1 A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE NA FICÇÃO DE BUCHI EMECHETA: SOBRE AS DORES DE SER MÃE EM THE JOYS OF MOTHERHOOD Maria Elizabeth P. Souto Maior MENDES1 (UFPB) RESUMO: O presente trabalho traz uma análiseda representação da maternidade na obra The Joys of Motherhood, da escritora nigeriana Buchi Emecheta. Para tanto, partiu-se das observações de algumas teóricas do feminismo africano (AMADIUME, 1981; STEADY,1981; NNAEMEKA, 1994, 2005; OYEWUMI, 1997; 2005) quando problematizam a relação estreita entre os estudos de gênero na África, o feminismo ocidental e o domínio colonial no referido continente. As autoras debatem a prerrogativa do feminismo ocidental de que a assimetria de gênero e a consequente subordinação da mulher são universais. Algumas delas chegam ao ponto de afirmar que a organização social de uma cultura (a hegemônica) não pode ser utilizada para interpretar as experiências de outra cultura (no caso específico, a africana). Na obra, objeto desta análise, observa-se que Emecheta denuncia a situação heterogênea e desigual das mulheres no período de ocupação colonial britânica na Nigéria, quando detalha os percalços de sua protagonista na luta contra os mecanismos de opressão cultural existentes em seu meio, podendo-se afirmar que o principal construto social responsável por tal desigualdade seria o patriarcado o qual, através do matrimônio, reforça ainda mais a propagada crença da mulher como mãe da nação e criatura capaz de incorporar os valores africanos, perpetuando-os, assim, aos seus descendentes. As duas personagens femininas, Nnu Ego e Adaku têm visões bastante distintas da maternidade e do matrimônio. Enquanto Nnu Ego encontra a ruína e destruição pessoal exatamente por defender a maternidade a todo custo e o matrimônio como algo sacrossanto em sua vida, Adaku consegue subverter os valores patriarcais vigentes quando escolhe a prostituição como alternativa financeira para sobreviver à nova ordem social pós-colonial. Conclui-se, então, que 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da Profª Drª Liane Schneider, cujo título é “O Pós-colonialismo e a representação do corpo feminino nas obras Without a name e Butterfly burning, de Yvonne Vera”. E-mail: [email protected]. 2 tanto o matrimônio, como construto social, quanto o patriarcado parecem ser alvos da crítica de Emecheta na obra em questão. Palavras-chave: Buchi Emecheta. Maternidade. Representação. ABSTRACT: The present study aims at analysing the representation of motherhood in the novelThe Joys of Motherhood, by the Nigerian author Buchi Emecheta. The starting point for our analysis are some observations of African feminist scholars (AMADIUME, 1981; STEADY,1981; NNAEMEKA, 1994, 2005; OYEWUMI, 1997; 2005) when they problematize the strict relationship between gender studies in Africa, Western feminism and the colonial enterprise in the aforementioned continent. The authors discuss the prerrogative of Western feminism that gender assymetry and the female subordination that follows are universal. Some of these scholars state that the social organization of one culture (hegemonic) cannot be used to interpret the experiences of another culture (in the case of the present work, the African one). In the novel that is the object of our study, Emecheta denounces the heterogeneous and unequal situation of women during the period of British occupation in colonial Nigeria, when it describes the protagonist‟s shortcomings in her stuggle against the mechanisms of cultural oppression existing around her. We can state that the main social construct responsible for such inequalities would be patriarchy which, through motherhood, reinforces even more the commonly held beliefin women as Mothers of the Nation, capable of embodying African values, passing them on to the followiing generations. The two female protagonists, Nnu Ego e Adaku,have very distinct views of motherhood and marriage. Whereas Nnu Ego finds her ruin and personal destruction exactly due to her defence of motherhood above all things and marriage as a sacred element in her life, Adaku manages to subvert existing patriarcal values when she chooses prostitution as a viable financial option to survive in the new postcolonial social order. We conclude that both marriage as a social construct, and patriarchyseem to be the targets of criticism by Emecheta in this novel. KEYWORDS: Buchi Emecheta. Motherhood. Representation. 1 Introdução: Emecheta e o contexto do romance feminista africano Ao longo de sua vasta obra ficcional, a escritora nigeriana Buchi Emecheta tem demonstrado uma preocupação com os mais variados temas dentre os quais as guerras pela emancipação do seu país, os problemas enfrentados pelos imigrantes nigerianos (principalmente as mulheres) residentes em Londres, abordando especialmente a problemática de ser mulher em um continente com fortes desigualdades raciais e de gênero. Conforme Boehmer (2005), a abordagem que a 3 autora utilizaé a de retrabalhar o espaço social africano como se habitado primordialmente pelas mulheres, problematizando a situação desigual doshabitantes de uma nação pós-colonial do ponto de vista delas. A escrita de Emecheta questiona noções arraigadas de dependência feminina, que são amplamente difundidas no mundo todo e, em especial, no continente africano, atingido por desigualdades sociais oriundas do período em que sofreu ocupação e colonização por parte de países europeus, dentre os quais Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Questões como a poligamia, o lobolo, ou “preço da noiva” (valor pago aos pais na ocasião do casamento de suas filhas), os casamentos arranjados, o poder patriarcal que rege a vida e sela o destino das mulheres nigerianas, todos esses temas fazem parte do conjunto da obra de Emecheta, que compreende mais de uma dezena de romances, dentre os quais In the Ditch (1972), Second-Class Citizen (1974), The Bride Price (1976), The Slave Girl (1980), The Rape of Shavi (1983), Destination Biafra(1994) e uma peça teatral, A Kind of Marriage (1986), produzida para a BBC. Pode-se afirmar que a obra da autora engaja-se em um projeto de recuperação da individualidade e do amor-próprio, tomados das mulheres africanas que são duplamente subjugadas, primeiramente pelo colonialismo e, em segunda instância, pelo patriarcado. De acordo com Nnaemeka (1994, 2005) e Oyewumi (1997; 2005),a ausência de conhecimento por parte dos teóricos ocidentais sobre as circunstâncias materiais subjacentes à produção dos romances do referido continente, leva para uma generalização e vitimização exacerbada de suas mulheres, condenadas à incompreensão do Ocidente e ao ostracismo literário por décadas a fio. Sobre a incipiente divulgação da produção literária feminina africana nos compêndios literários,Stratton (1994) e Boehmer (2005) atribuem o acesso diferenciado à educação dado aos homens como fator preponderante que diferencia homens e mulheres no continente africano.Enquanto escritores como Chinua Achebe, Wole Soyinka, Ngugi wa Thing‟o, dentre outros, são comumente citados como grandes nomes no referencial literário negro africano, pouco ainda se fala de escritoras como Flora Nwapa, Yvonne Vera e Buchi Emecheta. Assim, como resultado dessa limitada presença feminina no cânone, a representação da mulher africana, quando aparece na ficção, é distorcida e limitada ao estereótipo da mãe África, nutriz, protetora e responsável pela procriação dos filhos da nação. É comum, por exemplo, nos romances de Achebe, a representação de personagens femininas 4 planas, caracterizadas pela submissão e subserviência aos seus maridos tiranos, a quem devem obedecer para não sofrerem abusos físicos. Se o movimento pela liberação das mulheres, iniciado na Europa, ainda no final do século XVIII, em decorrência dos ideais de emancipação propagados com a Revolução Francesa, almejava a inclusão delas no cenário literário mundial, há ainda muitos pontos de dissensão oriundos da visão estereotipada e homogeneizante que o feminismo ocidental sustenta sobre as necessidades das mulheres de diversos outros lugares do mundo.Segundo Oyewumi (2003), as atuais distinções de nomenclatura – Feminismo branco, negro, afro-americano, ocidental, de terceiro mundo, africano, womanismo, negofeminismo – refletem o lado contestador que se tornou parte da história de desenvolvimento das ideias feministas ao redor do globo. A visão que privilegia a mulher ocidental em detrimento de suas irmãs africanas, que devem ser resgatadas das praticas culturais primitivas e/ou retrógradas como o casamento arranjado, a poligamia, o uso do véu e da burca e a clitoridectomia, é contestada pelas teóricas dos feminismos de terceiro mundo e africano. O argumento sustentado por várias delas (Mohanty, 1993; Ogunyemi; Amadiume, 1997)é que as feministas ocidentais, posicionadas em um lugar de suposta autoridade acadêmica2, parecem visar sempre a falar por suas “sisters africanas” sem, no entanto, lhes dar voz própria. Nos discursos feministas ocidentais, as práticas tradicionais são colocadas como imposições sobre as mulheres, vistas como exploradas, indefesas e incapazes de tomar suas próprias decisões. Um perigo contra o qual adverte Nnaemeka (1997, p. 167): It‟s troubling, but understandable, that feminism which has made the issue of “choice” the centerpiece of its theorizing and activism is reluctant to fator the same issue in its analysis of African women‟s lives.[…] The construction of the voiceless African woman is, therefore, a necessity. (NNAEMEKA, 1997, 3 p. 167) Nnaemeka (apud OYEWUMI, 2005) sugere que o feminismo ocidental também não reconhece a agência e o potencial da escrita africana feminina, representada com frequência de forma unidimensional: 2 Narayan usa o termo “vantagem epistemológica” para se referir a esse fenômeno. É desconcertante, mas compreensível, que o feminismo, que tornou a questão da escolha o cerne de sua teoria e ativismo, relute para levar em consideração o mesmo fator na sua análise das vidas das mulheres africanas [...] A construção da mulher africana como não tendo voz é, portanto, uma necessidade. (NNAEMEKA, 1997, p. 167, tradução nossa) 3 5 The arrogance that declares African women “problems” objectifies us and undercuts the agency necessary for forging true global sisterhood. African women are not problems to be solved. Like women everywhere, African women have problems. More important, they have provided solutions to these problems. We are the only ones who can set our priorities and agenda. Anyone who wishes to participate in our struggles must do so in the 4 context of our agenda. (NNAEMEKA apud OYEWUMI, 2005, p. 57) Ao longo do presente ensaio pretende-se argumentar que, dentro do contexto da cultura africana, um dos maiores fardos da mulher é a convenção social do casamento, que exige, em decorrência dele, o desempenho invariável do papel de mãe. Algumas romancistas do referido continente, como Flora Nwapa e Buchi Emecheta, tentam problematizar a reprodução e a maternidade compulsória como única forma possível de consagração da mulher. No romance The Joys of Motherhood, foco primeiro desta análise, a maternidade é um dos principais pilares que sustentam o patriarcado, força motriz e referente maior, capaz de incluir ou excluir as mulheres de sua comunidade. No caso da personagem Nnu Ego, identificar-se como mulher, apenas através da sacralizada maternidade, é a principal razão de sua ruína. No entanto, pode-se afirmar que a maternidade também se torna, para ela, um lugar de fala e de resistência, no qual ficam evidentes as tensões oriundas de um meio social que não oferece qualquer saída à mulher que critica ou vai de encontro à sua função procriadora. 4 Sobre as dores de ser mãe em The Joys of Motherhood O romance The Joys of Motherhood, publicado em 1979, retrata as agruras da vida da protagonista Nnu Ego, desde o nascimento até a sua morte. Ao longo da narrativa, muitos são os percalços vividos pela personagem em busca por autonomia e aceitação social, e o contexto é a Nigéria, do início até meados dos anos 1940 do século passado, quando o país sofria os efeitos da colonização 4 A arrogância que declara as mulheres africanas como “problemas”, nos objetifica e mina a agência necessária para se chegar a uma verdadeira irmandade global. As mulheres africanas não são problemas a serem solucionados. Como as mulheres em todo lugar, as africanas tem seus problemas. Mais importante, elas forneceram as soluções para estes problemas. Nós somos as únicas que podemos estabelecer nossas prioridades e nossa agenda. Qualquer pessoa que queira participar das nossas lutas, devem fazê-lo no contexto de nossa agenda. (NNAEMEKA, apud OYEWUMI, 2005 2005, p. 57, tradução nossa) 6 britânica. Este romance mostra principalmente a condição feminina na África anglófona, apresentando como maior polêmica as inadequações de uma mulher, Nnu Ego, no desempenho do seu único e exclusivo papel, de acordo com a sua cultura patriarcal - o de ser mãe. Na obra, a protagonista descobre, embora tardiamente, que as recompensas da maternidade inexistem e que a realização emocional, prometida às esposas com a chegada dos filhos, é uma grande e completa desilusão.No primeiro casamento, Nnu Ego atinge o limiar da loucura por não conseguir engravidar. Amargurada e sofrendo discriminação por ainda não ter sido capaz de gerar um filho (em um dado momento do romance ela se autodenomina “uma mulher fracassada”), a personagem decide amamentar, às escondidas, um filho que não é seu e, como consequência, é expulsa da comunidade. O pai de Nnu Ego a aceita de volta, mediante pagamento do lobolo ao ex-esposo e consegue para a filha um segundo casamento.Mesmo que não tenha afinidade com o novo esposo, chamado Nnaife, Nnu Ego se realiza com a descoberta da gravidez, mas a alegria de conceber um filho dura apenas quatro semanas após o nascimento do mesmo. Quando este vem a óbito, Nnu Ego é levada ao desespero absoluto e a uma tentativa frustrada de suicídio, quando é salva por um conhecido. Meses depois do ocorrido, Nnu Ego se descobre grávida novamente e sua realização é absoluta. A maternidade lhe confere um status de mulher, que não conhecia, sendo agora reconhecida pelo marido, a quem passa a respeitar, como também pela comunidade: “He has made me into a real woman- all I want to be, a woman and a mother. So why should I hate him now?” 5 (EMECHETA, 2008, p. 55) Claramente, Emecheta desenvolve, ao longo do romance, uma reavaliação da própria mulher africana em relação ao seu status idealizado como mãe. Enganada pela crença de seu povo de que um filho homem, ao crescer, veste os pais e trabalha por eles para que a velhice dos mesmos seja doce, Nnu Ego acredita que dar à luz muitos filhos lhe trará mais felicidade:“She was now sure, as she bathed her baby son and cooked for her husband, that her old age would be happy, that 5 “Ele me transformou numa mulher verdadeira - tudo o que quero ser, uma mulher e uma mãe. Então por que devo odiá-lo agora?” (EMECHETA, 2008, p. 55, tradução nossa) 7 when she died there would be somebody left behind to refer to her as „mother‟.”6(EMECHETA, 2008, p. 57) Embora Nnu Ego conceba nove filhos, dos quais apenas sete sobrevivem, termina seus dias completamente abandonada e esquecida. Sua morte problematizao alto grau de desvantagem social que sofre a mulher africana, inserida em um meio cultural que privilegia a maternidade ao ser humano:“[…]Nnu Ego lay down by the roadside, thinking that she had arrived home. She died quietly there, with no child to hold her hand and no friend to talk to her.” 7(EMECHETA, 2008, p. 253) São as mulheres, sujeitos invisíveis da história, como também da história da colonização, embora tendo sido participantes ativos das lutas pela emancipação político-social do continente africano como um todo, que enxergam claramente a subserviência do homem colonizado, destituído de orgulho e amor próprios. No contexto colonial, a obediência ao homem branco era primordial para a sobrevivência de todos os membros da família. Tal pensamento aparece no seguinte trecho: You want a husband who has time to ask you if you wish to eat rice, or drink corn pap with honey? Forget it. Men here are too busy being white men‟s servants to be men. We women mind the home. Not our husbands. Their manhood has been taken away from them. The shame of it is that they don‟t know it. Their manhood has been taken away from them. The shame of it is that they don‟t know it. All they see is the money, shining white man‟s money. [...] But Nnu Ego had protested, “my father released his slaves because the white man says its illegal. Yet these our husbands, are like 8 slaves, don‟t you think? (EMECHETA, 2008, p. 53) Equiparando ser mulher a ser escrava, o diálogo exemplifica a lógica patriarcal vigente em seu ambiente cultural, onde o campo de atuação da mulher é exclusivamente a esfera doméstica. Entretanto, as personagens femininas do 6 “Ela agora tinha certeza, ao dar banho em seu filho e cozinhar para seu marido, que seus dias de velhice seriam felizes, e que quando morresse haveria alguém para se referir a ela como „mãe‟”(EMECHETA, 2008, p. 57, tradução nossa). 7 “Nnu Ego deitou à margem da rua, pensando que havia chegado a casa. Ela morreu pacificamente ali, sem nenhum filho para segurar sua mão e sem nenhum amigo com quem conversar.” (EMECHETA, 2008, p. 253, tradução nossa) 8 Você quer um marido que tem tempo para lhe perguntar se você deseja comer arroz, ou polenta com mel? Esqueça! Os homens aqui estão muito ocupados atuando como servos dos homens brancos para serem homens. Nós, as mulheres, cuidamos da casa. Não nossos maridos. A masculinidade foi tirada deles. A pena é que eles não sabem disso. Tudo o que veem é o dinheiro, o reluzente dinheiro do homem branco. [...] Mas, Nnu Ego protestou, meu pai libertou seus escravos porque o homem branco disse que era ilegal. Ainda assim, estes nossos maridos são como escravos, não acha? (EMECHETA, 2008, p. 53, tradução nossa) 8 romance desafiam tal lógica à medida que forçam uma inserção no âmbito público exclusivamente masculino. Nnu Ego tenta participar da vida comercial de sua comunidade, mas desiste quando engravida pela segunda vez, mas, após o alistamento compulsório e envio do marido à guerra, retorna ao comércio informal como única alternativa de sobrevivência para si e para seus filhos. Já Adaku, de forma mais concreta, se rebelará do aprisionamento da maternidade a ela imposto. A autora revela uma clara tomada de posição no que se refere à denúncia das desigualdades sociais provenientes da colonização, desigualdades estas percebidas mais fortemente pelas mulheres do que pelos seus companheiros. Se os homens são vítimas do estado de coisas colonial, as mulheres são duplamente vítimas – enquanto mulheres e enquanto sujeitos coloniais. Mas, uma das críticas à Emecheta é que sua escrita utiliza uma estratégia de potencializar a força de transformação feminina ao passo que enfraquece e ridiculariza os homens, destituindo-os, muitas vezes, de toda a sua virilidade. Em The Joys of Motherhood, especificamente, as figuras femininas são mulheres ambíguas- frágeis por um lado - elas almejam a maternidade a fim de se adequar e enquadrar ao estereótipo do seu meio cultural, à essência da africanidade feminina - a mãe africana; por outro, são fortes e determinadas, capazes de sustentar a família trabalhando fora. Com Adaku, a autora dá um passo bastante corajoso - apresentando ao leitor uma mulher que vai de encontro ao mito da mãe África, perpetuadora dos valores morais, é uma mulher transgressora que, ao contrário do que se espera, sofre ostracismo social, mas que prospera na vida. Os valores tradicionais estão arraigados em Nnu Ego, que seus pensamentos de viver conforme os padrões culturais do seu povo, mesmo em terras distantes e sem o auxílio da sua comunidade original. Tais valores são ostensivamente negados por Adaku cuja rebeldia advém da clareza com que enxerga as implacáveis expectativas culturais do meio em que vive: Yet the more I think about it the more I realize that we women set impossible standards for ourselves. That we make life intolerable for one another. I cannot live up to your standards, senior wife. So, I have to set my own.” “May your chi be your guide, Adaku.” Nnu Ego whispered almost inaudibly as she crawled into the urine-stained mats on her bug-ridden bed, enjoying 9 the knowledge of her motherhood. (EMECHETA, 2008, p. 189) 9 No entanto, quanto mais eu penso no assunto, mais eu percebo que nós, mulheres, estabelecemos padrões impossíveis para nós mesmas e que tornamos a vida intolerável umas para as outras. Não consigo atingir esse seu padrão, primeira esposa. Então eu tenho que estabelecer os meus próprios 9 Ressalta-se,neste momento, a força simbólica evocada através da imagem de uma mulher rastejante, como se ocupasse o último lugar na escala social, em uma posição de subserviência. Uma questão importante levantada pela autora no romance é a crítica ao acesso diferenciado à educação de filhos e filhas na Nigéria.Enquanto aos filhos homens de Nnu Ego são dadas as regalias de uma educação colonial formal moderna, às filhas, resta se contentar com a execução diária das tarefas domésticas junto à mãe, a quem devem auxiliar na lavoura, no comércio e no preparo dos alimentos.Mulher bem-sucedida nos negócios, Adaku percebe que sua posição de segunda esposa não lhe renderá grandes vantagens, pois gerou apenas filhas mulheres, o que não é suficiente para que possa gozar de qualquer status, sendo essa a principal razão pela qual planejara dar às filhas uma educação de primeira qualidade.EntreNnu Ego e Adaku nasce uma natural rivalidade já que aquela, tendo sido a primeira esposa e gerado filhos homens, detém poderes de decisão familiar e prestígio social que a segunda esposa gostaria de usufruir. A chegada das gêmeas traz a Nnu Ego uma espécie de momento de iluminação ao perceber a terrível situação de desigualdade de gêneros operante em seu contexto cultural. A protagonista percebe que nunca terá a liberdade a que tanto aspira, pois teve que enfrentar o processo da criação dos seus filhos praticamente sem a ajuda do marido, estando presa novamente à função de mãe. A maior ironia do romance é a de que Nnu Ego não se realiza com a maternidade. Sua destruição é causada pela abnegação exacerbada, que acha ser necessária para garantir a sobrevivência dos filhos, a quem se doou por completo.Nnu Ego se compara à prisioneira na medida em que desejou a vida inteira ser mãe, embora não tenha tido outra opção, vivendo sobre a terrível sina da dependência e subserviência da mulher a todos os outros homens - pai, marido, filhos - a quem deve total abnegação.O romance mostra, portanto, que as práticas culturais tradicionais, como a educação com vistas ao casamento, a obediência filial e a subserviência feminina,teriam que ser preservadas segundo uma lógica patriarcal. padrões. [...] “Que o seu chi seja o seu guia, Adaku”, Nnu Ego sussurrou de modo quase inaudível ao rastejar sobre o seu tapete manchado de urina por cima da cama cheia de insetos, desfrutando do conhecimento da maternidade. (EMECHETA, 2008, p. 189, tradução nossa). 10 But you are girls! They are boys. You have to sell to put them in a good position in life, so that they will be able to look after the family. When your 10 husbands are nasty to you, they will defend you. (EMECHETA, p. 197) Por algum tempo, Nnu Ego tentou se contentar com uma vida mais regrada e simples do que já tinha, pelo fato do rendimento do marido ser o único da família. Mas, no momento em que o marido Nnaife perde seu emprego, Nnu Ego se propõe a sustentar a família, e ele faz uso do senso de responsabilidade da esposa para escravizá-la. Decidida a enfrentar uma jornada de trabalho fora de casa, a protagonista desafia tanto a vontade do seu marido quanto os costumes de sua cultura. Pode-se argumentar que The Joys of Motherhood é um bildungsroman, ou seja, um romance de formação, em que a jornada da protagonista vai da alegria ao completo infortúnio. Primeiramente, Nnu Ego aprende que os valores de sua cultura ancestral não se aplicam à sua nova vida urbana, em que as mulheres têm que ser mães sem manter uma vida produtiva fora da esfera doméstica. Em segundo lugar, esta personagem quer adaptar-se à modernidade, o que significa ser flexível em seus modos e costumes a fim de tornar menos penosa e solitária a vida em comunidade no novo espaço. Em última instância, Nnu Ego conclui que, mesmo tendo trabalhado até a última gota do seu suor para dar de comer a todos sem distinção e prover os filhos homens a uma educação diferenciada, na esperança de que estes cuidassem dela na sua velhice, morrerá sozinha e esquecida à beira da estrada. Observa-se ainda neste romance a crítica ao costume africano do casamento poligâmico e a exploração do dilema de homens e mulheres, encurralados entre o tradicional e o moderno, como um subenredo dentro do romance. Vê-se uma clara diferença de opiniões entre marido e mulher sobre ser colonizado e, como consequência, vem à tona o conflito tradição/modernidade. Nnu Ego não consegue se adaptar à vida urbana, e se vê impossibilitada de funcionar na esfera pública à medida que se encontra presa ao seu papel de mãe. Emecheta claramente denuncia a dificuldade ou ainda a impossibilidade de uma mulher, naquela cultura, desempenhar bem ambos os papéis.Inserida em um novo sistema sociocultural, agora urbano, Nnu Ego tenta complementar a renda do marido com o trabalho fora 10 Mas vocês são meninas! Eles são meninos. Vocês têm que vender [madeira] para colocá-los em uma boa posição na vida, a fim de que eles sejam capazes de cuidar da família. Quando seus maridos forem violentos, eles defenderão vocês. (EMECHETA, 2008, p. 197, tradução nossa). 11 da esfera doméstica, mas se vê impossibilitada de usufruir das benesses dessa nova vida, por ainda se encontrar presa a um homem que bebe e a espanca com frequência, e aos filhos, através do desempenho do seu papel de mãe e esposa, histórica e culturalmente arraigado dentro de si. Seria justificável, então, a frequente equiparação, no romance, da escravidão ao ser mulher. Assim, os prazeres associados à maternidade e prometidos pela sua cultura não acontecem, exatamente pelo fato de a personagem estar deslocada desta cultura, em um ambiente completamente distinto, em que mal consegue sobreviver. O momento em que a personagem vem a se rebelar contra o patriarcado ocorre tardiamente, com a sua morte. Quando as filhas oram em seu santuário pela graça de serem mães, ela se recusa a satisfazer tal desejo. Entretanto, Adaku parece ser bem-sucedida em sua tentativa de se libertar da estrutura social do patriarcado. Não tendo gerado filhos homens, o peso que lhe recai é menor, já que, dentro da dinâmica da sociedade nigeriana, ela não se enquadra no modelo ideal da maternidade. Embora, teoricamente, à mercê de um público pagante masculino, a personagem recorre à prostituição como uma possibilidade de autonomia financeira. Ao contrário de Nnu Ego, Adaku quer enviar suas filhas à escola e enxerga claramente a “utilidade” do seu corpo e dos homens, mesmo que pague com o ostracismo social o alto preço de sua escolha. Os planos de Adaku acabam dando certo, suas filhas entram em um internato religioso e ela prospera em seus negócios de prostituição e comércio. Seu papel é iconoclasta por não se reconhecer um objeto em posição de subserviência, mas sujeito ativo e capaz de tomada de decisões. Em uma conversa em tom de rebeldia, Nnu Ego parece ter ampliado a sua perspectiva inicialmente negativa sobre a dependência feminina, revelando a sua esperança em dias melhores. 5 Em busca de conclusões A ficção engajada de Buchi Emecheta traz à tona uma série de questionamentos acerca do lugar de subserviência outrora reservado, embora não mais aceito passivamente pelas mulheres nas sociedades patriarcais africanas. Seu projeto emancipatório, via visão criativa feminina, se dá à medida que usa a ficção para dar voz às mulheres excluídas e silenciadas no contexto cultural nigeriano. Utilizando-se do estereótipo conhecido da Mãe África, a escritora critica o 12 casamento poligâmico, ao mesmo tempo em que examina as relações de gênero no sistema patriarcal vigente, denuncia o sistema de educação formal que privilegia homens em detrimento a mulheres, e, acima de tudo, aponta o dedo para a visão deturpada e, tantas vezes, autodestrutiva que as próprias mulheres trazem da maternidade compulsória, tão presente em suas culturas. O projeto de Emecheta no romance The Joys of Motherhoodexpõe a opressão femininavia patriarcado,partindo de uma perspectiva das próprias mulheres, quando no desempenho de todos os três papéis sociais por ela esperados o de ser mãe, filha e esposa. No caso das duas personagens femininas de Adaku e Nnu Ego, engajadas em uma verdadeira batalha por reconhecimento e respeito em um ambiente cultural que as considera meras procriadoras, sem qualquer outra função social, escolher ser mãe é a grande questão.Enquanto Nnu Ego a princípio se realiza com o papel de mãe a ela conferido, Adaku não se contenta com o status marginal que ocupa por não ter conseguido dar filhos homens ao segundo marido. Reinventa um novo papel para si, em que é agente e não mais objeto, dona dos próprios planos e controladora do seu destino. Ao fazer uso do corpo como ferramenta de prazer dos homens, Adaku assegura para si um papel transgressor quando opta pela prostituição como garantia de um futuro melhor para as suas filhas. No romance The Joys of Motherhood, Emecheta equipara a vitimização das mulheres à maternidade compulsória, descrevendo até as últimas consequências, a forma destrutiva com a qual a cultura patriarcal introjeta naquelas a necessidade de autoafirmação identitária e pertencimento social exclusivamente via maternidade. A romancista encontra, no romance, um espaço em que é possível dar voz às mulheres silenciadas por uma tradição patriarcal e excludente. 13 Referências BOEHMER, Elleke. Stories of Women: gender and narrative in the postcolonial nation. Manchester: Manchester University Press, 2005. DAVIES, Carole-Boyce. Ngambika: studies of women in African literature. Africa: Wolrd Press, 1986. EMECHETA, Buchi. The Joys of Motherhood. African Writers Series. London: Pearson, 2008. EMENYONU, Ernest (Ed.). New Women’s Writing in African Literature. Trenton: Africa World Press, 2004. MC LEAN, Patricia. How Buchi Emecheta's The Joys of Motherhood Resists Feminist and Nationalist Readings. Disponível em: <http://www.otago.ac.nz/deepsouth/2003_01/motherhood.html>. Acesso em: 21 jan. 2014. NNAEMEKA, Obioma. (Ed.). The Politics of (M)Othering. Womanhood, identity and resistance in African Literature. London: Routledge, 1997. OYEWUMI, Oyèrónké. African gender Studies: a reader. New York: Palgrave, 2005. STRATTON, Florence. Contemporary African Literature and the Politics of Gender. London: Routledge, 1994.