonia entre
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