Aletheia, Revista semestral editada pelo Curso de Psicologia da Universidade Luterana do
Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias:
artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o
pensamento dos Editores ou Conselho Editorial
Sumário
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5
Editorial
Artigos de pesquisa
A psicologia no Programa de Saúde da Família (PSF) em Natal: espaço a ser
conquistado ou um limite da prática psicológica?
Psychology in Family Health Program (FHP) in Natal: space to be conquered or
a limit of psychological practice?
Isabel Fernandes de Oliveira, Fabiana Lima Silva, Oswaldo Hajime Yamamoto
20
Institucionalização precoce e prolongada de crianças: discutindo aspectos
decisivos para o desenvolvimento
Early and prolonged children’s institucionalization: Discussing decisive
aspects for the development
Lília Iêda Chaves Cavalcante, Celina Maria Colino Magalhães, Fernando
Augusto Ramos Pontes
35
Inclusão e a difícil arte de amar o que (não) se vê
Inclusion: The difficult art of loving what it’s (not) seen
Sueli Souza dos Santos
49
Impasses na prevenção de exploração sexual: as imagens do trabalho infantil
Dilemmas in preventing sexual exploitation: The images of child work
Marília Novais da Mata Machado, Júnia Carine Cardoso da Silva
66
Inteligência emocional e desempenho em policiais militares: validade de critério
do MSCEIT
Emotional intelligence and job performance in policemen: Criterion validity
for the MSCEIT
Monalisa Muniz, Ricardo Primi
82
A qualidade da amizade: adaptação e validação dos questionários McGill
Friendship quality: Construct Validity of McGill Questionnaires
Luciana Karine de Souza, Claudio Simon Hutz
97
Artigos de atualização
Uma proposta para o tratamento de fobias de direção através da criação de rotas
automotivas virtuais
A proposal for driving phobia treatment by creating automotive virtual routes
José Gustavo de Souza Paiva, Alexandre Cardoso, Edgard Lamounier Jr.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
1
109 Fracasso escolar: do que se trata? Psicologia e educação, debates “possíveis”
School failure: What is it about? Psychology and education: ‘Possible’ debates
Ana Lucia Coelho Heckert, Maria Elizabeth Barros de Barros
123 Desafios para uma epistemologia da pesquisa com grupos
Challenges for an epistemology of group research
Maria da Penha Nery, Liana Fortunato Costa
139 Uma breve análise da constituição do sujeito pela ótica das teorias de Sartre
e Vygotski
An abbreviation analysis of the constitution of subject based
on the theories of Sartre and Vygotski
Maria Fernanda Diogo, Kátia Maheirie
152 De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando jurisdicionais
About how the tutelary council practices have become jurisdictional
Maria Lívia do Nascimento, Estela Scheinvar
163 Quem está apto? A prática da adoção e marcadores identitários
Who is apt? Adoption practice and identity markers
Neuza Maria de Fátima Guareschi, Janaina Claudia Strenzel, Thais Bennemann
177 Existiria uma “semiologia psicanalítica” em Lacan?
Would there be a lacan’s psychoanalytical semiology?
Victor Eduardo Silva Bento
Relato de experiência
191 La intervención psicosocial en un contexto investigativo: “Lecturas psico-sociales
sobre jóvenes agrópolis – sector rural – desde diversos actores que los
intervienen”
The psycho-social intervention in an investigative context: “Psycho-social
readings on young people agrópolis – rural area –from diverse actors who
intervene
Peláez Romero Martha Patricia, Cañon Ortiz Oscar Enrique, Noreña Noreña
Nestor Mario
Resenha
202 Síndrome de Burnout: uma doença do trabalho na sociedade de bem-estar
Mary Sandra Carlotto, Sheila Gonçalves Câmara
204 Instruções aos autores
209 Instructions for the authors
Editorial
A Universidade Luterana do Brasil tem incentivado ao longo dos seus 35 anos a
atividade de pesquisa e a difusão do conhecimento científico. Sabe que este é um dos
seus papéis. A revista Aletheia é fruto dessa premissa.
Sem esquecer seu principal objetivo, o de produzir conhecimentos, a atividade
de pesquisa deve cada vez mais ser orientada para equipar adequadamente o
atendimento às demandas do ensino e da extensão. A pesquisa, articulada ao ensino e
à extensão, viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade.
A universidade, nas suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, ao objetivar
o atendimento das demandas da sociedade civil, possibilita a formação do profissional
cidadão e credencia-se, cada vez mais, junto à sociedade, como espaço privilegiado de
produção do conhecimento significativo para a superação das desigualdades sociais
existentes.
O modelo de ação profissional do psicólogo não pode ficar alheio a esse
movimento. A formação profissional vem mudando a partir das necessidades da
sociedade. Novos problemas surgem, e exigem, além de respostas, novas formas de
intervenção.
Hoje, é inquestionável a necessidade de pensar na função social do psicólogo e
na transcendência social da Psicologia. Cresce a necessidade e o interesse pelo trabalho
nos espaços públicos, principalmente no campo da saúde. Os novos desafios e espaços
exigem ações específicas fundamentadas em conhecimentos específicos e produzidos
em nossas realidades e contextos.
Enquanto periódico científico, a Aletheia busca desenvolver seu papel. Num
primeiro plano, como um meio qualificado de profusão do conhecimento para a
comunidade científica. Num segundo, busca, através de seu material, subsidiar o ensino,
pautando novos conteúdos de disciplinas que emergem das novas matrizes para os
cursos de psicologia. E, através do acesso ao conhecimento produzido, proporcionar
intervenções focadas nas reais necessidades de nossa população.
É na indissociabilidade entre pesquisa e intervenção que agendamos nosso
periódico científico. “A prática não é uma derivação subalterna da ciência, mas sim seu
núcleo ou centro vital, e a investigação científica não tem lugar acima ou fora da
prática, mas sim dentro do curso da mesma” (Bleger, 1984, p.32).
Por fim, comunicamos que neste ano de 2007 a revista Aletheia passa a fazer
parte do PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia), que faz parte da Biblioteca
Virtual em Saúde – Psicologia (BVS-Psi). Com isso, amplia-se, ainda mais, a divulgação
dos manuscritos publicados em nosso periódico e a possibilidade de interlocução
entre os pesquisadores da área da Psicologia.
Finalizamos com um especial agradecimento à Sabrina Leal Araújo, bibliotecária
da ULBRA Canoas, pelo empenho e dedicação nos processos de indexação PEPSIC,
CLASE e LATINDEX.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Os editores
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.5-19, jan./jun. 2007
A psicologia no Programa de Saúde da Família (PSF) em Natal:
espaço a ser conquistado ou um limite da prática psicológica?
Isabel Fernandes de Oliveira
Fabiana Lima Silva
Oswaldo Hajime Yamamoto
Resumo: O Programa de Saúde da Família, implementado em 1994 no Brasil, representou uma
estratégia de reorganização da atenção básica com vistas a resgatar os princípios de eqüidade,
universalidade e integralidade do SUS e garantir o acesso da população de risco a ações em saúde.
Neste contexto, a Psicologia não se insere no Programa, sendo alvo de críticas acerca de sua atuação
no sistema público de saúde. Este estudo objetivou analisar o impacto que a implantação do PSF no
Distrito Sanitário Norte do município de Natal-RN teve sobre a atuação dos psicólogos, principalmente no tocante à adaptabilidade dos profissionais à nova proposta e às mudanças advindas em
virtude do redirecionamento das ações. Para isso foram entrevistados 21 profissionais, sendo 4
psicólogos e técnicos envolvidos no processo. Entre os principais resultados, a perda de postos de
trabalho, a permanência fora das equipes, a falta de conhecimento acerca do papel do psicólogo nas
equipes e o aumento da demanda reprimida para a Psicologia merecem destaque.
Palavras-chave: psicologia; programa de saúde da família; atuação profissional.
Psychology in Family Health Program (FHP) in Natal: space
to be conquered or a limit of psychological practice?
Abstract: The Family Health Program, implemented in 1994 in Brazil, represented a strategy
of reorganization of the basic care in order to recover the principles of fairness, universality and
completeness of the SUS and to assure the access of the risk population to health actions. In
this context, Psychology is not inserted in the Program, being target for criticism about its
realization in the public health system. This study had the purpose of analyzing the impact
that the implantation of the FHP in the North Sanitary District in Natal-RN had on the
performance of the psychologists, mainly in the field of adaptability of the professionals to the
new proposal and to the changes that had happened due to the re-orientation of the actions. 21
professionals were interviewed, among these; there are 4 psychologists and technicians who
are involved in the process. As main results, the loss of job ranks, the permanence out of the
teams, the lack of knowledge concerning the profile of the psychologist in the teams and the
increase of the restrained demand for Psychology need to be pointed.
Key words: psychology; family health program, professional performance.
Introdução
Os anos de 1980 foram berço no qual se gestaram as principais mudanças em
termos de políticas públicas em saúde de toda a história. Se efetivadas ou não, é algo
que não se pode aquilatar sem cair nas concepções fragmentárias da dinâmica social.
Contudo, os avanços e retrocessos por que passaram as estratégias de implementação
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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de ações em saúde de corte social revelam que o delineamento de um sistema nacional
de saúde se fez ao longo dos distintos momentos históricos em decorrência do
envolvimento de atores sociais particulares, comprometidos que estavam na defesa de
uma saúde mais democrática, ou mais seletiva, ou, ainda, mais eficiente.
O marco das transformações no campo aconteceu na VIII Conferência Nacional de
Saúde, em 1986, na qual, após tanto tempo reprimidos pela ditadura, os movimentos sociais
organizados em defesa de um reordenamento das políticas em saúde conclamam a população,
dirigentes, representantes, entre outros atores, para discutir novos rumos para o setor, de
forma que um novo sistema de saúde se constituísse sob a égide da democracia.
A proposta de criação de um Sistema Único de Saúde (SUS) é levada para a
Assembléia Nacional Constituinte e aprovada com algumas mudanças que
comprometeram, em parte, a viabilidade do sistema. Vários são os autores que apontam
problemas na consolidação do SUS, no seu financiamento, na mudança de concepções
necessária para a nova estrutura proposta (Damaso, 1995; Noronha & Levcovitz, 2003;
Pereira, 1996). Todos chegam à conclusão de que a proposta do SUS guarda inovações
e avanços para o campo, representa uma democratização sem precedentes no acesso
e na garantia à saúde para a população brasileira, mas não consegue atingir um de seus
principais objetivos: tornar-se acessível para os grupos que dele mais necessitavam,
as camadas mais pobres da população.
O SUS provocou mudanças não só no modelo de rede, mas também nos padrões
de gestão, controle, avaliação e financiamento das ações em saúde. Foi a etapa final de
um processo que se iniciara há quase 10 anos. A estrutura do sistema se organiza em
torno da atenção básica e tem como centro as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Elas
deveriam ser a porta de entrada na rede de assistência, otimizando seu funcionamento
estrangulado nos hospitais. Desta forma, os níveis mais complexos de atenção se
concentrariam em atender a população que realmente necessitasse de intervenções
mais especializadas, tanto no que se refere aos procedimentos diagnósticos como aos
de tratamento. Esse modelo tinha como base uma concepção nova de saúde que
implicava a restauração de condições que propiciassem saúde (vista como resultante
de condições materiais de existência) e não apenas a intervenção em quadros já
instalados. Nessa perspectiva, as ações na comunidade (preventivas e educativas), a
inclusão de profissionais de áreas afins à médica e o trabalho em equipe passam a fazer
parte dos direcionamentos dos níveis centrais.
Para a Psicologia, a implementação do SUS foi um marco importante na
consolidação da Saúde Pública como espaço de prática, formação e referência
profissional para a categoria. Os psicólogos adentram no SUS sob a bandeira de uma
profissão de saúde comprometida socialmente e potencialmente capaz de lidar com a
demanda da população pobre. Contudo, embora não haja dúvida quanto à importância
do campo para a Psicologia, as permanentes avaliações da prática profissional apontam
uma série de críticas quanto às atividades realizadas pelos psicólogos, que merecem
uma atenção mais cuidadosa. Entre as principais, estão o desenvolvimento da clínica
tradicional como estratégia de trabalho assumida isoladamente pelos profissionais,
a dificuldade em delimitar o papel (e a conseqüente ação) do psicólogo na Saúde
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Pública, a incongruência entre a tradição intervencionista e adaptativa da profissão
versus as exigências do SUS por ações multiprofissionais, preventivas e comunitárias,
entre outras.
Conquanto legítimos, alguns desses problemas não são privilégios da Psicologia;
eles refletem uma evolução das práticas direta ou indiretamente ligadas à Medicina
que, por suas características, dificultam a elaboração de uma proposta única de ação
no setor. Desta forma, as marcas de um modelo intervencionista, segmentado e
assistencialista permaneceram na base das ações do SUS. O próprio Ministério da
Saúde (MS) reconheceu que o sistema não atingiu seus principais objetivos, que se
resumiam ao acesso democrático e equânime, à justiça distributiva, à ênfase na
perspectiva de rede, entre outros.
Tendo em vista atingir o objetivo que parecia mais urgente, o de garantir o
acesso ao SUS pelas chamadas camadas de risco, mas não apenas ele, o MS lança, em
1994, o Programa de Saúde da Família (PSF) como mais uma tentativa de racionalização
dos gastos em saúde, de implementação das diretrizes que deveriam reger o Sistema
Nacional de Saúde, e de levar ações de promoção à saúde às populações de risco. Na
esteira de programas bem-sucedidos como o Programa Médico da Família e o Programa
dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), as raízes do PSF repousam, de fato,
sobre este último. O PACS tinha como uma de suas principais metas utilizar-se de uma
rede social preexistente para, através da eleição de um representante, realizar um perfil
epidemiológico das comunidades, enfatizando a promoção de saúde a baixos custos,
tendo no agente comunitário de saúde o principal elo entre a população e os serviços
de saúde (Araújo, 2000; Bodstein, 2002; Rocha, 2000).
O PSF vai além do PACS ao definir uma nova estrutura de funcionamento da atenção
básica, na qual o ponto central das ações de saúde reside na família. Desta maneira, o
objetivo do programa seria ir até as comunidades e detectar as necessidades em saúde da
população, de forma que se desse início ao modelo de assistência tão defendido à época
da constituição. Este, por sua vez, giraria em torno da promoção à saúde, prevenção de
doenças, participação da comunidade, entre outros princípios, que configurariam uma
centralização de ações na atenção básica (Araújo, 2000; Rocha, 2000).
Seguindo o princípio da descentralização, com efetiva municipalização, o
Ministério da Saúde fez uso de incentivos, principalmente financeiros, para que os
municípios priorizassem a atenção básica e optassem por adotar os referidos
programas. Nesse contexto, entende-se que o PSF, junto a um elenco de medidas de
reforma sanitária, configurou-se como uma estratégia de reorganização da atenção
básica e racionalização dos custos com as políticas de saúde, priorizando ações de
prevenção e promoção da saúde (Cordeiro, 2001; Junqueira, 1997; Marques &
Mendes, 2003).
A adoção do PACS/PSF é, então, considerada uma estratégia legítima e efetiva
de descentralização da assistência médico-sanitária e de ampliação do direito à saúde.
Propõe vincular a população atendida a uma equipe básica de saúde, prestando
assistência integral por meio de atividades de informação, orientação e prevenção, e
busca adequar as políticas de saúde aos contextos e realidades locais, entre outras
ações (Cotta, Mendes & Muniz, 1998).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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As principais propostas de mudança na estruturação e oferta dos serviços de
saúde a partir da implantação do PSF, dentre outras, são o desenvolvimento de ações
inter-setoriais, com alianças entre as áreas da saúde, educação, meio-ambiente, cultura,
e a produção de novas práticas, com abertura para o uso de terapias não-convencionais.
Além disso, constitui-se numa tentativa de assegurar a efetivação da referência e
contra-referência no encaminhamento de usuários, dando continuidade à atenção,
promovendo a humanização das práticas em saúde através do estreito relacionamento
entre profissionais e usuários.
Para viabilizar tal proposta, o PSF organiza-se em torno de uma Equipe de Saúde
da Família (ESF) composta por médico generalista, enfermeiro, auxiliar de enfermagem
e agente comunitário de saúde, podendo, de acordo com necessidades particulares
definidas pelos municípios, absorver outras categorias profissionais. As ações devem
ser realizadas em conjunto, novidade em termos de organização de equipes
profissionais. Ao compor equipes mínimas de saúde, pretende-se estimular a
comunicação horizontal entre os membros e abre-se a possibilidade de permanente
interação com a comunidade.
O impacto dessa nova configuração no atendimento a população se dá,
principalmente, em relação a duas questões: a centralização de todas as ações na ESF,
excluindo, num primeiro momento, as demais profissões do campo da saúde; e a
necessidade de investimento em formação e capacitação continuada dos recursos
humanos envolvidos.
É nesse quadro que situaremos o papel e a participação dos profissionais de
Psicologia, especificamente no que se refere ao processo de implantação do Programa
Saúde da Família.
Não é novidade que a inserção significativa dos psicólogos no campo da saúde
pública se deu em meio à efervescência dos movimentos sociais da década de 1980,
associada à crise do modelo de exercício liberal da profissão (Dimenstein, 1998; 2000;
Oliveira e colaboradores, 2004; 2005). As reformas no setor da saúde exigiam que
novos profissionais fossem incorporados ao sistema de forma que se estruturassem
equipes de cuidado com vistas a uma alegada atenção integral aos usuários. Desta
forma, abre-se espaço para categorias profissionais que não se inseriam
significativamente no sistema até então. Por outro lado, a retração de mercado para a
Psicologia, em virtude da crise financeira que assolou a classe média brasileira nesse
período, impulsionou os profissionais a buscarem um novo espaço de atuação com
novas alternativas de emprego.
Por trás desse movimento de migração para as possibilidades de trabalho numa
vertente institucional, havia críticas no seio da profissão especialmente quanto à capacidade
de a Psicologia se configurar como uma prática transformadora da realidade social. Se essa
era uma de suas metas, permanecer privilegiando seguimentos psicoterápicos dirigidos a
uma clientela de alto poder econômico era não só um contra-senso, mas reforçava o caráter
adaptativo assumido pela profissão ao longo de sua história.
Apesar das inúmeras tentativas de efetivação de novas práticas e de novos
olhares, a verdade é que a Psicologia reproduziu em larga escala os modelos que
nortearam a sua constituição e que não se adequavam à realidade da clientela atendida
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
nas instituições de saúde pública. Desta forma, também a prática psicológica não se
revelou condizente com os princípios norteadores do SUS, principalmente porque não
houve uma mudança paradigmática na concepção das ações, dos programas e do fazer
saúde para a grande massa da população brasileira. Há que ressaltar que esse foi um
movimento assumido por todas as categorias profissionais que atuavam na rede e que
acabou por tornar o SUS um sistema em permanente implantação, com incoerências
graves e baixo grau de resolutividade (Oliveira, 2005).
No caso da Psicologia, as características de sua atuação ferem diretrizes
importantes tais como o trabalho em equipe, a promoção à saúde, a prevenção de
doenças, entre outras. Obviamente, o sistema carece de fundamentos no que se refere
às delimitações dos respectivos papéis dos partícipes das ações e, para os psicólogos,
a ausência de um conhecimento acerca do que seria sua atuação na atenção básica é
um fator adicional na “inadequação” do seu trabalho.
O PSF representa uma tentativa de alteração desse cenário ao instaurar uma
nova lógica de funcionamento da rede, e, conseqüentemente, uma nova forma de
“saber fazer” dos profissionais envolvidos. As categorias ocupacionais da saúde são
convocadas a repensar sua atuação, seu papel e sua inserção no trabalho junto às
comunidades.
No caso do município de Natal/RN, a implantação das primeiras equipes de
saúde da família (ESF) se iniciou em 1998, mas, até a data do presente estudo, o PSF
não havia sido implementado em larga escala.
Dividido em quatro distritos sanitários por região, o Oeste (DSO) foi o escolhido
para ser sede das primeiras USF. Em 2002, a Secretaria Municipal de Saúde de Natal dá
continuidade ao processo ao expandir o Programa para o Distrito Sanitário Norte
(DSN) sem, no entanto, completar a implantação do programa na região anterior. O
funcionamento do Programa difere nesses dois distritos, tendo destaque, neste trabalho,
o processo de implantação mais recente no DSN.
Anteriormente à implantação do PSF, o DSN estava estruturado com as seguintes
unidades: Unidades Básicas de Saúde (UBS) (designadas para prestar atendimento nos
níveis primário e secundário), Unidade Mista (que, além das ações das UBS, oferece
atendimento de urgência) e Policlínica (para atendimento ambulatorial com alto grau de
especialização), com serviço de Psicologia nesses três tipos de unidades de saúde.
A implantação do PSF transformou UBS em Unidades de Saúde da Família (USF),
alterando o tipo de serviço oferecido à população nesses locais. As USF se destinam a
prestar atendimento realizado por um clínico geral e qualquer necessidade de uma
intervenção especializada deve ser encaminhada às unidades de maior complexidade.
Cabe às USF, tão-somente, desenvolver ações de promoção da saúde e prevenção,
substituindo as UBS e se apresentando como porta de entrada dos serviços de saúde.
Num nível imediatamente superior, as Unidades de Suporte (US) oferecem ações mais
complexas do que a USF, com atendimentos no nível secundário, clínico, e a Unidade de
Referência (UR), para atendimento ambulatorial de especialidades médicas mais variadas
e de maior complexidade, como Psiquiatria, Oncologia, Cardiologia, entre outras.
Atualmente os dois modelos de assistência à saúde (Unidades Básicas de Saúde
e PSF) funcionam paralelamente, sendo o objetivo da Prefeitura Municipal substituir
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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progressivamente o modelo das UBS pelo PSF. Após três anos de implantação,
atualmente o DSN conta com 19 USF, 7 centros de saúde (que funcionam como Unidades
de Suporte) e o Centro Clínico Asa Norte, que desempenha a função da Unidade de
Referência. Além dessas unidades, dispõe ainda do Pronto-Socorro Geral (plantão 24
horas), do CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial), serviço alternativo de atenção
a dependentes químicos e dois hospitais, sendo um geral e o outro especializado em
Pediatria.
O PSF está presente nos sete bairros do DSN, com 59 equipes de saúde de
família, o que representa mais de 50% das equipes do programa em toda Natal. Nesse
novo modelo de assistência à saúde, a Psicologia não integra a equipe mínima prevista
no Programa, saindo das Unidades Básicas de Saúde e ocupando apenas as Unidades
de Suporte e as Unidades de Referência.
Tendo como cenário a exclusão de seu espaço de trabalho no novo modelo e a
reorganização da rede de assistência à saúde, o objetivo desse trabalho é analisar as
alterações decorrentes da implantação do PSF no DSN e o seu impacto no campo de
trabalho dos profissionais da Psicologia, tanto no que se refere a perda do espaço de
atuação, como também às adaptações realizadas para fins de encaminhamento da
demanda destinada aos serviços de Psicologia, destacando-se seus avanços, entraves
e limites.
Método
Foram realizadas 21 entrevistas semi-estruturadas, com 4 psicólogos atuantes
no Distrito Sanitário Norte do município de Natal, lotados em Unidades Básicas de
Saúde, Unidade de Referência e Unidades de Suporte e com 17 profissionais envolvidos
no processo, quais sejam, diretores/coordenadores de Unidades de Saúde da Família,
Unidades de Suporte e Unidades de Referência, e integrantes de duas equipes de
saúde da família (médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e
agentes comunitário de saúde).
As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro básico, contendo
questões referentes à implantação do PSF no DSN, estrutura e organização do
trabalho dos profissionais, ações desenvolvidas nesse Programa e articulação do
PSF com os demais serviços de saúde, com destaque para os serviços de Psicologia.
Assim, as entrevistas foram dirigidas aos profissionais com o objetivo de
reconstituir aspectos relevantes da implementação do PSF no DSN. Adaptações
foram realizadas de forma que as questões se adequassem ao profissional
entrevistado, fosse ele membro da ESF, diretor/coordenador de unidade ou
psicólogo. Após isso, foram delimitas categorias de análise com base no relato dos
entrevistados, de forma que alguns temas fossem abordados. Eles dizem respeito
ao processo de implementação do PSF e suas mudanças técnicas e operacionais e
o impacto da implantação para os profissionais e em sua atuação, especialmente
para a Psicologia. Cada tema tem subdivisões relativas aos seus pontos principais
dentre os quais as mudanças nos padrões de atendimento, o impacto do Programa
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
na população, a relação entre membros das equipes, o deslocamento da Psicologia
para unidades de referência e a não inserção da Psicologia no programa são os
mais importantes.
As entrevistas aconteceram entre abril e julho de 2003 e foram gravadas e
transcritas na íntegra, somente após a autorização dos participantes.
O Programa Saúde da Família no município de Natal-RN
O processo de implantação do PSF no município de Natal/RN, em particular no
DSN, caracteriza-se por uma sucessão de entraves e dificuldades de ordem variada
tanto no tocante ao processo em si como também à receptividade do programa pela
população. Falar do impacto desse movimento para a Psicologia, requer, como
precondição, um resgate, ainda que superficial, do momento de implementação desse
programa no DSN.
Inicialmente desenvolvido em outro distrito do município, o PSF, de fato, se
estrutura de maneira mais significativa no DSN e somente a partir de 2002 quando,
graças a novos subsídios financeiros e à gestão da SMS, há um direcionamento de
políticas para esse fim. Apesar desse novo impulso para a reorganização da atenção
básica, até a época de realização desse estudo apenas 38 equipes de saúde da família
haviam sido efetivadas e distribuídas em 13 unidades de saúde da família. Em várias
regiões do distrito, ainda coexiste o modelo das unidades básicas de saúde e o do PSF,
tal como no primeiro distrito em que o Programa foi implantado.
De forma geral, o processo de implantação do PSF em Natal ocorreu de forma
desordenada e desarticulada das discussões centrais. A ausência de planejamento e
de capacitação dos profissionais, a forma como ocorreu a criação das primeiras
equipes e unidades (sem um período de transição) e a clara vinculação do processo
à liberação de recursos financeiros são aspectos que marcam esse momento. Essa
dinâmica de estruturação do Programa foi determinante na ocupação do espaço da
Psicologia após a criação do PSF no DSN. Portanto, exploremos com mais detalhes
tais informações.
Uma primeira observação é a queixa generalizada dos profissionais com relação
à maneira súbita com que ocorreu o processo de transformação das primeiras unidades
básicas de saúde em unidades de saúde de família e a criação das primeiras equipes.
O ponto de partida do PSF, eu achava parecido com um ‘campo de concentração’
(...) era aquela multidão... foi muito desgastante para os profissionais, foi
desgastante para a Unidade de Saúde porque teve aquele impacto. (E7)1
Não houve um período de adaptação ou, mesmo, para a transformação das
antigas UBS em USF. Muitas delas suspenderam o atendimento ou fecharam
temporariamente por falta de condições operacionais e de infra-estrutura;
profissionais contratados para o Programa assumiram postos de trabalho em
unidades que ainda não funcionavam como USF, o que gerou graves problemas,
principalmente no que se refere aos ganhos financeiros dos integrantes do PSF.
Os relatos de E4 e E7 ilustram esse momento:
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Passou quase um ano sem eles atenderem, porque era uma casa alugada que foi
reformada, totalmente sem estrutura para ser uma unidade de saúde. E as pessoas
aqui cobrando... (E4)
(...) Era profissional do PSF com profissional que não era do PSF... profissional do
PSF com remuneração lá em cima, já recebendo... e sem ter como trabalhar... não
existia nenhuma área da equipe definida, nenhuma micro área dos agentes... (E7)
A remuneração diferenciada foi um dos grandes pontos de conflito entre profissionais
tanto do Programa quanto entre estes e os demais. A discrepância entre os salários de
técnicos que, muitas vezes, executam as mesmas ações, com a diferença de que um está no
PSF e o outro não, gerou sérios problemas de cooperação entre unidades, comprometendo
a consolidação da rede de cuidados. Unidades que não estavam integradas ao PSF se
opunham a receber encaminhamentos, vários profissionais de fora do Programa se recusaram
a atender a população encaminhada pelo PSF, entre outros problemas.
A carência de recursos, já freqüente nas UBS, se agravou com o PSF em virtude
da diminuição de procedimentos ambulatoriais e de profissionais especializados nas
unidades. A falta de medicamentos, em especial, preocupava todos os profissionais,
uma vez que é uma das estratégias terapêuticas mais utilizadas. Questionou-se a política
de distribuição de medicamentos e de financiamento do Programa e, nesse último caso,
responsabilizaram-se os três níveis de gestão por não assumirem seus papéis quanto
ao montante destinado ao PSF.
Portanto, a implantação do PSF ocorreu em etapas, com um hiato grande de
tempo entre a determinação oficial e a criação da infra-estrutura necessária, que deveria
funcionar como uma rede hierarquizada, cuja porta de entrada seriam as USF. Ao se
aniquilarem as UBS e ao não se implantarem efetivamente as USF, a população ficou
sem referência no atendimento na atenção básica e, por um período de tempo
considerável, a demanda por atendimento em nível hospitalar cresceu no Distrito.
Unidades como o Centro de Referência do DSN se sobrecarregaram mais ainda, em
especial, por causa da extinção das especialidades nas USF sem que tivesse havido
tempo hábil para que as ações de prevenção e promoção de saúde, quando executadas,
alcançassem o efeito desejado: reduzir a necessidade de atendimento cada vez mais
especializado.
Um outro problema diz respeito às relações entre os membros que compunham
as novas equipes. Embora o trabalho em conjunto fosse uma prerrogativa importante
do PSF, a hierarquia do poder médico continuou a se sobressair, gerando conflitos que
impediram um trabalho nos moldes preconizados, conquanto a figura do enfermeiro
como condutor das ações nas USF já revelasse um esboço de transferência desse
poder. As relações entre técnicos de níveis diferentes, não obstante, permaneceu
extremamente hierarquizada, conforme o relato de E6:
Ela achava que ela, como médica... era superior a mim, e eu disse que não, que ela
até poderia ser superior, no sentido de cultura... mas nós éramos colegas de
trabalho, então, que o meu trabalho era tão importante quanto o dela... ela
precisava de mim como eu precisava dela, entendeu?
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Da mesma maneira, o individualismo, difundido em anos de formação e prática e
a centralização de ações nas mãos de determinadas categorias profissionais, também
revelam a fragilidade do trabalho em equipe.
É como se a gente fosse a ‘salvadora da pátria’ aqui sabe? Tanto é que, no dia em
que não tem uma enfermeira aqui, é um deus nos acuda; ninguém sabe resolver
nada (E4)
Não obstante tais problemas, parece haver uma preocupação com o
desenvolvimento do trabalho em equipe partindo do planejamento e avaliação das
ações desenvolvidas de forma que elas realmente atendam às necessidades básicas da
população. Esse movimento não sinaliza ainda uma mudança substancial no trabalho
das equipes, conforme se aponta abaixo, apenas sugere uma certa reflexão por parte
dos profissionais acerca de sua própria prática.
O trabalho em equipe ainda está... não é nem por nada, é porque nossa educação...
a gente foi educado para ser técnico, para sentar no consultório, isoladamente,
chegar o paciente, a gente fazer o trabalho e tal e ir embora. (E7)
Apesar dos percalços organizativos e das dificuldades na transição entre os
modelos, alguns avanços são constatados. Um deles se refere à criação de um Centro
de Atenção Psicossocial especializado em dependência química no Distrito, somando
mais uma instituição na rede de assistência em tal área de abrangência.
Um outro ponto positivo diz respeito às mudanças percebidas por vários
integrantes de equipes nas relações entre os profissionais e entre estes e a comunidade.
Tal avanço é relatado por E4:
Nas unidades básicas já existia a equipe multiprofissional, só que com um
diferencial, e você há de concordar comigo, que quando a gente trabalhava na
unidade básica, não tinha esse entrosamento dos profissionais, era ‘cada um por
si e Deus por todos’. Eu fazia a minha parte, o psicólogo a dele, quando muito,
a gente encaminhava, mas não era aquela coisa de você estar acompanhando ali,
entendeu?
Segundo alguns entrevistados, essas mudanças – reflexo de capacitações
realizadas por agências formadoras associadas às secretarias –, são decisivas para
uma renovação nos conhecimentos que norteiam as práticas, possibilitando aos
profissionais enxergar possibilidades de realização de ações mais integradas e próximas
da realidade da população.
Existiu assim, uma diferença grande de rotina, de prática de PSF, de unidade
para unidade. A equipe não estava... faltava compromisso do pessoal. Depois
que começou esse ano a capacitação do NESC, com toda a equipe do PSF, aí,
sem querer mesmo, naturalmente, ele [o profissional] se compromete, então a
coisa melhora, entendeu? Na questão do horário, de humanização, de
capacitação mesmo, de competência para fazer o serviço. (E7)
Aletheia 25, jan./jun. 2007
13
De forma geral, boa parte dos entrevistados acredita que a inserção de outros
profissionais, como psicólogos, assistentes sociais e nutricionistas na ESF, poderia
favorecer uma atuação mais integral, a adoção de novas formas de trabalho que
compartilhassem saberes distintos e de outros campos do conhecimento. Ações básicas
mais articuladas e resolutivas, voltadas para o controle de doenças crônicas, para a
promoção à saúde e prevenção de doenças seriam outras vantagens possíveis advindas
da incorporação de outras categorias profissionais. Contudo, a não incorporação de
tais profissionais nas equipes fez com que a atenção permanecesse centralizada em
encaminhamentos para tais técnicos, em unidades especializadas que já não possuíam
capacidade para atender essa clientela. A principal conseqüência disso é o
comprometimento do sistema de referência e contra-referência, como assinala E4:
Coisas que a gente possa resolver aqui, tudo bem, porque está na nossa... mas
quando você tem que mandar essa demanda para fora, aí a gente não garante. (...)
A questão de resolver coisas que não dependem da gente, aí é que está o problema.
Esses encaminhamentos para fora... são muitas coisas que realmente fogem da
nossa competência. A gente acaba não dando vencimento...
Em síntese, o processo de implantação do PSF no DSN caminhou com algumas
inovações, vários problemas de ordem técnica, estrutural e social que determinaram,
em parte, a conformação assumida pelo Programa em tal distrito. A ausência de
profissionais que fogem ao modelo tradicional de equipe dificulta a emergência de
formas alternativas de atuar que não privilegiem tanto as terapias medicamentosas e
os atendimentos individualizados. É nesse contexto que se discutem as implicações
desse processo para os profissionais da Psicologia.
A (não)inserção da Psicologia no PSF
Não é possível falar em uma relação direta entre a Psicologia e o PSF no RN. O
processo de implementação do Programa é marcado pela ausência deste profissional
em todo o estado. Na verdade, o PSF, ao colocar em xeque as concepções que norteiam
as práticas em saúde e propor uma nova forma de assistência pautada por noções
bastante diferenciadas daquelas sobre as quais se erigiu o conhecimento acerca dos
processos de saúde e assistência vigente até então, sinaliza, para a Psicologia, uma
fragilidade que a atuação tradicional se esforça por esconder: a ausência de um modelo
de atuação, de um conhecimento, de um olhar sobre os sujeitos que não seja decorrente
de abordagens individualizantes, anistóricas, que restringem os fenômenos aos
aspectos existenciais ou inconscientes. No caso de Natal, algumas peculiaridades
relativas às conseqüências da implantação do PSF para a Psicologia servem como
pano de fundo para a discussão que, em última instância, se refere ao compromisso
social assumido e posto em prática pela profissão.
Inicialmente, o marco, para a Psicologia, da implementação do PSF no DNS em
Natal foi a não inserção de psicólogos nas ESF. A interrupção de trabalhos consolidados
e a perda de postos de trabalho na atenção básica são os primeiros aspectos a serem
considerados. A transformação de UBS em USF eliminou um contingente expressivo
14
Aletheia 25, jan./jun. 2007
de profissionais não previstos para atuarem no PSF, fazendo com que muitos deles
migrassem para outros bairros e distritos. Isso acarretou a quebra de várias ações,
grupos, programas que vinham sendo desenvolvidos por psicólogos, além do fato de
que, da forma como foi feita a transição, muitos profissionais nem tiveram tempo de
finalizar adequadamente os respectivos trabalhos. Alguns entrevistados se queixaram
do novo desenho da rede, inclusive por causa da ausência do profissional da Psicologia
nas novas unidades. É o caso de E13:
... nessas unidades aqui que tem PSF (...), esse profissional (o psicólogo) teve
que sair e ficou descoberto o atendimento desse profissional.
Na verdade, não foi apenas a atenção psicológica que deixou de ser oferecida
nas unidades. Vários outros serviços foram transferidos para as instituições de maior
complexidade. Entretanto, isso não seria um problema se os sistemas de referência
estivessem em pleno funcionamento, se as ações preventivas já fizessem diferença no
estado de saúde da população, se não houvesse paralelismo de ações, etc. Havendo
todos esses problemas, a retirada de profissionais e de serviços das antigas UBS
provocou uma baixa na qualidade geral dos serviços prestados à população, um aumento
nas filas de espera para a Psicologia, além do crescimento da demanda por atendimento
psicológico, como veremos adiante.
Um outro aspecto a ser considerado e que se exacerba em virtude das mudanças
provocadas pela implantação do PSF no DSN é a compartimentalização da ciência
psicológica. A ausência de identificação, de semelhanças entre abordagens teóricas
e linhas de trabalho dificulta uma postura mais atuante na intenção de delimitar um
modelo de atuação único para o profissional da Psicologia que possa ser amplamente
disseminado e que justifique sua inserção no PSF. O que se vê, como diz a psicóloga
P1 é “(...) que os próprios profissionais não se unem por causa de linha teórica”. A
velha discussão acerca de qual é o objeto da Psicologia, qual a prática mais adequada
e as ‘contra-indicações’ de determinados fazeres, se perdem em meio às tentativas
de justificar a presença do psicólogo em um programa, em uma equipe, que não
comporta uma atuação nos níveis em que vem se desenvolvendo a psicológica. A
psicóloga P2 relata em seu discurso tais dificuldades ao afirmar que
... eu não estou de acordo com essa forma que o psicólogo está atuando na rede
(...). Tem alguma coisa errada (...), é a concepção do trabalho do psicólogo.
Embora muitos relatos de pesquisa apontem iniciativas inovadoras que vêm
sendo desenvolvidas por psicólogos em UBS, postos de saúde, PSF ou outras
instituições da rede de assistência à saúde, tais trabalhos ainda não configuram (se é
que o farão em algum momento) um modelo de trabalho a ser implementado no SUS. Na
verdade, as ações em saúde pública partem de iniciativas de profissionais, gestores,
técnicos (integrados ou não) que conseguem, a partir da integração entre a demanda
que chega ao serviço ou que é encontrada na comunidade, articular projetos e ações
com vistas a atender tais exortações. Tal aspecto tem marcado a evolução da prática
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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psicológica no SUS, não sem suscitar dúvidas, questionamentos, anseios dos
profissionais quanto ao seu papel e expectativas por parte da equipe de saúde e dos
gestores do sistema quanto à atuação do psicólogo.
... eu me preocupo muito com o que a Secretaria pensa em implantar, com a
nossa função dentro do posto do PSF... (P3)
Uma das psicólogas entrevistadas menciona sua insatisfação quanto à própria
atuação ao afirmar que, se houvesse diretrizes quanto à participação da Psicologia no
Programa, ela as seguiria de bom grado. Em não havendo, seu trabalho permanece
pautado pelas noções trazidas ainda do curso de formação de psicólogos, quais sejam,
as da clínica tradicional.
A indefinição de modelos, papéis, população alvo, locais de atuação reflete uma
dificuldade para se estabelecer direções de trabalho que culmina com o isolamento do
profissional da Psicologia, agravado com sua saída das UBS e centralização nas
Unidades de Suporte e, posteriormente, nos Centros de Referência. A distância física
dos serviços de Psicologia organizados pós PSF, dificulta a consolidação da estratégia
de referência e contra-referência, aumentando uma já reprimida demanda por atenção
psicológica e ampliando a desarticulação entre a saúde mental e o PSF.
Dessa forma, os profissionais têm pouca idéia de como relacionar seu saber e
prática como proposta do PSF, sentindo dificuldade de desprender-se da relação
hierarquizada existente nas unidades de saúde, da priorização de atividades individuais
em detrimento de ações conjuntas e em mudar sua postura frente às exigências de uma
nova concepção de trabalho.
Outro ponto de destaque é com relação ao aumento considerável da demanda
por atendimento psicológico. Se já havia bastante procura, agora existe, além da
demanda espontânea (os usuários procuram diretamente o serviço), os
encaminhamentos oriundos das ESF. Essa dupla entrada é fruto da implantação
incompleta do Programa, possibilitando a coexistência de dois modelos num mesmo
distrito sanitário e, conseqüentemente, de duas possibilidades de inserção no
sistema.
Parece consenso entre os profissionais entrevistados que essa demanda é
constantemente reprimida, seja pela dificuldade do psicólogo atender a maioria das
queixas que chega às unidades de saúde, seja pelo aumento da chamada “lista de
espera” que mostra a impossibilidade de atendimento nos moldes como estão
organizados os serviços psicológicos. O primeiro caso revela a incapacidade da maioria
dos profissionais para atender uma demanda que não esteja circunscrita aos problemas
existenciais, característicos das abordagens individualistas, predominantes na rede
de saúde do município. Já o crescimento da “lista de espera”, aponta a incompatibilidade
entre o atendimento individual que privilegia os seguimentos psicoterápicos e a
proposta de um Programa que tem, entre suas principais diretrizes, a maior abrangência
possível da comunidade atendida.
De uma forma geral, não parece ter havido mudanças significativas no trabalho
do psicólogo, mesmo inserido em unidades que dão suporte ao Programa. Não obstante
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
os serviços de Psicologia ocuparem o espaço de colaboradores do PSF, segundo a
lógica de organização da rede, a atuação dos profissionais continua centrada no
atendimento clínico individual. Tal fato é alvo de críticas, mas há profissionais que
questionam mudanças drásticas, já que se perderia um espaço para uma atuação que é
parte da identidade profissional dos psicólogos. É o que revela o relato de P3:
(...) como é que nós atuaríamos no PSF? A gente iria fazer um trabalho só
familiar, enquanto equipe, e esquecer esse indivíduo que tem as suas questões
existenciais?
A despeito disso, profissionais da área reconhecem as limitações de um trabalho
centrado nos moldes tradicionais do fazer psicológico.
(...) eu fico triste porque tem uma demanda imensa, e eu tenho uma visão, uma
compreensão do trabalho do psicólogo que é diferente... Eu não estou de acordo
com essa forma que o psicólogo está atuando na rede, eu acho que tem outra
contribuição a dar, porque vai precisar de 20.000 psicólogos só na Zona Norte,
para atender individualmente. (P2)
Conclusão
Passados três anos de implementação do PSF no DSN, é possível traçar um
panorama de como se deu a evolução da estratégia saúde da família no referido distrito
e dimensionar o impacto desse programa na prática psicológica e no campo de atuação
dos profissionais da Psicologia.
Em síntese, a proposta do PSF visava, à época, reorganizar a atenção básica
principalmente através de um mecanismo de discriminação positiva, já que o modelo das
UBS não garantiu o acesso aos seguimentos populacionais que mais necessitam do SUS,
os chamados grupos de risco. De fato, após o interregno 2003-2006, uma camada crescente
da população pobre tem sido coberta pelo Programa não só no DSN, mas em outras regiões
da cidade. Vários são os incentivos para o crescimento do número de equipes, mas o
financeiro, sem dúvida, é o que mais atrai profissionais para o campo. A articulação do PSF
com outros programas da SMS também evoluiu, e estratégias têm sido implementadas para
referendá-lo como porta de entrada na rede e base das ações comunitárias.
Apesar dos avanços, no novo desenho da rede, de fato, o psicólogo não se
inseriu no Programa e perdeu postos de trabalho por não conseguir justificar sua
presença em ações que objetivam prevenção de doenças, promoção de saúde,
educação popular, entre outras previstas. Mesmo após essa retração em seu espaço
de atuação, os psicólogos permaneceram assumindo como referência um modelo
de atuação que tem no atendimento individual com seguimento terapêutico sua
principal ferramenta de trabalho.
Por outro lado, é marca do SUS a incoerência entre o discurso oficial e as
estratégias efetivamente disponibilizadas aos profissionais para a realização de seus
trabalhos. Isso se repetiu no PSF que, apesar de prever ações em saúde mental, até o
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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momento não estabeleceu os parâmetros para a inserção desses profissionais nas
equipes. Atualmente, algumas tentativas de acompanhamento das equipes vêm sendo
realizadas, através, basicamente, das equipes de apoio matricial e de supervisão
institucional, contudo, ainda não se tem a dimensão do impacto que tais estratégias
têm provocado.
Os psicólogos que atuam na SMS permaneceram vinculados às UBS e alguns
deles têm ocupado posição estratégica em programas que dão apoio ao PSF, tais como
os supracitados. Isso pode sinalizar uma nova forma de inserção do psicólogo em
ações de suporte e planejamento das ações em saúde, mas não garante um espaço
efetivo de atuação profissional.
No caso específico do PSF, a Psicologia ainda defende seu status de profissão de
saúde e, como tal, possivelmente assume a posição de que deve, sim, integrar as ESF,
mas não há sinais de que sua presença se tornará obrigatória nesses espaços. De fato,
da forma como efetivamente acontecem, as ações psicológicas não se adequam à
proposta do Programa. Neste sentido, e coerentes com a relação entre planejamento e
prática, os psicólogos se encontram exatamente aonde deveriam: em locais de maior
complexidade, realizando ações que priorizam um trabalho de intervenção e não de
prevenção.
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Recebido em novembro de 2006
Aceito em fevereiro de 2007
Isabel Fernandes de Oliveira é Doutora em Psicologia Clínica (Universidade de São Paulo); professora do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Fabiana Lima Silva é Mestre em Psicologia – Programa de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Bolsista CAPES.
Oswaldo Hajime Yamamoto é Doutor em Educação – Universidade de São Paulo; professor do Departamento
de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Endereço para correspondência: [email protected]
Os autores agradecem ao CNPq e à CAPES pelo apoio para a realização da pesquisa que deu origem a este
trabalho.
Os autores agradecem às psicólogas Ana Ludmila Freire Costa e Cândida Maria Bezerra Dantas pela ajuda na
elaboração do presente manuscrito.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
19
Aletheia, n.25, p.20-34, jan./jun. 2007
Institucionalização precoce e prolongada de crianças:
discutindo aspectos decisivos para o desenvolvimento
Lília Iêda Chaves Cavalcante
Celina Maria Colino Magalhães
Fernando Augusto Ramos Pontes
Resumo: Este artigo discute aspectos das condições gerais em que 287 crianças foram encaminhadas, acolhidas e cuidadas em um abrigo infantil de Belém, entre 2004 e 2005. Os dados foram
coletados por meio de consulta a fontes documentais e entrevista semi-estruturada com técnicos do abrigo. Os resultados mostram que 34,84% das crianças que participaram da pesquisa
foram encaminhadas ao abrigo antes de completar 1 ano de idade. Ademais, verificou-se que
9,4% das crianças fizeram do abrigo seu local de moradia por um período de tempo que variou
de 1 a 6 anos. E aproximadamente 40,41% foram encaminhadas ao abrigo por uma conjunção de
fatores relacionados às condições de privação material e emocional a que foram submetidas,
geralmente desde o nascimento. O conjunto dos resultados obtidos demonstra que a
institucionalização precoce e prolongada de crianças é apresentada como uma prática
ainda freqüente nos dias atuais, entretanto o conhecimento acerca das condições gerais em que
o acolhimento pela instituição acontece, pode ser uma ferramenta que possibilita aos profissionais, autoridades e cuidadores, identificar, prevenir e reparar os efeitos dessa experiência para
o desenvolvimento da criança.
Palavras-chave: criança institucionalizada, instituição de abrigo, cuidado institucional, desenvolvimento da criança.
Early and prolonged children’s institucionalization: Discussing
decisive aspects for the development
Abstract: This article discusses aspects of the general conditions in which 287 children
were directed, welcomed and taken care in an infantile shelter in Belém, in a period between
the years 2004 and 2005. The data were collected through consultation to documental
sources and semi-structured interview with technicians from the shelter. The results show
that 34,84% of the children that participated in the research were directed to the shelter
before completing 1 year of age. Besides, it was verified that 9,4% of the children really
lived in the shelter as if it was their home for a period of time that varied from 1 to 6 years.
And approximately 40,41% were directed to the shelter because of a conjunction of factors
related to the conditions of material and emotional privation to which they had been
submitted, usually from the birth. The set of obtained results demonstrates that the children’s
precocious and lingering institucionalization is presented as a practice still frequent
nowadays, although the knowledge about the general conditions in which the reception for
the institution happens, it can be a tool that makes possible the professionals, authorities
and caretakers, to identify, to prevent and to repair the effects of that experience for the
child’s development.
Key words: institutionalized child, shelter institution, child care, child development.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Introdução
Em diferentes épocas e contextos culturais, as sociedades se depararam com o
desafio de pensar formas alternativas de cuidado às crianças cujos pais biológicos,
por razões diversas, não puderam cumprir com atribuições especificamente relacionadas
ao cuidado parental, como o sustento, a criação e a educação dos filhos.
No mundo inteiro (UNICEF, 2004), mas de modo peculiar no Brasil (IPEA, 2004),
a separação involuntária dos pais ou a exposição à violência, ao abuso e à exploração,
dentro e fora do lar, são situações freqüentes e têm servido como justificativa para a
longa permanência de crianças em instituições abertas ou fechadas, a exemplo dos
abrigos, orfanatos, internatos, hospitais e unidades psiquiátricas.
Para Wolff e Fesseha (1999), o encaminhamento, acolhimento e cuidado de crianças
em ambiente institucional são práticas sociais ainda presentes nos diais atuais,
especialmente no chamado Terceiro Mundo, onde alternativas de cuidado infantil
como a colocação em instituições residenciais, por vezes estão em dissonância com a
realidade econômica, política e cultural de alguns desses países.
Desde meados do século XX, ganha corpo o debate acerca dos efeitos da
institucionalização precoce e prolongada de crianças, com destaque ao período da
infância em que podem se manifestar de forma intensa e quase irreversível seqüelas
psicológicas derivadas dessa modalidade de cuidado infantil.
Os trabalhos pioneiros de Spitz (1965/1998) sugerem que o período crítico para a
formação do apego está situado na segunda metade do primeiro ano de vida, por ser
uma fase em que as ligações primárias se consolidam e a criança começa a distinguir
figuras de preferência entre os cuidadores. Logo, para ele, quando a experiência da
privação dos cuidados maternos ocorre nesse período sensível, a longa conivência em
ambiente institucional pode ser particularmente traumática à criança.
Já Bowlby (1976/1995) afirma que o processo de vinculação e o desenvolvimento
do apego são experiências decisivas nos primeiros 9 meses de vida, ainda que a
disposição interna da criança para se ligar a quem lhe dispensa a maior parte dos
cuidados maternos possa se manter em atividade pelo menos até o final do terceiro
ano. Nesse sentido, quando a criança é privada de tão importante experiência afetiva a
sua capacidade de se vincular e se apegar a alguém pode ficar em parte comprometida.
Para Bronfenbrenner (1994/1996), os efeitos imediatos da privação dos cuidados
maternos após o sexto mês de vida traz seguramente danos ao desenvolvimento infantil,
mas considera que as conseqüências em longo prazo podem ser superadas ou reparadas
em razão de vários fatores, como a qualidade do cuidado institucional, o tempo de
convivência nesse meio, o ambiente pós-institucionalização, entre outros. De todo
modo, ressalta que, quando a privação ocorre nos primeiros 6 meses, fase em que as
interações da criança com a mãe são mais intensas e as ferramentas que possibilitam a
aprendizagem e o conhecimento do mundo começam a ser experimentadas, os prejuízos
emocionais e cognitivos tendem a ser mais severos e persistentes e, conseqüentemente,
a possibilidade de reparação desses déficits pode ser menor.
Nos dias atuais, Zeanah, Nelson, Fox, Smyke, Marshall, Parker & Koga (2003)
consideram que experiências de separação ou perda de figuras de referência da criança
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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em razão da institucionalização, podem estar relacionadas a danos quase irreparáveis no
desenvolvimento da linguagem, na capacidade de ligar-se e apagar-se. Para eles, o período
que vai da concepção até os 3 anos é propício à aquisição de competências cognitivas
e habilidades sociais. Em razão disso, o afastamento da família e a permanência da
criança em instituição que ofereça pouco estímulo físico e social à formação da mente,
podem limitar os notáveis avanços desenvolvimentais nessa fase da vida.
Na presente década, pesquisas estabelecem relações comparativas entre
diferentes aspectos do desenvolvimento de crianças que em seus primeiros meses ou
anos de vida foram cuidadas em instituições e depois lares adotivos, como investigaram
Dozier, Stovall, Albus e Bates (2001). Em todas elas, os escores relativos às crianças
com histórico de institucionalização precoce e prolongada indicam evidente
desvantagem em termos desenvolvimentais em relação àquelas que foram mantidas
em casa e no convívio com familiares.
O’Connor, Rutter, Beckett, Keaveney e Kreppner (2000), em conjunto com
pesquisadores do English Romanian Adoptees Study Team (ERA), há anos investigam
os efeitos da privação severa para o desenvolvimento global da criança nos primeiros
anos da infância. Nesse experimento, em particular, os pesquisadores trabalharam com
três amostras de crianças adotadas por famílias residentes no Reino Unido, entre 1990
e 1992. Os resultados indicam que é forte a hipótese de que crianças expostas à privação
dos cuidados parentais no início da vida tendem a apresentar déficits cognitivos mais
elevados do que as que não viveram essa experiência, ainda que tenha sido observada
expressiva variabilidade das diferenças individuais quando se considera os escores
referentes à idade de 6 anos, o que poderia ser explicado pela existência de cuidado no
pré-natal e influências genéticas, entre outros fatores contextuais relacionados à família
de origem.
Em razão disso, segundo O’Connor e cols. (2000), não seria possível afirmar de
forma conclusiva que a deterioração e/ou os avanços no desenvolvimento físico e
cognitivo de crianças avaliadas nesse tipo de experimento, estariam relacionadas de
modo significativo à duração do período de permanência na instituição ou mesmo com
o tempo de permanência em lar adotivo. Para eles, os resultados desses experimentos
sugerem que há muito que se investigar acerca dos efeitos de uma infância passada
longe de casa e privada dos cuidados parentais.
No Brasil, estudos que abordam o universo da criança cuidada em instituição
aos poucos passam a ser mais presentes na literatura nacional e dão sinais da vitalidade
desse tema no meio científico. Como exemplo da produção divulgada nos últimos
quinze anos, período referente à implantação dos abrigos no Brasil, tem-se grupos de
trabalhos que: 1) Enfatizam aspectos sócio-históricos da institucionalização de crianças
no país (Bernal, 2004; Silva, 1997; Rizzini & Rizzini, 2004; Weber & Kossobudzki, 1996);
2) Discutem características gerais do cuidado institucional e suas implicações para o
desenvolvimento infantil (Arola, 2002; Cavalcante, Brito & Magalhães, 2005; Morais,
Leitão, Koller & Campos, 2004; Parreira & Justo, 2005; Santos, 2000; Siqueira &
Dell’Aglio, 2006; Yunes, Miranda & Cuello, 2004); 3) Focalizam os padrões de interação
e a qualidade das relações entre díades do tipo adulto-criança e criança-criança
(Alexandre & Vieira, 2004; Boff, 2002; Carvalho, 1996; Nogueira, 2004).
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Entre os estudos citados acima, destaca-se o trabalho de Siqueira e Dell’Aglio
(2006), artigo que traz uma revisão da literatura sobre as instituições de abrigo nas
últimas décadas e discute a influência de fatores da ecologia das instituições de abrigo
para a condição psicossocial da criança e do adolescente, apontando riscos e
oportunidades de desenvolvimento que podem estar presentes na vivência institucional.
Morais e cols. (2004) e Yunes e cols. (2004) mostram que os poucos estudos
presentes na literatura nacional enfatizam que os riscos de uma infância inteira passada
longe do convívio com a família e os prejuízos da permanência prolongada em
instituições para a saúde física e mental são eminentes, especialmente em função do
despreparo dos educadores para lidar com crianças e adolescentes com histórico de
privação material e emocional.
No entanto, a literatura mais recente salienta que não se pode deixar de reconhecer
o abrigo como parte integrante da rede de apoio social e afetivo que dispõe a criança
oriunda de ambiente familiar exposto a toda sorte de privações. Ou seja, em que pese
as críticas existentes, posto que tantas vezes o abrigo reproduz situações de privação
vividas na família, essa instituição pode apresentar aspectos positivos em termos das
oportunidades de desenvolvimento colocadas à criança sob seus cuidados.
Entre os trabalhos que tratam mais especificamente sobre a questão, Nogueira
(2004) aborda o universo das interações, relações e trocas contínuas entre a figura da
mãe social e crianças e adolescentes em uma instituição de abrigo do tipo Casa-Lar,
modalidade de cuidado realizada em pequenas unidades residenciais. O trabalho discute
o papel que a mãe social possui na dinâmica institucional, com destaque para o modo
como se ocupa da rotina de cuidados corporais às crianças de 0 a 3 anos.
A partir de uma perspectiva psicanalítica, Nogueira (2004) analisa a maneira como
a criança se relaciona com a figura que nas circunstâncias descritas assume
provisoriamente os cuidados maternos. Com base em instrumental do método etnográfico,
observa e registra aspectos da qualidade do cuidado e da relação entre a criança e a mãe
social em meio a ações, diálogos e brincadeiras. De posse desse material etnográfico,
procura, então, identificar a presença de um padrão de interação entre a criança e a mãe
social que possa ser reconhecido como estável (constância nos cuidados, vigilância e
observação), coerente (atenção aos ritmos de vida e desenvolvimento) e estruturante
(estímulo à construção da subjetividade), conforme propõem a filosofia e o método de
trabalho difundidos por especialistas do Instituto Emmi Pikler – Lóczy, na Hungria.
Contudo, os resultados dessa pesquisa exibem aspectos de uma realidade que
em muito se distancia das práticas de cuidado difundidas pelo Instituto Emmi Pikler
– Lóczy. No contexto considerado, o padrão de cuidado é marcado pela
impessoalidade, por atuações pouco profissionais e negligentes por parte da mãe
social, especialmente no que diz respeito à sua capacidade para perceber a criança
como um sujeito ativo, capaz de pensar por si mesma e realizar mudanças em seu
meio ambiente.
Weber e Kossobudzki (1996) descrevem e analisam aspectos relacionados ao
processo de institucionalização de 1.350 crianças encaminhadas a abrigos, orfanatos e
instituições similares. Entre outros resultados obtidos por meio de entrevistas e análise
de material documental, constataram que 8,41% dos entrevistados nunca haviam
Aletheia 25, jan./jun. 2007
23
recebido uma única visita no abrigo por parte de seus pais ou familiares. Por essa
razão, entendem que a longa permanência nesses ambientes pode propiciar a ruptura
definitiva dos vínculos familiares e alimentar na criança o desejo de crescer em uma
outra família que não a sua.
Os estudos apresentados neste artigo configuram a base teórica a partir da qual
se torna possível analisar as condições em que se realiza o encaminhamento, o
acolhimento e a permanência de crianças em instituições de abrigo, considerando-se
para efeito de análise elementos empíricos da realidade local.
Nesse sentido, este estudo pretende contribuir com a reflexão de aspectos
particulares dos contextos de desenvolvimento da infância brasileira, a partir da
descrição e discussão das condições gerais em que crianças na faixa-etária de 0 a 6
anos são encaminhadas e entregues aos cuidados de uma instituição de abrigo situada
na Região Metropolitana de Belém. Entende-se que o conhecimento das condições
contextuais a partir das quais crianças têm sido submetidas à institucionalização precoce
e prolongada, possibilita aos profissionais, autoridades e cuidadores em geral,
reconhecer, reparar e prevenir danos ao seu desenvolvimento global.
Método
Participantes
À semelhança de estudo realizado por Weber e Kossobudzki (1996), foram
considerados sujeitos desta pesquisa todas as 287 crianças que estiveram sob os
cuidados da instituição selecionada, entre maio de 2004 e maio de 2005. Esse contingente
representa, pois, a totalidade da população de crianças acolhidas pelo abrigo no período
considerado pela pesquisa.
Ambiente
A instituição pesquisada é considerada o maior abrigo infantil do Estado do
Pará. Desde sua fundação, em 1993, é responsável pelo acolhimento de crianças, na
faixa etária de 0 a 6 anos, em situação de risco social e pessoal, conforme define o ECA.
Por mês, a instituição chega a acolher 75 crianças, mas a média de atendimento fica em
torno de 65 abrigados.
Instrumento
O instrumento utilizado para registro dos dados coletados pode ser descrito
como um formulário elaborado com base em estudo anterior sobre a condição
psicossocial de crianças que vivem em abrigos e instituições similares elaborado por
Weber e Kossobudzki (1996). Nesse sentido, questões presentes no formulário para
caracterização da população de internos utilizado por essas pesquisadoras foram
suprimidas, alteradas ou incluídas, adequando a versão primeira do instrumento às
particularidades do universo empírico presentes neste estudo.
Para registro dos dados coletados ao longo da pesquisa foi utilizado um
24
Aletheia 25, jan./jun. 2007
instrumento composto por perguntas estruturadas e com múltiplas alternativas de
resposta, organizadas em torno de eixos relacionados às condições gerais de
encaminhamento e acolhimento da população considerada: identificação pessoal (10
itens), estrutura familiar (19 itens), histórico de institucionalização (30 itens) e situação
sócio-jurídica atual (19 itens).
Nos limites da análise pretendida neste trabalho, foram utilizados na coleta de
dados os seguintes documentos: 1) Estudo Social (registro das condições em que
ocorreu o encaminhamento e o acolhimento da criança pelo abrigo, o atendimento
prestado pela instituição, o contato com a família); 2) Relatório Institucional (estatísticas
sobre o número de entradas e desligamentos mês a mês); 3) Certidão de Nascimento
(declaração oficial sobre o local de nascimento, a filiação e a idade da criança); 4)
Termo de Encaminhamento do Conselho Tutelar (relato sobre a condição sócio-jurídica
da criança antes e após o abrigamento).
Procedimentos
O estudo teve início com o pedido de autorização ao titular da Vara da Infância e
Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Pará para a realização da pesquisa nas
dependências da instituição selecionada, no sentido de favorecer o acesso aos
profissionais e aos documentos que registravam aspectos da história de vida e condição
sócio-jurídica dos abrigados.
Em seguida, a proposta de estudo foi submetida à apreciação do Comitê de Ética
para Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal do Pará, cuja aprovação
foi feita sem restrições ou recomendações especiais.
Depois foram feitos contatos iniciais e reunião com a equipe técnica do abrigo
para apresentar os objetivos e o método da pesquisa e motivá-los a colaborar com
informações e esclarecimentos necessários.
A coleta dos dados referentes às condições em que as crianças foram
encaminhadas e acolhidas pelo abrigo foi realizada em fontes documentais (dados
extraídos de estudos sociais, documentos oficiais e institucionais) e fontes primárias
(informações prestadas por um grupo de profissionais com pelo menos dois anos de
experiência de trabalho no abrigo, constituído por 2 assistentes sociais, 1 psicóloga, 1
pedagoga e 1 enfermeira).
Para tanto, foi feita a seleção do material documental a ser utilizado pelos
pesquisadores a partir de critérios como legitimidade (priorizou-se documentos oficiais)
e confiabilidade (rejeitou-se anotações informais, com rasuras ou ilegíveis). A
expectativa era que esse procedimento pudesse assegurar a formação de uma base de
dados com boa margem de fidedignidade, na medida em que tornou possível a
comparação entre registros dispostos em mais de uma fonte documental, além de
identificar lacunas e contornar problemas esperados nesse tipo de pesquisa, como a
dispersão e a imprecisão de informações contidas em documentos institucionais
submetidos a exame, tal qual discute Bernal (2004).
O próximo passo foi o preenchimento do formulário a partir do registro de dados
extraídos dos documentos selecionados. Depois, por meio de entrevista semi-
Aletheia 25, jan./jun. 2007
25
estruturada, foram ouvidos técnicos da instituição responsáveis pela elaboração e/ou
guarda desses documentos. O roteiro de perguntas foi elaborado a partir de questões
presentes no instrumento utilizado para registro dos dados coletados em fonte
documental. As respostas dadas foram então analisadas no sentido de confirmar,
refutar ou complementar as informações registradas na etapa anterior da pesquisa.
Todavia, é preciso destacar que quase sempre as informações prestadas pelos
profissionais entrevistados corroboraram os dados extraídos dos documentos
examinados pelos pesquisadores.
No momento seguinte, os dados coletados foram codificados e transportados
para o programa Excel, da Microsoft. Esse procedimento permitiu a conversão dos
dados lançados nas planilhas eletrônicas em números absolutos.
Por tratar-se de uma pesquisa que teve como objetivo principal descrever o
modo como determinadas características – no caso, relacionadas às condições gerais
de acolhimento de crianças em instituição de abrigo – se apresentam na população
considerada, a análise estatística dos dados foi realizada a partir do cálculo de
freqüências e percentagens, considerando-se para tanto o nível de medida nominal,
conforme orienta Moura e Ferreira (2005).
Em razão dos objetivos pretendidos, a análise dos dados quantitativos não exigiu
a aplicação de testes estatísticos, mas a distribuição das freqüências e percentagens
correspondentes a cada uma das variáveis a seguir descritas: 1) motivo que justificou
o abrigamento da criança; 2) número de irmãos na mesma instituição; 3) quantidade de
vezes em que deu entrada na instituição; 4) idade da criança à entrada atual; 5) tempo
total de permanência sob os cuidados do abrigo; 6) pessoa que realizou visita no
período; 7) destino no pós-abrigamento.
Ao final, a apresentação dos resultados obtidos foi estruturada em torno das
variáveis acima relacionadas, constituindo-se em unidades de análise neste trabalho.
Resultados e discussão
Neste estudo, os resultados demonstram que de um total de 287 crianças que
deram entrada na instituição no período considerado pelos pesquisadores, 40,41% foram
encaminhadas ao abrigo por um conjunto de fatores relacionados ao contexto de privação
material e emocional que são próprios do ambiente familiar do qual derivam. Isso significa
quase a metade das crianças foi encaminhada à instituição por uma série de crises e
dificuldades experimentadas pelo grupo familiar que foram registradas uma a uma no
momento do seu ingresso na instituição. Nesse sentido, verificou-se que a existência de
crianças que apresentaram dois (28,57%), três (10,80%) e até quatro ou mais problemas
(1,04%) de ordem sócio-familiar como justificativa para a sua permanência no abrigo.
Em contrapartida, entre as crianças que apresentaram um único motivo como
justificativa para o seu encaminhamento à instituição (n = 171), constatou-se que em
60,23% dos casos analisados a negligência familiar figura como a situação de risco que
respaldou a decisão tomada por parte autoridades e profissionais da área.
Observa-se que a maioria crianças que compõe a amostra permaneceu sob a guarda
do abrigo no período considerado, porque seus pais e/ou responsáveis foram
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
reconhecidos como pouco capazes de prover os cuidados necessários ao seu crescimento
e socialização. Em outras palavras, nessas circunstâncias, considera-se que a família
falhou ou se omitiu no cumprimento de suas funções mais elementares, como alimentar,
zelar e proteger a criança de riscos e ameaças graves. Entre os casos examinados ao
longo da pesquisa, freqüentemente as crianças deram entrada na instituição em razão de
atitudes tidas como negligentes por parte de seus cuidadores primários e/ou porque
eram obrigadas a conviver em um ambiente familiar empobrecido sob diferentes aspectos:
material, emocional e moral, como mostram estudos presentes na literatura nacional
(Siqueira & Dell’Aglio, 2006) e internacional (Wolff & Fesseha, 1999).
Das 103 situações de negligência familiar que foram destacadas neste trabalho como
o motivo para o acolhimento e cuidado institucional, uma parte dos casos diz respeito a
crianças que foram encontradas em local e horário impróprios à sua faixa de idade, sem a
presença de um adulto, ou no máximo, na companhia de outras crianças – irmãos, amigos,
vizinhos. Da mesma forma, foram encontrados registros de negligência familiar que se
referiam claramente a flagrantes de crianças deixadas sozinhas em casa, sem a atenção e os
cuidados de um adulto e em condições precárias de nutrição, higiene e saúde.
Os resultados indicam também outras situações reconhecidas como de negligência
familiar. Desde muito cedo, crianças são incentivadas à autonomia precoce (muitas vezes
vão sozinhas à escola, fazem pequenas compras, zelam pela segurança da casa e dos
irmãos). Além disso, são utilizadas por seus pais em atividades de trabalho ou mesmo
iniciadas em práticas ilícitas que oferecem risco à sua integridade física, psicológica e
moral, com destaque para a mendicância. Nessas circunstâncias, ponderam Cavalcante
e cols. (2005), a atitude dos pais e/ou responsáveis podem ser avaliadas tanto como um
gesto de descuido isolado, produto de carências e vicissitudes do meio, como um padrão
de comportamento presente na família há mais de uma geração.
Outro aspecto interessante é que 46,69% das crianças possuíam irmãos que à
época da pesquisa também foram encontrados sob os cuidados da instituição. Na maioria
das vezes, eram crianças que haviam sido acolhidas pelo abrigo na companhia de apenas
um irmão (26,14%). Contudo, foram levantados registros de crianças que conviveram no
mesmo espaço com dois (15,68%) ou até três irmãos (4,87%). Esses dados revelam que
essa parece ser uma prática tão presente hoje quanto fora no passado, uma vez que, em
meados do século passado, 40% dos internos em uma instituição para menores tinham
mais de um irmão na mesma condição (Rizzini & Rizzini, 2004).
Em relação ao número de vezes em que foram encaminhadas ao abrigo, verificouse que uma parcela significativa das crianças já havia sido acolhida pela instituição em
outros períodos. Nos casos analisados, a permanência da criança na instituição de
abrigo ocorria pela segunda (6,97%), terceira (1,04%) ou até quarta vez (1,75%). Para
quase 10% das crianças, a experiência de ter sido deixada sob os cuidados da instituição
não era inédita e havia o registro de entradas anteriores no abrigo.
No que se refere à idade em que as crianças foram acolhidas pela instituição, a
tabela 1 mostra a existência de crianças que haviam sido encaminhadas ao abrigo com
apenas 1 dia de vida e outras que à época tinham quase 10 anos de idade à entrada,
provavelmente em razão de medida excepcional adotada pela instituição para evitar o
desmembramento de grupos de irmãos.
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27
Tabela 1 – Distribuição das crianças quanto à idade em que deram entrada no abrigo.
Idade à entrada no abrigo
Freqüência
%
Menos de 1 mês
1 a 2 meses
3 a 4 meses
5 a 6 meses
7 a 12 meses
12 meses
24 meses
36 meses
48 meses
60 meses
Mais de 60 meses
20
28
12
11
29
28
29
32
34
34
30
6,96
9,75
4,19
3,84
10,10
9,75
10,10
11,16
11,85
11,85
10,45
Total
287
100
Conforme os resultados obtidos, observa-se que o percentual de crianças
com até 12 meses corresponde a quase um terço do total considerado (34,84%).
Entretanto, quando se procede à soma das crianças acolhidas pela instituição nos
três primeiros anos da infância, constata-se que essa parcela representa mais da
metade dos participantes da pesquisa (54,69%). Esses resultados são
particularmente importantes quando se considera que essa fase da infância merece
ser reconhecida como um período de grande sensibilidade aos estímulos do meio
social e naturalmente propício à construção das ligações primárias, tal qual
compreendem Zeanah e cols. (2003).
Nesse sentido, os percentuais obtidos descrevem traços da população estudada
que devem ser analisados de maneira contextualizada, particularmente quando se
pretende compreender em que medida as condições gerais do processo de
acolhimento e cuidado em abrigo podem exercer algum efeito sobre aspectos decisivos
do desenvolvimento. Neste artigo, a literatura examinada não deixa dúvida de que,
desde os trabalhos pioneiros de Spitz (1965/1998), Bowlby (1976/1995) e
Bronfenbrenner (1994/1996) até os mais recentes (Sigal, Perry, Rossignol & Ouimet,
2003), a idade em que a criança foi encaminhada à instituição tem sido vista como
uma variável importante em pesquisas sobre os efeitos da institucionalização para o
desenvolvimento.
Sigal e cols. (2003) observaram que quanto menor a idade da criança
institucionalizada maior será a chance de vir a apresentar retardos e seqüelas graves
em sua trajetória de desenvolvimento. Da mesma forma, prosseguem os autores, quanto
maior for o tempo passado em instituições que oferecem atendimento massificado e
sem respeito às escolhas individuais, maior é a possibilidade da criança vir a sofrer os
efeitos nocivos dessa experiência ao longo da vida.
Neste estudo, os resultados mostram a existência de um contingente expressivo
de crianças que foram institucionalizadas por um tempo que extrapolou em muito o
tempo recomendado por especialistas como O’Connor e cols. (2000). Das 287 crianças
28
Aletheia 25, jan./jun. 2007
que participaram da pesquisa, cerca de 9,4% faziam do abrigo seu local de moradia por
um tempo relativamente longo, que variou de 1 ano e 1 mês até 5 anos e 6 meses.
A tabela 2 apresenta o tempo total de permanência das crianças no abrigo, cálculo
que incluiu o período passado na instituição à época da pesquisa e também os dias,
meses ou anos referentes ingressos anteriores, uma vez que em quase 10% dos casos
analisados havia registro de passagens anteriores pela instituição.
Tabela 2 – Distribuição das crianças segundo o tempo total de permanência na instituição.
Tempo total de permanência
Freqüência
Total
Menos de 1 mês
1 a 2 meses
3 a 4 meses
5 a 6 meses
7 a 12 meses
12 meses
24 meses
36 meses
48 meses
60 meses ou mais
142
55
20
16
27
10
14
03
49,47
19,16
6,97
5,58
9,42
3,48
4,88
1,04
Total
287
100
A maior parte das crianças permaneceu sob os cuidados da instituição por um
período de até 15 dias (41,81%) ou no máximo 1 mês (8,71%), o que reforça o caráter
provisório dessa medida de proteção social à infância. Esses resultados sugerem que
muitas crianças foram encaminhadas ao abrigo por situações em que efetivamente não
existiu grave risco à sua integridade física, psicológica e sexual. Em Belém, assim como
em vários municípios do país, existe uma modalidade de atendimento em que o
acolhimento institucional que não pode exceder a marca de 72 horas, destinado a
atender situações menos complexas do ponto de vista da segurança da criança.
Por outro lado, a pesquisa revelou que o número de crianças para as quais o
abrigo serviu como local de moradia por mais de três meses (31,37%), tempo reconhecido
como suficiente para a aplicação de outras medidas de atenção à criança e à família,
não pode ser subestimado e precisa ser entendido em um contexto mais amplo. Ademais,
verificou-se que 5,92% das crianças permaneceram no abrigo por um tempo superior a
dois anos, número que acompanha de perto as estatísticas nacionais sobre a situação
dos abrigos no país. De acordo com o IPEA (2004), entre quase 20.000 abrigados,
32,9% moravam em uma instituição de abrigo por um tempo superior a 2 anos e13,3%
por um período de 6 a 10 anos.
Sobre a questão, Spitz (1965/1998), Bowlby (1976/1995) e Bronfenbrenner (1994/
1996), mas também Zeanah e cols. (2003) na atualidade, consideram que quando a
criança está sob os cuidados de uma instituição do tipo asilar por vários anos,
provavelmente são poucos os adultos com quem poderá construir uma relação afetiva
e duradoura, em razão de características comumente associadas ao ambiente
Aletheia 25, jan./jun. 2007
29
institucional, como a rotatividade de cuidadores imposta pelo sistema de turnos de
trabalho e as práticas de cuidado coletivo marcadas pela impessoalidade.
Nos marcos da análise pretendida, também a informação sobre quem visita a
criança e com que freqüência esse encontro ocorre parece ser bastante útil, sobretudo
quando se quer avaliar medidas destinadas a promover a sua reinserção na família e a
abreviação do tempo passado na instituição. O estudo revelou que somente 13,59%
das crianças foram visitadas por seu pai e sua mãe em um mesmo encontro. Esse
percentual se altera quando a ele é acrescido o número de crianças que receberam
visitas de seus pais, mas acompanhados de outros parentes (20,41%). Já as freqüências
relativas aos encontros que contaram com a presença apenas da mãe (28,91%) ou do
pai (4,89%) demonstram que, assim como ocorre fora dos limites do abrigo, são poucas
as crianças institucionalizadas cujos pais ainda convivem como casal e compartilham
responsabilidades devidas aos filhos. Também houve casos em que as visitas foram
feitas por parentes que compareceram ao abrigo sozinhos (11,15%), sem a companhia
dos pais da criança. Em geral, os parentes que mantiveram contato regular com as
crianças foram os avós, tios, primos ou irmãos mais velhos.
Weber e Kossobudzki (1996) em estudo que identificou quem e com que
freqüência pessoas visitavam as crianças na instituição, obtiveram resultados que
também apontam na direção de um gradual distanciamento por parte dos pais ante a
permanência prolongada de seus filhos sob a guarda do abrigo. De 1.350 crianças que
viviam na instituição há pelo menos 12 meses, cerca de 67% não haviam recebido a
visita dos pais ou de qualquer um deles.
A pesquisa revelou ainda que as situações em que foi registrado o desligamento
da criança do abrigo, os destinos registrados foram os mais diversos, sendo que a
maioria retornou ao convívio com a sua família de origem. Nesses casos, as crianças
passaram a estar sob os cuidados de seus pais (10,81%), apenas da mãe (33,80%),
exclusivamente do pai (6,62%) ou foram viver com parentes próximos, principalmente
avós e tios (13,58%).
Nesse contexto, é interessante destacar que a maior parte das crianças retornou
ao convívio com a mãe, seja nas situações em que ficou sob sua responsabilidade
direta e exclusiva (33,80%), seja quando os cuidados maternos passaram a ser
compartilhado com outros membros da família extensa, principalmente com os avós
(1,39%).
A partir dos resultados obtidos, verifica-se que a mãe tem um papel de destaque
na vida da criança, esteja ela no convívio com a família ou mesmo no abrigo. Para a
maioria das crianças, a mãe foi desde o nascimento a principal figura de referência na
família (49,14%), muitas vezes a única responsável por seu sustento financeiro e cuidado
habituais. Além disso, constatou-se que as mães foram as figuras mais presentes no
abrigo e com maior número de visitas às crianças (28,91%). Ao fim do ciclo, com o
retorno das crianças à convivência familiar, 33,80% passaram a viver exclusivamente
sob os cuidados da mãe.
Os resultados demonstram ainda que pelo menos 8,01% das crianças passaram a
morar com os avós ou qualquer um deles após o período em que foram acolhidas pelo
abrigo. Esses resultados são coerentes com outros achados da pesquisa. Em 6,96%
30
Aletheia 25, jan./jun. 2007
dos casos analisados, as crianças moravam com seus avós muitas vezes desde o
nascimento. E quando se considera o número de crianças que receberam visitas de
familiares, excluindo-se os pais, os avós (o casal ou qualquer um deles) foram as
figuras mais presentes na instituição.
Neste estudo, os resultados reforçam a idéia de que o avô e a avó – mas,
principalmente as avós maternas – têm sido muito atuantes na vida das crianças.
Lopes, Néri e Park (2005) consideram que, a julgar pelas tendências apuradas pelo
último censo, o número de crianças que estão hoje sob a responsabilidade de seus
avós deve ser ainda maior que o estimado. No Brasil, segundo do IBGE (2004), 20%
dos domicílios brasileiros são chefiados por idosos. Esse universo compreende
quase 8 milhões de famílias. Desse total, 36% são arranjos familiares compostos por
casal com filhos e/ou outros parentes, geralmente netos com até 14 anos de idade.
Os resultados obtidos por esta pesquisa estão em consonância com fenômenos
sociais que vêm sendo estudados em diferentes áreas das ciências sociais e humanas
– cresce o número de crianças que convivem em famílias monoparentais com chefia
feminina e/ou moram com seus avós, como analisam Lopes e cols. (2005).
Conclusão
A partir da análise descritiva das condições gerais em que crianças são
encaminhadas e acolhidas em uma instituição de abrigo na Região Metropolitana de
Belém, este estudo mostra em números que a institucionalização precoce e prolongada
são práticas ainda freqüentes nos dias atuais, contrariando o caráter excepcional e
provisório do cuidado institucional como medida sócio-jurídica de proteção destinada
especialmente à infância em risco.
De acordo com Nogueira (2004), Rizzini e Rizzini (2004), Silva (1997), Siqueira e
Dell’Aglio (2006) e Weber e Kossobudzki (1996), entre os efeitos nocivos que
institucionalização precoce e prolongada pode trazer à criança deve-se dirigir um olhar
especial à ameaça real de ruptura dos vínculos com a família de origem e às dificuldades
existentes para a formação de novos laços afetivos, inclusive no próprio espaço do
abrigo. Para eles, em razão da existência hoje de mecanismos mais eficazes de controle da
sociedade sobre os ambientes coletivos de cuidado destinados à primeira infância,
quando a criança permanece sob a guarda do abrigo, costuma receber cuidados físicos
relativamente adequados (preocupação com a alimentação, a higiene e o trato de doenças
comuns), mas emocionalmente indiferentes (atendimento impessoal, massificado,
burocratizado e o contato entre adultos e crianças tende a ser pouco afetuoso).
Nesses termos, Nogueira (2005) considera que por se tratar de uma instituição
que funciona como local de moradia para muitos e pelo fato de que as crianças trazem
em sua bagagem uma história de vida marcada por experiências traumáticas, a
preocupação com a qualidade do cuidado institucional ganha nesse contexto uma
proporção ainda maior. Nessas circunstâncias, a criança demanda que seus cuidadores
habituais voltem os seus sentidos em direção a ela, a fim de que possam compreender
seus gostos, interesses, capacidades e dificuldades como características pessoais
que estruturam a sua subjetividade e orientam o seu comportamento.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
31
Ademais, a longa permanência em ambiente institucional leva a criança a se
relacionar direta ou indiretamente com um conjunto de pessoas que passam a
dividir poder e responsabilidades sobre ela, tais como educadores, técnicos,
conselheiros tutelares, juízes, promotores públicos, entre outros. Entretanto, no
caso específico dos funcionários que se ocupam da rotina de cuidados corporais
e outros, os mesmos tendem a se constituir com o passar do tempo em referencial
de família para a criança, o que certamente faz crescer o nível de importância do
investimento em sua formação profissional e supervisão do seu trabalho diário.
Nesse contexto, essas medidas devem ser entendidas como parte de um processo
articulado de ações institucionais e medidas sociais de prevenção, trato e reparação
de danos ao desenvolvimento que estão associados à institucionalização precoce
e prolongada de crianças.
Neste artigo, o conhecimento acerca dos motivos que podem levar à experiência da
institucionalização precoce e prolongada deixa claro que o debate acerca da importância
da convivência familiar para o desenvolvimento infantil não pode se realizar sem a
necessária reflexão sobre o conteúdo e a gestão de políticas públicas capazes de fortalecer
as famílias em suas competências e promover a preservação dos vínculos sócio-afetivos
entre pais e filhos diante de situações adversas, como a pobreza, a desagregação familiar,
a violência doméstica e a dependência do álcool e outras drogas.
A partir dos resultados obtidos neste estudo, entende-se ainda que as diferenças
estabelecidas entre o cuidado à criança em ambiente familiar e institucional merecem
ser investigadas de maneira integrada e contextualizada, sobretudo em termos de suas
implicações para a ecologia do desenvolvimento nos moldes em que analisa
Bronfenbrenner (1994/1996).
Parte-se do entendimento de que nos casos em que a criança permanece sob o
cuidado exclusivo de uma instituição de abrigo, não apenas fatores contextuais da
família de origem influenciam a sua trajetória desenvolvimental (condição sócioeconômica, composição familiar), mas também a exposição a um padrão de cuidado
pouco estável e muito impessoal no ambiente institucional pode se constituir em um
campo fértil para a propagação de doenças infecto-contagiosas, déficits cognitivos,
estados depressivos e distúrbios diversos no desenvolvimento.
Nesses termos, conclui-se que quanto maior o nível de conhecimento e atenção
com as condições gerais do encaminhamento, acolhimento e cuidado em ambiente de
abrigo, bem maiores podem ser as chances da prevenção dos fatores de risco para o
desenvolvimento infantil, como tem sido considerada a institucionalização precoce e
prolongada de crianças.
Referências
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que vivem em situação de abrigo. Em: Psicologia em Estudo 2: 207-217.
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Recebido em agosto de 2006
Aceito em abril de 2007
Lília Iêda Chaves Cavalcante é professora Mestre do Departamento de Políticas e Trabalhos Sociais.
Doutoranda pelo Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento, Universidade Federal do Pará.
Celina Maria Colino Magalhães é professora Doutora do Departamento de Psicologia Experimental e do
Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento, Universidade Federal do Pará.
Fernando Augusto Ramos Pontes é professor Doutor do Departamento de Psicologia Experimental e do
Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento, Universidade Federal do Pará.
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.35-48, jan./jun. 2007
Inclusão e a difícil arte de amar o que (não) se vê
Sueli Souza dos Santos
Resumo: Este artigo é resultado de um pequeno recorte da investigação em andamento de
minha tese de doutorado em Educação na UFRGS. Trata sobre as questões de inclusão, linguagem e subjetividade de cegos. Fundamenta-se na Psicanálise de Freud e Lacan, desenvolvendo
os conceitos de narcisismo, o Outro e a pulsão escópica em suas implicações constitutivas no
Estágio do Espelho. Analisam-se, através de um recorte do corpus de uma entrevista realizada,
alguns enunciados sobre a subjetivação dos cegos. Apóia-se em sua construção metodológica na
teoria da Análise de Discurso de Pêcheux em suas possibilidades de articulação com AuthierRevuz, priorizando os conceitos de linguagem, e heterogeneidade discursiva. O trabalho apoiado nessas duas teorias, ou seja, a Psicanálise e a Análise de Discurso, evidencia nos enunciados
da entrevistada, algumas dificuldades no processo de inclusão dos cegos relativas a sua vida
amorosa em relação aos videntes.
Palavras-chave: discurso, inclusão, pulsão escópica, narcisimo.
Inclusion: The difficult art of loving what it’s (not) seen
Abstract: This article is the result of a small clipping of the on-going investigation of my
doctoral thesis on Education at the Federal University of Rio Grande do Sul. It deals with
inclusion, language and subjectivity of blind people. It´s based on the Psychoanalysis of
Freud and Lacan, developing the concepts of narcissism, The Other and scopic pulsion in
their constituent implications in the Mirror Stage. It is analyzed, through the clipping of
the corpus of an interview, some statements about blind people´s subjectivity. The
methodological construction is based on Pêcheux´s Discourse Analysis on its possibilities
of articulation with Authier-Revuz, giving emphasis to the concepts of speech and
discoursive heterogeneity. Based on these two theories, the Psychoanalysis and the
Discourse Analysis, this paper shows, through the statements of the interview, some
difficulties in the process of inclusion of blind people concerning their loving life in relation
to the not blind.
Key words: speech, inclusion, scopic pulsion, narcissism.
Introdução
“Não é uma igualdade”: algumas interrogações iniciais
A questão sobre a discriminação de minorias, quer por fatores raciais, religiosos,
sexuais, de gênero, de imigração, ou portadores de necessidades especiais, sendo este
último objeto específico de nossa investigação, convoca-nos a pensar em que medida
a discussão sobre os temas da inclusão e exclusão, do ponto de vista da Psicologia
Social e da Educação, enquanto campos de saberes que albergam inter-relações sociais,
abrange muitos fatores constitucionais da subjetividade e da identidade, para além do
que é visível.
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Quando trabalharmos com os conceitos de inclusão/exclusão, é necessário
estarmos atentos sobre as múltiplas possibilidades de deslizamentos de sentido que
esses termos podem derivar. Pensando a educação inclusiva, é preciso reconhecer que
a inclusão porta uma ambivalência. A formação grupal, em ambiente escolar, de trabalho
ou de convivência, quando impõe o exercício do processo de inclusão, evidencia-se que
alguém está excluído de um coletivo determinado. Nesse caso, a inclusão significa incluir
este que está fora, por ser diferente, como igual ou como diferente? Qual é o diferente
privilegiado, o do grupo ou do indivíduo? Qual identidade será incluída no quê?
Se pensarmos em como se constituem os laços sociais, que inserem o sujeito na
cultura, pela linguagem e suas derivas, lembramos que em relação à questão de
identidade, Bhabha (1998, p.80) afirma: “... testemunhamos a alienação do olho através
do som do significante no instante em que o desejo escópico (olhar/ser olhado) emerge
e é rasurado na simulação da escrita.”
A pulsão escópica, conceito psicanalítico, que representa o prazer de ver e ser
visto, que tem o olhar como objeto de desejo, relaciona-se com o mito originário que
envolve a relação imaginário que forja os processos identificatórios. Sob essa
perspectiva, nos interessa aqui ressaltar a importância do olhar na estruturação do
psiquismo, da subjetivação, da identidade e suas implicações no processo de inclusão.
Tomamos como ponto de partida deste artigo um dos enunciados da entrevista realizada
com Gisele1 , qual seja: “Não é uma igualdade. Não é de igualdade... há muito tempo
que um homem que enxerga não me paquera. Há muito tempo. Por quê? Porque na
verdade ele não vai tirar uma onda com uma guria cega.”
Seguindo o enunciado de Gisele1, ocorrem-nos algumas questões que podem
interpelar tanto cegos como videntes, tais como: Como amar alguém que não nos vê?
Como amar alguém que não se vê? Como amar alguém que não vê a si próprio?
O namoro pela internet, versão contemporânea do namoro por correspondência
promovido pelas revistas femininas de décadas atrás (ou seria século passado?),
supunha o possível encontro com uma pessoa idealizada, a alma-gêmea.
Imaginariamente, mesmo com a possibilidade de o(a) correspondente e, agora
internauta, ser diferente da fantasia que se criasse em relação àquele(a) que não se
via; sempre havia a possibilidade de, num futuro encontro presencial, se surpreender
com aquilo que encontraria. Poderia emergir daí uma confirmação ou desilusão dessa
fantasia de encontro, tendo como resultantes expressões tipo: “és bem como eu
imaginava”, ou: “és bem diferente do que eu imaginava” ou: “não eras nada do que
eu imaginava”. No último caso, como vemos, o verbo ser dá idéia de passado, ou
seja, mais do que uma constatação pode se avizinhar, quem sabe, um desencanto,
um desencontro. Será que se consegue conhecer aquele pelo qual se enamora? Que
encontro haveria na correspondência da fantasia? O enamoramento seria pela
fantasia?
1
Gisele é o nome fictício da entrevistada.
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O Outro que se encontra: um estranho familiar
A surpresa ou desilusão no jogo do enamoramento está em relação direta com o
espelhamento narcísico. Reportando–nos ao ponto de vista psicanalítico, enxergar é
diferente de ver, além do que, ver é diferente de olhar. É preciso estabelecer que,
voltando aos primórdios da constituição do psiquismo, os sentidos e sentimentos se
desenvolvem na medida em que o bebê é investido afetivamente, ou seja, quando
passa a significar para alguém, quer sejam os pais ou cuidadores.
É através do olhar do Outro que o bebê passa a ser confundido num ideal
imaginário de espelhamento com a mãe, o que lhe dá não só um lugar, mas um sentido
em relação a esse Outro. Cabe dizer aqui que o conceito de Outro, conceito lacaniano
escrito com maiúscula, está referido a um lugar de significação que articula o
inconsciente e marca a significação simbólica.
Para compreensão da estruturação do psiquismo, seguimos o referencial
psicanalítico, que aponta o conceito de pulsão como fundante do aparelho psíquico. O
conceito de pulsão, como inscrição de intensidades libidinais, inconscientes, marca as
primeiras experiências de satisfação no psiquismo deixando pegadas, traços, como
digitais únicas de prazer e de desprazer, oportunizando a criação das representações,
inaugurando a possibilidade do pensamento e discriminação do eu e do não eu.
A pulsão escópica, ou seja, a pulsão do olhar como um dos primeiros
investimentos do Outro em relação ao bebê, passa a ser um elemento constitutivo de
valor fundamental na fundação psiquismo. Mas o que quer o Outro? Alguma coisa
sempre indecifrável. O olhar não é compreendido mais como condição da consciência
e do conhecimento, mas é uma marca pulsional, portanto, do inconsciente.
Essa formulação teórica da psicanálise rompe com a tradição filosófica que não
distingue entre visão e olhar. Sendo assim, o olhar deixa de ser uma qualidade do
sujeito como propunha a filosofia, mas, segundo Lacan, passa a ser o objeto específico
da pulsão escópica, faz parte do objeto e não do sujeito; ao contrário, o sujeito é
afetado pelo olhar, é subvertido por ele enquanto objeto (a), denominado por Lacan
como objeto causa de desejo.
Em Freud, tal objeto tem a dimensão do objeto perdido, o qual está em jogo na
repetição. Esse objeto torna-se aí ativo, e o sujeito, efeito. O objeto (a), diz Lacan,
parece ser alguma coisa que implica estilhaços da pulsão, enquanto pulsões parciais.
Sendo objeto parcial, o objeto (a) não pode ser representado, só pode ser identificado
sob a forma de fragmentos parciais do corpo, sob quatro aspectos: objeto de sucção
(seio), objeto de excreção (fezes), a voz e o olhar. Além disso, o objeto sendo parcial,
não se pode nomear devido a não se ter idéia do que ele seja.
Um terceiro aspecto a ser considerado refere-se a um resto, ao mesmo tempo
função e resíduo, implicado no centro do nó borromeano, em que se entrelaçam o
simbólico, o imaginário e o real. O nó borromeano é uma figura topológica, um tipo de
círculo flexível, que em psicanálise é usado para explicar as relações de pura significância,
conforme definição de Kaufmann e Conte (1993, p. 68): “O nó borromeano são três
termos que se estabelecem pela presença do terceiro, uma relação entre os outros dois.
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Na prática analítica, o resto de um dito se torna o que resta a dizer, o inacessível, o que
remete ao recalcamento primário, sem que possamos dizer”.
A citação remete-nos diretamente ao texto “Projeto para uma psicologia
científica”, em que Freud (1976-1895) postula a primeira experiência de satisfação
como mítica, a qual o sujeito tentará em vão reconstituir. Essa tentativa de reconstituição
é decorrente do desejo em relação à Coisa, o Isso em alemão “das Es”, que não pode
ser nomeado. A Coisa é dada no campo escópico, é ela que confere a lei do desejo, ou
seja, na visão da psicanálise, do desejo indestrutível, que se apresenta como esse
abismo infinito do inalcançável, que opera por deslizamento em um plano de
contigüidade, remetendo o sujeito sempre a uma falta.
Dizendo de outra forma, a Coisa (das Ding) é o que do real não acessa ao
significante, é barrada do significante da lei, vem no lugar do significante, mas não
pode nomeá-lo. Esse significante que barra a Coisa é chamado de “nome-do-pai”,
enquanto referido ao Édipo. Aqui nos ocorrem outros interrogantes: o Outro é sempre
estranho e familiar porque traz a marca do desejo edípico? Busca-se, no amor, o primeiro
amor, novamente?
O Estágio do Espelho: Narciso não vê o que não é espelho
A partir das primeiras experiências, na relação de espelhamento com a mãe,
partimos da metáfora lacaniana do estágio do espelho, apontando dois momentos
constitutivos desse aparelho. Seguindo esse autor, nos primeiros meses do bebê, a
própria incompletude do aparelho visual impõe-lhe uma total dependência perceptiva,
pela impossibilidade de o cérebro interpretar os estímulos visuais que recebe. Assim,
o estágio do espelho funciona como o primeiro organizador da angústia do corpo
fragmentado, fundindo a imagem ao objeto, mãe e bebê são uma só coisa.
Essa fusão dá uma forma, uma contenção em que, pela fascinação do olhar, criase um jogo de júbilo, de gozo. Nessa completude, não há possibilidade de falta, mãe e
bebê, se completam mutuamente. Esse estado idílico, fusional, num segundo momento,
já não basta, não satisfaz a mãe, que insatisfeita demanda outras coisas ao bebê,
rompendo a plenitude.
Como um retorno a esse estado idílico é impossível, o bebê tenta agora ser o eu
ideal, ou seja, o que imagina através do olhar da mãe (A); tenta ser o que supõe que a
mãe deseja. O jogo de olhares, buscando no espelho um reflexo que lhe dê sentido, nos
leva a pensar sobre a diferença entre ver e olhar.
O que vemos está marcado pelo pulsional, apreendido pela fascinação do objeto.
Há um estado de fascinação que nos liga e provém do Outro; quando isso se dá, não
estamos somente na dimensão do eu imaginário, mas no plano da pulsão escópica, que
prende desde fora. Neste sentido é que Nasio nos diz (1995, p.35): “(...) a fascinação é
uma experiência limite, é uma experiência limite porque se produz no limite do imaginário.
O eu já não é eu porque lhe faltam as imagens em que ele se reconhece, todo esse
mundo imaginário desaparece, não há mais reconhecimento.”
As marcas do investimento inicial do Outro no infans, no entanto, deixa indelével
o pulsar de que aí, em algum momento, isso existiu, esse encontro profundo e
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indissolúvel, que a todos nós constituiu enquanto um significante para um outro
significante.
Com isso queremos evidenciar que antes de qualquer possibilidade de enxergar
e discriminar os estímulos visuais que lhe oferece o contato com o mundo, o bebê será
estimulado e tirado de seu isolamento narcísico pelo apelo da mãe ou daquele que o
cuida, que o investe afetivamente, que lhe dá sentido, ou seja, que o investe
pulsionalmente.
Esse é um poder que a mãe ou quem cuida exerce sobre seu bebê. Esse Outro é que
pode ter um saber sobre ele, dizer coisas sobre ele, antecipar sentidos que ele, até então,
desconhece. Isso está dado para além da capacidade de enxergar de cada um. O espelho
é o olhar da mãe, que diz: “tu és isso para mim, para meu desejo, eu te vejo e te quero
assim”. Para Kehl (2003, p. 415): “A liberdade humana é limitada, ou pelo menos delimitada,
por fatos que antecedem a própria existência individual. Nossa vida psíquica, o que é
muito mais grave, depende do inconsciente das pessoas que cuidam de nós”.
Nesse jogo de troca de lugares entre imaginário e simbólico, está a fonte de toda
incerteza relativa à vida, na qual o narcisismo, que se pensa sabedor e seguro do seu
lugar, é lançado na evidência de que tudo o que é pode vir a não ser. Jogo presente no
dominador e no dominado pela ilusão do amor.
A troca de lugares se dá pelo estranhamento da língua. Parece haver um pedido
por parte da mãe que o bebê a compreenda em sua demanda, que fale sua língua, uma
língua estrangeira, pois é inapreensível em sua totalidade, jogando o infans, cego ou
vidente, na gangorra da inclusão/exclusão com relação à língua materna e sua
sobredeterminação interdiscursiva. Talvez possamos pensar que o Outro nunca é
exatamente o que pensamos.
Linguagem e subjetividade: algumas inter-relações possíveis entre Análise de
Discurso (AD) e Psicanálise
A dimensão propriamente significante, sob a qual o sujeito está submetido na
fala, implica a subjetividade em uma relação fundadora com a linguagem. Assim, a
linguagem, via o cenário familiar, na relação com o Outro, é o meio no qual o indivíduo
é mergulhado desde o nascimento. A proposição de Lacan (1998) que o inconsciente
é estruturado como uma linguagem, proferida no chamado relatório do Congresso de
Roma ([1953]), possibilita-nos fazer alguma aproximação com o campo da Análise de
Discurso, que tem um modo de olhar em que a relação da criança com a linguagem não
é definida como conhecimento constituído de categorias e estruturas, mas daquilo que
produz estranhamento no processo na constituição desse olhar.
Na Análise de Discurso, o processo de significação estaria vinculado a “um
duplo movimento de restrição e ampliação do que vai sendo construído sob a forma de
unidades de ordem vária”, como diz Lemos (1994). Nessa medida, a autora segue a
Pêcheux (1983), quando afirma que cada unidade abre pontos de deriva, produzindo
efeitos de ressignificação em relação a outras unidades.
Os processos metafórico e metonímico produzem esse movimento e seus
produtos, sendo que, para Lacan (1998), a relação metafórica implica o elemento
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substituído por aquele elemento que está em ausência, mostrando sua ligação
indissociável com a metonímia. A metonímia, como figura de linguagem, é a
representação da parte pelo todo e do todo pela parte, a partir do que se pode entender
a relação entre um termo manifesto e um termo latente presentificado em uma cadeia
discursiva.
Pensando a aquisição da linguagem, Oliveira (2004) entende que o enunciado da
criança é ouvido e ressignificado pelo enunciado do adulto, pois seus significantes se
apresentam como formas isoladas. Os processos metafórico e metonímico cristalizamse em redes de relações, mas, a partir de seus próprios enunciados, a criança passa a
escutar e ressignificar, arriscando então interpretar a si mesmo e ao outro.
Voltando à questão relativa ao desenvolvimento do sistema simbólico de crianças
cegas, fazendo uma relação ao desenvolvimento da linguagem e da subjetividade
dessas crianças, podemos pensar nesse mergulho na linguagem, e na língua materna,
desde seu nascimento, nesse meio em que o sujeito virá a subjetivar-se, estruturando
sua própria história.
A linguagem exerce uma função que possibilita e permite a identificação do sujeito
no reconhecimento de seu lugar de ser, no qual o sujeito alienado ao Outro,
imaginariamente, se define pelas leis do significante, determinando o sujeito como dividido
por seu próprio discurso. As mudanças de sentidos, produzidas na equivocidade do
sujeito dividido, são constitutivas da língua. Seguindo o pensamento de Oliveira (2004,
p.102): “Isso permite trabalhar, como uma concepção de sujeito, discurso e língua dentro
de uma teoria que não reduz o sentido à reprodução, mas contemple as descontinuidades,
os deslocamentos, as falhas que se operam sobre o sentido”.
Discurso e produção de sentidos
Pêcheux prioriza a problemática da Análise de Discurso2 em torno do trabalho de
interrogação-negação-desconstrução de sentido, ressaltando que a própria produção
de sentido vem a ser um lugar de formação de um novo sentido, e não somente de
afirmação ou captura de sentido. A concepção desse lugar de formação de sentido
fundamenta-se nas mediações interdisciplinares da lingüística e da psicanálise, para
explicar os fenômenos discursivos.
O conceito de discurso é tomado por Pêcheux (1997) como o objeto teórico da
AD, no sentido de objeto-histórico, que se produz socialmente, por sua materialidade
específica, ou seja, a língua. Sabemos que é na regularidade da prática social que a
língua pode ser apreendida, a partir da análise dos processos de sua produção, e não
dos seus produtos. Essa produção social nos remete ao conceito de interdiscurso,
que, segundo o autor, está diretamente relacionado ao pré-construído.
A linguagem se assenta em uma relação dissimétrica entre dois elementos do
pensamento, como se esses elementos já se encontrassem aí. Todo conteúdo de
pensamento existe na linguagem, sob a forma do discursivo.
2
Análise de Discurso, de agora em diante AD.
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Pêcheux (2002) define o real como um tipo de saber que não se reduz à ordem das
coisas-a-saber; há uma independência do objeto em relação a qualquer discurso que
se possa fazer a seu respeito. Em Estrutura ou Acontecimento (2002, p.29), o autor
defende que “(...) no interior do que se apresenta como o universo físico-humano
(coisas, seres vivos, pessoas, acontecimentos, processo...), “há real”, isto é, pontos
de impossível, determinando aquilo que não pode não ser “assim”. (O real é o impossível
que seja de outro modo).
Assim, o real da língua é tomado por Gadet e Pêcheux (2004, p. 51) como “um
sistema de valores e diferenças, pelo registro do reconhecimento sistemático do
equívoco, onde sempre há um resto, algo que não se pode dizer, marcando alíngua
[lalangue]”; ou seja, o que apresenta na língua como não-idêntico e, ao mesmo tempo,
por repetição do significante de outra forma.
Ao significar, no uso da língua, a descrição de objetos de que se fala ou de
acontecimentos está exposto ao equívoco da língua, o que equivale dizer que, as
propriedades discursivas da forma-sujeito, do “ego-imaginário”, como diria Pêcheux
(1997), como sujeito do discurso, aponta que o sujeito se constitui pelo esquecimento
daquilo que o determina. O esquecimento, ligado ao sistema inconsciente, é duplo.
Melhor dizendo, devem-se considerar dois esquecimentos desde as zonas em que
operam: o pré-consciente para o esquecimento número dois, o inconsciente para o
esquecimento número um.
Será chamado de esquecimento número um aquele em que o sujeito-falante não
pode se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina, interpelado
ideologicamente, o que lhe dá a ilusão de ser dono de seu próprio dizer. Dizendo de
outra forma, no esquecimento número um o sujeito “esquece” que é determinado
ideologicamente. Por estar ligado ao sistema inconsciente, o esquecimento número
um, para Pêcheux, se aproxima daquilo que é análogo ao recalcado.
Chama-se de esquecimento número dois, quando o sujeito-falante seleciona
formas, seqüências ou enunciados estabelecidos já em uma trama de sistemas
enunciados como paráfrase, esquecendo que não é a fonte de seu dizer.
Tanto o esquecimento número um quanto o esquecimento número dois se fazem
presentes na produção de sentido. Podemos dizer, ainda, que a produção de sentido se
dá na tensão constante em que coexistem, indissociavelmente, interpelação,
identificação, descrição de objetos, de acontecimentos, ou do que se produz de forma
discursivo-textual.
Seguindo esse raciocínio, pensamos que diante de qualquer objeto simbólico,
somos obrigados a interpretar, atribuir-lhe sentido. A interpretação é a leitura que
fazemos dos fatos, sendo através da linguagem que se produz significação. No entanto,
a interpretação, por efeito ideológico, sofre um apagamento, dando-nos a ilusão de
que é transparente, pelo equívoco da língua. Deste modo, a produção de sentidos está
ligada à interpretação. Conforme Pêcheux (2002, p. 54):
É neste ponto que se encontra a questão das disciplinas de interpretação: é
porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro
próprio ao linguageiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou
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transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de
interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se
organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes.
O outro, próprio do linguageiro discursivo, aponta para “as coisas-a-saber”
questionadas por Pêcheux, e devem ser tomadas em redes de memórias por filiações
identificatórias e não como aprendizagens por interação. Nessa medida, as práticas de
análise de discurso precisam determinar o lugar e o momento da interpretação,
discriminando a descrição e a interpretação de forma discernível. A descrição de um
enunciado ou seqüências enunciativas põe em jogo o discurso-outro, posto que
desvela lugares vazios, de elipses, de negações e interrogações, de discurso relatado,
entre tantos outros elementos.
Marcado na presença virtual da materialidade descritível, o discurso-outro revela
a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, que para
Pêcheux (2002, p. 55); é o “próprio princípio do real sócio-histórico.” É a isso que o
autor nomeia de disciplina de interpretação, a propósito das disciplinas que trabalham
neste registro. Na análise do “corpus” que faremos a seguir essas marcas do espaço
social e da memória histórica poderão ser evidenciadas.
Os espaços de transferências identificatórias, que produzem uma pluralidade de
filiações históricas, pelas palavras, imagens, narrativas, discursos, textos, etc; as
“coisas-a-saber” revelam que não se pode saber com segurança do que se fala. Os
objetos estão inscritos em uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem
particular, quer no âmbito privado ou no nível público das instituições.
Buscando aprofundar as intersecções possíveis entre a AD e a psicanálise,
trabalhamos ainda com as noções teóricas de heterogeneidade propostas por AuthierRevuz (2001-1998). Essa autora problematiza o conceito de heterogeneidade, não
deixando de reconhecer a língua como sistema de diferenças e como espaço de equívoco.
O campo da enunciação é marcado por uma heterogeneidade teórica, fazendo parceria
com a psicanálise, relativamente ao sujeito do inconsciente e à sua relação com a
linguagem.
Entendemos que toda língua é perpassada pela heterogeneidade, pelas nãocoincidências. Authier-Revuz (2001-1998) vai deslocar a análise para a seqüência
atravessada pelo discurso do Outro, lugar heterogêneo das rupturas.
O conceito de heterogêneo está ligado a um Outro radical que afeta a enunciação,
onde as formas de representação que os enunciadores têm de seu próprio dizer não
podem ser tomadas como uma totalidade autônoma, ou seja, todo discurso está
atravessado por outros discursos. A heterogeneidade discursiva evidencia a constante
tensão que se estabelece entre relações de contradição, dominação, confronto por
alianças e/ou de complementação dos discursos, destituindo o sujeito do domínio de
seu dizer.
Authier-Revuz (2001-1998) trabalha no enfoque da enunciação com quatro campos
de “não-coincidência” ou de heterogeneidade nos quais o dizer se representa e será
confrontado produzindo desdobramentos, quais sejam:
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
a) A não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; essa concepção
apóia-se, na concepção pós-freudiana do sujeito descentrado, não coincidente consigo
mesmo, mas que remete ao artifício da “comunicação” como produção do “um” entre
os enunciadores.
b) A não–coincidência do discurso consigo mesmo, colocada como constitutiva,
fundamentada no dialogismo bakhtiniano, considerando que toda palavra é habitada
pelo discurso outro, pelo já dito dos outros discursos, em outras enunciações. Para
Pêcheux (2002), algo fala em outro lugar, antes e independentemente, revelando outras
palavras, assinalando uma “interdiscursividade representada”. Isso aponta para
oposições que delimitam tipos de fronteiras entre si e o outro.
c) A não-coincidência entre as palavras e as coisas é considerada como
constitutiva da oposição de sistemas acabados de unidades discretas, e o contínuo,
ou seja, as infinitas singularidades do real a nomear de um lado, pelo jogo inevitável na
nomeação, e, do ponto de vista lacaniano, o real como radicalmente heterogêneo à
ordem simbólica.
d) A não-coincidência das palavras consigo mesmas, apontando para o equívoco
jogado nas próprias palavras, sendo estes equívocos de quatro tipos: (1) respostas de
fixação de um sentido; (2) figuras do dizer falseando o dizer pelo encontro com o nãoum; (3) o sentido estende o não-um e, finalmente, (4) o dizer reafirmando o não-um,
buscando a palavra mais certa, tentando romper ambigüidades.
Seguindo a teoria enunciativa de Authier-Revuz (2001-1998), que trabalha com
os quatro campos de “não-coincidências”, juntamente com a teoria do discurso de
Pêcheux (2002), buscamos sinalizar um lugar de constituição de um sentido que escapa
à intencionalidade de um sujeito produzido pela linguagem. Tanto para a AD como
para a psicanálise, o sujeito tem, imaginariamente, a ilusão de que é senhor de seu
discurso, e não apenas um efeito, um produto deste. Essa semelhança de concepção
entre psicanálise e AD, no entanto, não as torna semelhantes, porque cada saber tem
sua especificidade relativa a seus objetos.
O discurso não se reduz a um dizer explícito; o dizer não corresponde ao enunciado
de quem fala, ou seja, o Outro fala através do falante, e o dizer não corresponde ao
enunciado de quem fala.
Aspectos metodológicos e apresentação do “corpus”
O “corpus” que se segue é um pequeno recorte da gravação de uma entrevista
realizada com uma pessoa cega, sendo o material empírico de base para análise de
minha tese de doutorado que trata sobre as questões de inclusão, linguagem e
subjetividade de cegos. A entrevista semi-dirigida foi concedida pela entrevistada,
com a assinatura de um termo de consentimento informado, sabedora de que seria
gravada e transcrita podendo ser utilizada na integra ou parcialmente para estudos e
publicações.
Após ser comunicado o objetivo da entrevista, foram colocadas duas questões
sendo a primeira relativas a entrada na Escola e sua trajetória até a Universidade; a
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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segunda questão com respeito as relações que foram se construindo ao longo dessa
trajetória. A partir daí a entrevistada fez sua narrativa histórica sem mais intervenção
da entrevistadora. A realização da entrevista foi em uma sala privada, no local de
trabalho da entrevistada. A partir do material gravado e transcrito na íntegra, foi feito
um pequeno recorte que apresentamos aqui para análise especifica desse artigo.
O “corpus”: Apresentamos aqui enquanto “corpus” de análise alguns enunciados
produzidos em uma entrevista realizada.
(1) Não é uma igualdade. Não é de igualdade... há muito tempo que um homem
que enxerga não me paquera. Há muito tempo. Porque? Porque na verdade ele não vai
tirar uma onda com uma guria cega.
(2) É... sabe? então assim oh, então não é bom namorado cego porque aí nós
vamos ser dois. Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?... agente chama atenção em
dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro.... ainda o sonho da minha
mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.
(1)É, é interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que enxerga,
ela... sabe?... Agora Gisele, tá certo ...
Sobre a análise do “corpus”: uma leitura possível sobre alguns efeitos de sentido
que se produzem
Retomamos aqui os primeiro enunciados da entrevistada, que nos possibilitam
fazer algumas relações teóricas entre a AD e a psicanálise. Quando Gisele aponta
que não é paquerada por um homem que enxerga, atribuindo esse fato à sua diferença,
por ser cega, podemos pensar que esse enunciado está atravessado pelo
interdiscurso, relacionado diretamente ao pré-construído, ou seja, há um saber sobre
as diferenças entre cegos e videntes que vem de outro lugar, talvez marcado pelo
social, pelo que é dado intersubjetivamente no que apreende em suas relações de
convivência de seu meio.
Ela afirma que: (1) “Não é uma igualdade”. A que igualdade será que se refere?
Sabemos que a linguagem se inscreve em uma relação dissimétrica entre dois elementos
de pensamento. Retomando o que dizíamos anteriormente, a dimensão propriamente
significante, sob a qual o sujeito está submetido na fala implica a subjetividade em uma
relação fundadora com a linguagem.
Submetida à fala, ao discurso Outro, Gisele se “vê” como diferente, mas atribui
ao Outro ser tratada como diferente, eis aí a dimensão dissimétrica em seu pensamento.
Além disso, ser paquerada, ver e ser vista, é tratado como se ela pudesse vislumbrar o
olhar do outro. Um olhar que não a enxerga enquanto mulher paquerável, desejável.
Seguindo o pensamento de Pêcheux (2002), quando define o real como um tipo
de saber que não se reduz à ordem das coisas-a-saber; há uma independência do
objeto em relação a qualquer discurso que se possa fazer a seu respeito. Como Gisele
sabe que não é paquerada? Em que se sustenta essa afirmação, no que ela ouve ou não
ouve dos homens que enxergam? Como sabe que não é vista e desejada, embora não
se dirijam a ela?
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Gisele faz essa constatação de sua invisibilidade para o desejo de um vidente, ou
seja, um homem que enxerga; existe aí um dado do real que não pode ser outro, ela não
vê, ela não se vê, conseqüentemente, não é vista. Esse parece ser o pontos de
impossível, determinando aquilo que não pode não ser “assim”. (O real é o
impossível...que seja de outro modo), como diria Pêcheux (2002, p.29).
Isso nos remete ainda, às noções teóricas de heterogeneidade propostas por
Authier-Revuz (2001-1998) que vai deslocar a análise para a seqüência atravessada
pelo discurso do Outro, lugar heterogêneo das rupturas no que diz respeito a “A nãocoincidência entre as palavras e as coisas, no que diz respeito ao acesso que Gisele
tem ao real. Ela atribui uma impossibilidade de ser paquerada, mas nada no real pode
ser comprovado posto que ela fala de um lugar em que se coloca como excluída, mas
sem saber do Outro.
Seguindo essa autora e fazendo uma ligação com a psicanálise no que se relaciona
ao estagio do espelho, Gisele não enxergando, não pode sentir que um Outro, estranho,
diferente da mãe, tenha dirigido seu desejo investido pulsionalmente em relação à ela;
além do que esse Outro, estranho, não é acessado visualmente por ela. Diríamos que o
“amor a primeira vista” tem outra via, quem sabe o “amor à primeira fala”, enquanto
pulsão evocante, como possibilidade de primeiro encontro.
Voltando a Análise de Discurso, o outro, próprio do linguageiro discursivo, aponta
para “as coisas-a-saber”, e devem ser tomadas em redes de memórias por filiações
identificatórias e não como aprendizagens por interação. A descrição de um enunciado
ou seqüências enunciativas põe em jogo o discurso-outro, posto que desvela lugares
vazios, de elipses, de negações e interrogações, de discurso relatado, entre tantos
outros elementos.
Marcado na presença virtual da materialidade descritível, o discurso-outro revela
a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, como próprio
princípio do real sócio-histórico. Pensemos em outro enunciado de Gisele em que ela
afirma: (2) É ... sabe? então assim oh, então não é bom namorado cego porque aí nós
vamos ser dois. Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?... agente chama atenção em
dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro.... ainda o sonho da minha
mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.
A posição da mãe, segundo Gisele, revela a insistência do outro como lei do
espaço social e quem sabe, da memória histórica. Ao mesmo tempo que afirma o dito da
mãe, fala por si mesma enquanto discurso-outro.
No que tange ainda à proximidade com a psicanálise que propõe o sujeito clivado,
dividido, atravessado pelo discurso do Outro, marcando o inconsciente como uma
cicatriz. Podemos pensar na desilusão de Gisele quando se refere aos conselhos da
mãe aponta que de certa forma, a mãe quer que alguém a cuide, ao invés de priorizar
que seja amada.
Querer que alguém a proteja, não é o mesmo que alguém a deseje como ela é.
A cegueira é vista como um problema duplo, Gisele tem que buscar alguém que
pertença ao mundo dos videntes onde está imersa, como se esse sim, fosse o mudo
ideal. Ideal da mãe.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Como dizíamos anteriormente, a surpresa ou desilusão no jogo do enamoramento
está em relação direta com o espelhamento narcísico. Através do olhar do Outro é que
o bebê passa a ser confundido num ideal imaginário de espelhamento com a mãe, o que
lhe dá não só um lugar, mas um sentido em relação a esse Outro.
Gisele diz: (1)... “Há muito tempo. Porque? Porque na verdade ele não vai tirar
uma onda com uma guria cega.” Parece também que essa queixa está marcada pelo
desejo da mãe quando afirma que: (2)“... ainda o sonho da minha mãe é que eu
arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.” Ou ainda: (3)”... É, é
interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que enxerga, ela... sabe?...
Agora Gisele, tá certo ...
Do ponto de vista da AD, todo enunciado é suscetível de tornar-se outro, diferente
de si mesmo, derivando em um outro como efeito definido pelas condições da produção
em que se dá o movimento interpretativo. O que Gisele atribui às suas impossibilidades
na conquista amorosa, de certa forma marca o discurso outro, determinado no chamado
esquecimento número um, aquele em que o sujeito-falante não pode se encontrar no
exterior da formação discursiva que o domina. Podemos dizer que Gisele é interpelada
ideologicamente, o que lhe dá a ilusão de ser dono de seu próprio dizer.
Esquece que é determinada ideologicamente por estar ligado ao sistema
inconsciente, ou seja, daquilo que é análogo ao recalcado e que está repetindo o mandato
materno, quando afirma: (2)“... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem
que enxergue”. Seu discurso sobre o sonho de sua mãe revela, como num gesto de
interpretação, segundo Pêcheux (2002, p. 54): “atos que surgem como tomadas de posições,
reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados”.
Falando sobre os desígnios da mãe que espera ou aconselha que ela arrume um
namorado que enxergue, mesmo que pareça se contrapor, Gisele está exposta ao
equívoco da língua. Isso equivale a dizer que, as propriedades discursivas da formasujeito, do “ego-imaginário”, apontam que ela formula em sua afirmação a inscrição
ideológica, interdiscursiva, marcada pelo esquecimento daquilo que determina seu
discurso. Isso fica evidenciado em duas marcas lingüísticas que insistem, quais sejam,
a interrogação e as reticências : (2)É...sabe? Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?...
agente chama atenção em dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro....
ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei
lá. Ou ainda: (3)É, é interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que
enxerga, ela... sabe?... Agora Gisele, tá certo ...
Voltando ao que postula Pêcheux (j2002, p.57), todo enunciado é suscetível de
tornar-se outro. O dito de Gisele, parece apontar uma constatação sobre os designos
maternos, aparentemente, se contrapondo, mas ao mesmo tempo, não parece um
discurso muito diferente do seu mesmo, derivando em um outro como efeito definido
pelas condições da produção em que se dá o movimento interpretativo, ou gesto de
interpretação. Suas interrogações, dirigidas à entrevistadora, sugerem um pedido de
confirmação de entendimento daquilo que está relatando, como se não tivesse certeza
do sentido que se produz em seu dito; ou esperando uma afirmação ou negação de que
o dizer da mãe faz sentido.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Dizendo de outra forma, ela diz que há muito que um homem que enxerga não a
paquera; também afirma que o sonho da sua mãe é que arrume um homem que enxergue.
Mas não se apercebe que o discurso materno não deixa claro para si mesma, como ela,
Gisele, se “enxerga”? O que um homem deve “enxergar” nela? O que ela pensa que a
mãe vê nela e espera que um homem enxergue ?
Considerações finais
Narciso não se vê, se não encontra seu olhar no espelho. Ou a difícil arte de amar
o que (não) se vê
O jogo de enamoramento, fundador do aparelho psiquismo, está em relação
direta com o espelhamento narcísico, dizíamos no início deste artigo. Retomamos aqui
a afirmação de que é através do olhar do Outro que o bebê passa a ser confundido num
ideal imaginário. Isso se dá na construção da subjetividade tanto de cegos como de
videntes. Tomando os enuncidos de Gisele, aí se marca a certeza de que, em algum
momento, em algum tempo, alguém que enxergava, um Outro, a desejou, a amou, mas
que há muito tempo não re-encontra esse olhar em outra pessoa que recupere o primeiro
amor supostamente incondicional do Outro. Narciso não se vê, se não encontra seu
olhar no espelho.
Gisele por não encontrar no Outro esse olhar marcado escópicamente, não se
supõe como objeto de interesse ou amor por alguém que não tenha seu olhar sobre si
mesma. No entanto podemos pensar que, para além de qualquer falha perceptiva no real
do corpo, todos, videntes e cegos, estão marcados pelo mesmo estrabismo do olhar
amoroso. As dificuldades em amar e ser amado, a incerteza e o desejo de ser objeto de
amor marca à ferro o psiquismo e as possibilidades de subjetivação, independente da
visão, posto que o que dá visibilidade é o olhar enquanto investimento amoroso.
Essa afirmação nos faz pensar na dificuldade de amar o que (não) se vê. Na
báscula da inclusão/exclusão, duas faces de uma mesma moeda se evidenciam. É’
difícil amar o que se vê, porque amamos o que não é visível, mas o que supomos
encontrar em um outro como o ideal imaginário de completude.
A inclusão/exclusão, que se coloca nesse jogo de presença e ausência de
visibilidade estará sempre marcada em todas as possibilidades de relação, quer de
trabalho, de aprendizagem, de grupos de convivência, de laços amorosos. A pulsão do
olhar, enquanto significante, a linguagem como possibilidade de encontro e equívoco
por seus deslizamentos de sentido, são elementos constitutivo de valor fundamental
na constituição do psiquismo.
A inclusão/exclusão para além das questões sobre a discriminação de minorias, seja
qual for sua marca diferencial, nos convoca a repensar em que medida a discussão sobre
esses temas, do ponto de vista do campo da Psicologia Social em suas várias abordagens
e da Educação. Esses saberes que albergam inter-relações sociais podem trazer, uma releitura
que não trata da adaptação dos excluídos ao meio em que se inserem, mas possibilitem além
da reflexão teórica, contribuições para o entendimento das dificuldades de cegos e videntes
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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no cotidiano da convivência, em sua forma de subjetivação e nos jogos relacionais,
independe das limitações funcionais do campo perceptual.
Quando trabalhamos com os conceitos de inclusão/exclusão é necessário estarmos
atentos sobre as múltiplas possibilidades de deslizamentos de sentido que esses termos
podem derivar. Pensando a educação inclusiva, é preciso reconhecer que a inclusão porta
uma ambivalência. Quando uma situação grupal, em ambiente escolar ou grupo de
convivência, nos propõe a inclusão, porque alguém está excluído de um grupo determinado,
isso significa incluir este que está fora, por ser diferente, como igual ou como diferente?
Qual sua identidade? Que identidade será privilegiada? O que (não) se vê?
Referências
Authier-Revuz, J. (2001/1998). Palavras incertas – as não coincidências do dizer.
Campinas. Editora Unicamp.
Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Freud, S. (1976). Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro: Editora Imago
ESB, v.XVIII.
Gadet, F., & Pêcheux, M. (2004). A língua inatingível. Campinas: Pontes.
Kaufmann,, P. (1993). Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O Legado de Freud e
Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Kehl, M. R (2003). Masculino/Feminino: o olhar da sedução. São Paulo: Companhia
das Letras.
Lacan, J. (1964/1973). Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Livro XI. Rio
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Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
Lemos, C. (1994). Língua e discurso nos estudos sobre Aquisição de Linguagem: Anais
do III Encontro Nacional de Aquisição de Linguagem. Porto Alegre.
Nasio, J. D. (1995). O olhar em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Oliveira, E. C. (2004). Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas. Londrina:
Eduel.
Pêcheux, M. F C. (1997). A propósito da análise automática do discurso: atualização e
perspectives. Campinas: Unicamp.
Pêcheux, M. (1998). Semântica e discurso – crítica à afirmação do óbvio. São Paulo:
Ed. Unicamp Campinas.
Pêcheux, M. (2002). O discurso: Estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes.
Recebido em setembro de 2006
Aceito em março de 2006
Sueli Souza dos Santos é psicóloga pela PUCRS; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS);
doutoranda em Educação (UFRGS).
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.49-65, jan./jun. 2007
Impasses na prevenção de exploração sexual:
as imagens do trabalho infantil
Marília Novais da Mata Machado
Júnia Carine Cardoso da Silva
Resumo: O artigo retomou pesquisas realizadas anteriormente no Médio Vale de Jequitinhonha,
Minas Gerais, pelo Projeto Pólos de Cidadania, com vistas à prevenção da exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes. De especial importância foram as entrevistas realizadas
com 34 jovens apontados por entidades como vítimas de abuso ou de exploração sexual. O foco
do artigo foi a questão do trabalho infanto-juvenil. Buscou-se demonstrar a importância central
das significações imaginárias sociais que os jovens criam para o trabalho que realizam. Essas
imagens subjetivas atuam na construção de suas identidades, na forma como vêem seu meio
social, na disponibilidade de saírem da situação de exploração sexual, no consentimento ou
rejeição da exploração econômica. São, assim, elementos importantes a serem considerados nas
ações de prevenção à exploração sexual.
Palavras-chave: exploração sexual de crianças e adolescentes, trabalho infanto-juvenil, imaginário social, Médio Vale do Jequitinhonha.
Dilemmas in preventing sexual exploitation: The images
of child work
Abstract: The article revisited research works previously carried out in the Medium
Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, Brazil, by the Focus of Citizenship Program, aiming the
prevention of children and teenagers’ commercial sexual exploitation. Especially important
were the interviews with 34 young subjects pointed out by social organizations as having being
sexually abused or exploited. The article’s main focus was on the issue of child work, trying to
demonstrate the relevance of the social imaginary meanings of the work created by the youth.
These subjective images seem to be central for the development of the young people’s identity,
for their environment appreciation, for their availability to get out from sexual exploitation
situations and for their reception or rejection of economic exploitation. These images are thus
important elements for actions preventing sexual exploitation.
Key words: children and teenagers sexual exploitation, child work, social imaginary, Medium
Jequitinhonha Valley.
Introdução
Com sede na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o
Programa Pólos de Cidadania dedica-se a trabalhos de pesquisas e intervenções, todos
voltados à efetivação dos direitos humanos. Em 2004, financiado pela Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República, o programa concluiu um diagnóstico
no Médio Vale Jequitinhonha (UFMG, 2004) detectando na microrregião a ocorrência de
exploração sexual de crianças e adolescentes. Um segundo projeto foi então formulado:
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Criança e adolescente em situação de risco: geração de renda como alternativa de
prevenção à exploração sexual. A idéia de que a pobreza está na base da exploração
encontra-se implícita no título. Esse projeto recebeu também financiamento da Secretaria
dos Direitos Humanos e, homenageando a data nacional de luta contra a exploração
sexual, ganhou mais uma denominação: Projeto 18 de maio.
O presente artigo retoma parte dos dados da pesquisa-ação então conduzida em
sete municípios do Vale – Araçuaí, Comercinho, Itaobim, Medina, Padre Paraíso, Ponto
dos Volantes e Virgem da Lapa. O embasamento teórico foi o pensamento de Santos
(2005), especialmente a ênfase na cidadania, subjetividade e emancipação. A
metodologia de abordagem da população foi inspirada em Thiollent (1981, 1985).
Informações sobre o projeto e relatórios parciais são encontradas em Gustin e cols.
(2005), UFMG (2005) e UFMG (2006). Além dessas fontes, este artigo utiliza, sobretudo, as
entrevistas feitas com 34 jovens informantes supostamente vítimas de exploração, segundo
membros de entidades locais que os indicaram. Um resumo dos resultados obtidos com
essas entrevistas é apresentado em Machado e cols. (2006), artigo em que se descrevem,
também, as dificuldades de realizar as entrevistas, os instrumentos de coleta de dados
(roteiro semi-estruturado e formulário de questões fechadas) e procedimentos de tratamento
de entrevistas (análises do discurso e do conteúdo).
O trabalho do Programa Pólos de Cidadania prossegue no Vale. Membros da equipe
do Projeto 18 de Maio, em colaboração com ongs, outras entidades civis e órgãos do
poder público, dedicam-se à formação de grupos e associações de artesanato, teatro e
música, incentivando a participação de toda a população na prevenção à exploração sexual.
Não resta dúvida quanto à correção do primeiro diagnóstico. A pobreza é uma
característica da região, cujos habitantes se enquadram na descrição de Singer (2003,
p. 11) dos “pobres ‘antigos’”, que são aqueles “que há décadas vivem de bicos, do
comércio ambulante, de trabalhos sazonais, da prestação de serviços que não exigem
qualificação, que incluem a prostituição, a mendicância e assemelhados”.
As famílias dos entrevistados, como mostraram as pesquisas, são formadas por
gente que nunca teve emprego estável, de carteira assinada, com seguro-desemprego,
seguro-saúde e plano de carreira, fazendo parte do chamado exército de reserva do
capitalismo cujo trabalho, quando existe, é precário, temporário ou parcial, mas inserido
na moderna sociedade de consumo. Gente realmente necessitando que alguma geração
de renda ocorra na região. Os próprios entrevistados preenchem a descrição já feita
por V. Faleiros (2004, p. 63): “são os explorados economicamente que acumulam, na
maioria, a condição de explorados sexualmente”.
Aqui, defronta-se com uma dificuldade atravessando o projeto. A proposta é
criar “geração de renda”, o objetivo preventivo do Programa Pólos de Cidadania
estando bem claro. Mas, gerar renda para quem? Para os pais que já saíram da região
em busca de trabalho? Para os padrastos tão comumente violentos? Para as mães
que, na ausência de outros trabalhos, têm a ensinar a prostituição como forma de
sustento? Para os clientes e aliciadores da exploração que se acobertam no cotidiano
das cidades? Como gerar renda que beneficie diretamente as crianças e adolescentes
prostituídos, sem incorrer em trabalho infantil? Como, gerando renda na região,
alcançá-los diretamente?
50
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Citando novamente Singer:
Os pobres raramente podem se dar ao luxo de ficar “desempregados”. Os pobres
ficam “parados” quando a procura por seus serviços cessa, mas eles não podem
permanecer nesta situação muito tempo. Se não conseguem ganhar a vida na linha
de atividade que vinham dedicando, tratam de mudar de atividade ou de região,
caso contrário correm o risco de morrer de fome. Os pobres não são diretamente
atingidos pelas mudanças que a Terceira Revolução Industrial e a globalização
estão provocando nas relações de produção, embora o aumento de seu número,
em função do empobrecimento de parte dos desempregados, sobretudo dos que
ficam sem trabalho por longos períodos, agrave a concorrência nos mercados
informais, em que os pobres oferecem seus serviços (Singer, 2003, p. 31)
Também as crianças pobres não podem parar, estão igualmente procurando ganhar
a vida no mercado informal, tentando escapar à fome. Por isso exercem trabalhos
perigosos e entram em situação de exploração sexual. Embora, no Vale, haja as que
estão interessadas no consumo supérfluo de roupas e adornos, que são minoria entre
as entrevistadas, como se verá adiante, boa parte delas toma a atividade de prostituída
como equivalente a trabalho. E o valorizam. Sabem que seus pais, mães e avós, ainda
crianças, “pegaram na enxada” e têm orgulho disso. Eles esperam delas que, o mais
cedo possível, sejam capazes de se sustentarem.
Método
O que se busca demonstrar neste artigo é que tanto os meninos como as meninas
supervalorizam o trabalho. Aprenderam a fazê-lo. No limite, entram de coração aberto na
construção civil e na prostituição, atividades citadas como “as piores formas de trabalho
infantil” na Convenção número 182 da OIT, Organização internacional do trabalho1 . Isso
evidentemente coloca um impasse a ser ultrapassado na prevenção à exploração sexual:
como lidar com as construções subjetivas que as crianças e adolescentes criaram a respeito
do trabalho, com as imagens que têm dele, com o convencimento do acerto das atividades
que realizam e isso sem cooptar com trabalho infantil ou com exploração sexual?
Ao lado de todas as determinações econômicas, sociais, geográficas e políticas
1
A Convenção número 138 da OIT, de 1973, em vigor desde 1976, trata da abolição do trabalho infantil. A respeito
da idade mínima para a admissão em emprego ou trabalho, regula: “não será inferior à idade de conclusão da
escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos”. (Art. 2o, item 3). No que diz respeito
à construção civil e à prostituição: “Não será inferior a dezoito anos a idade mínima para admissão a qualquer tipo
de emprego ou trabalho que, por sua natureza ou circunstância em que é executado, possa prejudicar a saúde, a
segurança e a moral do jovem” (Art. 3o, item 1); “As disposições dessa Convenção serão, no mínimo, aplicáveis
a: mineração e pedreira; indústria manufatureira, construção (...)” (Art. 5o, item 3).
A Convenção no 182 da OIT, de 1999, em vigor desde 2000, trata da proibição das piores formas de trabalho
infantil e ação imediata para sua eliminação: “O termo criança aplica-se a toda pessoa menor de 18 anos” (Art. 2o);
“A expressão as piores formas de trabalho infantil compreende: (...) (b) utilização, demanda e oferta de criança
para fins de prostituição, produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos; (...) (d) trabalhos que,
por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a
segurança e a moral da criança” (Art. 3o). A convenção não diz diretamente que prostituição é trabalho, mas sugere
que se possa tratá-la como tal. As duas convenções foram ratificadas pelo Brasil.
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que jogaram as crianças do Vale em trabalhos perigosos como lavra e construção ou
indignos como prostituição, há um imaginário enganoso atuando: aquele que vê
qualquer trabalho como nobre. Um programa preventivo, se voltado a inverter a rota2 ,
tem que agir igualmente sobre esse imaginário.
Retomam-se, então, as 34 entrevistas realizadas com os jovens, duas delas com
meninos. Analisa-se com cuidado a entrevista de E., garoto de 15 anos que se orgulha
de seu trabalho na construção civil. Procura-se, com isso, entender como é construída
essa imagem de supervalorização do trabalho. E. a expressa livremente, pois, diferente
das crianças prostituídas, não vê por que silenciá-la. Depois, analisa-se a imagem do
serviço doméstico realizado pelas meninas e a alternativa que as crianças e adolescentes
encontram para cair fora dessa atividade: o trabalho de “venda do corpo”, como dizem.
A entrevista de E.
A análise do discurso de uma entrevista requer apreender o ganho do entrevistado
ao concedê-la, o que vem a ser o grande eixo articulador do seu discurso. Nem sempre
é possível detectar o ganho, mesmo depois de uma dúzia de leituras. Não foi o caso de
E. (Entrevista 8 – 15 anos), que inaugurou sua fala com a questão do trabalho. Em
torno desse tema se articula todo o material discursivo restante: sua relação com o tio,
o padrasto, suas expectativas de ser registrado pelo pai ausente, sua percepção dos
não trabalhadores, seu namoro, seus projetos para o futuro, sua vida escolar e seu
lazer. O trabalho permite a E. se sentir completo, honesto, boa pessoa e demonstrar
isso ao entrevistador. Ele não tem a menor idéia de que vem sendo economicamente
explorado pelo tio (pois evidentemente ele não é um aprendiz). E. não sabe que é vítima
de trabalho infantil perigoso3 :
Trabalho ajudando meu tio... / Pintura assim... /Ele pinta e eu, faço as reformas.
Aí eu já ganhei muito dinheiro assim já... / E o meu pai que trabalha assim, tal,
meu padrasto, eu chamo de pai já, que, normal. Trabalha assim, ajuda a minha
mãe, meus irmãos...
A importância dos ferimentos que lhe marcam o corpo em conseqüência do
trabalho pesado são minimizados, reduzidos a quase nada:
Nunca fui pro hospital. E Graças a Deus, nunca caí tamém não. Nunca / hospital,
num aconteceu acidente comigo. / Nunca aconteceu acidente comigo. Não / né?
(rindo). Todo mundo pensa assim... / Esses machucadinho assim pode sê né, eu
cortei o pé, assim... / Machuca o dedo (rindo). Já é normal... / Sempre assim eu,
2
“Invertendo a rota” é a denominação de um projeto de enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil
realizado no estado de Goiás.
3
O sinal de barra ( / ), nas citações, marca interrupções na fala do entrevistado devidas a turnos de fala com
o entrevistador, pedaços inaudíveis ou incompreensíveis e mudanças de assunto. Mudança de linha significa
que houve outro assunto intercalado. Parágrafos significam volta ao mesmo assunto em outra parte da
entrevista. As transcrições das falas buscam conservar todos os sinais da oralidade.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
tenho mais cuidado com essas coisa assim, tem uns que num tem cuidado, vai,
vai pulá o muro, vai pula / né? Eu já não, só /. Tiro um pulo assim, mais um pulo
baixo né, mais... / Acho que é bestage tira um pulo alto, vai e machuca...
Seu trabalho compensa a falta de registro de nascimento com o nome do pai (e,
aqui, ele conhece a lei, sabe que tem direito a esse registro). O trabalho, elemento
central de sua identidade, o distingue dos que não são tão boas pessoas, os ladrões:
Igual minha prima aí, minha prima já tem um recurso, né, o padrinho dela já
conversô com ela e tal... o pai dela já é registrado, é o pai dela e tal.... o pai dela
normal. Por causa eu penso assim: a pessoa registrada, se não dá, dá muita
treta né? Muita coisa... dái chamá minha mãe, minha mãe num tem tempo./ Aí
num dá não... Eu mesmo penso assim: trabalhano, dentro de um tempo eu
tenho minhas féria, né? Minhas coisa assim, intão, eu num penso assim igual
essas pessoa assim, tem umas pessoas assim, no mundo de hoje, tem umas
pessoas assim que... ah, roba um poquinho ali, vai pensá que vai tê mais, né?
Vai robano, mais e mais, pensano que vai tê mais, chega um tempo que vai ficá
cum nada! / Quem trabalha vai tê. Num tem direito. Trabalho que seu dinheiro
nasce/ num tem direito de toma, os cara aí que roba assim, conheço um cara lá
em frente a minha casa...
Embora E. reconheça o valor do estudo e queira prosseguir na escola, ele a
abandona por causa do trabalho. Evidentemente não sabe que é contra isso que existe
o Peti, programa de erradicação do trabalho infantil (compreendido por poucos na
região e desaprovado por muitos), nem que sua mãe, padrasto e tio, ao facilitarem-lhe
o trabalho, estão na contramão do Estatuto da criança e do adolescente (Eca) e das
recomendações da OIT, que lhe garantem o direito à educação:
Agora no, no outono eu quero istudá, istudá no outono pra mim vê se eu
passo. Tamém tenho o objetivo de segundo grau né, por que segundo grau
hoje em dia, num tê o segundo grau, num pode arrumá um serviço bom. Bom
não, tem vez que dá procê ganhá até um dinheiro aqui nessa cidade. Lá pra
fora num sei, ganhá um dinheiro bem / cê tem que tê uma faculdade né?
Mais... de segundo grau pra cima... aí istudá é... arrumá um serviço assim, eu
passo pra noite né, estudo à noite e trabalho de dia...
Meio ho, que é, no caso eu vô tá est, tô... trabalhano de tarde, que num tá dano pra
istudá de tarde, que eu sô de menor ainda, a minha escola ainda num dexa eu istudá
à noite. /Eu trabalho à tarde... estudo à tarde.../ De manhã eu tamém trabaio./ De
manhã e à tarde. Mais, é num dá pra estudá nem de manhã, nem de tarde, só dá de
noite, de noite eu sô de menor ainda... Aí num dá pra estudá, tem que esperá. / Um
ano dá pra... dá pra estudá.
Nas poucas horas de lazer, E. tenta compensar a falta de escola:
Tipo assim, eu... casa da minha tia, assistindo televisão assim, escuto um som e
tal... pego um livro assim e vô lê, pra mim, pra num... tem uns que, fica muito
tempo sem lê, vai que... depois num consegue lê bem, eu já pego um livro e vô
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lê, tal... Vô pra minha casa, tal... Aí quando chega no dia de trabalhá assim eu já...
normal, normal.
O trabalho preenche o cotidiano de E., deixando-lhe apenas alguns momentos
para ver a namorada, para o estudo e para se manter em dia com os acontecimentos do
mundo. Junto à descrição de seu cotidiano, E. reafirma ao entrevistador que é boa
gente, comparando-se com outros não tão bons:
Assim, quando eu tô trabalhano, meu tio vai assim, me chama, aí eu acordo –
trabalho com ele, né? Aí acordo de manhã cedinho, vô trabalhá, aí eu chego de
tarde assim, venho imbora, pra casa de minha tia. Aí eu encontro com minha
namorada lá, que ela mora lá, firmeza... Aí no outro dia já... já penso assim, “Vai
sê, amanhã vai sê outro dia... tomara que num seja, será um, dia assim, bem bão.
Que as veiz vai sê, útil, outro dia bom”. Aí fico assim, aí fico pensano assim,
quando o serviço acabá, parecê mais um... pra ir mais né, nunca acabá assim, tal,
né? / esquecê minhas aula, pra num esquecê minhas aula, é uma coisa que eu num
posso esquecê né?/ Eu pego livro, leio livro, fico na cama as vezes escuto um
som, assisto só a TV pra sabê como é que tá a situação assim. Lê um jornal, né,
as coisas assim. / Pra sabê como é que tá... tem vá, vários amigo meu, que num
assiste, que num assiste nada assim e tal, os cara assim num acredita no quê que
a gente fala não, a gente fala: “Tal e tal, aconteceu isso”, num acredita, num
assiste a televisão, num... num informa ninguém não, num sabe informá... meu
dia-à-dia tá assim, assim hoje.
A cidade em que mora é também vista da ótica do trabalho:
Eu gosto daqui assim, por que.... que eu... trabalho aqui né, eu trabalho e eu
nasci aqui, eu acho a cidade boa assim.
Seu trabalho/identidade lhe permite sonhar com o futuro, quando a casa e o
casar virão juntos. O trabalho é também garantia de fazer uma boa escolha da parceira,
de obter a fidelidade da futura esposa e de escapar de experiências indesejadas:
O que eu sonho mais, o sonho que eu tenho mais assim, é de / né, sonho que tem
mais, que tem mais, eu guardo / é tê minha família né, e minha família, vê minha
mãe assim e tudo... a família do meu irmão assim bem felizes, e tê a minha
tamém feliz assim, tê meus filho né, minha casa... primeiramente né, minha
mulhé e meus filho... aí tem uns colega meu assim que fala assim: “Ah num
sonho, num penso isso não!”. Eu falo assim: “Ó, tem que se pensá...”
Ah, tê namorada assim é bom né, tá namorando firmeza assim... quem pensa no
seu futuro tal, como é que vai sê... aí cê, pensano assim, vai que daí certo mesmo
né? Cê qué sua família assim e tal... lá em casa eu penso! Tem pessoa que já fala
assim: “Ah, num penso nisso não!” Eu já penso, tê minha ca, primero eu penso
em tê minha casa, pra depois eu mi casá./ Tem umas que pensa em já casá sem
tê nada. Mais... num dá certo... morá e casa /. Aí eu penso no meu futuro, na
minha, minha... Eu penso assim, positivo né, tem uns que pensa negativo, aí
sempre dá errado, a minina... fica, tipo assim família assim, a minina vai e caça
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outro né, a minina fica / com otros, aí num dá certo. Mui, muitas pessoa aí eu
conheço assim, já morreu né, minina assim, minina assim, namorada assim
sabe?/ Num joga bem com a namorada, sabe? Aí ela vai e trai ele e tal./ Queima
o cara, mata o cara, por causa da namorada... / Posso procurá uma menina
firmeza já, uma minina que eu sei né, que num vai caçá com outro e tal, ou que
ela tá namorando com outro, hoje em dia cê tem que pro, procurá pra namorá
que as veiz .../ que por exemplo, cê pega uma mina de um ladrão da área aqui, cê
tá, cê... pode procurá seu caixão que...
Eu penso em namorá até um certo tempo né, mais, certo tempo assim a gente
qué se casá assim... / Eu já penso. Já, a pessoa assim, igual eu, comecei trabalhá
assim, mais pequeno né, já pensa mais né? Ainda mais d’eu trabalhá assim né, é
bem engraçado assim, pensa...
Vê-se, assim, que E. quer o entrevistador vendo-o como virtuoso e bem pensante.
Acha que faz essa boa figura porque tem um trabalho que supervaloriza. Trabalho infantil,
ilegal, mas idealizado por ele e, possivelmente, pela mãe, tio, tia, vizinhos. Possivelmente,
suas imagens do trabalho são compartilhadas por muitas outras pessoas na região.
De outro lado, a situação idealizada de trabalhador permite a E. ter o maior desprezo
pelas meninas sexualmente exploradas que, segundo ele, são culpadas da própria
desgraça além de, eventualmente, desgraçarem também os caminhoneiros que lhes
dão carona. Do jeito que fala, parece que sabe muitas coisas a respeito delas. Julga
muito, condena muito. Nesse caso, também, é possível que seja porta-voz de um
imaginário social local que se tem delas. Sua fala, manifestação evidente da “dupla
moral, permissiva para o homem e restritiva para a mulher, contribui para a discriminação
e para a representação do feminino como demoníaco que se encarna nas prostitutas”
(V. Faleiros, 2004, p. 55). Veja-se a entrevista:
Tem várias minina, isso aí, tem umas que é firmeza, tem umas que num é... / Tem
umas minina aqui que... tem namorado já e se envolve com os cara, cata os
amazonas aqui que... / uns cara que... se fosse ocê envolvê com alguma mina
deles... / Cê pode... que eles procura mesmo, sabe? Matá pessoas. Eles são
encrenqueiro, tipo assim, é o de lá e o de cá... /
Igual uma mina aqui mesmo, tava aqui veno, a galera conversano mais ela e tal,
tá, aí ela: “Amanhã eu vô pegá carona, vô lá pro Bonde do Forró” Eu falei: “É...”
/ Aí ela falô comigo: “Eu vô pegá carona!” Aí L. escutô: “Num faiz isso não...”.
Hoje em dia tá muito assim, pega carona e tal, caminhonero que num é carona
mais segura né... ela, ela caba com a própria vida né? Igual aqui, as mina num tá
importano com isso não, num é direita não, mais algumas já tem cabeça... / Tem
umas que num tem não... umas pensa assim: “Ah, eu vô, vô pra lá e volto” né,
tem umas, tem umas que: “Ah não, vai que acontece alguma coisa...” Aí num
vai.... Pra mim assim é... pra elas num tá não, mas pra mim...
Elas pensa que vai sê divestido. Que vai sê divestido né/ vai que é um cara
maldoso, né, que, é... Vai que a família num gosta disso tamém.
Aí é, a mina desvaloriza. Essas coisa assim. Pegá carona assim, na pista... / Tem
umas que pensa assim: “Vô ganhá um dinheiro”. / Elas vão ganhá um dinheiro.
Mais num tá usano a ca, o juízo pra sabê o quê que vai, vai fazê, né? Pensa que
vai sê fácil...
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Pensa assim, / assim mesmo, pensa que vai sê fácil. Aí.../ os cara assim... tem
muita mulhé perto de minha rua que já morreu. /Umas treis assim, pegano
carona... / Indo pra outra cidade, aí acontece acidente, essas coisa assim. Se
envolveno, elas mesma prejudica um caminhoneiro que aí... prejudica elas
mesmo, sabe? Os dois fica prejudicado... / Aí o ca, o caminhonero pede, faiz
tudo, vai nas idéias delas, vai que pede, perde o controle, né, intão, bate o
caminhão... / Ou ela, eles faze alguma coisa com ela... / Várias mulhé assim lá
onde minha casa morreu assim, de grade de caminhão assim, que bateu ni
carreta... / Acontece acidente./ Elas mesma que... faz... essas coisa assim
acontecê que eles, que elas incentiva né? Elas chama o caminhonero pra ir, os
caminhoneiro esquece as coisa, vai conversá com o caminhonero muito né, e
num pode conversá, dirigino né? Acontece isso, / aqui já morreu umas treis.../
Ainda, as mulhé hoje em dia ainda num repara isso né, tem umas que num
repara não, tem umas que pode olhá, quase já morreu né, com essas coisa
assim... É, hoje em dia elas num tá se importano... / Ontem mesmo me falô
assim: “Hoje eu vô pegá carona!” Chegá lá eu vô pagá a entrada né, elas pega
carona pra num pagá ônibus... mais vai vê, o dinheiro que ela vai pagá, pode sê
que sai uma vida dela, pode sê que não, né?
Conheci algumas, só que já... foi já... ela foi, todas que eu já conheci já se foi. /
Tem vez que algumas assim que eu, que eu vejo assim eu... converso com ela e
tal, eu falo pra num ficá assim, né, essas coisa assim e tal. A minina mesmo que
eu fiquei, teve uma mina que eu fiquei, ela falô um negócio comigo um dia que ia
fazê isso, eu falei com ela se ela fazesse isso eu num queria nem papo com ela
mais, que a mina, legal, “Num faiz isso não, e tal, isso aí vai sê pior pra você, vai
prejudicá você”. / Eu conversei com ela. Mais tem muitas mina aí que tá fazeno
isso ainda.
Tem umas que tem sorte, tem umas que vai, num acontece nada, aí volta. / Aí
segue num certo tom né, que ninguém /, vai acontecê isso com ela. Esses, hoje
em dia cê tem que, cuida direito. Tem uns caminhonero, uns caminhonero assim
que já, hoje em dia num tá pensano, na vida dos outro assim não, né? Tá, mais
pensano assim no deles. Um /, se fosse um caminhonero eu num tava nem, num
parava não, parava não, se não acontece essas coisa né? É que, tipo assim... sexo
assim a gente /, todo mundo gosta. / Normal, assim, se eu fosse, se eu fosse
caminhonero assim eu nem parava não, e se parasse assim é pior, aí que a gente
fica incentivando, põe na cabeça... Tem umas mesmo que é safada, umas que já
vai, já vai... na conversa. Aí, aqui, até que, até que é mais poco do que alguns
lugar. / Aqui é mais poco./ Esses lugar assim, mesmo Pontos dos Volante, Padre
Paraíso, lugar assim é demais, né? / Ponto dos Volante mesmo é um lugar assim
que, desses que tem mais. Daqui da, que / aqui perto. Medina tem, mais eu acho
que não muito, que... lá já é lugar já né, que... tem promotor, e tal. Aí já pensa,
que lá, lá por perto já avista, né? / Aí elas pega aí né, pega mesmo carona, sabe,
vê que tem umas que vai pra lá, pega carona e vem pra cá./ Eu encontrei umas
pegano carona.
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E. não trata de forma diferente os meninos prostituídos. Eles são igualmente
objetos de seu desprezo, vistos como portadores de um selo de desqualificação. O
entrevistador pergunta se há também meninos que vão para a pista:
Tem é... / Tê tem, mais é... né, já é viado. / Vão, e muito! Tem um... uns deiz...
/ Que eu conheço aqui. Tem uns deiz que eu conheço aqui, que eu já vi. A gente
já, conhece assim, de ouvi falano né, mais, por exemplo, nem converso não, por
causa do terror (rindo), terror tipo assim, raiva, num gosto não, vi conversá
comigo eu fico calado, essas coisa não (rindo), num gosto não, essas coisa assim
não... Eu tenho raiva assim que eu tenho um primo sabe, um primo que mora lá
no centro, aconteceu essas coisa com ele. / Aí já / essa coisa... já, num gosto
mesmo, desse tipo assim. Vai acontecê comigo só se Deus mudá minha vida
mermo... comigo num acontece não... / Home assim, menino assim, que é home
mermo num faz isso não. / Só esses home assim de trabalhador, né, assim, de,
que tem um ônibus de escola, num é carona, é tipo uma carona, mais é lá é
normal, essas pessoa que trabalha, até mulhé pega, só que é, é normal né, ônibus
de escola, a mulhé, pai de família, pega, essas pessoa assim.
O trabalho doméstico
Se para os meninos da região são oferecidos trabalhos pesados na construção,
na lavra, como carregador ou longas jornadas em bares, para as meninas, como reza
a tradição, são oferecidos empregos domésticos. Desde muito cedo o trabalho
doméstico faz parte do cotidiano delas. Entre os 34 entrevistados, 28 afirmaram ter
realizado serviço em casa. Os 34 dedicam uma média diária de duas horas ao trabalho
doméstico, dado apurado a partir da questão do formulário: “Faz algum tipo de
trabalho em casa? Qual (quais)? Quantas horas por dia?” Os depoimentos a seguir
confirmam o exercício da atividade. Novamente, está-se diante de trabalho infantil
pesado e banalizado no imaginário dessas crianças. Elas não têm a menor idéia de
que são vítimas de um crime:
Eu acordo 7 horas, e, vou arrumar casa, ajudar mamãe. (Entrevista 14 – 16 anos)
Todo dia eu arrumo casa. (Entrevista 15 – 15 anos)
Eu faço de tudo, minha mãe só lava roupa. (Entrevista 6 – 13 anos)
Quem cuida da casa é eu e minha tia. (Entrevista 22,12 anos)
Eu levanto, lavo louça, depois vou arrumar a casa, né, depois eu faço almoço,
lavo a louça do almoço (ri), novamente, e aí, fico com a tarde, e aí só a noite que
eu vou fazer janta novamente, e aí... dormir. / Seis horas de trabalho, no máximo.
Seis horas. É pouco. / Meu marido me ajuda um pouco também. Ele dá muita
força. (Entrevista 31 – 16 anos)
Minha mãe deixava a minha irmã comigo. Eu tinha seis anos. / Gosto de... de
ficar sozinha em casa prá mim arrumar casa, prá ficar limpa. / Só que eu não
gosto quando eu tô arrumando a casa e fica aquele tanto de gente passando prá
lá prá cá. E eles não limpa os pé lá em casa não. Dá uma raiva, minina! (Entrevista
7 – 13 anos)
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Tenho que cuidar dele (referindo-se ao filho). Lavo louça, arrumo casa, lavo roupa,
é, lavo roupa, faço almoço e depois do almoço eu cuido de tudo de novo, arrumo
a comida e tal, é... e, de tarde, às vezes eu vou jogar futebol. / [Trabalho] oito
horas, né? Com meu filho... (Entrevista 32 – 17 anos)
Eu faço um almoço lá em casa, e tal... / E, assim, eu fico muito folgada em casa.
Eu arrumo casa, fico cansada, durmo. (Entrevista 23 – 14 anos).
Aí quando dá umas 4:00 horas eu já começo a fazer janta prá dá no outro dia,
coloco na geladeira daí no outro dia pega e esquenta./ Ah, tem dia que eu gosto
da minha comida tem dia que não. (Entrevista 27 – 13 anos)
Eu acordo seis horas / eu tenho que lavá vasilha prá deixar limpo prá minha mãe.
Aí acordo seis horas, tomo café, faço o que eu tem de fazê. / [Faço] faxina lá em
casa... (Entrevista 10 – 17anos)
O serviço doméstico é também a primeira, freqüentemente a única, alternativa de
trabalho fora de casa. Às vezes é aguardada com ansiedade, demonstrando mais uma
vez uma valorização extrema do trabalho infantil:
Mãinha falou que nós estamos precisando de trabalhar. / Em casa de família! /
Eu mais ela tava até trabalhando mas aí nós fomos pra escola. / [Gostamos de]
arrumar casa, lavar roupa, arrumar vasilha e olhar bebê. / Eu gosto. / Eu amo!
(Entrevista 28 – 15 anos)
Comumente, na região, entretanto, predomina a falta total de alternativa, o que
leva as jovens a idealizarem trabalhos como secretária, vendedora e cabeleireira:
Um serviço aqui eu não arrumo. / Cê não acha um serviço. (Entrevista 5 – 20
anos)
Porque eu num tenho um trabalho bom, né, não tenho nada. Não posso ajudá
minha mãe que eu, bem que eu queria ajudar ela, num posso. (Entrevista 19 – 19
anos)
Num tenho nada assim pra mim faze não. / A vida é essa: num tem um emprego,
num tem nada./ Então... é muitas aí que luta, né, que num tem um emprego,
que... (Entrevista 21 – 17 anos)
Ela é secretária. Nossa, se eu tivesse um emprego desse eu era feliz! Nó, eu
procurei emprego, eu num achei nenhum! / O pessoal trabalha muito e eu tenho
vontade de trabalhar tamém. (Entrevista 23 – 14 anos).
Aqui não tem nada pra gente fazer. / Se tivesse alguma coisa pra gente fazer!
(Entrevista 25 – 15 anos)
Mas tem tantas alternativas sem entrar [na prostituição], tem, porque não
procura um trabalho, é mais fácil do que fazer isso [vender o corpo]. (Entrevista
27 –13 anos).
Eu não faço nada. Tava é procurando serviço, sabe? Só que minha mãe não
arruma pra mim. (Entrevista 30, 15 anos)
Eu penso em trabalhar. / Não em qualquer lugar entendeu, porque tem lugar que
né sei lá não dá pra ir, tipo assim eu ter um emprego não é, tipo assim, para me
prostituir e tudo mais, entendeu, ter um emprego fixo, estudar trabalhar em uma
loja, tipo assim ter um horário fixo, entendeu, e muito menos trabalhar na casa
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dos outros, entendeu, as pessoas ficar me olhando sei lá não sinto bem, a pessoa
ficar me mandando faça isso, faça aquilo eu não gosto. / Gostaria de trabalhar em
algum lugar entendeu, numa loja, nesses lugares assim. Entendeu? (Entrevista 6
– 13 anos)
Se você for aqui numa loja, que nem que fui na rua toda, procurar serviço, elas
falam que não tem! / Porque, tipo assim, é só pra pessoas de nível maior pra
trabalhar na loja. (Entrevista 25 – 15 anos)
Gosto [de mexer no cabelo]. / É mais... às vezes nós num faz isso [fazer trancinhas
no cabelo] assim não, sabe? De vez em quando, assim. Num é direto não, mais...
agora tem muita gente, assim, que gostô, sabe? / Aí fica muita gente pidino pra
nós fazê e dá trabalho isso aqui pra colocá. / Nós tem interesse, sabe, [em
trabalhar como cabeleireira] mais, assim, é muito difícil, assim, nós sair pra fora,
num sei porquê e ela tem criança também e eu sô de menor, tamém, é ruim, sabe,
assim. (Entrevista 21, 17 anos)
Como nenhuma alternativa se apresenta, resta-lhes serem empregadas domésticas,
profissão exercida também por algumas de suas mães. O salário mensal, na região, para
esse trabalho, variam entre R$30,00 e R$100,00, comumente sendo de R$40,00.
Ressentimentos, hostilidades de lado a lado, amarguras, violências e humilhações
sujeitam as jovens, confirmando os achados de Le Guillant (2006), na França da primeira
metade do séc. XX. Elas encontram também situações nas quais são dominadas e têm
que ser submissas. Encontram, igualmente, as “antecâmaras da prostituição”, como já
citado por Le Guillant (2006, p. 248) e confirmado nos depoimentos das entrevistadas:
Eu lavava louça assim, sabe? Aí ele [o patrão] começava a me alisá... teve um dia
que eu briguei também aí ele só me deixava trancada, num deixava sair. / Eu
trabalhei uns quatro méis na casa da mulhé, a mulhé num me pagou. Aí eu fiquei
grávida, aí ela me pôs pra fora, sabe? / Todas menina que fica lá, de menor, ele já
teve relação. (Entrevista 1 – 16 anos)
Já trabalhei de babá na casa da, da muié ali, vindo nessa rua aqui vira. / Ganhava
100,00. (Entrevista 22 – 12 anos).
Olha, elas [meninas que vão pra pista] trabalharam, assim... Casa de família,
entendeu? /Normalmente em casa de família, ni loja. (Entrevista 23 – 14 anos).
Eu tava trabalhando aí na casa de uma... de uma mulher aí, só que eu saí./ Fazia
tudo, arrumava a casa, fazia tudo/ Ah, eu acho que eu fiquei lá uns 4 dias só./ Eu
mesma [consegui o emprego]. / Só que não deu certo não/ Por causa da mulher do
homem, ela é muito nojenta/ Que ela quer mudar as coisas assim. / Ela queria
mandar em mim, só que eu não aceitei / Ah, mandar lá fazer as coisas dela lá.
Tinha dois dias que eu tava, tipo morando com, com o homem lá, aí. Ela já
chegou querendo mandar nas coisas lá. Queria mandar em mim. Aí eu tinha as
hora de sair. Aí ela pegou e mudou tudo. / Morava, morava lá, dormia lá c’os
meninos./ C’os meninos. Dois gêmeos e uma menina [de 10 ano]. (Entrevista 24
– 14 anos)
Eu já trabalho [como doméstica] na casa de minha irmã né? / A maioria [das mães
das meninas prostituídas] aqui é de doméstica. (Entrevista 25 – 15 anos).
Trabalho com minha tia. / Trabalho em várias casas. / Desde 12 anos. / O que eu
mais gosto de fazer é trabalho na casa de gente. (Entrevista 29 – 14 anos)
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Le Guillant, ocupado especialmente com a psicopatologia do trabalho, chama a
atenção para os efeitos do ressentimento que só esporadicamente têm conseqüências
graves:
De qualquer modo, apesar do grande número de queixas apresentadas pelas
domésticas em relação a suas condições de vida e de trabalho, assim como aos
patrões, são raros os efeitos concretos de tal manifestação. As empregadas
domésticas “ficam folgadas”, como se diz, “roubam na conta da feira”, implicam
com o patrão, cospem na comida e, sobretudo, “pedem uma semana de licença”
quando estão enfaradas. A possibilidade de dar um fim ao conflito quando este se
personaliza e sai fora de controle, limita consideravelmente na prática a intensidade
dos rancores, o número de reações violentas e de manifestações psicopatológicas.
(Le Guillant, 2006, p.258)
Como não há outro trabalho na região, a saída, talvez única, para o fim do conflito
para as jovens do Vale do Jequitinhonha é a “venda do corpo” na auto-estrada e em
alguns outros pontos, atividade que tem vantagens financeiras sobre o trabalho de
doméstica (percebem, num programa na pista, entre R$10,00 e R$20,00, o que quer dizer
que cinco programas no mês correspondem ao montante recebido por trinta dias de
trabalho doméstico; são elas próprias que fazem esses cálculos).
A entrada em situação de exploração sexual
A opção pela situação de exploração sexual as livra, pelo menos temporariamente,
da submissão total a um patrão, embora as coloque, também, sujeitas a humilhações,
ressentimentos, hostilidades, violências e amarguras. As entrevistadas deixam bem
claras as vantagens pecuniárias:
Teve época que ela [a irmã prostituída] chegava lá em casa com uns setenta reais
numa noite. (Entrevista 5 – 20)
A gente... ó, por exemplo, se ocê, se ocê trabalhar, o mínimo que cê pode ganhar
é cinqüenta reais. Cinqüenta reais não dá... / É... por mês. Pra arrumar, passar
arrumar... é... arrumar, pra lavar, passar, cozinhar, fazer tudo. Às vezes, até pra
olhar minino. (Entrevista 7 – 13 anos)
Não há dúvida de que a maioria das entrevistadas entra na situação de exploração
sexual comercial por necessidade de ordem econômica, como se vê nos depoimentos
abaixo (observe-se que raramente se fala da prostituição na primeira pessoa; esse
ocultamente é objeto de outro artigo):
É, eu acho que é dificuldade / por causa de dinheiro. (Entrevista 1 – 16 anos)
O que fez ela [a irmã] ir até a pista foi a falta ‘de ter recurso’. / As pessoa precisa
sobreviver. / E não é um dinheiro fácil, entendeu? (Entrevista 5 – 20 anos)
Algumas vão porque gostam outras por necessidade. / Tem pessoas que são
pessoas que prostitui prá mantê sua vida, meninas que, inquanto taria numa
iscola prá aprendê, prá no dia de amanhã sê alguém hoje vivem na pista, intendeu?
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/ Tem pessoas que faz prá vivê, tem pessoas que faz por não pensá direito, e
tem pessoas que faz prá se sustentá, faz isso por sê preciso. (Entrevista 6 – 13
anos)
Qué vê, muitas pessoas aqui não tem emprego, muitas pessoas... aqui não tem,
não tem emprego, sabe? Aí eles acha assim, uma pessoa que veve sozinha, qué
vê, uma minina que num tem marido nem nada nem filho, aí eles acham assim:
‘Ah, essa daí é de qualqué um, então eu vô chamá ela’. Aí elas precisam e vão. Eu
acho que começa assim./ Mas só que veve nessa vida porque tem umas que
precisa, né, porque tem filhos, então num, num há comida, porque já são de
maiores, né, tem filhos e tudo. Otras tem casos até que vão prá pista, sabe, se
prostituí, por causa de dez, vinte reais, essas coisas assim. (Entrevista 17 – 22
anos)
Tem hora que ela faz isso, sabe? Prá ajudá os filho dela. Porque, tipo assim, o
pai de T., ele é preso. O pai desse mulequim aí, ó. (Entrevista 19 – 19 anos)
Porque tem algumas que vão pa pista prá pegar carona por necessidade, entendeu?
(Entrevista 23 – 14 anos)
A noite na pista / elas fala assim que é horrível, mas elas tem que ir, porque não
tem dinheiro... (Entrevista 25 – 15 anos)
Mas, tem gente que faz isso mesmo porque precisa né? / É, de dinheiro, né, tá
passando dificuldade. / Daí tem gente mesmo que faz isso por fazer mesmo. / E
tem as que vão porque precisam de dinheiro. (Entrevista 27 – 13 anos)
Precisava ganhá dinheiro, né? / Tem várias garotas aí na pista. / Só que a maioria,
uns fala: ‘Ah elas faz por dinheiro, prá curtir’. – Não, cê pode pará e pensá,
várias faz prá se sustentá. Tem cabeça fraca, que em vez de procurá um serviço,
em vez de procurá outra coisa, elas preferem fazê isso, entendeu? / Tem pessoas
que faz prá se sustentá, faz isso por sê preciso. (Entrevista 30 –15 anos)
Muito mais raros são os depoimentos apontando outras razões para se
prostituírem: comprar roupas, adornos e calçados ou simplesmente por prazer (observase novamente que o discurso é quase sempre indireto):
Assim, ter um que comprar uma roupa, entendeu? Compra fiado e tá chegando
o dia pa pagar”. E aí num tem dinheiro, ‘Vamo na pista’. Quando pede a mãe
delas, a mãe delas num tem... Elas vão lá... Vão prá pista e pega. Ou então
pode ser... quando quer ir em festa, num tem dinheiro. Naquela noite que tem
uma festa... Naquela noite que eles vão numa festa eles arruma dinheiro./ E
deve ser pra entrar na festa, sabe? / E ela se prostitui porque ela gosta de ter,
assim... farto, um churrasco na casa dela. / Aí ela vai lá, se prostitui, pega esse
dinheiro e depois vai pra festa... / Vai numa festa, faz escovinha no cabelo,
lava o cabelo...Vai à boate, faz churrasco, nossa! Cê come carne até... até falar
chega! Bebe cerveja, pão... Aí rola, entendeu? (Entrevista 23 – 14 anos)
Eu ía compra umas roupas. (Entrevista 24 – 14 anos)
Prá ter, prá comprar as coisas, prá / coisa de luxo./ Comprar roupa mesmo,
assim pode ficar até um bom tempo com a que tem né, com as que têm, se ver
que quer roupa nova, ficar mais bonita né, daí vai querer dinheiro mesmo assim.
(Entrevista 27 – 13 anos)
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Eu acho que elas gosta! Porque sente prazer fazendo isso! (Entrevista 2 – 15
anos)
Por que elas gosta, e por que recebe mais fácil. / Que além delas sentir prazer
ainda ganha grana. (Entrevista 13 – 16 anos)
Tem gente que... que faz isso prá se divertir mesmo. / Deve ser porque não tem
nada pra fazer né. Nenhum divertimento. (Entrevista 27 – 13 anos)
Tanto social quanto individualmente, a venda do corpo não é solução. Mas seu
caráter explícito de substituição a outras atividades remuneradas atesta que se trata de
um trabalho, mesmo sendo “horrível”, como uma delas diz. E porque é horrível, difícil
e perigoso é trabalho valorizado pelos que o executam.
Discussão
Há uma diferença fundamental entre a fala de E. e a das meninas com relação às
atividades que realizam. Enquanto E. alardeia seu trabalho, obviamente se orgulha dele,
sente-se um homem de verdade por exercê-lo, vê-se próximo ao mundo dos adultos e se
esquece até que a razão pela qual o executa é econômica, as meninas estão longe de
apresentarem uma imagem positiva do que realizam. Ao contrário, raramente gostam do
serviço de doméstica e quanto ao de prostituídas simplesmente o camuflam. Sabem que
é atividade que tem que ser exercida na clandestinidade e tentam silenciar sobre ela. A
esse respeito, ver Machado (2006) que, com base nas mesmas entrevistas, demonstrou
a existência de um círculo vicioso que compreende fofoca, estigma, silêncio, exploração,
as meninas silenciando numa tentativa imaginária de escaparem ao estigma da prostituta
e seu silêncio favorecendo a exploração, protegendo os clientes e os aliciadores,
permitindo que todos, nas cidades, fechem os olhos à situação.
Essa diferença entre o discurso de E. e o das meninas, entretanto, não obscurece
as semelhanças, responsáveis pelas significações imaginárias sociais positivas que
eles atribuem ao trabalho infantil perigoso ou indigno.
(a) Em primeiro lugar, suas respectivas atividades se sustentam na situação de
extrema pobreza em vivem. Tanto E. quanto as meninas estão inseridos em relações de
trabalho extremamente frágeis e imersos na mesma cegueira quanto à exploração de
que são vítimas. Isso está claro nas falas de E. sobre sua atividade na construção civil
e nas falas das meninas quanto ao trabalho doméstico. Caso coloque-se entre parêntesis
a referência explícita à atividade sexual na frase de E. Faleiros (2004) citada abaixo, e se
atente à relação exploração x condições e trajetórias de vida, a frase se aplica igualmente
a E. e às meninas:
As instituições (governamentais, não governamentais, internacionais),
profissionais, pesquisadores e estudiosos da exploração sexual vêm
questionando o termo prostituição de crianças e adolescentes, por
considerarem que estes não optam por esse tipo de atividade, mas que a ela
são levados pelas condições e trajetórias de vida, induzidos por adultos, por
suas carências e imaturidade emocional, bem como pelos apelos da sociedade
de consumo. Neste sentido, não são trabalhadores do sexo, mas prostituídos,
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
abusados e explorados sexualmente, economicamente e emocionalmente. (E.
Faleiros, 2004, p. 78-79)
(b) Em segundo lugar, como já apontado também na frase acima, não houve uma
escolha verdadeira pelo trabalho, de um de outras. Circunstâncias de suas vidas,
poucas alternativas regionais, modelos parentais frágeis os induziram aos trabalhos
que exercem. Suas falas, registradas neste artigo, deixam ver toda a miséria em que
vivem.
(c) Um e outras constroem sua identidade em torno do que fazem, ele a auto
imagem de uma pessoa digna, elas a de trambiqueiras, nojentas (Machado e cols, 2006),
mas também, como E., a de cabeça boa: “Eu sô muito cabeça”. (Entrevista 12 – 16 anos).
(d) Finalmente, todos vêem mérito no fato de estarem ganhando a própria vida,
tornando-se independentes dos adultos que os sustentaram, mesmo às custas de um
trabalho indigno. Não é demais relembrar alguns segmentos de discurso: “Várias faz prá se
sustentá.” (Entrevista 30 –15 anos). “Vão pa pista por necessidade, entendeu?” (Entrevista
23 – 14 anos). “Elas tem que ir, porque não tem dinheiro...” (Entrevista 25 – 15 anos).
Conclusão
As significações imaginárias sociais criadas para o trabalho pelas crianças e
adolescentes expostos a abusos e exploração sexual, no Médio Vale Jequitinhonha,
são apenas uma parte da questão, mas que não pode ser ignorada.
Essas imagens positivas para atividades perigosas e indignas e o próprio trabalho
infantil constituem, como tudo mais que se passa num território, onde nada ocorre
isoladamente, ingredientes a serem levados em conta. Outros ingredientes seriam
pobreza, violência e medo. São elementos a serem trabalhados num programa plural de
erradicação do trabalho infantil (que inclui o trabalho das crianças na prostituição).
Um programa plural envolveria escolas, famílias, ongs, órgãos privados e do poder
público.
As imagens estão no discurso de crianças e adolescentes particulares, mas dizem
respeito a um contexto mais amplo, à situação do Vale, à situação econômica do país
(que não provê postos de trabalho suficientes para seus jovens, como demonstrado
estatisticamente por Pochmann, 2001), à crise do trabalho internacional.
Sempre é bom lembrar que a subjetividade, especialmente nos aspectos aqui
tratados – apego ideológico ao trabalho, valorização irrestrita dele – constitui também
um entrave à prevenção da exploração sexual de crianças e adolescentes a ser vencido,
não apenas no Vale, mas na sociedade brasileira como um todo, especialmente entre os
pobres.
Nesse sentido, ter escutado a fala de crianças e adolescentes, ter sabido que
elas, como seus pais e avós, supervalorizam todo e qualquer trabalho, foi importante.
Saber que elas estão em busca de alternativas melhores é também positivo. Saber que,
no limite, já se sentem incapazes de sonhar (Machado e cols., 2006), tamanha a dureza
de suas vidas, mostra a urgência de buscar, com elas, novos imaginários, novas
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soluções, novos trabalhos, dignos e seguros. Essas informações são também
importantes para entidades públicas e privadas que atuam, ora com indiferença, ora
com rigidez extrema, no sentido de erradicar exploração sexual comercial e trabalho
infantil: que se escute esse imaginário infantil; que se busquem, com as crianças,
outras orientações, outras formas de viver e de se representar.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Projeto criança e adolescente em Situação de Risco: Geração de renda como alternativa de prevenção à exploração sexual – Médio Vale do Jequitinhonha. “Projeto 18
de maio”. Relatório Parcial II. Belo Horizonte, 127 p.
Recebido em agosto de 2006
Aceito em março de 2006
Marília Novais da Mata Machado é Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII;
professora da Faculdade Novos Horizontes.
Júnia Carine Cardoso da Silva é bolsista de Iniciação Científica da Faculdade Novos Horizontes.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Aletheia, n.25, p.66-81, jan./jun. 2007
Inteligência emocional e desempenho em policiais militares:
validade de critério do MSCEIT
Monalisa Muniz
Ricardo Primi
Resumo: Inteligência emocional é um construto novo e por isso tem sido alvo de críticas.
Dentre elas, levanta-se a questão se ela está associada ao desempenho no trabalho. Alguns
pesquisadores dizem que sim, no entanto, não há pesquisas que sustentem essa afirmação.
Assim o objetivo deste estudo foi investigar evidência de validade teste-critério para o teste de
inteligência emocional Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT) em prever desempenho de policiais. Participaram do estudo 80 policiais do Estado de São Paulo,
sendo 40 da capital e 40 do interior. Os policiais responderam ao MSCEIT e seus superiores
avaliaram seu desempenho por meio de dois instrumentos anteriormente desenvolvidos para
esse contexto específico. Os resultados obtidos por meio das correlações entre os dois testes
apontaram que os subtestes Paisagem, Facilitação, Transição e Administração se associaram
com itens do desempenho profissional. Os dados sustentam evidências positivas de validade
teste-critério para o MSCEIT.
Palavras-chave: avaliação psicológica de policiais, avaliação da inteligência, validade de critério.
Emotional intelligence and job performance in policemen: Criterion
validity for the MSCEIT
Abstract: Emotional intelligence is a new construct and because of that has been a focus of
criticism. One of them is the question of weather or not it is associated with job performance.
Some researchers say that emotional intelligence is associated with job performance but there is
no enough evidence on this point. Then the aim of this study was to investigate criterion validity
evidence for the Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT) to predict police
men job performance. Participants were 80 State of São Paulo Policemen officers. They answered
the MSCEIT and were rated by theirs superiors on two previous scales on job performance
developed for this specific purpose. Results showed that Pictures, Facilitation, Changes and
Emotional Management subscales were significantly associated with particular items of job
performance. The data show positive test-criterion validity evidence for the MSCEIT.
Key words: psychological assessment with policemen, intelligence assessment, criterion validity.
Introdução
O termo inteligência emocional foi utilizado pela primeira vez pelos pesquisadores
John D. Mayer e Peter Salovey em 1990, derivando-se de pesquisas relacionadas à
inteligência social originada a partir de estudos em psicologia sobre inteligência no
final do século XIX (Salovey & Mayer, 1990). Ao longo desses anos, o termo inteligência
emocional tem sido debatido e seu significado pode ser resumido em duas tendências
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
principais: (a) inteligência emocional como traço de personalidade, considerada
uma característica importante para obtenção de sucesso na vida e (b) inteligência
emocional como capacidade mental, que diz respeito ao processamento de
informações emocionais, que é a definição mais comumente adotada na literatura
científica (Mayer, Salovey & Caruso, 2002).
Hoje é crescente a idéia de que a inteligência e a emoção consistem em funções
adaptativas do organismo e estão associadas a mecanismos cerebrais, que auxiliam o
organismo a se adequar ao meio (Primi, 2003). Cada indivíduo apresenta uma capacidade
maior ou menor em lidar com informações emocionais nessa adaptação, e isso é o que
está na base da inteligência emocional, pois, sucintamente, a inteligência emocional
refere-se à capacidade de processamento de informações emocionais de modo a utilizálas favoravelmente no processo de adaptação (Salovey & Mayer, 1990).
As primeiras definições sobre inteligência emocional, como capacidade cognitiva,
abrangiam a percepção e o controle das emoções em si e nos outros, mas omitia o
pensamento sobre sentimento. Após revisões, o conceito dessa inteligência definiuse como “a capacidade de perceber emoções, a capacidade de acessar e gerar emoções
de tal forma a ajudar os processos de pensamento, a capacidade de compreender a
emoção e o conhecimento emocional, e a capacidade de regular as emoções para
promover o crescimento emocional e intelectual” (Mayer, Salovey & Caruso, 2002a,
p.17). Esse modelo se baseia na idéia de que as emoções contêm informações sobre
relacionamentos do organismo com o meio, e a inteligência emocional associa-se à
capacidade de reconhecer os significados dessas emoções e dos relacionamentos,
raciocinar sobre eles e utilizar essa informação para orientar as ações de adaptação ao
meio (Mayer & Salovey, 1999).
As capacidades da inteligência emocional (percepção/avaliação/expressão da
emoção, emoção facilitadora do pensamento, compreensão e análise das emoções e
controle reflexivo das emoções) são hierárquicas, tendo como base a percepção, a
avaliação e a expressão de emoções. As áreas da percepção, compreensão e controle
envolvem raciocínio sobre as emoções, já a área da emoção como facilitadora do
pensamento diz respeito à utilização das emoções para auxiliar o raciocínio. Vários
dados também indicam que a área compreensão das emoções é a mais cognitiva,
envolvendo maior raciocínio abstrato, possuindo uma correlação mais estreita com
testes tradicionais de inteligência (Mayer, Salovey, Caruso & Sitarenios, 2001).
A área percepção, avaliação e expressão da emoção refere-se à acuracidade de
identificação de emoções e conteúdo emocional em si próprio, em outras pessoas e em
figuras ou objetos, bem como à capacidade de expressar sentimentos de forma adequada
e clara. Também está associada à acuracidade em identificar a expressão falsa ou
manipulada dos sentimentos (Mayer & Salovey, 1999). Indivíduos com essa capacidade
mais desenvolvida podem ter vantagens adaptativas nas suas relações com o mundo,
especialmente quando os problemas requerem atenção às informações emocionais,
pois têm maior precisão na identificação de suas emoções (tanto pessoais quanto de
outras pessoas), como também podem se expressar mais apropriadamente aos outros
(Salovey & Mayer, 1990).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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A emoção como facilitadora do pensamento diz respeito à atuação da emoção
nos processos cognitivos superiores ligados ao raciocínio, auxiliando na resolução de
problemas, como um sistema de alerta sobre os eventos importantes na pessoa e no
ambiente. Essa faceta diz respeito também à capacidade de acessar, gerar e examinar as
emoções de tal forma a ajudar os processos de pensamento e conseqüentemente
ajudar o indivíduo a tomar decisões. A atuação das emoções no pensamento faz com
que as pessoas considerem perspectivas múltiplas e compreendam que os tipos de
emoções facilitam diversos trabalhos e formas de raciocínio (Mayer & Salovey, 1999).
A compreensão e análise das emoções refere-se à compreensão e ao uso do
conhecimento emocional, que é crescente ao longo da vida pelo maior entendimento
dos significados emocionais. Refere-se à compreensão de emoções complexas e
contraditórias, da transição de sentimentos e a sua relação com as situações
interpessoais. Portanto, tal conhecimento é muito importante para a adaptação (Mayer
& Salovey, 1999).
O controle reflexivo das emoções para promover o crescimento emocional e
intelectual refere-se à capacidade de controle e regulação das reações emocionais.
Isso pressupõe a tolerância às experiências emocionais mais intensas e o conhecimento
e emprego efetivo de estratégias de alterações desses sentimentos. Com o tempo, o ser
humano aprende a refletir sobre as emoções positivas e negativas, fazendo delas uma
ferramenta para o raciocínio, caso sejam úteis. Também começa a entender as reações
emocionais, avaliando-as, controlando-as e compreendendo-as (Mayer & Salovey,
1999). No lado positivo, indivíduos com tais capacidades podem realçar suas próprias
emoções e a dos outros, motivando pessoas para algo benéfico; já no lado negativo,
podem canalizar suas ações para comportamentos anti-sociais e de manipulação dos
outros em benefício próprio (Salovey & Mayer, 1990).
Paralelamente ao desenvolvimento do modelo teórico sobre inteligência
emocional, foram desenvolvidos testes para medir esse construto que podem ser
divididos em três grupos: auto-avaliação, avaliação por meio de observadores e
avaliação de desempenho máximo, sendo este último considerado o mais promissor. O
teste mais conhecido que adota esse procedimento é o Mayer-Salovey-Caruso
Emotional Intelligence Test (MSCEIT). Este teste mede inteligência emocional
considerando-a como um tipo de inteligência que está relacionada ao processamento
de informação, ou seja, é um instrumento que mensura a inteligência emocional por
intermédio de testes de desempenho máximo, como os testes tradicionais de inteligência
(Mayer, Caruso & Salovey, 2002).
A grande maioria das pesquisas com inteligência emocional procuram investigar se
este construto realmente é um novo tipo de inteligência e se não é apenas um novo rótulo
para traços muito estudados em pesquisas com personalidade (Bedwell, s.d.; Brackett &
Mayer, 2003; Bueno, 2002; Cobêro, 2004; Dantas, 2004; Davies, Stankov & Roberts, 1998;
Jesus, Jr., 2004; Lopes e cols., no prelo; Mayer, Salovey, Caruso & Sitarênios, 2001; Mayer,
Salovey, Caruso & Sitarênios, 2003; Roberts, Zeidner & Matthews, 2001 e Primi, Bueno &
Muniz, 2006). Essa preocupação em explorar a inteligência emocional para ver se é inteligência
ou personalidade decorre em função às críticas de pesquisadores que contestam a existência
do construto inteligência emocional. Além disso, a inteligência emocional também é estudada
68
Aletheia 25, jan./jun. 2007
para verificar a sua capacidade em prever estresse, relacionamentos pessoais positivos,
comportamentos desajustados, desempenho acadêmico, desempenho profissional, entre
outros. (Bedwell, s.d.; Brackett & Mayer, 2003; Cobêro, 2004; Freitas, 2004; Lopes e cols.,
no prelo; Miguel, 2006; Nascimento, 2004).
Especificamente sobre o desempenho profissional ainda não existem muitos
estudos mostrando qual a relação com a inteligência emocional. Apesar de a inteligência
emocional ser popularmente considerada como imprescindível para o sucesso
profissional e ser tão divulgada no contexto organizacional, a única pesquisa empírica
realizada no Brasil não encontrou resultados condizentes com as afirmações que têm
sido feitas (Cobêro, 2004). Esse estudo, que abordou validade da inteligência emocional
em prever o desempenho profissional, encontrou correlações que, embora
significativas, foram de baixa magnitude, implicando uma capacidade de predição bem
mais baixa do que tem sido anunciado no mundo dos negócios (Cobêro, 2004).
Nos anos 1990 a inteligência emocional passou a ser vislumbrada na área
organizacional como sendo uma variável imprescindível para o bom desempenho no
trabalho. Isso ocorreu principalmente após o lançamento do livro de Goleman (1995),
que disseminou a idéia de que o mercado de trabalho, em mudança constante, busca
profissionais que, para além da inteligência tradicionalmente definida e do grau de
formação acadêmica, possuam outras capacidades ligadas ao relacionamento pessoal.
Goleman ressaltou que nesse meio o indivíduo é avaliado pela maneira como lida
consigo e com os outros, sendo este o critério que cada vez mais é utilizado para
decidir quem será contratado ou não e quem será promovido ou não.
A inteligência emocional no meio organizacional é tão prestigiada que, hoje em
dia, encontram-se cursos que ensinam como desenvolver essa capacidade e como, a
partir dela, ter um futuro mais promissor. Para Roberts, Flores-Mendonza e Nascimento
(2002), esse amplo interesse pode estar vinculado a uma conjectura de que as pessoas
com um melhor gerenciamento de suas próprias emoções são possivelmente mais
bem-sucedidas no mercado de trabalho e acabam por ter melhor qualidade de vida.
Ressalta-se que esse conceito de inteligência emocional tão propagado no
cotidiano organizacional está vinculado à conotação de senso comum, que é o conceito
misto da inteligência emocional, ou seja, aquela concepção que a confunde com traços
positivos de personalidade, variáveis de bem-estar entre outros construtos já
conhecidos pelas teorias de personalidade. No entanto, não há pesquisas substanciais
que sustentem as afirmações que são propagadas propondo que a inteligência
emocional é melhor preditora do desempenho no trabalho do que medidas tradicionais
de inteligência. O presente trabalho segue uma linha diferente, mais freqüentemente
referida no meio científico, na qual a inteligência emocional é explorada como
capacidade cognitiva e com afirmações menos pretensiosas, embasadas sempre em
dados empíricos.
Considerando a literatura encontraram-se duas pesquisas verificando a eficácia
da inteligência em prever o desempenho profissional. Cobero (2004) encontrou algumas
correlações significativas ente os subtestes do MSCEIT que avaliam a administração
das emoções com o desempenho profissional avaliado por pares. Nesse estudo uma
medida foi composta pela avaliação de um colega e um superior.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
69
Outro estudo foi realizado por Bedwell (s.d.), com os objetivos de verificar a
validade de uma medida de inteligência emocional de auto-relato para predizer
desempenho no trabalho e qual a validade incremental dessa medida sobre medidas
tradicionais de personalidade. Participaram do estudo 66 indivíduos responsáveis
pelo suporte social e emocional de pessoas portadoras de deficiências mentais e físicas.
Os instrumentos utilizados foram o Inventário de Julgamento Emocional – EJI (avalia
inteligência emocional por auto-relato), o Questionário de 16 Fatores de Personalidade
– 16PF (avalia traços da personalidade) e Avaliação de Desempenho dos funcionários
preenchida pelos supervisores. Os resultados demonstraram correlações positivas e
significativas entre a Avaliação de desempenho geral e as escalas do EJI Consciência
emocional (r = 0,25). Identificação das emoções nos outros (r = 0,26), Usando a emoção
para resolver problemas (r = 0,24) e Expressando emoções (r = 0,30). Com o 16 PF o
fator Ansiedade foi o que apresentou mais correlações significativas com os fatores
Profissionalismo (r = -0,26), Controle emocional (r = 0,24) e Disciplina (r = -0,24) da
Avaliação de Desempenho. A análise de regressão efetuada indicou que inteligência
emocional possui validade incremental para Avaliação de Desempenho. Os autores
concluíram que inteligência emocional é provavelmente mais relevante para trabalho
que envolve relações interpessoais mais intensas.
Os autores Caruso e Wolf (2001) também testemunham a importância da inteligência
emocional no ambiente de trabalho a partir de suas experiências práticas como consultores
organizacionais. Descrevem que utilizam os escores dos testes de inteligência emocional,
principalmente o modelo de quatro fatores Mayer-Salovey (identificação das emoções,
usando emoções para facilitar o pensamento, compreensão das emoções e administração
das emoções), para compreenderem melhor essas capacidades e suas relações com a
satisfação e o desempenho com os tipos de trabalho. Respaldam suas intervenções em
treinamentos sobre relações interpessoais, procurando desenvolver a inteligência
emocional, verificando que essas capacidades ajudam a resolver determinados problemas
como o relacionamento de uma equipe. Em suas consultorias, os autores fazem uso de
outros instrumentos, como de personalidade, mas alertam que estes apenas proporcionam
informações sobre o que o indivíduo pensa sobre si; já os testes de inteligência emocional
informam quais habilidades fundamentais, problemas e potenciais, a pessoa possui
atualmente. Os autores acreditam que inteligência emocional oferece uma nova
perspectiva dentro do desenvolvimento de carreiras, seleção de pessoal, equipes e
desenvolvimento de líderes.
Mayer e Salovey (1997) rejeitam a idéia de que inteligência emocional seja
fundamental em todos os aspectos da nossa vida, mas acreditam que ela pode ser
importante em áreas como liderança, desenvolvimento de carreiras, desenvolvimento
de gerência, eficácia da equipe e vida profissional em geral. Os autores ainda afirmam
que inteligência emocional pode realçar os resultados no trabalho, mas, em
contrapartida, a ausência dela não leva necessariamente a insucessos. Reconhecem
que alguns trabalhos requerem um nível mais elevado de inteligência emocional do
que outros e até consideram a possibilidade de que em alguns a inteligência emocional
pode ser uma desvantagem. O trabalho do policial militar, que é a população aqui
estudada, parece requerer um nível maior de inteligência emocional, principalmente
70
Aletheia 25, jan./jun. 2007
em relação ao gerenciamento das emoções, pois o policial precisa ter controle das
emoções, administrar as emoções para poder comportar-se eficientemente em
ambientes com contingências adversas e mesmo perigosas, que podem inclusive
envolver risco de vida.
A escolha da amostra de policiais militares parte de uma característica que parece
ser muito importante para as pessoas que trabalham nessa profissão: o controle
emocional. A Academia de Polícia Militar do Barro Branco, na seleção de candidatos,
busca, por meio de exame psicológico, pessoas que tenham elevado controle emocional,
e para isso definem esse construto como:
... habilidade do candidato para reconhecer as próprias emoções diante de um
estímulo qualquer, antes que as mesmas interfiram em seu comportamento,
controlando-as, a fim de que sejam manifestadas de maneira adequada no meio
em que estiver inserido, devendo o candidato adaptar-se às exigências ambientais,
mantendo intacta a capacidade de raciocínio” (Academia de Polícia Militar do
Barro Branco, 2003 p. 4)
Essa definição parece associada ao gerenciamento das emoções, que é a quarta
faceta1 do teste MSCEIT. Os policiais militares também precisam possuir uma série de
características ligadas à disciplina, zelo, bom relacionamento interpessoal, entre outros,
para poderem obter uma avaliação de desempenho positiva. Como na literatura de
inteligência emocional encontram-se relatos que essa inteligência contribui para o
bom desempenho no trabalho, é importante investigar se essas afirmações podem ser
generalizadas para esse grupo específico de pessoas.
Na seleção de policiais militares são utilizados procedimentos de avaliação
médica, física e psicológica, abarcando testes e entrevista. Na avaliação psicológica,
normalmente são utilizados testes de capacidades cognitivas, habilidades
psicomotoras e traços de personalidade. Testes de inteligência emocional não são
utilizados, porque não existem testes aprovados para uso no Brasil. A presente
pesquisa pretende buscar evidência de validade do MSCEIT em relação à sua predição
no desempenho profissional de policiais militares e assim contribuir, caso os dados
sejam favoráveis, para que um dia o teste de inteligência emocional possa ser utilizado
no processo de seleção.
A fonte de evidência de validade aqui estudada é a relação com outras variáveis
utilizando o procedimento teste-critério. Evidência com base na relação com outras
variáveis é uma análise da relação dos escores do teste com variáveis externas. As
variáveis externas podem ser medidas obtidas por outros testes que supostamente
meçam o mesmo construto, construtos relacionados ou ainda construtos diferentes.
O estudo da relação teste-critério busca compreender a eficácia dos escores do teste
em predizer determinado critério. A variável-critério é uma medida de algum evento
1
As capacidades de percepção, avaliação e expressão da emoção; emoção como facilitadora do pensamento;
compreensão e análise das emoções e gerenciamento das emoções são classificadas como facetas da
inteligência emocional, ou seja, esse construto, inteligência emocional, é constituído desses quatro fatores
denominados facetas. Para mais detalhes, ver Tabela 1.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
71
que, por si só, já é importante (como acidente no trânsito) e que não é necessariamente
um processo mental, mas tem relação teórica com os construtos psicológicos medidos
pelos testes. A escolha do critério, bem como o procedimento de mensuração utilizado
para obter as medidas do critério é ponto central, pois o valor do estudo depende da
relevância, precisão e validade dessas medidas de critério. Nesse estudo buscamos,
portanto, verificar a validade do MSCEIT em prever a variável critério desempenho
profissional.
Método
Participantes
Participaram do presente estudo 80 policiais militares, 40 policiais de uma cidade
situada no interior e outros 40 da capital do estado de São Paulo. Desses participantes,
78,8% eram do sexo masculino. A idade média foi de 30,11, com desvio padrão de 7,40,
sendo que a idade mínima foi de 20 anos e a máxima de 47 anos.
Instrumentos
Mayer-Salovey-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT). Este instrumento
é composto por 141 itens, distribuídos em 8 seções conforme mostra a Tabela 1. As
seções A (faces) e E (paisagem) são destinadas a avaliação da capacidade de perceber
emoções em faces e paisagens, respectivamente; as seções B (facilitação) e F
(sensação) são compostas por tarefas relacionadas à utilização da emoção para
facilitação do pensamento; a compreensão de emoções é avaliada pelas tarefas
propostas nas seções C (transição) e G (mistura); e , finalmente, o gerenciamento das
emoções é avaliada por meio das tarefas das seções D (administração de emoções) e
H (Relações emocionais). Na Tabela 1 também estão demonstrados os diferentes
níveis de combinação dos subtestes para se obterem escores para quatro facetas,
duas áreas ou um escore geral. Nesse estudo utilizamos os escores nos subtestes. A
precisão desses subtestes realizada neste estudo por meio do alfa de Cronbach
apresentou os seguintes índices: Faces 0,77, Paisagem 0,82, Facilitação 0,62, Sensação
0,76, Transição 0,48, Mistura 0,45, Administração das emoções 0,79 e Relações
emocionais 0,58.
O método adotado para pontuação foi o da atribuição de pontos proporcionais à
concordância com o consenso. Segundo este critério o sujeito recebe pontos
proporcionalmente ao número de pessoas que escolheu a mesma alternativa que ele.
Assim, se o sujeito escolheu uma alternativa junto com 80% da amostra, então sua
pontuação naquele item é de 0,80. Os sujeitos obtiveram um escore em cada subteste:
faces, figuras, facilitação, sensações, transição, misturas, administração das emoções
e relações emocionais.
72
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Tabela 1 – Organização dos subtestes do MSCEIT.
Escala geral
Área
Faceta
Sortiste
Seção
Percepção das
emoções
Faces
A
Paisagem
E
Facilitação
B
Sensações
F
Transições
C
Misturas
G
Administração de
Emoções
D
Relações
Emocionais
H
Experiência
(IEE)
Facilitação do
pensamento
Inteligência
Emocional
Compreensão das
emoções
Estratégica
(IES)
Gerenciamento das
emoções
Escala de Avaliação do Desempenho dos Policiais. A Escala de Avaliação de
Desempenho dos Policiais foi inicialmente desenvolvida para avaliar o desempenho
de guardas municipais para outro estudo de validade do Rorschach elaborado no
LabAPE (Lima & Primi, 2004). Na criação dos itens, houve a contribuição de um
comandante da Guarda-Municipal. Essa escala é subdividida em duas partes. A primeira
é composta por 19 itens relacionados a características consideradas desejadas e
indesejadas para o desempenho da função de guarda municipal. Ex: Disciplina,
Resignação, Agressões Físicas, entre outros. Foi instituída uma escala de 1 a 4 na qual
1 refere-se à ausência de comportamento, 2 a comportamento pouco freqüente, 3 a
comportamento freqüente e 4 a comportamento muito freqüente. A segunda parte são
itens que listam 24 ocorrências negativas que podem acontecer no exercício da função
desses guardas. Ex: não uso do cinto de segurança, disparo acidental de arma de fogo,
perda de munições, entre outros. Esse instrumento constou de uma escala de 0 a 1, na
qual 0 se refere à ausência da ocorrência e 1 se refere à presença da ocorrência.
Para esse instrumento foi feito um estudo de precisão, obtido por meio das
avaliações de desempenho de 27 guardas-municipais, respondidas por dois superiores
da Guarda. A precisão entre os avaliadores foi de r = 0,81 (p = 0,0001) para o instrumento
total e r = 0,66 (p = 0,0001) para os itens relacionados a características de comportamento
e r = 0,86 (p = 0,0001) para os itens que se referem às ocorrências (Primi, Lima, Petrini,
Nascimento & Cruz 2005).
Procedimentos
Primeiramente, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade São
Francisco. Após a aceitação do comitê, houve o contato com superiores da Polícia
Militar dos locais onde os dados da pesquisa foram coletados, para expor a finalidade do
estudo. Em seguida, junto com os superiores dos policiais que participaram da pesquisa,
foi analisado se a Avaliação de Desempenho elaborada para os guardas municipais
Aletheia 25, jan./jun. 2007
73
adequava-se para o contexto dos policiais militares. Essa verificação indicou que a
escala era adequada. Na seqüência, os superiores avaliaram os policiais sob seu comando.
A segunda etapa consistiu na aplicação coletiva do Mayer-Salovey-Caruso
Emotional Intelligence Test (MSCEIT) nos policiais participantes. Com os dados
coletados foram feitas as análises da pesquisa. Ressalta-se que a coleta dos dados
ocorreu depois do consentimento dos policiais voluntários participantes da pesquisa
e da assinatura do Termo de Consentimento.
Resultados e discussão
Antes de apresentar as análises correlacionais, é importante ressaltar que por meio de
análises descritivas de média e desvio-padrão das duas escalas de medida de desempenho
constatou-se que a média da amostra na Escala 1 ,que avalia a freqüência de bom
comportamento, foi alta, o que significa dizer que a maioria dos policiais avaliados apresentam
“bons comportamentos”. Já em relação à Escala 2, que mensura as ocorrências de
comportamentos inadequados no trabalho, a média foi 0. Com isso percebe-se que a amostra
não tende a apresentar os comportamentos inventariados nesta Escala 2 (Primi & cols, 2005).
Para investigar se indivíduos com maior capacidade de inteligência emocional
apresentam melhores pontuações nas avaliações de desempenho, correlacionaram-se
primeiramente os subtestes da inteligência emocional e a Escala 1 de avaliação de
desempenho. Optou-se por trabalhar apenas com os subtestes, uma vez que tanto o escore
geral da inteligência emocional quanto as facetas são somatórias dos subtestes, consistindo,
portanto, em informações redundantes. Os resultados são apresentados na Tabela 2.
Tabela 2 – Correlação entre os subtestes da inteligência emocional e a avaliação de desempenho.
Itens da Escala 1
Faces
Paisagem
Facilitação
Sensação
Transição
Mistura
Administrar
Relações
Disciplina
-0,08
0,04
-0,01
0,05
-0,12
-0,05
0,24*
-0,06
Resignação
0,06
0,11
-0,05
0,01
-0,01
0,03
0,31**
-0,02
Iniciativa
-0,03
0,18
-0,13
0,00
-0,15
-0,16
0,06
-0,16
Humildade
-0,06
0,07
-0,04
0,02
-0,08
-0,03
0,31**
-0,09
0,15
0,14
-0,18
-0,01
-0,06
-0,10
-0,04
-0,11
-0,17
-0,17
-0,04
-0,15
-0,20
-0,13
-0,16
-0,13
-0,01
-0,11
-0,12
0,05
-0,12
-0,10
-0,03
-0,04
Companheirismo
-0,18
-0,09
-0,24*
-0,01
-0,17
-0,09
-0,08
-0,21
Negligência
0,00
-0,13
-0,10
-0,13
-0,22*
-0,05
-0,10
-0,16
Imprudência
-0,02
-0,11
-0,12
-0,13
-0,20
-0,08
-0,10
-0,18
Agressões físicas
-0,04
-0,23*
0,02
-0,19
-0,16
-0,07
-0,03
-0,15
Descaso
-0,02
-0,10
0,03
-0,10
-0,15
-0,01
-0,04
-0,16
Indisciplina
-0,06
-0,09
0,00
-0,18
-0,18
-0,07
0,11
-0,14
-0,05
-0,19
0,00
-0,17
-0,15
-0,04
0,06
-0,21
-0,01
-0,20
0,04
-0,13
-0,10
0,01
0,15
-0,12
Educação
Firmeza
Resp.
pessoas/instituições
Cuidadoso
Arrogância,
convencimento
Excessos verbais
Comportamentos
imaturos
Autocontrole
0,05
-0,06
-0,02
-0,20
-0,16
-0,06
-0,01
-0,21
-0,06
0,45**
0,07
0,17
0,03
0,19
0,15
-0,06
Sensatez
-0,15
0,12
-0,03
0,11
-0,10
-0,13
-0,05
-0,12
* p<0,05; ** p<0,01
74
Aletheia 25, jan./jun. 2007
As correlações encontradas entre os subtestes da inteligência emocional e os
itens da Escala 1 foram Paisagem com Autocontrole (r = 0,45 p<0,01) e Agressões
físicas (r =- 0,23 p<0,05), Facilitação com Companheirismo (r = -0,24 p<0,05), Transição
com Negligência (r = -0,22 p<0,05), Administração com Disciplina (r = 0,24 p<0,05),
Resignação (r = 0,31 p<0,01) e Humildade (r = 0,31 p<0,05).
O subteste Paisagem compõe a faceta Percepção das emoções, que avalia a
capacidade de o indivíduo perceber emoções em si e nos outros e bem como expressar
de forma mais adequada suas emoções. A correlação encontrada entre esse subteste e
os itens Autocontrole e Agressões físicas sustenta essa colocação das expressões
adequadas das emoções em indivíduos com capacidade de percepção emocional. Esse
dado parece demonstrar que pessoas que possuem maior capacidade em percepção
emocional conseguem controlar melhor suas emoções e com isso não reagir de maneira
inadequada perante o outro, como cometer agressões físicas.
A correlação negativa entre o subteste Facilitação e o item Companheirismo
parece estranha, pois independentemente do subteste, se esperaria que a inteligência
emocional estivesse associada a comportamentos que levam ao estabelecimento de
relações adequadas com o outro. O subteste Facilitação faz parte da faceta Facilitação
do pensamento. Indivíduos com escore alto em Facilitação demonstram maior
capacidade em mesclar emoção com o pensamento de forma a facilitar a tomada de
decisões. No entanto, ressalta-se que uma relação adequada com próximo não
necessariamente precisa ser adequada às expectativas das pessoas com as quais o
sujeito interage. Muitas vezes um comportamento em determinada situação é o mais
correto, no entanto não agrada a todas as pessoas.
Outra explicação para essa correlação inesperada pode estar vinculada ao fato
de que, talvez, nem todas as capacidades da inteligência emocional estejam associadas
a um bom relacionamento com o outro. Facilitação do pensamento pode ser uma
capacidade ligada ao bem-estar do próprio indivíduo, ou seja, como ele utiliza as
emoções para auxiliá-lo no processo de pensamento para que conseqüentemente tome
uma decisão ou resolva um problema que será benéfico a ele próprio. O que isso pode
provocar nas relações não está implicado nesta capacidade. No entanto essa explicação
necessita de maiores investigações, pois não está de acordo com a teoria da inteligência
emocional, a qual especifica que todas as dimensões da inteligência emocional devem
estar associadas a um bom relacionamento com o outro.
A correlação negativa entre o subteste Transição e o item Negligência indica que
pessoas com escore alto em Transição tendem a não infringir as regras. O subteste Transição
avalia a compreensão das emoções, mais especificamente a mudança de intensidade e a
passagem de uma emoção para a outra. Essa capacidade parece estar ligada à capacidade
de discernimento do indivíduo. Esse resultado sugere que, assim como indivíduos com
alto escore em Transição conseguem discernir as emoções, eles também tendem a ter esse
discernimento quanto às regras, bem como conseguem cumpri-las.
O subteste Administração obteve maior número de correlações com os itens da
Escala 1. Essas correlações foram com os itens Disciplina, Resignação e Humildade, todas
positivas, sugerindo que indivíduos com escore alto em Administração tendem a apresentar
esses comportamentos. Esses itens estão relacionados à capacidade de gerenciar e controlar
Aletheia 25, jan./jun. 2007
75
as próprias emoções, sendo esta a capacidade avaliada pelo subteste Administração,
motivo pelo qual, possivelmente, observaram-se as correlações mencionadas. Esses
resultados são condizentes com o que foi encontrado por Cobêro (2004).
Com relação à Escala 2, não foi possível calcular as correlações em razão do número
muito reduzido de ocorrências. Por meio de uma análise de freqüência, constatou-se que
apenas um indivíduo apresentou ocorrência nos itens selecionados para análise. Isso
então inviabilizou o cálculo das correlações. A Tabela 3 mostra as correlações obtidas
entre o escore geral da Escala 1 da avaliação de desempenho e o escore total do
instrumento, agregando as duas com as medidas de inteligência emocional. Uma vez que
não foi possível calcular correlações com a Escala 2, devido à insuficiência de dados, os
resultados referentes a esta escala foram excluídos da Tabela 3.
Tabela 3 – Correlação dos subtestes com a avaliação geral do desempenho na Escala 1.
Subtestes do MSCEIT
Escala 1
Faces
-0,00
Paisagem
0,23(*)
Facilitação
-0,17
Sensação
0,06
Transição
-0,14
Mistura
-0,04
Administração
0,15
Relações
-0,17
* p<0,05;
A Tabela 3 mostra as correlações entre os subtestes do MSCEIT e o escore
geral da Escala 1. Como pode ser observado o subteste Paisagem foi o único que se
correlacionou significativamente com os escore geral da Escala 1 (r = 0,23 p<0,05).
Esse resultado indica que as pessoas com maior capacidade de percepção emocional
tendem a receber avaliações mais positivas. O que chamou a atenção foi a ausência
de correlação entre o subteste Administração e o escore geral da Escala 1. Quando
esse subteste é analisado com os itens da Escala 1 observam-se três correlações
significativas, portanto seria esperado encontrar uma correlação significativa desse
subteste com a Escala 1. Para analisar melhor esse dado formaram-se duas novas
variáveis, uma somando os itens da Escala 1 (EG1b) e outra somando somente os
itens que se correlacionaram com o subteste Administração (EG1a). A Tabela 4
apresenta as correlações encontradas.
Tabela 4 – Correlação entre o subteste Administração e os novos escores da Escala 1.
Novas variáveis da escala 1
Administração
EG1a
0,367**
EG1b
0,08
* p<0,05; ** p<0,01
76
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Como pode ser observado houve apenas correlação significativa entre o
subteste Administração e a variável EG1a, o que já era esperado, pois essa variável é a
soma de itens que se correlacionam com esse subteste. Contudo a nova variável
obteve correlação de maior magnitude. Para explorar em mais detalhes essas associações
foi criado um gráfico de dispersão das correlações do subteste Administração com as
duas variáveis (ver Figura 1).
12,00
11,00
10,00
EG1a
9,00
8,00
7,00
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
Subteste Administração
80,00
70,00
EG1b
60,00
50,00
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
Subtestes Administração
Figura 1 – Diagramas de dispersão dos escores no subteste Administração com os dois escores de
desempenho: um com a soma de todos os itens (inferior, EG1a) e outro com um subconjunto dos itens
(superior, EG1b).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
77
Observando-se os dois gráficos da Figura 1, pode-se perceber que, quando
todos os itens da Escala 1 são somados, os escores se aproximam do teto da escala,
prejudicando a diferenciação entre bom e mau desempenho em quem demonstra
maior capacidade no subteste Administração. Isso é explicado porque realmente a
média da Escala 1 foi alta. Sabe-se, porém, que há pessoas com escores não muito
bons na Escala 1. Então, quando se separam os itens que se correlacionam com o
subteste Administração pode-se visualizar que existem dois grupos, um com escores
altos e outro com escores baixos nesses itens. Com isso, apesar do subteste
Administração não apresentar correlação com a escala geral 1, este subteste parece
ser um indicador considerável de bom desempenho quando se considera um
subconjunto de itens dessa escala.
A capacidade da inteligência emocional em prever o desempenho profissional
ainda é pouco estudada no meio científico. Existem somente duas referências, uma que
utiliza medida de auto-relato da inteligência emocional – EJI (Bedwell, s.d.) - e outra
que trabalha com o MSCEIT (Cobêro, 2004). Na pesquisa de Bedwell, o autor encontrou
correlações positivas e significativas entre Avaliação de Desempenho geral e as escalas
do EJI: Consciência emocional, identificação das emoções; Usando a emoção para
resolver problemas; e Expressão das emoções. Nessa pesquisa também foi averiguado
que inteligência emocional, quando comparada com personalidade, possui validade
incremental. Os resultados obtidos por Cobêro (2004) indicaram correlações positivas
e significativas entre Avaliação de Desempenho Geral e o subteste Administração,
bem como com a faceta Gerenciamento das emoções, que é composta por este subteste
e pelo subteste Relações emocionais.
Os dados verificados na presente pesquisa corroboram, em parte, os dados das
pesquisas anteriores (Bedwell, s.d. e Cobêro, 2004). No atual trabalho foram encontradas
correlações entre os subtestes Paisagem com Autocontrole e Agressões físicas,
Facilitação com Companheirismo, Transição com Negligência, Administração com
Disciplina, Resignação e Humildade. Comparando-se esses dados com a pesquisa de
Bedwell, dados semelhantes foram encontrados com relação aos subtestes Paisagem,
Facilitação e Transição, pois estes avaliam identificação e expressão das emoções,
uso da emoção para facilitar o pensamento e consciência emocional, respectivamente.
Com a pesquisa de Cobêro (2004) o dado que se confirmou neste trabalho foi a
associação entre desempenho e o subteste Administração.
A idéia de que inteligência emocional é fundamental para o sucesso no trabalho
não é muito destacada pelos autores Mayer e Salovey (1997), que colocam que para
alguns profissionais essa capacidade pode contribuir mais; entretanto, dependendo
da profissão exercida, a inteligência emocional pode não ter importância e eventualmente
até se tornar uma desvantagem. No início do trabalho foi ressaltado que a profissão de
policial militar requer maior inteligência emocional, principalmente nas capacidades
relacionadas à faceta Gerenciamento das emoções, porque são profissionais que estão
em contato diariamente com situações perigosas e precisam se preocupar com a
segurança de si mesmos e de outras pessoas, o que pressupõe então o zelo e a
eficiência, que podem ser afetados por flutuações extremas das emoções. Essa profissão
78
Aletheia 25, jan./jun. 2007
também exige contato pessoal permanente. Segundo Bedwell (s.d.), a inteligência
emocional parece ser mais relevante para trabalhos com intensa ou crônica necessidade
de relacionamento interpessoal.
O subteste Administração das emoções, que avalia a capacidade do
Gerenciamento das emoções, apresentou maior número de correlações com os itens
da Escala 1 de Avaliação de Desempenho e todas positivas. Pode-se perceber,
portanto, que o Gerenciamento das emoções é um bom preditor do desempenho
profissional dos policiais. O subteste Paisagem apresentou correlação moderada
com o item Autocontrole e correlação baixa e negativa com o item Agressão física.
Essa associação mostra, mais uma vez, o controle emocional que os policiais
necessitam ter, sendo que a percepção das emoções em si e nos outros colabora para
que ocorra esse controle. Pode-se constatar que a inteligência emocional,
especialmente as capacidades de Administração e Percepção das emoções parecem
estar associadas ao bom desempenho em policiais.
Conclusão
Este estudo foi desenvolvido com a finalidade de investigar evidência de validade
na relação com outra variável para o teste de inteligência emocional MSCEIT. O objetivo
do trabalho foi verificar evidência de validade teste-critério para o MSCEIT verificando
se esse teste era capaz de prever o desempenho de policiais. Diante dos dados obtidos
pode-se perceber que o controle das emoções é realmente uma capacidade importante
para os policiais militares no desempenho de suas funções. Com isso nota-se que foram
encontrados dados positivos evidenciando a validade teste-critério para o MSCEIT.
É importante lembrar que todas as análises foram feitas a partir dos subtestes de
inteligência emocional do MSCEIT e que de todas as correlações encontradas com a
Avaliação de Desempenho foram observadas para subtestes específicos e nem sempre
os mesmos subtestes. Então, as evidências de validade encontradas não dizem respeito
à inteligência emocional como um todo, mas sim aos subtestes que avaliam uma ou
outra capacidade mais específica da inteligência emocional.
Ressalta-se que seria interessante fazer pesquisas entre MSCEIT e grupos
extremos em relação à Avaliação de Desempenho, pois na amostra do presente estudo
não foi possível encontrar pessoas com avaliação de baixo desempenho. Portanto, a
Avaliação de Desempenho apresentou uma restrição de amplitude de variação, fator
que pode ter afetado a magnitude dos coeficientes de correlação. No geral a grande
maioria dos sujeitos foi avaliada com bom desempenho, o que limita a identificação
das possíveis associações entre inteligência emocional e desempenho.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Recebido em novembro de 2006
Aceito em fevereiro de 2007
Monalisa Muniz é doutoranda em Avaliação Psicológica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade São Francisco e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP.
Ricardo Primi é psicólogo; Doutor em Psicologia; professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade São Francisco e pesquisador financiado pela FAPESP e CNPq.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 25, jan./jun. 2007
81
Aletheia, n.25, p.82-96, jan./jun. 2007
A qualidade da amizade: adaptação
e validação dos questionários McGill
Luciana Karine de Souza
Claudio Simon Hutz
Resumo: O objetivo deste estudo é adaptar e validar (validade de construto) os Questionários
McGill de Amizade para uso com população adulta no Brasil. Estes instrumentos avaliam a
qualidade da amizade através da percepção do indivíduo sobre funções do amigo, satisfação com
a amizade, e sentimentos positivos e negativos relacionados ao amigo. As análises mostraram
estruturas fatoriais equivalentes para as seis escalas do Questionário das Funções da Amizade,
para a Escala de Satisfação com a Amizade e para a Escala de Sentimentos Negativos com relação
ao Amigo, consideradas cargas fatoriais, adequação dos itens e consistência interna. A Escala dos
Sentimentos Positivos com relação ao Amigo avaliará melhor os sentimentos positivos com a
retirada de três itens que não são semanticamente semelhantes aos demais.
Palavras-chave: amizade, escalas, adultos.
Friendship quality: Construct Validity of McGill Questionnaires
Abstract: This study presents the construct validity of the McGill Friendship Questionnaires
for use with adults in Brazil. These assessments evaluate friendship quality via individual’s
perceptions of the functions of a friend, friendship’s satisfaction, and positive and negative
feelings related to the friend. Analyses showed equivalent factor structures for the six scales
of the Friendship Functions Questionnaire, for the Friendship Satisfaction Scale, and the
Negative Feelings towards the Friend Scale, considering factor loadings and item adequacy in
the scales, as well as scales’ internal consistency. The Positive Feelings towards the Friend
Scale will better evaluate the positive feelings without three items that are not semantically
similar to the others.
Keywords: friendship, scales, adults.
Introdução
O objetivo deste estudo é adaptar e validar (validade de construto) os
Questionários McGill de Amizade para uso com população adulta no Brasil. Estes
instrumentos avaliam a qualidade da amizade através da percepção do indivíduo
sobre determinadas funções que um amigo preenche, a satisfação com o
relacionamento de amizade, e os sentimentos positivos e negativos relacionados ao
amigo. A literatura empírica dispõe de diferentes medidas para acessar a percepção
dos relacionamentos de amizade, como questionários, escalas e entrevistas (Furman,
1996). Os Questionários McGill foram desenvolvidos com base nos instrumentos
mais utilizados, procurando manter os aspectos da amizade mais investigados nos
últimos 20 anos.
82
Aletheia 25, jan./jun. 2007
A amizade é um relacionamento significativo para as pessoas e, assim como
o casamento e a família, é promotora de felicidade e de satisfação de vida mediante
recompensas instrumentais, apoio emocional e companheirismo (Argyle, 2001).
Estes aspectos estão presentes nos estudos sobre a relação entre amizade e
felicidade, e na literatura empírica referencial sobre o tema (Bukowski, Newcomb &
Hartup, 1996).
Há requisitos importantes para a formação e a manutenção de uma amizade. Um
deles é a real disposição para investir tempo livre na amizade “sem pressões ou restrições
externas ao relacionamento” (Asher, Parker & Walker, 1996, p.389), implicando em
interações além dos contextos normais de contato, fomentando comprometimento
mútuo e interdependência. O companheirismo é outra característica fundamental entre
amigos, abrangendo o divertimento obtido um com o outro e com atividades
compartilhadas, desde a brincadeira na infância até conversas sobre assuntos íntimos
na adultez. A reciprocidade, igualmente importante na amizade, implica em ser responsivo
às necessidades e interesses um do outro. Outro aspecto essencial é a intimidade,
expressa através de revelações recíprocas (ou abertura recíproca), isto é, “revelar
experiências pessoais privadas e pensamentos e sentimentos muito íntimos” (Asher &
cols., 1996, p.391). Igualmente relevantes à formação e manutenção da amizade são:
expressão adequada de cuidado, preocupação, admiração e afeição com relação ao
amigo, envolvendo validação pessoal e contribuindo para o senso de autovalor;
fornecimento de ajuda, aconselhamento, conforto e apoio emocional; demonstração
de confiança através de disponibilidade e lealdade; e estratégias de resolução de
conflito eficazes, incluindo o perdão (Asher & cols.).
Fehr (1996) realizou uma compilação de cinco definições de amizade mais utilizadas,
conceituando-a como “um relacionamento pessoal e voluntário, que propicia intimidade
e ajuda, no qual as duas partes gostam uma da outra e buscam a companhia uma da
outra” (p.7). Nesta definição, assim como na de Asher e cols. (1996), também é possível
identificar aspectos sociais (companheirismo), instrumentais (ajuda, trocas) e afetivos
(intimidade, apreço mútuo), fundamentais para as amizades.
A amizade, enquanto relacionamento, possui aspectos negativos, visto que
são naturais, inevitáveis e importantes para seu desenvolvimento e manutenção
(Duck & Perlman, 1985). Nesta direção, ciúme, desapego, preocupação, submissão e
conflito (Mendelson, 1995), coerção, distanciamento emocional (Bukowski & cols.,
1996), e ansiedade e rivalidade (Maeda & Ritchie, 2003) vêm sendo investigados.
Mendelson e Aboud (1999, 2003) identificaram seis funções conceitualmente
distintas da amizade: companheirismo estimulante, ajuda, autovalidação, intimidade,
aliança confiável e segurança emocional. O companheirismo estimulante refere-se ao
engajamento conjunto em atividades agradáveis, divertidas e excitantes. Esta função
destaca-se em todas as faixas etárias (Asher & cols., 1996; Blieszner & Adams, 1992;
Bukowski & cols., 1996; Fehr, 1996). Embora as pesquisas têm focalizado na realização
de atividades em conjunto, sem avaliar a presença de divertimento (Buhrmester, 1990;
Bukowski, Hoza & Boivin, 1994), Mendelson e Aboud (1999, 2003) consideram
importante que a interação seja divertida, agradável e excitante (Asher & cols., 1996;
Jones, 1991; Wright, 1985).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
83
A ajuda aborda o fornecimento de orientação, auxílio, informação,
aconselhamento e outras formas concretas de ajuda para alcançar objetivos, sem
necessariamente envolver reciprocidade (Jones, 1991). Esta qualidade tem sido tratada
tanto individualmente (Bukowski & cols., 1994) como na combinação com apoio
emocional (Asher & cols., 1996; Bukowski & cols., 1994). Entretanto, a dimensão
instrumental, ou concreta, da ajuda é a mais utilizada, em oposição à dimensão afetiva
de natureza abstrata. Aspectos intangíveis de ajuda e apoio emocional e
encorajamento são abordados em outras funções da amizade, como segurança
emocional e autovalidação. A autovalidação está associada à percepção de alguém
que encoraja, escuta, tranqüiliza, e ajuda a manter uma auto-imagem como uma pessoa
competente e digna, o que é “freqüentemente alcançado através de comparação
social e validação consensual das características e crenças próprias” (Asher & cols.,
1996, p.3). Enquanto Asher e cols. (1996) salientam a autovalidação ao discutirem as
principais características das amizades, outros autores têm estudado aspectos
próximos, como “apoio ao ego e afirmação de si” (Wright, 1985), e “avaliação refletida”
(Bukowski & cols., 1994).
Intimidade é uma qualidade da amizade que diz respeito à sensibilidade aos
estados e necessidades do outro, proporcionando um contexto de aceitação no qual
há abertura para a exposição e expressão honestas de pensamentos, sentimentos e
informações pessoais sobre si (Mendelson & Aboud, 2003). Esta definição vai à mesma
direção de Asher e cols. (1996), ao passo que outros autores incluem o companheirismo
na definição de intimidade (Buhrmester, 1990). Aliança confiável envolve estar apto a
contar com a contínua disponibilidade e lealdade do amigo, ressaltada por Asher e
cols. (1996) como confiança. Bukowski e cols. (1994) definem a função de aliança como
abertura sobre si mesmo (self-disclosure), abordada por Mendelson e Aboud (2003)
na função de intimidade. A sexta e última função, segurança emocional, refere-se ao
fornecimento de consolo e confiança em situações novas ou ameaçadoras. Apesar de
sua relevância, apenas Wright (1985) a aborda em seu modelo, qualificando o amigo
como alguém que não é ameaçador e que transmite segurança ao não trair a confiança
ou ficar chamando a atenção do amigo por suas fraquezas.
Além das seis funções da amizade, sentimentos positivos e negativos associados
ao amigo e a satisfação com a amizade também foram foco de Mendelson e Aboud
(2003) (Mendelson, 1995). Para dar conta da mensuração de todos estes aspectos
(funções, sentimentos e satisfação), os autores desenvolveram três questionários –
os McGill Friendship Questionnaires (Questionários McGill de Amizade) – MFQs
(Mendelson, 1995; Mendelson & Aboud, 1999, 2003).
O MFQ-Friendship Functions (MFQ-FF) acessa o grau em que um amigo preenche
as funções da amizade através de seis escalas, cada uma correspondendo a uma função:
Ajuda, Aliança Confiável, Autovalidação, Companheirismo, Intimidade e Segurança
Emocional. Mendelson e Aboud (2003) apresentaram o MFQ-FF em um estudo com
227 universitários canadenses. Os participantes que relataram uma amizade mais longa
avaliaram o melhor amigo com escore mais alto nas funções da amizade (exceto
Segurança Emocional) do que respondentes que indicaram melhores amizades
84
Aletheia 25, jan./jun. 2007
relativamente mais recentes. Comparadas aos homens, as mulheres atribuíram escores
mais elevados à sua melhor amizade nas seis funções propostas pelos autores, na
mesma direção de investigações anteriores (Wright, 1988).
O MFQ-Respondent’s Affection (MFQ-RA) é composto por duas escalas, uma
escala de satisfação com a amizade (sete itens), e uma de sentimentos positivos com
relação ao amigo (nove itens). Os 16 itens do MFQ-RA são sentenças positivas
sobre sentimentos com relação a um amigo específico (p.ex., gostar do amigo,
importar-se com ele) ou ao relacionamento de amizade com este amigo (percebê-la
como boa, forte, provedora de satisfação). No estudo citado anteriormente
(Mendelson & Aboud, 2003), observou-se que indivíduos com amizades mais antigas
apresentaram mais satisfação com a amizade e mais sentimentos positivos com relação
ao amigo. Além disso, os sentimentos positivos das mulheres pela melhor amiga
foram mais elevados do que dos homens por seus amigos de mesmo sexo, e a satisfação
feminina com a amizade foi levemente maior. Observou-se que quanto mais o
participante atribuiu sentimentos positivos pelo amigo e manifestou maior satisfação
com a amizade, maior foi o grau de preenchimento pelo amigo das seis funções da
amizade e maior a duração do relacionamento (Mendelson & Aboud, 2003).
O MFQ-Negative Feelings (MFQ-NF) é composto por 18 itens sobre
sentimentos negativos (p.ex., sentir-se incomodado pelo amigo, sufocado, inibido)
(Mendelson, 1995). Koh, Mendelson e Rhee (2003) compararam os sentimentos
negativos e positivos com relação a um melhor amigo de mesmo sexo em universitários
canadenses e coreanos, utilizando o MFQ-NF e o MFQ-RA. Os autores retiraram
quatro itens do MFQ-NF em virtude de os estudantes coreanos não os terem
considerado, mediante comentários durante o preenchimento dos questionários,
como aspectos negativos da amizade. Constatou-se, nas duas amostras estudadas,
uma relação inversa entre sentimentos negativos e sentimentos positivos com relação
ao amigo.
Este estudo apresenta a validação para uso no Brasil dos Questionários
McGill de Amizade – MFQs. Estes questionários se propõem a abordar a
percepção da qualidade da amizade em adultos mediante a análise de seis funções
que o amigo preenche, da satisfação com a amizade, e dos sentimentos positivos
e negativos associados ao amigo. A validação dos MFQs disponibilizará um
conjunto de instrumentos que proporcionam abordar o construto estudado de
forma rápida, concisa, abrangente e prática, oportunizando a realização de
investigações sobre a amizade em adultos no Brasil, abrandando a lacuna existente
na literatura empírica na área.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 682 universitários, 426 mulheres e 256 homens. A faixa
etária variou de 18 a 58 anos (média de 23,2 anos; DP = 6,57). Do total de participantes,
Aletheia 25, jan./jun. 2007
85
93% eram estudantes de cursos variados de uma instituição pública e 7% de uma
instituição privada, ambas situadas em Porto Alegre (RS). Quanto ao estado civil,
observou-se, na amostra feminina: 86,9% de solteiras; 10,8% de casadas ou envolvidas
em união estável; 1,4% de separadas, divorciadas ou viúvas; e 0,9% que não informaram
sua situação civil. Na amostra masculina, o estado civil distribuiu-se da seguinte forma:
87,5% de solteiros; 10,9% de casados ou em união estável; 0,8% de separados,
divorciados ou viúvos; e 0,8% não informaram a situação civil atual. A amostragem foi
obtida por conveniência: professores universitários foram contatados para que suas
turmas fossem convidadas a participar do trabalho. O número de participantes foi
calculado para garantir power de pelo menos 0,75 em todas as análises inferenciais.
Este é um número adequado para fins de análise fatorial, considerando o número de
itens nos instrumentos.
Instrumentos
O MFQ-Friendship Functions (MFQ-FF) (Questionário das Funções da Amizade
– QFA) é composto por seis escalas, cada uma abordando uma função que a pessoa
identifica em seu amigo: Ajuda, Aliança Confiável, Autovalidação, Companheirismo,
Intimidade e Segurança Emocional. Cada escala é formada por cinco itens – sentenças
positivas sobre como o amigo preenche cada função da amizade: “___ me ajuda
quando preciso”; “___ me faz rir”. Uma análise fatorial com rotação oblíqua nos 30
itens do MFQ-FF para a extração de seis fatores revelou problemas com os itens de
Segurança Emocional (estes itens não carregaram em qualquer dos fatores); uma
nova análise sem estes itens confirmou cinco fatores, explicando 70,4% da variância.
A consistência interna das seis escalas (inclusive Segurança Emocional) variou de
0,84 a 0,90 (alpha de Cronbach) (Mendelson & Aboud, 2003).
O MFQ-Respondent’s Affection (MFQ-RA) é composto por duas escalas, uma
Escala de Satisfação com a Amizade (ESA), de sete itens, e uma Escala de Sentimentos
Positivos com relação ao Amigo (ESPA), composta por nove itens. Os itens das escalas
consistem em sentenças positivas sobre um amigo determinado ou sobre a amizade
com ele (“Eu gosto muito do ___” – ESPA; “Estou satisfeito com minha amizade com
___” – ESA). Uma análise fatorial com rotação oblíqua aplicada aos 16 itens do MFQRA gerou uma solução de dois fatores (explicando 75,3% da variância). O fator 1
agrupou os sete itens da ESA e um item da ESPA; os sete itens do ESA foram agrupados
como uma escala e os outros oito itens do ESPA foram agrupados como outra escala.
A consistência interna foi de 0,93 para a ESPA e de 0,96 para a ESA (alpha de Cronbach)
(Mendelson & Aboud, 2003).
O MFQ-Negative Feelings (MFQ-NF) – Escala de Sentimentos Negativos com
relação ao Amigo (ESNA) – é composto por 18 itens sobre sentimentos negativos
distribuídos em cinco fatores: conflito (quatro itens – “Sinto-me incomodado por ___”),
preocupação (três itens – “Sinto-me preocupado com ___), submissão (quatro itens –
“inibido por”), desapego (quatro itens – “inseguro com relação a”) e ciúmes (três itens
– “Sinto ciúmes de ___”). O MFQ-NF foi gerado mediante uma análise fatorial com
rotação oblíqua aplicada aos 18 itens que o compõem, resultando nos cinco fatores
86
Aletheia 25, jan./jun. 2007
mencionados (explicando 66,3% da variância). A consistência interna para cada fator
variou de 0,72 a 0,81; tomados todos os 18 itens, o alpha de Cronbach foi de 0,95
(Mendelson, 1995).
Nas instruções dos questionários pede-se que o indivíduo imagine o nome do
amigo no espaço indicado em cada item (p.ex., “Eu gosto muito do João”), indicando o
quão freqüentemente o amigo corresponde ao que a sentença afirma. É fornecida uma
escala Likert de nove pontos, dos quais cinco são ancorados (Mendelson & Aboud,
2003). Para a versão em português utilizaram-se apenas os pontos ancorados, visto
que a partir de quatro itens a escala Likert não é afetada em sua consistência interna,
o número de pontos mais utilizado é entre cinco e sete, e quanto mais “leve” a escala
(com menos pontos possível), melhor (Pasquali, 1999).
Procedimentos
A tradução dos questionários foi realizada pelos autores deste trabalho, ambos
bilíngües. Esta primeira versão foi apresentada e debatida com estudantes de
graduação e de pós-graduação, membros da equipe de pesquisa, com a finalidade de
conferir a compreensão da redação dos questionários. Estes alunos possuem
familiaridade, em diferentes níveis, com a língua inglesa falada na América do Norte.
Posteriormente os questionários foram submetidos à avaliação de um perito em
língua portuguesa, levando à alteração da redação de alguns itens das escalas. Em
seguida, a versão em língua portuguesa dos questionários foi traduzida novamente
para a língua inglesa (back-translation) e enviada a Morton Mendelson, autor dos
questionários, que aprovou a tradução dos itens. Finalmente, dois psicólogos
especialistas em relacionamentos com adultos avaliaram e aprovaram a versão em
língua portuguesa das escalas.
A aplicação dos questionários foi coletiva, durante um período de aula, na
universidade, na seguinte ordem: MFQ-FF, MFQ-RA e MFQ-NF. Antecedendo o MFQFF, os participantes preencheram questões sócio-demográficas, três questões sobre
amizades próximas e a indicação de uma melhor amizade. As questões sobre amizades
próximas serviram ao propósito de sensibilizar os participantes para uma seleção mais
refletida sobre a melhor amizade, cuja indicação era pedida no item seguinte. A aplicação
dos instrumentos, bem como o preenchimento do termo de consentimento livre e
esclarecido e o recolhimento de todo o material ocorreu por um período aproximado de
40 minutos.
Resultados
Realizou-se uma análise fatorial exploratória utilizando-se os métodos de extração
dos componentes principais e de rotação Oblimin com normalização Kaiser, visto que
os fatores dos questionários representam construtos correlacionados. Determinou-se
como critério para a determinação dos fatores apenas aqueles que apresentaram
eigenvalue acima de um (Kaiser, 1960). As análises permitiram o exame dos itens de
cada um dos três questionários (MFQ-FF, MFQ-RA e MFQ-NF) com relação à
Aletheia 25, jan./jun. 2007
87
distribuição nos fatores, às cargas fatoriais, ao conteúdo e à consistência interna
(alpha de Cronbach) da(s) escala(s) que compõe(m) os questionários.
MFQ-FF: Questionário das funções da amizade (QFA)
A análise fatorial obteve uma solução de seis fatores, explicando 57,64% da
variância. A tabela 1 apresenta a distribuição dos itens nos seis fatores com as
respectivas cargas fatoriais, médias, desvios padrão, eigenvalues, porcentagem
da variância explicada e alpha de Cronbach. Foram considerados os itens com
cargas acima de 0,40; itens originais com cargas inferiores são apresentados em
negrito, e itens com cargas acima de 0,40 que carregaram em fatores não esperados
(diferentes do original) encontram-se em itálico, e não foram incluídos nos cálculos
efetuados.
88
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Tabela 1 – Matriz fatorial dos itens das escalas do Questionário das Funções da Amizade
Fatores
Itens
1
30
,71
8
,69
10
,66
4
,63
3
,55
2
3
4
5
2
,86
22
,79
7
,75
5
,28
,45
15
,21
,54
11
,76
26
,75
20
,69
19
,65
9
,65
6
,71
29
,67
13
,58
17
,57
23
,48
16
,69
14
,65
6
1
,58
25
,40
,44
28
,21
,42
27
,76
21
,75
24
,71
12
,66
,39
18
,42
Média
4,24
4,34
4,72
4,45
4,14
4,26
DP
0,67
0,61
0,43
0,50
0,66
0,64
eigenvalues
9,25
2,18
1,82
1,47
1,40
1,16
% variância explicada
30,84
7,25
6,08
4,90
4,67
3,86
Alpha Cronbach
0,81
0,77
0,79
0,73
0,77
0,81
Aletheia 25, jan./jun. 2007
89
Como se pode observar na tabela, a análise fatorial apresentou uma estrutura
equivalente à original, com seis fatores (fator 1: Segurança Emocional; fator 2:
Intimidade; fator 3: Aliança Confiável; fator 4: Companheirismo; fator 5: Ajuda; fator 6:
Autovalidação). Ao contrário do estudo de Mendelson e Aboud (2003), a escala de
Segurança Emocional (fator 1) não apresentou problemas com seus itens originais. O
item 18 (“___ faz com que eu me sinta especial.”), que carregou neste fator, não se
apresenta adequado, em termos semânticos, a esta escala. Assim, optou-se por agrupálo com os demais itens da escala de Autovalidação (fator 6), a qual pertence
originalmente. Ainda com respeito ao fator 6, dois itens originários da escala de Ajuda
carregaram nele (item 25: “___ me ajuda quando estou me esforçando para terminar
algo.”; e item 28: “___ me mostra como fazer melhor as coisas.”), mas não possuem
conteúdo compatível com a escala de Autovalidação. Além disso, o item 25 carregou
também no fator 5, junto aos demais itens da escala de Ajuda, da qual faz parte. Assim,
optou-se por manter os itens 25 e 28 junto aos demais itens da escala de Ajuda (fator
5). Provavelmente o que tenha aproximado o item 28 da escala de Autovalidação tenha
sido a palavra “melhor”, o que pode ter associado o item a uma idéia de progresso
pessoal com a ajuda do amigo, na direção de fortalecer sua auto-estima positiva.
Dois itens da escala de Intimidade (item 5: “___ sabe quando estou chateado”;
e item 15: “___ sabe quando algo me incomoda”) carregaram no fator 5, junto aos itens
de Ajuda. Contudo, estes itens não são semanticamente semelhantes aos itens da
escala de Ajuda. Dessa forma, optou-se por mantê-los junto aos itens originais da
escala de Intimidade.
Assim, em função tanto das cargas fatoriais como da adequação semântica entre
itens e escalas, optou-se por manter os itens junto às escalas originais, passando-se
ao cálculo da consistência interna das seis escalas. O alpha de Cronbach obtido para
as escalas variou de 0,73 a 0,81, considerados satisfatórios. O cálculo do alpha para os
fatores obtidos com todos os itens que carregaram acima de 0,40, sem considerar a
adequação do conteúdo dos itens às escalas, não ultrapassaria 0,83, o que também
justifica a opção por manter a configuração original das seis escalas.
MFQ-RA: Escalas de Satisfação com a Amizade (ESA) e de Sentimentos Positivos
com relação ao Amigo (ESPA)
Previamente à descrição da análise da estrutura do MFQ-RA, cabe relatar que
muitos participantes apresentaram dificuldade na compreensão do item 8 (“Eu prefiro
___ à maioria das pessoas que conheço.”), que compõe a Escala de Sentimentos
Positivos com relação ao Amigo (ESPA). A partir desta observação, entende-se que
este item deva ser acompanhado com maior atenção nas análises que seguem.
Tomando-se conjuntamente os 16 itens do MFQ-RA – que abarca a Escala de
Satisfação com a Amizade (ESA) e a Escala de Sentimentos Positivos com relação ao
Amigo (ESPA), obteve-se uma solução de três fatores (satisfação, sentimentos
positivos I, e sentimentos positivos II), explicando 59,58 % da variância. A tabela 2
apresenta a distribuição dos itens nos fatores com as respectivas cargas fatoriais,
eigenvalues e porcentagem da variância explicada. Foram considerados os itens
com cargas acima de 0,40.
90
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Tabela 2 – Matriz fatorial dos 16 itens das escalas do Questionário MFQ-Respondent’s Affection.
Fatores
Itens
1
Satisfação
5
,94
1
,91
15
,82
6
,65
11
,57
4
,55
9
,50
10
,40
13
2
Sentimentos Positivos I
3
Sentimentos Positivos II
,49
,81
7
,79
16
,68
12
,58
2
,51
3
,43
,45
8
,63
14
,67
eigenvalues
6,52
1,67
1,34
% variância explicada
40,77
10,43
8,37
A análise fatorial não apoiou uma estrutura com dois fatores, encontrada no trabalho
de Mendelson e Aboud (2003). Três fatores foram extraídos. Ainda assim, todos os itens
da Escala de Satisfação com a Amizade (ESA) carregaram no fator 1. Contudo, o item 9
(“Me sinto próximo de ___.”), que se apresentou ambíguo, ou seja, carregou tanto no
fator 1, junto aos itens de satisfação com a amizade, como no fator 3, aproxima-se
semanticamente do que seria a escala de Sentimentos Positivos com relação ao Amigo
(ESPA). Assim, decidiu-se por desconsiderar a carga do item 9 no fator 1. O alpha de
Cronbach para os sete itens da ESA foi de 0,89, demonstrando boa consistência interna.
Os itens da Escala de Sentimentos Positivos com relação ao Amigo (ESPA)
distribuíram-se em dois fatores (fatores 2 e 3). Analisando-se o conteúdo destes itens,
observou-se que dois itens do fator 2 – itens 7 (“Quero que continuemos amigos por muito
tempo”) e 13 (“Espero que ___ e eu continuemos amigos”) – diferenciam-se dos demais
por fazerem referência a uma preocupação com a continuidade da amizade, isto é, com o
futuro do relacionamento. Já os outros itens do fator 2 (item 12: “Fico feliz por ___ ser meu
amigo”; item 16: “Eu gosto de ter ___ como um amigo”), embora também façam menção à
relação entre amigos, aproximam-se mais semanticamente dos itens que carregaram fator 3
por considerarem sentimentos de gostar e de felicidade. A partir disso, foi realizada uma
nova análise fatorial com os itens dos fatores 2 e 3 (originários da ESPA), retirando-se os
dois itens que abordam o futuro da relação (itens 7 e 13). A análise apresentou ainda dois
Aletheia 25, jan./jun. 2007
91
fatores, com alpha de 0,65, indicando a retirada do item 8 (“Eu prefiro ___ à maioria das
pessoas que conheço”) para a obtenção de um alpha minimamente satisfatório (0,71). Num
cálculo preliminar do alpha para todos os nove itens originais da ESPA, este mesmo item
8 quando retirado elevou o coeficiente de fidedignidade da escala de 0,68 para 0,75. Além
disso, a observação da dificuldade dos participantes em compreenderem o referido item,
como mencionado anteriormente, também colabora para a justificativa da retirada do item
da escala. Assim, uma nova análise fatorial com os itens 2, 3, 9, 12, 14 e 16 apresentou um
único fator, representando de modo mais adequado a Escala de Sentimentos Positivos com
relação ao Amigo. As cargas fatoriais variaram de 0,55 a 0,76 com eigenvalue 2,83, explicando
47,28% da variância. A média dos itens ficou em 4,78 (DP = 0,33). O alpha de Cronbach foi
de 0,71. Decidiu-se por esta estrutura em função da pertinência entre itens e fator, bem
como da consistência interna obtida, considerada satisfatória.
MFQ-NF: Escala de Sentimentos Negativos com relação ao Amigo (ESNA)
A análise fatorial obteve uma estrutura de cinco fatores, equivalente à obtida para
o instrumento original (Mendelson, 1995) (fator 1: conflito; fator 2: preocupação; fator 3:
ciúme; fator 4: desapego; e fator 5: submissão), explicando 58,88% da variância. A tabela
3 apresenta a distribuição dos itens nos fatores com as respectivas cargas fatoriais,
eigenvalues e porcentagem da variância explicada. Foram consideradas as cargas acima
de 0,40. São destacadas, em negrito, as cargas de itens que apresentaram valor abaixo do
mínimo estipulado em seus fatores originais.
Tabela 3 – Matriz fatorial do Questionário de Sentimentos Negativos.
Fatores
Itens
12
1
,76
5
,75
10
,49
,39
3
2
15
,75
17
,75
16
,54
7
3
4
,86
8
11
,40
,84
,37
1
,87
2
6
,73
,29
,52
14
,28
4
,40
,77
13
,65
18
,43
9
92
5
,61
,39
,44
eigenvalues
5,25
1,72
1,42
1,18
1,02
% variância explicada
29,18
9,58
7,90
6,53
5,68
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Como se pode observar na tabela 3, o item 11 (“Sinto ciúmes de ___”) carregou
no fator 2, junto aos itens sobre sentimentos de preocupação. Todavia, este item não
possui conteúdo semântico similar aos itens do fator. O item 9 (“Sinto-me inibido por
___”), da mesma forma, carregou no fator 3 (itens sobre ciúmes), mas se aproxima
semanticamente do fator 5, junto aos itens que representam sentimentos de submissão.
Já quanto ao item 3 (“Sinto-me incomodado por ___”) carregou no fator original junto
aos itens de sentimentos de conflito, com carga apropriada ao fator.
O item 6 (“Sinto-me insatisfeito com ___”), originalmente apresenta-se junto aos
itens sobre o sentimento de desapego (item 1: “Sinto-me distante de ___”; item 2:
“ambivalente”; e item 14: “inseguro”). Contudo, na análise efetuada o referido item
carregou no fator 1 junto aos itens de sentimentos de conflito (“incomodado”, “em
desacordo”, “ofendido” e “com vontade de discutir”). Possivelmente o item 6 foi
associado a estes itens visto que estes despertam mais o sentimento negativo de
insatisfação do que os demais itens de desapego, que possuem conteúdo mais
associado a um distanciamento, ou uma incerteza com relação ao que a pessoa sente
pelo amigo. Nesta mesma direção, o item 14 (“inseguro”), que carregou no fator 5 com
os itens de sentimentos de submissão (“controlado”, “inibido”, “sufocado” e
“dependente”), não possui conteúdo compatível com estes itens, que assinalam
marcadamente sentimentos de controle e dependência, e portanto será mantido no
fator 4 (desapego).
A análise da consistência interna de cada um dos fatores, conforme a distribuição
proposta para os itens (com o item 6 incluído no fator 1, junto aos demais itens sobre
conflito), revelou índices baixos de fidedignidade (alpha’s entre 0,58 e 0,76). O alpha
também seria baixo caso fosse mantida a configuração original dos fatores segundo o
estudo de Mendelson (1995) (entre 0,56 e 0,72), isto é, com o item 6 no fator 4
(sentimentos de desapego). Além disso, são poucos itens em cada fator (apenas três
ou quatro itens). No entanto, a escala apresenta boa consistência interna quando
analisada na totalidade de seus itens (alpha de 0,84). Assim, entende-se que os 18
itens da Escala de Sentimentos Negativos podem ser considerados em conjunto para
avaliar os sentimentos negativos associados ao amigo.
Discussão
O objetivo deste estudo foi adaptar e validar (validade de construto) as escalas
que compõem os Questionários McGill de Amizade, e que avaliam a percepção das
funções que um amigo preenche, os sentimentos positivos e sentimentos negativos
associados ao amigo, e a satisfação com a amizade. Não há instrumentos para a avaliação
da percepção da amizade em adultos no Brasil. Apenas três estudos sobre amizade na
adultez foram localizados mediante busca em periódicos científicos de Psicologia, bases
de dados eletrônicas nacionais, catálogo de dissertações e teses da CAPES, currículos
Lattes, e acervo eletrônico das bibliotecas das principais universidades públicas e
privadas do país. Estes trabalhos utilizaram fundamentalmente entrevistas, com objetivos
e métodos bem distintos. Ainda assim, características da amizade como abertura, confiança,
Aletheia 25, jan./jun. 2007
93
companheirismo, intimidade, apoio emocional e ajuda destacaram-se nos dados destes
trabalhos (Erbolato, 2001; Kipper, 2003; Rezende, 2002), o que vai ao encontro da literatura
empírica na investigação da qualidade da amizade (Asher e cols., 1996; Blieszner &
Adams, 1992; Bukowski e cols., 1994; Bukowski e cols., 1996; Fehr, 1996; Furman, 1996;
Mendelson & Aboud, 1999, 2003).
As análises mostraram estruturas fatoriais equivalentes para as seis escalas do
Questionário das Funções da Amizade (QFA), para a Escala de Satisfação com a Amizade
(ESA) e para o Questionário de Sentimentos Negativos com relação ao Amigo (ESNA),
consideradas as cargas fatoriais e a adequação dos itens nas escalas, bem como a
consistência interna das mesmas. A Escala dos Sentimentos Positivos com relação ao
Amigo (ESPA), no entanto, avaliará melhor os sentimentos positivos com a retirada de
três itens que não são semanticamente semelhantes aos demais. Assim, embora
Mendelson e Aboud (2003) tenham tratado a ESPA como unifatorial com seus nove
itens, no presente trabalho apenas seis representaram adequadamente a dimensão de
sentimentos positivos pelo amigo, apresentando uma estrutura mais sólida.
A amizade é um construto multifacetado, e não há uma definição consensual na
literatura (Blieszner & Adams, 1992; Fehr, 1996). No entanto, é possível identificar
aspectos fundamentais nas amizades. O companheirismo, a ajuda e a intimidade são
características da amizade, tomadas por Mendelson e Aboud (2003) como funções. Ao
longo do ciclo vital, estas funções, bem como outras (confiança, abertura,
autovalidação), se apresentam nas relações entre amigos, variando em importância
conforme a etapa de desenvolvimento (Rawlins, 1992).
Na atualidade, com o crescente nível de estresse e competição vividos no
ambiente de trabalho, o tempo dedicado a relacionamentos sociais vem sofrendo
uma diminuição significativa. Afora isso, na adultez, as amizades já recebem menos
investimento, visto que se tornam menos relevantes na comparação com
relacionamentos conjugais e familiares (Carbery & Buhrmester, 1998). Contudo, boas
amizades são promotoras de saúde enquanto facilitam a tolerância a medos e
ansiedades, ajudam a suportar situações estressantes e proporcionam um forte senso
de identificação e de exclusividade através das experiências compartilhadas (Bell,
1981). Amizades são relacionamentos que trazem felicidade e satisfação de vida
(Argyle, 2001) e, portanto, merecem atenção com o estudo de seus processos e
dimensões, como na investigação da percepção da qualidade através das suas
funções, satisfação e sentimentos relacionados.
O presente estudo pode ser complementado com investigações posteriores que
exponham as escalas dos Questionários McGill a outras condições de testagem.
Primeiramente, poder-se-ia contar com uma amostra de pessoas com problemas de
relacionamento ou “solitárias”, ou seja, que admitam não possuir amizades e que
sintam que esta falta lhes causa desconforto psicológico. Num segundo momento,
também seria possível conduzir um estudo com pessoas que relatassem ter muitos
amigos, ou mesmo, pessoas consideradas extrovertidas e sociáveis, segundo resultados
de testes de personalidade. Nesta direção, poder-se-ia correlacionar as escalas de
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
extroversão e de neuroticismo do Modelo dos Cinco Grandes Fatores com os
Questionários McGill. Em terceiro lugar, uma comparação com instrumentos de satisfação
de vida e de bem-estar subjetivo forneceria novos insights sobre estas questões bem
como sobre o impacto dos relacionamentos de amizade em adultos brasileiros. Estes
estudos podem contribuir tanto para o acompanhamento da performance dos
instrumentos aqui analisados como para a produção científica em relacionamentos de
amizade no Brasil.
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Recebido em abril de 2006
Aceito em março de 2007
Luciana Karine de Souza é Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Professora adjunta no
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Claudio Simon Hutz é Doutor em Psicologia (University of Iowa, EUA). Professor titular da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Endereço para correspondência: [email protected]; [email protected]
Apoio: CNPq/CAPES.
96
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.97-108, jan./jun. 2007
Uma proposta para o tratamento de fobias de direção através
da criação de rotas automotivas virtuais
José Gustavo de Souza Paiva
Alexandre Cardoso
Edgard Lamounier Jr.
Resumo: Este artigo apresenta um projeto de pesquisa com o objetivo de desenvolver uma
interface para criação de rotas virtuais a serem utilizadas em um sistema de Realidade Virtual
aplicado ao tratamento de fobia de direção. O diferencial desta interface em relação àquelas
existentes atualmente reside no fato de que ela propicia maior flexibilidade na criação das rotas,
permitindo uma personalização destes trajetos, de acordo com o perfil de cada paciente.
Palavras-chave: fobia de direção, realidade virtual, criação de rotas.
A proposal for driving phobia treatment by creating automotive
virtual routes
Abstract: This paper presents a research project with the objective to develop an interface to
virtual route creation, based on Virtual Reality techniques for driving phobia treatment. The
main contribution of this system is its flexibility for route creation, allowing a customization of
these routes, according to each patient’s profile.
Key words: driving phobia, virtual reality, route creation.
Introdução
Segundo Kiss e colaboradores (2003), a utilização da Realidade Virtual (RV) como
uma ferramenta na área da Psicologia Clínica tem crescido consideravelmente nas
últimas décadas, sendo utilizada em uma variedade de tratamentos psicológicos, como
por exemplo, no combate a depressão, doenças relacionadas com idade, controle de
raiva, e no tratamento de fobias (Netto, Machado & Oliveira, 2002).
Wauke, Costa e Carvalho (2002) apresentam as principais vantagens da utilização
da Realidade Virtual para o tratamento de fobias, em relação aos tratamentos tradicionais:
• O sistema apresenta ambientes virtuais realísticos, capazes de simular a
inserção do paciente em situações similares àquelas corriqueiras de trânsito;
• Como a terapia é realizada totalmente dentro do consultório do psicólogo,
esta se torna mais segura, e menos constrangedora para o paciente;
• Permite que o psicólogo controle gradualmente o nível de exposição do
paciente à situação que lhe causa fobia;
• Por utilizar apenas um computador e um equipamento de RV, o tratamento tem
um custo reduzido, se comparado a terapias de exposição real;
De acordo com Boralli et al. (2003), podemos encontrar diversos projetos de
pesquisa que utilizam RV para o tratamento de fobias tais como:
Aletheia 25, jan./jun. 2007
97
• Fobia de aranhas (Carlin, Hoffman & Weghorst, 1997);
• Fobia de voar (Hodges et al.2001);
• Agorafobia, ou medo de lugares abertos (Romano et al., 2002);
• Transtorno de Estresse Pós-traumático (Hodges et al., 2001);
Cabe um destaque à fobia de dirigir. Algumas vezes, este tipo de fobia é
conseqüência de um Estresse Pós-traumático (Galovski, 2005). Nos últimos quinze
anos, pesquisadores começaram a descobrir que certa porcentagem de sobreviventes
de acidentes de carro desenvolveu um estresse pós-traumático. Segundo o autor já
citado, 39% de 158 sobreviventes de acidentes automotivos graves apresentavam
sintomas de estresse pós-traumático e, dentre 92 sobreviventes de acidentes de carro
hospitalizados na Austrália, 25% deles apresentavam sintomas de estresse póstraumático.
A fobia de direção apresenta-se como um grande transtorno pessoal.
Considerando um indivíduo que tem medo de cobras, por exemplo, tal fobia não lhe
causa maiores problemas, a não ser que ela vá a um zoológico (que possua cobras),
uma vez que é difícil encontrá-las comumente, e evitá-las é relativamente simples (Lanyi
& colaboradores, 2004). Por outro lado, a habilidade de dirigir um veículo representa
um componente fundamental para uma vida independente. Desta forma, o medo de
dirigir pode causar grande impacto na vida pessoal do paciente, afetando seu trabalho,
lazer, e inclusive atividades domésticas (Schultheis & Mourant, 2001).
Diversos sistemas em RV para o tratamento de fobia de direção são encontrados.
Dentre as limitações destes sistemas, destaca-se a impossibilidade de propiciarem
flexibilidade na criação de rotas (a serem experimentadas pelo paciente durante o
tratamento). Geralmente, os sistemas apresentam rotas já construídas, com elementos
como ruas, pedestres, túneis, casas, etc., mas não permitem que as posições destes
elementos dentro do ambiente virtual de experimentação sejam modificadas, ou que
novos elementos sejam inseridos.
Em alguns sistemas o psicólogo pode ainda alterar as condições de tráfego,
escolhendo rotas com tráfegos variados de pedestres e automóveis, ou alterar as
condições climáticas da rota. Desta maneira, nem todos os elementos que causam
fobias podem ser combatidos, porque estes sistemas não oferecem rotas com todos
estes elementos. Além disso, as mesmas rotas têm que ser utilizadas para todos os
pacientes, o que não é eficiente, visto que cada paciente desenvolve o medo de direção
por um motivo particular.
Os sistemas de construção de ambientes virtuais que podem ser adaptados para
serem utilizados com a construção particularizada de rotas customizadas não foram
desenvolvidos para este fim, e possuem uma interface que tende a ser muito complexa
e não intuitiva para um psicólogo, tornando o seu trabalho pouco eficiente.
Outra desvantagem dos sistemas atuais, tais como o proposto por Ku (2002), no
qual foi utilizado um carro real e projetores que exibiam o ambiente destinado para o
tratamento de fobia de direção refere-se ao alto custo de aquisição. Em tais sistemas,
os periféricos envolvidos são igualmente caros, o que resulta em um tratamento muito
oneroso para o paciente.
98
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Sistemas relacionados
A seguir, são apresentados alguns sistemas que utilizam a Realidade Virtual no
tratamento de fobia de direção e simulação de trânsito automotivo.
O DriVR é um sistema computacional para tratamento de fobias que utiliza um
software gerador de cenários 3D conectado a controles de direção e um óculos de
Realidade Virtual.
O DriVR oferece funcionalidades como medição da performance do paciente, na
medida em que ele navega pelo cenário, um visualizador de rotas percorridas, permitindo
ao psicólogo e ao paciente rever a rota percorrida durante o tratamento, através de
uma vista aérea, um construtor de rotas, que possibilita a determinação da complexidade
das rotas, bem como a escolha dos cenários que irão fazer parte dela, e um seletor de
condições do ambiente, que permite a configuração das condições do ambiente, tempo,
estrada e iluminação da rota.
A principal desvantagem apresentada pelo DriVR é a pouca flexibilidade
apresentada pelo seu construtor de rotas. Ele não permite a criação de novas rotas, e
o psicólogo pode, além de combinar as rotas existentes (aumentando o percurso para
o paciente), apenas configurar as condições do ambiente, tais como condições de
tempo, da estrada e da iluminação do percurso.
O Cave Lab Driving Rehabilitation Project (Ku, 2002) utiliza um sistema no qual
um carro real é conectado a um programa computacional, que gera uma ambiente
virtual no qual uma rota é percorrida pelo paciente. O sistema possui, além do software,
um projetor que exibe o ambiente a ser percorrido pelo paciente, além de caixas de som
utilizadas para reproduzir os sons deste ambiente, e um Sub-Woofer colocado debaixo
do banco do motorista, para conferir vibração durante o tratamento.
O ambiente virtual gerado pelo sistema apresenta características como o acesso
a ruas e avenidas com grande tráfego de veículos, e ruas com pouco ou nenhum
tráfego, além da circulação inesperada de pedestres na rua e a presença de outros
veículos controlados, como carros, ônibus, etc.
Este sistema, por utilizar um carro de verdade para o tratamento, possui um custo
de aquisição elevado. Além disso, ele não permite a utilização de outros carros reais,
sem que estes sejam modificados, prejudicando sua portabilidade. Entretanto, seu
maior problema reside na ausência de um construtor de rotas, o que impede que o
psicólogo realize o tratamento utilizando rotas diferentes das apresentadas pelo sistema.
O STISIM Drive é um sistema de simulação de trânsito construído para representar
atividades cognitivas e tarefas comuns do trânsito. O sistema apresenta um modelo de
dinâmica do veículo – permitindo a configuração de características para o controle de
direção e velocidade, definindo o sistema de marchas do veículo e o número de marchas
do mesmo. Além disso, permite a visualização da rota, tanto através da utilização de
monitores ou projetores de vídeo, quanto através da utilização de Head Mounted
Displays (HMD) para a visualização do cenário em 3D.
Este sistema também possui uma linguagem de definição de cenários, para que o
usuário crie rotas descritas na forma de arquivos de eventos, enumerando todas as
tarefas a serem realizadas, e os eventos possíveis de acontecerem dentro do cenário.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
99
Por fim, destaca-se no STISIM Drive a possibilidade de medição de performance,
permitindo a avaliação, por exemplo, do tempo de colisão com outros veículos ou
pedestres, do número de vezes em que o limite de velocidade foi excedido, do tempo
total do percurso, número de acidentes, entre outras medidas.
Dentre as desvantagens deste sistema, podemos citar o seu elevado custo de
aquisição, proporcionado pela utilização de uma cabine simuladora de direção
sofisticada, aliada a um projetor de grandes proporções. Além disso, a Linguagem de
Definição de Cenários, fundamentada em ‘scripts’, apesar de ser poderosa e flexível,
permitindo a criação de diversos tipos de rotas, é pouco intuitiva para usuários que
não tem conhecimento de programação computacional (que é o caso da maioria dos
psicólogos), o que pode tornar esta tarefa indesejavelmente trabalhosa.
Arquitetura do sistema
Considerando as limitações encontradas nos sistemas apresentados, propõe-se,
através de uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, analistas de sistemas
e projetistas de software, desenvolver um sistema para tratamento de fobia de direção
caracterizado por:
• Presença de ambientes virtuais que simulem trajetos reais percorridos por um
motorista em um carro;
• Baixo custo, para que o tratamento seja interessante financeiramente para o
paciente;
• Flexibilidade na criação de rotas de experimentação compatíveis com as
necessidades individuais de cada paciente, permitindo ao psicólogo atender aos
pacientes adequados;
• Uma interface de construção de rotas que propicie um nível de abstração
próximo à linguagem natural humana, que permita ao psicólogo (que muitas vezes não
tem um entendimento avançado em sistemas computacionais), desenhar de maneira
simples e intuitiva suas rotas, sem se preocupar com o aprendizado de técnicas de
Computação Gráfica, Realidade Virtual e programação.
100
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Sistema de Criação de
Rotas
Interface de Criação
de Rotas 2D
Biblioteca de
Elementos de
Trânsito
Conjunto de Definições 2D
dos elementos da Rota
Desenho da Rota
Interpretador de
Estruturas 2D
Conjunto de Estruturas
X3D
Cenas Atualizadas
Biblioteca de
Elementos 3D da Rota
Automotiva
Psicólogo
Ambiente Virtual
Comandos de
Navegação
Cenas Atualizadas
Paciente
Figura 1 – Arquitetura do sistema.
Baseado nestas características, a arquitetura do sistema foi projetada de
acordo com a Figura 1. Neste sistema, o usuário irá interagir com a Interface do
Sistema para construir a rota adequada. Na interface ele poderá manipular elementos
como ruas, pontes, túneis, construções, entre outros, e posicioná-los da maneira
desejada. Após finalizar a construção do ambiente 2D na interface, o sistema gerará
um arquivo com todas as definições do ambiente virtual concebido. Este arquivo
estará em um formato que será interpretado por um outro módulo do sistema, o
Interpretador. Este conjunto de definições será então passado para o Interpretador,
que buscará, em uma biblioteca de elementos de trânsito (com elementos em três
dimensões), os objetos 3D correspondentes às definições passadas. Com esses
objetos, será possível construir o arquivo utilizado para gerar o Ambiente virtual
3D para o tratamento. Este arquivo utiliza definições X3D, organizadas em um
formato XML.
Funcionamento do sistema
O sistema proposto procura seguir dois princípios básicos: proporcionar alta
flexibilidade ao psicólogo, para que ele tenha liberdade na criação de rotas customizadas
de acordo com o perfil de cada paciente, e possuir uma interface simplificada e intuitiva,
Aletheia 25, jan./jun. 2007
101
para que este psicólogo não tenha nenhuma dificuldade na construção destas rotas.
Além disso, o sistema é capaz de fazer o mapeamento completo de uma rota construída
em 2D – um desenho feito pelo psicólogo, após estudo sobre o que seu paciente
realmente teme ao dirigir – para um ambiente virtual totalmente em 3D, de forma
automática e transparente a este psicólogo, de forma que não seja necessário para ele
ter qualquer conhecimento de técnicas em Computação Gráfica, Realidade Virtual ou
programação computacional.
A Figura 2 mostra a tela principal da Interface de Criação de Rotas. Nesta tela,
o psicólogo pode acessar uma variedade de elementos de trânsito, na forma de
botões gráficos, que podem ser escolhidos e inseridos em uma área de desenho,
localizada na parte central da tela. Após inserir um elemento de trânsito nesta área de
desenho, o psicólogo pode manipular todas as suas propriedades. Cada elemento
possui propriedades específicas. Assim, uma rua pode possuir mão dupla ou mão
única, ser totalmente lisa ou esburacada, possuir um canteiro em sua área central,
dentre outras características.
Figura 2 – Interface de criação de rotas automotivas.
Para configurar os aspectos externos à rota, tais como tráfego, condições
climáticas, quantidade de carros e pedestres nas ruas, o psicólogo pode utilizar telas
de configuração, mostradas na Figura 3. Nela, é possível informar se o tráfego de
veículos será alto, se a rota será percorrida ao anoitecer, ou durante o dia, se o percurso
da rota será feito durante uma chuva, entre outros aspectos.
102
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Figura 3 – Telas para configuração de aspectos externos à rota
Para alguns elementos das rotas, como os prédios, casas e estações, é possível
a escolha de alguns modelos já definidos, o que permite que haja uma variedade destes
elementos dentro da rota. Esta escolha é feita nas telas de seleção de modelos, mostradas
na Figura 4.
Figura 4 – Modelos de casas, prédios e estações.
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103
Terminada a construção da rota desejada, em 2D, o sistema já tem condições de
gerar o arquivo no formato X3D, a ser utilizado pelo interpretador, na geração do
ambiente virtual em 3D. As Figura 5, 6, 7 e 8 mostram como o Ambiente Virtual é
mostrado ao paciente durante o tratamento.
Figura 5 – Visão aérea de rota automotiva.
Figura 6 – Casas e prédios da rota automotiva.
104
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Figura 7 – Visão do motorista.
Figura 8 – Visão do passageiro.
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Detalhes da implementação
A ferramenta Borland Delphi foi utilizada para desenvolver a Interface de
Criação de Rotas. Esta ferramenta tornou possível a construção da área de desenho,
e da seção de configuração das propriedades dos elementos de trânsito. Além
disso, tornou possível a construção de um código cuja execução demonstrou bom
desempenho, mesmo para rotas automotivas com um alto número de elementos de
trânsito, revelando ser uma boa escolha para a construção desta interface. Um
componente desta ferramenta, chamado ICOM XML Parser foi utilizado para gerar
o arquivo de definições dos objetos em três dimensões, para exibir a rota virtual
para o paciente.
A ferramenta VizX3D foi utilizada para modelar e construir todas as estruturas em
três dimensões dos elementos de trânsito utilizados na rota automotiva. Esta ferramenta
possui controles e funcionalidades específicas para construir códigos X3D, necessários
para a exibição do Ambiente Virtual para o paciente, o que permitiu a construção de um
código objetivo e eficiente.
Conclusão
A utilização da Realidade Virtual em áreas clínicas, em especial no tratamento de
fobias, tem se mostrado bastante promissora, com um grande mercado em potencial.
Não necessita de sistemas complexos e possui grande aceitação por parte dos usuários
(Boralli et al., 2003).
O trabalho apresentado neste artigo propõe a resolução de duas das limitações
principais dos sistemas de tratamento de fobia de direção existentes atualmente: a
obtenção de maior flexibilidade na criação de rotas a serem percorridas pelos pacientes
durante o tratamento, e de uma interface de criação destas rotas que seja simples e
intuitiva ao psicólogo, de modo que não seja necessário para ele nenhum
conhecimento em técnicas de Computação Gráfica, Realidade Virtual ou programação
computacional.
Na medida em que o sistema é desenvolvido, e logo após o seu término, no
momento de implantação e apreciação do usuário final, diversas idéias surgem com o
objetivo de melhorar as características do sistema, ou adicionar novas funcionalidades
a ele. A seguir são listados alguns ajustes e melhorias que poderão ser implementadas
no futuro.
• Medidas de avaliação da performance do paciente à seria um grande avanço se
o sistema fosse capaz de medir e apresentar dados de performance do paciente, como
a exibição da velocidade média do carro durante o percurso, a quilometragem percorrida,
se ele ultrapassou algum limite de velocidade, ou mesmo participou de algum acidente.
• Biofeedback à o sistema poderia, sob uma perspectiva mais distante, ser
equipado com equipamentos de biofeedback, permitindo a medição e exibição da
freqüência cardíaca, a respiração e o nível de ansiedade do paciente durante o
tratamento, o que facilitaria a tomada de decisões por parte do psicólogo a respeito da
evolução de seu paciente no tratamento.
106
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• Melhorias na interface de construção de rotas à é importante melhorar a
dinamicidade na representação gráfica dos elementos exibidos na Área de Desenho,
através da implementação de uma funcionalidade que permita que eles tenham suas
representações gráficas alteradas no momento em que o psicólogo altera o valor de
suas propriedades. Além disso, pensa-se na inserção de novos elementos, propiciando
à rota gerada um grau de realismo maior, em termos de funcionalidades.
• Criação de uma linguagem em script para construção de rotas à tendo em
vista a utilização por pessoas que possuem um conhecimento maior de programação
computacional, pensa-se em adicionar ao sistema uma linguagem de script para a
construção de rotas, permitindo a estes usuários especificá-las através de arquivos
textos. Estes arquivos poderiam se basear em seqüências de tarefas a serem realizadas
dentro do cenário virtual, ou em uma descrição textual da organização dos objetos no
ambiente.
• Melhorias no ambiente virtual 3D à Para tornar o ambiente virtual 3D mais
próximo da realidade é interessante tornar os atores participantes deste cenário mais
participativos. Desta maneira, seria possível conseguir resultados mais próximos
daqueles observados em uma terapia de dessensibilização in vivo. Isso pode inclusive
tornar o sistema eficiente para o tratamento de fobias de direção associadas à fobia
social circunscrita, e ajudar pacientes que não desenvolveram a fobia de direção por
terem sofrido algum trauma. Além disso, pretende-se aumentar o realismo no ambiente
virtual através da melhoria na qualidade sonora do ambiente. Isto pode ser obtido pela
utilização de uma quantidade maior de arquivos sonoros a serem reproduzidos durante
o percurso.
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Recebido em dezembro de 2006
Aceito em março de 2007
José Gustavo de Souza Paiva é Mestre em Engenharia Elétrica; professor da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).
Alexandre Cardoso é Doutor em Engenharia Elétrica; professor da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU).
Edgard Lamounier Jr. é PhD, Doutor em Computer Studies; professor da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU).
Endereço para correspondência: [email protected]
108
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.109-122, jan./jun. 2007
Fracasso escolar: do que se trata? Psicologia
e educação, debates “possíveis”1
Ana Lucia Coelho Heckert
Maria Elizabeth Barros de Barros
Resumo: O artigo visa a analisar como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelo
desempenho escolar. Discute os princípios e as ferramentas que têm orientado as práticas
psicológicas no campo do fracasso escolar. Faz um debate acerca da interface Psicologia e
Educação, partindo dos princípios da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e
Política. Problematiza as práticas da Psicologia no campo da Educação, que tem se pautado,
hegemonicamente, em formas naturalizadas e instituídas. Considera que a produção do fracasso
escolar não é um destino inexorável, mas produzido a partir de um modo de existência que
define, distribui e fixa competências e incompetências na escola. Objetiva afirmar a escola como
usina de conhecimento e de novas formas subjetivas.
Palavras-chave: psicologia e educação, fracasso escolar, subjetividade.
School failure: What is it about? Psychology and education:
‘Possible’ debates
Abstract: The article aims to analyze how Psychology has been seeing the challenges
raised by school performance. It discusses the principles and tools that has been guiding
Psychology practices in the field of school failure. It debates the interface between
Psychology and Education, based on the principles of transdisciplinarity and inseparability
of Psychology and Politics. It brings into discussion the psychological practices in the
field of Education that have been hegemonically based on naturalized and established
forms. This article does not consider the production of school failure as an inexorable fate
but as being produced based on a way of existence that defines, distributes and establishes
competent and incompetent practices at school. It aims to state school as a factory of
knowledge and new subjective forms.
Key words: psychology and education, school failure, subjectivity.
Introdução
Como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelos atuais modos de
funcionamento da escola? Quais princípios têm orientado as práticas psi no campo do
fracasso escolar? Quais ferramentas os psicólogos têm utilizado para interferir no
chamado fracasso escolar? Com vistas a contribuir para o debate sobre o lugar que a
Psicologia vem ocupando no campo das práticas em educação, partimos dos princípios:
da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e Política. Tais princípios
1
Falar de possíveis não é o mesmo que falar de possibilidades, ou seja, do que pode acontecer efetiva ou
logicamente. Refere-se ao que não temos previamente, apenas quando o criamos (Zourabichvili, 2000).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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buscam problematizar um lugar ocupado pela Psicologia que padroniza ações e repete
modos de funcionamento de “forma sintomática”, o que significa, portanto, tirá-la de
um “lugar-sintoma”, de um lugar que paralisa e reproduz um sentido já dado (Benevides
& Passos, 2005).
Na direção que imprimimos no presente artigo, a Psicologia, no campo da
Educação, tem se efetivado por meio de práticas com sentidos estabilizados ou
instituídos, perdendo, muitas vezes, o movimento pela mudança dessas práticas.
Apontar esse caráter sintomático das práticas psi em educação impõe que “[...]
identifiquemos o que ai se paralisa, mas também o que insiste como índice de um
movimento que não se esgota, sua face positiva” (Benevides & Passos, 2005, p.
389). Assim, analisar o que aqui estamos chamando de “prática-sintoma” é permitir a
retomada de um processo pelo qual possamos fazer a crítica ao que se instituiu nas
práticas de Psicologia em Educação, como a busca do aluno perfeito, bom,
disciplinado, “[...] figura ideal que regularia as experiências concretas” (Benevides
& Passos, 2005, p. 389).
A direção que buscamos afirmar para a Psicologia na Educação visa, portanto, a
dar a conhecer a complexidade do cotidiano das escolas que podem produzir tanto
práticas-sintomas como práticas que acionam outros-novos modos de ser aluno e
trabalhador da educação, recusando as diferentes formas de assujeitamento, formas
de vida massificadas, padronizadas, reproduzidas em clichês, como decalques,
reproduções do empírico. Tal direcionamento do olhar implica que façamos, de imediato,
uma torção em nossa abordagem que não deverá focar o ‘aluno’, ‘o professor’, mas o
processo de ensino/aprendizagem, a organização do trabalho em curso nas escolas,
processos que tomamos como efeito concreto de um modo de trabalhar que se coloca
no cenário das políticas públicas em educação.
Interessa-nos, neste enfoque, algo que se passa na ordem do impessoal e do
comum e que pode ser considerado como um plano de composição a partir do
qual se engendram tanto as formas históricas de produção como os próprios
sujeitos que lhes concernem. Que não seja confundida tal abordagem àquela da
busca de elementos estruturais de cuja exploração teria as já conhecidas respostas
generalizantes e universalizantes. (Barros & Fonseca, 2004, p. 38)
Isso significa relançar alunos, professores e demais trabalhadores assim como
as políticas públicas que engendram formas e modos de fazer educação ao processo
de sua produção, não buscando a verdade imperativa e constitutiva desses atores e
dos processos de trabalho nas escolas, mas os acasos que atestam que somos
produto de contingências históricas, podendo tudo ter se configurado de outra
maneira. Essa postura implica nos lançarmos para além dos ‘fatos’ e interrogar sobre
o que os faz serem o que são, sobre os processos que os engendraram (Barros &
Fonseca, 2004).
Assim, com esse propósito, pretendemos nos lançar no desafio de criar conceitosferramentas que nos possibilitem operar no campo da educação nos seus diferentes
âmbitos. Pensar o que acontece na escola, para além da lógica adaptativa, é fazer
110
Aletheia 25, jan./jun. 2007
opção pela potencialidade autopoiética dos corpos, apreendidos como multiplicidades
diferenciadas e que se diferenciam ao viver.
A torção que propomos leva-nos a escolher, como locus de nossa análise,
exatamente o ponto de encontro Psicologia e Educação. Interessa-nos apreender as
relações de intercessão e de interferência desses campos disciplinares, cartografando
as perturbações produzidas em cada um desses âmbitos, considerados como dotados
de uma abertura constitutiva, num processo heterogenético que transforma cada uma
dessas disciplinas em planos de criação e devires. Intercessão, aqui, tem o sentido de
produzir efeito de desestabilização. Os intercessores operam entrecruzamento de
diferentes domínios de saber e só podem ser pensados na relação de interferência que
produzem entre esses domínios. Um intercessor produz contágio, é relação de
perturbação, cruzamento que desestabiliza e faz diferir.
Os princípios interacionistas, interdisciplinares, parecem-nos insuficientes para
dar visibilidade ao processo de co-engendramento de alunos e trabalhadores da
educação, dos processos de trabalho nas escolas, nas suas múltiplas dimensões
complexas.
Vemos que, tradicionalmente, a Psicologia tem se pautado por abordagens binárias
que tomam como aspectos dicotômicos o indivíduo e a sociedade, a escola e seu entorno,
a Psicologia e a Educação, dentre outras dicotomias. Neste texto, discutimos a questão
da Psicologia a partir da noção de coletivo, o que significa pensá-la num plano de
produção do indivíduo e da sociedade, um plano de imanência, de composição sempre
aberto a outras possibilidades de constituição. Como refere Foucault (2000, p. 351),
É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como
uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que
se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um êthos, uma via filosófica
em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites
que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem.
Nessa direção filosófica, a Psicologia deve abrir-se à experiência, para além dos
quadros de referência instituídos. A crítica precisa ser exercida não mais no plano das
estruturas formais de valor universal, “[...] mas como pesquisa histórica através dos
acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do
que fazemos, pensamos, dizemos” (Foucault, 2000, p. 347-348).
Alinhando-nos a esse pensamento, podemos considerar que o trabalho do
psicólogo deve incidir no processo que constrói a realidade das diferentes práticas
educacionais e não em seus produtos, por exemplo, o fracasso escolar. A realidade é
movente e, portanto, o princípio que orienta nossas práticas precisa “detectar” forças
tendenciais, direções e movimentos que escapem ao plano das formas constituídas.
O que está em causa na postura que estamos adotando é o combate tanto da
noção de mundo dado, de educação e escola instituídas, quanto da noção de sujeito
transcendental, de aluno, de trabalhador em educação e de psicólogo, combate a essas
noções que não sejam forjadas nas práticas que as engendram. Trata-se de uma posição
política que busca desnaturalizar o mundo e o sujeito e aposta na transformação do
Aletheia 25, jan./jun. 2007
111
que está instituído. É a partir dessa postura ética que vislumbramos caminhos para
operar uma torção nas práticas psi em educação.
O que seria fracasso escolar na perspectiva que apontamos? Como essa direção
proposta pode contribuir para a produção de atitudes que privilegiem práticas psi que
dignificam a vida? A resposta talvez seja: produzir uma política de invenção. Não
sendo uma disciplina fechada, não se pode pretender também que seja um saber para
ser meramente aplicado, ou seja, não se trata de aplicar a Psicologia ao campo da
Educação. Seguindo Kastrup (1999, p.16) nas suas formulações, diríamos que a prática
do profissional/psicólogo é “[...] atuar como um aprendiz-artista, mantendo, em sua
prática diária, a tensão permanente entre a problematização e a ação”.
Nesse sentido, trata-se de uma tomada de posição política, uma vez que está
envolvida na posição que deseja o já feito, as formas prontas, uma moral conservadora,
uma política de manutenção das formas de existência estabelecidas e de desqualificação
da invenção e da diferença. Por outro lado, quando as formas de ação perdem sua
garantia de neutralidade, elas se constituem em instrumentos importantes para a
efetuação de mudanças, no plano coletivo, de novas políticas no campo da Psicologia
e da Educação. No momento em que o objeto das disciplinas perde a eternidade, o
saber que sobre ele pode se produzir também está sempre em vias de se constituir.
Portanto, um importante desafio que se coloca é problematizar as praticas dos
psicólogos no campo da Educação, não apenas para podermos esboçar novas saídas
para os impasses vividos, mas, principalmente, para promover outras perguntas.
Perguntar-problematizar nossas práticas é desnaturalizá-las, pois, ao serem consideradas
como da ordem da natureza, ‘obviamente já dadas’, não nos provocam, tornando
endurecidos os sentidos e as relações da interface Psicologia e Educação. As perguntas
que formulamos partem, assim, de uma postura que coloca ‘entre parênteses’ as realidades
dadas, visando a elaborar um olhar crítico da experiência do presente.
Como realizar a análise e produzir novas estratégias para interferir no que foi
produzido no âmbito da educação, no que diz respeito ao fracasso escolar? Nossa
aposta/proposta é que a operação no concreto para a realização dessa tarefa é a prática
da transversalização, pautada numa rede de produção de saberes coletivos que
produzem intervenções no que está instituído no âmbito do debate sobre o fracasso
escolar e não seu uso para constatar, diagnosticar ou explicar essa realidade. As nossas
preocupações giram em torno da problematização dos processos de produção do
fracasso escolar que têm caminhado mais no sentido da individualização-privatização
do que numa concepção de fracasso como efeito da produção de práticas educacionais
e/ou psicológicas. Esse modo de interrogar essas questões faz-nos tomar em análise
uma maneira de organização das “[...] disciplinas que vêm marcando fronteiras muitas
vezes rígidas na definição de seus objetos de pesquisa e/ou interesse” (Benevides &
Passos, 2000 p. 74).
Não é suficiente a flexibilização das fronteiras disciplinares, que se pode operar
por meio de procedimentos que somam disciplinas para dar conta de determinados
objetos – multidisciplinaridade – ou produzir um saber específico a partir de uma zona
de interseção entre elas, que seria a interdisciplinaridade. Mas, tanto num caso como
no outro, temos movimentos que se limitam a uma articulação entre os termos
112
Aletheia 25, jan./jun. 2007
considerados a priori e que se entrecruzariam, e não relações que se efetivam num
processo de coengendramento aberto para outras possibilidades de composição.
Romper com essas fronteiras rígidas implica construir planos de análise que privilegiam
a relação que constitui os termos. Assim, o princípio da transdisciplinaridade que
afirmamos não mantém a idéia de disciplinas independentes em contato umas com as
outras, ou seja, uma relação de conjugação entre dois domínios definidos, estáveis,
resultando num terceiro que se constituiria numa nova identidade, como é o caso da
Psicopedagogia.
A perspectiva transdisciplinar a que nos referimos não busca estabilidade, mas
a interferência entre as disciplinas, intervenção que desestabiliza um saber disciplinar,
visando a uma transformação nos modos instituídos de funcionamento nos diferentes
campos disciplinares. Assim, o viés interdisciplinar que perfila de forma dualista o
processo de constituição das disciplinas e suas articulações, ao se insinuar nas
práticas no campo da Psicologia, acaba por fixar territórios fechados de campos
disciplinares, o que pode dificultar a construção de novos arranjos institucionais
que possam se constituir em efeitos de polifonia. Esse modo de tratar essa questão
significa afirmar que tanto o objeto quanto o sujeito e o sistema teórico ou conceitual
com o qual ele se identifica, são efeitos que emergem de um plano de constituição,
atravessado também por aspectos estéticos, éticos, econômicos, políticos e afetivos,
não tendo, assim, a unidade e homogeneidade de uma disciplina ou de um campo
‘científico’ (Barros, 2005).
Problematizar os limites de cada disciplina é argüi-las em seus pontos de
congelamento e universalidade, nomadizar as fronteiras dos campos de saber, tornandoas instáveis, fazendo-as planos de criação de outros objetos-sujeitos.
Declaramos a urgência de analisar esse campo de produção de experiências e de
conhecimentos que se atualiza na interface Psicologia e Educação, avaliando os efeitos
dessas práticas sobre os corpos. Se perseguirmos a compreensão/transformação dos
processos em curso nesse campo, é necessário definir mais detalhadamente os
mecanismos envolvidos na produção dessas práticas, descrevendo o que incide na
sua composição, os valores que estão implicados, ou seja, destrinchar essas misturas
longe de unidades estáveis, já que essas falariam de identidades.
Transversalizar as disciplinas, na direção que buscamos imprimir, tem, portanto,
o sentido de conjugar forças de impedimento e forças de resistência que constituem
ações concretas no plano da experiência das práticas em Psicologia e Educação. Esse
modo de operar o saber psi implica interrogar os modos verticalizados/hierarquizados
de funcionamento desse saber/fazer no campo da Psicologia que operam por totalização,
unificação e, ao invés de afirmar suas condições de enunciação coletiva, privilegiam
agenciamentos estereotipados. O conceito foi criado no contexto da análise
institucional dos anos 60, numa transformação e desvio em relação ao conceito de
transferência e contratransferência e ao de hierarquia institucional. Sua importância
neste texto é, precisamente, pelo fato de ser um conceito ferramenta que emerge num
cenário de “[...] fechamento da experiência e de crise” (Benevides & Passos, 2003, p.9).
E é esse o sentido que buscamos dar à comunicação entre os campos disciplinares.
Com esse objetivo, a proposta deste texto é contribuir para o debate sobre a
Aletheia 25, jan./jun. 2007
113
questão do fracasso escolar buscando instituir outras práticas que possibilitem pensar
a própria posição das disciplinas envolvidas na produção do chamado fracasso escolar
numa direção que, ao abrir-se para processos inventivos, recusa as hierarquias e as
totalidades, conjura os absolutos, não busca garantias transcendentais e se define por
uma abertura, por um processo de comunicação rizomática, que tem o sentido de uma
dinâmica de comunicação multivetorializada ou transversal. Neste artigo, indicamos as
novas ‘roupagens’ que o tema assume nos anos 90 e os pressupostos teórico-políticos
do campo da Psicologia e da Educação que permeiam o objeto fracasso escolar.
Fracasso escolar: a confirmação de supostas deficiências
Os pressupostos da teoria do capital humano, aliados às explicações advindas
das teorias da marginalidade e carência cultural, constituíram-se em ferramentas
estratégicas na elaboração das políticas educacionais nos anos 60 e 70 e em políticas
sociais de cunho compensatório que tentavam conter conflitos sociais. As produções
teóricas, conhecidas aqui no Brasil como teoria da carência, ou deficiência cultural,
emergiram nos EUA, nos anos 40. Porém, foi com os movimentos contestatórios das
minorias raciais lá ocorridos nos anos 60, que essas teorias ganharam novo fôlego.
Transplantados para o Brasil nos anos de 1970, tais programas objetivavam “substituir”
a família das camadas populares, considerada, por alguns educadores e psicólogos,
incapaz de estimular adequadamente seus filhos. Com esse fim, absorvia-se
precocemente a criança na escola com o intuito de suprir as supostas carências
nutricionais, cognitivas, afetivas e culturais (Patto, 1983).
Nesse processo, algumas produções, no campo da Psicologia, fertilizaram o
terreno da individualização do desempenho escolar e das desigualdades sociais,
desenvolvendo pesquisas e explicações teóricas que tinham como foco a caracterização
psicológica dos chamados grupos desfavorecidos. Ressaltamos que essa caracterização
era empreendida tendo como parâmetro para comportamentos, atitudes, hábitos, estilo
lingüístico, modos de sociabilidade, entre outras categorias encontradas em grupos
sociais de maior poder aquisitivo.
Dessa forma, diversos pesquisadores, ao se pautarem em normas de
comportamento previamente estabelecidas e em arcabouços científicos pretensamente
neutros e, portanto, generalizáveis, traçaram um perfil psicológico que colocava, e
coloca ainda hoje, as famílias e as crianças das camadas populares no lugar de carentes
e faltosos. Reduzindo a compreensão das desigualdades sociais e educacionais a
relações causais diretas, essas concepções naturalizaram a qualificação e um suposto
déficit cultural como fatores determinantes do desempenho dos sujeitos, mantendo
em suspenso os embates travados em torno do ensino público e das concepções que
permeiam as práticas educacionais e psicológicas.
Novos olhares sobre o tema fracasso escolar: o que se repete?
Na década de 80, demarcada pelos estertores do regime militar e pelas tentativas
de democratização político-institucional, o foco das análises no âmbito educacional,
foi a democratização das oportunidades de ensino. Nesse sentido, o fracasso escolar
114
Aletheia 25, jan./jun. 2007
permaneceu como questão, mas aí tematizado como um dos fatores que colocavam em
xeque as proposições de democratização do ensino brasileiro. O que aproximam algumas
dessas análises, mesmo que tenham partido de princípios políticos e filosóficos
diversos, é a compreensão de que o fracasso escolar é o elemento que permite
vislumbrar as intensas desigualdades sociais instituídas no País. Desigualdades essas
que se materializam também no espaço educacional.
Como explicar a inexistência de escola para todos e as desigualdades educacionais
e sociais?
O fracasso escolar era um dos problemas que colocava a nu, naquele momento,
a realidade discriminatória e desigual da sociedade brasileira, interrogando as políticas
públicas vigentes. O prometido compromisso do Estado com a educação pública podia
ser argüido nos parcos investimentos destinados ao sistema público de ensino, na
inexistência de prédios escolares em várias regiões do País, fazendo com que crianças
em idade escolar estivessem fora da escola, ou caminhassem vários quilômetros para
chegar à escola disponível. E ainda, nas dificuldades diárias a serem enfrentadas,
como falta de condições financeiras para arcar com custos do uniforme e material
escolar, de merenda escolar, de transporte, de livros, dentre outras.
Entretanto, é importante assinalar que não houve apenas um vetor crítico de
análise dessa problemática. Várias foram as pesquisas e análises desenvolvidas com a
contribuição de aportes da Psicologia Educacional que assinalaram a responsabilidade
das famílias, dos professores e da própria escola no desempenho escolar dos alunos.
Essas análises acabaram por corroborar a psicologização do desempenho escolar,
individualizando-o e naturalizando-o.
Percorrendo um outro caminho de abordagem dessa problemática, produziram-se no
Brasil várias análises críticas (Benevides, 1997; Patto, 1990, 1983) que ultrapassavam a
compreensão causal e reducionista que caracterizou boa parte dos estudos com relação ao
fracasso escolar. No lugar de procurar as causas determinantes do desempenho escolar na
vida familiar dos alunos, abordada na maioria das pesquisas como espaço pobre de estímulos
sociais cognitivos e culturais, ou em fatores de ordem biológica, ou, ainda, nos chamados
fatores intra-escolares, fazia-se necessário apreender esse processo em sua ordem de
complexidade. Ou seja, partir não do objeto, mas das práticas que o constituem.
Oliveira (2001) destaca algumas regularidades ainda em funcionamento nas análises
e práticas educacionais voltadas ao entendimento dessa questão. O que se repete, segundo
a autora, é a naturalização do fracasso escolar como um ‘objeto já dado’, uma verdade a ser
descoberta com o apoio de pressupostos científicos que segregam e silenciam outros
saberes que escapam às leis universais e transcendentes. Ao avaliar, selecionar e hierarquizar
certos comportamentos dissonantes, como distúrbios e dificuldades, como cópias
degradadas a serem corrigidas, sua potência desestabilizadora das práticas instituídas é
esvaziada, intensificando a tutela do processo de aprendizagem dos alunos.
Nessa mesma direção de análise, Benevides (1997) aborda o fracasso escolar
como elemento analisador das redes de culpabilização, infantilização e desqualificação,
em meio às quais se produzem subjetividades fracassadas, repetentes. Ao manter as
análises acerca do desempenho escolar nessas redes, excluímos os fatores políticosociais que produzem as condições de repetência e fechamos as portas para algumas
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perguntas: o que a repetência tem a nos dizer? Não haveria aí movimentos que tentam
afirmar outros processos de aprendizagem, outras maneiras de viver que recusam as
formas de subjetividade homogeneizadas? O que essa “deserção” dos modos
instituídos de aprender, ensinar e viver tem, enfim, a nos dizer?
Fracasso escolar e sucesso escolar: novas regulações...
Nas duas últimas décadas, as políticas governamentais implementadas no campo
da educação pública tiveram como propósito transformar o fracasso em sucesso. Ou
seja, visaram a superar a chamada ‘cultura do fracasso escolar’ por meio de várias
estratégias, tais como: programas de correção de fluxo escolar, progressão automática
de alunos e classes de reforço. Assim, reduzir custos, otimizar recursos públicos,
corrigir panes no fluxo de entrada e saída de alunos, planificar os currículos por meio
de parâmetros nacionais, descentralizar a administração dos sistemas de ensino, instituir
procedimentos de avaliação do produto escolar foram procedimentos utilizados para
elevar a produtividade e a qualidade do sistema público de ensino.
Porém, cabe discutir quais concepções de qualidade e produtividade nortearam
essas reformas do ensino público. A produtividade da escola e sua qualidade são fatores
que não se separam, nem se opõem; e permeiam o esforço de todos aqueles que se
dedicaram às lutas para efetivar a escola pública como direito social e político. Contudo,
produtividade e qualidade não são noções abstratas e etéreas ou, ainda, invariantes,
pois que seu sentido se constitui historicamente. Nas reformas educacionais elaboradas
pelo governo federal e por vários governos estaduais e municipais, o pressuposto que
delinearia a qualidade e produtividade da escola esteve focalizado nos resultados
apresentados, ou seja, no seu desempenho, e não no interesse coletivo.
Entendendo que não podemos reduzir as questões do sistema educacional aos
problemas de ordem quantitativa, consideramos que um grande desafio é analisar a
qualidade do serviço ofertado, a evasão e a repetência não como obstáculos a serem
vencidos para que a garantia do acesso à escola se efetue. É importante analisar esse
quadro a partir do que se produz no cotidiano de trabalho. Freqüentemente, as reformas
educacionais impõem pacotes de reversão dos problemas que ocorrem na escola pública,
sem levar em conta a experiência dos profissionais do ensino tecida no cotidiano dos
estabelecimentos educacionais.
Conforme sinaliza Schwartz (2003), a diferença entre o trabalho prescrito e a
atividade realizada mostra que uma forma de qualidade já está se fazendo no processo
de trabalho e que esta se expressa na recriação de saberes para dar conta da variabilidade
das situações de trabalho. Os parâmetros que definem o que é ou não ensino de
qualidade variam, e isso ocorre porque a especificidade do trabalho docente, as
demandas com relação à escolarização e os objetivos e desafios colocados para a
escola não se mantêm sempre os mesmos. Então, do mesmo modo que não podemos
negar que a escola pública no Brasil apresenta problemas sérios, do ponto de vista da
qualidade do serviço público prestado à população, não concordamos que as estratégias
de produção de qualidade da escola, empreendidas nas reformas educacionais, atendam
aos anseios dos profissionais do ensino, dos estudantes e de suas famílias. Uma
política de qualidade requer a análise e o enfrentamento das condições históricas nas
116
Aletheia 25, jan./jun. 2007
quais os processos de escolarização se efetuam. Como traçar metas de qualidade do
ensino sem alterar os modos de funcionamento da escola, sem delimitar o número de
alunos por turma e sem ampliar o quantitativo de profissionais de ensino que atuam na
escola? E, ainda, sem instituir processos de formação desses profissionais que estejam
vinculados ao trabalho que realizam? O que significa transformar o fracasso em sucesso
sem alterar as condições de trabalho na escola? É possível medir a qualidade do
ensino com avaliações padronizadas?
A transposição de padrões de produtividade aplicados a outros setores da
produção para a escola é uma operação delicada, não só porque se trata de trabalhos
com especificidades diferentes, como também porque o ensino público não é uma
mercadoria como as outras. A heterogeneidade entre as escolas públicas demanda a
formulação de diretrizes de qualidade e produtividade situadas que abarquem a
diversidade existente, no lugar de padrões de qualidade e produtividade ditados
externamente às escolas, concebidos para maximizar os resultados por meio da
otimização de recursos materiais e humanos.
Estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), em outubro de 2003, mostrava que o Brasil tinha 2,6 milhões de
professores na educação básica e superior. Em relação à infra-estrutura das escolas,
45% dos profissionais da educação trabalhavam em escolas sem laboratório de
informática, 80% não contavam com laboratórios de ciências, 45% trabalhavam em
escolas sem bibliotecas. No Nordeste, esse percentual era de 66%. Os professores da
Região Sudeste ganhavam, em média, duas vezes o salário dos professores que atuavam
no Nordeste. O professor da educação infantil recebia um salário 20 vezes menor do
que o de um juiz. O número de alunos por sala situava-se em torno de 37 estudantes.
Assim, qualquer política de qualidade que se pretenda eficaz deve considerar essa
realidade diversa e desigual que demarca o sistema de ensino brasileiro. Como mostram
Athayde e Brito (2003), mesmo tendo normas comuns, as escolas públicas recriam essas
normas desenhando um universo muito mais rico e, ao mesmo tempo, mais cruel do que
supõem aqueles que traçam os atuais mecanismos de regulação da escola.
As escolas, como os serviços de saúde, são locais de trabalho onde há normas
comuns ao conjunto da rede a que estão vinculadas. No entanto, existem normas
específicas, nem sempre formalizadas de forma escrita, em cada escola, devido
à sua localização geográfica e às características da clientela, entre outros fatores.
Como outras atividades do serviço público, trata-se de trabalho fortemente
marcado pela singularidade, envolvendo conflito de valores: tanto os adjacentes
ao trabalho educativo, quanto os definidos pelos grupos que desenvolvem esse
trabalho em cada escola. (Athayde & Brito, 2003, p. 243)
É preciso, então, dar um outro passo, pois, se as políticas governamentais
implementadas passam a ter como propósito transformar o fracasso em sucesso, ou
seja, se já não falamos mais em fracasso, mas apenas em sucesso, é preciso ouvir com
atenção os trabalhadores do ensino para apreender como lidam com essas formulações
no cotidiano de trabalho e as modulações que fabricam. O que se nota é que a mudança
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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de foco não teve como correlato a ruptura das classificações, desqualificações e
hierarquizações que permeiam as práticas de avaliação. Ao contrário, o que se percebe
é que essas concepções ganharam novas roupagens. Segundo Frigotto (1995, 1998),
as novas combinações efetuaram-se intensificando e complexificando os mecanismos
classificatórios. Tais modulações ampliaram o controle sobre as escolas por meio das
avaliações externas e dos parâmetros curriculares nacionais. O postulado do sucesso
acaba sendo desmentido na inexistência de condições que o materializem. Nesse sucesso
escolar, a ênfase recai nas atitudes, no comportamento, na socialização. Porém, aspectos
importantes, como o acesso ao conhecimento, ficaram na penumbra.
Outros aspectos relativos às políticas que visam ao sucesso escolar devem
ser ressaltados, lembrando sempre que não somos contrários ao sucesso escolar
dos estudantes. Contudo, consideramos relevante problematizar: que sucesso é
esse? Para quê? Como se constitui? Oliveira (2001) sinaliza alguns problemas que
ocorreram devido à adoção de mecanismos de ajuste do fluxo escolar. Analisando
os procedimentos utilizados na Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, no
período 1990-1998, a autora indica que as medidas efetuadas produziram um
crescimento homogêneo da matrícula. Entretanto, essa rapidez no fluxo de alunos
pode indicar um processo de “[...] aceleração da escolarização ou da certificação
da escolaridade” (Oliveira, 2001, p. 90) e que, dependendo da forma como esse
processo estiver ocorrendo, pode resultar na deterioração da qualidade do ensino
fundamental público.
Novos desafios: outros possíveis no encontro da Psicologia com a Educação
As freiras, onde eu estudava, ficavam desesperadas. A que ensinava aritmética
chegava e dizia:
- Tenho três galinhas. Uma, enquanto estava caminhando se perdeu. A outra
morreu. Quantas galinhas sobraram?
Aí eu começava:
- Mas por que a galinha morreu? E a outra? Como se perdeu? Como é que
alguém perde uma galinha? Mas quem estava tomando conta delas não sabe dar
explicações!
Aí criava uma situação!
A Freira respondia
- Não precisa saber o porquê!
Eu queria a história desta galinha perdida, morta [...]2
O que fazer com os alunos ‘perdidos no caminho’? Perguntar e buscar o como e
os porquês não é o que se espera de um “bom aluno”? Não dar as respostas esperadas
não tem o sentido de uma recusa a se submeter às sobrecodificações impostas pelos
projetos educacionais prescritos?
2
Esse é um trecho da entrevista realizada com a poeta Hilda Hilst, em 1997, publicada no jornal O Estado de
S. Paulo, 31 de maio 1997. Caderno 2, p. D7.
118
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Como o espaço escolar lida com esse ‘não-saber’? Como dar passagem a outras
aprendizagens, a outras formas de subjetividade, a outras vidas possíveis? Como
romper com o território do fracasso e do sucesso escolar e construir outros para além
do fracasso e do sucesso? Qual a importância de tal formulação? Para que nos interessa,
a nós, psicólogos e educadores, esse modo de apreensão da questão do fracasso
escolar? Não se trata de colocar mais uma definição sobre fracasso escolar nas prateleiras
acadêmicas, para alimentar o debate sobre as chamadas dificuldades de aprendizagem.
Só nos interessam os conceitos e estratégias metodológicas que sirvam para inventar
‘outros/novos modos’ de intervir nas situações que se atualizam nos estabelecimentos
educacionais. Vamos tomar como situação-caso o modo como temos operado nas
escolas onde temos trabalhado.
Nas intervenções que realizamos nos sistemas municipais de ensino, na Grande
Vitória/ES, trazemos essa temática para o debate, priorizando o uso de dispositivos,
como a grupalização das questões que afetam a escola, e, dentre essas questões a do
fracasso escolar. Por entender que os processos de formação não se dissociam dos
processos de gestão do cotidiano escolar, lançamos mão de rodas de conversa com
profissionais da educação, buscando, com eles, fabricar estratégias de ação que
permitam ampliar as análises sobre o desempenho dos alunos para além das
culpabilizações e individualizações já instituídas.
Tomando como eixo as práticas nas escolas, propomos, portanto, a utilização de
uma metodologia pautada na experiência dos educadores no seu fazer cotidiano. Tratase de uma estratégia que se efetiva no esforço coletivo, incorporando à produção de
conhecimento o saber que os trabalhadores desenvolvem a partir da experiência no
trabalho educacional, transformando-o em rico material para o debate sobre a produção
do fracasso escolar. Essa é uma perspectiva que considera que é no encontro e no
diálogo com o outro que o humano se constitui a si e ao mundo.
Nesse contexto, a linguagem emerge de um viver junto, entrelaçada com as
emoções. É o que Maturana (2002) chamou de conversar. Conforme esse autor, todo
viver humano constitui-se nessa prática cotidiana de rede de conversações. O humano
se constitui nesse movimento de viver e conversar. É no conversar que acontece o
viver humano, a convivência com o outro e é nesse espaço de conversa que emerge a
possibilidade de mudar nos modos de viver, amar, trabalhar, pensar.
Essa estratégia metodológica busca, então, acompanhar esse movimento plástico
dos humanos para produzir um regime de produção de conhecimentos/saberes sobre
a temática em tela e colocá-la em movimento. A metodologia visa a criar condições que
viabilizem o encontro e o diálogo entre os atores envolvidos nesse debate. Esse regime
de produção de conhecimento/saberes, quando priorizado no âmbito das práticas
pedagógicas, contempla esse caráter dos seres vivos que é estar em movimento, em
atividade.
Nessa direção de análise, o conhecimento científico tem seu modo específico de
funcionar, tem limites e potencialidades e não pode se impor de forma incontestável no
cotidiano das escolas. Com relação a tudo o que é humano, fica algo sempre enigmático
ou invisível para a ciência: algo que emerge no diálogo e no confronto com os
protagonistas dos processos de trabalho (Athayde & Brito, 2003).
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119
Na interface Psicologia e Educação, é fundamental a construção dessas
estratégias pautadas no diálogo dinâmico entre os pólos da ciência e da experiência
da prática dos educadores. Também é preciso construir práticas educacionais que
sejam condizentes com os princípios de uma política pública de educação, entendida
como o plano coletivo e, portanto, referentes à experiência concreta dos coletivos,
construídos a partir das experiências de cada um dos humanos. A proposta é, assim,
pôr em ação práticas educacionais em parceria, uma co-elaboração, em um espaço
onde cada pólo de saber pode ampliar seus horizontes, reformular suas próprias
questões, suas formas de colocar as questões, fortalecendo-os para recolocar novas
questões um para o outro.
O diálogo crítico, baseado na possibilidade de fazer do confronto um motor no
processo de aprendizagem, é um elemento importante para que o saber da experiência
seja afirmado e se efetive o diálogo com o conhecimento científico. Dialogando, aprendese a ouvir, entender e discordar, exercitando o debate e a crítica, de modo que, nesse
movimento, afirmamos, inventamos e ampliamos conhecimentos e saberes. Convocar
o saber presente no pólo das disciplinas científicas não é necessariamente se subordinar
a esse saber. O que se propõe é que se proceda a uma discussão pautada num acordo
sobre valores comuns, sobre a diferença entre saberes, sobre a capacidade de criar
novos modos de trabalhar, enfim, (com)viver.
Quem pode gerar mudanças nas formas de produção de sujeitos/alunos/
educadores, do agir em educação, é o movimento de vida, esse movimento expansivo
que se afirma nas atividades industriosas dos humanos. Diríamos, ainda, que esse
modo de operar não pode se tornar um regime meramente operacional e tecnicista.
Nesse sentido, é que podemos dizer que estamos propondo um processo que se
efetive num movimento que se dá sempre ‘entre’, no processo, sem começo nem fim.
Um diálogo efetivo entre os diferentes saberes no qual os conteúdos, conhecimentos
e experiências circulem em espiral, uma forma que visa a ampliar nossa capacidade de
escuta compreensiva do outro.
Porém, entendemos também que a análise sobre o que se passa na escola
não deve ficar contida em seus muros. Muitos são os atores envolvidos com a
escola e quanto maior for o grau de comunicação entre esses atores, maior será
a possibilidade de resolver os problemas vividos no cotidiano. Em um dos
municípios em que efetivamos nossas pesquisas, lideranças populares
constituíram uma comunidade ampliada de pesquisa em educação, visando a
mapear as condições de trabalho e estudo nas escolas públicas do município,
bem como interferir nos rumos das políticas governamentais em Educação. A
produção do fracasso escolar não é, portanto, um destino inexorável. Tentamos,
neste texto, afirmá-lo como produzido a partir de um modo de existência que
define, distribui e fixa competências e incompetências na escola. O desafio
para a Psicologia é problematizar essa maquinaria modelizadora em que, muitas
vezes, se constitui o espaço escolar, afirmando-o como usina de conhecimento,
de invenção de novas formas subjetivas. Como nos diz Rocha (1996, p. 179), “A
vida escolar pode se desdobrar em perspectivas que a façam sair da condição
de usuária dos paradigmas instituídos, transformando-se em usina de
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conhecimento”. E essa “escola-usina-de-conhecimento” está ali onde os
humanos lutam, suam e criam, “[...] cabe dar visibilidade e dizibilidade a esses
movimentos que, aliançados com o invisível, vão produzindo objetos e sujeitos
não modelizados” (Oliveira, 2001, p. 237).
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Recebido em maio de 2006
Aceito em outubro de 2006
Ana Lucia Coelho Heckert é psicóloga; Doutora em Educação; professora do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Espírito Santo.
Maria Elizabeth Barros de Barros é psicóloga; Doutora em Educação; professora do Departamento de
Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.
Endereço para correspondência: [email protected]
122
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.123-138, jan./jun. 2007
Desafios para uma epistemologia
da pesquisa com grupos
Maria da Penha Nery
Liana Fortunato Costa
Resumo: O artigo disserta sobre o paradigma subjetivista/construtivista/interpretativo de pesquisa
nas ciências sociais e humanas. Para o estudo desta realidade, o pesquisador se insere na epistemologia
da pesquisa qualitativa e com grupos, e enfrenta desafios para aperfeiçoar e desenvolver métodos de
pesquisa que ampliem o conhecimento dos fenômenos relacionais. O texto apresenta a Socionomia,
o Psicodrama e o Sociodrama como um suporte teórico-metodológico que produz uma pesquisa
ativa, na qual a compreensão de síndromes culturais coletivas está atrelada ao seu tratamento.
Pretende-se a inclusão de contextos que têm ficado fora do eixo das pesquisas, por exemplo: o
comunitário, os pequenos grupos, o grupal familiar, os grupos socialmente excluídos, crianças e
adolescentes em situação de violência, abuso sexual, de rua ou em conflito com a justiça.
Palavras-chave: pesquisa qualitativa, epistemologia, grupos, socionomia, psicodrama.
Challenges for an epistemology of group research
Abstract: The article explains the subjectivist/constructivist/interpretative paradigm of research
on human and social sciences. For the study of this reality, the researcher deals with the
epistemology of qualitative and group research and faces challenges to enhance and develop
research methods which may enlarge the knowledge of relational phenomena. The text presents
Socionomy, Psychodrama and Sociodrama as a theoretical-methodological support that produces
an active research in which the comprehension of collective cultural syndromes is connected with
their treatment. It is intended to include contexts which have been out of latest researches such as
the communitarian, small groups, family groups, socially excluded groups, children and adolescents
exposed to violence situation, sexual abuse, street situation or in conflict with justice.
Key words: qualitative research, epistemology, groups, socionomy, psychodrama.
Introdução
A pesquisa qualitativa e os desafios do psicólogo pesquisador
No campo da Psicologia, foram muitos os pesquisadores que, para serem
reconhecidos como cientistas, se inseriram no paradigma empírico/positivista ou
cartesiano/newtoniano, com metodologias eminentemente quantitativas para o estudo
do comportamento humano (Ferreira, Calvoso & Gonzales, 2002). Para estes, o estudo
do ser humano deveria atender os seguintes pressupostos básicos (Levy, 2002):
pensamento racionalista (a razão domina qualquer outra dimensão humana);
pensamento linear de causa e efeito (deve-se conhecer a origem do fenômeno para
dominá-lo ou controlá-lo); metáfora do homem-máquina (ele pode ser desmontado,
pode ser cindido); objetividade (o objeto existe independentemente do observador) e
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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existência de certezas absolutas. O peso desta história atraiu o pesquisador para um
conhecimento do homem, cuja dominância foi a separação e a redução. O ser humano
ficou isolado de suas dimensões e das dimensões do mundo. O pesquisador foi treinado
a utilizar raciocínios causais e modelos dicotômicos na realização de seus trabalhos
científicos. Entretanto, a história da Psicologia também nos revela a existência de
polêmicas sobre o saber psicológico, que provocou um conflito de paradigmas e nos
colocou diante de desafios teórico-metodológicos, mostrando a evolução da pesquisa
numa perspectiva dos aspectos psicológico e social não mais excludentes, mas, sim,
fazendo parte do mesmo tecido.
Arendt (2003), num artigo no qual debate sobre as contribuições do
Construcionismo e do Construtivismo para a Psicologia Social, traça uma trajetória de
autores da Filosofia desde o final do século XIX (citando W. Dilthey), mostrando a
evolução do conhecimento da Psicologia no sentido de compreender os fenômenos
sociais e vê-los situados historicamente. Farr (1998), numa perspectiva mais rigorosa,
aponta que toda a Psicologia deve ser encarada como social e não apenas as partes
rotuladas como Psicologia Social. No Brasil, Bernardes (1998) aponta a importância da
Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO – na produção de um
conhecimento que é histórico, contextualizado, preocupado com os valores e a cultura
nacional, e que pode se colocar ampliando os avanços da Psicologia Social tanto
norte-americana como latino-americana.
Por todo o século XX pensadores da ciência questionaram as Ciências Sociais e
Humanas e as amarras de um paradigma positivista, clarificando as especificidades destes
campos de estudo, integrando conhecimento das ciências naturais que se modernizou
com as influências teóricas da física quântica, da teoria da relatividade e da biologia
moderna. Neubern (2005), ao comentar como um paradigma dominante na ciência produziu
uma dimensão regulatória sobre a Psicologia Clínica, aponta autores (citando M. Weber
e S. Freud), que, já na primeira metade deste século XX, introduziram linhas de pensamento
que reivindicavam o reconhecimento de que a Psicologia apresentava uma natureza
distinta para observação do objeto de seu estudo. Neubern indica ainda que estas
inspirações ocorreram mais em termos metodológicos e não tanto em termos
epistemológicos, sendo que estes impasses sobre a produção do conhecimento científico
perduraram ainda por todo este século, mesmo que na segunda metade outros autores
(Bourdieu, 1997; Capra, 2002; Maturana & Varela, 1984; Morin, 2002; Prigogine, 1996;
Santos, 1998) tenham vindo acrescentar sua posição crítica chamando atenção para a
condição privilegiada de um ser humano sempre em relação. Na construção do
conhecimento, a subjetividade do pesquisador é vista como uma construção sóciohistórico-cultural e a partir do grau perceptivo em que ele se encontra (Glasersfeld, 1996;
Hoffman, 1990; Maturana, 1996; Pearce, 1996; Watzlawick & Krieg, 1995).
Morin (2000b) questiona a atividade científica reforçadora da hiper especialização
das ciências humanas e que é destruidora da noção de homem. Assevera que a
experiência científica clássica reduz o pensamento ao atribuir a ‘verdadeira’ realidade
aos elementos, não às totalidades, realidade que valoriza os enunciados formalizáveis
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e quantificáveis, não os seres e os entes. E afirma que “Existem até certas disciplinas
da psicologia que eliminam o homem, seja em proveito do comportamento, seja em
proveito da pulsão. A idéia de homem foi desintegrada” (p. 43). Este autor ainda critica
a Psicologia, ao discutir a Teoria da Complexidade, que se apresenta super especializada
e perde a interdisciplinaridade, se desliga da natureza das ciências do homem e gera
uma esoterização do saber que a leva para o anonimato. A prática científica segmentada
limita a consciência das inter-retroações de ciência, sociedade, técnica e política, pois
cria preconceitos que cerceiam a politicidade do psicólogo. Segundo Morin (2002),
não há pesquisadores superiores ou inferiores, mas há muitas coisas no mundo que
são infra ou supra verdade, que estão simultaneamente acima, abaixo ou fora da verdade,
como, por exemplo, o amor. E o amor é apenas um dos sentimentos que compõe a
afetividade, objeto de estudo fundamental dos psicólogos-pesquisadores!
Os novos paradigmas científicos da produção do conhecimento reconstruíram a
Epistemologia da Psicologia, direcionando-a para o paradigma qualitativo e construtivo
(Brito & Leonardos, 2001; González Rey, 1997) e para o surgimento de metodologias
qualitativas. A pesquisa qualitativa ganhou força (González Rey, 1997; Neubern, 1999)
trazendo o estudo do ser humano integrado em suas dimensões sociais, culturais,
históricas e afetivas. O paradigma qualitativo e construtivo tomou impulso, a partir da
pesquisa da subjetividade, com Freud oportunizando a escuta do sujeito para o
diagnóstico na área clínica e da pesquisa que valora a inscrição histórica e sociocultural
no conhecimento do humano, por exemplo, os estudos de Vigotsky (González Rey,
1999; Turato, 2003).
Lapassade (2005), defensor de estudos da microssociologia, mostra como a
pesquisa e a intervenção em pequenos grupos, trabalha a favor da superação da
alienação institucional e do fortalecimento do aspecto instituinte. Neste sentido, este
autor aponta a sociometria de Jacob Levy Moreno (criador do Psicodrama) como uma
microssociologia que influenciou vivamente o pensamento político francês da primeira
metade do século XX, enfatizando que “nas experimentações microssociológicas, os
investigadores devem tornar-se não somente observadores participantes, mas também
atores participantes” (p. 29).
A pesquisa e a intervenção nos grupos, nas organizações e nas comunidades
também são campos de atuação da Psicossociologia, uma vertente da Psicologia Social,
desenvolvida no início do século XX. Levy, Nicolai, Enriquez e Dubost (1994) afirmam
que a Psicossociologia pretendeu, em seus primórdios, monopolizar a questão da
mudança social. Porém, esta pretensão, mesmo em uma perspectiva microssociológica,
não foi aceita pelos cientistas sociais. Assim, segundo o autor, a Psicanálise se tornou
influência necessária, desde os anos 60, para uma reavaliação dos métodos e objetivos
da Psicossociologia, “dominados principalmente, até então, por perspectivas
lewinianas, rogerianas e morenianas...” (p.111). Nesse sentido, conclui que a
Psicossociologia necessita de uma abordagem pluridisciplinar e de se renovar, a partir
das contribuições externas.
Em função das críticas, Levy (2001) desenvolveu uma concepção mais abrangente
de clínica social, afirmando-a “uma démarche específica, simultaneamente de pesquisa
e de intervenção, junto a grupos e organizações” (p. 3). E define o ato clínico como
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125
uma “intervenção em uma situação sempre marcada por uma crise do sentido” (p.23).
O posicionamento clínico é o ato fundamental do pesquisador e é “uma compreensão
daquilo que faz a singularidade radical de uma situação, de um problema, ou de um malestar vivido por determinados grupos ou pessoa”. (p.23-24). Para Levy (2001), este
posicionamento considera o imaginário, a intuição, o trabalho inconsciente, a atividade
de pensamento e de elaboração de sentido, essenciais para a compreensão da realidade,
em sua globalidade e singularidade.
Outro enfoque psicossociológico, que articulou contribuições freudianas e
lewinianas, foi elaborado por Pichon-Rivière (1988). O autor, ao criar o grupo operativo,
na década de 40, afirmou a presença de conteúdos conscientes e inconscientes na
situação grupal. Nesse sentido, as funções principais do coordenador eram: estabelecer
um enfoque para a operação do grupo e ajudar, por meio de intervenções interpretativas,
o grupo a compreender seus processos inconscientes e a realizar uma tarefa reflexiva,
a fim de cumprir sua tarefa externa. Portanto, Levy (2001) e Pichon-Rivière (1988) são
exemplos de teóricos que, ao aprofundar e desenvolver métodos de pesquisa e de
intervenção psicossociológicas, contribuíram com o projeto democrático e para a luta
contra a “colonização das consciências”.
Em Ciências Sociais, a politicidade, do pesquisador, estrutura a pesquisa
qualitativa, pois tanto ele quanto o sujeito são atores responsáveis pelo processo de
conhecimento. Para Foucault (2002), os regimes de verdade e os exercícios de poder
emaranham todo cientista às práticas sociais e aos enunciados de saberes. Tanto o
saber local como o senso-comum deve ser valorizado e devem trazer novas noções de
tempo/espaço para a ciência, impregnadas pela novidade e pela presente luta por uma
sociologia das ausências e da urgência. As críticas à epistemologia ocidental apontam
que é o momento de se resgatar as verdades caladas pelas verdades dos conhecimentos
ocidentais (Geertz, 1989; Santos, 2003).
A concepção do ser humano no paradigma subjetivista/construtivo/interpretativo
da Psicologia é a de que ele é ator, ou seja, tem autonomia, liberdade para dar sentidos
e para escolher. Segundo González Rey (1997,1999), os partícipes da pesquisa em
Psicologia estão influenciados, mas não subjugados, ao processo sócio-cultural. Assim,
o processo de atribuição de sentidos advém da relação a ser construída entre o
pesquisador e aqueles que são estudados, ou seja, a interpretação implica em
intersubjetividade. A pesquisa é, pois, um processo interacional sujeito observador/
sujeito observado. A Psicologia que se propõe a conhecer o homem, sua vivência nos
grupos e na sociedade e intervir no seu sofrimento para fornecer-lhe recursos que o
ajudem a evoluir, exige superação da quantificação e dos formalismos radicais, exige a
valorização do saber do sujeito e das suas emoções (Moreno, 1983; Neubern, 1999).
Ao psicólogo pesquisador, inserido no atual paradigma científico, se impõem
alguns desafios para atingir os critérios específicos das Ciências Humanas. O primeiro
desafio científico na construção do conhecimento é o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento de métodos qualitativos que melhor captem a apreensão da realidade
subjetiva e interacional do ser humano. O segundo desafio é contribuir para a
complementação das metodologias quantitativas e qualitativas – ou para a síntese
destas metodologias – para se atingir o conhecimento de um objeto tão complexo,
126
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como o ser humano; realizado por um observador que é o seu reflexo, um outro ser
humano (Demo, 1998).
Denzin e Lincoln (1994) afirmam que os avanços epistemológicos propõem
discussões sobre o qualitativo e o quantitativo visando a superação das visões clássicas
do que seja exato ou do que seja científico, por meio da integração coerente de ambas
metodologias, viabilizadora dos objetivos e da produção do conhecimento específico
das ciências humanas. A conjugação das metodologias quantitativas e qualitativas
demonstra que a palavra é insuficiente para descrever o ser humano, que a observação
do seu comportamento é insuficiente para compreendê-lo, e que a captação da ação
humana também não abarca sua realidade. Qualquer abordagem atingirá seus objetivos,
se nela estiver contida a interdisciplinaridade e a noção dialética de quantidade na
qualidade e de qualidade na quantidade.
O terceiro desafio do psicólogo-pesquisador: desenvolver um pensamento
polidimensional que enfatize as relações complexas dos elementos da realidade humana
e social, com uma visão poliscópica do ser humano (Morin, 2000b) e por meio da qual
poderá comunicar as dimensões de sua vida e permitirá que o sujeito também as
comunique. Na Psicologia, a prática da pesquisa qualitativa visa integrar os
componentes constitutivos do ser humano: o psíquico, o interpsíquico, o social, o
histórico, cultural, o espiritual e o biológico. Tenta-se uma composição de, no mínimo,
quatro aspectos: a subjetividade do pesquisador, a literatura científica, o objeto/sujeito
da pesquisa e as variáveis que permeiam o processo da pesquisa, dentre elas a
comunidade científica, a metodologia de pesquisa e o senso científico aliado ao senso
comum (Santos, 1998).
O quarto desafio do psicólogo-pesquisador é tentar captar a dinâmica da
realidade. A realidade possui dinâmicas padronizadas e padrões dinamizados. Os
padrões comportamentais e sociais são o mote dos estudos positivistas. A partir do
paradigma moderno, a ciência tentou captar a dinâmica, mas ainda se sustenta na
análise. A análise é um procedimento para descobrir o lado invariante da dinâmica.
Trata-se de decomposição do todo em suas partes. As leis ou os padrões regulares
trazem segurança para o ser humano, pois lhe expõe um pouco do que pode ser
conhecido e dominado. Neste sentido, ainda hoje, cabe em ciência o que admite
formalização, que é um tipo de interpretação, selecionando na realidade seus algoritmos,
ou, seja, os pedaços recorrentes (Demo, 2000).
A tentativa de apreensão de processos dinâmicos da realidade, pressupõe, além
de novas concepções sobre o conhecimento, o ser humano, e a forma de conhecê-lo:
o olhar criativo, o inovar a postura diante do objeto/sujeito de estudo e da comunidade
científica, uma apreensão da categoria do momento e a consciência das implicações
políticas da ciência para a sociedade.
O quinto desafio da pesquisa qualitativa floresce da concepção de que o ser
humano se forma nos vínculos, não vive sem grupos, sociedade ou cultura. Essa visão
impõe o desenvolvimento de métodos de pesquisa que sejam capazes de captar a
interação humana e que propiciem o conhecimento dos fenômenos relacionais. Sendo
a intersubjetividade constitutiva do ser humano, a pesquisa qualitativa tenta aprofundar
os conhecimentos dos fenômenos relacionados à troca mental específica que ocorre
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num vínculo ou num grupo. É o reconhecimento de que o ser humano é social por
excelência (Maturana & Verden-Zoller, 1997). Neste caso, há limites na conceituação,
há limites na observação e a vivência ou a experiência, segundo Geertz (1983) e Moreno
(1975), devem ter prevalência.
Qual seria o método mais adequado para dar conta desta interação multifacetada?
Seria um método etnográfico-participativo-ativo-interativo? Como pensar num método
que conjugue a situação, a ação grupal num momento e a experiência da realidade dos
sujeitos do estudo, e ao mesmo tempo forneça o conhecimento de tramas ocultas
pertencentes à realidade social, e permita a intervenção coletiva para a construção de
novos modos relacionais, menos sofridos?
O sexto desafio do psicólogo pesquisador é o treino do olhar que se posiciona
globalmente, pois sua pesquisa é ativa e interventiva. Dentro desta experiência, ele se
torna um terapeuta-interventor-observador-participante, mediando a realidade e o
conhecimento através dos métodos que escolhe para elucidar seu pensar (Minayo,
2002). Em determinados contextos da Psicologia, como o clínico e o grupal, é árduo
estabelecer a regra do jogo científico clássico de coleta de dados e de obediência a
antigos critérios de rigor, pois a verificação experimental é quase impossível e a
subjetividade e a intersubjetividade são partes do processo. Faz-se mister construir a
condição de especificidade científica das Ciências Humanas, devido à pluralidade de
conflitos na obediência às regras empíricas lógicas.
O cenário atual produz, portanto, muitas questões: Que métodos contribuem
para o conhecimento das interações entre os diversos sujeitos relacionados a uma
problemática social? Como os indivíduos de uma comunidade concebem um
sofrimento comunitário e a eles se adaptam? Como pesquisar e tratar síndromes
culturais coletivas? Que critérios científicos específicos legitimam cada vez mais a
pesquisa qualitativa, ativa, dinâmica, situacional, interventiva na Psicologia? As
regras científicas do rigor, da validade e da fidedignidade podem ser cumpridas no
universo da intersubjetividade; ou elas precisam ser redefinidas para esta aplicação?
Diante de produções da pesquisa-interventiva tão complexas, como, por exemplo,
mensurar as mudanças ocorridas num grupo pesquisado? Qual é a ética específica
da pesquisa intervenção? Que ciência se produz diante das novas demandas
sociopsíquicas e com a mediação de tantos conhecimentos advindos de outros
saberes? Sobre estes questionamentos éticos, alguns autores contemporâneos
(Dutra, 2004; Morin, 2000a; Neubern, 2005) procuram enfocar a ética como
responsabilidade social (de modo geral). Edgard Morin só reconhece o ser humano
como parte de um quádruplo pertencimento: é indivíduo, é parte da sociedade, é
parte da espécie e parte do desenvolvimento planetário. Elizabeth Dutra volta-se
para a importância dos compromissos do profissional e do pesquisador com as
conseqüências da ação de sua pesquisa. Maurício Neubern indica que o pesquisador
precisa se reconhecer no que está estudando, e dialogar com seu objeto de
investigação, ou seja, aprender e refletir com ele, e estar pronto a se transformar ao
entrar em “contato” com as “verdades” advindas do que se acrescenta de
conhecimento ao conhecimento já conhecido.
O sétimo desafio do psicólogo é continuar na luta por uma ciência politizada
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que busca um mundo mais justo e digno. Segundo Campos, Pochmann, Amorim e
Silva (2003), o Brasil é um país que muito faz sua população sofrer, devido aos
índices alarmantes de exclusão social, racial, miséria, de morte infantil e de falta de
acesso ao ensino público, dentre outras misérias econômicas, afetivas e sociais. A
pesquisa qualitativa, numa perspectiva crítica, cuida do homem não apenas da
doença, mas do relacionamento do pesquisador/interventor com o diferente/
semelhante mundo do outro e da experiência socio/cultural humana. Uma Psicologia
reflexiva e crítica alerta o pesquisador sobre os limites do empirismo e do racionalismo
e sobre a necessidade dos avanços metodológicos e avaliativos das metodologias
qualitativas e vivenciais.
A epistemologia socionômica do ser humano em relação
O pesquisador pode encontrar, nos intercâmbios interdisciplinares com a
Filosofia, as Ciências Sociais e Naturais modernas, o apoio para seus trabalhos.
Apresentamos, a seguir, a Socionomia, (Psicodrama e Sociodrama) como um dos
suportes teóricos metodológicos para o psicólogo pesquisador.
As idéias de Moreno: impasses e conquistas epistemológicas
No início do século XX, entre 1920 e 1925, o médico e cientista social Jacob Levy
Moreno (1974, 1975) alinhou-se aos autores que já apresentavam as atuais questões
epistemológicas e metodológicas, ao criar a Socionomia – ciência que estuda a
articulação do individual com o coletivo e as leis grupais.
Por razões históricas e de divulgação, a Socionomia ficou conhecida como Psicodrama,
pois somente ao final de sua vida, nos anos 70, Moreno sintetizou seus conhecimentos e
metodologias e propôs a Socionomia (Moreno, 1974). A Socionomia contém três ramos
interligados: a Sociodinâmica, a Sociometria e a Sociatria. A Sociodinâmica estuda a dinâmica
e as leis grupais e seu principal método de investigação é o “role-playing” ou a interpretação
de papéis. A Sociometria estuda o desenvolvimento e as estruturas grupais e seu principal
método é o teste sociométrico. A Sociatria visa a aplicação dos conhecimentos socionômicos
(e de ciências afins) para a intervenção terapêutica nos indivíduos e nos grupos em
sofrimento. O Teatro Espontâneo foi o primeiro método de pesquisa-socioterapêutico
criado por Moreno, em 1921, e logo após surgiram a Psicoterapia de Grupo, os Jogos
Dramáticos, o Role- Playing, o Psicodrama e o Sociodrama.
A ação produzida por estes métodos ocorre por meio de níveis de aquecimentos dos
participantes, que viabilizam a transformação dos papéis sociais para os psicodramáticos
e imaginários num espaço específico. Nesta vivência dramática, há uma realidade
suplementar, na qual o psicodramatista e o grupo (re)vivem situações-problemas buscando
respostas novas para elas, num processo co-criativo (Aguiar, 1990; Nery, 2003).
Moreno realizou severas críticas aos cientistas sociais e tentou afirmar sua posição
de cientista inovador, na década de 30 quando já morava nos Estados Unidos, ainda na
fase do desenvolvimento da Sociometria, Estas críticas, mesmo não sendo bem aceitas,
foram decisivas para a construção do seu projeto socionômico e proporcionaram o
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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questionamento: “deve existir um meio termo entre os extremos vigentes: o caráter
inumano da experimentação em laboratório e o caráter demasiado humano – e de
alguma maneira mágico – da clínica médica” (Moreno, 1972, p. 25).
Moreno afirmava que os estudos em Ciências Sociais tinham certos impasses,
dentre eles a separação da realidade social, devido a uma falta de compreensão das
condições reais da vida em grupo, nos limites de uma planificação de experiências, e
também a uma certa incapacidade para pensar abstratamente as realidades concretas.
A partir dessa visão, o autor teceu críticas a outros cientistas sociais contemporâneos:
Kurt Lewin, Robert Freed Bales, Sigmund Freud e Hippolyte Bernheim. Segundo Moreno,
Lewin em seus estudos sobre a influência dos climas democrático ou autocrático no
rendimento do trabalhador, cometeu dois erros:
Em primeiro lugar, o de não realizar uma investigação intensa da situação desde o
ponto de vista sociométrico. A sociometria tem mostrado que o grupo possui uma
unidade estrutural dinâmica. Isto deveria ser levado em conta quando se trata de
estabelecer a igualdade de dois grupos, ao submetê-los, respectivamente, a ambos
regimes. Como essa igualdade foi insuficientemente estabelecida, a experiência
carece de uma base sólida. Há aqui, o segundo erro de Lewin: o papel de chefe de
tipo autoritário pode ser atribuído a um homem mais apto para dirigir um grupo
democrático; e o papel de chefe de tipo democrático, pode ser atribuído a alguém
mais qualificado para dirigir o grupo que devia submeter-se a um regime autoritário:
carecemos de toda certeza em relação a este ponto. (Moreno, 1972, p. 26)
Moreno também identificou ressalvas relativas aos estudos de Bales sobre a
interação humana. Bales trabalhou com colaboradores, que se postavam atrás de
espelho unidirecional, e observavam pessoas resolvendo um problema de xadrez. Elas
sabiam que eram observadas, mas não viam os observadores. Para Moreno importa
pouco, para o método, a visibilidade dos observadores para os sujeitos. O problema é
que Bales não falava de seus sujeitos, pois apenas pretendia categorizar as interações
diante de um problema. Numa perspectiva psicodramática, é importante que o
experimentador conheça os sujeitos, as situações em eles que se encontram, e suscite
seus estados de espontaneidade, para que distinga os vários aspectos do problema,
com mais discernimento.
O método de Bales (...) trata de uma ciência do observador e não de uma ciência
dos atores e de suas ações. (...) Bales parte de uma teoria incompleta da ação
(...). No ponto a que chegamos sobre as investigações da ação e da dinâmica do
grupo, uma teoria incompleta da ação representa um sério perigo para o trabalho
experimental. (Moreno, 1972, p. 28)
Em relação ao método psicanalítico, Moreno reconhece sua importância ao
progredir ante a observação externa. Porém, “Freud, em vez de apelar à personalidade
total do sujeito, se deteve no meio do caminho, dirigindo-se ao sujeito (...) que se
inclina sobre seus traumas passados (...) O momento presente só tinha um interesse
secundário (...)” (Moreno, 1972, p. 44-45). A atitude oposta consistia em entrar na
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situação como um diretor de cena e utilizar técnicas que se apoiassem no presente
imediato, na direção mesma da vida e do tempo.
E quanto à corrente ideológica representada por Bernheim que estudou os
estímulos interpessoais, que conduziu ao estudo dos grupos que das multidões, Moreno
(1972) afirma que
essa investigação constituiu um progresso na medida em que se interessou mais
pelos grupos do que pelos indivíduos tomados isoladamente. Os investigadores
russos começaram considerar o grupo como uma realidade superior ao indivíduo,
como coletividade e a estudar as formas que essas coletividades podiam assumir
em condições diferentes. Mas quanto mais importantes se faziam os grupos,
mais os indivíduos eram reduzidos a símbolos e suas interações reduzidas a
processos nebulosos. Como esses investigadores só podiam captar a superfície
dessas coletividades, não conseguiam senão estudar estrutura superficiais.
(Moreno, 1972, p. 45)
Principais aspectos teóricos
Em sua busca por uma ciência ativa Moreno criou a Sociometria e obteve
resultados, como por exemplo, o estudo de derivações entre a probabilidade calculada
e as eleições efetivas em uma determinada configuração social (escolhas sociométricas),
e a descoberta das redes psicossociais. A Sociometria revelou-se na criação de um
método que considerasse o indivíduo no seio do coletivo. Assim, se poderia obter a
geografia psicológica da coletividade. Na estrutura de uma coletividade está a posição
concreta de cada indivíduo e o núcleo de relações que se forma de maneira mais rica ao
redor de alguns e mais pobre ao redor de outros. “Este núcleo de relações que constitui
a menor estrutura social, é o átomo social (...) Partes do átomo social se relaciona com
outros átomos, formando cadeias complexas de inter-relações, ou seja, as redes
sociométricas.” (Moreno, 1972, p. 62). O que Moreno chama de átomo social
Designa, pois, os horizontes de um espaço social, definido pela intersubjetividade
e que circunscreve um campo de interação de vários sujeitos; interpenetração,
oposição e síntese do atual e do virtual, do real e do imaginário, do co-consciente
e do co-inconsciente. (...) Os sociólogos aceitam tacitamente uma escala que
começa pelo indivíduo e termina com o universo inteiro. Nós, os sociômetras,
recusamos esse ponto de vista. É o átomo social que constitui a menor unidade
social e não o indivíduo. (...) Com o conceito de átomo social, reencontramos a
interioridade que (...) definia a própria sociometria nas suas propostas
metodológicas. (Naffah Neto, 1997, p.171)
Para Moreno, uma teoria da ação se vincula com categorias “actoriais” e com
potencialidades de interação, dentre elas: a espontaneidade, a criatividade, o momento,
o encontro dos atores, a complementação dos papéis sociais, os egos auxiliares, e outras
categorias que, relacionadas com a situação, traduzem as experiências mutuamente vividas
de um mundo de ator. A proximidade e a intensidade geram laços entre os indivíduos, que
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131
demonstram uma dinâmica relacional, e grupal, única e específica que resulta da troca de
conteúdos conscientes e inconcientes. Esse intercâmbio mental é o que Moreno (1975)
denomina de co-consciente e co-inconsciente. Segundo Naffah Neto (1997), “o conceito
de co-inconsciente representa um esforço (...) de caracterizar o inconsciente não mais
como uma dimensão intrapsíquica e que se esconde no âmago de cada um, mas como
uma dimensão presente na própria vida intersubjetiva” (p. 126).
A Socionomia evitou métodos terapêuticos que se propusessem a transformar o
indivíduo ou a levá-lo a uma conduta normal devido a uma ação direta. Adotou uma
terapêutica social que contemplava a mudança do indivíduo, considerando a
reorganização dos grupos a que pertence. Quando um indivíduo “encontra seu lugar
em uma coletividade (...) se encontra, ao mesmo tempo, na segurança de não transgredir
os limites de seu desenvolvimento e de sua expansão naturais: então lhe resulta possível
apelar a uma forma modificada de sublimação para seguir desempenhando seu papel
de agente...” (Moreno, 1972, p. 41)
Todas as críticas realizadas por Moreno aos teóricos sociais, seus
contemporâneos, foram feitas na tentativa de desenvolver uma epistemologia e
metodologias mais coerentes para a pesquisa do sujeito em relação. O autor tentou,
com menos sucesso do que desejava, ser reconhecido em suas idéias e pesquisas.
Buscou viabilizar que a Sociometria ocupasse um lugar entre a psicologia, o socialismo
científico e a Sociologia, introduzindo métodos experimentais aplicáveis a todas as
Ciências Sociais. Assim, a Sociometria se torna uma ciência que tenta eliminar as
dicotomias indivíduo-sociedade, pesquisador-pesquisado, medida-experiência vital e
confere aos sujeitos um status de investigador, mercê do qual deixam de ser
sujeitos passivos para se converterem em atores que participam em seus
experimentos e dão valor aos seus resultados. Trabalha sobre grupos constituídos
ou em formação e elabora técnicas utilizáveis em situações concretas (...) Se
interessa tanto pela dinâmica, quanto pela medição e avaliação das ações no
grupo. (Moreno, 1972, p. 15)
Moreno (1974, 1975) pressupõe que a compreensão da intersecção indivíduocoletividade ou do ser-humano-em-relação está no desvendamento da Tricotomia
Social. A Tricotomia Social é o conjunto da realidade social mais a resultante da
articulação entre realidade externa e a matriz sociométrica. A realidade social é constituída
das dinâmicas e das padronizações vinculares e sociais específicas, geradas pelo
consciente e inconsciente comum (co-inconsciente). A realidade externa é a realidade
formal dos papéis e funções sociais. A matriz sociométrica é a realidade informal do
campo das relações, em suas estruturas e fluências ocultas e afetivas: afinidades,
identificações, escolhas para realizações de projetos dramáticos primários e secundários.
A verdade que o socionomista procura está na realidade social produzida pela
intersubjetividade, ou pelos estados co-conscientes e co-inconscientes das relações
humanas e que pode ser desvendada por métodos de ação.
Em síntese, a epistemologia moreniana (Moreno, 1983), parte do pressuposto de
que as Ciências Humanas produzirão análises mais completas sobre o ser humano,
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quanto mais este se fizer presente em sua subjetividade. A subjetividade total traz ao
investigador social um retrato fenomenológico do que se passa na situação humana. Se
o subjetivismo for levado a sério, assume um caráter quase objetivista que submete os
fenômenos à mensuração. Quanto mais exaustiva e honestamente forem atuadas as
experiências subjetivas, mais precisas elas se tornam. Este autor afirma ainda que no
campo das ciências humanas é fundamental produzir a validação existencial, não apenas
a validação científica. A validação existencial está presente na experiência do sujeito
concreto, na vivência da liberdade de expressão, nas reações espontâneas às situações.
Quando as validações existenciais e científicas não se excluem uma à outra e são
construídas num continuum é possível superar a dicotomia objetividade/subjetividade
na ciência.
A epistemologia socionômica também se alicerça no pressuposto de que o ser
humano se estrutura e se desenvolve nas relações humanas. Se o ser humano é um ser
em relação, um ser em situação, sua existência está atrelada à co-existência. Este novo
objeto a ser estudado abre as portas para uma pesquisa interventiva, não só analítica,
mas também sintética.
As críticas
Porém, não faltam críticas epistemológicas ao projeto socionômico de Moreno,
dentre elas as de Gonçalves (1990) e as de Naffah Neto (1997). A maioria das críticas
epistemológicas ao Psicodrama surgem dentro do escopo de que Moreno foi um teórico
um tanto indisciplinado e que sua obra foi publicada de modo errático e sem uma
costura teórica seqüencial. Gonçalves (1990) critica a ambigüidade e certa inconsistência
metodológica e acadêmica que Moreno apresentou durante sua trajetória de
epistemólogo. A autora, partindo do conceito de Russell (1978, conforme citado por
Gonçalves, 1990) de que epistemologia: é “um escrutínio crítico do que é tido como
conhecimento” (p. 91), afirma que se um filósofo usar os critérios de epistemologias
atuais, o corpo teórico psico e sociodramático, por ser ambíguo e precário, pode não
resistir aos exames necessários. Mas, em contraposição, afirma que é preciso ver as
condições de possibilidade de conhecimento efetivo e não se deter diante da fragilidade
do objeto.
Moreno (1974, 1975) (paradoxalmente) também tentou se inserir numa ideologia
positivista e operacional de sua época, e criou testes para observar e quantificar o
desempenho de papéis, os graus de espontaneidade de um indivíduo, numa situaçãoproblema, e verificou, mediante o teste sociométrico, a presença do fator tele, fator
sócio-psíquico responsável pelas escolhas afetivas mútuas diante de determinado
critério de ação. Atualmente o fator tele está sendo revisto por alguns autores
psicodramatistas (Perazzo, 1994; Nery, 2003) como fator sócio-psíquico catalizador da
co-criação. Porém Gonçalves (1990) afirma que a maior parte dos conceitos
psicodramáticos são criados “ad hoc” ou de teorias sociológicas e filosóficas pouco
conhecidas por Moreno.
O Psicodrama é um teatro do improviso (Moreno, 1984). O pesquisador
psicodramatista tem para sua informação a dramatização, que também é uma forma de
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conhecimento. Gonçalves (1990, citando Bachelard, 1985) afirma que para examinar o
conhecimento atingido por um protagonista numa dramatização, não se pode usar uma
epistemologia que investiga os enunciados científicos, ou uma filosofia diurna, Com
certeza, Gonçalves (1990) instiga o psicodramatista a se depurar epistemologicamente,
para que se desenvolvam os conceitos socionômicos com mais consistência na
efetivação do conhecimento da realidade relacional ou grupal. É importante atentar à
sua proposta de reconhecer a cena dramática como um produto da imaginação
concretizada no espaço para a ação, como uma encenação da fantasia ou do desejo.
Trata-se de uma leitura louvável da produção sociopsicodramática.
Outra importante crítica à Socionomia foi realizada por Naffah Neto (1997). O
autor partiu de uma concepção marxista para afirmar que o projeto moreniano foi
precário, devido às ausências, em suas propostas, da visão histórica da constituição e
reprodução da sociedade de classes e de seus determinantes econômicos e ideológicos.
Por exemplo, na reorganização sociométrica da penitenciária de Hudson, na década de
1930, Moreno (1978) realizou testes sociométricos e fez intervenções sociátricas durante
18 meses, para que as detentas e as carcereiras pudessem conviver com maior respeito,
colaboração e afetividade. Naffah Neto (1997) afirma que Moreno, ao reorganizar a
penitenciária, não fez uma apreensão da realidade global, pois não abordou o momento
histórico da sociedade americana e não descreveu pormenores das forças econômicas,
políticas e ideológicas daquele momento.
A análise marxista da teoria moreniana realizada por Naffah Neto, despertou-lhe
a necessidade de não restringir o conceito de papéis sociais a unidades culturais de
conduta, que operacionalizam o funcionamento do eu, nos diversos momentos e
contextos sociais. O autor adverte sobre a existência de um outro tipo de papel que
expõe a relação dominador dominado e circunscreve os papéis sociais: os papéis
históricos. A Sociatria, nesse sentido, se propõe a um “trabalho de explicitação,
desenvolvimento e transformação das relações intersubjetivas, numa dimensão que
enfoca as tensões e as ideologias sociais, nas suas formas de manifestação mais
ampla” (Naffah Neto, 1997, p. 135). Para este autor a Sociometria tem seu espaço no
campo microssociológico, enfocando a unidade de pesquisa do indivíduo para seu
meio social, mantendo, porém, um espaço para a compreensão da subjetividade (tal
qual enfoca Lapassade, 2005). A Socionomia não pode dar conta de uma visão estrutural
da sociedade. O drama humano é tão amplo e contraditório que resulta difícil um
projeto abarcar todas as suas dimensões. Por isso, o projeto socionômico produz uma
revolução, dentre as diversas revoluções possíveis de serem realizadas na sociedade,
principalmente quando integra as contribuições marxistas em seu projeto terapêutico.
Portanto, Moreno, apesar das diversas críticas epistemológicas sofridas à sua
criação, inovou e se tornou um dos precursores de uma ciência social que estuda,
numa visão mais totalizante, o indivíduo na coletividade; foi um criador de experimentos
que trazem a situação concreta vivida pelos sujeitos e os tornam atores da pesquisa e
um cientista que trouxe a importância da participação do pesquisador no processo de
construção de conhecimento, dentre outras questões epistemológicas.
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Considerações finais
Nossa pretensão neste texto foi tentar traçar uma trajetória que indica as
possibilidades de que vários contextos que têm ficado fora do eixo das pesquisas
venham a ser incluídos, na medida em que se possam ampliar as opções metodológicas
para este fim, como bem critica Demo (1998) apontando a ditadura do método como o
ponto de partida das reivindicações das Ciências Sociais, nas opções metodológicas
próprias destas ciências.
Uma pesquisa relacional contextual ou ecológica deve usar métodos que tratem
e pesquisem não apenas o indivíduo, mas também o indivíduo em seus vínculos e
grupos, assim como os vínculos e os grupos. Os métodos de ação facilitam os estudos
interdisciplinares e ganham mais eficiência, quando aplicados in situ. Na situação
concreta, permite-se a subjetividade em sua expressão total e, assim, é mais possível
“objetivamente ver” o que é ser humano.
Vários pesquisadores psicodramatistas têm se proposto a refletir sobre as
configurações de suas pesquisas (Conceição & Sudbrack, 2003; Marra & Costa, 2004;
Nery & Conceição, 2005; Nery & Conceição 2006; Polejack & Costa, 2003; Seixas,
1992; Zampieri, 1996), na busca de apoio epistemológico e metodológico que possibilite
que várias realidades, até então fora do circuito de conhecimento, venham a se constituir
em contextos interessantes também destes pontos de vista, e que também possam
gerar demandas por parte de seus integrantes.
Para Santos (1998), a ciência social é uma ciência subjetiva e compreende os
fenômenos sociais como de natureza subjetiva, a partir de atitudes e interpretações
mentais. O conhecimento obtido deve ser intersubjetivo, descritivo e compreensivo,
ao invés de objetivo, explicativo e nomotético. Este autor reconhece que ainda estamos
em fase de transição científica, resgatando o simples, o prático, o útil para nossas
vidas e para a sociedade. A questão, mais que nunca, é: como pode a ciência melhorar
a vida do ser humano? Como as pesquisas sobre a sociabilidade humana podem
oferecer subsídios para o avanço da discussão sobre as relações éticas na atualidade?
Como os pesquisadores que se interessam pelos fenômenos grupais podem dar
continuidade ao tanto que já se produziu em matéria de conhecimento sobre as relações
humanas?
Compartilhamos com Ferreira, Calvoso e Gonzales (2002) a posição de a pesquisa
qualitativa não tem pretensão de atingir verdades absolutas, mas que cumpre seu propósito
de observação dos fenômenos da realidade, e que pode, sim, ajudar a melhoria das condições
humanas (Demo, 1998). Finalmente queremos afirmar as possibilidades que o Psicodrama,
em sua epistemologia de relação e em seu método de ação, oferece ao pesquisador.
Reconhecemos o Psicodrama, como aponta Demo (1998), com qualidades que proporcionam
discussão, re interpretação, dinâmica passageira, dimensão histórica e principalmente, a
qualidade formal e a política. A qualidade formal (instrumentos e procedimentos) proporciona
que possamos reproduzir a experimentação e a qualidade política (relação social) proporciona
que possamos intervir através da observação e da ação.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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Recebido em maio de 2006
Aceito em novembro de 2006
Maria da Penha Nery é psicóloga, doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
Liana Fortunato Costa é psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo; docente
do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.139-151, jan./jun. 2007
Uma breve análise da constituição
do sujeito pela ótica das teorias de Sartre
e Vygotski
Maria Fernanda Diogo
Kátia Maheirie
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir em torno da constituição do sujeito pela ótica
das teorias de Sartre e Vygotski. Considerando que a mediação social nos forma e constitui
ao mesmo tempo em que nós constituímos ativamente nosso contexto, os sujeitos devem
ser apreendidos em função da relação entre objetividade e subjetividade. Para compreender
como uma pessoa chega a ser quem ela é, necessitamos contemplar as condições sociais,
culturais, históricas e econômicas que participam da sua constituição. Na
contemporaneidade, vivemos o surgimento de um novo paradigma que se ergue sob a égide
da fragmentação, da indeterminação, do sincretismo, da indiferença e da intensa desconfiança nos discursos universais. Tudo é urgente, imediato, instantâneo, efêmero. Buscamos
aqui refletir como estas novas nuances alteram os modos de ser e de agir na
contemporaneidade, descentralizando os sujeitos e forjando identidades baseadas nesta
emergente dominante cultural.
Palavras-chave: constituição do sujeito, mediação social, contemporaneidade.
An abbreviation analysis of the constitution of subject based
on the theories of Sartre and Vygotski
Abstract: The objective of this paper is to contemplate the constitution of subject based on the
theories of Sartre and Vygotski. Considering that the social mediation form and constitute the
subjects at the same time in that these constitute actively their social contexts, the subjects
should be apprehended in function of the relationship between objectivity and subjectivity. To
understand the constitution of subjects needed to contemplate the social, cultural, historical
and economical conditions that participate in their constitution. In the modern-day, we lived
the emergence of a new paradigm that rises under the aegis of the fragmentation, indetermination,
indifference and intense suspect in the universal speeches. Everything is urgent, immediate,
instantaneous and ephemeral. This paper contemplate as these new nuances change the manners
of being and of acting in the modern-day, decentralizing the subjects and forging identities based
on this emerging cultural dominant.
Key words: constitution of subject; social mediation; modern-day.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
139
Introdução
Vivemos em um estranho círculo
cujo centro está em toda a parte
e a circunferência em parte alguma (Pascal)
A partir de uma perspectiva histórico-dialética, todo sujeito se constitui como
ser social, histórico, produto e produtor do contexto no qual está inserido. Este enfoque
é, portanto, relacional, ou seja, considera que o sujeito se constitui na relação com as
pessoas, com a natureza, com as condições de partida, numa dimensão que envolve
passado, presente e futuro (Maheirie, 1994; Sartre, 1960/1987).
Sob esta ótica, os sujeitos são tomados como tendo seu desenvolvimento real
sustentado por determinadas condições materiais, que se constroem na tessitura das
relações estabelecidas. Para embasar a visão de sujeito que propomos neste artigo,
aparamo-nos nos trabalhos de Vygotski e Sartre1 .
A psicologia histórico-cultural proposta por Vygotski e seus colaboradores tem
como tema central a constituição do psiquismo humano. O autor considera que ao
nascer a criança se encontra imersa num universo sócio-cultural, num mundo significativo,
cognoscível e comunicável. A descoberta e a apropriação deste universo definem o
conteúdo do processo de constituição do ser humano da criança (Pino, 1993).
Nesta forma de ver o sujeito, tornamo-nos alguém na medida em que nos
relacionamos com as coisas, com a natureza, com as pessoas, enfim, com a sociedade
na qual vivemos (Maheirie, 1994). Nada é considerado inato ou inerente ao sujeito,
não há necessidade humana posta fora ou além da sua própria produção: tudo que é
humano é produto da ação humana.
Isso significa que nascemos ninguém e vamos nos tornando alguém na medida
em que vivenciamos as relações com as coisas, com os homens, com o tempo e
com o corpo. Nos essencializamos, ou seja, constituímos nossa identidade a
partir daí, e, enquanto produto das relações, esta identidade, este EU, é uma
síntese inacabada, uma totalização destotalizada e retotalizada para se destotalizar
novamente: a identidade é histórico/dialética. (Maheirie, 1994, p. 115)
A psique é a expressão subjetiva dos processos cerebrais sendo, portanto, uma
unificação do social e da natureza. Mas é bom lembrar que natureza e social não são
dados: ambos resultam de um processo histórico, que os origina e transforma – processo
este em movimento constante. Há um mundo material que antecede a existência humana,
porém, uma vez transformado pela ação humana, este deixa de ser natureza para se
transformar em natureza significada e, portanto, cognoscível (Zanella, 2004).
Contudo, cabe ressaltar que o sujeito não é simples produto da história, a qual
tampouco se faz relativa somente ao passado. Neste ponto, ancoram-se as contribuições
1
Liev Semiónovitch Vygotski (1896-1934) e Jean-Paul Sartre (1905-1980) desenvolveram teorias cuja base é
a matriz histórico-dialética, contudo ambos possuem diferentes concepções ontológicas do ser humano. Neste
artigo, realizaremos algumas aproximações entre os autores em relação às suas concepções de desenvolvimento humano cuja base e gênese é o social.
140
Aletheia 25, jan./jun. 2007
sartreanas ao nosso artigo. Para Sartre (1960/1987), o sujeito se caracteriza pela
superação de uma situação, realizando suas escolhas em relação ao campo dos
possíveis: mesmo que ele próprio não se reconheça nestas escolhas, mesmo que estas
sejam mais ou menos alienadas, ele está fazendo história, dado que esta é obra coletiva
da ação de todos os homens. O método sugerido pelo autor busca compreender as
ações dos sujeitos em relação às suas condições objetivas. Este movimento, que é
progressivo-regressivo, vai da singularidade à universalidade, retornando à
singularidade, numa perspectiva histórica, contemplando passado, presente e futuro
(Maheirie, 1994) e buscando encontrar “... o movimento de enriquecimento totalizador
que engendra cada momento a partir do momento anterior” (Sartre, 1960/1987, p. 175).
Numa sociedade em constante transformação, tal como vivemos na
contemporaneidade, os sujeitos têm suas subjetividades forjadas pelas nuances
culturais emergentes, que alteram os modos de ser e de agir em seus contextos
específicos. Jameson (1997) aponta que as últimas décadas têm sido marcadas por
rupturas no campo das ideologias, das artes, das ciências, da política e das estruturas
sociais, configurando o que se convencionou chamar de pós-modernidade. O autor
alerta que esta não é uma questão puramente cultural ou de estilo, mas os teóricos que
estudam o assunto alardeiam um novo tipo de sociedade, a sociedade industrial ou de
consumo, das mídias, da informação, eletrônica ou high tech.
Os principais traços associados à pós-modernidade são: (1) é um movimento que
repudia as ambições de universalizar os discursos e de enfatizar a totalidade e a unicidade,
enfatizando o conhecimento local, o sincretismo e a diferença; (2) é o colapso da distinção
entre alta cultura e cultura popular, dos julgamentos canônicos de gosto e valor; (3) é
uma tendência à estetização da vida cotidiana, diluindo as fronteiras entre arte e vida,
entre aparência e realidade; e (4) é uma descentralização do sujeito, que passa a encontrarse disperso em fragmentos, num jogo de superficialidades (Featherstone, 1997).
Há um claro impacto deste novo paradigma sobre os indivíduos em seus
cotidianos: a fragmentação, a indeterminação, o consumismo exacerbado, a velocidade
cada vez maior das mudanças provocam alterações substanciais nas subjetividades
forjadas neste século. Todos os aspectos da vida de um indivíduo são afetados quando
se vive cada momento sem a perspectiva de longo prazo ou sem realizar projetos de
vida, quando suas verdades e crenças são abaladas ou negadas, quando o bombardeio
de informações é pulsante e incessante, quando ele é incitado ao consumismo
desenfreado.
Vivemos num mundo globalizado2 e ambivalente. Featherstone (1997) descreve
que o termo globalização sugere duas imagens culturais simultâneas. A primeira
pressupõe a extensão de uma determinada cultura por todo o globo, assim as culturas
heterogêneas tornam-se incorporadas e integradas à cultura dominante. Contudo,
contrapondo-se a esta homogeneização, uma segunda imagem aponta para a
2
Quando se fala em globalização é bom ressaltar que este não é um fenômeno pós-moderno, reportando-se à
época das grandes navegações (século XV). Contudo, nas últimas décadas do século XX vivenciamos a
ampliação e a aceleração deste fenômeno, principalmente em virtude dos avanços tecnológicos que relativizaram
as distâncias e os espaços.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
141
manutenção das culturas locais: as culturas se acumulam umas sobre as outras, se
empilham, sem princípios óbvios de organização. São duas formas coexistentes e
antagônicas de pensar a cultura: enquanto a primeira imagem sugere um processo de
conquista e unificação, a segunda contesta a transformação mundial em um espaço
singular e domesticado, fazendo um brinde à pluralidade e ao multiculturalismo.
O processo de constituição de um sujeito
A atividade mediada (Vygotski, 1930/1994) é um instrumento fundamental para
a compreensão do modo como um sujeito se constitui, pois é através das mediações
que vivencia que uma pessoa transforma seu contexto social e se apropria de sua(s)
significação(ões). O ser humano só o é em relação, sendo que sua entrada no universo
da comunicação humana, no universo semiótico ou da significação, é sempre mediada
pelo outro. Este processo pode ser compreendido a partir da dialética entre objetividade
e subjetividade. “Ou seja, a realidade objetiva vivida pelo indivíduo se torna subjetiva,
a qual por sua vez se objetivará por meio de suas ações” (Lane, 1995, p. 55).
A dinâmica entre objetivação e subjetivação é o processo que caracteriza o
gênero humano e cada sujeito particular. Uma criança vai se constituindo como sujeito
na medida em que se relaciona com as pessoas, com as coisas, com seu corpo e com
seu tempo. Apropriando-se de sua cultura, objetiva-se nela. Esta dinâmica origina-se
na necessidade do ser humano em criar meios para sobreviver, transformando a si
próprio através da atividade.
O sujeito nasce inserido numa cotidianidade. “O amadurecimento do homem
significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão”
(Heller, 1970/1992, p. 18, grifos da autora). Nestas objetivações, o sujeito vai
subjetivando a realidade objetiva cotidianamente encontrada.
A história é construída a partir das objetivações resultantes das atividades das
gerações passadas, que vão sendo subjetivadas pelas novas gerações. Esta é a base
do desenvolvimento histórico descrito por Marx e Engels (1845/46/1981, p. 44):
A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma delas
explorando os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhe foram
transmitidas pelas gerações precedentes; por este motivo, cada geração continua,
por um lado, o modo de atividade que lhe foi transmitido, mas em circunstâncias
radicalmente transformadas e, por outro, modifica as antigas circunstâncias,
dedicando-se a uma atividade radicalmente diferente.
Sobre esta afirmação, Sartre complexifica o pensamento marxiano, descrevendo
que o sujeito é, ao mesmo tempo, produto de seu próprio produto e um agente histórico
que não pode ser confundido com um produto. Assim o autor explica este paradoxo:
... os homens fazem a sua história sobre a base de condições reais anteriores
(entre as quais devem-se contar os caracteres adquiridos, as deformações impostas
pelo modo de trabalho e de vida, a alienação etc), mas são eles que a fazem e não
142
Aletheia 25, jan./jun. 2007
as condições anteriores: caso contrário eles seriam os simples veículos de forças
inumanas que regeriam, através deles, o mundo social. Certamente, estas condições
existem e são elas, apenas elas, que podem fornecer uma direção e uma realidade
material às mudanças que se preparam; mas o movimento da práxis humana
supera-as conservando-as. (Sartre, 1960/1987, p. 150)
A práxis humana, por sua vez, é mediada socialmente. Faz-se importante estudar
os meandros desta mediação para compreender os processos históricos que vão
constituindo um sujeito. Vygotski (1930/1994, 1934/1991) e seus colaboradores
privilegiaram o estudo dos signos, principalmente dos signos lingüísticos, para a
compreensão deste processo. Os signos dão à criança a possibilidade de acesso às
significações coletivas – aqueles sentidos que se constituem e são compartilhados
socialmente – e aos sentidos pessoais – aqueles que se singularizam e são vivenciados
por um determinado sujeito (Vygotski, 1934/1992). A distinção entre significado e
sentido expõe a existência de um duplo referencial semântico intrínseco aos processos
de significação: um formado pelos sistemas construídos socialmente, relativamente
fixo, e outro formado pela experiência pessoal e social de cada indivíduo, mais dinâmico
e mutável (Pino, 1993).
O estabelecimento de significados e sentidos é um processo social. Ao nascer,
toda criança já encontra um universo sócio-cultural constituído e pleno de significados.
A transmissão destas significações guia seu desenvolvimento, mas não de maneira
determinista, pois sua internalização implica, da parte da criança, sua re-elaboração em
função dos seus próprios referenciais semânticos (Pino, 1993). Ela apreende o mundo
à sua volta e, neste processo, vai se individualizando. Nesta perspectiva, a criança é
encarada como produção social, mas participando na condição de sujeito: o que outro
faz não determina unidirecionalmente sua constituição.
Cabe salientar que quando descrevemos o caráter ativo de um sujeito nos
processos de subjetivação/objetivação não nos referimos somente à dimensão
cognitiva. “Conhecimento, ação e afetividade são elementos de um mesmo processo,
o de orientar a relação do homem com o mundo e com o outro” (Sawaia, 1995, p. 164).
O estabelecimento de sentidos e significados também está permeado por sentimentos
e emoções, manifestações estas pautadas na vida cotidiana que envolvem as relações
humanas consideradas espontâneas, como formas afetivas de relação entre
subjetividade e objetividade (Maheirie, 2002).
O processo de constituição de um sujeito é mediado pelos signos existentes na
sociedade, signos estes que são transmitidos, principalmente, através da linguagem.
Vygotski (1930/1994, 1934/1991) estudou com grande interesse a aquisição da linguagem
pela criança, que o levou a tratar a questão semiótica a partir do signo lingüístico. Para
o autor, o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual da
criança acontece quando a fala e a atividade prática, antes linhas independentes no
desenvolvimento, convergem. A capacitação especificamente humana para a linguagem
possibilita às crianças a providenciarem instrumentos auxiliares e planejarem a solução
de um problema, superando ações meramente impulsivas.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
143
Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um
meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas
da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade
nas crianças, distinguindo-as dos animais. (Vygotski, 1930/1994, p.38)
O sujeito se constitui nas relações que estabelece em sociedade, relações estas
mediadas principalmente pela linguagem. Para investigar o modo como uma pessoa
chega a ser quem ela é, precisamos considerar as múltiplas dimensões que participam
da sua constituição. Assim, um sujeito não pode ser visto exclusivamente como produto
de suas relações passadas, mas deve também ser compreendido em sua dimensão de
futuro (Maheirie, 1994).
“Para nós, o homem caracteriza-se antes de tudo pela superação de uma situação,
pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele, mesmo que ele não se reconheça
jamais em sua objetivação” (Sartre, 1960/1987, pp. 151/152). Na teoria sartreana o
sujeito se posiciona em relação às suas condições objetivas, buscando superá-las em
relação ao campo dos possíveis, escolhendo uma possibilidade entre aquelas que se
apresentam circunscritas pelas condições materiais.
Assim, o campo dos possíveis também compreende uma dimensão futura. Sartre
(1960/1987) denomina projeto este movimento em direção ao que ainda não é.
“Simultaneamente fuga e salto para frente, recusa e realização, o projeto retém e revela
a realidade superada, recusada pelo movimento mesmo que a supera” (p. 152). Segundo
o autor, o projeto é a “... superação subjetiva da objetividade em direção à objetividade,
tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas do campo dos
possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e da
objetividade” (p. 154). Este movimento é dialético, fundado nas relações que os sujeitos
mantêm com as condições de partida e nas relações dos sujeitos entre si.
As escolhas que os sujeitos realizam vida afora nem sempre são frutos de reflexões.
“O homem escolhe, na maioria das vezes, alienadamente, e é desta forma que o projeto
por vezes, toma um rumo onde o próprio sujeito o ignore” (Maheirie, 1994, p. 119). A
história é obra de toda atividade de todos os sujeitos; é, pois, obra coletiva. Modificando
o seu contexto e modificando a si mesmo neste processo, o sujeito segue fazendo
história, mesmo que ele não seja capaz de nela se reconhecer. Ele pode estranhá-la na
medida em que não reconhece o sentido de sua empreitada no resultado total e objetivo,
mas a história se faz a cada dia pelas mãos de todos (Sartre, 1960/1987).
As escolhas humanas são limitadas, de alguma forma, por uma base material
objetiva, contudo a possibilidade de escolha – mesmo que alienada – confere liberdade
ao sujeito. “Liberdade não é algo que se possui, que se conquiste, é condição humana,
pois desde que nos humanizemos, nossa condição é a superação, alienada ou crítica”
(Maheirie, 1994, p. 123). Cada pessoa é constituída pela objetividade, mediada pela
subjetividade: nem puro objeto, nem subjetividade absoluta (Maheirie, 2003).
Em suma, para compreender como um sujeito se constitui, necessitamos
contemplar as condições sociais, históricas e econômicas que nele repercutem; formar
uma imagem sobre sua cotidianidade, suas vivências, sobre seus projetos e perspectivas
de futuro. A contrapartida é verdadeira: conhecendo o sujeito, obteremos um retrato
144
Aletheia 25, jan./jun. 2007
de sua sociedade ou de sua camada social. Isso é possível porque consideramos a
atividade mediada uma categoria fundamental de análise: pela mediação o homem
transforma seu contexto e se apropria de sua(s) significação(ões), constituindo-se
como sujeito (Zanella, 2004).
A constituição de sujeitos na contemporaneidade
Como já citado, as últimas décadas foram marcadas por rupturas em vários campos
– artes, ciências, manifestações sociais etc. – configurando o que muitos chamam de
pós-modernidade. Segundo Jameson (1997), devemos concebê-la como uma dominante
cultural, ou seja, uma concepção de mundo que dá margem à coexistência de
características conjugadas entre si: um turbilhão de ambigüidades, contradições e de
mudanças estéticas pulsantes.
Porém, isso não significa que as manifestações da era moderna simplesmente se
extinguiram: observa-se na contemporaneidade a coexistência de produções pósmodernas e modernas, interagindo dialeticamente.
Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos ou
ultrapassados, mas há pouca certeza quanto à coerência ou ao significado dos
sistemas de pensamento que possam tê-los substituído. Essa incerteza torna
difícil avaliar, interpretar e explicar a mudança que todos concordam ter ocorrido.
(Harvey, 1992, p. 47)
Bauman3 prefere chamar a pós-modernidade de modernidade líquida, numa
metáfora à incapacidade dos líquidos em manter a forma fora de um recipiente que os
contenha. “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e
convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e
verdades ‘autoevidentes’” (Bauman & Pallares-Burke, 2003, p. 6). Não há mais qualquer
enraizamento possível, ao contrário do que existia antes na modernidade (que Bauman
prefere chamar de modernidade sólida).
Esta falta de enraizamento e mutabilidade acelerada são características
marcantes na condição pós-moderna. Harvey (1992) considera que esta privilegia
a heterogeneidade e a diferença como forças redimensionadoras do discurso
cultural: observa-se a tendência à urgência, ao imediatismo em alcançar a realização
e o gozo, tudo é efêmero, instantâneo, está sempre sendo permanentemente
desmontado, sem perspectiva de permanência. Como lembra Bauman (1999a, p.
86), “não se pode ficar parado em areia movediça”. A pós-modernidade é
representada pela era das máquinas, do desenvolvimento acelerado, do incremento
tecnológico incessante e voraz.
Observando a frenética urgência em produzir bens e gerar necessidades, Jameson
(1997) defende que a pós-modernidade equivale à lógica cultural do capitalismo
3
Entrevista concedida a Maria Lúcia GarciaPallares-Burke.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
145
avançado. Isso porque a produção estética na contemporaneidade está integrada à
produção de mercadorias: a economia produz convulsivamente séries de produtos
que representam a “novidade” – ainda que fugaz, atribuindo posição e função estrutural
catalisadas à inovação estética e ao experimentalismo. Bauman (1999a, p. 88) reforça
esta idéia, ressaltando que “a maneira como a sociedade atual molda seus membros é
ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor”.
A tecnologia redimensionou as distâncias, abolindo as distinções entre aqui e lá.
O espaço deixou de ser um obstáculo, sendo dominado em alguns segundos. Hoje em
dia estamos todos em movimento, mesmo se fisicamente parados. A mídia bombardeianos com informações em tempo real, hiper-realizando o mundo e transformando-o num
grande espetáculo, gerando uma resposta rápida e impulsiva. Acostumamo-nos ao
espetáculo. O indivíduo está constantemente submetido a uma quantidade gigantesca
de informações fragmentadas e estímulos desconexos.
Os discursos pós-modernos estão constantemente mudando e complexificandose, consequentemente, exigem mudanças no campo das ciências para que esta seja
capaz de compreender o sujeito da contemporaneidade. Morin e Le Moigne (1996)
propõem um novo paradigma às ciências: o paradigma da complexidade, lançando
mão do pensamento dialógico. A noção de dialógica pensa o mundo como um
movimento contínuo em espiral, que retorna a si mesmo, mas não necessariamente ao
mesmo ponto. Este movimento não pressupõe antagonismos entre opostos (como no
caso da noção de dialética) e nem exclui que um mesmo elemento possa ser, ao mesmo
tempo, causa e efeito (como no pensamento linear). Este é um grande desafio, pois
compreende perder o sentido fixo das coisas, lidando com mutabilidades e
antagonismos.
Esse pensamento da complexidade não é absolutamente um pensamento que
expulsa a certeza para colocar a incerteza, que expulsa a separação para colocá-la
no lugar da inseparabilidade, que expulsa a lógica para autorizar todas as
transgressões. A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante
entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o
inseparável. (Morin & Le Moigne, 1996, p. 205)
Morin (2003) aponta que o princípio do pensamento que ora se coloca deve
permitir ligar coisas que aparentemente encontram-se desconexas, pois a realidade é
multidimensional: simultaneamente psicológica, sociológica, política, mitológica etc.
Do ponto de vista científico, as ciências clássicas não permitiam lidar com a autonomia
dos elementos, pois esta estava baseada no determinismo. Já no pensamento complexo,
“passamos de uma visão linear para uma visão circular” (p. 16). Como exemplo o autor
cita uma caldeira que alimenta radiadores: quando se atinge a temperatura desejada,
um termostato faz parar a caldeira e, quando a temperatura abaixa, o mesmo termostato
faz a caldeira voltar a funcionar. “Há, em conseqüência, um sistema onde o efeito atua
retroativamente sobre a causa” (p. 16). Este princípio pressupõe considerarmos um
elemento autônomo que é, simultaneamente, causa e efeito. Numa análise social baseada
na teoria da complexidade de Morin, poderíamos apontar, coadunando com as idéias
146
Aletheia 25, jan./jun. 2007
de Sartre e Vygotski descritas neste artigo, que somos produtos e produtores do
processo da vida.
Outra idéia importante é da interligação entre parte e todo: a parte está presente
no todo e o todo está nas partes. A compreensão da unidade e da diversidade é
ponto fundamental para a teoria da complexidade, até porque o atual processo de
globalização nos força a reconhecer a unidade dos problemas globais onde quer que
estejamos e, ao mesmo tempo, lida com uma série de diversidades culturais locais
(Morin, 2003).
Esta forma da ciência analisar os sujeitos contemporâneos contrapõe-se à visão
positivista, tecnocêntrica e racionalista do movimento moderno, ou seja, à crença no
progresso linear, nas verdades absolutas e universais, no planejamento racional da
ordem social e na padronização do conhecimento e da produção. Neste sentido, a
estética tradicional falha ao captar o mundo cada vez mais complexo e o indivíduo cada
vez mais fragmentado. Contudo, é bom ressaltar que o paradigma moderno ainda
encontra seu lugar na academia, convivendo – nem sempre de forma harmoniosa – ao
lado do emergente paradigma da complexidade.
O ser humano constitui-se por meio da dinâmica entre objetivação e
subjetivação, pois, como já discutido, o psiquismo é resultado da atividade do sujeito
no contexto das relações por ele estabelecidas. Quando ocorrem grandes mudanças
sociais e culturais – como as provocadas na contemporaneidade, o sujeito é
plenamente afetado.
Uma das conseqüências do paradigma pós-moderno que nos interessa analisar
com mais detalhes é o descentramento do sujeito. A pós-modernidade aceita com
grande complacência o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o caótico, rejeitando
a idéia de sujeito autônomo e centralizado. Há uma ruptura do senso de identidade do
indivíduo, por meio de um bombardeamento de signos e imagens fragmentadas e
flutuantes que desconectam passado, presente e futuro. Harvey (1992, p. 57) chega a
afirmar que não mais podemos conceber o sujeito pós-moderno como “alienado”,
numa perspectiva marxista, pois ser alienado “... pressupõe um sentido de eu coerente
e não fragmentado do qual se alienar”.
Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas
propensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e
seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como
a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não um
“amontoado de fragmentos” e em uma prática da heterogeneidade a esmo do
fragmentário, do aleatório. (Jameson, 1997, p. 52)
O estabelecimento de sentidos e significados (Vygotski, 1934/1992) ganhou
maior fluidez e dinamismo na contemporaneidade. Na medida em que significado é
uma generalização de uma prática social humana, este possuiria um caráter mais
duradouro e estável que os sentidos, que possuem caráter pessoal, singular.
Contudo, os significados também perderam a estabilidade nas dinâmicas pósmodernas, deixando o indivíduo órfão de pautas e parâmetros estáveis nos quais
se basear.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
147
Em decorrência do descentramento do sujeito, observamos grande falta de
profundidade nas relações estabelecidas e em boa parte da produção cultural da
contemporaneidade, representada pela cultura da imagem e do simulacro, causando
uma fixação nas aparências, na superfície e nos impactos imediatos sem poder de
sustentação ao longo prazo; e um enfraquecimento da historicidade – tanto nas
relações com a história pública como em novas formas de representação da nossa
temporalidade privada (Jameson, 1997).
Na pós-modernidade, com freqüência, nos deparamos com uma visão da vida,
em oposição à idéia de ela ser um projeto carregado de significados,
... temos aqui a visão de que o modo primário de orientação do indivíduo é
estético e, como o esquizofrênico, ele é incapaz de encadear os significados e,
em vez disso, precisa enfocar determinadas experiências ou imagens
desconectadas, que proporcionam um senso de intensa emersão e imediatismo,
a ponto de excluir todas as preocupações teleológicas mais amplas. (Featherstone,
1997, p. 69)
Nesta nova ordem, a experiência do presente torna-se preponderante, alimentando
concepções de falta de profundidade e/ou enfraquecimento da historicidade. Passado
e futuro perderam sua magnitude: só o presente importa. “A atitude da vida cotidiana
é absolutamente pragmática” (Heller, 1970/1992, p. 32), desta forma, o pensamento se
orienta para as manifestações e ações do dia-a-dia e as idéias necessárias à cotidianidade
raramente se elevam ao plano da teoria. “O homem da cotidianidade é atuante e fruidor,
ativo e receptivo, mas não tem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente
em nenhum desses aspectos; por isso não pode aguçá-los em toda a sua intensidade”
(Heller, pp. 17-18).
Considerando que é a vida que determina uma determinada forma de
racionalidade (Marx & Engels, 1845/46/1981), a fugacidade, a velocidade e a
superficialidade impostas pela contemporaneidade tornam quase impossível pensar
projetos (Sartre, 1960/1987) que transcendam o aqui-agora. Perguntar a uma criança
“o que você pretende ser quando crescer?” é uma “pergunta em extinção”, pois
mesmo no plano do imaginário e da fantasia torna-se cada vez mais difícil aos sujeitos
forjados sob a égide da pós-modernidade projetar o futuro. As crianças apreendem
desde a infância a incerteza, a indeterminação, o imediatismo e a urgência dos nossos
tempos4 e, daqui a alguns anos, talvez elas não mais compreendam o significado de
projeto e planejamento.
Viver sob a égide de situações efêmeras e fugazes faz com que o mesmo aconteça
com as relações humanas. Bauman exemplifica descrevendo uma nova forma de
relacionamentos, a qual o autor chamou de “liquid love”: de um lado, o indivíduo
4
Em algumas situações específicas o imediatismo e a fugacidade da existência são catalisados pela precariedade objetiva relativa à exclusão econômica e social, como nas situações relatadas por Celso Athayde e M.
V. Bill no livro “Falcão: meninos do tráfico” (2006). Neste caso, a motivação da vida presa exclusivamente ao
presente se dá pela impossibilidade de fazer projetos, uma vez que a vida se mantém por um fio e a vivência
do momento se faz como a única alternativa na luta pela sobrevivência.
148
Aletheia 25, jan./jun. 2007
precisa dos outros, mas, ao mesmo tempo, tem medo de desenvolver relacionamentos
profundos que o imobilizem num mundo em permanente movimento. É um dilema
terrível e insolúvel; é o dilema no qual os sujeitos de nossa era estão imersos (Bauman
& Pallares-Burke, 2003)
Cabe um último comentário: nesta reflexão não está embutido nenhum pessimismo
mórbido em relação ao que esperar desses sujeitos em formação na contemporaneidade.
Novos tempos geram novos sujeitos, que só podem ser plenamente compreendidos
pelo olhar de seu próprio tempo. Só podemos inteiramente compreender um sujeito do
século XV se o olharmos pela perspectiva do século XV; da mesma forma, só é possível
formarmos uma concepção sobre um sujeito contemporâneo se o olharmos com os
olhos do século XXI. Sousa Santos (2001) inclusive alerta que nem sempre é fácil
distinguir se o que estamos presenciando é realmente novo ou se foi simplesmente
nosso olhar que mudou:
Estamos numa época em que é muito difícil ser-se linear. Porque estamos
numa fase de revisão radical do paradigma epistemológico da ciência moderna,
é bem possível que seja sobretudo o olhar que está a mudar. Mas, por outro
lado, não parece crível que esta mudança tivesse ocorrido sem nada ter mudado
no objeto do olhar, ainda que, para maior complicação, seja debatível até que
ponto tal objeto pode ser sequer pensado sem o olhar que o olha. (Sousa
Santos, 2001, p. 144)
Vivemos num conturbado período onde convivem lado a lado os paradigmas
da modernidade e da pós-modernidade e é com o olhar atônito do século passado
que olhamos para o futuro. Não sabemos ao certo quais as cores da sociedade que
está surgindo, contudo sabemos que é diferente daquilo que até então foi nossa
referência. É por isso que o caos gerado pela pós-modernidade tanto nos incomoda
e instiga.
O caos, “o outro da ordem”, é pura negatividade. É a negação de tudo o que a
ordem se empenha em ser. É contra essa negatividade que a positividade da
ordem se constitui. Mas a negatividade do caos é um produto da autoconstituição
da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, condição sine qua non
da sua possibilidade (reflexa). Sem a negatividade do caos, não há positividade
da ordem; sem o caos, não há ordem. (Bauman, 1999b, p. 15)
É nesta perspectiva que nos propomos a pensar acerca do sujeito na
contemporaneidade, produto e produtor do caos e da ordem que o constitui e é por
ele constituída. Finalizamos com uma colocação que nos parece, atualmente, muito
pertinente, produto de uma discussão interessante que tivemos com o psicanalista
Oscar Raymundo: não estaríamos hoje, pretendendo preencher nossa “falta”,
tentando nos transformar em uma objetividade caracteristicamente fugaz, por meio
de consumos efêmeros? E com isso, não estaríamos caindo num vazio existencial,
por não compreendermos que o que caracteriza a vivência é, justamente, a constante
e incessante procura?
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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150
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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luz da psicologia histórico-cultural. Psicologia em Estudo, 1(9), 127-135.
Recebido em setembro de 2006
Aceito em janeiro de 2007
Maria Fernanda Diogo é psicóloga; Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC); Professora do Departamento de Psicologia nesta mesma instituição.
Kátia Maheirie é psicóloga; Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUCSP, professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 25, jan./jun. 2007
151
Aletheia, n.25, p.152-162, jan./jun. 2007
De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando
jurisdicionais
Maria Lívia do Nascimento
Estela Scheinvar
Resumo: Neste trabalho problematizamos práticas presentes nos conselhos tutelares com o
objetivo de discutir sua jurisdicionalização. O debate aqui empreendido aponta para um funcionamento do conselho tutelar distante do movimento social e marcado por práticas cotidianas que
vêm sendo atravessadas por discursos e procedimento típicos do Poder Judiciário. A pergunta
colocada é: como um órgão proposto para ser não jurisdicional vai assumindo tal postura? Ou
seja, como os modelos de atuação característicos do Poder Judiciário vão sendo adotados num
espaço que não detém tal poder, mas que, por ser revestido da autoridade da lei, assume tais
formas para o seu exercício. O artigo aponta a articulação com o movimento social como forma de
deslocar a prática de jurisdicialização e potencializar movimentos reivindicativos e participativos.
Palavras-chaves: conselho tutelar, produção de subjetividade, infância e juventude,
judisdicionalização.
About how the tutelary council practices have become jurisdictional
Abstract: In this article we aim at discussing the practices that are present in the tutelary
councils, to point out its jurisdictionalization. The debate that we unroll about the tutelary
council practices shows that its functioning is far away from the social movement and marked
by everyday practices crossed by characteristic discourses and procedures of the Judiciary
Power. The question we pose is: how does an organism that is proposed to be not jurisdictional
arrive to this attitude? In other words, how the characteristic model of action of the Judiciary
Power begins to be adopted in a space that has not such power, but assumes this model, since
its practice is based on the law authority. The article points out the articulation with the social
movement as a form of dislocating the jurisdictionalization practices and also as a form of
potentiation the demanding and participating movements.
Key words: Tutelary council, production of subjetivity, infancy and youth, jurisdictionalization.
Introdução
O presente artigo parte de nossas experiências de trabalho e pesquisa junto a
conselhos tutelares (CT) do estado do Rio de Janeiro. Nesses espaços temos realizado
supervisão de estágio1 e desenvolvido pesquisas em arquivos, buscando analisar as
demandas recebidas e os encaminhamentos dados aos casos. A convivência quase
diária com estes equipamentos sociais nos tem permitido acompanhar seu cotidiano, a
partir do qual nos propomos formular algumas análises sobre o que vimos chamando
de jurisdicionalização de suas práticas.
O conselho tutelar é um órgão público proposto pela Lei 8069 de 1990, “Estatuto
da Criança e do Adolescente” (ECA) (Brasil, 1990), composto por cinco conselheiros
152
Aletheia 25, jan./jun. 2007
indicados pela sociedade civil organizada e eleitos pelo voto popular. É um órgão
municipal autônomo, vinculado aos movimentos sociais que participam da luta pelos
direitos da criança e do adolescente e, portanto, juridicamente não é subordinado ao
Poder Executivo ou Judiciário. Esta autonomia política, de fato, redimensiona o papel
do Estado no que se refere às medidas protetivas dirigidas a crianças e jovens, pois
sua estrutura passa a estar vinculada ao movimento social. Porém, percebe-se que o
funcionamento do CT tem estado distante do movimento social, marcado por formas
de atuação cristalizada, cujas práticas são atravessadas por discursos e procedimento
típicos do poder judiciário. Entendemos como práticas cristalizadas aquelas adotadas
de forma naturalizada, sem pensar nem nos movimentos que as produziram, nem nos
efeitos que produzem e, nessa medida, inibindo novos espaços de atuação.
São comuns casos em que a atuação do conselho visa definir: o valor de
pagamento de pensão, qual dos pais deve ficar com a guarda dos filhos, que situações
de violência sexual devem ser encaminhadas à justiça e quais serão dirimidas dentro
do conselho, o julgamento sobre o comportamento sexual dos jovens e a forma como
este deve ser. Acrescente-se que muitas vezes, além de definir essas condutas, os
conselhos apontam aos pais a possibilidade de perderem a guarda dos filhos, caso não
obedeçam aos encaminhamentos propostos, chegando a formular ‘contratos’ em que
as partes assinam um compromisso de se comportarem ‘adequadamente’.
Quanto a este último aspecto, podemos trazer um caso em que a mãe de um
adolescente chega ao conselho tutelar reclamando do comportamento de seu filho tanto
na escola como em casa. Depois de conversar com ambos, o conselheiro redige um termo
em que o jovem se compromete a se portar ‘bem’. Tal documento é firmado pelo jovem,
sendo anexado ao seu prontuário. Na compreensão da família atendida, há um termo
formal assinado pelo rapaz, o que implica num compromisso visto como um ato jurídico.
Cabe, então, perguntar, como um órgão proposto para ser não jurisdicional vai
assumindo tal postura? O que chamamos de jurisdicionalização das práticas é a presença
de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam sendo adotados,
mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem revestidos de certa
autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo da lei, assumem tais formas
como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem
pautado algumas das práticas dos conselhos tutelares. No presente texto, visamos colocar
em análise como se dá a produção dessa lógica. Para tanto, partiremos dos discursos/
práticas dos conselheiros registrados em prontuários de atendimento2 e aqueles construídos
ao longo de intervenções realizadas nos conselhos por estagiários de psicologia3.
1
Estágio para alunos de graduação do Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
Duas pesquisas temos desenvolvido sobre a relação entre o conselho tutelar e a escola. De um lado, foram
levantadas informações contidas em prontuários, sempre que a escola tivesse sido referida. De outro, foram
entrevistados agentes do movimento dos direitos da criança e do adolescente nos municípios estudados e
freqüentadas reuniões de conselhos e fóruns participativos. As pesquisas foram realizadas no Primeiro Conselho
Tutelar de Niterói e no Segundo Conselho Tutelar de São Gonçalo, ambos no estado do Rio de Janeiro.
3
Há cerca de 6 anos temos realizado práticas de intervenção em conselhos tutelares do estado Rio de Janeiro,
através de um projeto de estágio de psicologia. Tal intervenção pretende discutir os discursos/práticas
existentes nos conselhos, as subjetividades ali construídas e as instituições que lhes atravessam. A experiência busca implementar práticas que tenham o grupo como dispositivo de trabalho. Dessa forma, temos
levantado questões que debatem as atribuições, os atendimentos e os encaminhamentos do Conselho Tutelar.
2
Aletheia 25, jan./jun. 2007
153
Nosso percurso metodológico pauta-se nas referências da Análise Institucional,
segundo a qual a instituição “não é uma coisa observável, mas uma dinâmica
contraditória construindo-se na (e em) história ou tempo” (Lourau, 1993, p. 11).
Assim, tendo o método sócio-histórico como perspectiva (Foucault, 1982), observase a forma como as práticas nos Conselhos Tutelares foram se constituindo e as
colocamos em análise, produzindo um processo de desnaturalização. Dentre as
ferramentas da Análise Institucional podemos destacar a de implicação, por referirse “..ao conjunto de condições da pesquisa” (Foucault, 1982, p.16) e não a modelos
pré-definidos que centram os estudos em padrões de normalidade. O presente texto,
portanto, apresenta possibilidades analíticas produzidas ao longo de alguns anos
de trabalho nos conselhos tutelares, visando abrir o debate sobre algumas das
práticas constitutivas das políticas sociais.
A emergência do poder judiciário e o atravessamento
das práticas judiciárias na área de assistência social
Estudando e colocando em análise as práticas do poder Judiciário, entendemos
que no mundo ocidental, historicamente, este tem se caracterizado por ser plenipotente,
pois não atua sobre uma área da vida das pessoas, mas acaba por extrair toda e
qualquer possibilidade de autodeterminação – em um mundo que prega como princípio
maior a liberdade. O juiz julga e seu poder é tamanho, que com esse julgamento passa
a definir o sentido e as possibilidades da vida da pessoa sob seu poder. Assim, quando
um ato é considerado uma transgressão, não é o ato que fica qualificado, mas a pessoa,
a sua vida. Da mesma forma, quando uma medida é aplicada, ela incide na forma de
vida, na possibilidade física e afetiva, como ocorre, por exemplo, quando se define
quem pode ficar com uma criança, julgando, inclusive, os afetos implicados nas
relações. O juiz exerce tutela na medida em que suas ordens determinarão as
possibilidades de relacionamento do réu ou de qualquer pessoa implicada no
julgamento. Ou seja, estabelece-se uma situação de tutela ao definir sentimentos,
possíveis espaços físicos em que se poderá circular, possibilidades de vida,
potencialidades e virtualidades daqueles que ficam sob o seu poder.
Conceitos, como o de proteção, serão fundamentais para a prática tutelar, visto
que a intervenção do judiciário é assumida na sociedade moderna como um dever do
Estado em favor do ‘bem comum’ e “em benefício” das partes sob júdice.
Independentemente dos efeitos das práticas judiciárias, estas foram produzidas
historicamente como benéficas e sempre inquestionáveis, verdadeiras. Claro está
que tudo tem uma história e a história da prática judiciária é fundamental para se
compreender a força e a enorme abrangência com que este poder opera na constituição
do Estado Nação. Para instrumentalizar a prática judiciária, o arcabouço legal
compreende normas universais a serem aplicadas sem considerar as condições
diversas em que vivem os sujeitos alvo das leis. Trata-se de um instrumento de
disciplinarização, de homogeneização do que não só é diverso, mas sobretudo,
politicamente contraditório, como no caso das classes sociais que, como largamente
154
Aletheia 25, jan./jun. 2007
expõe Karl Marx (1998), para a existência de uma é condição a existência da outra.
Dito de outra forma, a burguesia só pode ser burguesia com a existência do
proletariado, que por sua vez existe como classe explorada e, logicamente, vivendo
em condições absolutamente diferentes das de sua opressora. Contudo, apesar da
clareza de tais premissas, as leis são universais. Não só universais, mas criadas pela
classe dominante e propostas como comportamento genérico, universal, certo e
necessário para se ter o direito à condição de liberdade.
A produção de uma subjetividade hegemônica que entende todos como iguais,
sem demarcar as diferenças sociais que de fato impõem limites na vida das pessoas,
ou seja, que as homogeneiza, na sociedade moderna opera por meio da noção de
direitos. Reza o ideário liberal que ‘todos são iguais perante a lei’, que ‘todos temos
os mesmos direitos’, sem discutir as condições de acesso a estes. Este pensamento
vai se afirmando através da prática dos equipamentos sociais, das políticas e
incorporando-se nos afetos, no sentido da vida das pessoas, na produção de
subjetividades que transpõem a noção de classe, tornando-se hegemônicas e
passando a ser vividas e defendidas pela sociedade como um todo, como se todos
tivessem condições de assumir certos modelos e que, por opção individual, estes
não fossem seguidos. Conforme exposto por Scheinvar (2006), ainda é muito comum
qualificar famílias como desestruturadas por não se enquadrarem dentro do modelo
burguês, tido como correto. Pesquisas têm mostrado (Ayres 2006; Nascimento, 2002;
Scheinvar, 2004) que, embora não todas as chamadas ‘famílias desestruturadas’
busquem serviços jurídicos ou assistenciais – dentre eles os conselhos tutelares –
, quando estas chegam ao conselho, é colocado em destaque o seu modo de
funcionamento interno e não suas condições de vida que, de fato, acabam por produzir
as violações de direitos. Mesmo nos casos em que as chamadas ‘famílias
estruturadas’ chegam com a mesma demanda que as denominadas ‘desestruturadas’,
os dados apontam para a insistência nos conflitos intrafamiliares, como se estes
fossem o grande problema social e não a falta de políticas públicas e a precariedade
das condições de vida da maior parte da população.
No Brasil, o atendimento a crianças e jovens vem sendo tradicionalmente realizado
por entidades de assistência ou pelo judiciário, sobretudo quando se refere a situações
de abandono, adoção e falta de condições de convivência familiar. A justiça sentencia
e os equipamentos sociais executam as políticas de assistência. Porém, o que se percebe
é que o julgamento se dá em cima das pessoas, de sua forma de vida e não das
condições sociais em que sobrevivem, embora de forma avassaladora a justiça, nesta
área, lide com famílias pobres. O ideal igualitário desconsidera esse dado, como se
fosse acessório.
O conselho tutelar é um equipamento social proposto não para desenvolver
programas de assistência, mas para receber denúncias de violação de direitos e
encaminhá-las aos serviços que possam ressarci-los, obedecendo à lei. Nesse sentido,
ao se propor o conselho tutelar pensou-se não em uma ação julgadora, mas
reivindicativa, a partir das violações de direitos, o que implicaria – pensava-se à época
– o olhar mais atento às condições de vida da população cujos direitos não são
Aletheia 25, jan./jun. 2007
155
garantidos. Isto supõe tanto a prestação de serviços imediatos, que muitas vezes não
são providos, quanto o encaminhamento de demandas a serem supridas através da
implementação de políticas públicas. Ou seja, o ECA propõe um novo ordenamento
político, uma outra prática que não é fundamentada nem no atendimento sistemático
nem na sentença jurídica, mas na leitura política dos casos de violação de direitos, a
fim de que sejam oferecidas ou criadas condições para o cumprimento da lei. O ECA
seria um instrumento que daria visibilidade às diferenças sociais e às condições
particulares necessárias à aplicação da lei. No entanto, o instrumento no qual se pauta
o conselho tutelar para intervir é a lei e, historicamente, a aplicação da lei, a sua
implementação tem sido atribuição da justiça. No Conselho Tutelar os modelos que
prevalecem quando da execução da lei têm sido os adotados pelo judiciário. Em geral,
não se percebe que práticas diferentes das jurídicas, como as de reivindicação política,
também se pautam em leis, sem emitir sentenças, sem encaminhar medidas particulares,
mas intervindo na ordem pública.
Pensar em outras práticas supõe a construção de outros paradigmas. Se o ECA
se baseia no movimento social para propor a construção de conselhos tutelares, ele
supõe a existência de uma rede de atendimento ativa acompanhando os seus trabalhos.
Entretanto, com o enfraquecimento do movimento social em tempos neoliberais, sem
sustentação em um movimento ativo reivindicativo, as equipes dos conselhos tutelares
acabam por se prender aos termos da lei, adotando as práticas que conhecem para
fazer valer o que esta diz.
Sem a articulação de uma rede, o conselho tutelar tem como uma de suas
opções fazer alianças com os segmentos organizados que exercem o poder na área
social, que hoje são, no Brasil, os órgãos de justiça ou policiais (Juizados, Ministério
Público, delegacias). A aliança com esses órgãos confere um poder quase
jurisdicional ao conselheiro quando ele próprio aciona o poder judiciário como
maior aliado, haja vista a omissão de equipamentos sociais e, portanto, de outras
abordagens. Tais omissões não são acidentais nem conjunturais, mas estruturantes
de outra lógica de funcionamento do Estado, aquela que vem sendo chamada de
Estado Mínimo por adotar as diretrizes neoliberais, segundo as quais quanto menos
intervenção do Estado na área social mais espaço se abre para que as políticas
sejam reguladas pelo mercado.
No ideário neoliberal, o Estado reduz seus investimentos sociais, instalando o
chamado Estado Mínimo, em nome de uma maior liberdade de mercado. É importante
assinalar que esse mínimo diz respeito ao social, posto que o Estado é forte, ‘máximo’
na esfera jurídico-policial, como indicam a chamada política de ‘tolerância zero’, o
inchaço das prisões, o crescimento dos tribunais, etc. O mercado tem o maior espaço
possível e a área social ocupa um espaço ‘mínimo’ na esfera do Estado, privilegiando
as esferas do Poder Judiciário. No âmbito das relações sociais, tal lógica marcadamente
jurisdicional, desconsidera a possibilidade do entendimento pessoal, da prática da
conciliação entre os sujeitos como expressão de vida e de sua capacidade de luta
reivindicativa, valorizando apenas o sujeito jurídico.
Certamente, tal lógica atravessa o conselho tutelar, criado para defender os direitos
de crianças e jovens e, no entanto, vem se tornando uma instância disciplinar, o que
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Donzelot (1980) chama de uma polícia das famílias, trazendo as práticas jurídicas para
o seu cotidiano. Um exemplo que ilustra esta relação é o caso de uma mãe que ao saber
que teria sido denunciada por negligência, antes mesmo de qualquer comunicação ou
convocação por parte do conselho tutelar se adianta, exigindo que a filha comparecesse
ao conselho para ‘limpar a sua barra com o conselheiro’. Esta fala denuncia o peso que
tem esse órgão junto à população pobre, na medida em que a mãe teme pela vinculação
de seu nome a este equipamento social, buscando de forma reativa e rápida ‘limpá-lo’,
não só para não sofrer sanções, mas para que, como ocorre com o registro de casos na
delegacia de polícia ou nas instâncias jurídicas, o seu nome não fique ‘sujo’.
Este episódio faz lembrar o temor que a população pobre tem dos chamados
órgãos de segurança e justiça, que tradicionalmente têm cuidado da segurança e da
justiça dos ricos, ameaçando e punindo os pobres.
Práticas e exercício de poder no conselho tutelar
A lei é um instrumento poderoso. Quem a aplica exerce poder. A discussão que
trazemos aqui tenta pensar essa forma de exercício de poder no caso específico do conselho
tutelar. Para tanto, cabe analisar como este se organiza e opera; como exerce poder.
O que temos verificado em nossa experiência junto a alguns conselhos tutelares
é que, embora sejam eleitos cinco conselheiros tutelares, é enorme a dificuldade de
se fazer um trabalho coletivo. A maioria dos conselhos tutelares no Brasil tem adotado
uma estrutura hierárquica sustentada na escolha que eles próprios fazem de um
conselheiro-presidente, afastando-se, assim, da proposta de gestão colegiada. Isto
faz parte de uma lógica de individualização das práticas, segundo a qual se o
conselheiro tem um mandato que objetiva o ressarcimento dos direitos violados,
cabe a ele, individualmente, resolver as denúncias de violação de direitos. Esta
compreensão é diferente de se pensar que cabe ao conselheiro encaminhar o seu
ressarcimento e, quando não houver recursos para tal, encaminhar a luta para que
estes recursos sejam criados, tendo como aliada a sociedade civil que o elegeu.
Entretanto, o viés reivindicativo do conselho tutelar defendido por aqueles que
propuseram o ECA, com base na concepção gramsciana de sociedade civil4 , pouco
aparece em sua prática cotidiana.
Um dos efeitos da prática individualizada é o surgimento de um processo de
culpabilização das equipes que atuam nos conselhos tutelares. A impossibilidade de
atender às famílias por falta de recursos públicos passa a ser vista por elas próprias,
como também pela população em geral e até mesmo pelos conselheiros que fazem os
atendimentos e as equipes que com eles trabalham como falta de engajamento e/ou
incapacidade pessoal do conselheiro, sendo fato raro ser referida a ausência de políticas
públicas eficazes. Assim, ao mesmo tempo em que se desconsidera a falência dos
projetos e das políticas públicas em vigor, acentua-se o paradigma identitário, impondo
4
Para uma análise mais detida sobre a concepção de sociedade civil presente na formulação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, ver Scheinvar, 2001.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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ao profissional uma solução individual e à família uma responsabilidade maior na
resolução de (por resolver) “seus” problemas. É a afirmação do que é chamado por
Barros (1994) “modo-de-ser-indivíduo”, ao discutir a forma hegemônica de ser, estar e
existir da burguesia, baseada no ideário liberal que apregoa o desempenho individual.
A família tem se afirmado como espaço privado, individual, em nome da defesa de seus
direitos e, nessa medida, tem se convertido em um importante dispositivo para a retração
da presença do Estado nas problemáticas sociais. Como diz Donzelot (1980, p.82),
“quanto mais esses direitos são proclamados, mais se fecha em torno da família pobre
a opressão de uma potência tutelar. O patriarcalismo familiar só é destruído em proveito
de um patriarcado do Estado”. Dessa forma, quando não se tem como foco de ação a
luta por políticas públicas, vão sendo fortalecidas subjetividades impotentes, faltosas
e culpabilizadas, construídas por processos de individuação.
Tal produção de subjetividade segue os moldes das práticas do judiciário, onde
as decisões, determinações e sentenças são centralizadas na figura do juiz que, de
forma individualizada, mesmo contando com uma equipe técnica, pode desconsiderar
as análises, os estudos, as ponderações e opiniões da mesma e impor suas decisões.
Também no conselho tutelar, é o conselheiro ou o técnico quem geralmente toma as
decisões, já que, na maioria das vezes, elas não passam por discussões mais coletivas.
Nas situações em que os casos são encaminhados para a equipe técnica, deposita-se
nela a competência para a tomada de decisões. Ou seja, o conselho tutelar pode se
constituir em mais um território da ação personalizada. De maneira geral, os casos não
são objeto de análise em grupo, tornando cada atendimento uma sentença individual.
De maneira geral, os casos não são objeto de análise em grupo, tornando-se
atendimentos estritamente individuais. Os encaminhamentos tendem a ser definidos
apenas pela pessoa que atende o caso, que o faz sem contar com os recursos
necessários e, portanto, a partir de circunstâncias inadequadas para assegurar a garantia
de direitos e a condição cidadã. Essa tendência às práticas individualizadas é tomada
como a mais adequada, muitas vezes tidas como inquestionáveis, não se tornando um
veículo para denunciar as omissões das políticas públicas.
Assim, podemos citar casos em que não havendo estruturas adequadas para a
garantia de direitos não resta ao conselheiro mais do que lançar mão dos recursos à
sua volta, sabendo-os distantes do ressarcimento dos direitos violados. Podemos
trazer como exemplo o caso da oferta de cursos livres, como os de manicura, informática
ou da prática de algum esporte, para jovens não motivados para fazê-los. Temos
percebido que embora a equipe do conselho tutelar saiba que o que tem a oferecer não
é o ideal, por falta de opções só pode propor atividades que não preenchem os interesses
da pessoa atendida. Tal prática, ao impossibilitar a manifestação dos interesses das
crianças e dos jovens, reafirma a compreensão de que, sendo pobres, não lhes cabe
escolher, mas aceitar e agradecer. Por outro lado, ainda, busca ocultar a tensão
provocada entre os desejos dos atendidos e as condições de trabalho do conselheiro,
naturalizando tais encaminhamentos, sem problematizar a impossibilidade de reverter
as situações de violações de direitos apresentadas.
Com estas práticas, o atendimento passa a depender da forma de atuar de cada
conselheiro, de suas características pessoais, dos recursos que consegue agilizar por
158
Aletheia 25, jan./jun. 2007
esforço próprio e pressupõe o entendimento de que as questões chegam ao conselho
tutelar destituídas de suas conexões sociais e políticas, podendo ser tratadas de forma
pontual. Assim sendo, o conselheiro se torna um especialista em soluções imediatas e
localizadas de “problemas particulares”, levando ao aconselhamento, à filantropia, à
vigilância das famílias, práticas muitas vezes apoiadas em crenças moralistas. Não
dispondo de políticas públicas que consignariam processos mais coletivos de
funcionamento, essas práticas se restringem ao espaço da competência técnica ou do
olhar caritativo.
Embora a política de assistência no Brasil tenha uma história de coação aos
pobres através da criminalização das famílias (Nascimento, 2002), o esvaziamento da
máquina pública na área de assistência social obedece, conforme já referimos, às
propostas neoliberais utilizadas pelo Estado na administração da estrutura política
nacional. Atendendo à lógica de mercado, a área social passa a ser entendida como um
gasto e não um investimento. Transfere-se para o âmbito privado todo investimento
na área social. Esta prática não é uma novidade no mundo capitalista, faz parte de sua
constituição. A novidade está em transferir para redes privadas moleculares os efeitos
que estruturalmente vão sendo produzidos pela política econômica globalizada. Como
evidenciado por Passetti (1999), tal situação favorece a ampliação do número de
organizações não governamentais
É o tempo de uma nova administração restrita a um patamar mínimo de
atendimento estatal, norteada por uma nova política de tributações facilitadora
do investimento de impostos de empresas em organizações não-governamentais
(...). Volta-se a acreditar no atendimento privado e abre-se um novo tempo para
a acomodação dos técnicos, tanto nas organizações governamentais como nas
não-governamentais, selecionando áreas e grupos a terem prioridade de
atendimento. (p. 366/367)
Atualmente as ONGs têm funcionado como potentes aliadas dos conselhos
tutelares, ocupando lugar de destaque aquelas ligadas aos movimentos filantrópicos
das diferentes igrejas. Em sua dissertação de mestrado Lemos (2003), ao discutir a
questão de direitos que aparecem como favores ou doações, nos apresenta um exemplo
em que a solução de um caso feita com o auxílio da filantropia minimiza a ausência de
políticas públicas adequadas.
... uma mãe, ao não conseguir retirar medicamentos receitados por um médico à
sua filha, na farmácia da Secretaria Municipal da Ação Social, procura o Conselho
Tutelar. A Conselheira a encaminha à Sociedade Beneficente de Assis para
conseguir os remédios.... O Conselho não questiona o fato dessa mãe não ter
sido atendida pelo Poder Público, mas a encaminha a uma instituição filantrópica.
(p.137/138)
Assim como no exemplo acima, observamos a prática sistemática da doação de
dinheiro próprio por parte daqueles que trabalham nos conselhos tutelares, seja
comprando comida, pagando passagens e/ou trâmites burocráticos necessários ao
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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encaminhamento dos casos e providenciando materiais fundamentais à resolução de
problemas imediatos apresentados pelas famílias atendidas. Enfim, observamos um
movimento solidário intenso de enfrentamento das necessidades dos que chegam ao
conselho. Trata-se de aposta filantrópica, sem ressonância em ações mais orgânicas,
coletivas e reivindicativas frente ao poder público.
Essa associação com a filantropia, muitas vezes, torna o atendimento das situações
de violação de direitos um espaço de barganha, esvaziando um possível caráter
reivindicativo que ele poderia ter. Ao mesmo tempo em que se depende da vontade e
das particularidades da pessoa que atende o caso, o encaminhamento também passará
pelos interesses privados de um equipamento social que estabelece de forma autônoma
seus critérios de funcionamento, não se submetendo a análises políticas das questões
sociais. Muitas vezes o recurso filantrópico serve para atender uma demanda urgente
que não encontraria respostas nos serviços públicos. Na urgência, não se produz um
movimento reivindicativo, de denúncia, de pressão, de transformação. Considera-se
que o atendimento foi concluído por entender que este se esgota no momento particular
em que a família consegue o objeto específico pelo qual chegou ao conselho, como no
caso de remédios, por exemplo. Não se percebe que a demanda maior que chega ao
conselho tutelar não é a ausência de remédio para uma família, mas a inexistência de
espaços públicos de saúde, de garantia de direitos. Esta abordagem fortalece a figura
do conselheiro, que se torna uma pessoa ‘superpotente’, da qual se passa a depender
individualmente para se ter acesso ao que estabelece a legislação brasileira como
direito público.
Muitas vezes o relacionamento dos conselhos com as entidades filantrópicas ou
ONGs é de dependência, evitando conflitos, já que se contrapor a elas significa a
inviabilidade de seu trabalho. Ou seja, a precariedade da rede pública faz com que, por
vezes, as parcerias com essas entidades ou grupos se apresentem como um dos poucos
caminhos possíveis, impedindo posturas críticas aos seus modos de funcionamento.
A outra aliança, já anteriormente referida, se faz com os aparelhos de justiça ou policiais,
também a ser problematizada tendo em vista suas tradicionais práticas de punição dos
pobres.
Ao nos determos sobre os modos de funcionamento dos conselhos tutelares
destaca-se, dentre outras, uma preocupação: a quase ausência de ações
reivindicativas entre suas práticas. Uma das atribuições do conselho tutelar deveria
ser a de reivindicação de políticas públicas, podendo funcionar como um canal de
pressão da sociedade civil, na medida em que é ele um receptor de denúncias de
violações de direitos, que são registradas e encaminhadas para o seu devido
ressarcimento. A diferença entre um departamento governamental da esfera do
executivo e o conselho tutelar está em sua condição reivindicativa; está em sua
estrutura, constituída por cinco membros eleitos pela sociedade civil para reivindicar
os serviços, as garantias, as condições de vida que os órgãos públicos, o Poder
Executivo, a despeito de suas atribuições, não está oferecendo.
Entretanto, no momento, não é isso que se vê. O que se tem constatado são
conselheiros sobreimplicados em suas tarefas cotidianas de atendimento à população,
160
Aletheia 25, jan./jun. 2007
trabalhando em regime de urgência para solucionar os casos do dia a dia, referindo que
não lhes sobra tempo para práticas reivindicatórias5 . Dessa forma, poucas vezes
estabelecem parcerias, por exemplo, com o conselho de direitos de seu município,
encaminhando demandas por políticas públicas ou por formas específicas de como
executá-las, de maneira a transformar o cenário de violação de direitos presente no
Brasil. Ou, ainda, parcerias com os movimentos da sociedade civil, para que lutem pela
garantia de algumas das muitas políticas fundamentais, omissas em suas práticas.
Com o estabelecimento do ECA e a passagem de uma perspectiva de atendimento
diferenciada daquela apregoada pelo Código de Menores (1979), propõe-se uma outra
leitura da lei. A aliança com os movimentos sociais prevê uma maior mobilização
reivindicativa, afastando a idéia de práticas normativas legalmente constituídas, tendo
como horizonte maior não a ação judiciária, mas a ação política coletiva sustentada na
participação daqueles cujos direitos são violados todos os dias.
Referências
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Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia: UERJ.
Barros, R.D.B. (1994). Grupo: a afirmação de um simulacro. Tese de Doutorado não
publicada. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia Clínica.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP.
Brasil (1979). Lei 6.697. Código de Menores.
Brasil (1990). Lei 8069. Estatuto da Criança e do Adolescente.
Donzelot. J. (1980). A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal.
Foucault, M. (1982). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal
Lemos, F. C. S. (2003). Práticas de conselheiros tutelares frente à violência doméstica: proteção e controle Dissertação de Mestrado não publicada. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, Assis. SP.
Lourau, R. (1993). René Lourau na UERJ. Análise Institucional e Práticas de Pesquisa. Rio de Janeiro: EDUERJ.
Lourau, R. (2004). Implicação e sobreimplicação. Em: S. Altoé (Org.), René Lourau:
analista institucional em tempo integral ( pp186-198). São Paulo: HUCITEC.
Marx, K. (1998). O Capital. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
Nascimento, M. L. (Org.) (2002). Pivetes: a produção de infâncias desiguais. Rio de
Janeiro: Intertexto.
Passetti, E. (1999). Crianças carentes e políticas públicas. Em: M. Del Priori. História das
crianças no Brasil. (pp.347-375). São Paulo: Contexto.
Scheinvar, E. (2001). O Feitiço da Política Pública. Como garante o Estado brasileiro
5
O conceito de sobre implicação, desenvolvido por Lourau (2004), refere-se ao sobretrabalho, ao ativismo da
prática. O profissional sobreimplicado responde a uma demanda instituída, sua forma de perceber como deve
atuar no cotidiano se dá numa situação que produz urgência, ao mesmo tempo em que é atravessado pela
ilusão participacionista, pela esperança depositada em seus ombros.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
161
a violação dos direitos da criança e do adolescente? Tese de doutorado não
publicada. Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ.
Scheinvar, E. (2004). Tensões, rupturas e produções na relação entre o conselho tutelar
e a escola. Em: E. Scheinvar & E. Algebaile (Orgs.). Conselhos Participativos e
Escola (pp.135-166). Rio de Janeiro: DP&A.
Scheinvar, E. (2006). A família como dispositivo de privatização do social. Arquivos
Brasileiros de Psicologia, 58 (1), 48-57.
Recebido em agosto de 2006
Aceito em março de 2007
Maria Lívia do Nascimento é psicóloga; Doutora em Psicologia Social (PUCSP); professora da Universidade
Federal Fluminense.
Estela Scheinvar é socióloga; Doutora em Educação (UFF/RJ); professora da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Socióloga do SPA, Universidade Federal Fluminense.
Endereço para correspondência: [email protected]
162
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.163-176, jan./jun. 2007
Quem está apto? A prática da adoção
e marcadores identitários
Neuza Maria de Fátima Guareschi
Janaina Claudia Strenzel
Thais Bennemann
Resumo: Este artigo objetiva discutir a prática da adoção a partir de dados estatísticos
constantes no site da Justiça da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul,
referentes aos indicadores de idade, cor da cútis, particularidades e síndromes das crianças
e adolescentes aptos à adoção. Além das estatísticas dessa população, o site informa a
preferência das pessoas habilitadas a adotar em relação a estas características. A partir da
análise estatística dos dados dos possíveis adotados e da preferência dos adotantes,
problematizamos a produção da menor ou maior probabilidade à adoção das crianças e
adolescentes aptos, utilizando, para isso, a compreensão teórica de Marcadores Identitários
do campo dos Estudos Culturais. A discussão desses dados evidencia que, na prática da
adoção, a aptidão refere-se a esta população estar mais ou menos próxima dos padrões
estabelecidos pela sociedade.
Palavras-chave: prática da adoção, apto à adoção, marcadores identitários.
Who is apt? Adoption practice and identity markers
Abstract: This article aims at discussing the adoption practice from statistical data presented
in the Web site of Justiça da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul,
concerning age, skin color, particularities and syndromes of children and adolescents who
are considered apt to be adopted. Besides statistical figures of this population, the Web
site also informs about preferences of people entitled to adopt in relation to those
characteristics. From the statistical analysis of data on both prospect adoption children
and adopters’ preferences, we have problematized the production of either lower or higher
probability of adoption of apt children and adolescents. We have used here the theoretical
comprehension of identity markers of the Cultural Studies. The discussion of these data
has evidenced that, in the adoption practice, aptitude refers to the degree of proximity of
this population to standards set by society.
Key words: adoption practice, adoption aptitude, identity markers.
Introdução
A Justiça brasileira ainda não possui um cadastro geral das adoções realizadas
no país, nem das crianças e adolescentes atualmente aptos para serem adotados
ou das pessoas habilitadas para adotar; apenas alguns Estados possuem esse tipo
de cadastro, dentre eles, o Rio Grande do Sul. A Justiça da Infância e da Juventude
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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do RS disponibiliza em um site 1 dados estatísticos de crianças e adolescentes
aptos à adoção e de pessoas consideradas habilitadas para adotar no Estado2 . As
informações que identificam as duas populações e que serviram de fonte para os
dados estatísticos estão disponíveis somente para os trabalhadores do Tribunal
de Justiça, mediante senha que estes possuem.
As estatísticas disponíveis no site sobre os processos de adoção em andamento
na Justiça da Criança e do Adolescente evidenciam dados sobre os pretendentes à
adoção somente quanto ao seu estado civil e escolaridade. Entretanto, o site publica a
preferência dessas pessoas quanto à idade, ao sexo, à cor da cútis, do cabelo e dos
olhos, ao tipo de cabelo e aos indicadores de síndromes e particularidades físicas das
crianças que desejam adotar. Correspondendo a esse desejo de preferências, o site
possibilita o acesso sobre todas as informações dessas características em relação às
crianças e adolescentes aptos para adoção.
De acordo com informações obtidas junto ao Tribunal de Justiça do RS, a criação
do site da Justiça da Infância e Juventude foi uma iniciativa do Tribunal de Justiça de
Porto Alegre no ano de 2001. Portanto, não possui relação direta com o Estatuto da
Criança e do Adolescente ou com Políticas desse Estatuto. A partir do primeiro código
de menores, em 1927, a adoção passou a ser processual, isto é, instalou-se a exigência
de um cadastro de adotantes e adotados, porém não era especificado como, podendo
ser na forma de fichas ou de processos em andamento ou arquivados. Porém, essa
exigência não foi cumprida, e até meados da década de 60 a adoção acontecia através
de simples Escritura Pública (Ayres, Carvalho & Silva, 2002). Por iniciativa da Justiça
de Porto Alegre, em 2001, as informações sobre as adoções no Estado foram
informatizadas a partir dos processos que são instalados para esse fim.
Com base nos dados estatísticos disponibilizados no site acima citado, neste
artigo, discutimos os marcadores identitários de idade, cor da cútis, particularidades
físicas e síndromes das crianças e adolescentes aptos para adoção, com a intenção
de problematizarmos como os adotados são inscritos em determinados discursos e
como se produzem em uma população com menor ou maior probabilidade de ser
adotada. Para isso, em um primeiro momento, situamos as Políticas Públicas da
Infância e da Adolescência para evidenciar como estas se alinham ou não às práticas
sobre adoção no Brasil, para, em um segundo momento, utilizarmos os dados
estatísticos mostrados no site sobre idade, cor da cútis, particularidades físicas e
síndromes das crianças e adolescentes aptas à adoção, a fim de discutirmos como
1
O site da Infância e da Juventude do Estado do Rio Grande do Sul foi criado com o propósito de tornar ágil e
precisa a coleta e o armazenamento de informações sobre as características e do número de crianças e
adolescentes aptos à adoção e o número de pessoas habilitadas à adoção, bem como sobre a preferência
destas em relação às características das crianças e adolescentes, além do controle do abrigamento desta
população das várias regiões do Estado. De acordo com a Justiça, as informações sobre os processos em
andamento são atualizadas pelos funcionários a cada nova entrada e saída de pessoas habilitadas à adoção
ou crianças e adolescentes aptos para serem adotados. http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home
2
Perante a Legislação vigente, uma pessoa é considerada Habilitada ou Apta para adoção após ter passado por
todos os trâmites legais do Judiciário exigidos para aqueles que são candidatos a adotar uma criança ou
adolescente; uma criança é considerada Apta para adoção no momento em que passa a estar legalmente
disponível para uma família substituta.
164
Aletheia 25, jan./jun. 2007
esses marcadores identitários têm mobilizado as práticas da adoção na produção e
no governo dessa população.
Políticas da infância e da adolescência e as práticas da adoção no Brasil
No Brasil, no final do século XIX e início do século XX, a preocupação em criar
ações voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes vinculou-se
especialmente à visibilidade de um grande contingente da população infantil e juvenil
vivendo nas ruas das grandes cidades. Assim, os então chamados “menores” tornaramse um problema para o poder público, pois passaram a ser vistos como uma população
que poderia se tornar perigosa para a sociedade. No momento em que os “menores”,
por estarem nas ruas, se constituíram em um problema para a sociedade, a preocupação
com o sujeito infantil passou a instituir-se cada vez mais sob um ponto de vista
econômico e político, tornando-se alvo de inquietações não só de autoridades civis,
mas também de atenção médica e de ações morais e pedagógicas (Bulcão, 2002; Rizzini
& Pilotti, 1995). Juntamente com a Medicina, o campo do Direito voltou-se para a
infância, já que o grande número de crianças que perambulavam pelas ruas passou a
ser entendido como causa do aumento da criminalidade. Em um estudo em que
acompanha a produção da infância no Brasil, Bulcão (2002) realiza uma reflexão sobre
os conceitos “menor” e “criança”, em que considera a gênese da diferenciação existente
hoje entre esses dois termos. O primeiro designa crianças de famílias pobres que
perambulam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes resvalam para a
delinqüência, sendo vinculadas com instituições como cadeia e orfanato. Já o segundo
termo, “criança”, está ligado a instituições como a família e a escola, não precisando de
atenção especial.
Cunha e Cunha (2002) definem as Políticas Públicas como sendo construções
participativas de uma coletividade que visam à garantia dos direitos sociais dos cidadãos
que compõem uma sociedade humana. Assim, podemos pensar a construção de
determinadas políticas da infância e da adolescência não somente como forma de
garantir deveres e direitos dessas populações enquanto cidadãos, mas também de se
estabelecerem os modos de a sociedade se relacionar com elas. Dessa forma, no momento
em que a sociedade se deparou com um número elevado de crianças e adolescentes
perambulando pelas ruas e que esse fato foi apontado por diferentes campos de saber
e de poder como causa do aumento da criminalidade, essa população passou a ser o
objeto central de Políticas Sociais e Educacionais. Tais Políticas visavam não só aos
direitos dessa população, como também aos direitos de outras populações da sociedade
que se sentiam ameaçadas em sua segurança física e incomodadas pela moral burguesa,
pela ordem e racionalidade da modernidade.
A contribuição do conhecimento de diferentes campos de saber foi buscada
pelos formuladores de Políticas sociais e educacionais no sentido de se ter maior
eficiência na elaboração das ações e programas dessas Políticas. Em relação à forma
como o saber da Psicologia contribuiu para as políticas da infância e da adolescência,
podemos pensar através do que Ayres (2001) salienta como práticas de desqualificação
realizadas pelos técnicos da Justiça, neste caso, psicólogos e assistentes sociais. De
Aletheia 25, jan./jun. 2007
165
acordo com esta autora, a prática psi hegemônica do período de 1985 a 1994 (transição
entre o Código de Menores e o ECA) sustentava-se em determinadas ferramentas
teóricas que entendem a perda do vínculo familiar como causa do problema de crianças
e adolescentes de famílias pobres. Ainda segundo Ayres (2001), os Psicólogos e
Assistentes Sociais legitimavam os motivos da família quanto à desistência do pátrio
poder3 , supondo a pobreza como natural e imutável e associada à incapacidade para
assistir os filhos. Assim, as práticas psicológicas, em consonância com os princípios
teóricos dessa área, passaram a pensar os problemas da infância e da adolescência de
forma individualizada, focalizando na interioridade do indivíduo e da família a origem
destes e desconsiderando as produções sociais, culturais e políticas imbricadas nesses
contextos.
Conforme Ayres, Carvalho e Silva (2002), somente em 1979 ocorreram
reformulações da legislação para a infância e adolescência. Até então, o Serviço de
Assistência ao Menor era o principal órgão estatal que lidava com as questões das
crianças abandonadas, por não existir a necessidade irrevogável de outros dispositivos
do Estado que o complementassem. Contudo, o aumento da pobreza e da exclusão
social que se configurou a partir da ditadura militar impulsionou a necessidade de
outros dispositivos a fim de aumentar a participação do Estado nas questões das
crianças abandonadas. Nesse sentido, equipes de especialistas debruçaram-se sobre
a vida e o destino dessa população pauperizada. Os primeiros procedimentos focalizaram
a necessidade de fortalecimento da instituição família, pois, sendo esta considerada
como a principal responsável pela desagregação e abandono dos filhos, o objetivo
passa ser o de mantê-la integrada.
Somente a partir do ano de 1965 a adoção começou a ser uma prática incentivada
pelo Estado, tornando-se extremamente presente nas políticas de assistência à infância
pobre, tentando regular, em grande medida, suas formas de estar no mundo (Ayres,
Carvalho & Silva, 2002). A prática da adoção então passa a ser tomada como um
atendimento preventivo à população de crianças excluídas socialmente. Com base no
discurso de que a família é o melhor lugar para o desenvolvimento físico e psicológico
de uma criança, diversos especialistas esquadrinhavam a família candidata à adoção,
buscando a mais próxima daquela tida como modelo ideal. Ela deveria possuir algumas
características invariáveis, como patriarcalismo, heterossexualidade e monogamia,
modelo que, no decorrer da história, já vinha se configurando como hegemônico. A
escolha da família dava-se através do levantamento de dados sobre sua vida, como
educação, instrução, hábitos, atitudes, localização e higiene de sua moradia.
Entretanto, em um primeiro momento, a adoção era permitida para casais que não
possuíam filhos, pois este também poderia ser um modo de manter a família integrada.
Somente mais tarde, com o aumento da população disponível para ser adotada, é que a
adoção passou a ser realizada por casais que tinham filhos, mas que se mostravam dispostos
a fazer caridade. Com relação à criança, era traçado seu perfil psicológico e social para
informar a futura família quanto aos procedimentos necessários para sua adaptação. Contudo,
3
A partir do Novo Código Civil (2002), esta expressão foi substituída por “destituição do poder familiar”.
166
Aletheia 25, jan./jun. 2007
antropólogos de diferentes países têm dirigido análises provocadoras ao espírito
mercadológico da adoção plena, em que a criança é destituída de qualquer traço de sua
história anterior para ser entregue “limpa” a uma nova família, garantindo formas de
colocação na nova família que previnam contra uma ruptura de relações sociais e
assegurando a continuidade na identidade pessoal da criança (Fonseca, 2004).
Com o desenvolvimento de diferentes procedimentos sobre a prática da adoção,
esta se torna, com o passar do tempo, um tema presente em todos os espaços que
defendem os direitos da criança e do adolescente no Brasil. Concebida pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente como mais um meio de proteger a criança é determinado que a
adoção seja vista no conjunto dos vários recursos de uma política integrada de proteção
à infância e juventude. Atualmente, parece haver uma naturalização da prática da adoção
e, conseqüentemente, da perda e/ou reformulação do vínculo familiar. Assim, cabe
questionarmos quem são os atores desses processos e em que cenário se sustentam.
Como o Brasil possui tantas crianças à espera de serem adotadas se há muitas
famílias querendo adotar? Quem são as crianças consideradas como inadotáveis, que
“sobram” nos abrigos? A prática da adoção é desenvolvida para ser uma solução ou
pode constituir-se em um problema para a sociedade? Não podemos pensar sobre essas
questões como sendo simples relações de causa e efeito, mas devemos problematizar,
por exemplo, a busca de crianças perfeitas como um princípio para atender a um modelo
ideal da sociedade: branco, bebê, saudável e menina. Se essas práticas procuram responder
a esse modelo, a adoção pode, sim, constituir-se em uma problemática social,
principalmente na medida em que se considera a desproporcionalidade entre o número
de crianças e adolescentes que aguardam adoção e as pessoas que aguardam para
adotar. Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul possui cinco vezes mais casais
habilitados do que crianças e adolescentes aptos para serem adotados.
A visibilização das características da população e oferta: quem são os adotáveis?
Conforme já mencionado, ainda não há um registro oficial das adoções
realizadas em nosso país, nem sobre as crianças e adolescentes atualmente aptos
para serem adotados ou das pessoas habilitadas para adoção. No entanto, em
reportagem de capa, a revista Época (Mendonça & Fernandes, 2004) traz dados do
CECIF (Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais – SP) que
revelam que, em nosso país, existem em média 36 pretendentes à adoção para cada
criança de zero a dois anos, enquanto que o número passa para 66 crianças de dez
anos de idade para cada pretendente a uma criança nessa faixa etária. No site da
Justiça da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul, consta que atualmente, do
total de 529 crianças e adolescentes aptos para adoção, algumas faixas etárias são
inversamente proporcionais à preferência de idade no total de 3.626 pessoas aptas
para adotar.
O site da Justiça da Infância e Juventude traz uma categorização, uma
classificação: há aqueles que estão classificados como habilitados para adotar
uma criança ou adolescente; há as crianças e adolescentes classificados como
Aletheia 25, jan./jun. 2007
167
aqueles facilmente adotáveis e também as crianças e adolescentes classificados
como dificilmente adotáveis. Essa questão pode nos levar a pensar a adoção mais
como um dispositivo do Estado a serviço da desqualificação dos modelos de família
e de crianças não-hegemônicos do que como uma possibilidade de assistência/
proteção à população infanto-juvenil. Trazer à tona essas questões pode contribuir
para desnaturalizá-las, uma vez que são construídas histórica, social e
discursivamente.
Abaixo, demonstramos os principais dados estatísticos que são apresentados
no site sobre algumas das características de crianças e adolescentes aptos para a
adoção e a preferência por parte dos adotantes já habilitados quanto a essas
características.
Tabela 1 – Dados referentes à idade das crianças e adolescentes aptos à adoção e quanto à preferência
por idade das pessoas habilitadas a adotar.
IDADE
Menos de um ano
Um ano
Dois anos
Entre 11 e 14 anos
Entre 15 e 18 anos
0,38%
1,70%
3,59%
28,92%
23,06%
PREFERÊNCIAS
Menos de um ano 90,93%
Um ano
50,52%
Dois anos
32,32%
Entre 11 e 14 anos
0,36%
Entre 15 e 18 anos
0,03%
Tabela 2 – Dados estatísticos das estatísticas referentes à cor da cútis das crianças e adolescentes aptos
à adoção e quanto à preferência por cor da cútis das pessoas habilitadas a adotar.
COR DA CÚTIS
Negra
Branca
20,97%
44,38%
PREFERÊNCIAS
Negra
Branca
9,90%
91,40%
Tabela 3 – Dados estatísticos das estatísticas referentes à cor do cabelo das crianças e adolescentes
aptos à adoção e quanto à preferência por cor de cabelo das pessoas habilitadas a adotar.
COR DO CABELO
Pretos
Loiros
Castanho claro
Castanho escuro
17,23%
1,31%
6,18%
7,68%
PREFERÊNCIAS
Pretos
51,06%
Loiros
50,28%
Castanho claro 53,51%
Castanho escuro 52,49%
Tabela 4 – Dados estatísticos das estatísticas referentes ao tipo de cabelo das crianças e adolescentes
aptos à adoção e quanto à preferência por tipo de cabelo das pessoas habilitadas a adotar.
TIPO DO CABELO
Liso
Crespo
Ondulado
168
4,23%
9,36%
7,30%
PREFERÊNCIAS
Liso
Crespo
Ondulado
Aletheia 25, jan./jun. 2007
51,41%
48,59%
50,31%
Tabela 5 – Dados estatísticos das estatísticas referentes à cor dos olhos das crianças e adolescentes
aptos à adoção e quanto à preferência por cor dos olhos das pessoas habilitadas a adotar.
COR DOS OLHOS
Pretos
10,86%
Castanhos
18,73%
Verdes
0,75%
Azuis
0,37%
Amendoados
0,19%
PREFERÊNCIAS
Pretos
51,98%
Castanhos
55,18%
Verdes
51,17%
Azuis
50,87%
Amendoados
47,73%
Tabela 6 – Dados estatísticos das estatísticas referentes às particularidades das crianças e adolescentes
aptos à adoção e quanto à preferência por particularidades das pessoas habilitadas a adotar.
PARTICULARIDADES
HIV positivo
Deficiente
8,80%
15,73%
PREFERÊNCIAS
HIV positivo
Deficiente
0,56%
1,08%
Tabela 7 – Dados estatísticos das estatísticas referentes às síndromes das crianças e adolescentes aptos
à adoção e quanto à preferência por síndromes das pessoas habilitadas a adotar.
SÍNDROMES
Orgânica
6,55%
Neurológica
9,74%
Infecto-contagiosa 1,12%
Psiquiátrica
4,49%
PREFERÊNCIAS
Orgânica
Neurológica
Infecto-contagiosa
Psiquiátrica
0,51%
0,38%
0,27%
0,43%
A construção dessas categorias sobre crianças e adolescentes aptos à adoção pode
remeter a uma série de outras classificações que, quando naturalizadas, essencializam
identidades ou diferenças, tornando invisíveis suas condições de emergência e as relações
de poder que se dão no campo da cultura, implicadas em sua constituição. Por outro lado,
ao tornarmos visíveis essas categorias, naturalizamos a destituição de sujeitos classificados,
diminuímos as possibilidades de ação para a prática da adoção, ao mesmo tempo em que
também facilicitamos essa prática para outros, legitimando um modelo de adoção.
Universalizamos marcadores identitários e a eles reduzimos os sujeitos, tendendo a engessar
determinadas características sobre a facilidade ou a dificuldade da adoção. Portanto, não
se trata de pensar que essa demarcação de marcadores identitários seja boa ou ruim, mas
de que se dá por relações culturais e relações de poder, ou seja, pelas políticas e práticas da
adoção que constituem aqueles que são os mais ou menos prováveis à adoção.
Idade, cor da cútis, particularidades e síndromes: marcadores identitários e os
discursos que produzem os adotáveis
A partir das estatísticas sobre as preferências por habilitados à adoção e sobre as
características da população apta para adoções, discutimos os marcadores identitários –
idade, cor da cútis, particularidades e síndromes – com a intenção de problematizarmos como
são produzidos modos de ser adotante e adotado pelo site em questão.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
169
Idade
A idade é entendida aqui como um marcador identitário que dá visibilidade a um
corpo vivido dentro de uma representação biológica. Nessa perspectiva, uma vez que
a idade dos adotados é marcada como importante por parte de quem quer adotar
(Quadro 1), definindo maiores ou menores probabilidades de adoção, pode-se pensar
que essa visibilidade produz determinados sentidos sobre os adotados, reforçando
determinadas práticas da adoção da Infância e da Adolescência.
Veiga-Neto (2000) chama a atenção para a forma como são inventadas as diferentes
idades do corpo e, ao mesmo tempo, atribuídas tais idades a diferentes corpos. Assim,
podemos pensar na preferência das pessoas habilitadas à adoção por crianças com
idade inferior a um ano como forma de apagar qualquer marca de um corpo vivido, de
evitar correr riscos ou de garantir que este corpo não traga marcas biológicas, sociais,
culturais em sua história que não possam ser administradas ou equacionadas dentro
de padrões de comportamentos hegemônicos. Entretanto, as marcas culturais, sociais
ou biológicas do corpo vivido das pessoas habilitadas à adoção não são colocadas em
questão ou administradas por essa prática no sentido do que elas poderiam significar
para quem vai ser adotado.
Santos (1997) fala que, se o corpo for analisado como uma escrita, este se faz
texto por meio de processos de dobra, de encarnação, que nele inscrevem histórias
que “invocam” a memória de tais inscrições. Fala do corpo biológico e também de um
corpo da cultura, pois sobre este “se inscrevem modos de ser e sentir que são
incorporados e que se expressam (se traduzem) naquilo que somos” (p.86). Assim, há
uma intencionalidade ou até mesmo uma necessidade de apagar as “inscrições”, a
história das crianças e adolescentes que estão para ser adotados.
Cor da cútis
Sabemos que, ao longo da formação histórica brasileira, marcada pela colonização,
escravidão e autoritarismo, o imaginário social construído sobre os negros não foi vivido
sem discriminações, lutas e resistências. Gomes (2000), ao falar dessa questão, lembra que
esse imaginário possibilitou a incorporação de teorias raciais repletas de um suposto
cientificismo que durante muito tempo atestaram a inferioridade do negro, a degenerescência
do mestiço, o ideal do branqueamento, a primitividade da cultura negra e a democracia
racial. Diante da demonstração sobre raça colocada no site, conforme o Quasdro 2, indicando
a preferência da cor da cútis por quem quer adotar, podemos pensar que essas idéias,
imaginários em relação ao negro se fazem presentes ainda hoje nas práticas das adoções.
Raça é entendida aqui como um conceito relacional que se constitui histórica, política
e culturalmente. Assim, ser negro, branco, amarelo, é bem mais do que um dado biológico.
E a cor da cútis, nesse sentido, o que é? O Brasil é um país marcado pela diversidade
cultural e racial. Dessa forma, possuir uma identidade racial é constituinte da formação
humana, ou seja, uma construção social e histórica. No entanto, a visibilização das
características raciais como marcadores identitários de quem vai ser adotado vem através
da “cor da cútis”, dissociando o contexto histórico-racial das crianças e adolescentes
aptos para adoção e naturalizando as questões raciais como meramente biológicas.
Determinadas identidades sociais hegemônicas, fundadas a partir de
170
Aletheia 25, jan./jun. 2007
normatividades culturais e biológicas, como, por exemplo, branquitude,
heterossexualidade e jovialidade, se apresentam como parâmetros a partir dos quais se
vêem os demais grupos e pessoas como diferentes, sendo, inclusive, atribuído um
valor social a essa diferença. O site não menciona raça, mas sim cor de cútis, ou seja:
branco ou preto. Há vários significados atrelados a essas palavras. Branco: paz, luz
claridade, vida, enquanto que o preto ou negro remete para escuridão, luto e morte.
Logo, o branco é melhor, superior, ou seja, há a supremacia branca. Santos (1997) fala
da “posição de prestígio” naturalizada de ser branco, mas lembra que as posições são
construídas historicamente. Conforme este autor, “embora haja uma série de
movimentos de valorização, ou de “resgate” da cultura/identidade negra no Brasil, em
suas mais diferentes instâncias, os negros e as negras continuam sendo falados/as e
tratados/as a partir daquelas representações que os constituem em oposição ao branco.
Melhor dizendo, a branquidade ainda é definida como parâmetro...” (p. 96). Assim,
podemos pensar que a exigência por parte de mais de 90% dos adotantes por uma
criança branca é atrelada a estas questões de um ideal de padrão da cor da cútis
branca4 e reforçada pelas práticas da adoção da Infância e da Adolescência.
Particularidades e síndromes
Do mesmo modo como os marcadores identitários de idade e cor da cútis, o site
também veicula determinadas características físicas e orgânicas das crianças e
adolescentes aptos à adoção (Quadro 6 e 7), junto às preferências das pessoas
habilitadas em relação a essas características. Esses dados indicam as condições de
crianças e adolescentes em relação à “particularidades”, conforme a nomeação do site,
como os que apresentam HIV e aqueles com necessidades especiais (identificados
como “deficientes”). A outra categoria é denominada “síndromes”, sendo que o site
não define nem explica o que entende por essa nomeação, apenas a classifica em
síndrome orgânica, neurológica, infecto-contagiosa e psiquiátrica.
No momento em que o site indica que existe essa população com estas
características, podemos supor, então, que há outras crianças e adolescentes que não
apresentam tais particularidades e síndromes. Em relação a essa comparação, podemos
pensar em pelo menos três questões que remetem a um padrão/modelo de condições
para viver na sociedade. Essas três questões dizem respeito às condições de saúde, às
condições de ser diferente, ou diferença, e às condições de maiores ou menores
possibilidades de competir, ou competitividade.
Tais condições podem ou não ser consideradas como problemáticas e, talvez,
discriminatórias em uma sociedade, dependendo das oportunidades de acesso a outras
condições sociais, culturais, econômicas e políticas que permitem ou não as situações
necessárias para que a população apta à adoção com as particularidades e síndromes
apontadas esteja exposta a situações de vulnerabilidade. Em relação às crianças e
adolescentes com particularidades ou síndromes, não significa, necessariamente, que
4
Não se sabe, pelo site, se quem quer adotar é branco ou negro; então, não podemos discutir aqui sobre a
possível busca por uma similaridade física com as pessoas que desejam adotar.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
171
apresentem uma condição de saúde instável ou menor por isso, se tiverem as condições
de acesso às situações que não os coloquem em vulnerabilidade, pois, conforme a
concepção do SUS, saúde não significa ausência de doenças.
Assim, seria interessante analisar se quem vai adotar uma criança ou adolescente
teria possibilidades de promover as condições de vida desse sujeito; condições de
vida no que tange a possibilitar que ele seja atendido e cuidado de acordo com suas
singularidades (físicas, orgânicas ou psíquicas). No entanto, quando essas síndromes
são apontadas em crianças e adolescentes disponíveis para a adoção, esta população
já está colocada em um contexto que foge a uma normatividade da sociedade – não se
trata de uma criança que nasce numa família nuclear, de classe média, com certas
condições; é uma criança ou adolescente que está abandonado ou com condição de
vida que não pode ser sustentada pela família por razões diversas, de acordo com uma
avaliação jurídica, psicológica e social. Ou seja, é uma população de diferentes em uma
situação diferenciada. No momento em que são apontados como crianças e adolescentes
diferentes por pertencerem a uma população que está para ser adotada, esses sujeitos
são ainda mais diferentes porque também apresentam características que os diferenciam
daqueles que não possuem essas particularidades ou síndromes.
Essa é a segunda condição de diferença e é a que indica uma nãoperformatividade em relação às oportunidades, não somente em relação às maiores
ou menores probabilidades para a adoção, mas às chances de adquirir as condições
que lhe forem proporcionadas até poder igualar-se a outros, sejam os outros que
também estão para ser adotados, ou os outros que não são adotados. Será sempre
um “diferente”, um estranho, “mais diferente” que o diferente e que, provavelmente,
se tornará mais “ex-estranho” às condições regulares que proporcionam os modos
normais de viver da sociedade (Uricoechea, 2003). Essas condições regulares são as
de poder competir, pois só competindo se consegue um viver normal, ou seja, podese igualar aos outros. Possuir as condições para competir significa, então, estar apto
para viver de acordo com padrões de normalidade estabelecidos pela sociedade.
Desse modo, essas classificações sobre as estatísticas das características de
crianças e adolescentes apontadas pelo site, que analisamos como marcadores
identitários que inscrevem essa população em determinadas relações de poder e saber,
representam para Bauman (1999), na sociedade atual, as realizações do projeto da
modernidade e indicam que: “classificar consiste nos atos de incluir e excluir. Cada ato
nomeado divide o mundo em dois: entidades que respondem ao nome e o resto que
não” (p.11). Não se trata de negar a existência das diferenças que são perceptíveis ao
olhar, como raça ou idade, mas sim de interrogar sobre o modo como falamos delas, de
que lugares falamos e o que tomamos como parâmetro para estabelecer comparações
de normalidade, superioridade. Em relação à adoção, a partir de determinadas
características, dá-se uma classificação de crianças e adolescentes. Por exemplo, a
idade é um fator decisivo para ser “classificado” como uma criança possível de ser
rapidamente adotada, ou seja, quanto menor a idade, maior a chance de ser escolhido
por uma nova família. O que o site em questão faz é visibilizar essa classificação de
crianças e adolescentes que estão aptos para serem adotados. Mas o que quer dizer
estar apto? O que representa estar apto para ser adotado?
172
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Para Bauman (2001), “buscar pela aptidão” é como garimpar à procura de uma
pedra preciosa que não podemos descrever até encontrar; não temos, porém, meios de
decidir que encontramos a pedra, mas temos todas as razões para suspeitar de que não
a encontramos” (p.92). A busca da aptidão é um estado de “auto-exame minucioso,
auto-recriminação e autodepreciação permanentes, e assim também de ansiedade
contínua” (Bauman, 2001, p.93). Partindo de tais considerações, podemos pensar na
busca pela “aptidão” de crianças e adolescentes adotáveis5 . Neste caso, são diversos
especialistas (assistentes sociais, psicólogos, promotores, juízes) que nomeiam quem
está apto e que fazem esse exame minucioso.
Bauman também faz uma distinção entre a conceitualização de saúde e aptidão.
Fala que os dois termos são freqüentemente tomados como sinônimos; afinal, ambos
se referem aos cuidados com o corpo, ao estado que se quer que o corpo alcance e ao
regime que se deve seguir para realizar essa vontade. Já saúde, conforme o Bauman
(2001, p.91), “é o estado desejável do corpo e dos espíritos humanos. Um estado que,
em princípio, pode ser mais ou menos exatamente descrito.”
Dessa forma, aptidão significa estar pronto a enfrentar o não-usual, o não-rotineiro,
o extraordinário – e, acima de tudo, o novo e o surpreendente. “Quase se poderia dizer
que, se a ‘saúde’ diz respeito à ‘seguir as normas’, a ‘aptidão’ diz respeito a quebrar
todas as normas e superar todos os padrões” (Bauman, 2001, p. 92).
Refletindo sobre as questões para a adoção a partir das considerações desse
autor, podemos pensar que quem é considerado apto para ser adotado deve ser mais
que saudável; deve estar pronto para enfrentar o não-usual e ser capaz de superar
todos os padrões, ou seja, deve estar muito bem preparado para “enfrentar uma adoção”
ou para ser adotável.
Ainda para Bauman (2001):
“A volatividade das identidades, por assim dizer, encara os habitantes da
modernidade líquida. E assim também faz a escolha que se segue logicamente: aprender
a difícil arte de viver com a diferença ou produzir condições tais que façam desnecessário
esse aprendizado” (p.204).
Em uma época em que a proliferação das diferenças tem sido um dos focos das
discussões dentro do campo das Políticas Públicas com o objetivo de desenvolver
processos de inclusão, podemos pensar que os marcadores identitários têm mobilizado
os princípios dessas Políticas, inscrevendo populações como vulneráveis para poder
governá-las, a fim de equacionar e administrar problemas sociais.
Considerações finais
Nessa perspectiva, uma vez que a idade, a raça, as particularidades e síndromes
dos adotados são marcadas como importantes, definindo maiores ou menores
probabilidades de adoção, pode-se pensar que a visibilidade desses marcadores
5
Que podem ser adotadas.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
173
identitários sobre adotados vem afirmar determinados discursos das práticas da adoção
e de políticas públicas da Infância e da adolescência sobre quem são, nessas
populações, os diferentes, os excluídos, os vulneráveis, e quais destes são os
governáveis para as práticas da adoção.
Ao analisarmos as estatísticas referentes à idade, a divergência considerável
entre a idade das crianças e adolescentes aptos à adoção e a preferência dos habilitados
a adotar evidencia que, ao dar visibilidade para esta característica, o site também está
afirmando quem é a população disponível para a adoção que está mais apta para ser
adotada. Assim, o marcador identitário idade, bem como os outros marcadores, produzem
o que podemos chamar de uma dupla diferença. A produção cultural sobre a idade é
uma forma de marcar a identidade das pessoas na sociedade e que as diferencia.
Porém, quando esta marca é utilizada em outros contextos culturais, como no caso da
população apta para adoção, como uma característica que é utilizada para diferenciar
esta população, este marcador identitário produz a diferença da diferença. A idade,
além de ser uma marca que diferencia a pessoa, passa a ser uma marca que diferencia
aquela pessoa, pelo fato de estar dentro de uma determinada população, neste caso,
das crianças e adolescentes aptos à adoção.
Já os indicativos que classificam as crianças pela cor da cútis utilizam esta marca
identitária também, em um primeiro momento, para diferenciar esta população.
Entretanto, este marcador identitário, ao ser nomeado desta forma, não está somente
diferenciando uma pessoa de outras. Neste caso, consideramos que além de diferenciar
as pessoas, trata-se de desapropriá-las de uma condição histórica, a qual as constituiu
enquanto sujeitos capazes de significar e se reconhecer no mundo em que vivem. A
cultura racial não está restrita a uma condição biológica que determina a cor da pele,
mas é a cultura que possibilita ao sujeito produzir os modos de significar a vida. No
momento em que o site opta por nomear por cor da cútis ao invés de condição racial,
isto pode representar um ato de querer purificar ou limpar desta população símbolos,
signos e significações que construíram a condição humana desta.
Embora o fato de o site visibilizar as crianças e adolescentes com
particularidades e síndromes possa aparentar uma política de transparência, bem
como a concepção de que estas características não significam doença,
evidenciando uma concepção de saúde como busca de promoção das condições
de vida, a política da prática da adoção não apresenta programas que, caso esta
população seja adotada, quais as condições e estruturas de cuidados que as
acompanha. Se avaliarmos esta situação a partir dos serviços de acesso às
condições de saúde da sociedade, podemos entender que mesmo que existam
interessados em adotá-las, as chances destas crianças e adolescentes serem
adotados, provavelmente, serão menores em relação àqueles que não possuem
estas características. Desta forma, a população disponível à adoção com
particularidades e síndromes também é duplamente diferenciada por marcadores
identitários: a diferença de ser alguém que pertence a uma população disponível
174
Aletheia 25, jan./jun. 2007
para a adoção e a diferença por possuir marcas físicas de particularidades e
síndromes que as diferenciam dos demais desta população. Assim, na análise que
empreendemos em relação a estas três situações de características da população
de criança e adolescentes aptos à adoção, entendemos e assumimos que as marcas
identitárias não são as que identificam ou que mostram o que existe de idêntico,
mas sim aquilo que diferencia, o que é e o que possui de diferente, o outro.
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Recebido em novembro de 2006
Aceito em abril de 2007
Neuza Maria de Fátima Guareschi é Doutora em Psicologia – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul – PUCRS; Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS .
Janaina Claudia Strenzel é mestranda em Psicologia Social e da Personalidade – PUCRS e bolsista CNPq.
Thais Bennemann é acadêmica de Psicologia e bolsista PIBIC/CNPq/PUCRS.
Endereço para correspondência: [email protected]
176
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.177-190, jan./jun. 2007
Existiria uma “semiologia psicanalítica”
em Lacan?
Victor Eduardo Silva Bento
Resumo: Trata-se de pesquisa de revisão de literatura em torno do seguinte problema
principal: existiria uma “Semiologia Psicanalítica” em Lacan? Para tal, os antecedentes
históricos deste problema foram discutidos, destacando-se particularmente as contribuições de Saussure, no campo da lingüística e da semiologia estruturais; de Lévi-Strauss, no
campo da antropologia estrutural; e de Freud, em “Totem e tabu”. Sobre a noção de
“Semiologia Psicanalítica” em Lacan, especialmente na obra “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, foi debatida a seguinte questão: a hipótese lacaniana do
“inconsciente estruturado como linguagem” seguiria a lógica de uma “semiologia freudiana
do sonho”? Concluiu-se que existe um pensamento semiológico em Lacan, implicitamente
sugerido. A influência aqui não teria vindo da semiologia de Saussure, mas da ciência dos
sonhos de Freud.
Palavras-chave: Lacan, semiologia, psicanálise.
Would there be a lacan’s psychoanalytical semiology?
Abstract: A literature review was done about the following issue: Would there be a Lacan’s
“Psychoanalytical Semiology”? Historical antecedents of this problem were discussed,
emphasizing the contributions of Saussure in the structural linguistics and structural semiology
areas; Lévi-Strauss in the structural anthropology domain; and Freud in “Totem and Taboo”.
Concerning Lacan’s notion of “Psychoanalytical Semiology”, in “L’instance de la lettre dans
l’inconscient ou la raison depuis Freud”, we discussed this question: “Would Lacan’s
hypothesis about the “unconscious structured as a language” follow the logic of a “Freudian
semiology of dream”? We concluded that there is an implicit semiological thought in Lacan’s
work. The influence here would not come from Saussure’s semiology, but from Freud’s
science of dreams.
Key words: Lacan, semiology, psychoanalysis.
Introdução
Como se vê, desde o título deste trabalho, trata-se aqui de pesquisa em torno do
seguinte problema principal: Existiria uma “Semiologia Psicanalítica” em Lacan? O
objetivo do presente estudo será, então, discutir esta questão, utilizando-se para tal
do método de revisão de literatura. Como Lacan não propõe diretamente nenhuma
abordagem semiológica, pretende-se buscar fundamentos lacanianos indiretos que
justifiquem uma “Semiologia Psicanalítica”, permitindo também defini-la e construí-la,
ao longo deste trabalho.
Mas de onde surgiu a idéia de estudar tal problema? Como justificar a importância
deste problema e do seu estudo?
Aletheia 25, jan./jun. 2007
177
A idéia de estudar o problema principal desta pesquisa surgiu por ocasião da
preparação da tese de doutorado do autor do presente estudo1 . Tratava-se de uma
tese baseada fundamentalmente no método de pesquisa de Revisão de Literatura, no
contexto de um Doutorado em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise na
Universidade Paris 7. O problema que se colocou desde logo foi o de justificar tal
método valorizando essencialmente o plano teórico, em oposição à proposta principal
da psicanálise, que, como se sabe, destaca, principalmente, a dimensão clínica. Mais
precisamente, o problema consistiu em buscar fundamentos psicanalíticos para a
Revisão de Literatura, o que culminou na construção de um método de pesquisa, que
foi chamado pelo autor do presente estudo de “Semiologia Psicanalítica”. Mas como
se chegou a tais proposição metodológica e denominação? Pretende-se a seguir relatar
os antecedentes históricos do problema desta pesquisa, identificando quais foram as
influências teóricas que levaram o autor deste trabalho à proposição desta “Semiologia
Psicanalítica”.
Sobre a noção de “Semiologia Psicanalítica” antes de Lacan
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que Freud também não propõe diretamente
nenhuma “Semiologia Psicanalítica”. Portanto, a primeira fonte de inspiração de Bento
(1996) para tal proposição não foi Freud. Foi Saussure (1916/1995a, 1916/1995b), o pai
da “Semiologia” que surge no campo da lingüística estrutural, quem exerceu a primeira
influência em Bento (1996), nesta construção metodológica da “Semiologia
Psicanalítica”. Saussure assim define sua “Semiologia”2 :
Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da
vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da
Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeîon, “signo”). Ela
nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência
não existe ainda, não se pode dizer o que será; ela tem direito, porém, à existência;
seu lugar está determinado de antemão. A Lingüística não é senão uma parte
dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Lingüística
e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos
fatos humanos.
Cabe ao psicólogo determinar o lugar exato da Semiologia. (Saussure, 1916/
1995b, p.24) (Ver passagem correspondente na edição francesa: Saussure, 1916/
1995a, p.33)
Para precisar o que chama de “Signo”, Saussure (1916/1995b, p.80-81) escreverá:
“o signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito (significado) e
uma imagem acústica (significante)”. Além disso, tratar-se-á para este autor de valorizar
uma dimensão psíquica, pois, segundo ele, a imagem acústica “não é o som material,
1
2
Vide a referência desta tese em Bento (1996).
Para o detalhamento da discussão sobre “A semiologia saussuriana”, vide Bento (1996, item 1.1).
178
Aletheia 25, jan./jun. 2007
coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a
representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos”. É o que fará da
semiologia, esta ciência dos signos, uma psicologia. A Semiologia, escreve Saussure
(1916/1995b, p.24), “constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da
Psicologia geral”.
E para detalhar aquilo que Saussure (1916/1995b, p.24-25) chama de “social”, de
“vida social”, esse autor evocará “um domínio bem definido no conjunto dos fatos
humanos”, ilustrando-os pelos “ritos, os costumes etc”.
Depois de Saussure, outra inspiração de Bento (1996) para a construção do
método de “Semiologia Psicanalítica” foi Lévi-Strauss (1958/1974, 1958/2003) e sua
antropologia estrutural. Lévi-Strauss começará por evocar a lingüística de Saussure,
mais particularmente a equação deste autor que se tornou célebre, segundo a qual a
linguagem é igual à língua mais a fala. Por um lado, Lévi-Strauss criticará esta lingüística,
se opondo, mais precisamente, ao fato de Saussure, segundo ele, ter restringido sua
abordagem ao arbitrário do signo, à dimensão relativa do social e dos sistemas
particulares de signos (a língua e a fala). Com esta crítica Lévi-Strauss justificará, por
outro lado, sua proposição dos mitos como sendo universais lingüísticos3 , ausentes
no pensamento de Saussure. Por outro lado, Lévi-Strauss justificará sua hipótese dos
mitos como sendo os reveladores do inconsciente humano apoiando-se em Freud e na
psicanálise quando escreve:
Pensamos particularmente na noção de mito e na noção de inconsciente. (...) De
fato, inúmeros psicanalistas se recusarão a admitir que as constelações psíquicas
que reaparecem à consciência do doente possam constituir um mito. (...)
(...) o objeto próprio dos mitos é de oferecer uma derivação a sentimentos reais,
mas recalcados. (Lévi-Strauss, 1958/2003, p.233 & 239) (Ver passagem
correspondente na edição francesa: Lévi-Strauss, 1958/1974, p.231, 237)
A partir, então, de Saussure (1916/1995a, 1916/1995b) e de Lévi-Strauss (1958/1974,
1958/2003), as duas primeiras inspirações de Bento (1996) ao propor a “Semiologia
Psicanalítica” tratada neste trabalho, chegou-se à noção de um método de pesquisa que
estudaria os signos no seio de sua vida social, entendo-se este “social” como remetendo
ao contexto dos ritos, dos costumes, dos mitos universais, dos escritos clássicos, etc. Um
tal estudo permitiria o acesso aos sistemas de signos particulares (nas línguas) e universais
(nos mitos), linguagens reveladoras da natureza humana mais profunda, do psiquismo
inconsciente do homem. Não se poderia ver aqui um modelo de método de pesquisa que,
valorizando a linguagem enquanto legado social, daria importância a sua dimensão “escrita”
(nos mitos, nas lendas, nos escritos clássicos, etc.), e, assim, funcionaria como justificativa
da Revisão de Literatura? Por outro lado, a idéia desta linguagem escrita revelar o psiquismo
3
Para o detalhamento da discussão sobre “Lévi-Strauss: sua antropologia estrutural e sua abordagem dos mitos
como linguagem do domínio da língua, da fala e de um sistema universais de signos”, vide Bento (1996, item
1.1.3).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
179
inconsciente do homem não permitiria supor que um tal método de pesquisa justificaria, em
particular, a Revisão de Literatura em psicanálise?
Entrando na psicanálise propriamente dita, Bento (1996) encontrou a terceira
inspiração de sua “Semiologia Psicanalítica” em Freud, particularmente em “Totem e
tabu”. A hipótese de Bento (1996) foi que esta obra constituiu a primeira “Semiologia
Psicanalítica” de Freud (1913/1974), pois, ainda que o pai da psicanálise não tenha
ali se utilizado desta expressão, pareceu ter efetivamente ali feito o que se entendeu
como sendo a prática da semiologia psicanalítica de dois signos: “Totem” e “Tabu”4 .
Estes dois signos foram de fato estudados por Freud (1913/1974) no seio da vida
social. Assim fazendo, Freud pareceu realizar a semiologia (psicanalítica) dos dois
termos, uma ação correspondendo na prática à concepção hipotética de semiologia
como “ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social” (Saussure, 1916/
1995b, p.24).
A partir de Freud (1913/1974), Bento (1996, item 1.2.1) chegou à seguinte
conclusão: para manter uma ótica psicanalítica freudiana num estudo semiológico,
seria necessário colocar a ênfase, como fez Freud em “Totem e tabu”, na análise
radical dos universais da linguagem, estes reveladores da natureza humana mais
profunda, do psiquismo inconsciente do homem, extraindo tais universais, num
primeiro tempo, dos totens e mitos, mas também, num segundo tempo, dos tabus e
das religiões. Pode-se questionar a esse respeito: Um tal estudo demandando, de
alguma maneira, o exame de “escritos”, não pareceria, assim, justificar o método de
Revisão de Literatura em psicanálise?
Depois de Freud, caberia avançar no campo da psicanálise em busca de
fundamentos teóricos para a construção de uma “Semiologia Psicanalítica”. Assim,
passa-se, no item seguinte, à análise das contribuições lacanianas neste campo.
Sobre a noção de “Semiologia Psicanalítica” em Lacan:
a hipótese lacaniana do “inconsciente estruturado como linguagem”
seguiria a lógica de uma “semiologia freudiana do sonho” em Lacan?
As influências teóricas na origem do pensamento lacaniano
Por que sair de Freud especificamente para Lacan, em busca dos fundamentos
teóricos de uma “Semiologia Psicanalítica”? Se no item anterior procurou-se construir
tal noção apoiando-se, em primeiro lugar, na “Semiologia” de Saussure (1916/1995a,
1916/1995b), proposta no campo da lingüística estrutural; em segundo lugar, na
antropologia estrutural de Lévi-Strauss (1958/1974, 1958/2003); e, em terceiro lugar, no
que se compreendeu como sendo uma “Semiologia Psicanalítica” em Freud (1913/
1974), particularmente em “Totem e tabu”, não se poderia esquecer o nome de Lacan,
4
Para o detalhamento da discussão sobre “‘Totem e tabu’ (1913): uma ‘semiologia psicanalítica’ em Freud?”,
vide Bento (1996, item 1.2.1).
180
Aletheia 25, jan./jun. 2007
autor cujo pensamento funda-se especialmente nas contribuições de Freud, de Saussure
e da antropologia estrutural. Lemaire escreve a este respeito:
A teoria psicanalítica lacaniana baseia-se nas recentes descobertas da antropologia
estrutural e da lingüística. (...) A originalidade de J. Lacan consiste em ter trazido
à luz a teoria freudiana do inconsciente, isto é, de a ter analisado segundo o
método estruturalista atual e de lhe ter dado o enfoque da lingüística. (Lemaire,
1979, p.44) (Ver passagem correspondente na edição francesa: Lemaire, 1977,
p.35-36)
A importância para Lacan, tanto da lingüística saussuriana, quanto do retorno a
Freud, foi freqüentemente reconhecida por seus comentadores, o que faz de suas
contribuições um excelente ponto de apoio para a construção de uma “Semiologia
Psicanalítica” nos moldes daquela acima mencionada no item 2.
Pretende-se a seguir discutir brevemente algumas das principais contribuições
lacanianas servindo para justificar e aprofundar esta “Semiologia Psicanalítica”.
Primeiramente, pode-se retomar a célebre hipótese de Lacan segundo a qual “o
inconsciente é estruturado como linguagem”. Esta hipótese, que marcou a essência de
seu pensamento, encontra-se especialmente colocada em evidência em seu trabalho
intitulado “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, aonde Lacan
escreve: “Nosso título deixa claro que, para-além dessa fala, é toda a estrutura da
linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente.” (Lacan, 1998a,
p.498) (Ver passagem correspondente na edição francesa: Lacan, 1966a, p.495).
Em que sentido se pode entender esta “linguagem”, situada “além da fala”,
estruturando o inconsciente, na citação acima? Mais precisamente, quais teriam sido
as influências teóricas recebidas por Lacan para conceber tal “linguagem”? Se se
procura nesta obra passagens permitindo esclarecer estas questões, indicações do
próprio Lacan sobre quais teriam sido suas influências teóricas na formulação em
destaque, encontram-se as referências que Lacan faz a Saussure e a Freud. A seguir se
discutirão as seguintes questões: Existe um raciocínio semiológico no pensamento de
Lacan? Se sim, as influências neste raciocínio foram recebidas de Saussure (vide subitem
3.2) e/ou de Freud (vide subitem 3.3)?
Teria Saussure exercido alguma influência no raciocínio semiológico de Lacan?
No que concerne ao que Lacan recebe de Saussure, o próprio Lacan escreve:
De nossa parte, vamos fiar-nos apenas nas premissas que viram seu valor
confirmado pelo fato de a linguagem ter efetivamente conquistado, na experiência,
seu status de objeto científico. Pois é por esse fato que a lingüística (7) se
apresenta numa posição-piloto nesse campo em torno do qual uma reclassificação
das ciências assinala, como é de costume, uma revolução do conhecimento (...)
Para marcar o surgimento da disciplina lingüística, diremos que ela se sustenta,
como acontece com toda ciência no sentido moderno, no momento constitutivo
de um algoritmo que a funda. Esse algoritmo é o seguinte:
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181
S
s
que se lê: significante sobre significado, correspondendo o “sobre” à barra
que separa as duas etapas. O signo assim redigido merece ser atribuído a
Ferdinand de Saussure, embora não se reduza estritamente a essa forma em
nenhum dos numerosos esquemas em que aparece na impressão das diversas
aulas dos três cursos, dos anos de 1906-7, 1908-9 e 1910-11, que a devoção
de um grupo de seus discípulos reuniu sob o título de Curso de lingüística
geral: publicação primordial para transmitir um ensino digno desse nome,
isto é, que só pode ser detido em seu próprio movimento. Eis por que é
legítimo lhe rendermos homenagem pela formalização S/s, em que se
caracteriza, na diversidade das escolas, a etapa moderna da lingüística. A
temática dessa ciência, por conseguinte, está efetivamente presa à posição
primordial do significante e do significado, como ordens distintas e
inicialmente separadas por uma barreira resistente à significação. Eis o que
tornará possível um estudo exato das ligações próprias do significante e da
amplitude da função destas na gênese do significado. Pois essa distinção
primordial vai muito além do debate relativo (ao arbitrário) do signo (...).
(Lacan, 1998a, p.499-500) (Ver passagem correspondente na edição francesa:
Lacan, 1966a, p.496-497)
Na nota de rodapé (7) desta passagem, Lacan escreve:
(7) A lingüística, frisamos, ou seja, o estudo das línguas existentes em sua
estrutura e nas leis que nela se revelam – o que deixa de fora a teoria dos códigos
abstratos, impropriamente elevada à categoria da teoria da comunicação, ou a
chamada teoria, constituída pela física, da informação, ou qualquer semiologia
mais ou menos hipoteticamente generalizada. (Lacan, 1998a, p.499) (Ver
passagem correspondente na edição francesa: Lacan, 1966a, p.496)
A principal hipótese lacaniana encontra assim seu primeiro fundamento teórico
em Saussure, em particular na lingüística deste autor, e não em sua semiologia. A este
respeito, Lacan precisará em que sentido ele compreende estas duas ciências em
Saussure para justificar sua escolha pela primeira. Lacan na nota de rodapé acima
citada dirá, então, que a lingüística é “o estudo das línguas existentes em sua estrutura
e nas leis que nela se revelam”, “o que deixa fora (...) qualquer semiologia mais ou
menos hipoteticamente generalizada.” Vê-se, então, que a lingüística é aqui valorizada
por sua “posição-piloto” no que concerne o estudo da linguagem, porque “a
linguagem... efetivamente (conquistou), na experiência, seu status de objeto científico”,
em oposição a “qualquer semiologia mais ou menos hipoteticamente generalizada.”
Lacan precisa mais ainda o que ele retém desta lingüística saussuriana quando
situa no primeiro plano a unidade lingüística, a noção de signo tal como aparece em
Saussure. Tal noção lhe parecerá essencial porque a separação entre o significante
e o significado, representada por uma barra que simboliza “uma barreira resistente à
significação”, evocará a idéia de um significado oculto, inconsciente. O signo, tal
como se apresenta em Saussure, tornaria então possível “um estudo exato das ligações
182
Aletheia 25, jan./jun. 2007
próprias do significante e da amplitude da função destas na gênese do significado”,
isto é, uma abordagem psicanalítica tendo como ideal último encontrar a significação
inconsciente original, a qual se situa “muito além do debate relativo (ao arbitrário)
do signo”.
Foi questionado acima em que sentido se poderia compreender em Lacan esta
“linguagem”, situada “além da fala”, estruturando o inconsciente. Tendo Lacan
procurado sublinhar a influência do pensamento saussuriano no que concerne a esta
noção de linguagem, não seria então oportuno evocar aqui a hipótese levantada por
Bento (1996) em outra oportunidade, segundo a qual a linguagem apareceria em
Saussure constituída pela língua e pela fala, enquanto sistemas particulares de signos,
mas também, por um sistema universal de signos5?
Mais precisamente, não se poderia pensar que esta “linguagem”, situada “além da
fala” (Lacan, 1998a, p.498) e, também, situada “muito além do debate relativo (ao arbitrário)
do signo” (Lacan, 1998a, p.500), remeteria precisamente a esta dimensão universal da
linguagem (situada igualmente além da fala e da língua – além do arbitrário do signo),
suposta por Bento (1996, item 1.1.2) como existente no pensamento de Saussure?
Além disso, a valorização, feita por Lacan, da unidade lingüística, do signo,
assim como do “estudo exato das ligações próprias do significante e da amplitude da
função destas na gênese do significado” (Lacan, 1998a, p.500), não evocaria esta
concepção, hipotetizada por Bento (1996) 6 como sugerida implicitamente por Saussure
(1916/1995b, p.89), de uma semiologia radical, mais exatamente de uma semântica fazendo
parte da semiologia e comportando uma abordagem sincrônica – no sentido de uma
análise sistêmica dos elementos do signo, o significante e o significado –, e, ao mesmo
tempo, uma abordagem diacrônica?
Mais precisamente, esta abordagem lacaniana acima em destaque, não se
assemelha ela a esta semântica, que se supõe existente no pensamento de Saussure
(1916/1995a, 1916/1995b), enquanto estudo das transformações do signo, mais
exatamente das relações entre seu significante e seu significado, ao longo de sua
história, mas colocando a ênfase no seu ponto de partida, na sua origem, e, finalmente,
na imutabilidade do signo?
Seja como for, Lacan (1998a, p.499) indica, claramente, como foi visto acima, que
ele reterá de Saussure somente seu modelo de lingüística, em particular seu modelo do
signo enquanto unidade de uma linguagem que “efetivamente (conquistou), na
experiência, seu status de objeto científico” da lingüística. O signo, enquanto objeto
da semiologia saussuriana, parecerá a Lacan, de certa forma, desprovido de valor, já
que Lacan situa a semiologia fora da lingüística, e como sendo uma disciplina “mais ou
menos hipoteticamente generalizada.”
Portanto, sobre a questão deste subitem: “Teria Saussure exercido alguma influência
no pensamento semiológico de Lacan?”, pode-se concluir que, aparentemente, pelo que
foi analisado acima, não houve influência de Saussure num suposto raciocínio semiológico
de Lacan (esta suposição hipotética será discutida a seguir no subitem 3.3). A influência
5
6
Para o detalhamento do raciocínio de como se chegou a esta hipótese, vide Bento (1996, item 1.1.2).
Para o detalhamento do raciocínio de como se chegou a esta hipótese, vide Bento (1996, item 1.1.4).
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183
de Saussure ocorreria apenas no pensamento lingüístico de Lacan. E quanto a Freud?
Teria Freud exercido alguma influência neste suposto raciocínio semiológico de Lacan?
É o que se pretende discutir a seguir no subitem 3.3.
Existe um raciocínio semiológico em Lacan? Se sim, teria Freud exercido alguma
influência neste raciocínio?
Como se viu acima, o pensamento lacaniano, além de ter recebido a influência de
Saussure e de Lévi-Strauss, está também fundamentado em Freud. Particularmente a
teoria dos sonhos de Freud (1900/1972a, 1900/1972b) parece ter exercido uma influência
em Lacan. Lacan (1998a) escreverá a este respeito desde as primeiras linhas do item
intitulado “A letra no inconsciente”:
A obra completa de Freud nos apresenta uma página de referências filológicas a
cada três páginas, uma página de inferências lógicas a cada duas páginas e, por
toda parte, uma apreensão dialética da experiência, vindo a analítica linguageira
reforçar ainda mais suas proporções à medida que o inconsciente vai sendo mais
diretamente implicado. Assim é que, na Ciência dos sonhos, trata-se apenas, em
todas as páginas, daquilo a que chamamos a letra do discurso, em sua textura,
seus empregos e sua imanência na matéria em causa. Pois esse texto abre com
sua obra a via régia para o inconsciente. (...) A primeira cláusula, articulada logo
no capítulo preliminar, posto que a exposição não pode suportar sua demora, é
que o sonho é um rébus. (...) As imagens do sonho só devem ser retidas por seu
valor de significante, isto é, pelo que permitem soletrar do “provérbio” proposto
pelo rébus do sonho. Essa estrutura de linguagem que possibilita a operação da
leitura está no princípio da significância do sonho, da Traumdeutung. (Lacan,
1998a, p.513-514) (Ver passagem correspondente na edição francesa: Lacan,
1966a, p.509-510)
Lacan postula assim sua hipótese da estruturação do inconsciente enquanto
linguagem sublinhando, ao mesmo tempo, que foi Freud quem primeiro propôs, e “por
toda parte”, em sua “obra completa”, “uma apreensão dialética da experiência, vindo a
analítica linguageira reforçar ainda mais suas proporções à medida que o inconsciente
vai sendo diretamente implicado.” Esta hipótese encontrará seu fundamento mais forte
na “Interpretação de sonhos” (Freud, 1900/1972a & 1900/1972b), sobretudo aqui, porque
é a “Ciência dos sonhos” que, abrindo “com sua obra a via régia para o inconsciente”,
demonstrará, mais do que as outras obras de Freud, e mesmo em “todas as páginas”, a
existência de um inconsciente estruturado como linguagem.
O sonho parece ser visto aqui como sendo o que o autor chama de “a letra do
discurso”. Anteriormente, na mesma obra, Lacan (1998a, p.498) havia designado “por letra
este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem.” Compreendese, assim, que este “sonho – letra do discurso” nada mais é do que um significante, cujo
caráter de “rébus” (enigma) demandaria ser decifrado, ou melhor, ser lido segundo a tradução
do seu significado inconsciente, o qual apareceria oculto sob a barra que o separa deste
“significante-rébus” (S/s). Lacan fará, finalmente, uma comparação entre a análise do sonho
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
em Freud e análise do signo em Saussure: neste sentido, interpretar um sonho não significaria
nada mais do que partir da imagem do sonho vista como significante e assimilá-la a um
rébus, até que seja decifrada, revelando-se, assim, seu significado oculto, inconsciente.
Lacan escreverá a este respeito: “A Entstellung, traduzida por transposição, onde Freud
mostra a precondição geral da função do sonho, é o que designamos anteriormente, com
Saussure, como o deslizamento do significado sob o significante, sempre em ação
(inconsciente, note-se) no discurso” (Lacan, 1998a, p.514) (Ver passagem correspondente
na edição francesa: Lacan, 1966a, p.511).
A analogia entre a idéia do significante situado sobre (separado de) seu significado
(S/s), em Saussure, e aquela da imagem do sonho situada sobre sua significação, em
Freud, permitirá a Lacan uma dupla empreitada: Por um lado, esta analogia lhe permitirá
justificar a hipótese do “inconsciente estruturado como linguagem”. Por outro lado,
ela lhe evocará a questão de saber quais são os mecanismos que atuarão para distanciar
o sujeito do significado inconsciente do “sonho-Significante”, levando-o a produção
de um certo sonho, mais precisamente, de um certo “Significante – imagem do sonho”,
de um certo “discurso no sonho”.
No que concerne esta questão do trabalho do sonho, Freud vai evocar dois
mecanismos, fundamentais, implicados na produção de uma certa imagem no sonho: a
condensação e o deslocamento. Lacan fará o mesmo, mas substituindo estes dois
termos por seus análogos, respectivamente pela metáfora e pela metonímia. Lacan
escreverá a respeito deste sonho assim assimilado a um discurso:
Mas as duas vertentes da incidência do significante no significado encontram-se
nela. A Verdichtung, condensação, é a estrutura de superposição dos significantes
em que ganha campo a metáfora (...) A Verschiebung ou deslocamento é, mais
próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra
(...). (Lacan, 1998a, p.515) (Ver passagem correspondente na edição francesa:
Lacan, 1966a, p.511)
Depois de ter comparado o sonho e o discurso no que concerne à utilização
destes dois mecanismos (aquele da condensação-metáfora e aquele do deslocamentometonímia), Lacan levantará a questão de saber se existiriam diferenças na atuação
destes mecanismos para produzir o sonho, por um lado, e o discurso, por outro. Ele
vai, assim, não apenas retomar e reforçar a idéia do sonho como estando assimilado ao
discurso, posto que ele diz que nada pode distinguir estes mecanismos num e noutro,
como também comparar o método de análise do sonho com a semiologia do discurso.
Ele escreverá a este respeito:
O que distingue esses dois mecanismos, que desempenham no trabalho do
sonho, Traumarbeit, um papel privilegiado, de sua função homóloga no
discurso? – Nada, a não ser uma condição imposta ao material significante,
chamada Rücksicht auf Darstellbarkeit, que convém traduzir por
“consideração para com os meios de encenação” (sendo por demais
aproximativa, aqui, a tradução por “papel da figurabilidade”). Mas essa
condição constitui uma limitação que se exerce no interior do sistema da
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185
escrita, longe de dissolvê-lo numa semiologia figurativa em que ele se alie
aos fenômenos da expressão natural. (Lacan, 1998a, p.515) (Ver passagem
correspondente na edição francesa: Lacan, 1966a, p.511)
Esta passagem, onde Lacan estabelece uma analogia entre, por um lado, o sonho
em Freud e o discurso, e, por outro lado, a análise do sonho em Freud e a análise
semiológica do discurso, não permitirá supor que a hipótese lacaniana segundo a qual
“o inconsciente é estruturado como linguagem” decorreria de um raciocínio seguindo
o modelo daquele que pareceria caracterizar o que se pode compreender como sendo
a “semiologia freudiana do sonho” em Lacan?
Além disso, esta dupla analogia, não reforçaria ela a proposição de um método
de pesquisa relacionado a uma “Semiologia Psicanalítica” radical que visaria constituir
uma história dos signos, aonde a ênfase recairia sobre a busca do sentido originário, e,
então, o pressuposto seria que tal investimento permitiria extrair a natureza humana
mais profunda, o psiquismo lingüístico e inconsciente do homem em geral, a verdade
humana imutável, atemporal e originária?
Este modelo da “semiologia freudiana do sonho”, nesta hipótese do “inconsciente
estruturado como linguagem”, tornar-se-á ainda mais evidente quando Lacan fala de
uma cadeia de signos, destacando a supremacia dos significantes sobre os significados,
colocando a ênfase na história de um único e primeiro signo, o significante primordial
(S1) – o falo. Ocupando o lugar de um objeto perdido, este significante fálico primordial
estaria predestinado, ao mesmo tempo, a sofrer processo de recalcamento originário, e
a se fazer substituir por um segundo significante (S2), que, por sua vez, sofreria o
mesmo destino, sendo, então, também recalcado, cedendo seu lugar para um terceiro
significante (S3), que seria substituído por S4, e assim por diante. O inconsciente seria
então constituído por significantes recalcados, possuindo em suas raízes mais
profundas, o significante fálico primordial (S1). A esse respeito, como esclarece
Laplanche e Pontalis (1998, p.168), é “em torno da noção de falo como ‘significante do
desejo’” que “Lacan tentou recentrar a teoria psicanalítica.”
Evocando outro estudo de Bento (1996, item 1.2.1), sobre a “Semiologia
Psicanalítica”, a partir de Freud (1913/1974), em “Totem e tabu”, não se poderia dizer
que este significante fálico primordial (S1) lacaniano pareceria lembrar o “Totem-Mito”
freudiano? Em outras palavras, o S1 de Lacan não seria o equivalente do “TotemMito” descrito por Freud (1913/1974) como situado na origem da história do homem,
estando também predestinado a sofrer o recalcamento originário, a tornar-se
inconsciente, e, assim, ceder seu lugar aos tabus e as religiões, estes equivalentes do
S2 lacaniano?
Em outras palavras, não se poderia evocar a mesma analogia acima em destaque,
afirmando que Lacan identifica S2 enquanto metáfora do Nome-do-Pai, conseqüência
da castração simbólica, e substituta do significante fálico primordial (S1), enquanto
Freud fala dos tabus e das religiões, relacionando estes ao homem submetido ao medo
constrangedor (medo da castração) que trava a livre manifestação de seu pensamento?
Dito de outra forma ainda, em Freud (1913/1974), os tabus e as religiões não seriam os
equivalentes da metáfora do Nome-do-Pai de Lacan (1966b, 1998b, 1998c, 1999),
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conseqüência da intervenção daquilo que Lacan chama de “Castração Simbólica”?
Seria, enfim, possível supor que existe uma analogia entre as três proposições seguintes:
1a- O Falo (S1) situado ao lado da metáfora do Nome-do-Pai (S2); 2a- O Totem situado
ao lado do Tabu; e 3a- O Mito situado ao lado da Religião? Se sim, também não seria
possível supor as duas seguintes equivalências: 1a- Entre o Falo, o Totem e Mito; e,
também, 2a- Entre a metáfora do Nome-do-Pai, o Tabu e a Religião?
Além disso, caberia se perguntar se este modelo lacaniano de “semiologia
freudiana do sonho” não faz lembrar em particular a semântica de Saussure (1916/
1995b, p.89), concebida como um simples “deslocamento da relação entre o significado
e o significante”, o que pressupõe, implicitamente sugerida, uma “semiologia radical”,
que valorizasse a origem do signo, pois “o que domina, em toda alteração, é a persistência
da matéria velha” (a imutabilidade do signo)7 .
Mesmo Lacan (1998a, p.499) precisando que valorizará o signo saussuriano ligado
à lingüística – que ele vê como ciência das línguas –, e não à semiologia – esta ciência
do signo (e não da língua), que ele situa fora da lingüística e considera “mais ou menos
hipoteticamente generalizada” –, parece, no entanto, que ele acabou colocando a
ênfase no falo que, no final das contas, segue o modelo do signo, correspondente ele
também á uma concepção “hipoteticamente generalizada”. De fato, enquanto
“significante do desejo”, o falo também assumirá um sentido hipotético e genérico,
ligado àquilo que falta e que completaria.
Como foi visto acima, se, por um lado, o destino do falo (S1) será ocupar o lugar
de um objeto perdido, tornar-se uma falta, sofrer o recalcamento originário, e se fazer
substituir por S2; por outro lado, implicará na mobilização dos dois mecanismos, a
metonímia e a metáfora, ação que conduzirá a produção do sonho e do discurso. Lacan
escreverá a esse respeito:
Podemos simbolizá-las (a metonímia e a metáfora) por:
f (S...S’) S ~ S (-) s
ou seja, a estrutura metonímica, indicando que é a conexão do significante com
o significante que permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta
do ser na relação de objeto, servindo-se do valor de envio da significação para
investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta. O sinal __, colocado
entre ( ), manifesta aqui a manutenção da barra __, que marca no primeiro
algoritmo a irredutibilidade em que se constitui, nas relações do significante com
o significado, a resistência da significação. (26) Eis agora
f (S’/S) S ~ S (+) s
a estrutura metafórica, que indica que é na substituição do significante pelo
significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação,
ou, em outras palavras, do advento da significação em questão. (27) O sinal +,
colocado entre ( ), manifesta aqui a transposição da barra –, bem como o valor
constitutivo dessa transposição para a emergência da significação. (Lacan, 1998a,
p.519) (Ver passagem correspondente na edição francesa: Lacan, 1966a, p.515)
7
Para o detalhamento da discussão sobre “A semântica em Saussure”, vide Bento (1996, item 1.1.4).
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Nas notas de rodapé (26) e (27) dessa passagem, Lacan escreverá: “26. O sinal ~
designa a congruência. 27. Como o S’ designa no contexto o termo produtor do efeito
significante (ou significância), vê-se que esse termo é latente na metonímia e patente
na metáfora.” (Lacan, 1998a, p.519) (Ver passagem correspondente na edição francesa:
Lacan, 1966a, p.515).
No que concerne a estrutura metonímica, é a conexão de um significante novo
(S’) a um significante antigo (S) que provocará a elisão deste. Por deslocamento, S’
substituirá S, instalando a “falta do ser na relação de objeto”, o que se tornará a
“significação (latente) para investi-la com o desejo que visa essa falta que ele
sustenta”, quer dizer que só se desejará aquilo que falta e aquilo que se imagina
poder completar. Em relação à estrutura metafórica, a substituição se fará pela
condensação de um Significante antigo por um outro S’ignificante novo, produzindo,
assim, um efeito de significação patente.
A significação última que resta ligada ao significado do significante fálico –
recalcado e inacessível, tanto no sonho, quanto no discurso – pareceria evocar a
existência de uma linguagem universal situada na origem da história do inconsciente
individual e do homem em geral. Esta idéia é ainda mais evidente na noção lacaniana de
Grande Outro, que, como precisa Chemama (1995, p.156), “(...) o Outro, em seu limite,
confunde-se com a ordem da linguagem”, remetendo ao “lugar onde a psicanálise
situa, além do parceiro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, não obstante
o determina”. É precisamente no Outro da linguagem que se distinguem os sexos e as
gerações, e que se codificam as relações de parentesco. A afirmação de Lacan segundo
a qual “o inconsciente é o discurso do Outro”, remete, neste sentido, a um fenômeno
duplo: por um lado, àquele, trans-individual, anterior e exterior ao sujeito, situado na
ordem da cultura, da linguagem-lei, que interdita o incesto e que é transmitido de uma
geração para outra; por outro lado, ao Outro enquanto lugar, no inconsciente, onde se
situa o desejo humano: aquele do falo.
Tal noção de Grande Outro, pelo fato dela pressupor a existência de uma dimensão
universal da linguagem em torno do que Lacan chama de significante fálico, pareceria
reforçar a importância de uma “Semiologia Psicanalítica” radical visando abordar as
origens dos signos, mas sem esquecer as mudanças semânticas importantes inseridas
no seu contexto social: aquele dos ritos, dos costumes, dos mitos, dos textos literários,
dos escritos clássicos, etc. (os fatos humanos, a língua), com o objetivo de extrair e
analisar os universais da linguagem reveladores da natureza humana mais profunda, do
psiquismo inconsciente do homem, da verdade humana imutável, atemporal e originária.
Conclusão
Foi atingido o objetivo deste trabalho de discutir a questão de saber se seria
possível supor uma noção de “Semiologia Psicanalítica” em Lacan. Chegou-se a
conclusão que existe um pensamento semiológico em Lacan, implicitamente sugerido.
Ao que parece, o pensamento semiológico de Lacan não possui a influência de
Saussure, pois, como indicará o próprio Lacan (1998a, p.499), ele reterá de Saussure
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somente seu modelo de lingüística, em particular seu modelo do signo enquanto unidade
de uma linguagem que “efetivamente (conquistou), na experiência, seu status de objeto
científico” da lingüística. O signo, enquanto objeto da semiologia saussuriana, parecerá
a Lacan, de uma certa forma, desprovido de valor, já que Lacan situa a semiologia fora
da lingüística, e como sendo uma disciplina “mais ou menos hipoteticamente
generalizada”.
Pareceria que o pensamento semiológico de Lacan teria recebido a influência de
Freud, pois foi encontrada, em Lacan (1998a, p.515), uma passagem particularmente
interessante a esse respeito, quando o autor, ao questionar “o que distingue esses
dois mecanismos (a condensação e o deslocamento), no trabalho sonho (...) de sua
função homóloga no discurso”, responde: “nada, a não ser uma condição imposta ao
material significante”, explicando que “essa condição constitui uma limitação que se
exerce no interior do sistema da escrita, longe de dissolvê-lo numa semiologia”. Podese neste momento pensar na existência, em Lacan, de uma analogia entre, por um lado,
o sonho em Freud e o discurso, e, por outro lado, a análise do sonho em Freud e a
análise semiológica do discurso, o que permitiu, assim, supor que a hipótese lacaniana
segundo a qual “o inconsciente é estruturado como linguagem” decorreria de um
raciocínio, implicitamente sugerido, seguindo o modelo daquele que pareceria
caracterizar o que se pode compreender como sendo uma “semiologia freudiana do
sonho” em Lacan.
Uma aparente contradição poderia neste momento ser apontada: Como supor
uma “semiologia do sonho”, se Saussure concebeu a “semiologia” como estudo
do signo no seio da vida social, o que implicaria fundamentalmente na valorização
da pesquisa dos escritos, da língua, do social, em oposição a Lacan e Freud, na
abordagem do sonho, aonde se vê em destaque a clínica (e não a pesquisa) do
sujeito do inconsciente, da fala (e não da língua) do indivíduo (e não do social)?
Em outros estudos (vide Bento, 1996, item 1.1.2) foi possível demonstrar que,
embora a “parole” (fala) saussuriana, remetendo a dimensão do indivíduo, não
seja em geral do interesse nem da lingüística, nem da semiologia, poderá, no entanto,
interessar a ambas, quando suas inovações ocasionarem transformações na língua.
Em outras palavras, nestas condições estritas, Saussure parece conceber uma
semiologia e uma lingüística da fala, o que implicaria na valorização do estudo do
indivíduo.
Referências
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Recebido em agosto de 2006
Aceito em março de 2007
Victor Eduardo Silva Bento é psicólogo; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade Paris 7; professor do Departamento de Psicologia da UFPR; professor do Departamento de Psicometria
do Instituto de Psicologia da UFRJ.
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.191-201, jan./jun. 2007
La intervención psicosocial en un contexto investigativo:
“Lecturas psico-sociales sobre jóvenes agrópolis* – sector
rural – desde diversos actores que los intervienen”
Peláez Romero Martha Patricia
Cañon Ortiz Oscar Enrique
Noreña Noreña Nestor Mario
Resumen: En el presente documento se conceptualiza la intervención desde diferentes
acepciones, siendo el sentido psicosocial de la intervención, la opción de sus autores. Los
avances conceptuales sobre intervención psicosocial reflexionan sobre los “planes de
desarrollo” municipales colombianos, en contextos y escenarios en los cuales intervienen
los diferentes profesionales – funcionarios expertos en el diseño de políticas, en el desarrollo
de programas y proyectos dirigidos a la juventud agrópolis en municipios. Este documento
se acoge también al saber interdisciplinario, al reconocimiento de las redes sociales, a la
importancia de la cotidianidad y de los proyectos de vida, lo mismo que al lenguaje como
generador de realidades a través de acuerdos de significación. La conceptualización mencionada está respaldada por una investigación en curso con jóvenes que viven en algunos
municipios del Departamento de Cundinamarca (Colombia).La pretensión de esta
investigación es trabajar con los funcionarios sobre la concepción que tienen de juventud,
es de tipo cualitativo con carácter interventivo, reconociendo al sujeto que se encuentra en
este periodo del ciclo vital como alguien con recursos o potencialidades. Finalmente se
enuncian en este artículo las categorías que orientan la investigación en cuestión, propias de
su orientación construccionista y que se relacionan directamente con el concepto de
intervención.
Palabras claves: Intervención psicosocial, jóvenes agrópolis, socio-construccionismo.
The psycho-social intervention in an investigative context:
“Psycho-social readings on young people agrópolis – rural area –
from diverse actors who intervene
Abstract: The present document conceptualizes the intervention from different meanings, being the
psycho-social sense of the intervention the option of its authors. The conceptual advances on
psycho-social intervention reflect on the “Colombian municipal development plans”, in contexts
and scenes in which different professionals intervene – experts in policies design civil employees, in
the development of programs and projects directed to youth agrópolis in municipalities. This
document also takes refuges in the interdisciplinary knowledge, the recognition of the social networks,
the importance of the daily life and the projects of life, just like in the language as generator of
realities through meaning agreements. The mentioned conceptualization is endorsed by an in course
investigation with young people who live in some municipalities of the Department of Cundinamarca
(Colombia). This investigation pretends to work with the civil employees on the conception they
have of youth; is of qualitative type with intervening character, recognizing the subject in this period
of the vital cycle as somebody with resources or potentialities. Finally the categories that orient the
investigation at issue due to their constructionist direction and that are related directly to the
intervention concept are enunciated in this article.
Key words: psycho-social Intervention, Young people agrópolis, Partner.
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191
Introducción
Significados para el término “intervenir”: tomar parte en un asunto, mediar en
algo o entre algo, interponer uno su autoridad, sobrevenir algo, acaecer.
En los avances conceptuales se considera que se puede organizar en cuatro
acepciones o aplicaciones.
1. Intervenir en algo o sobre alguien, viene a expresar una participación activa
intervenir es entrar dentro de un sistema de individuos en progreso y participar de
forma cooperativa para ayudarles a planificar, conseguir y/o cambiar sus objetivos.
2. La intervención “psicológica” o reconocida para nuestro caso como
“psicosocial” se podría definir como la utilización de procedimientos de observación
no intrusitos con la finalidad de recabar y construir información con la que definir el
“hecho-problema” objetivo de la intervención, aunque asumiendo que la relación de
cualquier observación lleva consigo ya una cierta intervención.
3. Se trata del mundo de la evaluación y valoración, promoviendo evaluaciones
continúas de las acciones con el fin de reflexionar sobre sus resultados y
consecuentemente proponer su reorientación.
4. Es intervención la acción de asesoramiento del profesional a ese otro, por
consiguiente y en sentido estricto la intervención se refiere a la actuación especial y
excepcional, que, desde la perspectiva de la psicología aplicada, se dirige de manera
programada y sistemática, con la iniciativa o apoyo institucional, a la comunidad,
organización, colectivo o grupo para proporcionarles ayuda, asesoramiento,
acompañamiento y hasta tratamiento, con el objeto de informar, advertir, asesorar,
acompañar, aconsejar habilidades y comportamientos anacrónicos para optimizar los
adecuados.
La intervención también se vale de los correspondientes mecanismos de
evaluación y educación, que cumplen distintas finalidades diferentes, así al inicio
como diagnóstico para desarrollar el diseño de la intervención, durante el proceso
para supervisar y redefinir objetivos y/o procedimientos, y tras la finalización como
valoración para mediar su vigencia e impacto.
Según Hernández (2003), hay cuatro axiomas para orientar la intervención:
1. La vida psíquica de un individuo no es exclusivamente un proceso interno. El
mundo subjetivo no es más que una puntuación dentro de las secuencias repetitivas
de interacción en un contexto que le da sentido.
2. Las modificaciones en los patrones de interacción del sistema, generan cambios
tanto en el sistema de interacción como en los procesos psíquicos internos de los
miembros de ese sistema. En este reconocimiento se fundamenta la idea de resolver
“síntomas “, si no lo miramos en contexto.
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
3. Cuando un agente de intervención trabaja con los consultantes, su gestión se
incluye en ese contexto. Como el agente de intervención hace parte del sistema de
ayuda, no es trivial la forma como las instituciones y los particulares establecen las
relaciones con los jóvenes. Puede haber casos donde si el agente de intervención no
hace una meta-mirada sobre su acción, puede entrar a fortalecer una acción o dinámica
que de hecho ya era negativa o que se vuelve todavía mas inconveniente a partir de la
situación o evento particular.
4. Agentes de intervención y consultantes forman en conjunto un nuevo sistema
que regula la gestión o dirección de sus miembros.
La intervención psicosocial se sitúa en la relación que se establece entre
categorías sociales y psicológicas. Las categorías sociales sería el objeto sobre el
que se interviene, ya se trate de sistemas o estructuras sociales. El efecto inmediato
que se busca es el cambio social. El objetivo final sería el cambio personal. Se
interviene sobre sistemas y estructuras sociales para resolver problemas
psicológicos (objetivo final) a través del cambio social (efecto inmediato). Esto se
puede aplicar tanto en la psicología social – comunitaria como a la psicología de
las organizaciones y al análisis institucional.
Según Bernstein D. y Nietzael M. (1.982), citado por Hernández, (2003). “…es
un movimiento de gran alcance que intenta aplicar los principios psicológicos a la
comprensión de los problemas sociales y la creación del cambio social verdadero”
En términos mas amplios se trata no sólo de hacer acciones en la comunidad,
sino que las personas identifiquen los problemas emocionales, relacionales, sociales y
económicos en un proceso de reflexión personal – grupal y que a través de la reflexión
– acción se contribuya al cambio individual y social.
La acción de este concepto va orientado a la búsqueda de la autonomía de los
grupos y personas involucradas en las alternativas de solución a las diferentes
problemáticas, donde la categoría psicosocial juega un papel importante pues articula
todas las áreas hacia un contenido más social y más humano, donde las relaciones
humanas entre los integrantes de un proyecto, su relación familiar, relación de grupos,
relación de parejas, relación con la comunidad y otros.
A continuación se conceptualiza sobre el término de intervención desde diferentes
acepciones:
La intervención psicosocial un concepto integrador
La investigación denominada, Lecturas psico-sociales sobre jóvenes agrópolis
desde diversos actores que los intervienen, tiene como objetivo construir
comprensiones sobre la concepción de juventud, que elaboran los diversos actores
que intervienen a los jóvenes y las relaciones que generan para resignificar las narrativas
que faciliten la construcción de tejido social.
Entendemos desde la perspectiva construccionista que una lectura psicosocial,
trasciende una visión del yo individual, reconociendo, más bien, una psicología social
de las relaciones. Una psicología así, tiene la competencia de reconocer la
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193
interdisciplinariedad, los recursos y talentos más que centrarse o hacer énfasis en el
déficit o la psicopatología.
La conceptualización más significativa para el desarrollo de este documento es
la intervención psicosocial que integra una intervención psicológica con una
intervención social; la primera centrada en el individuo y la segunda dirigida tanto a
comunidades como a organizaciones e instituciones. Esta última implica también,
cambios importantes desde la racionalidad del interventor en comunidades que han
elaborado necesidades, aspiraciones, problemas. Se explicita la comunidad en tanto
que, la intervención actual no apunta al individuo sino que en términos de Ayestarán
(1993), citado por San Juan (1996), ha ido a contextos sociales más amplios como
familia, escuela, vecindad, organizaciones, instituciones, estructuras sociales,
económicas y políticas. Considera además que la intervención psicosocial necesita
un modelo ecológico relacional basado en el análisis de los factores físicos, culturales,
económicos y políticos que condicionan la estructuración de las redes sociales las
cuales a su vez, condicionan la conducta individual.
Urgen nuevas miradas sobre el joven
Se establece aquí la idea de resignificar, lo que indica cuestionar la mirada que
sobre el joven tienen los actores sociales expertos que trabajan en políticas o programas
de juventud, advirtiéndose así su orientación interventiva. Desde un principio
construccionista se “cuestiona lo incuestionable”, (Gergen, 1.996), es decir, aquellas
construcciones sociales que naturalizan lo cultural, en otras palabras, lo que es hechura
del hombre. Se pondría en cuestión entonces el conocimiento que tienen estos actores
a quienes la sociedad les ha asignado autoridad y en buena medida credibilidad. La
resignificación permite la construcción de nuevas miradas y también nuevas formas de
acción y relación con los jóvenes.
Una concepción del joven desde la edad, que lo denomina como adolescente,
invisibiliza al joven como constructor de realidad en el presente y lo conmina a ser
simplemente una promesa hacia el futuro.
Relación entre las intervenciones psico-sociales, sociales y psicológicas
Desde Sánchez (1991), la intervención, en términos generales, se refiere a la
introducción, interposición o intermediación desde una postura de autoridad de un
elemento externo con la intención de modificar o interferir con el funcionamiento de un
proceso o sistema en una dirección dada. La intervención comporta un proceso
intencional de interferencia o influencia y persigue un cambio. De igual forma se
vehiculiza teóricamente, de esta forma ”…la intervención desencadena una serie de
expectativas y consecuencias fuertemente ligadas a la construcción simbólica y a las
representaciones de quien esta interviniendo. De esta forma, una modalidad de
intervención se vincula a un determinado marco conceptual que, ligado a una serie de
aportes teóricos y empíricos relacionados con el contexto, genera “formas típicas” de
intervención” (Carballeda 2002 p.94).
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Aletheia 25, jan./jun. 2007
La intervención como acción es un proceso que da cuenta de los contextos,
de la historia, de la situación, y en general de procesos que permean al sujeto
singular o colectivo. Así la acción comporta el sentido de las relaciones presénciales
o representadas, es decir, simbólicas. La acción es un movimiento intencional que
se construye en la relación, cuando ésta es significada, generando procesos
interactivos, es decir, sociales más allá de la simple estimulación, que encarna una
psicología del individuo.
Desde una intervención con énfasis psicosocial el joven debe comprenderse en
relación con otros, ya que es en esas relaciones que la vida adquiere sentido, debe
entenderse desde su racionalidad, desde su contexto para comprender su proyecto de
vida. Lo anterior señala que la intervención no se expresa exclusivamente desde la
lógica del agente externo sino que es un proceso interactivo, de intercambio. La afirmación
anterior da cuenta de la diferencia entre intervención como un dispositivo de poder del
interventor y la intervención psicosocial que representa un diálogo constructivo entre
interventor e intervenido.
De otra parte, la intervención psicosocial es temporal, situación que protege al
sujeto intervenido, dado que es la comunidad quien acentuará el proceso de cambio y
quien lo validará desde los acuerdos construidos en torno a las acciones iniciales de
los agentes externos. El agente externo debe sobrar en un momento dado; así “…desde
la perspectiva sistémica, la intervención es una acción deliberada; pero una acción
provisional y un proceso inestable que en general durará corto tiempo” (Hernández
2003 p.65).
La diferencia con la intervención psicológica estriba en que ésta última enfatiza
la exploración de aspectos intrapsíquicos, sin apostarle a la conexión de sentido
entre lo social y lo individual. Digamos que lo psicosocial pretende integrar la
dualidad sujeto y sociedad, relación permanentemente abordada por la Psicología
social.
Lenguaje como constructor de realidad
La función del lenguaje se destaca en los procesos de intervención psicosocial,
ya que aquél es un generador de realidades y en el intercambio de los grupos sociales,
las conversaciones son un punto esencial, pues, como señala Hernández (2003,
p.60) “hablar de algo es contribuir a construirlo”, de allí que se procure establecer
conversaciones que permitan lenguajear sobre los procesos interventivos, en los
que los actores sociales reflexionan su vida desde sus propios recursos, lo que
familiariza al joven con discursos cotidianos de empoderamiento, así quien trabaja
narrativas progresivas permanentemente las convierte en estilo de vida. El
señalamiento postmoderno, cada vez más fuerte, de que los seres humanos somos
narrativos desestimando el fuerte énfasis moderno que nos conmina casi
exclusivamente a lo cognitivo, da al lenguaje un tono menos informativo y más
interactivo y creador de realidad. Esto nos pondría, parodiando a Calderón de la
Barca, en la idea de que la vida es “cuento”.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
195
Aspectos polémicos de la intervención
La intervención plantea problemas teóricos importantes, pues la presencia de
agentes externos tiende a ser considerada como invasiva hacia la comunidad dado que
la sociedad occidental tiende a imponer de manera sutil, valores como el consumo, el
individualismo, la discriminación, la competitividad en sectores de población que no
“producen”, en los que encontramos, en general, a los jóvenes. Por ejemplo, el actor
social o profesional que interviene a los jóvenes agrópolis, lo haría desde su racionalidad
e impondría su narrativa como experto que es a los grupos de jóvenes, así como el
profesor impone sutilmente el conocimiento a los estudiantes, lo que es visto por la
sociedad como algo apenas normal. Es común encontrar en docentes de educación
básica secundaria y media vocacional narrativas regresivas respecto al potencial ético
de los jóvenes, entre otros.
La intervención como compromiso social
No obstante, la acción de la academia – en la que se mueven los autores de éste
documento – basada en una intervención comunitaria coherente con los postulados
de una psicología social comunitaria, pretende respetar la forma en que las
comunidades se expresan, viendo en esta expresión una oportunidad para que las
comunidades transformen su realidad desde sus propias lógicas, lo que les da
autonomía no solo frente al agente externo sino en todas las decisiones que tomen.
En palabras de San Juan (1996) “…el modelo de intervención comunitaria, cuya
acción preventiva y de promoción de la salud y la calidad de vida está dirigida a la
comunidad desde la interdisciplinariedad, no solo a sus miembros enfermos sino
también a los sanos o en situación de riesgo promoviendo un estilo activo en todos
ellos a través de los niveles básicos de atención primaria…se opone a unos recursos
exclusivamente profesionalizados y unidisciplinares en los que el usuario se convierte
en un receptor pasivo” (p. 30).
La intervención social, por el contrario, implica un apoyo que promueve un
proceso de desarrollo tanto grupal como individual. Varios aspectos importantes a
tener en cuenta según Taboada, en San Juan (1996), son: “Universalidad que viene
a significar la toma de conciencia de la similitud de situaciones y problemas con
otras personas; Información que viene a incluir la explicación y aclaración de la
compleja realidad circundante; Altruismo que viene a recoger la importancia de dar
algo a otro miembro en parecidas circunstancias; Catarsis que viene a significar la
posibilidad de significar la posibilidad de socializar en un contexto de grupo
pequeño las emociones que desbordan en un momento determinado el control
cognitivo” (p. 92-93)
Sin embargo la intervención social comporta generalmente una racionalidad
impersonal, que puede imponer sutilmente su orientación. Vale decir que lo social
debe ser cuestionado permanentemente como portador de dispositivos ideológicos
que el saber y la orientación comunitaria contrastan.
196
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Lo social como proceso relacional
Es necesario aclarar que aunque lo psicosocial parece estar anclado en una
dualidad, para efectos de la orientación de este artículo, lo social comprende al otro, se
plantea la alteridad, el reconocimiento del otro, lo relacional. Lo social implica la
comunidad que aunque nace en la sociedad va construyendo una racionalidad propia,
en la que el sujeto se hace con otros desde la solidaridad, el reconocimiento de las
diferencias y un sentido colectivo de vida desde la particularidad del sujeto.
En buena medida, la intervención es una prueba de fuego para sopesar el carácter
de una comunidad, su sentido de cohesión, de pertenencia, de proyección al futuro, su
sentido de cooperación y las redes que teje con otras organizaciones además de su
progresiva independencia con relación a la lógica de la sociedad, pero también es una
forma de establecer la disposición con que el agente externo se relaciona con grupos
orientados comunitariamente.
Desde esta perspectiva, profesionales que desarrollan trabajos con grupos
humanos, consideran a los sujetos como protagonistas o actores sociales de sus
propias historias y por tanto estos –los actores- son convocados para la coordinación
y construcción de acciones posibles con ellos y desde ellos y no como si solo fueran
espectadores, mientras que desde afuera otros les señalan las rutas y derroteros a
seguir.
En la intervención parece jugarse, de forma decisiva, la permanencia de las
comunidades, su desarrollo, su independencia, su creatividad, puesto que el agente
externo recrea su ideología en relación con la comunidad y es de alguna forma un
representante de la sociedad. En esta relación el agente social, o agente externo, tiende
a imponer sutil ó explícitamente sus reglas de juego. En este sentido podemos advertir
una contradicción fuerte si el agente externo no ha respetado las reglas de juego de la
comunidad y aprovecha la intervención como una forma de sacar ventaja de las
necesidades sociales de otros. Esta contradicción se puede ubicar en lo que Gergen,
(1.996) denomina epopeya heroica que combina lo progresivo – regresivo, es decir,
que el interventor o agente externo se presenta como salvador en las situaciones de la
comunidad, reivindicándose como protagonista y quedando la comunidad como
espectadora respecta a la acción de ese agente externo. Aunque la intervención tiene
un acento externo puede jugar un papel clave en el diagnóstico y solución de los
dilemas comunitarios.
Interventor y compromiso social
Aquí es importante hacer una reflexión sobre uno de los actores de este proceso
–el interventor-. Una vez que se ha considerado que en la intervención hay un
agente externo, un profesional, que concebido desde la cibernética de segundo
orden, no comporta acciones objetivas ni tienen que ver con un criterio de verdad.
En este actor reinan las subjetividades inscritas en la construcción de sus marcos
referenciales, sus experiencias en el contexto y los fenómenos a abordar, así como
Aletheia 25, jan./jun. 2007
197
sus tonos emocionales en cuanto a los sujetos y temas a trabajar; de allí que muchas
de las pautas relacionales se constituyen desde lo expresado por este sujeto el cual
puede por su poder, orientar el trabajo de una comunidad o una organización hacia
sectores de su interés y no de la comunidad, de allí que éste profesional deba
desarrollar habilidades en los procesos auto referenciales y de meta observación
toda vez que el acto de intervención lo involucra y lo afecta a él mismo. Así Foerster
(1974) en Ibáñez (1998) resalta la importancia del “observador” respecto a lo
observado al señalar que “Las observaciones no tienen valor absoluto sino que son
relativas al punto de vista de un observador” (p. 146). Añade, que se requiere de una
teoría del observador que devele ciertas dificultades. De esta forma expresa que, “Se
trata de un nuevo estado de cosas en el discurso científico; pues, siguiendo la
óptica tradicional, que establece una separación entre el observador y sus
observaciones, toda referencia a ese discurso era cuidadosamente evitada” (p. 146).
Esta evitación tiene razones, en tanto que, no bastaría la complejidad de un objeto
determinado sino que se añadiría la mirada del observador que conduciría a paradojas
como en la expresión <soy un mentiroso>.
Intervención como proceso teórico – práctico
Otro aspecto clave de la intervención es la fusión de la teoría con la práctica,
puesto que las transformaciones inmediatas del encuentro entre el agente externo y la
comunidad, establece una reflexión o mediación teórica que permite contextualizar y
orientar la comprensión de los procesos psicosociales implicados. La intervención
debe ser un proceso de doble vía, puesto que el discurso popular contiene un
conocimiento que provoca modificaciones en la manera de pensar del agente externo
y viceversa. En este sentido, la intervención es una interacción en la que ambas partes
se enriquecen. El usuario resuelve sus necesidades y el agente externo alcanza parcial
o totalmente sus metas investigativas o transformativas.
Podríamos decir que aunque la intervención es definida como el propiciamiento
del cambio desde una autoridad externa, si éste ha sido generado desde la lógica de las
dos partes implicadas hay una elaboración conjunta de conocimiento. Esta construcción
conjunta es comprendida así por el construccionismo social, enfoque en el que nos
apoyamos.
La investigación interventiva en jóvenes del sector rural implica – en el caso
de los docentes universitarios que realizan este documento y la investigación en
curso – buscar que el profesional que los interviene comprometa reflexivamente al
joven, es decir, que ponga en duda sus certezas, sus seguridades de conocimiento,
sus experiencias, sus creencias y así sea gestor y transformador en organizaciones
juveniles municipales a través de su visión del mundo. En este sentido la
intervención, aunque incluye la postura de autoridad de los investigadores, recoge
la significativa forma de construir la realidad por parte de los jóvenes desde la
óptica de sus interventores.
198
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Esta disposición de la investigación es una forma comunitaria de establecer
las relaciones con los jóvenes. Esta forma implica partir de la lógica y el sentido de
ellos enfrentándose a dilemas y problemas, reconociendo por parte de quienes los
intervienen un contexto histórico, social y cultural. Estas relaciones con los jóvenes
están sujetas a la observancia de políticas, planes, programas y proyectos para ser
desarrollados por autoridades municipales, interventores, líderes comunitarios y
vecinos entre otros, quienes promueven espacios de solidaridad, de apoyo, de
intimidad, de cohesión, de pertenencia, de integración; en este sentido lo
comunitario significa también el reconocimiento de la diversidad, la alteridad,
cuestionando los elementos ideológicos impuestos sutil o directamente por la
sociedad.
Es necesario señalar aquí que el concepto de lo social se diferencia del concepto
de sociedad, así lo social es del orden de las relaciones y de lo que genera significados,
o que se constituye en significativo, mientras que la sociedad hace alusión a un
dispositivo a través del cual los hombres se organizan en conjunto. La intervención
social comprende o engloba lo comunitario, sólo que al emerger lo comunitario va
tomando distancia de los dispositivos de la sociedad sin desconocer las relaciones.
Lo comunitario está ligado entonces a la concreción de los sujetos en acción situada
sin desconocer lo social, pero contrastando entonces los dispositivos ideológicos
de la sociedad.
Esta orientación comunitaria reconoce el compromiso social del investigador,
así Martín Baró (1983) citado por Álvaro (1996), afirma que: “A pesar de que
muchos psicólogos sociales siguen insistiendo en la necesidad de que la ciencia
permanezca ajena a la opción axiológica, la crítica formulada ha roto el espejismo
de la asepsia científica. Quien se atrinchera en su negativa a optar concientemente,
sabe que sirve de hecho a aquellos cuyo poder opera, es decir, a la clase dominante
en cada sociedad y ello no solo en las aplicaciones prácticas de su quehacer,
sino, más fundamentalmente en la estructuración misma de su saber hacer y
operar científico” (p.23).
Así el científico social se relaciona con otros sujetos, que como él, son
susceptibles de valores, principios, intereses y de esta forma no puede hacer caso
omiso de su incidencia en los procesos de vida de las personas que estudia. Así
Páez, en San Juan (1996) señala que “…desde los recursos políticos por un lado y
recursos comunitarios por otro, ha de ser armónica y equilibrada, por lo que el
interventor psicosocial deberá poner especial atención en este aspecto, ya que incidir
en unos en detrimento de los otros podría llevar a contrariar los propios principios
de la intervención psicosocial. Así, el riesgo de delegar toda la responsabilidad en el
Estado favorece el desarrollo de la desmovilización social con la consiguiente
revalorización de las soluciones individuales y la progresiva reducción de los derechos
sociales” (p. 30).
Aletheia 25, jan./jun. 2007
199
Conceptos alrededor del concepto de intervención
El recurso conceptual de la investigación está conformado por significados,
resignificación, promoción, creatividad social y narrativas como categorías principales
y cultura, diversidad cultural, cotidianidad, saber popular, políticas de juventud,
interdisciplinariedad, ciclo vital, jóvenes, redes, agrópolis, ciudad-región, procesos
formativos, como categorías subsidiarias de la investigación. Las categorías
principales direccionan la investigación, mientras las subsidiarias son el contexto
que es preciso reconocer para comprender a los jóvenes agrópolis. Estas categorías
a pesar de su sentido deben ser refrendadas desde la intervención pues así cobran
un significado concreto.
La intervención como un proceso de encuentro entre un interventor y un sujeto
colectivo a través del cual se resignifica el proyecto de vida del intervenido desde
sus propios recursos y potencialidades. Esto último se logra reconociendo el contexto
del sujeto intervenido –este contexto nos invita a realizar lecturas antropológicas
desde la cultura, sociológicas desde las instituciones sociales, psicológicas desde
las narrativas del sujeto, del poder desde la política, entre otras- . Se habla de sujeto
colectivo en tanto que se acepta su relacionalidad, es decir, su construcción con
otros y desde otros.
Además, considerar la intervención psicosocial como una acción de todos los
profesionales con un perfil desde las ciencias sociales involucradas implica reconocer
el contexto, el discurso y el posicionamiento de los profesionales “expertos” con el fin
de continuar proponiendo programas y proyectos que reivindiquen la presencia de los
jóvenes agrópolis como protagonistas.
La investigación reportada indica que la conceptualización se aterriza cuando
hay dispositivos sistemáticos y rigurosos. Digamos que pensar la intervención
desde este escrito ha significado relacionar producción teórica, aplicación y práctica
de la intervención.
Reflexiones finales
Hablar de intervención psicosocial y no meramente de intervención psicológica
o psicoterapéutica porque se considera que lo que caracteriza al fenómeno o al problema
social esta en el mundo de la complejidad, que implica un abordaje, dado que hay
muchos actores y dimensiones que están participando. Nuestra responsabilidad como
profesionales en la psicología requiere por lo tanto darle sentido a lo intrasíquico en el
contexto relacional.
Es por esto, que como marco de referencia para ubicar la intervención propiamente
dicha, es necesario mencionar algunas reflexiones:
En primer lugar, la intervención necesita estar preparada porqué en ella se
necesita abordar los problemas complejos con estrategias complejas, y para
aceptar que, aunque parezca absurdo emergen unas grandes contradicciones,
200
Aletheia 25, jan./jun. 2007
pero es justamente en estas contradicciones donde está la fuerza de todo un
sistema complejo.
La complejidad de los fenómenos implica diversidad en vez de reduccionismo, es
decir, diversidad en las personas, diversidad de subsistemas sociales, de intereses, de
alternativas y de relaciones.
Identificar la conexión entre diversos componentes del sistema involucrado,
más que su disyunción. Es decir, que alguien que pretende intervenir en una
situación, como miembro de una institución o en la práctica privada, tendrá que
aceptar que ninguno de los fenómenos que ocurren en uno de los individuos –
jóvenes participantes en la situación o en algunos de los subsistemas presente
puede aislarse y que ninguno de los actores puede por sí solo resolver el
problema. Un agente de intervención requiere contemplar esas distintas instancias
para poder diseñar una estrategia de intervención que sea potente, oportuna y
relevante para la situación.
También es importante considerar la diversidad de las reacciones de las personas
y de las jóvenes que significan el fenómeno o el problema, aunque aparentemente se
trate de un mismo evento, pues de hecho las circunstancias nunca son las mismas. Por
esto mal podríamos pensar que todos los “jóvenes” puedan ser sujetos de un mismo
programa o de una estrategia de intervención demasiada rígida.
La noción de conexión se asocia con la noción de implicación, esto significa que
los intereses de los jóvenes del sector rural pueden ser isomórficos con los intereses
de otros jóvenes de otro sector rural.
Para efectos de la intervención psicosocial es necesario comprender un mapa de
interacciones para que estratégicamente puedan elegirse los puntos sobre los cuales
ejercen las acciones más potentes.
El campo psicosocial permite visualizar la construcción que cada joven involucrado
hace de los eventos, situaciones o problemas. Cualquier idea que como agentes de
intervención tengamos va a ser determinante para poder abordar la situación.
Con lo anterior, se asume que el agente de intervención, sea psicólogo, agente
investigador o trabajador social, inevitablemente hace una definición del sistema sobre
el cual interviene en función de lo que sabe y en función de lo que es. Por esto son muy
relevantes encuentros interdisciplinarios que, como este, nos permita reflexionar y
sobre lo que cada uno piensa y cree acerca del fenómeno o problema en cuestión y
sobre cual es su posición personal al respecto, incluyendo el meta análisis de las
nociones teóricas a las que acudimos para abordar la intervención.
Es ineludible reconocer que a su vez el observador aborda el sistema a través de
la que sería una sobredeterminación proveniente de su subjetividad, de la influencia
cultural y del contexto social.
Infortunadamente, nuestra formación profesional y nuestra formación científica
en general nos han llevado a considerar los fenómenos más bien dividiéndolos en
partes que a mirar las conexiones entre sus componentes.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
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La intervención psicosocial es, en definitiva la relación entre teoría “psicológica”
y metodológica aplicada ante un problema concreto. La forma de trabajar en ambientes
o áreas de un alto nivel de incertidumbre y donde éticamente no se puede dejar de
intervenir, sería otra característica adicional a la definición de intervención psicosocial.
Referencias
Álvaro, J. (1996). Psicología social aplicada. Mc Graw Hill, Madrid.
Cañón, O., Noreña, N., & Peláez, M. (2005). Procesos psicosociales en relación con
abordaje del conflicto, participación y liderazgo, en jóvenes escolarizados de
estratos socioeconómicos 4, 5 y 6 de la ciudad de Bogotá. Investigación en
desarrollo.
Carballeda, A. (2002). La intervención en lo social: exclusión e integración en los
nuevos escenarios sociales. Buenos Aires: Paidós.
Gergen, K. (1996) Realidades y relaciones. Barcelona: Paidós.
Hernández, A. (2003). Aportes y limitaciones de la noción de trauma y del paradigma
de la resiliencia en la intervención psicosocial, en La Universidad frente al
secuestro. Imprenta nacional de Colombia, Bogotá.
Ibáñez, J. (1998). Nuevos avances en la investigación social I. Barcelona: Proyecto a
ediciones.
Sánchez, A. (1991). Psicología Comunitaria. Barcelona: PPU.
San Juan, C. (1996).Intervención Psicosocial. Barcelona: Anthropos.
Recebido em maio de 2006
Aceito em março de 2007
Paláez Romero Martha Patricia é psicóloga; especialista em Intervención Sistémica de la Familia (Universidad
Santo Tomás); Master en Psicología Social-comunitaria (Pontificia Universidad Javeriana – Colombia).
Cañón Ortiz Oscar Enrique é psicólogo; Master en Psicología Social-comunitaria (Pontificia Universidad
Javeriana – Colombia).
Noreña Noreña Néstor Mario é psicólogo; especialista en teorías, métodos y técnicas de investigación
social. (Universidad Pedagógica Nacional).
Endereço para correspondência: [email protected]
*
Agrópolis: se define como la conjunción del espacio rural y urbano, comprende la función rural con predominio
de la producción primaria y la función urbana de actividades económicas primarias y secundarias. La agrópolis
es una respuesta de vida a los procesos de muerte que presenta la ciudad grande en el mundo contemporáneo.
Ofrece una salida diferente de la metrópolis, megápolis y cosmópolis, urbes enjuiciadas por el efecto letal que
producen sobre la población y sus alrededores. La agrópolis aporta una producción postmoderna, amplia,
generosa y digna de ser trabajada. La agrópolis armoniza las funciones de campo y ciudad, integra elementos
urbanos y rurales, unifica la población campesina y ciudadana y dispone la sostenibilidad total del área; con
todo ello supera los conceptos de área metropolitana y ciudad-región.(En Ciudadviva, publicación del Instituto
Distrital de Cultura y Turismo Bogotá Febrero de 2004 No.2).
202
Aletheia 25, jan./jun. 2007
Aletheia, n.25, p.202-203, jan./jun. 2007
Síndrome de Burnout: uma doença
do trabalho na sociedade de bem-estar
Mary Sandra Carlotto
Sheila Gonçalves Câmara
As mudanças produzidas no mundo do trabalho, principalmente as ocorridas
devido ao incremento do setor de prestação de serviços, têm ocasionado uma
nova patologia laboral, a Síndrome de Burnout. A legislação brasileira de auxílio ao
trabalhador já contempla a Síndrome de Burnout no Anexo II – que trata dos
Agentes Patogênicos causadores de Doenças Profissionais – do Decreto nº3048/
99 de 6 de maio de 1996 – que dispõe sobre a Regulamentação da Previdência
Social –, conforme previsto no Art.20 da Lei nº8.213/91, ao referir-se aos transtornos
mentais e do comportamento relacionados com o trabalho (Grupo V da CID-10), o
inciso XII aponta a Sensação de Estar Acabado (Síndrome de Burn-Out, Síndrome
do Esgotamento Profissional) (Z73.0). O Burnout é um fenômeno psicossocial
relacionado ao contexto laboral e que acomete trabalhadores que desenvolvem
suas atividades de forma direta e emocional com público. Burnout se constitui de
três dimensões, exaustão emocional, despersonalização e baixa realização
profissional. Burnout vem recebendo crescente atenção por parte da comunidade
científica, empresarial e sindical, devido às conseqüências negativas para as
organizações e seus trabalhadores. A mídia tem divulgado a síndrome, fazendo
com que a população em geral tenha acesso a informações básicas e principais
fatores de risco. No entanto, ainda há confusões tanto no material divulgado,
quanto na própria definição de Burnout. Este, muitas vezes, é tratado como sinônimo
de estresse ou insatisfação no trabalho. Nesse sentido, sua configuração como
uma síndrome mais ampla acaba restringida, eventualmente, a um processo
individual sem a consideração dos inúmeros fatores contextuais envolvidos.
Explorar este fenômeno no campo da pesquisa e intervenção psicossocial tem sido
uma das propostas do autor da obra, Dr. Pedro R. Gil-Monte1, psicólogo e professor
do Departamento de Psicologia Social do Trabalho da Universidade de Valência –
Espanha. Gil-Monte tem sido uma referência nos estudos de Burnout em todo o
mundo, através de seus inúmeros estudos, publicados em revistas nacionais e
1
Gil-Monte, P.R. (2005). El síndrome de Quemarse por el Trabajo: una enfermedad laboral en la sociedad del
bienestar. Madrid: Ediciones Pirâmide.
Aletheia 25, jan./jun. 2007
203
internacionais, que vão desde a validação de seu instrumento para avaliar a
síndrome até estudos aplicados sobre o tema.
Seu mais recente livro, publicado em 2005, traz um estudo completo sobre Burnout,
indo desde aspectos conceituais até os avanços mais recentes na área em termos de
intervenção. O livro está estruturado em seis capítulos. Inicialmente o autor discorre
sobre a relevância e necessidade de estudar burnout, informando a respeito da origem
do termo e o contexto onde essa patologia laboral se insere. Aborda os aspectos legais
em diversos países, incluindo o Brasil. No segundo capítulo, contempla uma questão
bastante discutida entre os estudiosos da síndrome, ou seja, sua delimitação conceitual
e importância de se ter uma única linguagem para o entendimento da síndrome. Já há
consenso de que a Síndrome de Burnout é uma experiência subjetiva de caráter negativo
constituída de cognições, emoções e atitudes negativas com relação ao trabalho as
pessoas as quais tem que se relacionar em função do mesmo. É uma resposta ao
estresse laboral crônico.
Considerando a delimitação atual da síndrome, o autor apresenta os sintomas
assim como as duas principais perspectivas da síndrome, a clínica e a psicossocial. A
perspectiva clínica entende a SB como um estado atingido pelo sujeito como
conseqüência do estresse no trabalho, e a psicossocial define Burnout como um
processo desenvolvido pela interação das características do contexto de trabalho e as
características pessoais do sujeito.
Nos dois capítulos seguintes são destacadas as variáveis relacionadas à
síndrome, culturais, organizacionais, laborais e pessoais. O processo de
desenvolvimento de burnout, seus principais modelos teóricos e a culpa, no sentido
de vitimização, como variável psicossocial encerram essa seção.
No penúltimo capítulo, é exposta de forma explicativa a questão do diagnóstico
e avaliação. Destaca a importância da entrevista associada ao instrumento para
identificação da síndrome. Exemplos de casos enriquecem o texto, facilitando o
entendimento das diversas facetas do fenômeno. O último capítulo é dedicado à
prevenção e tratamento de burnout, onde são destacados os enfoques
organizacional, grupal e individual. Nesses níveis, são apresentadas técnicas que
capacitam o profissional a intervir, auxiliando trabalhadores e organização no
manejo dos estressores do contexto laboral. Em todos os capítulos são
apresentados resultados de estudos recentes realizados com várias categorias
profissionais e delineamentos. Nesse sentido, o livro vai dirigido a todas as
instâncias que, de alguma forma, podem estar relacionadas à síndrome. Isto é,
organizações, empregadores, trabalhadores e profissionais de saúde. No campo
da saúde, especialmente, o autor aborda a importância da síndrome devido a suas
proporções epidemiológicas, o que passa de um fenômeno apenas verificável,
para a categoria de um problema epidemiológico de saúde pública.
204
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A obra alcança plenamente seus objetivos, cobrindo, de forma exaustiva, este
importante tema, sendo a integração entre teoria, pesquisa e intervenção seu grande
diferencial. Além disso, o leitor adquire uma nova perspectiva sobre Burnout,
compreendendo essa patologia laboral como um fenômeno psicossocial.
Mary Sandra Carlotto é psicóloga; Mestre em Saúde Coletiva (ULBRA Canoas/RS); Doutora em Psicologia
Social (USC/ES); professora do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA Canoas/RS).
Sheila Gonçalves Câmara é psicóloga, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade; Doutora em Psicologia (PUCRS); professora do Curso de Psicologia e do PPGSC da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA
Canoas/RS).
Endereço para correspondência: [email protected]
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Instruções aos autores
Política editorial
A Aletheia é uma revista semestral editada pelo Curso de Psicologia da
Universidade Luterana do Brasil destinada à publicação de trabalhos de pesquisadores
envolvidos em estudos produzidos na área da Psicologia ou ciências afins. Serão
aceitos somente trabalhos originais que se enquadrem nas categorias de relato de
pesquisa, experiência profissional, atualizações, comunicações e resenhas.
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2. O artigo passa pela apreciação dos Editores.
3. Os Editores encaminharão para apreciação do Conselho Editorial, que
poderá fazer uso de consultores ad hoc de reconhecida competência na área de
conhecimento, a seu critério, para análise, recomendando ou rejeitando a
publicação. A Comissão Editorial e os Consultores ad hoc analisam o manuscrito,
sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação. A decisão final
sobre a publicação de um manuscrito sempre será do Conselho Editorial, que fará
uma avaliação do texto original, das sugestões indicadas pelos consultores e as
modificações encaminhadas pelo autor.
4. Os pareceres comportam três possibilidades: a) aceitação integral; b) aceitação
com reformulações; c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor será
devidamente comunicado. Os originais, em nenhuma das possibilidades, serão
devolvidos.
5. Os autores do artigo receberão cópia dos pareceres dos consultores. Serão
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pertinentes e a justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadas
com a ferramenta Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificações
realizadas pode ser realizado via e-mail.
7. Os Editores reservam-se o direito de fazer pequenas alterações no texto dos
artigos.
8. A decisão sobre a publicação de um manuscrito sempre será do Editor
Responsável e Conselho Editorial, que fará uma avaliação do texto original, das
sugestões indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor.
9. Os artigos serão aceitos em outra língua além do português (espanhol e inglês).
10. Independentemente do número de autores, serão oferecidos dois exemplares
da revista, com o manuscrito publicado, por trabalho.
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11. As opiniões emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s)
autor(es), não constituindo sua aceitação motivo para se entender que a revista Aletheia
ou o Curso de Psicologia da ULBRA, compartilham das opiniões ou juízos emitidos
pelos autores.
12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente,
desde que obtida a permissão do Editor Responsável. Os direitos autorais obtidos
pela publicação do artigo não serão repassados para o autor do artigo.
Apresentação dos manuscritos
Os artigos originais deverão ser encaminhados em disquete e em duas vias
impressas, digitadas em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12 e
paginado desde a folha de rosto personalizada. O artigo deverá ter no máximo 20
laudas. A folha deverá ser A4, com formatação de margens superior e inferior (no
mínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista adota as normas do
Manual de Publicação da American Psychological Association - APA (5ª edição,
2001).
Todo manuscrito encaminhado à Revista deverá ser acompanhado de documento
assinado por todos os autores, onde esteja explícita a intenção de submissão do
trabalho à publicação: Neste deve conter:
a) Autorização para reformulação da linguagem, se necessário;
b) Transferência de direitos autorais para a revista Aletheia;
a) Folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dos
autores; resumo em português de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; título
do artigo em língua inglesa; Abstract compatível com o texto do Resumo; key words;
c) colocar o nome completo do(s) autor(es); titulação essencial; afiliação institucional;
endereço, incluindo CEP, telefone e e-mail.
b) Folha de rosto não identificada: a segunda folha de rosto não conterá dados
de identificação dos autores dos artigos ao ser encaminhada aos consultores ad hoc
ou a dois membros do Conselho Editorial.
c) Encaminhamento: Toda correspondência deve ser encaminhada à revista
Aletheia, aos cuidados do Editor Responsável; encaminhar o manuscrito em uma via
impressa e disquete ou CD, observando ortografia oficial.
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d) O artigo, em seus passos, deve apresentar a seguinte seqüência: Titulo,
Autores, Introdução, Método (população/amostra; instrumentos; procedimentos
de coleta e análise de dados, incluir nessa seção afirmação de aprovação do
estudo em Comitê de Ética de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde – Ministério da Saúde), Resultados, Discussão, Conclusão ou
Considerações finais, Referências. Usar as denominações tabelas e figuras (não
usar a expressão quadros e gráficos). Não colocar tabelas e figuras em arquivo ou
folha separada.
* Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo as normas
adotadas pela revista (APA) não serão avaliados.
Normas para citações
- As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas
por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de
texto ao qual se refere à nota.
- As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA.
- No caso da citação integral de um texto: deve ser sem itálico, delimitada por
aspas, e a citação do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma
citação literal com 40 ou mais palavras deve ser apresentada em bloco próprio e sem
aspas, começando em nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma
posição de um novo parágrafo. A fonte será a mesma utilizada no restante do texto
(Times New Roman, 12).
- Anexos: apenas quando contiverem informação original importante, ou sendo
indispensável para a compreensão de alguma parte do trabalho.
- Tabelas: incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word
– ‘Simples 1’.
• Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da
publicação entre parênteses. Exemplo: Rodrigues (2000).
• Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no
texto. Quando os sobrenomes forem citados entre parênteses, devem estar ligados por
&. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000). Quando forem citados fora dos parênteses,
devem ser ligados pela letra e.
• Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência,
seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize
o sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. (colaboradores). Exemplo: Silva,
Foguel, Martins & Pires (2000), a partir da segunda referência, Silva e
colaboradores. (2000).
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• Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor,
seguido de e colaboradores (ANO). Nas Referências, todos os autores deverão
ser citados.
• Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação
original, seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant, 1871/1980).
• Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes
e não a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
• Publicações diferentes com a mesma data: Acrescentar letras minúsculas, após
o ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: Utilizar a expressão
citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),...
Nas Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins).
• Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data,
página. Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45).
Normas para referências
As Referências deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposição
deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em minúsculo.
Livro
Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de livro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em P. Papp (Org.),
Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Artigo de periódico científico
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a
formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.
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209
Artigos em meios Eletrônicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou
campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 11/02/2000.
Artigo de revista científica no prelo
Albuquerque, P. (no prelo). Gênero e trabalho. Aletheia.
Trabalho apresentado em congresso
Silva, O. & Dias, M. (1999). Desemprego e suas repercussões na família. Em: Anais do
XX Encontro de Psicologia Social, pp. 128-137, Gramado, RS.
Tese ou dissertação publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.
Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, RS.
Tese ou dissertação não-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.
Dissertação de Mestrado não-publicada ou tese de Doutorado (não-publicada).
Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antiga e reeditada em data muito posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950)
Autoria institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª
ed.).Washington:Autor
Endereço para envio de artigos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
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Revista Aletheia
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CEP: 92425-900
Sala 121 – Prédio 01
Canoas/RS – Brasil
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Instructions for the authors
Editorial policy
The Aletheia is a half-yearly magazine edited by the Psychology Program of the
Lutheran University of Brazil, whose purpose is to publish researchers’ works, involved
in studies produced in Psychology or Sciences areas and similar. Just original works,
that fit into the categories of research report, professional experience, updating,
communications and reviews will be accepted.
Editorial rules
1. Just unpublished works will be accepted.
2. The article goes through the Editors appreciation.
3. The Editors will send to the appreciation of Editorial Body that can use ad
hoc consultants of recognized competence in the knowledge area, at his criterion,
for analysis, recommending or rejecting the publication. The Editorial Body and ad
hoc Consultants analyze the manuscript, suggest changes and recommend or not its
publication. The final decision about the publication of a manuscript will always be
competence of the Editorial Body that will make an evaluation of original text, of
suggestions designated by the consultants and the changes sent by the author.
4. The opinions hold three possibilities: a) full acceptance; b) acceptance with
modification; c) full refuse. Any one of the situations the author will be properly
communicated. The originals will not be returned in any of the possibilities.
5. The article authors will receive a copy of opinions from the consultants. They
will be informed about the modifications that must be done.
6. In the sending of changed version of his manuscript (in the maximum period of
15 days after receiving the notification), the authors must include a letter for the Editor,
elucidating the changes done and also those they did not judge relevant and the
justification. The changes done must be highlighted with the tool Word “yellow brush”.
The sending with the changes done can be made by e-mail.
7. The Editors spare themselves the right of doing small changes in the articles’ text.
8. The decision about the publication of a manuscript will be responsibility of
the Editor in charge that will make an evaluation of original text, of suggestions indicated
by the consultants and changes sent by the author.
9. The articles will be accepted in other language besides Portuguese (Spanish
and English)
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10. Independently of the number of authors, one will offer two copies of magazine,
with manuscript published by work.
11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its
acceptance does not constitute reason to one understands that the Aletheia Magazine
or the Psychology Program of ULBRA, share the opinions or senses emitted by the
authors.
12. The subject edited by the Aletheia can be printed total or partially, since one
gets the permission of Editor in charge. The copy rights got by the publication of
article will not be extended to the author of article.
Presentation of manuscripts
The original articles must be sent in diskettes and also two printed copies, typed
in double space, Times New Roman letter, size 12 and paginating since the title page
personalized. The article must be at most 20 pages. The sheet must be A4, with format
of higher and lower left margin (at least 2,5 cm) and right margin (at least 3 cm). The
magazine follows the rules of Manual of Publication of American Psychological
Association - APA (5th edition, 2001).
Every manuscript sent to the Magazine must be accompanied of a document
signed by all the authors, where it is explicit the intention of submission of work to the
publication: In the document must have:
a) Authorization for modification of language, when necessary;
b) Transfer of copy rights for the Aletheia Magazine;
a) Identified title page: article title in Portuguese language; authors’ name;
abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in
English; abstract compatible with the text of synopsis; key words; c) put full name
of author(s); essential title; institutional affiliation; address, including Zip Code,
telephone and e-mail.
b) Non identified title page: the second title page will not have identification data
of article authors when it is sent to the ad hoc consultants or for two members of
Editorial Body.
c) Sending: Every mail must be sent to the Aletheia Magazine, under the care of
Editor in charge; send the manuscript with a printed copy and diskette or CD, observing
the official spelling.
d) The article, must present the following sequence: Title, Authors, Introduction,
Method (population/sample); instruments; procedures of collection and data
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analysis, include in this section statement of approval of study in Ethics Committee
in agreement with Resolution 196/96 of National Council of Health – Ministry of
Health), Results, Discussion, Conclusion or Final Considerations, References. Use
the denominations tables and figures (do not use the expression frame and graphics).
Don’t put tables and figures in separated file or sheet.
* Works with incomplete documentation or that does not meet the rules followed
by the magazine (APA) will not be evaluated.
Rules for citations
- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged
by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the
note refers to.
- The authors’ citations must be done in agreement with rules of APA.
- In the case of full citation of a text: it must be without italic, delimited by
quotation mark and the author’s citation followed by the year and number of page
mentioned. A literal citation with 40 or more words must be presented in proper block
without quotation mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the
same position of a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of
text (Times New Roman, 12).
- Annexes: just when having important original information or that is indispensable
for the understanding of some part of the work.
- Tables: including title and notes in agreement with the rules of APA. Format
Word – ‘Simple 1’.
• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of
publication between parenthesis. Example: Rodrigues (2000).
• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the
text. Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between
parentheses: they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis
they must be connected by the letter e.
• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference,
followed by the date of article between parentheses. Starting from the second reference,
use the last name of the first author, followed by and colls. (collaborators). Example:
Silva, Foguel, Martins & Pires (2000), starting from the second reference, Silva and
collaborators. (2000).
• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed
by and colls. (YEAR). In the references all the authors must be cited.
• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,
followed by the date of edition consulted. Example: (Kant, 1871/1980).
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• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names
and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
• Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year
of publication. Example: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression
cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...
In the References, include just the source consulted (Martins).
• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.
Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).
Rules for references
The References must be presented at the end of article. Its disposition must be in
alphabetical order of the last name of author in small letter.
Book
Mendes, A. P. (1998). Family with adult childs. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Teenager and familiar relationship. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Chapter of book
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp
(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto
Alegre: Artmed.
Article of scientific newspaper
Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health: Challenges
for the formation and professional performance. Studies of Psychology, 3(1),
95-121.
Articles in electronic means
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health” or open
field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://
www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.
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Article scientific magazine in the press
Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.
Work presented in congress
Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family. In:
Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.
Thesis or published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in
Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, RS
Thesis or non-published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program
of Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS
Old work reedited in posterior date
Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:
Universal. (Original published in 950)
Institutional Authorship
American Psychological Association (1994). Publication manual (4th
edition).Washington: Author
Address for sending articles
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
CEP: 92425-900
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
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