ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO E CINEMA: HERANÇA E PROJECTO DE FUTURO* por Eugénia Vasques1 I. As variadas respostas encontradas, na Europa da Aukklärung, para a natureza do ensino do teatro, constituíram argumentos nucleares que permitiram que, em países pioneiros como a França e a Alemanha, se fundassem, entre os séculos XVIII e XIX, escolas nacionais de teatro. Em Portugal, é o ano de 1835 que marca o início do historial do ensino das artes cénicas e 1836 que marca o verdadeiro início do ensino institucional do teatro entre nós. Uma relativa movimentação artística acompanha e integra-se no surto de desenvolvimento cultural que se vai verificando, progressivamente, no país. É um momento privilegiado da nossa História durante o qual, graças ao ideário liberal reformista, o ensino artístico é criado e encarado – o que hoje não acontece-- como parte integrante, mas autónoma, de uma reforma profunda de todo o sistema público de ensino. Depois da criação do Conservatório de Música, são igualmente instituídas duas Academias de Belas Artes (no Porto e em Lisboa) com ensino Desenho de Pintura, Escultura e Arquitectura Civil2, criados os Conservatórios das Artes e Ofícios, em Lisboa e Porto (1836-37), com que o ministro Passos Manuel lançou as bases do ensino técnico oficial; é organizado o ensino liceal, introduzindo-se, nos programas, a disciplina de desenho3. O histórico Decreto de 15 de Novembro de 1836, de D. Maria II, referendado pelo mesmo ministro Passos Manuel, cria o Conservatório Geral de Arte Dramática, então constituído por três escolas: a Escola Dramática ou de Declamação, a Escola de Música e a Escola de Dança. Incorpora-se, neste estabelecimento, o Conservatório de 1 Professora Coordenadora da área de Teoria do Departamento de Teatro da ESTC. 2 Com antecedentes históricos que remontam a 1577 e 1594, quando foi reconhecida em Portugal (1577) e se deu início ao ensino da arquitectura civil, confiada ao italiano Filipe Tercio na Aula dos Paços da Ribeira. 3 Associado à Aritmética, à Álgebra, Geometria e Trignometria, e ainda não como disciplina independente. 1 Música recentemente erecto na Casa Pia pelo Decreto de 5 de Maio de 1835, com professores e instrumentos provenientes do Seminário Patriarcal4. Um ano depois (1837), Garrett apresenta ao Governo um projecto de Estatutos para o Conservatório, projecto no qual previa já, para momento oportuno, a criação de uma escola de decorações ou de pintura especial aplicada ao teatro. Esses Estatutos do Conservatório Real de Lisboa serão finalmente decretados em 24 de Maio de 1841, assinados por Rodrigo da Fonseca Magalhães e, neles, as Escolas do Conservatório passam a ser de Declamação, de Música, de Dança e Mímica (“Título Quinto”). Como se depreende, e posto o estado de coisas que reflectia um atávico atraso, resistência à mudança e ensimesmamento cultural, a urgência das reformas do ensino, base de todo o desenvolvimento, impunham-se aos mais cosmopolitas políticos da década de 30 do século XIX. É, pois, com inesperada legitimidade ideológica que António Feliciano de Castilho afirmará: . . .A. . .criação [do Conservatório] foi devida. . . à iniciativa ilustrada e audaz de uma ditadura popular. . . . Depois, outra consideração em que se poderá insistir, mas que pelo menos se há-de apontar aqui: quanto mais se forem propagando as representações particulares e a consequente subida de curioso para actores professos, tanto mais nos iremos aproximando à completa abolição do milenário e estilizador preconceito, que fazia dos artistas cénicos – párias, leprosos, excomungados e precitos; o mais dessa tontaria bárbara já lá vai, Deus louvado! O representar já não infama, nem degrada, mas (força é confessá-lo) alguma coisa (e muito) resta ainda que fazer para que os artistas dramáticos decentes, se nivelem desenganadamente com os outros artistas seus irmãos, o poeta, o pintor, o escultor, o arquitecto e o músico de talento; e não digo só com os artistas, mas com todos os mais indivíduos, que igualmente servem a sociedade nos diversos ofícios, havidos por nobres; e de servir é que subsistem. O projecto do Conservatório de Arte Dramática de Garrett contempla, justamente, esse desejo de emancipação sócio-económica dos artistas portugueses num 4 Que D. João V instituíra por Decreto de 9 de Abril de 1713, à semelhança do Seminário de Vila Viçosa cujos estatutos tinham sido aprovados por Decreto de 18 de Março de 1645. 2 ambicioso desígnio que revela o ideário liberal. No nº 1 do periódico literário Jornal do Conservatório, datado de 8/12 de 1839, Almeida Garrett apresenta, em interessante e pouco divulgado texto editorial, precedendo o programa Curricular dos cursos do Conservatório, a natureza e objectivos do Conservatório Geral de Arte Dramática, já aprovado, que começaria a funcionar nesse ano lectivo, afirmando a dado passo: Ilustrar e promover. . . a Arte Dramática como a da Música, e todas as mais artes e letras, ei-lo pois o valioso, e benemérito empenho do Conservatório. E se nos não sobejassem provas, cuja demonstração omitiremos, pelo que são a todos os olhos patentes, bastaria para a incredulidade, ou irónico cinismo, o Programa de Estudos, que regula o curso das Escolas de Declamação, de Música e de Dança, cuja íntegra damos de seguida. Nós, a quem o Conservatório escolheu para seu orgão, nós também envidaremos nossas forças para desempenhar, como cumpre a tão árdua tarefa, essa missão da filantropia, suavidade, e civilização. (p. 3) Dois anos mais tarde, por pressões políticas, Almeida Garrett é destituído de todas as suas funções e o governo ameaça o Conservatório de extinção. É o princípio do fim da utopia de Garrett e o início de um historial de vicissitudes que comprometerá, por muitas e muitas décadas, o futuro do ensino artístico em Portugal. II. A Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), unidade orgânica do Instituto Politécnico de Lisboa, é uma escola superior artística bicéfala – Escola de Teatro/Escola de Cinema --, herdeira, no que ao ensino do teatro diz respeito, desse Conservatório fundado por Almeida Garrett segundo os modelos diferenciados de Londres, Paris, Milão, e, relativamente ao ensino do cinema, herdeira de uma (a única) experiência pedagógica, pioneira no nosso país, que Madalena Perdigão liderou e Veiga Simão patrocinou, e que se estendeu, com sobressaltos, entre 1971 e o início da década seguinte, mais precisamente 1982, data do encerramento da Escola Superior de Educação pela Arte. 3 Em virtude de um entendimento frustre, economicista, do que pode ser, na contemporaneidade, o ensino artístico, performativo, e o ensino tecnológico – entendimento que fez recuar, aliás, o horizonte de expectativas do ensino superior das artes para a elementaridade do “fabril”, como defenderam, historicamente, alguns dos destruidores do sonho garretteano no século XIX e que se pode traduzir no silogismo: “se o ensino artístico é técnico, logo, deve ser integrado no… politécnico”! --, e por força do Decreto-Lei nº 310/83, de 1 de Julho, a ESTC seria, então, integrada, em 1985, no Instituto Politécnico de Lisboa (IPL), perdendo, ao separar-se do Conservatório, a sua natureza própria e especificidade. Os seus estatutos seriam homologados pelo Despacho nº 53/94, de 28 de Dezembro, publicados no Diário de República, 2ª Série, n.º 15, de 18 de Janeiro de 1995, que atribui à ESTC o estatuto de instituição do ensino superior politécnico, vocacionada para o ensino, a investigação e a prestação de serviços à comunidade. Estruturada em dois departamentos, o Departamento (ou Escola) de Teatro e o Departamento (ou Escola) de Cinema, com funcionamento próprio mas “partilhando” serviços e órgãos de gestão (plenários), a ESTC tem, contudo, ao longo dos anos, sobretudo após o encerramento de doze anos de instalação (?), o que ocorreu somente em 1995, lutado se não pela sua autonomia – um tema pouco popular para os governos vários e raramente debatido, interna e externamente, mas muito pertinente, sobretudo se tivermos em linha de conta o muito anunciado e nunca realizado projecto de Instituto das Artes no quadro do IPL5 --, pelo menos pela sua actualização, qualificação e tímida internacionalização6, o que lhe tem valido, em anos recentes, o reconhecido estatuto de “escola de teatro de qualidade” no país e, inclusivamente, no quadro de alguma Europa, sua referência desde Almeida Garrett. Em virtude de um dinamismo que se vem acentuando desde a introdução do debate em torno do Processo de Bolonha, a ESTC vem-se esforçando no rejuvenescimento, nos últimos anos, de um quadro qualificado de funcionários, docentes e não docentes7, e, apesar dos parcos meios, na construção de espaços 5 Estará aprovada a construção de edifício em Benfica, no perímetro da ESE e da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa, algumas das escolas artísticas, o que não inclui, porém, a Escola de Teatro. É pena, pois perde-se uma nova oportunidade histórica para juntar o que César separou e perpetrar, num país tão carente como o nosso, uma unificação que ainda por cima, economicamente, poderia ser… rentável. 6 A ESTC está filiada no IIT-UNESCO, na ELIA/European League of Institutes of the Arts e no CILECT/Centre National de Liaison des Écoles de Cinéma et de Télévision. 7 Esta é uma maneira de falar, já que não existe quadro técnico na ESTC! 4 tecnicamente mais adequados e humanamente mais bem pensados, e tem, paulatina e tentativamente, vindo a formar, nos variados cursos ministrados nos seus dois departamentos, agentes credenciados com um papel relevante na renovação do teatro e do cinema em Portugal. O Departamento de Teatro, “Escola de Teatro” ou, como é mais conhecido, o “Conservatório”, a que pertenço, tem “lançado” um número significativo de actores, performers, encenadores, cenógrafos, figurinistas, produtores, dramaturgistas – uma função em plena redefinição --, dramaturgos e demais criadores pluridisciplinares, incluindo formadores ou professores de teatro, que têm, com o seu contributo, ajudado divulgar o teatro de norte a sul do país e, inclusivamente, desde a criação, por João Mota, no decurso dos anos 90, de um curso pioneiro de Teatro e Educação, a formar utentes e fruidores – os públicos -- numa perspectiva alargada que entende o teatro como factor de desenvolvimento e de identidade. O Departamento de Cinema da ESTC, ou “Escola de Cinema”, é, desde meados dos anos 80, como se pode ler no seu historial, o herdeiro da Escola Piloto para a Formação de Profissionais de Cinema, núcleo inicial que contou entre os seus fundadores e primeiros professores com realizadores e outros profissionais oriundos do Novo Cinema português. Na renovação do seu corpo docente, incluiu muitos daqueles que nela se formaram no pós-25 de Abril e que, pertencendo a sucessivas gerações de realizadores, produtores, argumentistas ou trabalhando na imagem, no som ou na montagem, juntamente com outros que permanecem na actividade profissional, conduzem o cinema português de hoje. Actualmente, o curso de Cinema, ministrado no Departamento de Cinema, oferece, tal como o Teatro, o grau de licenciatura em quatro especializações, depois da realização de um estágio curricular. A ESTC dispõe, desde 1998, de novas instalações, construídas de raiz, situadas na Amadora, com salas de aula (razoavelmente) adequadas ao ensino que ministra, espaços teatrais, estúdios de cinema e de vídeo, laboratórios, oficinas e uma moderna, acolhedora e muito activa Biblioteca (com edição própria) e ainda com um Centro de Estudos em Teatro e Cinema aprovado pelo IPL. O Grande Auditório da Escola, sala polivalente para espectáculos de Teatro, Cinema, Música, Dança e para realização de Congressos, tem uma capacidade de 336 lugares. É nele ou no Pequeno Auditório de Teatro, com capacidade, este, para 70 5 pessoas, que os alunos de Teatro apresentam os seus exercícios e espectáculos e que a comunidade pode realizar encontros e também actividades públicas. Por seu turno, os filmes curriculares e extra-curriculares, produzidos e realizados pelos alunos de Cinema, podem ser vistos numa Sala de Visionamento, equipada com os mais modernos meios técnicos de projecção e de som e com uma capacidade para 78 espectadores. O site da ESTC é www.estc.ipl.pt Lisboa, 29 de Dezembro de 2005 *Artigo publicado na revista do Sindicato Nacional do Ensino Superior, Ensino Superior, nº 19, Dez.05/Jan.06. 6