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A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE NA FICÇÃO
DE BUCHI EMECHETA: SOBRE AS DORES DE SER MÃE
EM THE JOYS OF MOTHERHOOD
Maria Elizabeth P. Souto Maior MENDES1 (UFPB)
RESUMO:
O presente trabalho traz uma análiseda representação da maternidade na obra The
Joys of Motherhood, da escritora nigeriana Buchi Emecheta. Para tanto, partiu-se
das observações de algumas teóricas do feminismo africano (AMADIUME, 1981;
STEADY,1981; NNAEMEKA, 1994, 2005; OYEWUMI, 1997; 2005) quando
problematizam a relação estreita entre os estudos de gênero na África, o feminismo
ocidental e o domínio colonial no referido continente. As autoras debatem a
prerrogativa do feminismo ocidental de que a assimetria de gênero e a consequente
subordinação da mulher são universais. Algumas delas chegam ao ponto de afirmar
que a organização social de uma cultura (a hegemônica) não pode ser utilizada para
interpretar as experiências de outra cultura (no caso específico, a africana). Na obra,
objeto desta análise, observa-se que Emecheta denuncia a situação heterogênea e
desigual das mulheres no período de ocupação colonial britânica na Nigéria, quando
detalha os percalços de sua protagonista na luta contra os mecanismos de opressão
cultural existentes em seu meio, podendo-se afirmar que o principal construto social
responsável por tal desigualdade seria o patriarcado o qual, através do matrimônio,
reforça ainda mais a propagada crença da mulher como mãe da nação e criatura
capaz de incorporar os valores africanos, perpetuando-os, assim, aos seus
descendentes. As duas personagens femininas, Nnu Ego e Adaku têm visões
bastante distintas da maternidade e do matrimônio. Enquanto Nnu Ego encontra a
ruína e destruição pessoal exatamente por defender a maternidade a todo custo e o
matrimônio como algo sacrossanto em sua vida, Adaku consegue subverter os
valores patriarcais vigentes quando escolhe a prostituição como alternativa
financeira para sobreviver à nova ordem social pós-colonial. Conclui-se, então, que
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba,
Campus I, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da Profª Drª Liane Schneider, cujo título é “O
Pós-colonialismo e a representação do corpo feminino nas obras Without a name e Butterfly burning,
de Yvonne Vera”. E-mail: [email protected].
2
tanto o matrimônio, como construto social, quanto o patriarcado parecem ser alvos
da crítica de Emecheta na obra em questão.
Palavras-chave: Buchi Emecheta. Maternidade. Representação.
ABSTRACT:
The present study aims at analysing the representation of motherhood in the
novelThe Joys of Motherhood, by the Nigerian author Buchi Emecheta. The starting
point for our analysis are some observations of African feminist scholars
(AMADIUME, 1981; STEADY,1981; NNAEMEKA, 1994, 2005; OYEWUMI, 1997;
2005) when they problematize the strict relationship between gender studies in
Africa, Western feminism and the colonial enterprise in the aforementioned continent.
The authors discuss the prerrogative of Western feminism that gender assymetry and
the female subordination that follows are universal. Some of these scholars state that
the social organization of one culture (hegemonic) cannot be used to interpret the
experiences of another culture (in the case of the present work, the African one). In
the novel that is the object of our study, Emecheta denounces the heterogeneous
and unequal situation of women during the period of British occupation in colonial
Nigeria, when it describes the protagonist‟s shortcomings in her stuggle against the
mechanisms of cultural oppression existing around her. We can state that the main
social construct responsible for such inequalities would be patriarchy which, through
motherhood, reinforces even more the commonly held beliefin women as Mothers of
the Nation, capable of embodying African values, passing them on to the followiing
generations. The two female protagonists, Nnu Ego e Adaku,have very distinct views
of motherhood and marriage. Whereas Nnu Ego finds her ruin and personal
destruction exactly due to her defence of motherhood above all things and marriage
as a sacred element in her life, Adaku manages to subvert existing patriarcal values
when she chooses prostitution as a viable financial option to survive in the new postcolonial social order. We conclude that both marriage as a social construct, and
patriarchyseem to be the targets of criticism by Emecheta in this novel.
KEYWORDS: Buchi Emecheta. Motherhood. Representation.
1 Introdução: Emecheta e o contexto do romance feminista africano
Ao longo de sua vasta obra ficcional, a escritora nigeriana Buchi Emecheta
tem demonstrado uma preocupação com os mais variados temas dentre os quais as
guerras pela emancipação do seu país, os problemas enfrentados pelos imigrantes
nigerianos (principalmente as mulheres) residentes em Londres, abordando
especialmente a problemática de ser mulher em um continente com fortes
desigualdades raciais e de gênero. Conforme Boehmer (2005), a abordagem que a
3
autora utilizaé a de retrabalhar o espaço social africano como se habitado
primordialmente pelas mulheres, problematizando a situação desigual doshabitantes
de uma nação pós-colonial do ponto de vista delas. A escrita de Emecheta questiona
noções arraigadas de dependência feminina, que são amplamente difundidas no
mundo todo e, em especial, no continente africano, atingido por desigualdades
sociais oriundas do período em que sofreu ocupação e colonização por parte de
países europeus, dentre os quais Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra.
Questões como a poligamia, o lobolo, ou “preço da noiva” (valor pago aos
pais na ocasião do casamento de suas filhas), os casamentos arranjados, o poder
patriarcal que rege a vida e sela o destino das mulheres nigerianas, todos esses
temas fazem parte do conjunto da obra de Emecheta, que compreende mais de uma
dezena de romances, dentre os quais In the Ditch (1972), Second-Class Citizen
(1974), The Bride Price (1976), The Slave Girl (1980), The Rape of Shavi (1983),
Destination Biafra(1994) e uma peça teatral, A Kind of Marriage (1986), produzida
para a BBC. Pode-se afirmar que a obra da autora engaja-se em um projeto de
recuperação da individualidade e do amor-próprio, tomados das mulheres africanas
que são duplamente subjugadas, primeiramente pelo colonialismo e, em segunda
instância, pelo patriarcado. De acordo com Nnaemeka (1994, 2005) e Oyewumi
(1997; 2005),a ausência de conhecimento por parte dos teóricos ocidentais sobre as
circunstâncias materiais subjacentes à produção dos romances do referido
continente, leva para uma generalização e vitimização exacerbada de suas
mulheres, condenadas à incompreensão do Ocidente e ao ostracismo literário por
décadas a fio.
Sobre a incipiente divulgação da produção literária feminina africana nos
compêndios literários,Stratton (1994) e Boehmer (2005) atribuem o acesso
diferenciado à educação dado aos homens como fator preponderante que diferencia
homens e mulheres no continente africano.Enquanto escritores como Chinua
Achebe, Wole Soyinka, Ngugi wa Thing‟o, dentre outros, são comumente citados
como grandes nomes no referencial literário negro africano, pouco ainda se fala de
escritoras como Flora Nwapa, Yvonne Vera e Buchi Emecheta. Assim, como
resultado dessa limitada presença feminina no cânone, a representação da mulher
africana, quando aparece na ficção, é distorcida e limitada ao estereótipo da mãe
África, nutriz, protetora e responsável pela procriação dos filhos da nação. É comum,
por exemplo, nos romances de Achebe, a representação de personagens femininas
4
planas, caracterizadas pela submissão e subserviência aos seus maridos tiranos, a
quem devem obedecer para não sofrerem abusos físicos.
Se o movimento pela liberação das mulheres, iniciado na Europa, ainda no
final do século XVIII, em decorrência dos ideais de emancipação propagados com a
Revolução Francesa, almejava a inclusão delas no cenário literário mundial, há
ainda
muitos
pontos
de
dissensão
oriundos
da
visão
estereotipada
e
homogeneizante que o feminismo ocidental sustenta sobre as necessidades das
mulheres de diversos outros lugares do mundo.Segundo Oyewumi (2003), as atuais
distinções de nomenclatura – Feminismo branco, negro, afro-americano, ocidental,
de terceiro mundo, africano, womanismo, negofeminismo – refletem o lado
contestador que se tornou parte da história de desenvolvimento das ideias
feministas ao redor do globo. A visão que privilegia a mulher ocidental em detrimento
de suas irmãs africanas, que devem ser resgatadas das praticas culturais primitivas
e/ou retrógradas como o casamento arranjado, a poligamia, o uso do véu e da burca
e a clitoridectomia, é contestada pelas teóricas dos feminismos de terceiro mundo e
africano.
O argumento sustentado por várias delas (Mohanty, 1993; Ogunyemi;
Amadiume, 1997)é que as feministas ocidentais, posicionadas em um lugar de
suposta autoridade acadêmica2, parecem visar sempre a falar por suas “sisters
africanas” sem, no entanto, lhes dar voz própria. Nos discursos feministas
ocidentais, as práticas tradicionais são colocadas como imposições sobre as
mulheres, vistas como exploradas, indefesas e incapazes de tomar suas próprias
decisões. Um perigo contra o qual adverte Nnaemeka (1997, p. 167):
It‟s troubling, but understandable, that feminism which has made the issue of
“choice” the centerpiece of its theorizing and activism is reluctant to fator the
same issue in its analysis of African women‟s lives.[…] The construction of
the voiceless African woman is, therefore, a necessity. (NNAEMEKA, 1997,
3
p. 167)
Nnaemeka (apud OYEWUMI, 2005) sugere que o feminismo ocidental
também não reconhece a agência e o potencial da escrita africana feminina,
representada com frequência de forma unidimensional:
2
Narayan usa o termo “vantagem epistemológica” para se referir a esse fenômeno.
É desconcertante, mas compreensível, que o feminismo, que tornou a questão da escolha o cerne
de sua teoria e ativismo, relute para levar em consideração o mesmo fator na sua análise das vidas
das mulheres africanas [...] A construção da mulher africana como não tendo voz é, portanto, uma
necessidade. (NNAEMEKA, 1997, p. 167, tradução nossa)
3
5
The arrogance that declares African women “problems” objectifies us and
undercuts the agency necessary for forging true global sisterhood. African
women are not problems to be solved. Like women everywhere, African
women have problems. More important, they have provided solutions to
these problems. We are the only ones who can set our priorities and
agenda. Anyone who wishes to participate in our struggles must do so in the
4
context of our agenda. (NNAEMEKA apud OYEWUMI, 2005, p. 57)
Ao longo do presente ensaio pretende-se argumentar que, dentro do contexto da
cultura africana, um dos maiores fardos da mulher é a convenção social do
casamento, que exige, em decorrência dele, o desempenho invariável do papel de
mãe. Algumas romancistas do referido continente, como Flora Nwapa e Buchi
Emecheta, tentam problematizar a reprodução e a maternidade compulsória como
única forma possível de consagração da mulher. No romance The Joys of
Motherhood, foco primeiro desta análise, a maternidade é um dos principais pilares
que sustentam o patriarcado, força motriz e referente maior, capaz de incluir ou
excluir as mulheres de sua comunidade. No caso da personagem Nnu Ego,
identificar-se como mulher, apenas através da sacralizada maternidade, é a principal
razão de sua ruína. No entanto, pode-se afirmar que a maternidade também se
torna, para ela, um lugar de fala e de resistência, no qual ficam evidentes as tensões
oriundas de um meio social que não oferece qualquer saída à mulher que critica ou
vai de encontro à sua função procriadora.
4 Sobre as dores de ser mãe em The Joys of Motherhood
O romance The Joys of Motherhood, publicado em 1979, retrata as agruras
da vida da protagonista Nnu Ego, desde o nascimento até a sua morte. Ao longo da
narrativa, muitos são os percalços vividos pela personagem em busca por
autonomia e aceitação social, e o contexto é a Nigéria, do início até meados dos
anos 1940 do século passado, quando o país sofria os efeitos da colonização
4
A arrogância que declara as mulheres africanas como “problemas”, nos objetifica e mina a agência
necessária para se chegar a uma verdadeira irmandade global. As mulheres africanas não são
problemas a serem solucionados. Como as mulheres em todo lugar, as africanas tem seus
problemas. Mais importante, elas forneceram as soluções para estes problemas. Nós somos as
únicas que podemos estabelecer nossas prioridades e nossa agenda. Qualquer pessoa que queira
participar das nossas lutas, devem fazê-lo no contexto de nossa agenda. (NNAEMEKA, apud
OYEWUMI, 2005 2005, p. 57, tradução nossa)
6
britânica. Este romance mostra principalmente a condição feminina na África
anglófona, apresentando como maior polêmica as inadequações de uma mulher,
Nnu Ego, no desempenho do seu único e exclusivo papel, de acordo com a sua
cultura patriarcal - o de ser mãe. Na obra, a protagonista descobre, embora
tardiamente, que as recompensas da maternidade inexistem e que a realização
emocional, prometida às esposas com a chegada dos filhos, é uma grande e
completa desilusão.No primeiro casamento, Nnu Ego atinge o limiar da loucura por
não conseguir engravidar. Amargurada e sofrendo discriminação por ainda não ter
sido capaz de gerar um filho (em um dado momento do romance ela se
autodenomina “uma mulher fracassada”), a personagem decide amamentar, às
escondidas, um filho que não é seu e, como consequência, é expulsa da
comunidade. O pai de Nnu Ego a aceita de volta, mediante pagamento do lobolo ao
ex-esposo e consegue para a filha um segundo casamento.Mesmo que não tenha
afinidade com o novo esposo, chamado Nnaife, Nnu Ego se realiza com a
descoberta da gravidez, mas a alegria de conceber um filho dura apenas quatro
semanas após o nascimento do mesmo. Quando este vem a óbito, Nnu Ego é
levada ao desespero absoluto e a uma tentativa frustrada de suicídio, quando é
salva por um conhecido. Meses depois do ocorrido, Nnu Ego se descobre grávida
novamente e sua realização é absoluta. A maternidade lhe confere um status de
mulher, que não conhecia, sendo agora reconhecida pelo marido, a quem passa a
respeitar, como também pela comunidade: “He has made me into a real woman- all I
want to be, a woman and a mother. So why should I hate him now?” 5 (EMECHETA,
2008, p. 55)
Claramente, Emecheta desenvolve, ao longo do romance, uma reavaliação da
própria mulher africana em relação ao seu status idealizado como mãe. Enganada
pela crença de seu povo de que um filho homem, ao crescer, veste os pais e
trabalha por eles para que a velhice dos mesmos seja doce, Nnu Ego acredita que
dar à luz muitos filhos lhe trará mais felicidade:“She was now sure, as she bathed
her baby son and cooked for her husband, that her old age would be happy, that
5
“Ele me transformou numa mulher verdadeira - tudo o que quero ser, uma mulher e uma mãe. Então
por que devo odiá-lo agora?” (EMECHETA, 2008, p. 55, tradução nossa)
7
when she died there would be somebody left behind to refer to her as
„mother‟.”6(EMECHETA, 2008, p. 57)
Embora Nnu Ego conceba nove filhos, dos quais apenas sete sobrevivem,
termina
seus
dias
completamente
abandonada
e
esquecida.
Sua
morte
problematizao alto grau de desvantagem social que sofre a mulher africana, inserida
em um meio cultural que privilegia a maternidade ao ser humano:“[…]Nnu Ego lay
down by the roadside, thinking that she had arrived home. She died quietly there,
with no child to hold her hand and no friend to talk to her.” 7(EMECHETA, 2008, p.
253)
São as mulheres, sujeitos invisíveis da história, como também da história da
colonização, embora tendo sido participantes ativos das lutas pela emancipação
político-social do continente africano como um todo, que enxergam claramente a
subserviência do homem colonizado, destituído de orgulho e amor próprios.
No contexto colonial, a obediência ao homem branco era primordial para a
sobrevivência de todos os membros da família. Tal pensamento aparece no seguinte
trecho:
You want a husband who has time to ask you if you wish to eat rice, or drink
corn pap with honey? Forget it. Men here are too busy being white men‟s
servants to be men. We women mind the home. Not our husbands. Their
manhood has been taken away from them. The shame of it is that they don‟t
know it. Their manhood has been taken away from them. The shame of it is
that they don‟t know it. All they see is the money, shining white man‟s
money. [...] But Nnu Ego had protested, “my father released his slaves
because the white man says its illegal. Yet these our husbands, are like
8
slaves, don‟t you think? (EMECHETA, 2008, p. 53)
Equiparando ser mulher a ser escrava, o diálogo exemplifica a lógica
patriarcal vigente em seu ambiente cultural, onde o campo de atuação da mulher é
exclusivamente a esfera doméstica. Entretanto, as personagens femininas do
6
“Ela agora tinha certeza, ao dar banho em seu filho e cozinhar para seu marido, que seus dias de
velhice seriam felizes, e que quando morresse haveria alguém para se referir a ela como
„mãe‟”(EMECHETA, 2008, p. 57, tradução nossa).
7
“Nnu Ego deitou à margem da rua, pensando que havia chegado a casa. Ela morreu pacificamente
ali, sem nenhum filho para segurar sua mão e sem nenhum amigo com quem conversar.”
(EMECHETA, 2008, p. 253, tradução nossa)
8
Você quer um marido que tem tempo para lhe perguntar se você deseja comer arroz, ou polenta com
mel? Esqueça! Os homens aqui estão muito ocupados atuando como servos dos homens brancos
para serem homens. Nós, as mulheres, cuidamos da casa. Não nossos maridos. A masculinidade foi
tirada deles. A pena é que eles não sabem disso. Tudo o que veem é o dinheiro, o reluzente dinheiro
do homem branco. [...] Mas, Nnu Ego protestou, meu pai libertou seus escravos porque o homem
branco disse que era ilegal. Ainda assim, estes nossos maridos são como escravos, não acha?
(EMECHETA, 2008, p. 53, tradução nossa)
8
romance desafiam tal lógica à medida que forçam uma inserção no âmbito público
exclusivamente masculino. Nnu Ego tenta participar da vida comercial de sua
comunidade, mas desiste quando engravida pela segunda vez, mas, após o
alistamento compulsório e envio do marido à guerra, retorna ao comércio informal
como única alternativa de sobrevivência para si e para seus filhos. Já Adaku, de
forma mais concreta, se rebelará do aprisionamento da maternidade a ela imposto.
A autora revela uma clara tomada de posição no que se refere à denúncia das
desigualdades sociais provenientes da colonização, desigualdades estas percebidas
mais fortemente pelas mulheres do que pelos seus companheiros. Se os homens
são vítimas do estado de coisas colonial, as mulheres são duplamente vítimas –
enquanto mulheres e enquanto sujeitos coloniais. Mas, uma das críticas à Emecheta
é que sua escrita utiliza uma estratégia de potencializar a força de transformação
feminina ao passo que enfraquece e ridiculariza os homens, destituindo-os, muitas
vezes, de toda a sua virilidade.
Em The Joys of Motherhood, especificamente, as figuras femininas são
mulheres ambíguas- frágeis por um lado - elas almejam a maternidade a fim de se
adequar e enquadrar ao estereótipo do seu meio cultural, à essência da africanidade
feminina - a mãe africana; por outro, são fortes e determinadas, capazes de
sustentar a família trabalhando fora. Com Adaku, a autora dá um passo bastante
corajoso - apresentando ao leitor uma mulher que vai de encontro ao mito da mãe
África, perpetuadora dos valores morais, é uma mulher transgressora que, ao
contrário do que se espera, sofre ostracismo social, mas que prospera na vida. Os
valores tradicionais estão arraigados em Nnu Ego, que seus pensamentos de viver
conforme os padrões culturais do seu povo, mesmo em terras distantes e sem o
auxílio da sua comunidade original. Tais valores são ostensivamente negados por
Adaku cuja rebeldia advém da clareza com que enxerga as implacáveis expectativas
culturais do meio em que vive:
Yet the more I think about it the more I realize that we women set impossible
standards for ourselves. That we make life intolerable for one another. I
cannot live up to your standards, senior wife. So, I have to set my own.”
“May your chi be your guide, Adaku.” Nnu Ego whispered almost inaudibly
as she crawled into the urine-stained mats on her bug-ridden bed, enjoying
9
the knowledge of her motherhood. (EMECHETA, 2008, p. 189)
9
No entanto, quanto mais eu penso no assunto, mais eu percebo que nós, mulheres, estabelecemos
padrões impossíveis para nós mesmas e que tornamos a vida intolerável umas para as outras. Não
consigo atingir esse seu padrão, primeira esposa. Então eu tenho que estabelecer os meus próprios
9
Ressalta-se,neste momento, a força simbólica evocada através da imagem de
uma mulher rastejante, como se ocupasse o último lugar na escala social, em uma
posição de subserviência.
Uma questão importante levantada pela autora no romance é a crítica ao
acesso diferenciado à educação de filhos e filhas na Nigéria.Enquanto aos filhos
homens de Nnu Ego são dadas as regalias de uma educação colonial formal
moderna, às filhas, resta se contentar com a execução diária das tarefas domésticas
junto à mãe, a quem devem auxiliar na lavoura, no comércio e no preparo dos
alimentos.Mulher bem-sucedida nos negócios, Adaku percebe que sua posição de
segunda esposa não lhe renderá grandes vantagens, pois gerou apenas filhas
mulheres, o que não é suficiente para que possa gozar de qualquer status, sendo
essa a principal razão pela qual planejara dar às filhas uma educação de primeira
qualidade.EntreNnu Ego e Adaku nasce uma natural rivalidade já que aquela, tendo
sido a primeira esposa e gerado filhos homens, detém poderes de decisão familiar e
prestígio social que a segunda esposa gostaria de usufruir.
A chegada das gêmeas traz a Nnu Ego uma espécie de momento de
iluminação ao perceber a terrível situação de desigualdade de gêneros operante em
seu contexto cultural. A protagonista percebe que nunca terá a liberdade a que tanto
aspira, pois teve que enfrentar o processo da criação dos seus filhos praticamente
sem a ajuda do marido, estando presa novamente à função de mãe. A maior ironia
do romance é a de que Nnu Ego não se realiza com a maternidade. Sua destruição
é causada pela abnegação exacerbada, que acha ser necessária para garantir a
sobrevivência dos filhos, a quem se doou por completo.Nnu Ego se compara à
prisioneira na medida em que desejou a vida inteira ser mãe, embora não tenha tido
outra opção, vivendo sobre a terrível sina da dependência e subserviência da mulher
a todos os outros homens - pai, marido, filhos - a quem deve total abnegação.O
romance mostra, portanto, que as práticas culturais tradicionais, como a educação
com vistas ao casamento, a obediência filial e a subserviência feminina,teriam que
ser preservadas segundo uma lógica patriarcal.
padrões. [...] “Que o seu chi seja o seu guia, Adaku”, Nnu Ego sussurrou de modo quase inaudível ao
rastejar sobre o seu tapete manchado de urina por cima da cama cheia de insetos, desfrutando do
conhecimento da maternidade. (EMECHETA, 2008, p. 189, tradução nossa).
10
But you are girls! They are boys. You have to sell to put them in a good
position in life, so that they will be able to look after the family. When your
10
husbands are nasty to you, they will defend you. (EMECHETA, p. 197)
Por algum tempo, Nnu Ego tentou se contentar com uma vida mais regrada e
simples do que já tinha, pelo fato do rendimento do marido ser o único da família.
Mas, no momento em que o marido Nnaife perde seu emprego, Nnu Ego se propõe
a sustentar a família, e ele faz uso do senso de responsabilidade da esposa para
escravizá-la. Decidida a enfrentar uma jornada de trabalho fora de casa, a
protagonista desafia tanto a vontade do seu marido quanto os costumes de sua
cultura.
Pode-se argumentar que The Joys of Motherhood é um bildungsroman, ou
seja, um romance de formação, em que a jornada da protagonista vai da alegria ao
completo infortúnio. Primeiramente, Nnu Ego aprende que os valores de sua cultura
ancestral não se aplicam à sua nova vida urbana, em que as mulheres têm que ser
mães sem manter uma vida produtiva fora da esfera doméstica. Em segundo lugar,
esta personagem quer adaptar-se à modernidade, o que significa ser flexível em
seus modos e costumes a fim de tornar menos penosa e solitária a vida em
comunidade no novo espaço. Em última instância, Nnu Ego conclui que, mesmo
tendo trabalhado até a última gota do seu suor para dar de comer a todos sem
distinção e prover os filhos homens a uma educação diferenciada, na esperança de
que estes cuidassem dela na sua velhice, morrerá sozinha e esquecida à beira da
estrada.
Observa-se ainda neste romance a crítica ao costume africano do casamento
poligâmico e a exploração do dilema de homens e mulheres, encurralados entre o
tradicional e o moderno, como um subenredo dentro do romance. Vê-se uma clara
diferença de opiniões entre marido e mulher sobre ser colonizado e, como
consequência, vem à tona o conflito tradição/modernidade. Nnu Ego não consegue
se adaptar à vida urbana, e se vê impossibilitada de funcionar na esfera pública à
medida que se encontra presa ao seu papel de mãe. Emecheta claramente denuncia
a dificuldade ou ainda a impossibilidade de uma mulher, naquela cultura,
desempenhar bem ambos os papéis.Inserida em um novo sistema sociocultural,
agora urbano, Nnu Ego tenta complementar a renda do marido com o trabalho fora
10
Mas vocês são meninas! Eles são meninos. Vocês têm que vender [madeira] para colocá-los em
uma boa posição na vida, a fim de que eles sejam capazes de cuidar da família. Quando seus
maridos forem violentos, eles defenderão vocês. (EMECHETA, 2008, p. 197, tradução nossa).
11
da esfera doméstica, mas se vê impossibilitada de usufruir das benesses dessa
nova vida, por ainda se encontrar presa a um homem que bebe e a espanca com
frequência, e aos filhos, através do desempenho do seu papel de mãe e esposa,
histórica e culturalmente arraigado dentro de si.
Seria justificável, então, a frequente equiparação, no romance, da escravidão
ao ser mulher. Assim, os prazeres associados à maternidade e prometidos pela sua
cultura não acontecem, exatamente pelo fato de a personagem estar deslocada
desta cultura, em um ambiente completamente distinto, em que mal consegue
sobreviver. O momento em que a personagem vem a se rebelar contra o patriarcado
ocorre tardiamente, com a sua morte. Quando as filhas oram em seu santuário pela
graça de serem mães, ela se recusa a satisfazer tal desejo.
Entretanto, Adaku parece ser bem-sucedida em sua tentativa de se libertar da
estrutura social do patriarcado. Não tendo gerado filhos homens, o peso que lhe
recai é menor, já que, dentro da dinâmica da sociedade nigeriana, ela não se
enquadra no modelo ideal da maternidade. Embora, teoricamente, à mercê de um
público pagante masculino, a personagem recorre à prostituição como uma
possibilidade de autonomia financeira. Ao contrário de Nnu Ego, Adaku quer enviar
suas filhas à escola e enxerga claramente a “utilidade” do seu corpo e dos homens,
mesmo que pague com o ostracismo social o alto preço de sua escolha. Os planos
de Adaku acabam dando certo, suas filhas entram em um internato religioso e ela
prospera em seus negócios de prostituição e comércio. Seu papel é iconoclasta por
não se reconhecer um objeto em posição de subserviência, mas sujeito ativo e
capaz de tomada de decisões. Em uma conversa em tom de rebeldia, Nnu Ego
parece ter ampliado a sua perspectiva inicialmente negativa sobre a dependência
feminina, revelando a sua esperança em dias melhores.
5 Em busca de conclusões
A ficção engajada de Buchi Emecheta traz à tona uma série de
questionamentos acerca do lugar de subserviência outrora reservado, embora não
mais aceito passivamente pelas mulheres nas sociedades patriarcais africanas. Seu
projeto emancipatório, via visão criativa feminina, se dá à medida que usa a ficção
para dar voz às mulheres excluídas e silenciadas no contexto cultural nigeriano.
Utilizando-se do estereótipo conhecido da Mãe África, a escritora critica o
12
casamento poligâmico, ao mesmo tempo em que examina as relações de gênero no
sistema patriarcal vigente, denuncia o sistema de educação formal que privilegia
homens em detrimento a mulheres, e, acima de tudo, aponta o dedo para a visão
deturpada e, tantas vezes, autodestrutiva que as próprias mulheres trazem da
maternidade compulsória, tão presente em suas culturas.
O projeto de Emecheta no romance The Joys of Motherhoodexpõe a
opressão femininavia patriarcado,partindo de uma perspectiva das próprias
mulheres, quando no desempenho de todos os três papéis sociais por ela esperados
o de ser mãe, filha e esposa. No caso das duas personagens femininas de Adaku e
Nnu Ego, engajadas em uma verdadeira batalha por reconhecimento e respeito em
um ambiente cultural que as considera meras procriadoras, sem qualquer outra
função social, escolher ser mãe é a grande questão.Enquanto Nnu Ego a princípio
se realiza com o papel de mãe a ela conferido, Adaku não se contenta com o status
marginal que ocupa por não ter conseguido dar filhos homens ao segundo marido.
Reinventa um novo papel para si, em que é agente e não mais objeto, dona dos
próprios planos e controladora do seu destino. Ao fazer uso do corpo como
ferramenta de prazer dos homens, Adaku assegura para si um papel transgressor
quando opta pela prostituição como garantia de um futuro melhor para as suas
filhas.
No romance The Joys of Motherhood, Emecheta equipara a vitimização das
mulheres à maternidade compulsória, descrevendo até as últimas consequências, a
forma destrutiva com a qual a cultura patriarcal introjeta naquelas a necessidade de
autoafirmação identitária e pertencimento social exclusivamente via maternidade. A
romancista encontra, no romance, um espaço em que é possível dar voz às
mulheres silenciadas por uma tradição patriarcal e excludente.
13
Referências
BOEHMER, Elleke. Stories of Women: gender and narrative in the postcolonial
nation. Manchester: Manchester University Press, 2005.
DAVIES, Carole-Boyce. Ngambika: studies of women in African literature. Africa:
Wolrd Press, 1986.
EMECHETA, Buchi. The Joys of Motherhood. African Writers Series. London:
Pearson, 2008.
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Maria Elizabeth P. Souto Maior MENDES