AUTOPOIESE, EDUCAÇÃO FORMAL E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
Luiz Gustavo Silva Souza+
RESUMO
O presente artigo pretende apontar possibilidades de conexão e de mútua transformação entre a Teoria da
Autopoiese e os modos de organização da educação formal; aborda o aparecimento e a massificação da
escola nas sociedades ocidentais, expõe alguns conceitos da Teoria da Autopoiese, questiona a noção de
cognição como simples “transmissão de conhecimentos” e aborda essa noção como produção de formas de
vida humana. Afirma que conhecer é um processo político e conclui apostando na utilização dos conceitos
expostos para fortalecer “políticas inventivas da cognição” no cotidiano escolar, baseadas em uma ética da
produção coletiva dos sentidos sócio-políticos da Educação.
Palavras-Chave: Autopoiese, Educação, Cognição, Produção de Subjetividade.
AUTOPOIESIS, FORMAL EDUCATION AND PRODUCTION OF
SUBJECTIVITY
ABSTRACT
The purpose of this article is to point out the possibilities of articulation of the Autopoiesis Theory and the
educational institutions and their mutual transformation. It examines the rise and the generalization of
educational institutions in western societies. It exposes some concepts of the Autopoiesis Theory. It overcomes
the concept of cognition as a simple “knowledge transmission” and suggests that cognition is intimately
connected with subjectivity production processes. It indicates that knowing is a political process. The author
believes that the use of concepts of the Autopoiesis Theory can strengthen “inventive cognition policies” in
the daily work of educational institutions, based on the collective production of social-political meanings for
Education.
Key-Words: Autopoiesis, Education, Cognition, Subjectivity Production Processes.
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Luiz Gustavo Silva Souza.Professor Substituto da Universidade Federal do Espírito Santo.
Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Espírito Santo (NEPSP/DPSI/UFES).Psicólogo da Composição Instituto de Psicologia.
Av. Construtor David Teixeira, 85/704.Mata da Praia, Vitória, ES. CEP: 29065-320.
E-mail: [email protected].
2
1. INTRODUÇÃO
Há alguns séculos, os homens têm se considerado especiais frente aos outros
seres vivos. Sentem-se verdadeiramente privilegiados por possuir a razão, a consciência, a
capacidade de conhecer o mundo, de apreender sua “realidade objetiva”, de desvendar suas
leis. Entretanto, durante esses mesmos séculos, alguns homens levantaram a voz para dar
outras opiniões.
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de
sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o
conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da” história universal”: mas
também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e
os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e
nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz,
quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve
eternidades em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido.
Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida
humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão
pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. (Nietzsche, 1873/2000, p. 53).
Os “gritos” de Nietzsche tinham algo de uma serena certeza: nada é tão estável a
ponto de ser eterno. A humanidade se esforça para eternizar o intelecto humano, atribuindolhe características transcendentais, apostando na busca por verdades últimas. Entretanto,
mesmo os esquemas mais consistentes, mesmo as opiniões mais cristalizadas, estão
submersos em um mar de possibilidades infinitas e guardam o germe de sua própria
transformação. A diferença é a única constância.
Muitos pensadores (famosos e anônimos) fizeram coro com Nietzsche ao longo
da história, antes e depois de ele ter existido. Mais recentemente, há algumas décadas, dois
biólogos chilenos entraram nesse rol de pensamento. Interessados em entender o ser
humano em sua complexidade, resolveram ensaiar outros raciocínios para conhecer o
conhecer. Formularam uma biologia do conhecimento que guardou lugar de destaque para a
invenção, para a diferença que “invariavelmente” retorna. Humberto Maturana e Francisco
Varela criaram o conceito de autopoiese e contribuíram para a produção de novos olhares
sobre o intelecto humano.
3
Partimos do pressuposto de que as diferentes maneiras de entender o intelecto
humano e o conhecimento são opções políticas, pois dão base a diferentes práticas sociais e,
mais especificamente, a diferentes práticas escolares. O objetivo central deste texto é
esboçar aproximações entre a teoria da autopoiese (e seus desdobramentos) dos esquemas
de educação escolar.
No Brasil, nos últimos anos, as políticas públicas para a educação formal se têm
caracterizado por valorizar uma expansão quantitativa dos sistemas de ensino, que é
importante mas não é suficiente.
Pensamos que o esforço de aproximar os ditos e feitos escolares da teoria da
autopoiese e de seus desdobramentos se justifica pela possibilidade de construir
instrumentos úteis para uma transformação qualitativa dos sistemas educacionais
brasileiros. Uma das preocupações que animam esse esforço é contribuir para a construção
e para o fortalecimento de relações democráticas1 e solidárias entre os humanos por meio
dos aparelhos de educação formal.
No texto que se segue, veremos que aproximações conseguimos realizar.
Primeiramente, vamos nos dedicar ao tema do aparecimento e da massificação da escola
nas sociedades ocidentais. Em seguida, discutiremos alguns conceitos relacionados à teoria
da autopoiese e possíveis desdobramentos. Por fim, tentaremos ensaiar algumas conexões e
apontar propostas de trabalho.
2. ESTUDAR, TRABALHAR, VIVER
Estar na escola é mais do que absorver conteúdos curriculares. Apesar da
aparente obviedade dessa afirmação, talvez valha a pena explorar melhor o seu alcance.
O “historiador” francês Michel Foucault (entre tantos outros que seguiram essa
direção), afirmou que a escola, ao mesmo tempo em que se constitui como local de ensino
de determinados conteúdos curriculares, é antes e talvez principalmente instrumento de
disciplinarização dos corpos.
Recuperar a história da emergência da escola nas sociedades ocidentais faz parte
de um esforço para desnaturalizar sua existência, questionar a obviedade de suas relações
hierárquicas, analisar os porquês de seus muros materiais e imateriais. A escola como
4
conhecemos hoje surge no bojo de uma revolução dos modos de organização do mundo e
das formas de vida humana. Trata-se do surgimento e do fortalecimento gradual da
sociedade disciplinar (Foucault, 1998), do capitalismo e de seus modos de produção.2
Sem dúvida, a escola existia em tempos medievais (Enguita, 1989, p. 107-108).
Entretanto,
seu
funcionamento
era
completamente
diverso.
Tratava-se
de
um
estabelecimento necessariamente vinculado à Igreja, destinado a poucos, ou seja, a uma
nobreza que dela se servia para ilustrar o espírito por meio dos escritos e das artes. O
advento da modernidade e o aparecimento do capitalismo trouxeram a necessidade de
massificar a escola e generalizar o adestramento dos corpos.3 Mas, por que eles trouxeram
essa exigência? Foucault mostra que a resposta não pode ser simplista nem baseada em um
entendimento linear da história. Para ele, as formações históricas são multideterminadas e
complexas.4
O surgimento da modernidade é correlato ao surgimento de novas idéias sobre o
trabalho, sobre a propriedade e sobre o lucro articulados à reforma protestante, ao
surgimento das manufaturas, ao fortalecimento da burguesia, e a muitos outros
acontecimentos. A Europa é palco de um grande crescimento demográfico e de uma
crescente urbanização.5 A modernidade aparece, portanto, imersa nas seguintes questões:
como organizar o espaço e o tempo das cidades? Como distribuir os corpos de maneira a
prevenir levantes e revoltas? Como preparar os trabalhadores das fábricas (garantir a
disciplina dos movimentos e evitar os pequenos furtos, por exemplo)?
As respostas a essas questões vieram na forma do panótico.6 O panótico é um
padrão de organização espacial constituído por um “ponto alto” (lugar do vigilante)
circundado por um espaço baixo (lugar dos vigiados) e é um modelo para uma vivência
disciplinar do tempo e dos espaços (espaços como a família, a escola, o trabalho, enfim).
Ele inverte a dinâmica que a Idade Média estabeleceu entre servos e senhores e entre fiéis e
Deus. Se antes, nos processos de vigilância e punição importava fazer sobressair o poder de
quem vigia e pune (o soberano), trata-se agora de colocar no foco aquele que é vigiado e
punido.
Foucault descreveu com detalhes os mecanismos de esquadrinhamento do
tempo e do espaço nos estabelecimentos escolares, que engendram uma vigilância contínua,
um sistema de punições e recompensas, o exame como um instrumento privilegiado, a
5
individualização, a hierarquia, a infantilização e o controle. Ao invés de punir os “súditos”
eventualmente e com violência (modelo do suplício medieval), a disciplina aposta no
adestramento, na produção de corpos úteis e dóceis (Foucault, 1999) O sociólogo espanhol
Mariano Fernández Enguita argumenta que, até o processo de industrialização, quase todas
as pessoas aprendiam a fazer seu trabalho fazendo-o. Na antiguidade (na Roma antiga, por
exemplo), o centro para a aprendizagem social e para o trabalho era a família. Os filhos
acompanhavam seus pais e as filhas acompanhavam suas mães, aprendendo a trabalhar em
contato direto com suas respectivas tarefas.
Fernández Enguita descreve alguns procedimentos educacionais na Idade média.
Uma prática medieval muito difundida era uma espécie de intercâmbio familiar: o envio
dos jovens a outras famílias para que fossem treinados por pessoas com as quais não tinham
laços de afetividade. Esta prática garantia não somente a auto-disciplina e a aprendizagem
de um ofício ou artesanato, mas também garantia a formação dos jovens em um contexto de
obediência servil, em um mundo baseado em relações muito assimétricas: mestre-aprendiz,
senhor feudal-vassalo, rei-servo, Deus-fiel.
A própria Idade Média fez nascer uma prática que chegou a seu ponto
culminante no século XVIII: o internamento. Nesse período, a infância marginal foi
internada maciçamente em orfanatos e casas de trabalho, onde os jovens eram obrigados a
trabalhar de maneira disciplinada. O desenvolvimento das manufaturas ocasionou uma
transformação importante: esses jovens passaram a ser vistos pelos industriais como
trabalhadores baratos e disciplinados. Nessa época, a escolarização se traduzia por muitas
horas de trabalho e alguma instrução. Escolarizar passou a ser disciplinar moralmente para
o trabalho que se exerceria posteriormente nas manufaturas.
A massificação dos estabelecimentos escolares nos séculos XIX e XX ocorreu a
partir destas condições: um lugar entre o lar e a fábrica. As escolas se constituíram como
aparelhos disciplinares. A instrução escolar passou a ser valorizada não somente como
maneira de adequar os jovens aos modos de produção capitalistas, mas também (e talvez
principalmente) a seus modos de relação: hierarquia, infantilização, supremacia do saber
científico, especialismos. “A questão não era ensinar um certo montante de conhecimentos
no menor tempo possível, mas ter os alunos entre as paredes da sala de aula submetidos ao
6
olhar vigilante do professor o tempo suficiente para domar seu caráter e dar a forma
adequada a seu comportamento” (Enguita, op. cit., p. 116).
A MODERNIDADE INVENTOU UM HOMEM
[...] a ser observado, detalhado em cada comportamento; vigiado, acompanhado,
classificado na lógica do joio e do trigo – em relação à norma; corrigido, ou melhor,
formado a cada gesto; regulado, enquadrado, comparado, categorizado, hierarquizado pelos
saberes que aí se legitimam, legitimando também aquele rosto histórico em seus olhos, boca
e ouvidos. Essa nova “humanidade” (jeito de ser homem) vai construindo, parede por
parede, a economia subjetiva em todos os espaços sociais e o espaço escolar dentre eles.
Reiterando, a economia subjetiva refere-se a uma maneira particular de perceber o mundo,
de viver, de amar, de trabalhar, de se relacionar, de ser adulto e criança, de querer, de
alegrar-se ou entristecer-se, de errar e de acertar, de aprender e não aprender... (Oliveira,
2001, p. 43).
Estar na escola é mais do que absorver conteúdos curriculares. Devemos a
Foucault a percepção de que os instrumentos da disciplina, espalhados pela sociedade,
exercem uma espécie de poder difuso e que, sem eles, o capitalismo teria enormes
dificuldades para se manter. O exercício desse poder disciplinar produz formas de
organização das escolas, dos hospitais, das cidades, dos partidos políticos, enfim, do
mundo. Entretanto, é importante frisar que ele produz simultaneamente formas de estar no
mundo, formas de vida humana. O exercício do poder, tal como Foucault o descreve,
produz subjetividade.
Vejamos o que entendemos por subjetividade. Não se trata (como quer uma
vasta tradição psicológica) de algo individual e interiorizado. Não se trata de algo que se
tem e que faz referência a particularidades: “a minha subjetividade, a sua subjetividade”.
Tampouco se refere a categorias como “personalidade” ou “estrutura psíquica”.
As subjetividades são territórios existenciais produzidos nas tramas do tecido
social. São experimentadas de maneira individual, pois os territórios existenciais assumem
consistência por meio de uma individuação em um corpo humano. Entretanto, não são
“individuais”, uma vez que se originam a partir de um processo de produção que envolve
elementos múltiplos e heterogêneos: o corpo, a família, as cidades, as ruas, as relações de
trabalho, o capitalismo, as escolas. Essa produção, segundo Félix Guattari, é “industrial e se
dá em escala internacional” (Guattari, 2000).
7
Há individualidade somente na medida em que ela própria é produzida. O que
há, em uma sociedade capitalística,7 é um efeito de individualização, pois nessas sociedades
é assim que funciona hegemonicamente a produção de subjetividade. Assim como a
linguagem, a subjetividade é construída socialmente e assumida e vivida como particular.
Basta escutar os discursos políticos, basta notar a mobilização cotidiana de
enormes quantidades de pessoas e de recursos, para perceber como as escolas continuam
sendo importantes elementos para os processos de subjetivação em nossa sociedade. Em
nosso país, continuam, por um lado, ocupando (desde muito cedo e até a maturidade)
milhares de jovens e, por outro, colocando-se à margem de outros milhares. Conforme
vimos, a escola surgiu no ocidente como parte da resposta à seguinte pergunta levantada
pela modernidade: “como disciplinar os corpos para torná-los úteis e dóceis?”
Nossos tempos acrescentaram uma série de outros problemas para a
escolarização. Começaram a surgir, principalmente a partir da década de 1970, novas
formas de organização social, política e econômica que inauguraram, simultaneamente,
outros processos de produção de subjetividade. Recentemente, dedicamo-nos a uma
pesquisa que tinha como um dos objetivos centrais entender as maneiras pelas quais a
educação formal do ensino médio se conectou às formas de organização neoliberais e
analisar os processos de subjetivação que são colocados em funcionamento nesse espaço
escolar e por meio dele (Souza, 2002).
Verificamos que se atualizam, no contexto estudado, processos simultâneos de
objetivação (produção de mundo) e de subjetivação (produção de modos de vida humanos)
em relação de mútuo engendramento com o neoliberalismo: destaca-se o entendimento de
educação como produto, como investimento em si; a produção da escolarização para a
competição do vestibular, maximizada pela exigência de hiper-formação; o controle pela
velocidade (exigência de dedicação simultânea a um sem número de atividades) e a
precarização do trabalho docente.
Há algum tempo, as novas tecnologias de informação, a Internet, a exigência por
uma formação permanente, entre tantos outros “acontecimentos”, têm tirado o chão das
escolas e dos educadores. Sentimos que uma certa falta de referências paira no ar. Essa
instabilidade característica dos tempos contemporâneos talvez seja indicadora da
possibilidade de arriscar outras significações para a escola e para a educação formal,
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diferentes daquelas que hegemonicamente se afirmam, relacionadas ao capitalismo e ao
neoliberalismo. Isso implica, como já se pode deduzir, em formular-lhes outras questões.
Acreditamos que esse é um esforço relevante, uma vez que pode contribuir para a
construção de relações efetivamente democráticas entre os humanos, relações em que cada
um possa ser ouvido e em que as decisões possam ser coletivas.
Tentaremos pensar a escola e a educação formal privilegiando a invenção, de
maneira atenta à produção desses “novos problemas”. Para isso, contaremos com as
contribuições da teoria da autopoiese, que passaremos a analisar no tópico seguinte.8
3. UMA BIOLOGIA DO CONHECIMENTO
Recordemo-nos do ano de 2002, quando vivemos épocas de eleição no Brasil. A
população escolheu o novo presidente da República, os novos (ou os já “tradicionais”)
governadores, deputados e senadores. Observamos uma grande preocupação com a
educação em todas as propostas, em todos os programas e discursos políticos dos
candidatos. Aumentar o número de vagas nas escolas, o acesso ao ensino superior, entre
outras, são freqüentes promessas de campanha, para “mudar o Brasil”. Gostaríamos de
levantar a seguinte questão: que educação é essa em que se investem tantas preocupações e
esperanças?
Acompanhamos um pouco da trajetória do mundo ocidental, que criou e
massificou historicamente estabelecimentos quadriculares específicos, as escolas, onde
alguns poucos sujeitos são responsáveis por ensinar enquanto outros muitos são incumbidos
de aprender. Todo esse arranjo se estabeleceu baseado na premissa de que o processo de
ensino-aprendizagem se dá por informação. Em uma sala de aula, há um professor, um
especialista detentor de verdades a respeito do mundo, portador dos conhecimentos válidos
que os alunos devem aprender. Isso exige, portanto, que o professor transmita informações
e que os alunos sejam capazes de recebê-las, elaborá-las, integrá-las em um sistema
coerente e armazená-las para que possam ser usadas quando preciso. Quando esse
processamento de informações (que se assemelha bastante ao de um computador) é bem
sucedido, dizemos que a aluno aprendeu.
9
Esse entendimento do processo de ensino-aprendizagem pressupõe, portanto,
que há um mundo cujas verdades devem ser estudadas, reveladas, descobertas. Pressupõe
que existe um saber oficial sobre o mundo, um saber válido e neutro, qual seja, o saber
científico. Trata-se de uma perspectiva baseada na representação: entende o homem como
um ser especial porque dotado da capacidade de representar o mundo em sua maquinaria
cognitiva. “De acordo com esta visão, a aprendizagem é o processo mediante o qual o
organismo obtém uma informação do meio e constrói uma representação dele que armazena
em sua memória e utiliza para gerar sua conduta em resposta às perturbações que dele
provêm” (Maturana,1998, p.32).
Nas linhas que se seguem, traremos alguns elementos que questionam essa
visão. Abordaremos alguns conceitos da teoria da autopoiese, formulada por biólogos
chilenos a partir da década de 1970. Para Humberto Maturana, aprendizagem é “[...] o
caminho da mudança estrutural que segue o organismo (incluindo seu sistema nervoso) em
congruência com as mudanças estruturais do meio como resultado da recíproca seleção
estrutural que se produz entre ele e este, durante a recorrência de suas interações, com
conservação de duas respectivas identidades” (ibid).
Passemos ao exame de algumas noções da teoria da autopoiese, que nos
ajudarão a entender a afirmativa acima.
Humberto Maturana e Francisco Varela (1995) se interessam pelo seguinte
problema: o que é vida? O que é ser vivo? Tradicionalmente, nos programas escolares por
exemplo, aprendemos que a vida se define por uma série de critérios como presença de
cadeias de carbono, posse de material genético, capacidade de crescimento, de reprodução,
entre outros. Diante de uma rocha e de uma samambaia, distinguiríamos a samambaia como
viva: ela se desenvolve, tem material genético, é capaz de se reproduzir. Entretanto, esses
critérios formam um conjugado pouco rigoroso, porque nem sempre aplicável. Por
exemplo, o fato de o plástico ser constituído de cadeias de carbono não nos faz considerar
uma escova de dente como ser vivo; é só pensar em uma mula para compreender que
julgamos ser viva uma forma de organização que não pode se reproduzir; e podemos nos
perguntar se um vírus (que possui material genético) é de fato “vivo”, e assim por diante.
Os autores preferem uma outra formulação para o problema da vida. Para eles,
vida é autopoiese (autoprodução). Autopoiese é a dinâmica que define o ser vivo: ele gera
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elementos que entram na cadeia de sua própria produção. Tomemos a célula como modelo
para entender essa dinâmica. A célula possui um funcionamento próprio, circunscrito por
uma membrana que a separa do meio. Em suas interações recorrentes com o meio, produz
os componentes que entrarão na cadeia de sua produção. Ou seja, produz as organelas e os
fluidos que compõem sua dinâmica interna e produz os elementos de sua própria
membrana, que, por sua vez, permitiu que a dinâmica interna aparecesse e que a célula se
individualizasse como ser e assim sucessivamente (Maturana & Varela, op. cit., p. 85).
O ser individualizado pela membrana depende da dinâmica autoprodutiva e a
dinâmica autoprodutiva depende do ser individualizado pela membrana. Poderíamos
continuar a descrever essas relações ao infinito porque elas são circulares.
Maturana e Varela afirmam que todos os seres vivos são variações de um
mesmo tema (Ibid., p. 112-126): no princípio de uma ontogenia há uma única célula, que se
dividirá em muitas outras constituindo um ser, seja ele uma baleia ou um bebê humano, por
exemplo. Desde que o ser vivo é apenas uma célula, ele já entra em interação direta com o
meio que o circunda. Diremos que essa interação é um acoplamento estrutural: trata-se de
uma história de relações recorrentes que provocam mudanças tanto no ser vivo quanto no
meio.
Ao olhar para a rocha e para a samambaia, dizemos que a samambaia é um ser
vivo, (diferente da rocha) porque ela é capaz de produzir elementos que entram na cadeia
de sua própria produção como samambaia, a partir das interações que estabelece com o
solo, seus elementos químicos, seus sais minerais, as bactérias que o habitam, com a água
das chuvas, com a energia solar, com os ventos moderados, etc. A partir dessa perspectiva,
o que há para a samambaia são perturbações do meio em que ela fez seu acoplamento. A
luz solar, por exemplo, perturba (afeta)9 a samambaia, que a aproveita para a fabricação de
energia química (por meio da fotossíntese) essencial para a manutenção de sua
autoprodução. Entretanto, se os ventos se tornam por demais violentos, um furacão por
exemplo, a samambaia pode ser arrancada do solo, desprovida dos nutrientes necessários
para sua adaptação e para a continuidade de sua autopoiese. Em pouco tempo ela secará e
se dissolverá no ambiente e diremos que a samambaia morreu, que sua autopoiese cessou.
Nesse caso a perturbação do meio foi destrutiva. É preciso reconhecer que não foi o furacão
que “determinou” a morte da samambaia. Ele foi apenas uma perturbação. Foi a própria
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organização da samambaia que determinou a inviabilidade de continuação de sua
autopoiese. “[...] enquanto não se desintegra, o ser vivo está adaptado a seu meio, mantendo
uma condição de adaptação invariante. Ou seja, ele se conserva. Além disso, dissemos que
nesse aspecto todos os seres vivos somos iguais enquanto estamos vivos. [...] não há
sobrevivência do mais capaz, há sobrevivência de quem é capaz” (ibid., p. 146).
Falamos em adaptação e é importante esclarecer essa noção. Adaptar-se não se
refere a um processo de adequação a um meio já dado, mas sim como capacidade de
manutenção da autopoiese.
“O acoplamento resulta das modificações mútuas que organismo e meio sofrem
no curso de suas interações. Cabe lembrar ainda que os acoplamentos são sempre
temporários e relativos, sendo constantemente questionados por novas situações colocadas
pelo meio” (Kastrup, 1999, p. 117). O meio e o organismo não existem como entidades
prévias a seu acoplamento. Ambos são produzidos pelo acoplamento e eles são mais
“processos” que “entidades”.
Esse entendimento não se restringe aos organismos unicelulares, que são
unidades autopoiéticas de primeira ordem. O acoplamento entre muitas células constitui os
mais variados arranjos, os mais variados tipos de organismos, que são chamados pelos
autores de unidades autopoiéticas de segunda ordem. Um elefante é um exemplo de
unidade autopoiética de segunda ordem. Em sua história de existência (ontogenia), o
elefante realiza um acoplamento com o meio (que inclui outros seres vivos). Esse
acoplamento, como vimos, gera inúmeras perturbações, desencadeando mudanças no meio.
Maturana e Varela construíram uma metáfora interessante: a ontogenia de um ser pode ser
comparada à trajetória de uma gota d’água lançada verticalmente no cume de um montinho
de areia. A queda da gota (o acoplamento) produzirá modificações no montinho e na
própria gota.
O elefante é um exemplo de unidade de segunda ordem que possui sistema
nervoso, diferentemente da samambaia, por exemplo. Maturana e Varela examinam a
história natural do sistema nervoso e destacam que “[...] a organização básica de um
sistema nervoso tão imensamente complexo como o do homem segue, na essência, a
mesma lógica que o da humilde hidra” (Maturana & Varela, op. cit., p. 184).
12
Os autores frisam que o sistema nervoso surgiu como maneira complexa de
acoplar receptores sensoriais (nossos cinco sentidos, por exemplo) a superfícies motoras.
Operando dessa forma, o sistema nervoso expande grandemente as possibilidades de
conduta dos seres vivos. Quando pensamos no cérebro humano, imaginamos que ele
funcione como um computador. Ao estudarmos um livro, por exemplo, acreditamos que as
impressões visuais que captamos nos trazem “informações”, que são processadas e
armazenadas no cérebro.
Entretanto, tudo o que dissemos até agora nos faz desconfiar desse
entendimento. Vimos que o meio em que vive uma samambaia não é capaz de determinar
mudanças em sua organização como planta. O meio lhe inflige perturbações (luz solar ou
furacão, por exemplo) que desencadearão conseqüências que lhe serão mais ou menos
dramáticas. Entretanto, o meio não pode determinar essas conseqüências. Esse tipo de
funcionamento, próprio das unidades autopoiéticas (dos vivos, portanto), é descrito como
clausura operacional. Voltemos ao sistema nervoso: “[...] ao contrário do que se costuma
pensar, o sistema nervoso não ‘capta informações’ do meio, e sim produz um mundo ao
especificar que configurações do meio são perturbações e que mudanças estas
desencadeiam no organismo. A metáfora tão em voga do cérebro como um computador é
não só ambígua como francamente equivocada” (ibid., p. 195).
Vimos que as unidades autopoiéticas incluem uma membrana responsável por
sua individuação. A invenção da membrana corresponde à invenção dos limites à pura
processualidade do meio e corresponde à instauração de uma dinâmica interna. Entretanto,
essa clausura operacional não significa fechamento: a membrana garante as superfícies de
perturbação, permitindo o devir contínuo da unidade.
Assim como as unidades autopoiéticas, o sistema nervoso (como integrante de
uma unidade) também funciona em clausura operacional. “Descrever a aprendizagem como
uma internalização do meio confunde as coisas, pois sugere que na dinâmica estrutural do
sistema nervoso há fenômenos que existem apenas no domínio de descrições de alguns
organismos capazes de linguagem, como nós” (ibid, p. 199).
Com efeito, uma samambaia, por exemplo, aprende, na medida em que aprender
não é representar internamente o que se dá no mundo, mas gerar uma conduta a partir das
perturbações do meio, conservando a autopoiese. Aprender é produzir-se a partir das
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afetações do meio, portanto aprender é igual a viver. O conhecer é ontológico: conhecer é
igual a ser.
Quando entendemos que conhecer se dá por um processo de representação do
mundo, supomos que há um mundo já dado, invariável e anterior à experiência de
conhecer. Quando procedemos assim, acabamos por adotar uma postura claramente
antropocêntrica, pois o mundo “verdadeiro” que supomos existir corresponde ao mundo
humano (e não ao mundo experimentado por um cão, ou por um mosquito, por exemplo).
Tal postura não obscurece somente a relação entre espécies, mas também entre os próprios
homens. Vejamos como.
Uma série de processos fez com que a cultura aparecesse na história de
constituição da espécie humana. A conduta humana é grandemente produzida a partir de
um acoplamento com um contexto cultural específico. Foi preciso, portanto, que (na
filogênese do humano) os bebês nascessem muito pouco maduros, muito dependentes dos
pais, com um sistema nervoso capaz de uma plasticidade gigantesca. Assim, se um bebê
nasce no Brasil e é levado a viver em uma família japonesa, no Japão, sua vida será
completamente diferente da que experimentaria em nosso país. A cultura humana expandiu
enormemente as possibilidades de acoplamento com o mundo, criando uma variedade
muito grande de ontogenias possíveis, o que não acontece com um mosquito, por exemplo.
Quase a totalidade das condutas do mosquito é determinada geneticamente. O humano, ao
contrário, depende dramaticamente da experiência para orientar sua conduta.10
Voltemos à questão do aprender: não se trata de representar um mundo, pois os
mundos são produzidos simultaneamente à experiência do conhecer. Percebe-se nesse
ponto de nossa argumentação que estamos partindo de uma relativização radical: nada há
de especial no humano que o distancie das outras unidades autopoiéticas em termos de
valor. Em outras palavras, os seres humanos não são “piores” mas também não são
“melhores” que qualquer outro ser vivo. Quando supomos que há um “mundo verdadeiro”
que será representado em nosso interior, acabamos por concluir que o mundo que
experienciamos é o verdadeiro, é o melhor, enquanto, na realidade, ele é só um mundo
entre os muitos possíveis. Essa concepção de “mundo verdadeiro” engendra o
etnocentrismo entre os humanos, forma de relação que permeou o massacre de civilizações
e povos ao longo de nossa história. Maturana e Varela se preocupam com essa questão: se
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não admitirmos que a cognição é criação simultânea de seres e mundos múltiplos e não
hierarquizáveis em termos de valor, poderemos estar caminhando para nossa
autodestruição.
Sob a perspectiva da autopoiese, conhecer corresponde a fazer, a operar uma
determinada conduta. Essa conduta obviamente não é invariável, mesmo nas unidades
autopoiéticas mais simples. Ela é ainda mais flexível quando tratamos da experiência
humana e ainda mais se pensamos em nosso contexto urbano e capitalista. Por mais que nos
acostumemos com uma determinada rotina, nossas ações estão sempre imersas em uma
possibilidade de diferir de si próprias. Há sempre uma pitada de desconhecido. Quando
hesitamos frente ao que fazer, ao que falar ou ao que pensar, no próximo momento de nossa
existência, vivemos o que Varela chamou de Breakdown (Varela, 1992, apud Kastrup,
1999, p. 130). O termo em inglês evoca uma freada, um corte, uma ruptura: é quando a
diferença faz valer o seu retorno. O Breakdown é um momento muito estratégico, pois ele
desafia o que nos parece absolutamente natural, verdadeiro. Ele pode ser um ponto
disparador da criação de outras formas de acoplamento.
Dissemos que pretendíamos questionar o entendimento que toma o computador
como modelo para pensar a cognição. Pois bem, tomar o computador como modelo é
desconsiderar essa pitada de desconhecido que vivemos em nossa deriva, em nosso
processo de conhecer. O computador é capaz de processar informações para resolver um
problema dado de antemão. Entretanto, ele não pode inventar os problemas. A
possibilidade de inventar problemas é própria do vivo, da dinâmica autopoiética. Por
exemplo, quando experimentamos, pela primeira vez, pintar uma tela com um pincel, há
uma espécie de fricção com a matéria. Nosso corpo se posiciona, nossa atenção se
concentra ora no pincel, ora na viscosidade da tinta, ora no branco desafiador da tela. Nesse
acoplamento, inventamos os problemas aos quais iremos nos dedicar: trata-se de molhar o
pincel na tinta e levá-lo à tela? Como? A fricção do nosso corpo com a tela e o pincel
produz efeitos de objetivação (um quadro pintado, por exemplo) ao mesmo tempo em que
produz efeitos de subjetivação (o artista).
Por meio dessas reflexões, percebemos que restringir o conhecer à resolução de
problemas já dados é um procedimento muito insuficiente.
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A recognição existe, sem dúvida. Corresponde à regularidade e constância de
um acoplamento. Entretanto, conhecer não é somente reconhecer e guarda sempre a
possibilidade de rearranjo e de invenção. Há, sem dúvida, repetições e constâncias. Na
experiência humana, estas constâncias devem ser analisadas junto com suas conseqüências
sociais e políticas. Vivemos cercados de idéias naturalizadas que participam do processo de
construção de nossos territórios existenciais. Entretanto, não devemos nos esquecer que as
repetições e constâncias surgem por meio de um processo inventivo. A invenção é primeira
e permanece. Por mais duras e imutáveis que pareçam, as constâncias estão
permanentemente imersas na possibilidade de diferir de si mesmas, de dar lugar a outros
campos de consistência, a outros territórios existenciais. “Há constantes, recorrências,
regularidades, mas não invariantes. [...] aqui o deslocamento do foco do problema da
representação para a invenção apresenta-se explicitamente, restando a representação como
um caso particular da enação” (Kastrup, op. cit., p. 145).
Enação é um termo utilizado por Francisco Varela (Varela, 1988, apud Kastrup,
op. cit., p. 125) para fazer referência a essa cognição corporificada, encarnada, resultante da
experiência que se inscreve no corpo, diferente do entendimento de cognição como
processo mental. “Não se trata de perguntar como a cognição põe em relação um sujeito e
um objeto, mas como, do exercício concreto da cognição, surgem sujeito e objeto”
(Kastrup, op. cit., p. 155-156).
Durante muito tempo, encaramos o ser humano como um ser vivo especial,
capaz de explorar “o” mundo e descobrir seus segredos na forma de leis invariáveis. Esse
foi um pressuposto particularmente importante para o projeto de purificação científica
empreendido pela modernidade.
Em nossas sociedades, a ciência se constituiu como “saber oficial”, ultravalorizado frente aos outros saberes. Somente o método científico seria capaz de chegar a
um conhecimento “verdadeiro” e “válido”. Somente alguns seres humanos teriam a
capacidade de ser porta-vozes das verdades sobre o mundo. Como vimos, a modernidade
das sociedades ocidentais construiu uma “educação formal”, atrelada a esse “saber oficial”.
É evidente que essas relações se fizeram e se fazem presentes nas escolas, na organização
curricular e arquitetônica, na relação hierárquica entre especialistas, entre professores e
estudantes. Fica claro que esse entendimento dos modos do conhecer não é isento de
16
conseqüências políticas, econômicas e sociais. Há, portanto, “políticas da cognição” que
discutiremos no tópico que se segue, tentando integrar as reflexões que empreendemos até
agora.
4. ENSAIOS PARA UMA CONEXÃO
Na primeira parte deste trabalho, falamos sobre o contexto de aparecimento da
escola no mundo ocidental. A existência da escola não é tão natural quanto o cotidiano nos
faz crer. Seu surgimento se deu para responder a necessidades políticas, tais como: de que
maneira adestrar os corpos para uma produção disciplinada? Como legitimar a
superioridade econômica de alguns poucos frente ao empobrecimento de muitos?
As escolas certamente vivem reflexos dessas questões até hoje. Cria-se um
padrão de saber “legítimo”, “oficial”, pretensamente superior aos outros saberes. Esse
procedimento é animado por uma certa política representacionista da cognição, que
pressupõe que o mundo guarda verdades que devem ser desveladas.11 O conhecimento
“oficial” é o conhecimento acadêmico, científico.12 Ele deve ser buscado (por alunos,
professores, etc.) como um ideal. Ele deve ser memorizado e repetido.
A segunda parte deste trabalho foi destinada a buscar ferramentas teóricas para
pensar uma outra política da cognição, capaz de construir outros sentidos para
estabelecimentos como as escolas, uma política inventiva da cognição. Justificamos tal
esforço na medida em que paralisam-nos as formas de relação capitalísticas, dadas entre os
seres humanos e entre eles e o mundo, animadas por uma lógica da representação (que
implica na busca de um ideal) e baseadas em procedimentos de infantilização, de
hierarquização, de dominação e (nos casos extremos) de extermínio. Para efetivar a
democracia nos processos humanos e sociais, julgamos necessária a experimentação de
outras formas de relação nos estabelecimentos escolares, baseadas em outra política da
cognição. Não encaramos a educação formal como a “solução para todos os nossos
problemas”.
Porém, ao mesmo tempo, reconhecemos na escola, espaço tão cheio de
pessoas e de encontros, um lugar extremamente estratégico.
Muito freqüentemente, a escola é descrita como um meio de transmissão dos
conhecimentos acumulados em uma sociedade. Dentre os múltiplos saberes socialmente
17
construídos, foi escolhido o saber científico como parâmetro e como conteúdo para as
composições curriculares. O saber científico é identificado como saber verdadeiro e deve
assumir um maior valor e uma posição hierárquica superior frente aos outros saberes.
Por exemplo, as disciplinas de matemática, física e química, com seus cálculos,
fórmulas, tabelas, etc., pretendem expressar a verdade acerca dos processos naturais. Em
“português” estabelecem-se as regras e categorias por meio das quais funciona a língua e
ensina-se a maneira correta de falar e de escrever. Em “biologia”, os jovens aprendem
definições e classificações sobre vida e seres vivos. Em história e em geografia, são levados
a memorizar datas, personagens, tipos de paisagens, tipos de clima, entre muitas outras
coisas. Aqui não teremos a oportunidade de alongar a discussão sobre conteúdos
curriculares. O que pretendemos mostrar é o papel central que essa “transmissão dos
conhecimentos válidos/verdadeiros” assume no funcionamento escolar.
Não negamos que essa transmissão de conhecimentos aconteça: ela acontece, de
certa forma. Entretanto, pensamos que o que acontece na escola vai muito além disso. A
escola formal faz parte de uma cadeia complexa de produção de modos de vida. Não se
trata exatamente de informar os sujeitos, mas participar na formação dos sujeitos, ou seja,
nos processos de produção de subjetividade. Tais processos dão lugar a especialistas
(pessoas autorizadas a falar sobre algo, detentoras do conhecimento oficial), a processos de
infantilização (dos que “não sabem”) e de hierarquização.
Percebemos que tais “vetores de subjetivação” são fundamentais para o
funcionamento dos modos de produção capitalistas, juntamente com as exigências mais
recentes (neoliberais) de hiper-individualismo, competição, flexibilidade, hiper-formação e
formação permanente.
Os estabelecimentos escolares funcionam hegemonicamente segundo uma
política representacionista da cognição: o conhecimento “oficial” (verdadeiro) deve ser
memorizado e repetido. Existem uma série de modelos que determinam como deve ser o
trabalho dos professores, como devem se comportar os alunos, que tipo de relação deve
nutrir a comunidade escolar. É muito forte, até hoje, a idéia de que o acesso à aprendizagem
e ao conhecimento verdadeiro deve necessariamente estar ligado à transmissão de “pacotes
de informação” em uma aula hierarquicamente organizada, dividida entre os que sabem e
os que não sabem, entre os que são competentes e os que fracassam. Entretanto, e a pesar
18
desses modelos, sabemos que a atividade inventiva se faz presente todo o tempo nas
escolas. Os trabalhadores (professores, diretores, estudantes) produzem, constantemente,
formas inovadoras de manejar seu trabalho.
Acreditamos que novas formas de entender o conhecimento podem transformar:
a) A organização espacial e temporal da escola: abrir a possibilidade de
experimentar tempos e espaços diferentes do quadriculado disciplinar, elaborar uma gestão
coletiva desses tempos e espaços;
b) As relações entre os funcionários, os professores e os alunos: questionar as
hierarquizações, fomentar espaços onde cada um possa ser ouvido e onde possam ser
elaborados encaminhamentos de maneira coletiva;
[...] tudo o que dissemos aqui, esse saber que sabemos, conduz a uma ética inescapável, que
não podemos desprezar. [...] Se sabemos que nosso mundo é sempre o mundo que
construímos com outros, toda vez que nos encontrarmos em contradição ou oposição a outro
ser humano com quem desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser a de reafirmar o
que vemos do nosso próprio ponto de vista, e sim a de considerar que nosso ponto de vista é
resultado de um acoplamento estrutural dentro de um domínio experiencial tão válido como
o de nosso oponente, ainda que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, portanto, buscar
uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro também
tenha lugar e no qual possamos, com ele, construir um mundo. (Maturana & Varela, op. cit.,
p. 262).
c) As tarefas escolares: tornar explícito o envolvimento de cada um com as
tarefas escolares, questionar a primazia das notas e avaliações, deixar de simplesmente
repetir e memorizar o conhecimento oficial, interrogando sua validade para o que vivemos
no dia-a-dia;
d) A organização e os conteúdos das disciplinas: articular o que se estuda na
escola com o cotidiano dos funcionários, professores e alunos, partindo de experiências e
acontecimentos. São infindáveis os exemplos de temas que poderiam transformar o
envolvimento de professores e alunos com os conteúdos das disciplinas: a organização da
cidade, as divisões no mundo do trabalho, o lucro, as alternativas de economia solidária, o
sistema político em que vivemos, as eleições, os direitos e deveres dos cidadãos, a
corrupção, a violência, o narcotráfico, as experiências de gestão participativa da educação e
da saúde, etc.
e) As relações entre a escola e as comunidades extra-escolares: eliminar as
distâncias, uma vez em que se questiona a dualidade “escola-lugar-do-saber X comunidade-
19
lugar-do-não-saber”, estabelecer fóruns de decisão capazes de responder às questões “que
escola queremos?, Que mundo queremos?”.
Argumentamos que conhecer não é elaborar representações de uma suposta
realidade objetiva. Conhecer é um processo de produção simultânea de si e do mundo. Por
isso o conhecer é um processo político e isso se torna evidente por meio das relações que
fizemos entre a escolarização e o capitalismo.
Acreditamos que é necessário (se não, pelo menos estratégico) experimentar
políticas inventivas da cognição nos espaços e funcionamentos escolares. O desafio que nos
colocamos e que queremos propor é o de construir formas inovadoras de pensar e de viver o
cotidiano escolar. Para isso, acreditamos que se faz estratégica uma aproximação com os
conceitos da teoria da autopoiese. Ao mesmo tempo, colocamo-nos alertas para o perigo de
que esses conceitos virem uma nova ladainha, capaz, justamente, de obscurecer os fins de
transformação político-subjetivos em que apostamos. Consideramos, enfim, que a ética
deve anteceder os conceitos.
NOTAS
1
Não nos referimos aqui a uma democracia “liberal”, pautada unicamente na escolha de “representantes” que
acabam por defender prioritariamente interesses privados e privatizantes. Falamos de uma democracia “real”,
ou seja, da possibilidade de participação efetiva, junto com os sistemas de administração, nas decisões sobre
trabalho, educação, saúde, etc.; na possibilidade de construção de instrumentos e de fóruns capazes de
organizar essa participação; na possibilidade de que as pessoas possam fazer ouvir os saberes que constroem
em sua prática cotidiana e de que possam gerir essa prática por meio de encaminhamentos coletivos.
2
Veremos com mais detalhes que produção aqui se refere a bens de consumo e também à “produção de
subjetividade”, conforme argumenta Félix Guattari (2000).
3
4
Que já era praticado de maneira pontual nos mosteiros medievais (Foucault, 1998).
A noção de complexidade não se traduz aqui por “elevado grau de dificuldade”. Ela é utilizada para
caracterizar um sistema que funciona por conexões múltiplas e cujos resultados não entram em um registro de
previsibilidade. Trata-se de um funcionamento em rizoma (Deleuze & Guattari, 1995, p. 11-37).
5
A concepção de história no registro da complexidade impede que um desses fatores ou qualquer outro seja
tomado como determinante único ou principal da emergência da modernidade.
20
6
O panótico foi editado no final do século XVIII por um jurista inglês chamado Jeremy Bentham, mas, no
registro da microfísica do poder, já tinha começado a fazer sentir seus efeitos bem antes (Foucault, 1999, p.
209-227).
7
Guattari (2000) usa o termo capitalístico para caracterizar não só os países de capitalismo avançado, mas
também os do chamado terceiro mundo e os de socialismo burocrático, que põem para funcionar uma mesma
economia libidinal-política.
8
É importante frisar que a problemática exposta pela autopoiese é marcadamente transdisciplinar. Sua
origem, o campo da biologia, não exclui suas implicações com a história, com a política, com a filosofia.
9
Para Virgínia Kastrup (1999; p. 115), “Perturbar significa afetar, colocar problema”.
10
Para Maturana (1998, p. 42), “[...] não há diferença intrínseca entre conduta instintiva e conduta aprendida,
já que ambas são o resultado da epigênese do organismo e surgem, em cada caso, como conseqüência
inevitável da história de interações deste com conservação da organização e da adaptação. A diferença entre
elas está somente no grau de liberdade epigênica que determina a estrutura da célula inicial”.
11
As diferentes maneiras de encarar o conhecer têm diferentes conseqüências políticas. É desse solo de idéias
de onde brota a noção de “política da cognição”.
12
Certamente, o método científico e os procedimentos acadêmicos podem ser úteis aos seres humanos. Não
queremos aqui desqualificar a ciência ou a academia, mas sim, questionar os efeitos políticos da primazia que
lhes é atribuída frente a outros saberes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_____________ (1998) Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.
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KASTRUP, V. (1999) A invenção de si e do mundo. Campinas: Papirus.
MATURANA, H. (1998) Da biologia à psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas.
MATURANA, H. & VARELA, F. (1995) A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy.
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Nietzsche, São Paulo: Nova Cultural.
OLIVEIRA, S. (2001) Micropolítica do fracasso escolar: uma tentativa de aliança com o invisível.
Dissertação Mestrado em Educação, UFES, Vitória.
21
SOUZA, L. (2002) Educação em tempos neo-liberais: uma análise micropolítica do ensino médio em
Vitória, ES. Relatório de Pesquisa. Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo.
Primeira decisão editorial em: setembro/ 2004
Versão final em: outubro/ 2004
Aceito em: novembro/ 2004
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LUIZ GUSTAVO SILVA SOUZA